EU COMO EU
Lauro Cavalcanti e Felipe Scovino
“É tão perigoso para um poeta mudar de idioma quanto para um fiel trocar de religião” Gertrude
Stein d’après Caetano Veloso na contracapa de seu primeiro disco de exílio
As obras de Eu Como Eu (1999) apontam para a diversidade e amplitude da arte produzida no país
e para a forma como o conceito de “nacional” é gerado, identificado, percebido, mobilizado e
anulado no circuito de arte. A potência dos trabalhos está no contexto em que foram produzidos,
no modo de articular infinitos lugares e tempos e no apagamento de ideias rígidas sobre fronteiras
nacionais.
A identidade nacional não é um dado absoluto, mas representações em um jogo de espelhos que só
se definem uma vez colocadas em oposição segmentar com as outras. Em outras palavras, vemonos em relação ao outro e ao modo como somos vistos.
Octavio Paz, no discurso de aceitação do Prêmio Nobel em 1990, apontava a necessidade de
resgate do tempo presente, do qual os intelectuais e artistas hispano-americanos pareciam haver
sido ejetados, acostumando-se a procurar o contemporâneo, apenas, em Nova York, Paris ou
Londres.
A arte brasileira jamais esteve tão “internacionalizada”, participando de importantes mostras
coletivas ou individuais. Não raro, contudo, por mais sofisticados e cosmopolitas que sejam, os
artistas são enquadrados em certos clichês, como “pop periférico”, “conceitualismo político” ou
“geometria sensível”. Muitas vezes o curador da instituição norte-americana ou europeia “fala”
por ele como se o próprio não pudesse fazê-lo. É esquecido que o direito de narrar (sua própria
história) – conceito criado por Homi Bhabba – deve ser legítimo.
A Visão do Outro
Vinte e dois anos separam o inacabado It’s All True (1942), de Orson Welles, e Soy Cuba (1964), de
Mikhail Kalatozov, duas fracassadas iniciativas de interpretação dos trópicos por excelentes
diretores de países “amigos”. No filme de Welles as cenas da explosão popular no Carnaval do Rio
desagradaram a todos: os altos executivos de Hollywood lamentaram os dólares gastos para “ver
selvagens pulando” e os dirigentes do Estado Novo viram frustrada sua ideia de uma
representação idílica e sofisticada do país. No relato da Revolução Cubana, produzido por
Kalatozov, os próprios cubanos não se reconheceram naquilo que chamaram de “visão eslava” da
ilha, e na URSS a exibição da obra foi proibida, pois o intuito de denunciar o capitalismo decadente
teve um efeito contrário: prevaleceu no público um forte fascínio pelas cenas com mulheres, jogos e
bebidas nos tempos de Fulgêncio Batista.
No início do século XX, a América Latina era compreendida pela política norte-americana como um
território de irreversível atraso. Aos olhos puritanos dos norte-americanos, os espanhóis e os
portugueses eram “irrecuperavelmente” falsos, mesquinhos, cruéis, além de perpetuar a lógica
colonialista, “bem como estagnar na languidez dos trópicos.”
Foi longo o percurso para a arte brasileira encontrar um sotaque e, finalmente, uma linguagem
própria. Nas palavras de Mario Pedrosa: “No Brasil a primazia no plano artístico coube à
arquitetura.” Até meados dos anos 1930, a arquitetura moderna parecia, apenas, uma nova
importação, similar a tantas outras. Esse quadro foi radicalmente alterado a partir de 1936,
através dos contatos da equipe brasileira com Le Corbusier e da releitura tropical de seus princípios
para a construção da sede do Ministério da Educação e Saúde. Demonstrou-se que o estilo
moderno poderia adquirir escala monumental e ser aplicado em regiões com temperaturas
diversas do clima temperado europeu. A partir daí, aproveitando a fase relativamente próspera
que o país atravessava, muitas construções de alta qualidade foram realizadas, firmando o Brasil
como um importante centro de inovações arquitetônicas entre os anos 1940 e 1960.
Nelson Rockefeller, à frente da política de boa vizinhança, mandou realizar uma pesquisa em
várias cidades dos EUA e quatro países da América do Sul, dentre os quais o Brasil. O trabalho
apontou que o mais forte empecilho ao êxito do congraçamento almejado era o preconceito
recíproco existente entre as populações norte e sul-americanas. Para os americanos do norte, os
latinos eram demasiadamente “emotivos, sentimentais e irresponsáveis”. Estes, por seu turno,
consideravam os estadunidenses “frios, interesseiros e não confiáveis”. A pesquisa apontava,
ainda, que o melhor modo de melhorar as representações e buscar aproximar os povos seria a via
cultural.
Em 1943, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) organizou a mostra e o livro Brazil
Builds: Architecture New & Old 1652-1942. Havia um forte paradoxo: embora a arquitetura norte-
americana fosse, ainda, bastante tradicional, o Departamento de Arquitetura do MoMA se
firmara, mundialmente, como o principal fórum de debates e difusão de inovações arquitetônicas.
O livro Brazil Builds foi distribuído nos principais centros mundiais de construção, evidenciando a
sofisticada produção de um país cuja imagem esteve sempre associada ao folclore tropical.
A partir dos anos 1950, o modernismo que o Brasil havia importado da Europa, com a ajuda da
difusão que obteve nos EUA, viajou o Oceano Atlântico na direção inversa. Recuperando-se do
impacto da guerra e entrando na fase de reconstrução das cidades mais atingidas, a segunda
geração modernista europeia passou a ter o Brasil, em geral, e Oscar Niemeyer, em particular,
como referência.
Entre os anos de 1950 e 1960, fruto da acelerada industrialização, a bossa-nova e o construtivismo
juntaram-se -se à arquitetura para configurar o que se esperava ser uma “nova” forma de Brasil,
pretensamente livre de influências exóticas e dos bolsões de pobreza.
As músicas de Antonio Carlos Jobim, as poesias de Vinicius de Morais e o canto de João Gilberto
ensejam um novo tipo de música que, sem perder o balanço do samba, incorporou influências de
Claude Debussy e o melhor do jazz norte-americano. Neste segmento de Caos e Efeito, Chacal
trabalha com o som e a sombra gerados pelo movimento cíclico e interminável de uma canção de
bossa-nova girando no toca-discos. Estão ali, lado a lado, o objeto real e a ilusão que projeta.
O Desenho Industrial ampliou a visão de um país moderno e industrializado, que passa a ter uma
correspondência real e imediata com a cultura de massas. A vontade de ordem e multiplicação
abandona qualquer noção de lugar, ainda que estivesse intrinsecamente associada ao universo do
construtivismo brasileiro. A obra gráfica de Alexandre Wollner, também excelente pintor, compõe
uma ideia de Brasil que foge dos arquétipos ao mesmo tempo em que, sem abrir mão da invenção,
explicita procedimentos que se converterão em qualidades de uma produção sem fronteiras,
baseada nas “leis da estrutura”: alinhamento, ritmo, progressão, polaridade, regularidade e lógica
interna de desenvolvimento e construção.
A partir dos anos 1970, a apropriação da arquitetura, construtivismo e bossa-nova como novos
modelos e símbolos do país no exterior foi tão repetidamente mal utilizada que, nessa perspectiva,
os reduziu, como elementos de propaganda, aos grandes clichês sobre a nossa cultura.
Outro Brasil
Percebemos na produção das artes visuais contemporâneas um esvaziamento de sintomas de
identidades nacionais e a afirmação de experiências que anulam o lugar de produção. O contexto
da arte fora de um centro hegemônico coloca-se como possibilidade de reflexão sobre o tempo
presente e evidencia uma relação de forças complexa e contemporânea. Não há folclore ou
exotismo, justamente porque o que o espectador espera, pensa ou imagina do Brasil está muito
longe das experiências evocadas por essas obras.
Identidades e fronteiras passam por outros caminhos de (des)construção. Paulo Venancio Filho,
referindo-se a trabalhos de Cildo Meireles e Tunga, escreve que “quem esperar a tematização do
Brasil, a cor local, certamente não encontrará isso nos trabalhos”. O tema local não está em
nenhuma imagem, justamente porque ele já se dissolveu no mundo. As identidades que
compunham as paisagens sociais “‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com
as ‘necessidades’ objetivas da cultura estão entrando em colapso, como resultado de mudanças
estruturais e institucionais”. A própria ideia de identificação, por meio da qual nos projetamos em
nossas identidades culturais, tornou-se mais provisória, frágil e variável.
(Des)Arquitetura
As obras de João Loureiro e Lucia Koch trabalham na desconstrução de paradigmas da arquitetura
moderna. O jogo de escalas nas fotos de Koch desassocia momentaneamente a função original
daquela superfície (interiores de caixas de alimentos) e o que ela passa a representar. Essa série
(Amostras de Arquitetura, 2009-2011) parece nos empurrar para uma zona difícil de ser localizada.
O lugar e a imagem escolhidos por Koch não oferecem a mínima possibilidade de ser ocupados ou
habitados, simplesmente pelo fato de que são lugares inventados. A luz não é adereço, mas
personagem central nas narrativas dessa série. Como se a arquitetura quisesse assegurar a
permanência do elemento “mais” transitório e pontual da natureza (a luz).
João Loureiro faz aflorar a memória destruída em nome de um futuro duvidoso. Vila Normanda
(2004) faz referência a uma vila – já demolida e que deu lugar a um prédio associado ao
modernismo arquitetônico brasileiro – que existiu no Centro da cidade de São Paulo até meados
dos anos 1970. A obra Vila Normanda questiona o lugar da arquitetura, a memória do lugar, a
preservação e a modernidade. A escala é tal que o trabalho assume uma presença quase
monumental, parecendo disputar o espaço com o público, bloqueando a visão daquilo que está do
outro lado.
Qualquer lugar
A obra como a de Antonio Dias, em suas distintas estratégias, é comumente exibida em exposições
internacionais cujo tema é arte e política. Entretanto, o termo “política” nessas ocasiões é colocado
como uma ação de guerrilha, algo maniqueísta que não permite brechas para que sua obra seja
percebida como um objeto mediador de experiências sobre o corpo e, acima de tudo, como
território semântico atemporal e transnacional. Sua produção, como qualquer outra obra de arte,
quer se desvencilhar de seu tempo e lugar histórico e permanecer como um legado de invenção e
oferta de propagação de sensibilidades. Nas obras de Dias exibidas em Eu Como Eu, torna-se
aparente que o sentimento de autoexílio do artista nos anos 1970 se alinha com o anúncio de uma
desterritorialização e com o compromisso em deixar incompleta a sua biografia ou negar um lugar
como produto de si ou morada. Não há imagem do artista nem de ninguém, mas espaço. São
cartografias de um lugar que remete ao infinito, oferecendo-nos um território sem muros, propício
à liberdade.
A geometria sensível do Neoconcretismo, um dos marcos mais recorrentes de nossas artes visuais,
foi apropriada e ultrapassada nas obras de Nelson Leirner e Lygia Pape. Eles adotaram o
construtivismo como ideia, a ironia como circuito, o kitsch como matéria e a autodeglutição como
prática. Em Construtivismo Rural (1999), Leirner realiza paródias de obras concretas, utilizando,
dessa vez, não a tinta automotiva ou industrial, mas o couro de boi. Leirner consegue,
ironicamente, alcançar a meta da arte construtiva, de estreitamento com a vida.
Nas obras de Pape, o texto perverte e inquieta as associações entre linguagem e imagem; ele não é
somente legenda, mas fundamentalmente significado e deboche. Não Pise na Grana (1996)
transgride as relações tradicionais da linguagem e da imagem. A obra é uma instalação, formada
por alfaces “cercadas” por tijolos. Nesse campo delimitado, uma placa é colocada sob as alfaces,
com a frase que dá nome ao título. O texto voltou para a função natural – servindo de suporte para
a imagem, nomeando-a, explicando-a, decompondo-a. Em Eu Como Eu, a imagem de dois frangos
comendo um outro, assado, não nos faz esquecer nosso passado antropofágico, que propunha a
deglutição do outro com o intuito de ganhar seus poderes. Na autodeglutição da mesma espécie,
imagem e palavra jogam com a diferença entre a sua natureza linguística e as coisas que se
pretende que refiram. Ambiguamente, Eu Como Eu pode, também, ser lida como expressão
afirmativa de alguém parecido consigo mesmo. Abrindo novas instâncias para a linguagem
construtiva, Tteia agrega a economia geométrica à luz como invenção de lugares. Tteia é
contraditória em sua aparição, porque é uma construção relativamente espetaculosa que se utiliza
de uma economia de elementos, partindo do cruzamento de planos e da exploração de engendrar
espaço a partir do jogo entre linha, cor e vazio.
Nas obras de André Komatsu, Matheus Rocha Pitta e Rafael Alonso, a aparição de um “qualquer
lugar” é latente. Não há indícios de uma “brasilidade” ou de reconhecimento de um território, mas
de uma linguagem universal que se dá pela precariedade de materiais ou pela própria aparição ao
mundo. Suas experimentações estão mais próximas de um diálogo transnacional do que local. Na
construção de distintas paisagens, esses artistas lançam mão de uma estética (irônica) que fica
entre a gambiarra (Komatsu), o espanto e a falsidade (Alonso), e, por meio de uma inversão de
escala, torna-se aparente um dado/entidade bem frequente na nossa economia (Pitta).
Os artistas brasileiros são percebidos por alguns curadores do hemisfério norte como ligados à
política ou ao exotismo, talvez por identificarem uma – curiosa – arte conceitual que conjuga
invenção e brasilidade, entendidas por boa parte dos “gringos” como uma sensibilidade
exuberante ou maliciosa. Nós como nós. Será?
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