Uma Abordagem Fı́sico-Matemática
das Qualidades Fisiológicas do Som
Cailey Freitas Novaes (cailey f @yahoo.com.br)
III Bienal da SBM - IME/UFG - 2006
Orientador: Prof. Marco Donisete de Campos (mcampos@uf mt.br)
Resumo
Neste trabalho é feita uma abordagem dos fundamentos da
música baseada em aspectos matemáticos e fı́sicos. Discute-se o
aspecto fisiológico da percepção auditiva e os aspectos da acústica
musical que descrevem as propriedades timbrı́sticas de um instrumento e verifica-se matematicamente a relação de Fechner-Weber
referente à intensidade auditiva
Origens da Música e da Matemática
Historicamente, a Música e a Matemática possuem laços profundos já conhecidos desde a Antigüidade. As primeiras manifestações
de algum tipo de relação entre essas áreas aparentemente tão diferentes perdem-se, como dizem os historiadores, na noite dos tempos,
uma vez que em todos os povos da Antigüidade encontram-se registros
destas áreas em separado (ABDOUNUR, 1999). A história da Música
ocidental, quando discutida juntamente com suas fontes primárias, apresenta em sua construção teórica e estética uma diversidade de idéias.
Nos antigos tratados de teoria musical, encontram-se discussões sobre metafı́sica, ciência, ética, educação, polı́tica e religião, bem como
questões mais especı́ficas - prática instrumental, estilı́stica, construção
de instrumentos ou notação. No entanto, questões musicais também
são encontradas em escritos sobre Matemática, cosmologia, poética,
retórica, arquitetura ou estética. Segundo Lippman (1975), a história
do pensamento musical coincide, em parte, com várias outras áreas
do estudo histórico - como a história da filosofia ou da ciência - e que
isso ocorre porque a Música apresenta como traço peculiar uma ı́ntima
relação com vários aspectos da atividade humana, o que acarreta um
difı́cil isolamento ou mesmo uma definição restrita a uma área do pensamento. Naturalmente, tais considerações levam-nos a pensar que, em
algum momento, o homem tenha começado a conjecturar relações entre
Música e Matemática, por exemplo, através do fato de que a corda de
um arco e flecha maior, mais grossa ou ainda menos tensa produza sons
mais graves ou mesmo que ao assoprar um osso podem-se gerar sons
diferentes dependendo do seu tamanho, bem como das posições em que
são inseridos buracos. Esta hipótese reforça-se através de um artigo
publicado na revista Scientific American de setembro de 1997, referente a um osso de urso com idade entre 43000 a 82000 anos encontrado
nos Alpes da Eslováquia em 1995, pelo paleontologista Ivan Turk da
Academia de Ciências da Eslovênia. Na flauta encontrada, a distância
entre o segundo e o terceiro furo é duas vezes a distância entre o terceiro
e o quarto furos. Esta configuração de buracos é capaz de produzir intervalos musicais de tons e semitons, elementos fundamentais da escala
diatônica moderna.
O Experimento do Monocórdio e a Música
na Escola Pitagórica
No século VI a.C, perı́odo no qual Pitágoras está inserido, a eclosão do pensamento racional inaugura uma nova etapa no mundo
grego. Esse processo proveniente dos séculos anteriores, de progressivas transformações econômicas, sociais e técnicas, passa a oferecer
ao homem explicações mais plausı́veis, apreendidas pela experiência
cotidiana e desvinculadas da antiga concepção divina e mı́tica da realidade. Nesse contexto, temos o primeiro registro cientı́fico, de fato,
associando Matemática, Fı́sica e Música, ocorrido na escola pitagórica:
a experiência do monocórdio. Possivelmente inventado por Pitágoras,
o monocórdio era um instrumento composto por uma única corda estendida em dois cavaletes fixos sobre uma prancha ou mesa possuindo,
ainda, um cavalete móvel colocado sob a corda para dividi-la em duas
seções. A princı́pio, seus experimentos evidenciavam relações entre
comprimento de uma corda estendida e a altura musical do som emitido quando tocada. Concordando com princı́pios de sua própria escola, Pitágoras buscava relações de comprimento - razões de números
inteiros - que produzissem determinados intervalos sonoros. Pitágoras
deu continuidade a seus experimentos investigando a relação entre o
comprimento de uma corda vibrante e o tom musical produzido por
ela. Caracterizando a primeira lei descoberta empiricamente, o experimento de Pitágoras é ainda a primeira experiência registrada na
história da ciência, no sentido de isolar algum dispositivo para observar
fenômenos de forma artificial. Em seu experimento, Pitágoras observou que pressionando um ponto situado a 43 do comprimento da corda
em relação a sua extremidade - o que equivale a reduzi-la a 34 de seu
tamanho original - e tocando-a a seguir, ouvia-se uma quarta acima do
tom emitido pela corda inteira.
Analogamente, exercida a pressão a 23 do tamanho original da corda,
ouvia-se uma quinta acima e a 12 obtinha-se uma oitava do som original.
A partir de tal experiência, os intervalos musicais passam a denominarse consonâncias pitagóricas. Assim, se o comprimento original da corda
for 12, então quando reduzimo-lo para 9, ouve-se a quarta, para 8, a
quinta e para 6 a oitava. O princı́pio subjacente a essa experiência
mostra-se presente em qualquer instrumento de corda ao escutar o som
emitido pela corda solta, por 34 , 23 , e metade da corda.
A descoberta da relação entre razão de números inteiros e tons musicais
mostrou-se significativa naquela ocasião, gerando uma dúvida fundamental para o pensador de Samos, bem como para o desenrolar da
relação Música e Matemática:
Por que às consonâncias musicais subjazem razões de pequenos
números inteiros? Qual é a causa e qual é o efeito?
A partir do experimento mencionado, Pitágoras estabeleceu relações
associando, respectivamente, aos intervalos musicais referentes às consonâncias perfeitas - oitava, quinta e quarta -, as relações simples 12 , 23
e 43 . Estas correspondem às frações de uma corda que fornecem as
notas mais agudas dos intervalos referidos, quando se produz a nota
mais grave pela corda inteira. Atribui-se o descobrimento dos intervalos consonantes a Pitágoras, embora provavelmente estes já fossem
conhecidos desde muito antes em distintas culturas antigas. Portanto,
através o experimento do monocórdio demonstrou que os intervalos entre notas musicais seguem proporções de números inteiros pequenos. Os
pitagóricos extrapolavam tal relação para os fenômenos da natureza em
geral, chegando a afirmar que os planetas do sistema solar orbitavam em
torno da terra, em trajetórias circulares e emitindo tons harmoniosos,
descrevendo o que chamavam de músicas das esferas.
Percepção do Som
Assim, pode-se definir uma unidade de medida de intensidade sonora,
tomando-se uma referência que esteja numa posição privilegiada entre
os dois extremos da faixa audibilidade de freqüências. A intensidade
mı́nima que se pode ouvir é de 10−12W/m2, chamada de limiar de
audibilidade, enquanto que a intensidade máxima é de 1W/m2, e é
chamada de limite da dor. Verifica-se a extensão da faixa de percepção
de intensidade (maior que a faixa de freqüência), pois entre o limiar de
audibilidade e o limite da dor há uma variação de 1012. Devido a
esta grande variação, seria natural que se determinasse uma unidade
de medida de intensidade sonora em função de uma escala logarı́tmica,
para que as medidas fossem tomadas em números de mesma grandeza.
O filósofo Alemão Ernest Fechner exprimiu, no século passado, uma
lei que se aplica a todos os nossos sentidos. Esta lei diz que a menor
variação perceptı́vel de um estı́mulo é uma fração constante do referido
estı́mulo. Simbolicamente, podemos escrever:
∆I ≈ I
(1)
sendo I o estı́mulo e ∆I a menor variação perceptı́vel.Com base nesta
lei, o fı́sico alemão Gustav Fechner chegou a uma outra conclusão
importante: o aumento da sensação produzido por um aumento de
estı́mulo, é proporcional a ∆I
I . Se chamarmos de dS o aumento da
sensação e dI a menor variação perceptı́vel, podemos escrever:
∆I
dS = K
I
(2)
Aplicando a esta expressão o cálculo integral, obtemos o seguinte resultado:
I
(3)
∆S = Klog
I0
sendo I0 o menor estı́mulo perceptı́vel, ou seja, o limiar da sensação.
A Equação (3), escrita sob forma
Quando se estuda um sistema musical, é necessário também analisar, além dos parâmetros fı́sicos do som emitido, como funciona a
audição humana (MANZOLLI, 1988). Precisa-se saber quais são, em
particular, as reações do ouvido e da audição a estı́mulos acústicos. Não
estamos interessados em estudar todo processo, mas queremos salientar
os seguintes conceitos: o intervalo de audibilidade de freqüência, a
percepção de intensidade sonora (loudness), a equação de Stevens
e a percepção timbrı́stica .
é a relação de Fechner-Weber referente à intensidade auditiva, sendo
S0 a sonoridade (intensidade auditiva) adotada como referência; S a
sonoridade (intensidade auditiva) do som considerado; I0 a intensidade
fı́sica adotada como referência, I a intensidade fı́sica do som considerado e K a constante de proporcionalidade.
Intervalo de Audibilidade de Freqüência
Considerações Finais
O ouvido humano é sensı́vel a sons que tenham no máximo
freqüências em torno de 15 000 Hz. Desta maneira, é suscetı́vel a mudanças na pressão do ar que ocorram numa escala de tempo da ordem
1, 5.10−4 segundos. O tı́mpano, que é capaz de responder a freqüências
de comprimento de onda de 4, 0.10−4 milı́metros, não é capaz de vibrar
para comprimentos de onda que ultrapassem 10 metros. Um estı́mulo
sonoro deve ter aproximadamente 30 Hz para sensibilizar o tı́mpano.
Uma vibração sonora da ordem de grandeza acima, muitas vezes poderá
passar despercebida pelo cérebro, mesmo que o tı́mpano seja capaz de
reagir a esse estı́mulo. É interessante notar que, apesar de o tı́mpano
ser sensı́vel a mudanças de pressão do ar com perı́odos menores que
3, 0.10−2 segundos, o cérebro, que faz a audição real, é suscetı́vel a
eventos sonoros distanciados entre si somente por intervalos de tempos maiores que 5, 0.10−2 segundos. Um estı́mulo sonoro deve durar
no mı́nimo 50 milésimos de segundo para que o cérebro reconheça sua
freqüência e timbre. Para interpretar estı́mulos sonoros, o cérebro utiliza uma escala de tempo inteiramente diferente daquela que o tı́mpano
utiliza.A função do mecanismo da audição é fazer a transdução entre
as duas escalas de tempo. Além destes fatores fisiológicos, que colocam
todas as pessoas em igual condição de audibilidade, estamos sujeitos diariamente à poluição sonora e outros problemas que certamente causam
traumas acústicos, e que diminuem nossa suscetibilidade auditiva. Devido a estes fatores é impossı́vel estabelecer uma faixa padrão para
todas as pessoas. Por isso, toma-se uma faixa de freqüência para um
indı́viduo com a adição hipoteticamente média, como o intervalo dado
por: 3, 5 ± 5Hz a 15000 ± 1000Hz.
Percepção de intensidade sonora (loudeness)
Os limites da audibilidade não são dados somente em função do fator
tempo. Muitas vezes, não se escutam estı́mulos cujas freqüências estão
dentro da faixa de audibilidade, porque a intensidade das mesmas é
insuficiente para sensibilizar o tı́mpano. Existe uma intensidade limite que é o limiar da audibilidade, porém ela varia de acordo com a
freqüência de maneira tal que, em primeira aproximação, pode-se dizer
que se escutam com maior facilidade as freqüências médias, ao passo
que os sons agudos e graves são atenuados.
I
S − S0 = Klog
I0
(4)
Ao finalizar este trabalho, verificamos, com propriedade, o quanto
a música se espalha em outros domı́nios conforme a natureza,
reinventando-se, assim, continuamente. Cabe aqui ressaltar que muitos
outros aspectos fı́sico-matemáticos poderiam ter sido levados em conta.
No entanto, devido à pouca pesquisa desenvolvida nesta área, tornase difı́cil a busca de dados a fim de esclarecer questões fundamentais.
Acreditamos que pesquisas envolvendo fı́sica, matemática e música com
novas áreas certamente ampliarão os conceitos e a visão da fı́sica aplicada. O importante é que este trabalho suscite outros de mesma natureza e, através deste procedimento, se encontre uma forma de desenvolver a linguagem musical que ainda vive, em muitos momentos, das
idéias de compositores do século passado.
Referências Bibliográficas
ABDOUNUR, O. J. Matemática e Música. São Paulo: Escrituras
Editoras, 1999.
LIPPMAN, E. A. Musical thought in Ancient Greece. New York: Da
Capo Press, 1975.
MANZOLLI, J. Um modelo matemático para timbre orquestral.
Campinas, 1988. 120 p. Dissertação (Mestrado em Matemática
Aplicada/Matemática Aplicada e Computacional) - Instituto de
Matemática e Ciências da Computação, Universidade Estadual de
Campinas.
MONTANARI, V. História da Música. São Paulo: Ática, 1988.
WONG, K. Neanderthal notes. Scientific American, New York; v.
277, n.3, p.41-42, 1997.
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Uma Abordagem F´ısico-Matem´atica das Qualidades - IME