ECOS LITERARIOS BRASIL-FRANÇA: A INFLUÊNCIA DE CHARLES NODIER NA OBRA MACHADIANA Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/UFCG) [email protected] INTRODUÇÃO Ao longo da história, a cultura francesa deixou marcas nas páginas de nossa literatura produzida nos séculos XIX e XX, de modo mais evidente. De escritores como José de Alencar e Machado de Assis até os modernistas da Semana de 1922, a presença francesa esteve presente nas páginas da nossa nacionalidade. Por essa razão, estudar as relações entre essas duas literaturas não é atividade tão complexa, quanto é prazerosa. Os estudos literários comparados Brasil-França são, há algum tempo, fonte de pesquisa para estudiosos como Pinheiro-Passos, (1996a; 1996b; 2006); Pinto, (1996; 1999) e Amaral (1996), sendo que os dois primeiros partem de uma perspectiva da literatura brasileira e a última vê na nossa literatura, a influência do poeta Baudelaire. No momento em a que a nossa literatura começa a obter cores mais nacionais, Machado de Assis é, certamente, um dos principais pintores dessa nacionalidade. Do mesmo modo que acontece com Flaubert, na sociedade francesa, em nossas terras, é Machado o pintor de nosso cotidiano, em especial dos modos de vida do carioca, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro era sede do Império naquela época e também a sua cidade natal. A presença francesa na obra machadiana é tão expressiva que, por vezes, em referências explícitas, é possível se perceber o quanto as páginas francesas influenciaram nas nossas. Nesse sentido, levamos em consideração esses laços tão próximos entre essas duas literaturas e nos detemos em uma leitura que vê na obra de Machado de Assis um claro eco da literatura francesa na sua aurora romântica. Portanto, nos centraremos em uma leitura comparada a partir do contista francês Charles Nodier e do nosso Machado de Assis, focalizando uma literatura particular que permite que a produção desses contistas seja vista como contos fantásticos. Embora ainda sejam um tanto raros os estudos que focam na obra machadiana sob a perspectiva do fantástico, há coletâneas que apresentam textos com essas características e, mesmo, alguns estudos, quase sempre, esporádicos que enfocam esses contos considerados fantásticos, de Machado de Assis. Cabe ressaltar que, muito provavelmente, pelo fato de ser um conjunto romanesco vasto e intenso, os estudos sobre o lugar do fantástico na obra machadiana ainda são, por certo, cautelosos; sem, todavia, perderem a sua importância. Ao contrário do brasileiro, o francês Charles Nodier tem uma obra com forte influxo fantástico, uma vez que, sob o ponto de vista da história literária francesa, Nodier é o iniciador do conto fantástico em seu país. Fato que se deu pelas vias da literatura alemã, sendo ele diretamente influenciado por Hofmann e Byron, sem se esquecer, certamente, do maior representante do romantismo alemão, Goethe. A produção literária fantástica de Nodier estabelece limites da literatura fantástica na França sendo, por essa razão, considerado o seu iniciador do fantástico na França (CASTEX, 1962). Em obra que reúne os trinta e três contos, Castex (NODIER, 1961) nos deixa a exata noção de quão marcantes são os contos fantásticos de Charles Nodier; porém, é o próprio escritor quem expõe o seu ponto de vista sobre o tema ao esclarecer, nos prefácios de alguns de seus contos, quais caminhos havia percorrido para chegar até as narrativas fantásticas. Em outras ocasiões, ele mesmo faz reflexões sobre o que é a literatura fantástica, dando especial foco nas vias oníricas e dissertando sobre o mundo desperto e o mundo dos sonhos como o principal caminho para se chegar ao fantástico. Assim, o sonho como principal via para a literatura fantástica também é possível perceber na obra machadiana, em especial em alguns contos, gênero semelhante ao do romântico francês. Assim, neste trabalho, nos propomos a identificar as marcas do gênero fantástico em dois contos de Machado de Assis: A vida eterna (1870) e Um sonho e outro sonho (1892), relacionando-os ao conto de Charles Nodier, Smarra ou les démons de la nuit (1822), que segundo o próprio autor é «une étude... un travail verbal, ...l’œuvre d’un écolier attentif.» (NODIER, 1961, p. 40 e 41). Nesse conto-estudo-sonho, os labirintos oníricos são tão evidentes que é impossível se fazer uma leitura dos referidos contos de Machado de Assis sem estabelecer uma relação imediata com o conto francês. Para a nossa pesquisa, nos embasaremos em uma perspectiva intertextual para identificarmos os ecos da presença nodieliana nos contos machadianos publicados cerca de cinquenta anos depois da primeira publicação se Smara. Para tanto, encontramos em Pinheiro-Passos (1996a e 1996b) os principais aspectos que nos levam a identificar o nosso escritor como um assíduo leitor das páginas francesas. Recorremos também a Todorov (1971), como um dos principais teóricos a discutir elementos que caracterizam um texto literário como sendo do gênero fantástico. Ainda buscamos em Barthes (1969) e em Kristeva (1969), a visão sobre a presença constante de textos dentro de outros textos, bem como sob o ponto de vista das relações intertextuais; e, em Heidmann e Adam (2010), fundamentam-nos a respeito da intertextualidade de contos, considerando-se, em especial, o contexto sócio histórico e cultural de suas produções. Este trabalho é resultado de uma pesquisa de cunho bibliográfico-documental, uma vez que tem como principal corpus de análise os três textos literários dos dois contistas. Os teóricos, acima mencionados, nos auxiliam nas reflexões a respeito da presença do fantástico como um elo que une os três contos escritos em circunstâncias bem distintas sejam nos aspectos socioculturais e espaço-temporais. As nossas colaborações percorrem, primeiramente, as relações entre o Brasil e a França no que tange à literatura, sobretudo dos últimos séculos; em seguida, apresentamos “à vol d’oiseau” a importância de Charles Nodier para a literatura francesa, bem como a presença machadiana na literatura brasileira. Feitas essas apresentações, prosseguimos nas reflexões, observando os laços do gênero fantástico que unem esses escritores, fortalecendo ainda mais os vínculos entre a literatura francesa e a brasileira. A relevância deste trabalho está no fato de se perceber que mesmo em escritores de origens distintas, é possível ver ligações entre as suas literaturas, confirmando obra literária como atemporal e “impérissable”. Também é importante que se diga que embora parcos estudos mostrem as relações entre a produção nodieliana e a machadiana, podemos, a partir destas reflexões, instituir Machado de Assis como o iniciador do conto fantástico no Brasil, do mesmo modo que Nodier na França. 1. RELAÇÕES BRASIL E FRANÇA No ano de 2005, os governos do Brasil e da França reunidos, buscaram afunilar as relações bilaterais tanto na área econômica, quanto acadêmica e assim, foi realizado o ano do Brasil na França. Anos depois, em 2009, ainda com esse mesmo intuito, realizou-se o ano da França no Brasil. Todavia, não é de hoje que as relações francobrasileiras são fortes, influenciando pensadores e, sobretudo, a literatura. A presença da literatura e da cultura europeia e, sobretudo, a francesa, no Brasil do século XIX teve em José de Alencar um de seus primeiros bastiões. A obra indianista do escritor cearense é fortemente influenciada pelo romântico Chateaubriand; evidentemente, não se pode deixar de ler Iracema, O Guarani e Ubirajara sem se lembrar de Atala e Les Natchez (PINTO, id. ibid., p. 23). Na leitura dos nossos poetas simbolistas como Carvalho Júnior, Teófilo Dias, Vicente de Carvalho, Wenceslau de Queiroz, Fontoura Xavier e Cruz e Sousa também pode se perceber claros ecos do “poeta maldito”, Baudelaire (AMARAL, id. ibid.). Mas, por certo, é Pinheiro-Passos (id. ibib.) quem nos dá maiores pistas para trilharmos em busca das relações entre a literatura brasileira, criada ou retratada por Machado de Assis e a obra do escrito francês Charles Nodier. Sabe-se que tanto no âmbito histórico-cultural, quanto no social, o Brasil recebeu um relevante legado da cultura francesa. Algo que se pode perceber desde as primeiras retratações pictóricas do Brasil, sob o olhar do pintor francês, Debret (17681848), que por aqui esteve em missão artística, até o século XX, com a urbanização da capital do país que sofreu fortes influências da França na sua paisagem urbana. Certamente, é na literatura que essas marcas são mais vivas, pois, a nossa literatura moderna também foi inspirada nas Vanguardas Europeias, oriundas de um momento em que a capital, Paris, era um centro difusor de reflexões culturais e literárias. Nesse percurso histórico de presença francesa, os diálogos literários Brasil e França podem ser claramente observados a partir da obra de escritores como Machado de Assis, pois não são poucas as incursões que esse grande autor faz na cultura francesa, por exemplo, levando “as suas leitoras” a um passeio por séculos da história dessa literatura, indo do século de Villon ao de Hugo. Mas, é como ado como um pintor dos costumes do século XIX no Rio de Janeiro que Machado se firma com um dos maiores escritores de uma literatura genuinamente brasileira, embora a presença francesa tenha estado sempre marcando a sua obra. Cabe ressaltar que, a nosso ver, a marca francesa impressa na obra machadiana é uma forma evidente de mostrar a qualidade de sua obra, uma vez que conseguiu unir de modo magistral a força da realidade brasileira, do Rio de janeiro, em uma época em que o retrato da paisagem urbana não ocupava as páginas da literatura à literatura francesa de muitos séculos, provando assim a sua exímia nacionalidade e erudição. Não são poucas as incursões que esse grande autor brasileiro faz nas literaturas estrangeiras, de um modo geral; pois, não raro encontra-se Shakespeare, Byron ou Sterne na obra machadiana. Mas, as referências à cultura francesa são tão intensas que é impossível não perceber que, comumente, as “suas leitoras” são levadas a um passeio, mergulhando pela história dessa literatura, indo do século de Villon ao de Hugo. Pinheiro-Passos (id. ibid.), tem se dedicado aos estudos comparados, olhando para a França, partindo de Machado de Assis, se preocupa em apresentar como a cultura brasileira do século XIX sofre direta influência da cultura francesa, dessa forma, as letras são os principais veículos para estabelecer esse influxo. Esse pesquisador (1996b) nos dá essa noção ao afirmar que: Não se pode prescindir do estudo de tal presença estrangeira, não só pela frequência, mas também sua integração, evidenciando a complexa capacidade de operar sentidos. Lugar de destaque pode ser dado à presença francesa, graças à quantidade (mais de 35 referências ou citações) e à diversidade (de François Villon a Stendhal, passando por Corneille, Bossuet, Condillac e Voltaire), o que lhes confere importância inconteste, sobretudo por refletir uma soma ampla de leituras, ultrapassando o número de referências e citações de qualquer outra literatura (PINHEIRO-PASSOS, 1996b, p. 11-12) No que concerne à presença estrangeira na obra de Machado, certamente os números da presença francesa são impressionantes, tantas são as citações e referências à literatura francesa que não raramente é possível ler seus ecos tanto nos romances como nos contos, quando as referências e citações não são diretas. Portanto, relacionar a obra de Nodier à machadiana, ressaltando que mesmo sem que haja fontes explícitas das leituras de Machado (da obra do francês), percebe-se um claro eco, sobretudo quanto à literatura fantástica passa a ser, neste momento, o nosso principal foco. 2. A LITERATURA FANTÁSTICA DE NODIER E DE MACHADO DE ASSIS Tanto na França, quanto no Brasil, a literatura fantástica ainda é vista como algo exótico. Suas características com a presença de demônios ou vampiros, em um fantástico moderno, nos fazem identificá-lo como algo, de fato, diferente. Na França, esse foi um gênero bastante cultivado e ainda hoje, com a presença de recursos da modernidade, seja no cinema ou mesmo na literatura, é possível se deparar com narrativas fantásticas que estimulam o espírito ligado ao sobrenatural. Castex (op. cit.) nos apresenta vários escritores que se firmaram no irreal, no sonho, na loucura, na escuridão da noite para contar as suas histórias fantásticas. Dentre esses grandes nomes do gênero, destaque-se Jean Charles Emmanuel Nodier (1780-1844), um bisotino da Franche Comté que passou a sua adolescência no meio de um turbulento período, o da Revolução e que influenciou, diretamente, a obra de românticos como Victor Hugo. No Brasil, esse gênero literário só toma forma apenas no século XX, isso porque coletâneas como as de Magalhães Jr. (1998); Cavalcante (2003); Tavares (2003) e Calvino (2004) colocam em destaque contistas brasileiros que tem marcas expressivas da literatura fantástica. Dentre os principais brasileiros, está Machado de Assis, escritor que surpreende a cada dia com sua narrativa irônica e, portanto, sendo um escritor com grande diferencial e fundamental no Realismo brasileiro. 2.1 Nodier e a literatura fantástica Je m’avisai un jour que la voie du fantastique, pris au sérieux, serait tout à fait nouvelle, autant que l’idée de nouveauté peut se présenter sous une acception obsolue dans une civilisation usée. L’Odyssée d’Homère est du fantastique sérieux, mais elle a un caractère qui est propre aux conceptions des premiers âges, celui de la naïveté (Nodier, Smarra. p.38 ). Na literatura francesa, coube a Nodier deixar o legado do conto fantástico, ainda que tardiamente reconhecido. « En particulier, Nodier pouvait se flatter à juste titre d’avoir inauguré au XIX siècle la lignée des conteurs fantastiques » (CASTEX, op. cit., p. 5). Ao publicar Smarra, (1821) e também Trilby ou le lutin d’Argail (1822), Nodier apresenta a literatura originária do frenético, de Hoffmann, aos franceses. Todavia, antes de Nodier, outro francês deu os primeiros passos para a literatura fantástica na França. Castex (op. cit. p. 15) estampa Jacques Cazotte (17191792), com sua obra-prima Le diable amoureux como o precursor do fantástico moderno; narrativa que, segundo Todorov (1971), possui certa dose de ambiguidade, que é mantida até o final da aventura e por essa razão, pode ser classificada como conto fantástico. Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Para a literatura do gênero fantástico, tais questões são fundamentais, pois conduzem ao coração do fantástico e nele se produz um acontecimento que não se pode explicar pelas leis do mundo real (TODOROV, id. ibid.). No conto M. Cazotte que Nodier faz uma homenagem ao seu precursor. Desde o título, já anuncia o seu conteúdo, sem nenhuma tentativa de camuflar a importância desse autor para sua obra, não negando essa influência, por isso, no prefácio do referido conto, fala da sua escolha e da sua admiração por Cazotte. Mas Nodier é considerado, sobretudo por Castex (op. cit.), o iniciador do conto fantástico na França. Seu primeiro conto considerado fantástico é Smarra ou le démons de la nuit (1821). Contudo, já por volta de 1815, após a publicação de obras claramente werterianas e então nomeado bibliotecário da cidade de Laybach, readquire o gosto pelo clássico, colaborando no Journal de L’Empire, mais tarde Journal des Débats. É nesse momento que recomeça seu gosto pelo frenético. Publica, então, a estória de Jean Sbogar e Thérèse Aubert. Segundo Castex (op. cit.), é nesse momento que se lança deliberadamente na via do frenesi. As teorias filosóficas e espiritualistas que germinavam em toda a Europa também marcam a sua obra como as teorias do místico sueco Emmanuel Swedenborg. Para quem: ...todas as coisas que existem na natureza, desde o que há de menor ao que há de maior, são correspondências. A razão para que sejam correspondências reside no fato de que o mundo natural com tudo o que contém existe e subsiste graças ao mundo espiritual, e ambos os mundos graças à divindade (apud, GOMES, 1994, p. 17). A ideia que agradou a muito românticos aprouve ainda mais aos simbolistas e, em seguida, aos surrealistas, portanto, podem-se encontrar também marcas da literatura de Nodier nos poemas simbolistas (CAMARANI, 2006). Envolvido por esta dualidade mundo natural/mundo espiritual, Nodier inaugura, ainda que com a herança de seus antepassados, o conto fantástico. A literatura fantástica nasce junto com o século das luzes, com o triunfo da razão, com a afirmação do indivíduo. Ela seculariza a relação entre o homem e as forças sobrenaturais, momento em que se distingue do maravilhoso. Pode ainda favorecer a relação entre Deus e o diabo, pela possessão do homem, um conflito interior entre duas forças físicas morais. No entanto, embora tenha dado início ao gênero, Nodier não o impôs como estilo, isso por que, na sua época, o seu Salão do Arsenal é o principal foco da intelectualidade parisiense, onde nasceu e floresceu a corrente romântica. A publicação de Smarra é a prova que o estilo novo não agradou nem ao público, nem à crítica. Smarra não é considerada uma das obras mais importantes de Nodier, mas corresponde a um marco na sua produção, pois choca e desagrada, por essa razão é um conto considerado um grande fracasso do autor que tem em La fée aux miettes, a sua obra prima. Castex então reafirma a importância desse texto como um dos primeiros contos fantásticos franceses, pois Smarra corresponde às nossas curiosidades modernas. Em 1832, em uma segunda publicação do conto, Nodier, exímio prefaciador, de sua época, explica no novo prefácio do conto que a obra não foi bem entendida pelos leitores por que se tratava de um conto fantástico com características especiais e que apresentava o sonho como o caminho para se chegar ao fantástico. Portanto, não se pode dizer que esse texto com características bem definidas, ainda que desconhecidas dos seus contemporâneos, tenha sido um grande fracasso, mesmo porque essas características desconhecidas são inovadoras e, por isso mesmo, mal compreendidas na época. 2.2 Machado de Assis, um fantástico contista. Que a obra machadiana é repleta da presença francesa é fato. Nas tantas citações e referências a essa literatura, não raramente é possível perceber ecos relidos nos vários gêneros de sua autoria, seja nos romances ou mesmo nos contos. Logo, focaremos nos contos A vida eterna (1870) e Um sonho e outro sonho (1892) para melhor se perceber esses laços tão imanentes. Os contos fantásticos de Machado seguem a mesma perspectiva de Todorov (op. cit.). Neles não há justificativas ou explicações para os fenômenos sobrenaturais. Semelhantemente a Nodier, Machado escolhe o caminho dos sonhos como a solução dos enredos dessas narrativas curtas. Desse modo, se percebe a presença do onírico ligado ao inexplicável como fonte do gênero. No Brasil, o fantástico de Machado assume uma roupagem fantástica para fugir, aparentemente, das críticas da sociedade em uma literatura realista. É o próprio escritor que afirma “Descanse leitor, não verá neste episódio fantástico nada do que não se pode ver à luz pública. Eu também acato a família e respeito o decoro” (MACHADO DE ASSIS, 2003, p. 66). Essa citação está presente em um conto que por si só já mostrar-se com decência e cuidado para com os leitores: O anjo das donzelas. Nesse conto, logo na primeira linha, observa-se um narrador cuidadoso e, ao mesmo, tempo, irônico: ao incitar o leitor, dizendo: “Cuidado, leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela” (id. ibid.) para em seguida lembrar que o quê está naquele espaço de compostura e intimidade pode ser visto à luz do dia, não apenas na escuridão da noite, espaço próprio do fantástico. Assim, o nosso contista expõe o seu fantástico, quase sempre ligado à noite e ao sonho, aspecto no qual se assemelha diretamente ao francês. No conto Sem olhos, por exemplo, o narrador, dando voz ao personagem Cruz, afirma não crer em coisas infantis, como aqueles que soam como sobrenaturais. Nesse aspecto, percebe-se a forma mais explícita do fantástico na literatura machadiana, pois está diretamente ligada à visão do fantástico de Todorov (op. cit.), que repousa sob a dúvida. 3. PONTES INTERTEXTUAIS NOS CONTOS Smarra ou les démons de la nuit, (1822), de Charles Nodier, A vida eterna (1870) E Um sonho e outro sonho (1892), de Machado de Assis. Ecos de um texto em outro não é algo moderno, autores da literatura brasileira beberam muito em fontes europeias e, em especial, nas francesas cujos autores beberam nas fontes dos clássicos gregos e latinos. Se por aqui, José de Alencar se inspirou em Chateaubriand, esse francês, por sua vez, foi em busca da literatura de Homero, como muitos de seus contemporâneos. Essa inspiração direta levou críticos como SainteBeuve, famoso crítico literário do século XIX a recriminar severamente o estilo de Chateaubriand e a sua intensa inspiração nas fontes da literatura clássica, afirmando, inclusive, que ele cedeu às imposições do modelo de Homero. (SAINTE-BEUVE, 1945, apud, PINTO, 1996, p. 226). É preciso, entretanto, fazer lembrar que a presença de um texto em outros textos é um procedimento antigo e inerente à atividade da escritura, principalmente, da ficcional. Por essa razão, Bakhtin (2003), ao analisar os problemas da obra de Dostoiévski, afirma “[...] que toda obra literária é interna e imanentemente sociológica. Nela se cruzam forças sociais vivas penetram cada elemento de sua forma” (BAKHTIN, 2003, p. 195). Então, considerando que o escritor não é o “Adão mítico” que nomeou as coisas, é natural que se escute os ecos de um texto em muitos outros. Bakhtin vê o romance como um lugar muito adequado para dialogismo, uma vez que os enunciados estão em todo tempo em relação uns com os outros. Para ele, o romance é multivocal e, portanto, polifônico. É possível, no romance, o confronto de vozes discursivas e organizações de diferentes ideologias. A noção de intertextualidade tem suas variantes. Existem várias concepções do termo, nas quais especialistas fazem suas ponderações. Isso aconteceu em seu livro Le langage de Jarry, por exemplo, Arrivé (1972) elabora um estudo semiótico de três textos: César-Antechrist, Ubu Roi e Ubu Enchaîné, e afirma : « ...l’intertexte apparaît comme le lieu de manifestation du contenu de connotation, soit qu’il émerge brutalement au niveau de la dénotation [...] soit qu’il soit signalé par une transformation intervenant entre les deux textes (ARRIVÉ, 1972, p. 38). Nesse ensaio, seu autor vê um movimento de conotação e denotação como um procedimento para se perceber a intertextualidade, ou seja, o intertexto literário é o lugar onde o conteúdo aparece na conotação do texto. Assim, diante das possibilidades teóricas para discutir o diálogo entre as obras, nós escolhemos com o pensamento de J. Kristeva (1969) e também o de R. Barthes (1970), quando ao afirmarem a mesma ideia com suas palavras. Para ela « l'intertextualité fonctionne comme une interaction textuelle qui permet de considérer les différentes séquences (ou codes) d'une structure textuelle précise comme autant de transforms de séquences (codes) prises à d'autres textes »; e sob o atento ponto de vista de Barthes (1970), « Le texte est une productivité. Cela ne veut pas dire qu’il est le produit d’un travail (tel que pouvaient l’exiger la technique de la narration et la maîtrise du style), mais le théâtre même d’une production où se rejoignent le producteur du texte et son lecteur.… ». Assim, essas reflexões teóricas nos levam a uma leitura que reverbera um tipo de co-presença entre obras e no nosso caso, em particular, a temática do somho. 3.1 A perspectiva do fantástico Inicialmente, cabe-nos situar a noção de literatura fantástica para que assim possamos justificar o porquê de esses três contos estarem dentro da conceituação do fantástico na literatura. Um dos primeiros teóricos do fantástico é, por certo, Todorov (1971), para ele, o fantástico é a hesitação entre o real e o não real, possível e impossível; é um mundo habitado por seres desconhecidos, fora do alcance humano. É a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. Já para Bessière (1974), o fantástico pode até mesmo ser tratado como a descrição de certas atitudes mentais, pois tem um critério implícito da distinção. Assim, afirma: Le fantastique n’est qu’une des démarches de l’imagination, dont la phénomènologie sémantique ressortit à la fois à la mythographie, au religieux, à la psychologie normale et pathologique, et qui, par là, ne se distingue pas de celles des manifestations aberrantes de l’imaginaire ou ses expressions codifiées dans la tradition populaire (BESSIÈRE, 1972, p. 10). O fantástico está além do humano e está, portanto, centralizado no mundo da imaginação. São as manifestações do mundo imaginário, estando acima do religioso, do psicológico e até mesmo da tradição popular. Bessière (op. cit.) parece contradizer Todorov ao afirmar que o fantástico não resulta da hesitação entre essas duas ordens (natural e sobrenatural), mas de sua contradição e de sua recusa mútua e implícita. Diz ainda que a narrativa fantástica provoca a incerteza ao exame intelectual, porque trabalha com dados contraditórios reunidos seguindo uma coerência própria (op. cit., p. 57). Todavia, seja na hesitação, seja no âmbito da incerteza, ambos têm o mesmo ponto de vista quando afirmam que o fantástico está centrado em algo que vai além de uma compreensão humana, sendo por isso, diretamente ligado ao sobrenatural. Perspectiva semelhante, encontramos em Bellemin-Noël (1972), ao assegurar que o fantástico jamais ultrapassa os limites do pensamento humano, pois pode ser um jogo de veracidade; desse modo, afirma que: Le fantastique, et c’est là qu’il utilise de la manière la plus retorse la littérature elle-même, feint de jouer le jeu de la vraisemblablisation pour qu’on adhère à sa fantasticité, alors qu’il manipule le faux vraisemblable pour nous faire accepter ce qui est le plus veridique l’inouï et l’inaudible (BELLEMIN-NOËL, 1972, p. 23). Nesse jogo do verdadeiro falso ou da manipulação do falso real é a principal estratégia da literatura fantástica no intento de conduzir o leitor a aceitar o que parece incompreensível aos olhos humanos; assim, o jogo do falso-verdadeiro permite que se acreditar de modo mais aceitável no que é verídico, dentro do universo imaginário do fantástico. No início dos anos de 1970, o tema do fantástico seduziu muitos estudiosos que buscavam, na literatura, respostas para fatos « verossímeis » que, em princípio, não tinham explicação pelas vias do real. Atualmente, esse tema vem sendo bastante estudado, mas, hoje há outra perspectiva e, assim, diferencia-se o fantástico moderno (ciência-ficção), do fantástico tradicional, teoria originada das reflexões de Todorov (1971). Contudo, os dois caminhos se mostram sob o mesmo ambiente, ligado à noite, à escuridão, ao sono e ao sonho, sendo essas as características que marcam os contos em questão, tanto de Machado de Assis, quanto o de Charles Nodier. 3.2 Diálogo fantástico entre os textos Primeiramente, cabe-nos expor o porquê de os três contos estarem centrados na temática do fantástico. Tanto o conto Smarra ou les démons de la nuit, quanto A vida eterna e Um sonho e outro sonho. O conto francês é a estória de um jovem italiano que deita com a sua esposa, a bela Lisidis, depois de uma noite de baile. Ambos cansados dormem ao lado do Lac Majeur, em Arona. E então, Lorenzo entra no mundo dos sonhos, onde ele é Lucius, um jovem grego que, estimulado pela leitura de Apuleio, está voltando de Atenas para Lárissa, na antiga Tessália, onde assiste às festas organizadas pelas escravas da cidade. Junto com Myrthé, a mais bela das escravas, e Polémon, seu amigo, Lucius assiste à vingança das feiticeiras numa atmosfera alucinante povoada por fantasmas. Entre as vítimas está Polémon, que narra como a bela e terrível Méroé arrancou o seu coração e como jogou contra ele o seu monstro amado, Smarra, que sai do seu anel mágico quando ela o chama. Lucius, então, tem um novo sonho dentro desse primeiro sonho e, dessa vez é decapitado sob a acusação de ter matado o amigo Polémon e a bela Myrthé. E, por fim, é acordado por Lisidis, retomando consciência de que é Lorenzo, que nunca saiu de Arona e que somente junto de sua esposa está livre dos terrores da noite. Nos dois contos machadianos o sonho também é a principal porta de acesso ao mundo dos terrores. Em A vida eterna, por exemplo, o dr. Camilo, após uma “ceia copiosa e delicada” em companhia de seu amigo, o dr. Vaz, é conduzido ao mundo onírico e se depara com a estranha figura do rico sr. Tobias que não apenas insiste para que ele se case com a sua bela filha, a dona Eusébia ; Tobias o obriga, sob pena de morte, a se casar com uma moça linda, rica e muito jovem. Conduzido, imediatamente à casa de do sr. Tobias, local do casamento, Vaz percebeu que a tal casa possuía um mobiliário “estranho e magnífico”, sendo antigo, assim como o seu dono e todas as pessoas que ali estavam para a festa de casamento entre o dr. Camilo da Anunciação e a bela Eusébia. Após a cerimônia, a esposa entrou em uma compulsiva crise de choro, o marido, sem nada entender buscou ajudar a sua esposa, mas qual foi a sua surpresa ao tomar conhecimento de que ele não era o primeiro marido daquela bela jovem; seu pai, o sr. Tobias e todos aqueles anciãos, que participaram da festa, eram participantes de uma associação secreta. Assim, dr. Camilo foi conduzido à morte pelos participantes que para adquirirem vida eterna, precisavam cear um velho maior de setenta anos assado no forno e beber um vinho puro por cima. No momento em que as senhoras assumiram as facas para cortar, de modo, mais adequado, as partes do corpo da vítima e levá-las ao forno, o dr. Camilo ouviu a voz do amigo Vaz e percebeu que ainda estava em sua sala e que havia acabado de ter um pesadelo. Já no outro conto, embora se encontre o sonho desde o título, não há a presença do pesadelo tão intenso levando à morte como em Smarra e em A vida eterna; entretanto, o sentimento de culpa parece ocupar um espaço maior nessa narrativa. Um sonho e outro sonho é a história de uma viúva recente que havia jurado amor eterno ao falecido marido e se vê diante da possibilidade de reconstruir a vida ao lado de outro homem. Genoveva, vinte e quatro anos, bonita e rica estava viúva do dr. Marcondes, já havia três anos e passara por várias fases da viuvez. Naquele momento, já não estava mais tão completamente de preto, todavia, isso não significava que havia superado a perda de seu amor. Embora muitos pretendentes buscassem a mão de Genoveva, ela só tinha olhos para o marido, concretizado em uma fotografia na parede de seu quarto. Até que surge um advogado, Oliveira que, de maneira muito discreta, tenta convencer a viúva a casar-se com ele. Genoveva, no entanto, resiste às investidas até que se sente atraída pelo gentil advogado e nesse ínterim, ela sonha com o falecido que, na conversa, a acusa de tê-lo esquecido e de estar gostando de outro. Então, Genoveva renovou os votos de fidelidade ao finado e após um grito de desespero, despertou do pesadelo, segundo ela mesma. Insistindo nesse relacionamento com Oliveira, a viúva volta a ter um novo sonho e dessa vez, é mais forte e então, era condenada aos infernos por ter quebrado seu voto. Ao acordar, tudo desapareceu e mais tarde, ela mesma reconheceu: “- Casou e não morreu”. Nesses contos, são os labirintos oníricos que conduzem o leitor à hesitação, uma vez que, nas narrativas, o falso é verdadeiro, havendo, portanto uma intensa manipulação do verdadeiro, levando os protagonistas a sofrerem, sobretudo por uma espécie de sentimento de culpa proporcionado pelos pesadelos. Em muitos de seus textos, Nodier faz o fantástico via sonho. Em De quelques phénomènes du sommeil (NODIER, 1982), ele disserta sobre os sofrimentos que os pesadelos podem causar ao ser humano. No conto Smarra, os pesadelos aos quais Lorenzo está sujeito são exemplo do que Nodier chama de fantástico sério, cujas narrativas são tão verossímeis que parecem reais. É esse tema que faz de Smarra um texto inovador, como uma representação macabra, onde o funesto toma quase toda a narrativa: “Ces démons ne sont que de vaines apparences. Mon épée, tournée en cercle autour de ta tête, divise leurs formes trompeuses qui se dissipent comme un nuage”. (NODIER, 1961, p.48) Na viagem ao mundo imaginário, de nuvens efêmeras, surge uma enorme sensação de impotência face à morte. Esse cenário macabro é completado com fantasmas e trevas: Jamais une sombre lamie, une mante décharnée n’osa étaler la hideuse laideur de ses traits dans les banquets de Thessalie. La lune qu’elles invoquent les effraie souvent quand elle laisse tomber sur elles un de ces rayons passagers qui donnent aux objets qu’ils effleurent la blancheur terne de l’étain (NODIER, op. cit. P. 54). Assim como nesse conto, nos contos de Machado de Assis, também é possível se identificar sentimentos como medo: «Naquela noite, Genoveva, ao deitar-se olhou ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe dobrado, e tarde dormiu, com medo de outra valsa; mas acordou sem sonhos” (ASSIS, 1997). O mesmo é encontrado na história do dr. Camilo: Ao mesmo tempo era tão singular tudo quanto eu acabava de saber, pareciame tão absurdo o meio de comprar a eternidade com um festim de antropófagos, que o meu espírito pairava entre a dúvida e o receio, acreditava e não acreditava, tinha medo e perguntava por quê? (ASSIS, op. cit.) Assim, desta feitas que nesse aspecto, os três contos se encaixam na perspectiva do fantástico de Bessière (op. cit.) e Castex (op. cit.), quando afirmam que para se perceber o fantástico, é necessário que haja uma intrusão brutal do mistério no quadro da vida real. Esse aspecto é perceptível nos três contos, considere-se, pois, que para que essa intrusão brutal seja « aceita », o caminho escolhido pelos dois contistas é o caminho dos sonhos. Em Smarra, percebemos o protagonista adentrando ao mundo dos sonhos, ele mesmo narra esse instante: “Le sommeil me gagne aussi [...] Dormez, Lidisidis, dormez...............................................................................................................Il y a un moment où l’esprit suspendu dans le vague de ses pensées...” (NODIER, op. cit. p. 45). Com o auxílio da pontuação, o protagonista acessa o mundo onírico. O mesmo que acontece com o dr. Camilo, que inicia a sua narrativa, dissertando sobre o sonho : “É opinião unânime que não há estado comparável àquele que nem é sono nem vigília, quando, desafogado o espírito de aflições, procura algum repouso às lides da existência” (ASSIS, op. cit.). Com a protagonista de Um sonho e outro sonho, é também o caminho do sono que abre as portas para o sonho: “De uma vez, mal adormecera, teve um sonho extraordinário” (ASSIS, id. ibid.). Nesse momento, é possível perceber de modo evidente como o adormecer pode ser a porta para o fantástico ou o extraordinário: Em outra circunstância, notamos um cuidado da personagem para manter-se desperta: “Posto que tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se deitou; ao contrário, ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo acordada”. No entanto, como se trata de algo mais forte, o sonho também ganho a protagonista, da mesma forma que aconteceu com o dr. Vaz e com Lorenzo e Lucius, seu duplo. A despeito de serem românticos e poéticos esses excetos nos mostram a força que o sonho pode empreender na vida humana, produzindo assim, fantástico. Nas três narrativas curtas, o sonho, via sono, mostra que a vida desperta pode ser o principal culpado pelos terrores noturnos. Isso se percebe no conto Smarra, uma vez que Lorenzo, conta ter dançado muito com outras mulheres no baile de casamento, sendo, então, inculpado pela sua traição à jovem esposa. O mesmo sentimento de traição toca a jovem viúva, dona Genoveva que, ao começar a sentir interesse por outro homem, se vê em plena traição ao marido, sendo por isso, condenada à morte. No caso do dr. Camilo, a sensação de prazer proporcionado pelo delicioso banquete e, em seguida, pelo charuto havana, o levam a encontrar uma noiva jovem e bela, mas, por pouco tempo; apenas o espaço temporal de se ler as palavras do Elixir da eternidade. A luz do mundo desperto é, nas narrativas, sinônimo de uma libertação que livra os protagonistas de situações de desespero que pode sempre resultar em morte. Tanto na voz de Lisidis, a esposa amada e doce de Lorenzo, ou na voz do amigo, o dr. Vaz ou ainda na voz da mãe de dona Genoveva, é uma terceira pessoas, essa, do mundo dos vivos que pode arrancar o protagonista dos braços da morte. Logo, em todos os contos, percebe-se que há uma voz doce livra o herói os horrores produzidos no mundo dos seus pesadelos. Esse mundo é, para Nodier um espaço no qual “l’imagination de l’homme endormi, dans la puissance de son âme indépendante et solitaire, participe en quelque chose à la perfection des esprits” (NODIER, op. cit. p.42). Considerando esse aspecto de o sonho ser um espaço para a perfeição dos espíritos, lemos esses contos pelo viés da Interpretação dos Sonhos, na qual Freud (1980, p. 113) analisa o sonho como realização dos desejos e diz: “C’est un phénomène psychique dans toute l’acception du terme, c’est l’accomplissement d’un désir.” Impossível não se ler textos literários com a presença do tema do sonho, sem que se pense no médico judeu-austríaco que ao discorrer sobre a deformação no sonho, também afirma que todo cuidado é pouco para não se generalizar: “Mais dire qu’il n’y a que des rêves d’accomplissement de désir est une généralisation injustifiée que l’on peut refuter sans peine. Trop de rêves enferment un contenu pénible, sans trace de réalisation d’un désir” (FREUD, op. cit., p. 123). Os sonhos de conteúdo penoso, sem qualquer marca de realização de desejo, são as deformações que também conhecidos como pesadelos e são sonhos de angústia, repletos de sentimento de medo, que levam o sonhador a agitar-se até o completo despertar, que é a porta para a saída desse inferno. Dessa forma, nos contos em análise, podemos nos questionar se os tais sonhos poderiam ser realização de desejos. Observamos que no conto de Nodier, estar em um universo desconhecido ao lado de belas mulheres, logo após o baile de seu casamento, conduziu o herói Lorenzo a se ver como um traidor da sua amada, doce e bela esposa. Algo semelhante se percebe na história do dr. Camilo, pois em seu sonho, ele, um velho de mais de setenta anos é conduzido ao casamento com uma jovem e bela mulher que, na verdade, era uma espécie de mulher fatal, contra o seu próprio desejo, pois ela era apenas o caminho para que os participantes daquela estranha sociedade, pudessem ter acesso à vida eterna. No caso da viúva, parece haver um caminho inverso, uma vez que é no mundo desperto que ela parece trair seu marido, que não vive mais neste universo, flertando com um jovem advogado bem sucedido. Assim, o seu inconsciente dá o grito de alerta, conduzindo-a aos infernos do pesadelo, onde é condenada pelo próprio marido falecido, por tamanha traição. Essas observações nos fazem perceber no tema do sonho um importante laço que pode unir escritores de culturas distintas, em espaços e tempos também diferentes (HEIDMANN; ADAM, 2010), do mesmo modo que se pôde ver nas fábulas de Esopo e seus muitos revestimentos em fábulas antigas e modernas ou nas micro fábulas, do latino Lucius Apuleio. ALGUMAS CONCLUSÕES No período romântico (1800-1850), o sonho veio afirmar o valor da imaginação e da sensibilidade. O tema começou a ser desenvolvido na Alemanha por Jean-Paul Richter, Hoffmann, Tieck e Novalis. Na França, começa com Smarra, de Nodier, e segue com Nerval, Alouysius Berthrand e outros. Na obra de Nodier, o sonho é desenvolvido em vários contos e também em alguns romances. Mas, é certamente no conto analisado que percebemos de maneira na intensa a importância do sonho enquanto temática, para esse período literário, pois nesse conto há uma mise en abîme de sonhos, dada a sua importância para a intenção do seu autor, que buscava iniciar os franceses nesse gênero literário, que só mais tarde foi teorizado por Todorov (1971). Quando nos propomos, neste trabalho, a um diálogo intertextual no espectro literário e no cultural de dois contos machadianos e um do iniciador fantástico na França, observamos que o conto nodieliano, considerado pela crítica como um grande fracasso de seu autor, posto que ele traz a temática do fantástico pelos caminhos dos labirintos oníricos, algo moderno e inovador para a época parece ecoar na obra de nosso grande escritor Machado. No entanto, embora não se encontre claros laços entre a obra de Machado de Assis e a de Nodier, não se pode deixar de se perceber quão claros são os ecos da obra desse romântico francês dentro da obra do nosso realista. Por essa razão, a partir da nossa colaboração, podemos circunstanciar Machado de Assis como um iniciador do fantástico no Brasil, do mesmo modo que Nodier o foi para a França, uma vez que Machado produz textos com características do fantástico, pelos caminhos das vias oníricas, em uma época que, socialmente, apenas o sonho poderia permitir determinados comportamentos sociais. Não obstante mais de cinquenta anos separando esses dois escritores, não se pode deixar de ressaltar que os modos da sociedade carioca do final do século XIX poderia, de alguma forma, assemelhar-se àquela parisiense da primeira metade do século, já que os registros literários apresentam essas sociedades tão bem. Demonstrar que Machado pode ter, de alguma forma, tido acesso à obra Charles Nodier não é nenhum exagero, posto que o nosso escritor tinha proficiente leitura em várias línguas, referenciando em suas obras tanto franceses quanto obras oriunda de outras literaturas; embora, nem sempre, as fontes tenham sido explícitas. Por essa razão, nosso trabalho aponta para mais essa relação entre a literatura brasileira e a francesa, comprovando que a obra de Machado de Assis tem ecos da obra de Charles Nodier. Isso confirma que a literatura, de fato, não precisa ter tempo e espaço definidos e, como disse o escritor e filósofo Sartre, (1948) a literatura é feita para qualquer homem, independente do seu espaço ou do seu tempo. REFERÊNCIAS AMARAL, G, C. Aclimatando Baudelaire. São Paulo: Annablume Editora, 1996. ARRIVÉ, M. Les langages de Jarry. Paris, 1972. ASSIS, Machado de. Obra completa. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. 3 v BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 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