china - jogos olímpicos
A China dentro de nós
texto / text Mia Couto
fotos / photos Carlos Matos / COP
“Ninho de Pássaro”, o grandioso Estádio Olímpico de Pequim, foi o palco para uma
extraordinária Cerimónia de Abertura dos Jogos de 2008 “Bird’s Nest”, Beijing National
Stadium, was home to the 2008 Summer Olympics opening ceremony spectacular
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A
China já foi o país mais
pequeno do mundo. E os
chineses foram o mais pequeno grupo humano do planeta.
Aconteceu quando eu era menino, o universo era um quintal
de brincar e os chineses cabiam
todos numas poucas ruas da
minha cidade natal. Naquele
tempo, na cidade da Beira, os
chineses não eram todos como
os de hoje, de pele clara e cabelos lisos. Muitos eram mulatos,
de cabelos crespos e pele castanha, frequentando as mesmas
igrejas e escolas dos europeus
da colónia.
Aconteceu no meu bairro de
nascença, o Maquinino. Eu saía
de casa rumo à Escola Primária
António Enes e passava pela loja
a que chamavam “a cantina do
chinês”, para comprar cadernos,
lápis e as recém-aparecidas esferográficas BIC. Ali me juntava
ao meu colega de turma, filho
do dono da loja. Esse mesmo
menino, de nome Ching, era reservado e sério como um adulto
que já gastou todos os sonhos. A
infância era, para ele, um serviço
a ser cumprido com profissional
diligência. A zelosa discrição de
Ching era para mim uma marca
de raça mais forte que os olhos
amendoados. Ser-se chinês era
ser-se assim, votado e devotado
ao silêncio. Ching sabia de aritmética mas não sabia responder
quando lhe perguntava onde e
como era a China. Porque ele nascera nesse mesmo bairro africano
e o mundo terminava ali, entre a
Munhava, a Manga e o Macuti.
foto / photo Wenn – Fototeca
Michael Phelps conseguiu um recorde de oito “Ouros”, enquanto Usain Bolt foi rei na velocidade
vencendo os 100m, 200m e 4x100m. Kenenisa Bekele dominou nos 5.000m e 10.000m,
distâncias onde só a Etiópia ganhou. O português Nelson Évora conquistou “Ouro” no triplo salto
Michael Phelps got an unprecedented eight “Golds”, while lighting Usain Bolt was speed king,
grabbing the 100m, 200m and the 4x100 meter relay titles. Kenesina Bekele mastered the
5000m and 10000m, where Ethiopia scooped all. And Portuguese Nelson Évora was Olympic
Champion Triple Jump
Em 1960, havia cerca de dois
mil chineses registados em Moçambique. Mais de metade deles
já tinham nascido em território
moçambicano e o meu pequeno
colega Ching era um desses descendentes de imigrantes. Quase
todos os setencentos chineses
que viviam na Beira tinham
origem próxima ou distante em
Cantão. Os pais falavam em cantonês entre eles, em português
com os filhos e em chissena com
os clientes. Uma alma assim distribuída só podia estar deitando
sementes no futuro.
Algumas vezes, aos domingos,
eu e Ching íamos de “burra” (era
assim que chamávamos às nossas bicicletas) pelas margens do
Chiveve, para ver os pescadores
de mussopo e as vendedoras
de marora. O pequeno chinês
olhava o poente sobre as águas
barrentas e seus olhos estreitos
pareciam ver paisagens para
além do oceano. Certo dia, ele
me convidou para assistir a um
desafio de basquetebol. Jogava
o seu clube do peito, o Atlético
Chinês.
“Meu pai não me deixa dizer
o nome do clube em português”,
confessou.
“E que outro nome tem o clube?”.
“É o Tung Hua Athelic Club”.
Ao pronunciar aquelas palavras, de um jacto, me pareceu, de
repente, que ele se tornava um
desconhecido. Mas o que Ching
pretendia era simplesmente que
eu testemunhasse as incomparáveis artes de uma jogadora que
Índico 49
Vanessa Fernandes foi Medalha de Prata no Triatlo. Samuel Wansiru, queniano, ganhou
a Maratona masculina que os africanos dominaram Portuguese Vanessa Fernandes
was Triathlon Silver Medal. Kenyan Samuel Wansiru won the men’s Marathon, where
Africans were predominant
integrava a selecção nacional
portuguesa nesse mesmo ano.
Chamava-se Sui Mei.
“Meu pai não me deixa chamar
assim essa jogadora”, voltou a
confessar.
“E como que lhe chamam, então?”.
“Swi Mai, é assim que lhe devemos chamar”.
Fosse Sui Mei ou Swi Mai, a
basquetebolista era uma exímia
jogadora. Mas não foi o desempenho desportivo que mais me
impressionou. O que me marcou,
para sempre, foi a graciosidade
sorridente com que ela evoluía
no campo como se o jogo fosse
um bailado partilhado e não uma
contenda entre lados opostos. A
afabilidade de Sui Mei parecia
estar curando a nossa cidade de
uma ferida secular.
“Veja o seu cabelo”, sugeria o
meu amigo Ching.
“O que tem?”.
“Veja como nem um fio se desamarra no rosto dela”.
A multidão quase fazia o estádio vir abaixo. Os jogadores
piruetavam pelo espaço, mas não
havia desalinho nem no sorriso
nem no cabelo da chinesa.
Certa vez, chegou à Beira
um primo de Ching vindo de
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Inhaminga. Ele era mulato, filho
de uma negra e de um militar
chinês fugido de Cantão. O pai
queria enviá-lo para estudar na
China. A mãe “raptou” o menino
e levou-o para as imediações de
Inhaminga. O miúdo cresceu ali,
nessa sombra longínqua, longe
do austero pai. Crescera-lhe o
corpo e acrescera a ânsia de
conhecer as suas origens. Ele
vinha agora à cidade para secretamente espreitar o progenitor.
Levámo-lo ao mercado e Ching
apontou entre a multidão:
“Ali, aquele é o seu pai!”.
O moço quedou-se, impassível,
e demorou um indefinido olhar
como se, em si mesmo, aquela
visão não tivesse onde morar.
Tentei perscrutar a alma do visitante: havia uma grande muralha
ocultando a sua intimidade.
No regresso, adivinhava-se nele
uma singela tristeza. Surpreendeu-me o crepitante convite de
Ching:
“E se fossemos assistir ao basquete? Hoje joga a Sui Mei, vamos
lá!”.
No banco de pedra do pavilhão,
enquanto se escutava a cadência
da bola como se fosse o pulsar
de um coração, o rosto tristonho
do primo se desanuviou a pontos
de um sorriso. Amarelo que fosse,
mas sorriso.
JOGOS OLIMPICOS,
JOGOS MÁGICOS
Quatro décadas mais tarde, na
sala da minha casa, os familiares
se posicionam em redor do televisor, como que à volta de um
luminoso oráculo.
“Vejam: já são imagens de Pequim!”.
“Não é Pequim, é Beijing”, emenda alguém.
Seja Pequim, seja Beijing, o
momento é quase religioso. A
cerimónia de abertura dos Jogos
Olímpicos de Beijing corresponde a um encantamento que nos
transporta à infância. Como ficou
longe o tempo em que a China era
uma nação pequena e os chineses
cabiam num pequeno bairro de
uma pequena cidade! A China, afinal, sempre foi enorme, uma potência ao longo de toda a História.
Esta festa, contudo, parece feita
para que eu regresse para além
das minhas próprias lembranças.
No espectáculo, a China viaja para
além da História, para além de si
mesma. E já não é a cerimónia
que eu vejo. São memórias que se
acendem dentro de mim.
De súbito, recordo o rosto sério
do pequeno Ching, percorrendo
com passo de missionário os
carreirinhos do Maquinino. O menino vem de longe, desse tempo
em que os sino-africanos eram
tidos como cidadãos de segunda
e aprendiam a envergonhar-se da
sua origem cultural e religiosa.
E agora, quando a bandeira
moçambicana se vislumbra no
estádio olímpico, eu relembro
o menino vindo de Inhaminga
para sarar o seu sentimento de
orfandade. E ninguém mais é
separado de seus familiares e a
mensagem da festa olímpica é
um lenço desfazendo tristeza no
rosto de todo menino distante da
sua própria infância.
Por fim, eis que a imagem de
Lurdes Mutola se acende no
televisor como se o seu rosto
fosse já um confirmar de vitória.
E nós festejamos ruidosamente
na sala, houvesse outras olimpíadas dentro daquela grande
celebração.
Aos poucos, renascem em
mim todos os sorrisos de Sui
Mei, essa que curava as feridas
das nossas vidas derrotadas. E,
de novo, somos todos naturais
desse território onde a pólvora foi
inventada para fazer brilhar fogos
de artifício.
china - olympic games
The China within us
C
hina used to be the smallest
country in the world. And
the Chinese were the smallest
group of people on the planet.
That was back when I was a boy,
the universe was a playground
and the Chinese all fitted into
a few streets in my home town.
At that time, in the city of Beira,
not all the Chinese were like
those of today, light skinned
and smooth haired. Many of
them were mulattos, with nappy
hair and brown skin, and they
went to the same churches and
schools as the Europeans in the
colony.
It happened in my neighbourhood, Maquinino. I would set off
from home to the António Enes
Primary School and stop by the
store called “the Chinese canteen”,
to buy exercise books, pencils
and the latest novelty - BIC biros.
There I would join my classmate
whose father owned the shop.
The boy, Ching by name, was as
reserved and serious as an adult
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who has already used up all his
dreams. For him, childhood was
a service to be despatched with
professional diligence. For me,
Ching’s zealous discretion was a
stronger indication of race than
almond-shaped eyes. That was
what it meant to be Chinese, being pledged to and devoted to
silence. Ching knew arithmetic
but he didn’t know how to reply
when I asked him where China
was and what it was like. Because
he had been born into that same
African neighbourhood and the
world began and ended there,
between Munhava, Manga and
Macuti.
In 1960, there were around two
thousand Chinese registered in
Mozambique. Over half of them
had been born in Mozambican
territory and my little schoolfriend Ching was one such offspring of immigrants. Almost all
of the seven hundred Chinese
who lived in Beira had direct or
distant origins in Canton. The
parents spoke Cantonese to
each other, Portuguese to their
children and Chissena with the
clients. A soul so diffused can
only be scattering seeds in the
future.
Sometimes, on Sundays, Ching
and I would take our “burras” (as
we called our bicycles) along
the banks of the Chiveve, to
watch the men catching mussopo (eel-kind fish) and the
women selling marora. The little
Chinese boy would look westwards over the clayey waters
and his narrow eyes seemed
to see landscapes beyond the
ocean. One day he invited me
to watch a basketball match.
His beloved club, the Atlético
Chinês, were playing.
“My father won’t let me say the
name of the club in Portuguese”,
he confessed.
“And what other name does it
have?”.
“It’s the Tung Hua Athletic
Club”.
As those words burst from
him, he suddenly seemed like
a stranger to me. But all Ching
wanted was for me to witness
the incomparable arts of a player
who joined the Portuguese national team that same year. She
was called Sui Mei.
“My father won’t let me call her
that”, he confessed once more.
“So what do they call her
then?”.
“Swi Mai, that’s what we should
call her”.
Whether she was Sui Mei or
Swi Mai, she was an excellent
basketball player. But it wasn’t
her sporting prowess that most
impressed me. What marked me,
for ever, was the smiling grace
with which she whirled on court
as if in a shared dance and not a
contest between opposing sides.
It felt like Sui Mei’s affability was
curing our city of a centuries-old
wound.
“Look at her hair”, suggested
my friend Ching.
“What about it?”.
“See how not a single strand
falls loose on her face”.
The crowd almost brought
the stadium down. The players
twirled around the space, but
neither the smile nor the hair of
the Chinese girl ever slipped.
Once, a cousin of Ching’s came
to Beira from Inhaminga. He was
a mulatto, the son of a black
woman and a Chinese soldier
who had fled from Canton. His
father wanted to send him to
study in China. His mother “kidnapped” the boy and took him
to the outskirts of Inhaminga.
He grew up there, in those distant shadows, far from his stern
father. His body had grown and
so had the yearning to know
his roots. Now he had come to
town for a secret peek at his
progenitor. We took him to the
market and Ching pointed into
the crowd:
“There, that one is your father!”.
The lad just stood there,
impassive, gazing blankly for
some time, as if he had nowhere
within him to harbour that vision.
I tried to probe the visitor’s soul:
there was a great wall hiding his
inner self.
On the way back, I sensed in
him a sincere sadness. Ching’s
spluttering invitation took me
by surprise:
“How about going to watch
some basketball? Sui Mei’s playing
today, come on, let’s go!”.
On the stone bench of the pavillion, listening to the cadence
of the ball like the beating of
a heart, the cousin’s sad face
cleared till it was trembling on a
smile. Sallow but still a smile.
OLYMPIC GAMES, MAGIC GAMES
Four decades later, in my sitting room, friends and family
are gathered around the television, crouched between us like
a luminous oracle.
“Look: they’re showing images
of Peking already!”.
foto / photo África Imagens Moçambique
Maria Mutola falhou as medalhas mas esteve na final dos 800m na sua sexta participação em
Jogos Olímpicos. A delegação moçambicana desfilando no Estádio Olímpico com Kurt Couto a
ser o porta-estandarte. O Presidente Guebuza confraternizou com os atletas Kurt Couto, Ximene
Gomes, Edson Madeira e Chakyl Camal This time Mozambican Maria Mutotola did not bring
home any medals but she tried her best at the 800m final, her 6th Olympic participation. The
Mozambique delegation walked through the Olympic Stadium, with Kurt Couto as the flag
carrier. President Guebuza fraternizing with athletes Kurt Couto, Ximene Gomes, Edson Madeira
and Chakyl Camal
“It’s not Peking, it is Beijing”,
someone says.
Peking or Beijing, whatever, the
moment is almost religious. The
opening ceremony of the Beijing
Olympic Games is a spell that
carries us back to childhood. How
long ago it was when China was
a small nation and the Chinese
fitted into a little neighbourhood
of a small town! In the end, China
was always immense, a power
throughout all of History. This
party, however, seems made for
me to go back beyond my own
memories. In the pageant, China
travels beyond History, beyond
itself. And it’s no longer the ceremony that I see. It is memories
lighting up inside me.
I suddenly remember little
Ching’s serious face, as he trotted
along the roadways of Maquinino with his missionary step.
The boy comes to me from way
back, from that time when the
Chinese-Africans were seen as
second-class citizens and learned
to be ashamed of their cultural
and religious origins.
And now, when the Mozambican flag is glimpsed in the
Olympic stadium, I remember the
boy who came from Inhaminga to
cure his sense of being orphaned.
And no-one is separated from
their families any more and the
message of the Olympic party is a
handkerchief wiping the sadness
from the face of every little boy
cut off from his own childhood.
Finally, there is the image of
Lurdes Mutola lighting up on
screen as if her face was already
a confirmation of victory. And
we celebrate noisily in the sitting room, as if there were other
Olympiads within that great
celebration.
Little by little, all of Sui Mei’s
smiles are reborn in me, that girl
who healed all the wounds of our
defeated lives. And, once again,
we are all children of that land
where gunpowder was invented
to make fireworks sparkle.
Índico 53
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