1 NUSSBAUMER, Gisele Marchiori. Homossexualidade e subjetividade on line: um estudo de comunidades virtuais gays. Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política. Rio de Janeiro/RJ: PUCRJ. v.6, n.11, p.64-76, jul/dez 2005. ISSN: 1518-8728. Homossexualidade e subjetividade on line: um estudo de comunidades virtuais gays 1 Gisele Marchiori Nussbaumer2 Uns vão, Uns tão, Uns são, Uns dão, Uns não, Uns masculinos, Uns femininos,Uns assim. Caetano Veloso Resumo: O artigo traz uma análise de duas comunidades virtuais gays criadas a partir de listas de discussão, a Listagls e a E-Jovens. Busca aproximar a homossexualidade no contexto brasileiro atual (cena GLS) e as tecnologias digitais de comunicação no que se refere às diferentes formas de sociabilidade, às experimentações identitárias e ao papel da escrita de si como parte do processo de subjetivação da experiência homossexual dos membros dessas comunidades. Abstract: The article presents an analysis of two virtual gay communities created from discussion lists, the Listagls and the E-Jovens. It aims to approach homosexuality in the current Brazilian context (GLS scene) and the communication's digital technology in terms of different ways of sociability, of the identity experimentations and of the role of writing about yourself as a part of the process of subjectivation of the homosexual experience of these community members. Palavras-chave: homossexualidade, subjetividade, comunidades virtuais Key-words: Homosexuality, subjectiveness, virtual communities O termo comunidade virtual já faz parte do vocabulário contemporâneo, designando aqueles espaços constituídos por indivíduos que se relacionam no ambiente on line com continuidade, partilhando experiências, explorando afinidades, expondo a vontade de estarjunto e o sentimento de pertencimento. Trata-se de ambientes eletivos, produzidos pela interação entre seus membros e suas contribuições. O espaço das listas de discussão apresenta-se como um dos mais propícios da rede para a formação dessas comunidades, já que possibilita uma comunicação contínua, o partilhar de histórias e a construção de uma memória comum – características que permitem, para diversos estudiosos do assunto, a identificação de uma comunidade. Neste texto, analisamos duas listas de discussão GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) que, acreditamos, podem ser caracterizadas como comunidades virtuais. A opção pela Listagls e pela E-jovens se justifica por elas estarem entre as listas mais conhecidas do público gay na rede, não serem dirigidas a segmentos particulares desse público e permanecerem abertas aos simpatizantes. Também determinou nossa escolha a sua continuidade – essas listas se mantêm ativas há vários anos –, a finalidade, bem como o fato de serem públicas e agruparem um número expressivo de indivíduos, que se reúnem a partir de tópicos de interesse comum no âmbito da questão homossexual. Consideramos as comunidades virtuais gays, por suas características e particularidades, como objetos de análise instigadores para aqueles que desejam refletir sobre questões importantes que permeiam a sociabilidade contemporânea. Em nosso caso, damos ênfase aquelas relativas à complementaridade dos ambientes on e off line, aos modos alternativos de vivenciar a homossexualidade e as novas formas de desenvolvimento do processo de subjetivação da experiência homossexual. 1 Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada no XIV Encontro Anual da Compós, GT Comunicação e Sociabilidade, UFF/Niterói, 3 de junho de 2005. 2 Profa. Adjunta da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia/UFBA 2 Essas questões foram emergindo desde o momento em que ingressamos na Listagls e na E-Jovens – em dezembro de 2000 e dezembro de 2001, respectivamente – e ganhando relevo à medida que acompanhávamos as mensagens postadas e realizávamos as entrevistas com os criadores e alguns dos participantes das mesmas. Paralelamente, elas nos levaram a percepção de outras especificidades e tendências que caracterizam a interação entre os dois universos que nos interessava aproximar: o da homossexualidade no contexto brasileiro atual e o das tecnologias digitais de comunicação. Cabe ressaltar que não constituiu o nosso intento uma análise verticalizada da complexidade das questões que podem estar contidas em cada uma das temáticas. Interessounos flagrar e analisar a interação desses dois domínios, no sentido de perceber características, alterações e tendências – tanto no plano individual dos processos de subjetivação quanto no plano societário mais amplo – resultantes da experiência da homossexualidade vivenciada on line. As comunidades da Listagls e da E-jovens A Listagls foi criada em setembro de 1996, é uma das listas mais antigas do Brasil e, em fevereiro de 2005, reunia aproximadamente 566 membros. Ao longo de 2004, recebeu uma média de 885 mensagens por mês. Em se tratando de listas de discussão, é uma das principais referências para os gays na rede. Na Listagls, além de serem debatidas questões de interesse de seus participantes, muitas vezes, a partir dos debates travados, surgem projetos e ações concretas em prol dos direitos dos homossexuais brasileiros. A E-Jovens abrange um público que cresceu já convivendo com as tecnologias de comunicação digital e com uma maior inserção e visibilidade dos homossexuais em nossa sociedade. Ela existe desde agosto de 2001 e, em fevereiro de 2005, reunia 1385 membros. Em 2004 recebeu uma média de 694 mensagens por mês. A lista E-jovens é apresentada como “a mais nova comunidade que está se formando na internet” e seu espírito pode ser traduzido no slogan “ser gay é muito mais legal do que você pensa!”. O número de mensagens postadas, tanto na Listagls quanto na E-jovens, traduz não apenas um intenso tráfego de mensagens e uma significativa troca de informações mas, também, a efetiva interação entre seus participantes. As duas listas de discussão, abrigadas no Yahoo Grupos, têm em comum a temática homossexual, mas apresentam diferenças significativas quanto ao perfil de seus membros, aos assuntos debatidos e aos seus objetivos. A Listagls reúne participantes de uma faixa etária ampla e entre os assuntos trazidos à tona destacam-se aqueles que envolvem, de alguma forma, a luta pelos seus direitos e o estabelecimento de políticas públicas referentes à questão homossexual. A lista E-jovens reúne, majoritariamente, adolescentes e jovens gays . De modo diferente do que acontece na Listagls, na E-jovens são mais comuns mensagens de cunho pessoal do que sobre os direitos dos homossexuais ou outros assuntos relacionados à militância e a engajamentos na sociedade de maneira geral, o que parece uma característica da geração que a constitui. Ao contrário dos participantes da Listagls, que em sua maioria são adultos, independentes, com compromissos sociais e profissionais, além de mais conscientes de suas orientações sexuais, 3 os e-jovens vivem uma fase de descobertas, muitos não têm amigos gays e nem mesmo certeza de serem gays. Ambas as listas atraem e reúnem indivíduos que se sentem à margem ou não se encaixam com facilidade na ordem heteronormativa vigente. Nas duas listas, aparecem mensagens que atestam essa inadequação e os problemas dela decorrentes, como exemplificam as declarações abaixo transcritas: Não estou satisfeito com a idéia de ser gay e espero encontrar algo aqui que me faça acreditar que vale a pena ((LISTAGLS) APRESENTAÇÃO. 09/10/03). Estou muito confuso mas fiquei feliz em vir parar aqui na lista. Pareceu a última esperança. Não agüentava mais continuar. Nunca pude me assumir para ninguém. Está sendo muito bom agora pelo menos participar de uma lista assim (Re: [E-jovens] Apresentando. 14/03/02). A tal sentimento de inadequação, alia-se ainda uma outra característica atribuída aos indivíduos responsáveis pela formação de comunidades virtuais, ou seja, a de vivenciarem uma identidade de resistência. Essa identidade é comumente desenvolvida por aqueles que se encontram em posições desvalorizadas ou estigmatizadas na sociedade, como é o caso dos homossexuais. A mensagem que segue é exemplar dessa percepção, expressiva principalmente pela incorporação de um linguajar comum a outras lutas sociais: Sabe o que observei neste tempos da vida. Que nós somos muitos discriminados, mas isto as vezes e bom, pois o povo oprimido, sempre se une aos seus semelhante para tentar mudar. Pois olhem bem, quantos grupos existem, gays, lesbicas, ou mais unidos como homosexuais, bisexuais e gls. Olhem como a gente as vezes compra uma briga numa sala de bate papo, vendo um amigo gay sendo ofendido por um hetero. Ou até na rua mesmo.(eu muitas vezes faço isso hehe, entro na briga) (...) Olhem nossos protestos, as paradas, todos ou quase todos sem medo de expor sua sexualidade e requerer seus direitos de um cidadão, diante de todos e tudo.([E-jovens] Em comum. 26/12/03). A possibilidade de anonimato, assim como a de criar nomes e apelidos é tida como um dos fatores determinantes do interesse que a rede desperta. Até mesmo porque, muitas vezes, se torna mais fácil relatar sentimentos e experiências íntimas para desconhecidos, com os quais se tenha afinidade, do que para pessoas conhecidas com as quais se convive no dia a dia do ambiente off line. Na Listagls e na E-Jovens, entretanto, observamos que a prática do anonimato parece não satisfazer seus membros. Grande parte dos participantes da Listagls assina as mensagens postadas com nome e, muitas vezes, sobrenome; isso quando não acrescentam seus vínculos com alguma instituição, endereços, telefones ou páginas pessoais. Na E-Jovens alguns membros também assinam suas mensagens com nomes e, até mesmo, com sobrenomes. Mas, diferente do que acontece na Listagls, nela o que reina são os apelidos, os nick names – o que não significa que seus membros desejem se manter no anonimato, até mesmo porque é comum a divulgação de e-mails pessoais, números de ICQ, blogs, páginas pessoais e celulares. Nas comunidades da Listagls e da E-jovens, as identidades assumidas parecem extensivas às do ambiente off line, mesmo que se apresentem, no caso da última, como simples nicks. Afinal, seus membros expõem muitos aspectos relacionados as suas vidas off 4 line no ambiente on line das listas. Depois de alguns meses acompanhando-os, é possível saber suas idades, onde moram, o que fazem, se estão namorando, o que pensam sobre determinados assuntos, enfim, traçar um perfil e uma breve trajetória de alguns participantes mais ativos. Sociabilidade e identidades on line São vários os autores que destacam a importância crescente da rede para os indivíduos que, nesse espaço, decidem partilhar sua vida. Ao desenvolver uma pesquisa sobre diários íntimos na Internet, Philippe Lejeune (2000), por exemplo, ressalta que a difusão possibilitada por esse meio, além de ter um caráter terapêutico, pode criar uma intimidade convivial. Já Sherry Turkle defende que os internautas seriam autores não apenas de textos, mas também de si próprios e as identidades virtuais seriam construídas por intermédio da interação social e da interação com a máquina. A autora acredita que as pessoas vêm recorrendo “explicitamente aos computadores em busca de experiências que possam alterar as suas maneiras de pensar ou afectar a sua vida pessoal ou emocional” (1997, p.37). Na sociedade contemporânea, as identidades múltiplas perderam parte do seu caráter marginal e as pessoas apreendem, com mais facilidade, a identidade como um conjunto de papéis que podem ser misturados, acoplados. As idéias tradicionais sobre identidade vinculavam-se a uma noção de autenticidade que as experiências virtuais têm subvertido. Referente ao universo homossexual, não são poucas as pessoas que assumem um personagem, principalmente em espaços como os chats e, através dele, satisfazem suas curiosidades nesse plano. No entanto, é preciso atentar para como certas práticas são aceitas nos diferentes espaços da rede. Criar personagens fictícios nos chats é habitual; porém, numa lista de discussão tudo muda. Na listas, preponderantemente, as pessoas criam uma identidade que é extensiva à sua identidade off line. Nas comunidades da Listagls e da Ejovens não encontramos personagens, mas indivíduos que se identificam e se sociabilizam no ambiente on line. Refletindo sobre a problemática da identidade, Francis Jauréguiberry salienta que, no ciberespaço, os indivíduos têm a possibilidade de sobrepor uma identidade virtual à sua identidade real. Para ele, o termo “identidade virtual” não remete necessariamente a uma identidade fictícia, mas a uma identidade extensiva à identidade real, comum nas listas de discussão. O autor assinala que, diferente do ambiente off line, o virtual não tende a dissuadir ou limitar, nele o internauta pode experimentar o eu que desejar sem grandes riscos de censura. Como diferentes papéis não podem ser interpretados na sociedade off line, eles o são on line, trata-se “na maioria das vezes, de um eu que almeja a realização de desejos ou de 3 pulsões que a vida real não permitiu ao internauta experimentar ou realizar” (2000, p.138) . Para Jauréguiberry, dois alvos são visados pelos internautas: um confinamento no virtual em função do real social ou um questionamento do real em função do virtual experimentado. Como o real-social é entediante ou restrito, ele é refeito ou recomposto no virtual; como o virtual autoriza experiências inéditas, o real passa a ser vivido diferentemente e 3 “la plupart du temps, de soi focalisant la réalisation de désirs ou de pulsions que la vie réelle n’a pas permis à l’internaute d’expérimenter ou de réaliser”. 5 novas exigências são desenvolvidas para o indivíduo. No primeiro caso, a adoção de identidades virtuais seria o alicerce de eus reais vividos negativamente. Ao invés de serem solucionados no mundo real, os problemas seriam evitados com a sua recomposição virtual; assim como situações vividas como injustas se tornariam mais suportáveis com o recurso à rede. A homossexualidade não podendo, muitas vezes, ser compartilhada e vivida no ambiente off line, no ciberespaço encontraria possibilidades de expressão e realização. No segundo caso, a realização de identidades virtuais instrumentalizaria o eu com uma nova dimensão e poderia provocar um questionamento identitário: “o indivíduo experimenta diferentes eus virtuais não para se perder, para se esquecer, mas o contrário” (2000, p.146) 4. A hipótese defendida é a de que a experimentação de identidades virtuais traduziria tanto uma vontade de escapar das imagens impostas pela sociedade quanto um desejo de existir de outra maneira. Nessa perspectiva, as identidades virtuais seriam mais “bases de resistência do que pontos de fuga, mais atos criativos do que abandonos identitários” (Jauréguiberry, 2000, p.148)5. Experiências vividas na rede têm demonstrado que o ciberespaço pode ser entendido como um ambiente de comunicação que influencia e modifica a vida off line, como um lugar que propicia processos identificatórios e a instauração e exposição de questionamentos pessoais. Destacamos um relato que consideramos exemplar dessas experiências vividas por parte dos participantes das listas: coisas ruins vem acontecendo na minha vida, como se fossem bolas de neve... e uma das maiores que encontrei eh o fato de ser bissexual nao assumido. de me sentir atraído pelas pessoas erradas, numa familia super tradicional, onde as pessoas começam a te tratar mal pelo fato de, aos 21 anos, nao ter namorada. eu decidi. após cumprir uma promessa q fiz, coisa q nao deve demorar, eu vou me matar. ([E-jovens] chega. 09/07/03) Nesta mensagem, a comunicação com os demais membros da comunidade possibilitou a clara expressão de um desespero que se avizinhou do suicídio. Situações como a registrada recebem uma atenção especial dos membros das listas: gostaria que soubesse que muitas pessoas tem os mesmos problemas que vc. e conseguem pelo menos um pouco de calma conversando um pouco sobre isso. O que vc pensa e sente parece não ser muito normal, pensando egoisticamente, mas tbem não é o fim do mundo, já tive muito destas neuroses, hoje consigo administrar isto melhor, nao adianta achar que tudo esta perdido. Se quiser falar ou desabafar um pouco mande um recado (...) talvez nao resolva seus problemas, mas vai aliviar um pouco a tensão (Re:[E-jovens] chega. 10/07/03) Se não fosse a possibilidade do recurso à rede, bem como de participação em uma comunidade virtual que reúne indivíduos com os quais se tem afinidade, talvez o remetente da mensagem acima não tivesse a oportunidade de desabafar e dialogar acerca de seus problemas e angústias, bem como de relativizá-los. O efeito catártico conseqüente, talvez mais do que as respostas que obteve, pode ser considerado chave para o controle da situação por parte desse participante. 4 5 “l’individu s’essaie à différents sois virtuels, non pas pour s’y perdre, pour s’y oublier, mais au contraire”. “bases de résistance que des points de fuite, tout autant des actes créatifs que des abandons identitaires”. 6 A escrita de si e as comunidades virtuais gays A comunicação nas listas de discussão acontece através do correio eletrônico, ou seja, apesar da novidade tecnológica, faz uso de um velhíssimo recurso, vale-se da escrita para se expressar, sociabilizar-se, conhecer-se e, mesmo, para se constituir como sujeito, como homossexual. Nesse sentido, pode-se afirmar que a escrita de si, praticada na Listagls e da Ejovens, age como princípio reativador de um processo de subjetivação da experiência homossexual por parte dos membros dessas comunidades. O enunciado do “cuidado de si” que, entre outras formas, se materializa na escrita de si, foi proposto por Michel Foucault (1992) como uma marca da experiência ética na Antiguidade, quando se concretiza fundamentalmente através dos hypomnemata (cadernos pessoais) e da correspondência. Assim como a memorização de palavras ouvidas e registradas, ou de palavras de outros copiadas nos cadernos, a troca de cartas entre iguais ou entre alguém mais experiente e um jovem constituem, para o autor, um processo de troca ou de incorporação de vivências que tem papel fundamental na constituição da subjetividade, tanto para quem escreve quanto para quem recebe e lê a correspondência. Ressalte-se que na Antiguidade analisada por Foucault, a constituição moral do indivíduo – a produção da subjetividade – se dá pela interiorização de valores e experiências, ao contrário da concepção que se impõe com o Cristianismo, a qual pressupõe a existência prévia de uma interioridade, a ser conhecida e controlada. Desde o Cristianismo, o cuidado de si como construção da subjetividade foi substituído pelo ameaçador “conhece-te a ti mesmo”, subsidiado, sobretudo, pelos dispositivos da culpa, da renúncia e da confissão – que se impuseram ao sujeito, ao mesmo tempo, como prática de penitência e como uma outra tecnologia de construção de si. Formular a existência de “tecnologias de construção de si” é enunciar que a subjetividade é algo da ordem da produção, algo que resulta de um longo processo historicamente regulado e contextualizado. Nesse caso, a própria história da homossexualidade é ilustrativa de como sua produção enquanto constituinte subjetivo foi regulada e atravessada por valores como a culpa, a renúncia e a necessidade de confissão. Considerando a confissão como um importante recurso de controle e de poder, na perspectiva de Foucault, Pedro Souza, no livro Confidências da carne, contrapõe a ela a confidência, salientando que se a “primeira é autoritariamente imposta, a segunda é um exercício voluntário e recíproco de fala entre dois interlocutores” (1997, p.44). O autor explica que, na enunciação confidencial, os interlocutores encontram-se num mesmo nível, ao contrário da confissão, que pressupõe uma hierarquia entre quem confessa e quem escuta. Ao analisar o arquivo da correspondência recebida pelo Somos, grupo homossexual atuante na década de 80, Souza observa que, muitas vezes, a prática sexual estigmatizada tornava-se pública mediante um acordo de confidencialidade materializado “discursivamente pelo pedido de ocultamento do nome do Grupo no envelope de carta-resposta e do domicílio do remetente” (1997, p.45). É interessante, em nosso caso, refletir o que mudou para os homossexuais com a possibilidade de utilização do e-mail e de interação em ambientes virtuais. Não seriam as 7 mensagens eletrônicas, que podem ser assinadas com nicks e enviadas sem domicílio físico no verso, uma versão atualizada das cartas do Somos? Não seriam as mensagens postadas e lidas nas listas um análogo contemporâneo das cartas abordadas por Foucault? Tal questão é procedente se aceitarmos que uma das motivações principais dos participantes das listas está na vontade ou na necessidade de “tornar-se homossexual”, não no sentido de ter desejos ou experiências homoeróticas, mas de reconhecer-se e ser reconhecido como tal. Assim como as cartas referidas por Foucault e as cartas analisadas por Souza, também as mensagens da Listagls e da E-jovens se apresentam como um recurso importante para aqueles indivíduos que buscam na comunicação escrita uma forma de expressão e, simultaneamente, de autoconstituição, além do reconhecimento dos demais participantes. Na escritura das cartas que Souza analisa, o interlocutor é posto, usualmente, no mesmo espaço discursivo do remetente – o destinatário é tratado como cúmplice. Nas mensagens enviadas para as listas que acompanhamos, os demais participantes da lista também são colocados no mesmo espaço discursivo do remetente e tratados como cúmplices. A construção dessa cumplicidade explicita-se através de recursos lingüísticos e, principalmente, de um aparato tecnológico que, associados, produzem a proximidade. Não fossem escritas para desconhecidos, algumas mensagens de apresentação da Listagls e da E-jovens poderiam muito bem ser lidas como cartas entre amigos íntimos, uma vez que as comunidades virtuais se apresentam como esferas onde é possível confidenciar a homossexualidade, expressá-la de várias formas através da escrita. Para Foucault (1992), não é possível aprender a arte de viver sem um adestramento de si por si mesmo e, entre as formas que tomou este adestramento, destaca-se o fato de se escrever para si e para outrem. A escrita aparece, assim, associada ao exercício do pensamento sobre si mesmo, que reativa este mesmo pensamento. Embora com formulação bem diversa, parece ser esta a percepção do e-jovem que escreve: Ultimamente venho tentando entender o que vem a ser heterossexual, bissexual, homossexual pois queria me posicionar em algum desses nomes, que são tantos... Venho tentando entender o que diferencia um garoto que gosta de outros garotos de um que gosta de garotas. E por mais que pensasse nisso, não consegui dar uma definição para essas palavras. A única coisa que fiz foi ver como elas causam alvoroço, arrogância, preconceito. (…) Acho que a pior coisa é que a sociedade nos obriga a escolher um lado. Mesmo não sabendo qual, você se vê coagido a escolher. E é aí que agente se sente mal. Aí que a indecisão se torna dura, lamentavelmente dura, fria e cruel... Porque é que não podemos ficar em cima do muro para ver os dois lados que ele separa??? (…) “Acho que gosto de São Paulo, gosto de S. João, gosto de S. Francisco e S. Sebastião. E eu gosto de meninos e meninas. Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim para sempre. Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente...” - Legião Urbana, Meninos e meninas ([E-jovens]!! 20/01/03). Se para gerações anteriores, representadas na Listagls e marcadas mais fortemente pelos valores do Cristianismo, era mais importante se definir, assumir publicamente a homossexualidade, defender os direitos dos homossexuais junto a sociedade, em contrapartida, para os jovens gays, representados na E-jovens, que cresceram nos anos 90, o importante parece ser experimentar, viver e partilhar. O trabalho que a carta opera sobre o destinatário, mas que também é efetuado sobre o escritor, implica uma ‘introspecção’, uma decifração de si por si e uma abertura de si ao outro. 8 Quando um participante escreve para a Listagls ou para a E-jovens materializando o desejo de “sair do armário” – assumir publicamente sua homossexualidade –, ele está exercitando, de alguma forma, o cuidado e o conhecimento sobre si mesmo; quando os amigos da lista o aconselham, estão, ao mesmo tempo, preparando-se para eventualidade semelhante. Como afirma Foucault, a “escrita que ajuda o destinatário, arma o escritor – e eventualmente os terceiros que a leiam” (1992, p.148). Além disso, as respostas podem ser restituídas sob a forma de “conselho eqüitativo”; pois, à medida que progride a comunicação e se sedimenta a experiência, os participantes podem ir se tornando mais capazes de, posteriormente, virem a aconselhar aqueles que os auxiliaram, estabelecendo-se um sistema de trocas igualitário que tem enorme relevo para qualquer comunidade. Olhem como muitas as vezes tentamos dar conselhos ou ajudar um amigo, que nunca vimos na vida. Mas que por ser igual a mim ou a nós sempre o ajudamos. Olhem como nós somos sempre estamos sendo um psicologo para um amigo que esta com problemas. (E-jovens] Em comum. 26/12/03). Acreditamos que a escrita de si que observamos nas listas, que tem ainda o benefício de uma quase co-presença do remetente e dos destinatários, configurada na possibilidade de leitura e de resposta quase imediatas, pode ser interpretada como uma nova “tecnologia de si”. Essa escrita de si desempenha um papel importante para a constituição, enquanto homossexual, daqueles que integram as comunidades da Listagls e, especialmente, da Ejovens. Trata-se de uma recuperação da lógica do “cuidado de si” em contraposição aos dispositivos da renuncia, da culpa e da confissão, impostos desde o Cristianismo e introjetados no universo homossexual. Conclusão Diante das articulações promovidas e do conjunto de observações apresentadas, teceremos algumas considerações desenvolvidas a partir de premissas estabelecidas, e, também, de especificidades e tendências que foram percebidas como características dos ambientes comunicacionais das comunidades virtuais que constituíram o nosso corpus de análise. De início, ressaltamos que as comunidades da Listagls e da E-jovens se mostram atrativas para os indivíduos que nelas ingressam, bem como se mantêm ativas, justamente, pelos diferenciais que apresentam em relação à experiência off line. Nelas, se concretizam desejos interditados ou difíceis de serem realizados no cotidiano off line, como se assumir, ter amigos gays, encontrar apoio, trocar informações, tirar dúvidas, dividir certas alegrias, enfim, desejos por vezes triviais que, para muitos homossexuais, principalmente para os jovens gays, não são conquistas simples. Outro aspecto que merece ser destacado diz respeito ao fato dessas comunidades virtuais se inserirem num contexto de dominação societária e, ao mesmo tempo, oporem-se a ele ou a muitas de suas características, tais como o preconceito em relação aos indivíduos com orientações sexuais divergentes do padrão estabelecido. Essa constatação nos levou a percepção de que os membros dessas comunidades possuem ou desenvolvem, a partir delas, 9 uma identidade que Manuel Castells (1999) denomina como de “resistência”. Isso porque eles buscam, de maneira geral, não apenas modos de vida alternativos, que podem ser encontrados ou construídos nos ambientes das comunidades virtuais gays, mas transformações nos modos de vida que lhe são impostos no cotidiano off line. Atestam esse aspecto inúmeras mensagens postadas e exemplares trajetórias de vida que pudemos acompanhar. Na Listagls evidencia-se como predominante o desejo coletivo de efetuar transformações em uma esfera ampla, na sociedade, na qual é preciso se inserir criticamente. Na E-jovens são mais freqüentemente almejadas transformações em uma esfera mais restrita, individual, embora compartilhada. As comunidades da Listagls e da E-jovens atraem indivíduos que buscam assumir ou partilhar identidades extensivas às do ambiente off line. Nessas comunidades, eles encontram um lugar no qual podem se expor como desejam, sem serem agredidos, etiquetados, estigmatizados. O ambiente dessas listas representa, para eles, um espaço onde, além de ser possível experimentar ou viver a orientação homossexual, é possível também se constituir enquanto tal. No que se refere à forma como se relacionam os membros dessas comunidades, podese afirmar o privilégio da lógica da identificação em relação à lógica da identidade (Maffesoli, 1996). As experiências individuais são entendidas como experiências a serem compartilhadas, a identificação suscita o estar-junto e, ao mesmo tempo, dele decorre. A homossexualidade que, em princípio, é partilhada por todos, faz com que os integrantes dessas comunidades se identifiquem, seja através de histórias de vida, símbolos, ídolos ou vocabulário próprio, seja através do estigma que igualmente os atinge. Ainda em termos de sociabilidade e processos identificatórios, as listas de discussão em pauta assumem uma importância ímpar para seus membros, uma vez que o ambiente off line não oferece, para eles, as mesmas oportunidades que oferece para os heterossexuais. Para os participantes dessas listas que não são “assumidos” no ambiente off line, geralmente porque moram em cidades pequenas e têm receio de serem reconhecidos, essas comunidades de pertencimento se constituem, muitas vezes, como a única oportunidade de conversar com iguais ou de se expressar enquanto homossexuais. Nas comunidades virtuais gays, são visíveis e relevantes os efeitos compensatórios ao preconceito e à fraca socialização que freqüentemente decorre da vivência homossexual no ambiente off line. Nesse sentido, ressalta-se a importância das experiências compartilhadas enquanto instigadoras de mudanças nos sistemas de referências e incitadoras de questionamentos da realidade off-line. As listas aparecem como espaços complementares, e não substitutos aos da vida real. Rigorosamente, dever-se-ia considerá-los espaços suplementares, de acordo com a vertente de autores da crítica cultural, como Homi Bhabha (1998), perspectiva que tem a vantagem do pressuposto de que nem o real nem o virtual são incompletos, entendendo-se o suplemento como algo que se acrescenta a uma ordem anterior e a altera. Através do compartilhamento de informações, do apoio mútuo e da política afirmativa que caracteriza essas comunidades, ao lado de uma maior problematização das representações anteriormente construídas a respeito do universo homossexual, os membros da 10 Listagls e da E-jovens atenuam o estigma que socialmente os exclui e descobrem modos de viver suas orientações sexuais com mais tranqüilidade, às vezes em plenitude. Além das características e tendências que foram ressaltadas, a comunicação mediada das listas e a experiência de partilhar uma comunidade conduziram-nos à reflexão sobre o que talvez seja sua potencialidade mais significativa: o seu efeito para a subjetivação da homossexualidade. Com uma linguagem que se assemelha as das cartas pessoais, pelo tom de proximidade ou de intimidade, as mensagens trocadas na Listagls e na E-jovens podem ser interpretadas como representativas de uma modalidade de correspondência que, devido ao meio onde circula, se diferencia da tradicional por seu caráter mais interativo, imediato e público. A escrita de si veiculada nas listas desempenha um papel importante para a constituição, enquanto homossexual, daqueles que integram as comunidades virtuais que analisamos. Trata-se, a nosso ver, de uma recuperação da lógica do “cuidado de si”, materializada na escrita exercitada, que age como princípio reativador da subjetivação da experiência homossexual compartilhada nesses ambientes. A crescente visibilidade do universo gay (cena GLS), aliada à progressiva inserção das tecnologias em nosso cotidiano – que possibilitam, entre outras mudanças na sociabilidade contemporânea, a formação de comunidades virtuais – estariam contribuindo para uma ampliação dos espaços confidenciais e configurando um novo contexto de subjetivação da experiência homossexual. Ou seja, com a apropriação social das tecnologias de comunicação digital, vêm se construindo comunidades virtuais capazes de possibilitar, através da prática da escrita e do “cuidado de si”, bem como do compartilhamento de informações, de pontos de vista, de projetos e de afetos, modos alternativos de viver a homossexualidade na contemporaneidade. Referências bibliográficas BHABHA, Homi K. 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