ANA BELA AFONSO
608
LÍNGUAS EM CONTACTO: A (IM)PREVISIBILIDADE NUM CONTEXTO
PEDAGÓGICO
Ana Bela Afonso
Instituto Camões / Universidade de Vigo
1. Uma reflexão sobre comunidades e indivíduos bilingues coloca, logo à partida, uma
outra reflexão sobre norma(s) e variação.
Da amplitude de contextos em que as línguas permanecem em contacto (processos de
convergência/divergência; interacções linguísticas de substituição ou manutenção; evolução
tendencial para uma L3; contexto bilingue ou de aprendizagem de uma língua estrangeira (LE),
etc.) seleccionámos um universo estrito de aprendizagem de uma língua −o português−
enquanto língua estrangeira, numa classe de ensino superior num curso de letras.
Dos diversos olhares que possam analisar este tema, deter-nos-emos numa perspectiva
estritamente linguística, embora, num primeiro momento, subsidiária da didáctica das línguas
e, num segundo momento, da etimologia.
De facto, quando nos propomos reflectir e analisar as variáveis que actuam no
contexto descrito no título, “Línguas em contacto: a (im)previsibilidade num contexto
pedagógico”, estamos a articular dois universos independentes, mas intercepcionáveis:
a linguística, ciência que estuda a linguagem apreendida e manifestada nas línguas
naturais (Culioli, 1986)
a didáctica das línguas, cujos objectivos se interligam com os processos didácticopedagógicos
determinantes
nas
relações
humanas
em
que
ancora
a
actividade
pedagógico/comunicativa na aula de língua.
Sabemos que numa situação de contacto entre línguas que de algum modo apresentam
(por questões culturais, de diferente protecção institucional, económicas, ou outras), por parte
do enunciador, um desigual grau de investimento e domínio, as estruturas linguísticas da
língua segunda apresentam geralmente um processo de desinvestimento progressivo, face à
influência que a língua primeira detém.
Ora num contexto didáctico-pedagógico, este desenvestimento progressivo em relação
à língua de base, não se observa geralmente. A postura face à língua estrangeira é, pelo
contrário, imbuída de uma actividade para a qual as aquisições em língua materna são
constantemente solicitadas.
O ensino/aprendizagem de uma língua, enquanto (LE), suscita, por parte do
aprendente, um estudo imediatamente comparativo com a sua língua materna (LM), sobretudo
ACTAS DO I SIMPOSIO INTERNACIONAL SOBRE O BILINGÜISMO
609
se este aprendente for já possuidor de uma considerável capacidade de reflexão e
conhecimento linguísticos sobre a sua própria LM.
Podemos assim afirmar que a sua actividade de aprendizagem enunciativa assenta em
operações linguísticas de identificação e de diferenciação comparativas, independentemente
do maior ou menor grau de convergência que as línguas em contacto possam apresentar. É
este um dos aspectos mais visíveis da descrição do contacto linguístico neste contexto.
Em relação ao ensinante, postula-se uma relação de reflexão sobre a sua própria LM, a
língua que, num contexto pedagógico, ensina. Só uma atitude de análise e reflexão sobre o
funcionamento da língua permite a previsão e antecipação das questões linguísticas
levantadas neste processo de ensino/aprendizagem de uma língua, tendo em vista a adequação
das “respostas” a essas situações comparativas.
1.2. Vem a propósito sublinhar o interesse que a investigação em linguística pode ter
no trabalho que o professor propõe aos seus alunos sobre o funcionamento da língua.
Este investimento pedagógico de ensino de uma LE num contexto de interacção
sistemática com a LM não pode alhear-se de uma reflexão linguística teórica, tanto mais
quanto sabemos como a descrição gramatical tradicional não permite descrever e explicar
com rigor muitos dos problemas que se colocam no ensino/aprendizagem de uma língua.
Ao assumir o “movimento” oscilatório e contínuo entre a observação, a análise e a
teorização, o linguista deverá fazer convergir e articular, no estudo dos fenómenos
linguísticos, os domínios da sintaxe, semântica, prosódia e pragmática. Ao chegar a estas
conclusões, compreendemos com rigor como, de facto, a complexidade da linguagem assume
um papel tão importante no contexto pedagógico.
O diálogo entre professores e linguistas tornou-se uma necessidade imperiosa. Ambos
reconhecem a vantagem de um relacionamento biunívoco entre a investigação em linguística
e a didáctica das línguas.
1.3. Mas se a previsibilidade das questões linguísticas que se levantam no
ensino/aprendizagem de uma LE garante um forte grau de adequação nas respostas fornecidas,
também é verdade que esta previsibilidade nunca é total. E isto porque, se por um lado,
nenhuma gramática ou modelo teórico dá conta da totalidade dos fenómenos linguísticos,
sabemos que, por outro lado, há sempre um processo de (re)descoberta da nossa própria
língua materna.
ANA BELA AFONSO
610
Questiona-se com mais facilidade e frequência o porquê de uma determinada regra
gramatical, por exemplo, num contexto de aprendizagem de uma LE, do que num contexto de
LM. O mesmo se passa em relação a conteúdos vocabulares fundamentais como os que Merritt
Ruhlen (1997) apresenta como universais.
Ora são estes conteúdos essenciais e outros mais abrangentes (morfológicos de
intenção comunicativa; conteúdos fonéticos característicos; conteúdos morfossintácticos
básicos) que introduzem, geralmente, a aprendizagem de uma língua estrangeira.
1.4. Uma análise global sobre os manuais de ensino de língua estrangeira permite
verificar que, para início da aprendizagem, são colocados conteúdos linguísticos e
morfológicos designados por “conteúdos de identificação”: identificação do país (localização
geográfica; características linguísticas; características sócio-geográficas); localização
temporal (designação dos dias da semana, meses do ano, horas); actos de fala de interacção
verbal (de conhecimento, de reconhecimento), etc.
Estes conteúdos, considerados básicos e essenciais para uma auto-suficiência do
aprendente
de
língua
estrangeira,
correspondem,
num contexto
de
aquisição
e
desenvolvimento da língua materna, às primeira aprendizagens que decorrem até aos 4 anos
(idade em que a criança já tem adquirida uma autonomia linguística e domina a generalidade
dos conteúdos gramaticais).
Quando esta aprendizagem se realiza num contexto de uma segunda língua, acontece
ao aprendente ter uma atitude que poderemos considerar mais activa, na medida em que a
comparação com as estruturas da sua própria língua materna se realiza constantemente. Ora
desta comparação surgem questões relativas às operações e valores subjacentes à actividade
linguística, quer (sobretudo) em relação ao funcionamento da língua segunda, quer mesmo em
relação ao funcionamento da sua própria língua materna, que antes nunca seriam colocadas,
mesmo que a intuição linguística do “sujeito falante” fosse “ideal”.
Ora neste contexto de iniciação ao ensino/aprendizagem de uma segunda língua, surge
como essencial o vocabulário que, como anteriormente vimos, designa os dias da semana.
Nada aparentemente mais previsível, mas esta aprendizagem levanta questões
peculiares.
Num estudo comparativo com as formas linguísticas de outras línguas, antecipam-se,
em contexto de ensino, questões relativas à diferença terminológica estabelecida entre uma
concepção de “semana cristã” (em Portugal) e “semana planetária” (no resto da generalidade
dos países europeus).
ACTAS DO I SIMPOSIO INTERNACIONAL SOBRE O BILINGÜISMO
611
Percorre-se mesmo a explicação da etimologia, mas paradoxalmente não se “vê” (ou
seja, não se questiona num contexto de ensino de LM) o que, afinal, era imediatamente
“visível” (ou seja, era questionável num contexto de aprendizagem de LE). E a pergunta
irrompe na sua natural e (im)previsível espontaneidade:
Por que não há “primeira-feira” nos dias da semana em português?
2. Subsídio para o estudo dos dias da semana em português
Considerando que o grau de previsibilidade ou imprevisibilidade do questionamento
das operações e valores subjacentes à actividade da linguagem tem relação directa com o
facto de se tratar da aprendizagem da língua enquanto língua materna ou língua segunda,
passaremos agora ao fornecimento da resposta à questão anteriormente apresentada e que, em
contexto de aprendizagem, só foi colocada pelo aprendente de português enquanto segunda
língua.
A semana foi provavelmente um dos primeiros agrupamentos artificiais de tempo.
A semana ocidental de 7 dias parece ter surgido de uma necessidade popular.
Os Romanos viviam segundo uma semana de 8 dias; os agricultores trabalhavam 7
dias nos campos de cultivo e iam passar à cidade o 8º dia –o dia de mercado ou nundinae.
Este era um dia de repouso.
Não se sabe quando e porquê foi posteriormente fixada a semana de 7 dias. Sabe-se
que o número 7 tem um significado mágico e simbólico quase em toda a parte: Lisboa, tal
como Roma, ergue-se em 7 colinas; os antigos enumeram as 7 maravilhas do mundo; os
cristãos medievais agruparam 7 pecados mortais, os japoneses descobriram 7 deuses da
felicidade; as varinas da Nazaré vestem 7 saias; 7 parece ser o número que determina a sorte
no jogo...
Os judeus introduziram em Roma o sabat: “Pois em seis dias fez o Senhor o céu e a
terra, o mar e tudo quanto neles está, e descansou no sétimo dia: assim abençoou o dia do
sabat e santificou-o” (Êxodo, 20: 8-II).
No século III a semana de 7 dias tornou-se comum na vida privada em todo o império
romano.
Cada dia era dedicado a um dos 7 planetas. Estes eram 7, de acordo com a astronomia
da época.
A ordem pela qual os planetas governavam os dias da semana eram: Sol, Lua, Marte,
Mercúrio, Júpiter, Vénus e Saturno.
ANA BELA AFONSO
612
Os astrólogos da época utilizavam a “ordem” dos planetas de acordo com a sua
suposta distância da Terra para calcularem a “influência” de cada planeta nos assuntos
quotidianos.
Deste modo resultou o nome dos dias da semana que nas línguas europeias mantêm os
nomes derivados dos planetas, tal como eram conhecidos há 2000 anos (esta “sobrevivência” é
mais óbvia em línguas que não a inglesa ou a alemã e tem um carácter de excepção no
português):
Português Galego
Castelhano Catalão
Italiano
Francês
Inglês
Alemão
domingo
domingo domingo
diumenge
domenica
dimanche
sunday
sonntag
2ª feira
luns
lunes
diluns
lunedi
lundi
monday
montag
3ª feira
martes
martes
dimartes
martedi
mardi
tuesday
dienstag
4ª feira
mércores miércoles
dimecres
mercoledi
mercredi
wednesday
mittwoch
5ª feira
xoves
jueves
dijous
giovedi
jeudi
thursday
donnerstag
6ª feira
venres
viernes
divenres
venerdi
vendredi
friday
freitag
sábado
sábado
sábado
disabt
sabato
samedi
saturday
sonnabed
Esta nomenclatura (sol; lua; marte; mercúrio; júpiter; vénus, saturno) passou para as
línguas românicas, com excepção da portuguesa, e para algumas das celtas e germânicas.
Quando o cristianismo começou a ganhar raízes no império romano, foi adoptado o
sistema enumerativo dos Hebreus, que contavam os dias a partir do Sábado: prima sabbati;
secunda sabbatti, etc., e o Papa S. Silvestre (314-335) oficializou-o, juntando ao número a
palavra feira, com o significado de festa ou dia de oração.
Apesar de consagrado pelo sistema eclesiástico, o sistema enumerativo, seguido da
palavra feira, vingou apenas na língua portuguesa e, em parte, para o galego, cujos vestígios
se encontravam ainda num galego tradicional, que mantinha para a quarta, a quinta e sextafeira a nomenclatura cristã, ao lado dos nomes pagãos. Este facto poderá explicar-se por a
Galiza ter pertencido à metrópole de Braga até 1394, mas tendo posteriormente desaparecido
por um fenómeno de convergência entre o galego e o castelhano.
Wilheim Giese (Bol. de Filologia, VI, 1939, 197-203) e J. Pedro Machado (Bol. de
Filologia, VI, 1940, 422-427) explicaram o particularismo português pelo sistema
enumerativo, mas falta-nos ainda responder à questão anteriormente levantada:
Por que não há “primeira-feira” nos dias da semana em português?
ACTAS DO I SIMPOSIO INTERNACIONAL SOBRE O BILINGÜISMO
613
Teremos que remontar ao ano 150, quando o padre da Igreja S. Justino explicou ao
Imperador António por que motivo os cristãos tinham escolhido o dia do sol para se
dedicarem à leitura do Evangelho: “nós reunimo-nos no dia do sol porque é o primeiro dia em
que Deus criou a matéria no mundo e também em que Jesus Cristo ressuscitou” (Boorstin,
1987: 78).
Então, sendo o domingo o “dia do Senhor”, o dia consagrado a Deus, é sem dúvida o
dia mais importante: a primeira festa. A partir dele só poderá ter lugar, naturalmente a
segunda-festa, ou seja, a segunda-feira.
Poderemos concluir que o ensino/aprendizagem de uma língua em contacto (seja qual
for a especificidade deste contexto) é um processo de permanente questionabilidade e
descoberta.
Ao aprender-se a impossível exclusividade do que se descobre, ganha-se o
discernimento de saber valorizar o rigor que caracteriza o jogo de descoberta e reconstrução
que o estudo comparativo das línguas entretanto gera.
Descobre-se sobretudo que entre a conquista da perfeição e a complementar
impossibilidade de a conseguir, reside um tesouro maior: a simbiose que liga estes extremos.
Na sua conquista reside o carácter distintivo da actividade humana seja na arte ou na
ciência, em todas as áreas de saber ou de fazer.
É o caso, também, do estudo da actividade das línguas em contacto.
Bibliografia
Afonso, A.B. (1992), “Pedagogia da produção textual - (dis)posições da comunicação”,
Linguística e ensino/aprendizagem do português, E. S. E. de V.C., Associação
Portuguesa de Linguística, 74-84.
Boorstin, D. (1987), Os Descobridores, Lisboa, Círculo de Leitores.
Campos, M.H.C. (1994), “Abordagem semântico-enunciativa de alguns problemas
gramaticais”, Máthesis 3, 137-50.
Culioli, A. (1986), “Stabilité et déformabilité en linguistique”, Études de Letres. Langage et
Connaissances 4, 3-10.
__ (1990), Pour une linguistique de l’énonciation, Paris, Ophris.
Medina, J. et al. (1997), Lusofonia, Revista da Faculdade de Letras de Lisboa.
Ruhlen, M. (1997), L’Origine des Langues - sur les traces de la langue mère, París, Éd. Belin.
Venâncio, J.C. (1997), Colonialismo, Antropologia e Lusofonias, Lisboa, Vega.
Download

línguas em contacto: a (im)previsibilidade num contexto pedagógico