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Variedades
Santo Daime: A força da floresta
Desde que o ser humano apareceu na Terra, várias formas de religiosidade apareceram com ele. Em tempos imemoriais, cada coisa na natureza era
considerada uma expressão da divindade. Os nomes para este tipo de religião ancestral variam: Panteismo, Animismo, Xamanismo, etc. Uma das
principais características das religiões “primeiras” da humanidade eram os seus rituais de religação, muitas vezes, acompanhados de danças e da consagração e consumo de plantas consideradas sagradas. Neste artigo antropológico, o professor-doutor Jorge Miguel Mayer nos conta algumas particularidades do Santo Daime, um ritual religioso que se instalou em sincretismo nos povos das florestas brasileiras, a partir da primeira metade do séc. XX.
bém o cristianismo com a sua prática amorosa. Desmonta-se a ilusão e
emerge o princípio criador, presente
na combinação de princípios masculinos e femininos.
Por Jorge Miguel Mayer
A Amazônia, desde os primórdios do Brasil, suscitou a cobiça
do conquistador ocidental que, nela,
projetou um Eldorado de riquezas e
buscou enriquecimento através da
exploração comercial. Com o objetivo
de submeter a população tradicional,
o conquistador impôs uma verdadeira
guerra às sociedades indígenas, desagregando-as e impondo seus valores.
Culturas milenares, em sintonia com
a floresta, nos legaram suas visões e
conhecimentos sagrados, como o uso
de uma bebida que abria portas incríveis. Uma bebida capaz de fortalecer
comunidades e valorizar a floresta, as
plantas, a água, a natureza.
Ayahuasca, Yagé, Caapi,
Natema, Cadana, Pinde, Vegetal, e
outros nomes têm designado esta
bebida que mergulha raízes no mundo indígena da Amazônia ocidental.
Ali se construiu a tradição de cura, de
pajelança e de espiritualidade que tem
como centro a bebida sagrada. Muito
conhecida também na área de fronteira entre a Amazônia e países como
Peru e Bolívia, a bebida foi assimilada por nordestinos que adentraram a
Amazônia na época da borracha
A partir de 1930, um maranhense
negro, Raimundo Irineu Serra, após
experimentar a bebida, recebeu dela
uma revelação que o levou a estruturar um ritual e prática religiosa no Acre,
tendo como centro a bebida sagrada,
a que chamou de Daime. E assim
construiu-se a doutrina que integra
elementos cristãos, afro-brasileiros e
tradições indígenas.
Os primeiros mistérios
Há um mistério em como o
ser humano descobriu certos vegetais
e modos de prepará-los. No caso do
Daime, é de se perguntar como dentre tantos cipós, escolheu-se o Jagube (Banisteriopsis Caapi), também
chamado de Mariri no Acre. E como
se descobriu que seus efeitos psicoativos só surgem em combinação com
um arbusto conhecido por Rainha ou
Chacrona (Psychotria Viridis).
Não basta combinar simplesmente as plantas. É preciso todo um
processo de coleta e cozimento que
tem suas particularidades. E, sobre-
Em que se baseia o ritual
No centro da foto, o Mestre Raimundo Irineu Serra, no Acre, em 1930.
tudo consagração. Uma bebida que
está ligada à tradição das plantas
inteligentes que age quando aparelhada pelas mentes humanas. Para
quem a consagra, “a bebida tem poder inacreditável”. Como diz hino do
Padrinho Sebastião Mota de Melo,
transmitindo os dizeres do Daime: “Eu
vivo na floresta, eu tenho os meus ensinos, eu não me chamo Daime, eu
sou é um ser divino”.
A bebida e o trabalho espiritual
Existe uma grande diversidade de trabalhos com a bebida. Ela
nos faz entrar numa história cujo sujeito é o próprio Daime. Segundo minha experiência no Centro da Fluente
Luz Universal Raimundo Irineu Serra
(Cefluris) em todos os tipos de trabalho ▬ concentração, hinário, trabalho
de cura, estrela ▬ o Daime nos leva
a distinguir a verdade da ilusão. Um
mergulho na verdade oculta. Grandes linhas do pensamento, como as
vindas de Platão e Marx, revelam que
é preciso romper o véu da ilusão, da
aparência, para conhecer a realidade.
E o Daime, “professor dos professores”, nos revela dimensões para além
da nossa instância primeira.
Paradoxalmente, o Daime
tem sofrido ataques e condenações,
sem mesmo se conhecer este Poder. Como dizia Cristo, a boa árvore se conhece por seus frutos. E
convido-os para acompanhar a experiência coletiva do grupo que, liderado
pelo Padrinho Sebastião, depois de
estar instalado comunitariamente em
Rio do Ouro, no Acre, teve que partir
para outro destino.
A criação do Mapiá
E partiu para a floresta virgem,
enfrentando todas as carências e perigos, a exemplo dos decorrentes da
elevada incidência de malária. Uma
história épica em que um povo totalmente desestruturado recria a sua
autoestima e produz uma nova comunidade ▬ Céu do Mapiá no Estado
do Amazonas. Isto nos faz lembrar o
papel do Daime numa comunidade, o
quanto ele a fortalece. E nesta nova
vila construíram plantios comunitários,
asseguraram subsistência alimentar e
assistência à saúde. E hoje, a vila Céu
do Mapiá, no Amazonas, é uma respeitável localidade para onde afluem
pessoas do mundo inteiro em busca
de espiritualidade, renovação e cura.
Segundo o fundador da doutrina do Santo Daime, Raimundo Irineu
Serra, “o centro é livre”, o que permite que várias experiências religiosas
convirjam para os trabalhos de Daime.
Estão presentes o conhecimento e a
incorporação de espíritos provenientes das religiões afro-indígenas, e tam-
Se pesquisarmos o ritual encontraremos elementos ancestrais
da comunidade humana. Traços
indígenas e africanos estão presentes na dança coletiva (bailado) e no
uso da música. As vestes remontam
a outras influências culturais. Os hinos que nos elevam e requintam os
sentimentos são também chamados
e expressões do Poder Superior que
rompe os limites individuais e faz os
participantes alcançarem outro nível
de conhecimento.
Se o Daime se faz num caldeirão, podemos usar o caldeirão como
o símbolo da produção de uma nova religação: uma nova era nascida da combinação do fogo, da água, do Jagube
e da Rainha. E no plano psicofísico, a
produção de uma nova bebida em que
velhos pensamentos e novas verdades
são combinados no fogo oferecendo ao
homem um novo caminho.
Um dos padrinhos do Santo
Daime, o saudoso Francisco Corrente,
dizia numa estrofe de hino recebido:
“Sempre digo aos meus irmãos, que
existe este Poder. Só enxerga quem
merece, só recebe quem obedecer.” E
num contexto em que a humanidade
está perdendo suas raízes de amor e
respeito, sendo consumida pelas ilusões materiais, creio ser significativo
que o Daime esteja chegando a cada
vez mais lugares. Os tempos estão difíceis, mas há esperança. E o Daime é
uma luz que se acende.
Existem hoje inúmeros estudos
sobre este fenômeno que ultrapassa
qualquer conceituação. Para quem desejar saber mais:
Fernandes, Vera Fróes – História do povo
Juramidam: introdução à cultura do Santo
Daime. Manaus, SUFRAMA, 1986
Labate, Beatriz Cayuby; Araújo, Wladimyr
Sena (orgs.) O Uso Ritual da Ayahuasca,
Campinas, São Paulo, Mercado de Letras,
FAPESP ,2002
MacRae, Edward- Guiado pela Lua. Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do
Santo Daime, São Paulo, Brasiliense, 1992
Polari, Alex – O Guia da Floresta, Rio de Janeiro, Record, 1992
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