Os textos do cárcere de María de San José
Ana Pêgo REIS
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes – Literatura Portuguesa
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María de San José Salazar nasceu em 1548 em Toledo, Espanha, e passou os
primeiros anos da sua vida na casa de D. Luísa de la Cerda. Foi lá que recebeu a sua
educação elevada (que sobressai na sua escrita) e conheceu Santa Teresa de Ávila, com
quem trocou correspondência durante muitos anos, e que havia de a encorajar a entrar no
convento aos 22 anos de idade. María de San José foi, desde o início, uma religiosa ativa e
exemplar, e em 1585 viria para Lisboa, aconselhada pela sua mentora, para fundar o
primeiro convento português de carmelitas descalças: o Convento de Santo Alberto. No
entanto, desde o início que a liderança de María de San José neste convento estava sob
ameaça devido à presença de Nicolau Dória, contrário aos ensinamentos da reforma de
Santa Teresa de Ávila e das suas discípulas. Oposto aos seus ideais de liberdade na escolha
de um confessor e independência na gestão dos seus conventos, e ainda desconfiado em
relação à capacidade de mulheres conseguirem tomar as decisões necessárias, Nicolau
Dória consegue afastar Jerónimo Gracián – amigo de María de San José e de Santa Teresa, e
indicado por esta última para primeiro Provincial – das posições de governo, chegando
mesmo a emitir uma ordem para o seu desterro, frustrada pelo Cardeal Alberto de Portugal.
O seu passo seguinte é organizar uma contrarreforma nos Carmelitas Descalços, passando a
assumir um papel de total controlo perante os seus religiosos, e principalmente perante
María de San José, pelas suas ligações à fação mais libertária do Carmelo. É assim que, com
o apoio de Filipe II de Espanha, I de Portugal, Dória consegue finalmente, em 1592i, expulsar
Gracián da Ordem e encarcerar María de San José durante quase um ano no convento,
negando-lhe ainda o voto por dois anos e submetendo--a a um rigoroso voto de silêncio.ii
Apesar do rigor da clausura, a religiosa conseguiu deixar o seu testemunho da prisão, pois é
neste período que escreveiii a “Carta de una pobre e presa descalza”, dirigida às outras
religiosas.iv
Nesta carta, uma das poucas que sobreviveram da autoria desta religiosa, sobressai
uma relação muito próxima de María de San José com as suas “irmãs e filhas”, como as
designa. Tem o intuito de as acalmar da ansiedade que sabia que sofriam pela sua reclusão
e pela existência daquilo que considera um “inimigo comum” – presumivelmente, as
alterações de Dória e do Carmelo. Assim, as marcas de afeição surgem em toda a carta,
manifestando a “amizade” e a “ternura” sentidas. Inicialmente, aliás, María de San José
parece assumir um papel muito maternal, procurando acalmar a preocupação com
questões como “¿Porqué os turbais?”. Cedo apela à fé e ao sofrimento por Deus, inerentes
ao estatuto de um crente, indo buscar exemplos de outros mártires em cujo exemplo
encontra a sua força. Seguidamente, apela às suas destinatárias que levantem os olhos para
Deus, que não nos deixa “dar los golpes errados […] no aparta los ojos ni desampara a los
suyos de suerte que sean lastimados”. María de San José mostra, assim, o apaziguamento
da alma através da confiança na justiça divina, acreditando que esta abrange os homens.
Mas rapidamente cai no tom do lamento. Durante grande parte da carta, os tons de
María de San José oscilam entre sentimentos, e o seu espírito vacila entre a fé – o amor a
Deus e a busca da certeza e da esperança junto dele – e o desespero – a ansiedade e o rigor
da clausura.
O desconserto para o leitor surge perto do final da carta, quando María de San José
escreve: “Y por esto no tengo por vano lo que escribo, aunque sé que no lo podeis leer”.
Com esta declaração, María de San José desfaz todo o propósito que julgávamos haver
desde o início da carta: o de escrever às outras religiosas. Mas, se a religiosa refere que as
suas irmãs não poderão lê-la, qual o motivo da escrita? O resto da frase elucida-nos: “mas
servirá también de lo que siempre pretendo en lo que escribo de tener un testigo delante
de Dios y de los hombres.” Perante esta frase, o leitor é levado a entender que a carta de
María de San José serve de testemunho para Deus e para os seus iguais de uma
argumentação presente em toda a carta. Possivelmente, a religiosa tinha a intenção de
preservar a sua inocência e mostrar a sua motivaçãov.
A oscilação dos sentimentos da religiosa manifesta-se ainda de outro modo. María
de San José hesita entre o sentir “de mujer” e o sentir enquanto religiosa, e também esta
confusão se vai manifestar ao longo da carta: a mulher, que quer a liberdade, e a religiosa,
que deve aceitar o sofrimento. Esta é a diferença que existe entre a feritas dos animais e a
humanitas do Homem. A fé de religiosa permite a María de San José, a mulher, aspirar à
divinitas. Assim, a dor e o sofrimento, e a capacidade de os ultrapassar, são o veículo que
eleva a alma de María de San José junto de Deus. É neste aspeto que María de San José
percorre o caminho do cárcere em busca do infinito. A sua carta, endereçada às suas irmãs
e filhas – e provavelmente com o objetivo real de lhes chegar –, e ainda testemunho para
Deus e para os homens, tem possivelmente um terceiro destino: a própria María de San
José. Na sua procura conturbada pela paz de espírito, descrita na carta através das duas
deambulações intelectuais, a religiosa manifesta uma necessidade de desabafar, quando
não o pode fazer ativamente – devido ao voto forçado de silêncio. Assim, é na escrita que
vai encontrar a voz, através da manifestação dupla de um sentimento de inconstância.
Aquilo que María de San José procura é o infinito da esperança.
É também dentro do cárcere que María de San José escreve um conjunto de versos
a que chama “En la Resurrección de Cristo”, escrito nesse dia do ano de 1593. Este poema,
com um dístico e seis quadras, vai repetindo um mote, com pequenas variações, no final de
cada estrofe. Aproveitando a comemoração, a religiosa escreve a respeito da sua clausura.
No entanto, embora o tema do poema e da “Carta de una pobre y presa descalza” seja o
mesmo, e ambos os textos coincidam no lugar, no tempo e no contexto, a atitude é muito
diferente. Onde a Carta oscilava, o poema resolve essa problemática e apresenta certezas,
enfrentando a dúvida com a confiança e a esperança certa – ainda que possivelmente
temporária – em Deus.
Tal é visível no pendor quase festivo que o poema assume desde as duas primeiras
estrofes:
Pues mi Redentor – ha resucitado,
de mi libertad – no tengo cuidado.
Tengánme en prisión – quítenme la vida,
que a su voluntad – toda estoy rendida.
Vida, honra y alma – todo le he entregado,
de mi libertad – no tengo cuidado.
Assim, a primeira estrofe, a mais curta, como que introduz o sentimento do seu
sujeito poético: apesar de querer ser livre, celebro a Ressurreição de Cristo. A segunda
estrofe é mais violenta nos seus vocábulos. Utiliza abertamente as palavras “prisão” e
“tirem-me a vida”, mas procura desde logo a dissolução desse sentimento de sufoco na
vontade do Senhor e na entrega a ele. Mais uma vez, o poema varia entre sentimentos
contrários, neste caso a alegria da comemoração e a tristeza de não ter liberdade. Na
quarta estrofe, os vocábulos de sofrimento regressam:
No es razón que suene – hoy llanto y gemido,
pues alegre vemos – a nuestro Querido.
Del sueño de muerte – hoy se ha levantado,
que esté libre o presa – no me da cuidado.
A “llanto” e “gemido” juntam-se “presa”, e nas estrofes seguintes “tristeza”,
“dolor”, “calabozo”. A religiosa vai buscar consolo à máxima de que “breve es esta vida”, e
felicidade à fé em Cristo.
A última estrofe parece resolver o turbilhão de emoções que percorre o sujeito
poético:
Prostrada le entrego – todo el corazón,
tome mi señor – libre posesión,
Que a este bien solo – siempre he anhelado,
de estar libre o presa – no tengo cuidado.
A entrega total a Deus, como “libre posesión” – note-se o adjetivo –, é então a
forma de refrigério do sofrimento imposto pela clausura.
Se assumirmos a Carta e o poema como uma narrativa, a Carta traduz uma
problemática: a dificuldade do seu sujeito poético em lidar com a clausura que lhe é
imposta. Já o poema, nessa linha de pensamento, consiste na implosão desse sentimento
em si mesmo, levando à libertação dele através da fé. Se a Carta é a busca do Infinito, o
poema transforma-o em algo de tangível.vi
i
Já antes, em 1586, María de San José advertira para perigos que ameaçavam o Carmelo nas suas “Redondillas”:
“Ay, ay, Carmelo dichoso, / guarte, que anda la raposa / solícita y codiciosa / por quitarte tu reposo!”
ii
Para uma descrição mais completa a respeito de Nicolau Dória e da sua contrarreforma, ler MORUJÃO, Isabel,
Entre duas memórias: María de San José (Salazar) O. C. D., fundadora do primeiro Carmelo descalço feminino em
Portugal e ainda MENDES, Inês Medeiros, Carta de una pobre y presa descalza.
iii
Segundo Inês Medeiros Mendes, dado a religiosa escrever num período de reclusão, e o acesso à escrita ser
interdito, “o simples acto de escrever pode ser sintoma de um clima de conspiração”.
iv
Além de conseguir escrever a “Carta de una pobre e presa descalza”, María de San José continua a conseguir
ler (hábito que sem dúvida lhe teria ficado da longa educação numa casa nobre), como o prova a própria carta:
“Y porque para mí ha sido de gran consuelo, os diré lo que los dias pasados lei, lo que dice el glorioso Santo
Tomás.”
v
Como sugere Inês Medeiros Mendes: “Fica-nos a impressão de que quer dar testemunho da motivação da sua
luta para que, no volver dos tempos, não se venham a levantar falsas suspeições sobre os seus intentos. A Carta
terá sido o único meio formal que encontrou para o fazer.”
vi
A ideia de liberdade – e de “libre posesión” – será constante na obra de María de San José. Em 1602, na sua
Instrucción de Novicias, no diálogo de Justa e Gracia, escreverá:
“- Rigurosa estás, Gracia – dijo Justa. - ¿Cómo es posible orar siempre?
- Y sin intermisión – añadió Gracia – que así lo dice el Señor, y basta para que sea posible. […] Pues esta obra es
sólo de la voluntad, no ha de ser forzada, antes este género de obreros son libres y sirven como hijos; no se les
ha de poner ley de esclavos, sujetos al rigor del pecado…”
BIBLIOGRAFIA:
GÓMEZ, Antonio Castillo. 1999. La pluma de Diós. María de Ágreda y la escritura autorizada. “Via Spiritus”, n.º 6.
Porto, pp. 103-119.
MENDES, Inês Medeiros. 2009. Carta de una pobre y presa descalza. Porto. Trabalho apresentado no Seminário
de Literatura Feminina na Faculdade de Letras do Porto, sob a orientação da Professora Isabel Morujão.
MORUJÃO, Isabel. 2003. Entre duas memórias: María de San José (Salazar) O. C. D., fundadora do primeiro Carmelo
descalço feminino em Portugal. “Península – Revista de Estudos Ibéricos”, n.º 0. Porto, pp. 241-260.
SALAZAR, María de San José. 1979. Escritos Espirituales (1548-1603). Edição e Notas de Siméon de la Sagrada
Familia. Roma: Postulación General O. C. D.
SALAZAR, María de San José. 1978. Instrucción de Novicias. Roma: Instituto Historico Teresiano.
SOROLLA, María del Pilar Manero. 1988. Exilios y destierros en la vida y en la obra de María de Salazar. “Anuario de
la Sociedad Española de Literatura General y Comparada”, Vol. VI-VII. Madrid, pp. 51-59.
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