Uma lagrangeana para a corda vibrante Pense em uma corda de comprimento`, presa em suas extremidades ao longo de uma linha horizontal, que vamos tomar como sendo o eixo x. Então, a corda não se move nos pontos x = 0 e x = `. No entanto, em um ponto intermediário, isto é, para x entre 0 e `, a corda não precisa estar ao longo da horizontal. Se a corda vibra, em cada instante de tempo a posição da corda para cada x entre 0 e ` pode estar localizada fora da linha horizontal. Para facilitar as coisas, vamos supor que a corda apenas vibre ao longo da direção vertical, que tomaremos como o eixo z. Seja z (x, t) a coordenada z da corda calculada no ponto x e no instante t. Seja λ a densidade linear de massa da corda. Então, um pequeno elemento da corda, de comprimento dx, tem massa λdx. Como a corda vibrante, em cada instante de tempo xo, é descrita por uma função contínua de x no intervalo [0, `] , segue que o elemento dx deve estar sendo movido pela ação das forças exercidas pelos outros elementos da corda. De fato, deve haver uma tensão na corda, cujo módulo vamos chamar de τ, que tem a mesma intensidade em cada ponto da corda, mas que muda de direção ao longo da forma assumida pela corda conforme vibra. Vamos parametrizar a corda com seu próprio comprimento s, medido a partir de x = 0. Então, o versor tangente à corda é dado por t̂ dr , ds = onde r = x̂x + ẑz é o vetor posição de um ponto sobre a corda com coordenadas x e z. Note que t̂ é mesmo um versor, pois |dr| = q 2 2 (dx) + (dz) = ds, por denição. Como z é uma função de x, isto é, z = z (x) , então, s é uma função de x também. Então, podemos pensar que temos um versor tangente para cada ponto x e, portanto, temos t̂ = t̂ (x) . A tensão que a corda exerce sobre o elemento dx no ponto x é dada por −τ t̂ (x) , já que o elemento deve ser puxado pela corda que está ocupando os pontos com abscissas menores do que x. Analogamente, o elemento dx também deve ser puxado pelo restante da corda ocupando os pontos com abscissas maiores do que x+dx e, então, a tensão que a corda exerce sobre dx no ponto x + dx é dada por τ t̂ (x + dx) . A tensão resultante sobre o elemento de corda de comprimento dx é dada, portanto, por dF dt̂ d = τ t̂ (x + dx) − τ t̂ (x) = τ dx = τ dx dx dx isto é, dF d = x̂τ dx dx dx ds 1 d + ẑτ dx dx dz ds . dr ds , Como, por hipótese, a corda só vibra ao longo da direção vertical, devemos ter d dx dx ds = 0 e, portanto, como s = s (x) , d dx dx ds d dx = 1 ! = 0, ds dx isto é, ds dx = c, onde c é uma constante adimensional. Logo, dF d τ ẑ dx c dx = dz dx . Isso tudo foi feito para o instante t, que consideramos xo. Agora, para cada instante de t, para evitar confusão, devemos utilizar derivadas parciais com relação a x e a força resultante sobre o elemento dx ca dF τ ∂ ẑ dx c ∂x = ∂z ∂x . Veja que c é um número pequeno, pois, q c = ds = dx 2 s 2 (dx) + (dz) = dx dx dx 2 + dz dx s 2 = 1+ dz dx 2 . Vamos supor que as vibrações da corda sejam tais que dz dx 1 e, portanto, c ≈ 1 1+ 2 dz dx 2 ≈ 1. Sendo assim, dF = ẑτ dx ∂2z . ∂x2 Vamos ignorar o peso da corda comparado com a tensão. Nesse caso, a aceleração vertical da corda é dada por az = 2 ∂2z ∂t2 e, para o elemento dx, cuja massa é λdx, a segunda lei de Newton dá λdx ∂2z ∂t2 = τ dx ∂2z , ∂x2 isto é, ∂2z ∂x2 λ ∂2z , τ ∂t2 = ou seja, ∂2z λ ∂2z − 2 ∂x τ ∂t2 = 0, que é a equação de onda em uma dimensão. Veja que a velocidade de propagação da onda na corda é dada por r v = τ . λ Mas aqui queremos escrever uma lagrangeana para a corda vibrante, através da qual a equação de onda acima seja consequência da equação de Lagrange. Ao invés de fazermos uma formulação em termos de meios contínuos para a lagrangeana, vou adotar a abordagem do livro do Symon [1] e decompor z (x, t) em série de Fourier, isto é, z (x, t) ∞ X = qk (t) sen k=1 kπ x , ` (1) já que a corda deve ter z = 0 em seus extremos nos pontos x = 0 e x = ` em todo instante de tempo, por hipótese. Veja que agora temos innitas coordenadas generalizadas, qk (t) , que são os coecientes de Fourier de z (x, t) , obtidos em cada instante de tempo t. A equação de onda dá, com o uso da Eq. (1), uma innidade de equações de movimento: ∂2z τ ∂2z − ∂t2 λ ∂x2 = ∞ X " k=1 τ q̈k (t) + λ kπ ` # 2 qk (t) sen kπ x ` = 0, isto é, q̈k (t) + τ λ kπ ` 2 qk (t) = 0, (2) para k = 1, 2, . . . , ∞. Assim, para cada k, temos um oscilador harmônico. Usando a Eq. (1), podemos escrever a energia cinética total da corda como T = λ 2 ˆ ` dx 0 ∂z (x, t) ∂t 2 = λ 2 ˆ ` dx 0 ∞ X k=1 3 q̇k (t) sen X ∞ pπ kπ x q̇p (t) sen x , ` ` p=1 isto é, ∞ T = ∞ λ XX q̇k (t) q̇p (t) 2 p=1 ˆ ` dx sen 0 k=1 pπ kπ x sen x , ` ` ou seja, ∞ T ∞ λ XX ` q̇k (t) q̇p (t) δkp , 2 2 p=1 = k=1 ou ainda, ∞ T λ` X 2 [q̇k (t)] . 4 = (3) k=1 Então, vemos que tudo se passa como se tivéssemos innitas partículas de massas iguais a λ`/2, cada uma na posição qk (t) , ao longo de uma só dimensão. Da Eq. (2), vemos que a frequência de cada uma dessas partículas é dada por ωk2 = τ λ kπ ` 2 (4) e, portanto, a energia potencial total desse sistema de osciladores harmônicos desacoplados é dada por ∞ V 1 λ` τ X 2 2 λ = k=1 kπ ` 2 2 [qk (t)] , isto é, ∞ V = τ` X 4 k=1 kπ ` 2 2 [qk (t)] . (5) Então, a lagrangeana que estamos procurando é obtida subtraindo a Eq. (5) da Eq. (3): ∞ ∞ λ` X τ` X 2 L = T −V = [q̇k (t)] − 4 4 k=1 k=1 kπ ` 2 Como, usando a Eq. (6), obtemos ∂L ∂ q̇k λ` q̇k (t) 2 = e ∂L ∂qk τ` = − 2 4 kπ ` 2 qk (t) , 2 [qk (t)] . (6) então, a equação de Lagrange, d dt ∂L ∂ q̇k − ∂L ∂qk = 0, implica em d dt 2 λ` τ ` kπ q̇k (t) + qk (t) 2 2 ` = 0, isto é, τ` λ` q̈k (t) + 2 2 kπ ` 2 qk (t) = 0, ou seja, τ q̈k (t) + λ kπ ` 2 qk (t) = 0, para k = 1, 2, . . . , ∞, que é justamente o resultado dado pela Eq. (2). Reconhecendo z (x,t) como sendo dado pela Eq. (1), se multiplicarmos a Eq. (2) por sen kπ ` x e somarmos sobre os valores de k, desde 1 até ∞, obteremos novamente a equação de onda, o que mostra que a lagrangeana da Eq. (6) é adequada. Também podemos deduzir a energia potencial usando a formulação em termos das forças generalizadas. Então, fazendo um deslocamento virtual δr do elemento da corda de comprimento dx e integrando ao longo de todo o comprimento da corda, obtemos o trabalho virtual: ˆ δW = ˆ dF · δr = τ ` dx 0 ∂2z ẑ · δr = τ ∂x2 ˆ ` dx 0 ∂2z δz, ∂x2 (7) onde já estou usando c ≈ 1. Como temos innitas coordenadas generalizadas, o trabalho virtual é escrito em termos das forças generalizadas como δW = ∞ X Qk δqk , (8) k=1 onde δqk é o deslocamento virtual da k-ésima coordenada generalizada. Da Eq. (1) seguem ∂2z ∂x2 = − 2 ∞ X kπ k=1 ` qk sen kπ x ` (9) e δz = ∞ X δqk sen k=1 5 kπ x . ` (10) Substituindo as Eqs. (9) e (10) na Eq. (7), obtemos ˆ δW 2 ∞ X kπ ` = −τ dx 0 ` k=1 qk sen X ∞ pπ kπ x x , δqp sen ` ` p=1 isto é, δW −τ = 2 ∞ X kπ ` k=1 qk ∞ X ˆ ` δqp dx sen 0 p=1 pπ kπ x sen x , ` ` ou seja, δW −τ = 2 ∞ X kπ ` k=1 qk ∞ X ` δqp δkp , 2 p=1 ou ainda, 2 ∞ `τ X kπ = − qk δqk . 2 ` δW (11) k=1 Comparando a Eq. (11) com a Eq. (8), encontramos as forças generalizadas como = − Qk `τ 2 kπ ` 2 qk . (12) A Eq. (12) mostra que Qk pode ser obtida de uma energia potencial dada por V = ∞ `τ X pπ 2 2 qp , 4 p=1 ` (13) já que é facilmente vericado que ∂V ∂qk = 2 2 ∞ `τ X pπ 2 ∂qp2 `τ kπ `τ kπ = 2qk = qk = −Qk . 4 p=1 ` ∂qk 4 ` 2 ` Note que a Eq. (13) coincide com a Eq. (5) obtida acima. Outra maneira de encontrar uma expressão para a energia potencial na corda é ainda através da Eq. (7), mas agora considere o fato de que o deslocamento virtual δz é nulo nos extremos xos da corda. Então, podemos escrever a Eq. (7) assim: ˆ δW = τ ` dx 0 ∂2z δz = τ ∂x2 ˆ ` dx 0 ∂ ∂x ∂z δz ∂x ˆ −τ ` dx 0 ∂z ∂δz , ∂x ∂x isto é, ˆ δW = τ ` dx 0 ` ˆ ` ∂z ∂z ∂δz ∂2z δz = τ δz − τ dx , ∂x2 ∂x 0 ∂x ∂x 0 6 ou seja, ˆ δW ` = τ dx 0 ∂2z δz = −τ ∂x2 ˆ ` dx 0 ∂z ∂δz . ∂x ∂x (14) Note agora que uma variação virtual de qualquer quantidade é obtida fazendo, na expressão da quantidade, a variação de z para z + δz. Então, δ ∂z ∂x ∂ (z + δz) ∂z ∂δz − = . ∂x ∂x ∂x = (15) Substituindo a Eq. (15) na Eq. (14), obtemos ˆ ` = −τ δW dx 0 ∂z δ ∂x ∂z ∂x . (16) Mas o trabalho virtual é igual à variação virtual da energia potencial multiplicada por −1, isto é, = −δV δW e a Eq. (16) fornece ˆ δV ` = τ 0 ∂z dx δ ∂x ∂z ∂x . (17) Ora, a Eq. (17) permite denirmos a energia potencial da corda como V τ 2 = ˆ ` dx 0 ∂z ∂x 2 , (18) pois, por denição de variação virtual, δV = τ 2 ˆ ` dx 0 ∂ (z + δz) ∂x 2 ∂z ∂δz + ∂x ∂x 2 τ 2 − ˆ ` dx 0 ∂z ∂x 2 , isto é, δV = τ 2 ˆ ` dx 0 − τ 2 ˆ ` dx 0 ∂z ∂x 2 , ou seja, δV = τ 2 ˆ ` dx 0 ∂z ∂x 2 τ + 2 ˆ 0 ` 2 2 ˆ ˆ ∂z ∂δz τ ` ∂δz τ ` ∂z dx 2 + dx − dx , ∂x ∂x 2 0 ∂x 2 0 ∂x ou ainda, ˆ δV = τ 0 ` ∂z dx δ ∂x ∂z ∂x 7 τ + 2 ˆ 0 ` 2 ∂z dx δ , ∂x onde usei a Eq. (15). As variações virtuais são innitesimais e, portanto, podemos escrever ˆ δV ` dx = τ 0 ∂z δ ∂x ∂z ∂x , que coincide com a Eq. (17). Substituindo a Eq. (1) na Eq. (18), obtemos V = τ 2 ˆ " ` dx 0 ∞ X kπ k=1 ` qk cos kπ x ` #2 , isto é, V τ 2 = ˆ ` dx 0 ∞ X kπ k=1 ` qk cos X ∞ pπ pπ kπ x qp cos x , ` ` ` p=1 ou seja, V ˆ ` ∞ ∞ pπ τ X kπ X pπ kπ qk qp x cos x , dx cos 2 ` ` ` ` 0 p=1 = k=1 ou ainda, V = 2 ∞ ∞ ∞ τ X kπ X pπ ` τ ` X kπ qk qp δkp = qk2 , 2 ` ` 2 4 ` p=1 k=1 k=1 que também coincide com a Eq. (5). Bibliograa [1] Keith R. Symon, Mechanics, terceira edição (Addison Wesley, 1971). 8