A CONSTRUÇÃO DO LEITOR NO MUNDO VIRTUAL SIMONE MARIA BACELLAR MOREIRA (FFP-UERJ) RESUMO: Com os computadores e a Internet cada vez mais incorporados às nossas atividades quotidianas notam-se, por influência destes, modificações nas relações humanas e conseqüentemente na própria percepção do mundo. No campo da literatura, a Web parece ser um componente a mais do sistema literário, dialeticamente prolongando-o e alterando-o no ciberespaço. Assim, faz-se necessário repensar as práticas sócio-culturais de leitura e de escrita, com o surgimento de uma possível literatura virtual em face à literatura já consagrada e, profundamente, ligada à cultura do papel. O século XXI começou sob o impacto da rapidez com que ocorrem os avanços tecnológicos. A Internet com blogs, emails, sites de relacionamentos como Orkut, são instrumentos que cada vez mais fazem parte do quotidianos dos jovens de todas as faixas etárias. A história moderna é marcada por um grande progresso nos meios de comunicação, o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, o fax e a Internet. Essas máquinas deslocaram o livro de seu papel central como transmissor de cultura de massa no século XX. A partir da invenção do rádio e da televisão, começa o domínio dos meios audiovisuais na difusão de informação e cultura. Atualmente, a Internet promete a interação entre as artes, uma tendência atual.Todas as nossas atividades estão sendo incorporados ao computador. Fazemos compras de livros, de produtos eletrônicos, pagamos contas, fazemos transações bancárias, namoramos, tudo pelo computador. Não é de se espantar que o livro também seja adaptado a esse contexto. A princípio, a idéia parece assustadora, e até mesmo absurda, como foi assustador para o mundo grego a passagem da cultura oral para a escrita. Pesquisa recente feita pelo Centro de Integração Empresa-Escola1, na cidade do Rio de Janeiro, revela que quase a metade dos estudantes (43%) vem substituindo a atividade do mundo real como a prática de esporte, de dormir, de ler e, até mesmo, sair com amigos, para ficar horas navegando pela Internet. Estamos diante de um novo leitor, o leitor-navegador, que diante de uma infinidade de links disponibilizados na web, esco1 FONTE: Pesquisa feita pelo Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) entre os dias 1 a 7 de agosto de 2007, com 463 estudantes dos ensinos superior e médio. 2 lhe seu próprio caminho no mundo virtual, instaurando outros paradigmas nas relações entre autores, textos e leitores. Para este leitor, principalmente os jovens, o principal atrativo da rede é a grande possibilidade de interação. Nesse suporte, é possível entrar em contato e trocar idéias com pessoas de qualquer parte do mundo, com línguas e culturas diferentes, e, ainda, satisfazer suas curiosidades sobre os assuntos de seu interesse. Neste ciberespaço, (LÉVY, 1999, p. 92) “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores”, os navegadores vão construindo comunidades em torno de interesse comum. Diante dessas inovações, a escola não poderia ficar indiferente a esta nova realidade dos usos lingüísticos. Segundo Marcuschi (2004, p.19), apesar de a Internet integrar imagem, som e movimento, a escrita continua essencial na integração desses três elementos. Observando os blogs, (MARCUSCHI, 2004, p. 61) “diário pessoal na ordem cronológica com anotações diárias ou em tempos regulares que permanecem acessíveis a qualquer um na rede.”, notamos algumas peculiaridades em relação ao uso da linguagem com o uso coloquial, condensamento das palavras, com uma abundância de siglas, abreviaturas, a supressão dos acentos e das vogais. Já é possível acessar blogs escolares, nos quais encontramos trabalhos realizados em equipes, anotações de aulas, discussões e elaborações de projetos. Várias possibilidades são oferecidas no âmbito escolar com essa ferramenta. 3 Desta forma, a reflexão sobre o letramento digital é inevitável. Consideremos a definição dada por Magda Soares (2002): Letramento digital, isto é, um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e da escrita na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel. A literatura está na Internet também através de bibliotecas on-line, sites especializados, comerciais ou pessoais. Poemas digitais ou eletrônicos, como se autodenominam, podem ser encontrados em vários sites, interagindo arte e tecnologia. Multiplicam-se editoras de livro eletrônico, bibliotecas virtuais, bate-papos e conferência online sobre temas literários, ponto de encontro entre leitores e escritores. Como toda essa tecnolgia pode alterar nossa relação com o texto e com a literatura? Na década de 50, os poetas concretistas, como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, desenvolveram poemas brincando com o aspecto sonoro dos significantes e com imagens, criando videopoesias. Eles propuseram uma poesia visual e verbal ao mesmo tempo. Esse movimento literário parece aproximar a literatura da multimídia. Será que esse é o futuro da poesia e da literatura, ou apenas mais um gênero literário? Acreditamos ser necessário, primeiramente, fazer uma distinção importante na produção textual gerada pela tecnologia eletrônica. A primeira seria a reprodução de livros impressos no 4 meio digital, o que parece tornar o computador apenas uma máquina reprodutora de textos, como acreditam alguns escritores, segundo Zilberman (2001, p.106): (...) leitura e escrita antecedem e sucedem os meios utilizados para sua gravação num dado tipo de material, de modo que a troca desse por outro – disco rígido, disquete de plástico, CD de alumínio ou site na Internet – representa tão somente um outro passo (ou vários) na direção do progresso e do aperfeiçoamento tecnológico. Se, por um lado, são visíveis as vantagens do ciberespaço, como a facilidade de acesso a textos literários, até mesmo aos textos clássicos, existe, entretanto, uma preocupação muito grande quanto à fidelidade desses textos. O que nos garante, realmente, a autoria desses textos? A outra alteração, talvez mais profunda, significativa e de maior impacto para a literatura, diz respeito à nova linguagem que se inaugura com a escrita eletrônica, os hipertextos: (...) possibilidade de conexões imediatas entre blocos de significados interligados em um vasto banco de dados,constitui uma nova forma de textualidade que altera o significado do ato de ler e dos conceitos de autor e leitor. O que caracteriza formalmente essa nova forma de textualidade é o que poderíamos chamar de paradigma da rede mais ou menos aberta, em contraste com o paradigma da linha. (BELLEI, 2002, p. 68) Mas será que o livro de papel pode ser visto realmente como um bloco monolítico e estável em oposição a uma 5 flexibilidade e dialética do texto eletrônico? Há que se reconhecer que “o tecido literário é fino e delicado, mas não maciço: contém orifícios, mimetizando a porosidade construtiva do papel, e por essa superfície, propensa à absorção do outro, penetra o leitor” (ZILBERMAN, 2001, p. 118-9). Livro só existe no plural. De modo que não há como abrir um único, sem com isso o outro, e assim acionar a espiral que, par a par, outros abrirá; o mesmo que a mão dentro do bolso surpreendesse outro e, nesse um , outros bolsos em seqüências infinitas, à semelhança de uma dízima; e em cada qual houvesse chaves de cofres há muito saqueados, de gavetas que nenhuma abre, da cidade depois dos bárbaros, porque chegamos sempre tarde. (FURTADO, 2002, p. 32) A partir da disseminação dos suportes textuais eletrônicos, os textos parecem se configurar numa estrutura fragmentada, descentralizada e não-linear, em que blocos de textos são ligados eletrônicamente (links), cabendo ao leitor definir seu próprio caminho. Assim, enquanto o leitor parece ganhar, cada vez mais, uma autonomia na leitura, o escritor parece perder o controle do texto. Wolfgang Iser, na “Estética do efeito”, analisando a relação entre autor, leitor e livro escrito, desloca o caráter central do 6 autor, como controlador da produção de sentido de sua obra, declarando que a obra literária possui lacunas, silêncios que devem ser preenchidos pelo leitor: “o próprio texto é pontuado por lacunas e hiatos que têm que ser negociados no ato de leitura” (ZILBERMAN, 1989, p. 28). A estrutura do texto é entendida como sendo “segmentos determinados interligados por conexões interdeterminadas” (Id., ibid.). Desta forma, a leitura independentemente do meio físico em que é produzida, é um trabalho de reescrita, no qual o leitor é levado a explorar inúmeros caminhos e a fazer relações com os textos anteriormente lidos. Esse modelo [estrutura do texto de Iser] já continha uma estruturação cibernética, à medida que a interação texto/leitor apenas podia ser concebida em termos de looping recorrente (recursive looping). O leitor aciona o intercâmbio entre output e input e assim corrige as futuras performances do texto através de suas realizações prévias. (ZILBERMAN, 1989, p.55) São nítidas as inovações na relação entre escritor, leitor e editora no ciberespaço. Nesse ambiente, encontramos uma relativa facilidade de acesso e de barateamento dos custos de publicação de textos. A maioria de escritores não consagrados vêm nesse tipo de veículo uma grande oportunidade de expor seus trabalhos, driblando, assim, as dificuldades dos meios tradicionais. O autor pode suprimir a intermediação do editor e enviar diretamente ao leitor seu texto, cabendo a este transformálo em um objeto material, ao imprimi-lo. 7 O texto, muitas vezes, é escrito a muitas mãos; os leitores opinam sobre os rumos da narrativa, alterando-a. Nesse sentido, a questão dos diretos autorais merece maior análise na Web. É bem verdade que a Web modifica várias relações do campo literário, entretanto, seria ingênuo acreditar que os meios eletrônicos podem romper totalmente com a tradição cultural do livro impresso. Para muitos escritores novatos, a Web é vista como um meio para adquirir apoio e orientação na busca de um sonho: ver seus textos impressos. Notamos claramente a intenção, da Internet como uma intermediária entre o escritor e a editora, em sites como “Sociedade dos poetas vivos” que se apresenta: Sociedade dos poetas vivos é uma entidade aberta a poetas que visitam este site. Por isso esperamos contar com farto material. Em pouco tempo, pretendemos editá-los num livro com a participação dos internautas. A participação de editora é bem-vinda e necessária neste processo. Por isso, pedimos, aos editores que apreciem nosso material e que, caso haja interesse, nos conctatem. Com o aparecimento da Internet, tornou-se possível disponibilizar para leitura uma infinidade de textos a um custo muito baixo. No campo da literatura, a Web parece um componente a mais do sistema literário, dialeticamente prolongando-o e alterando-o no ciberespaço. Desta forma, encontramos contos, crônicas, resenhas de livros, dicas e orientações de escritores, além de uma grande variedade de bibliotecas virtuais com textos 8 dos clássicos da literatura brasileira e mundial. o crescimento da Web transformou-a num poderoso banco de textos e hipertextos. Curiosamente, assistimos a um processo de digitalização de acervos de importantes bibliotecas. Num tempo em que as pessoas se dizem muito ocupadas para ler, mas sempre conseguem um “tempinho” para navegar na Internet, poderíamos supor que elas estão tendo um contato maior com a escrita, a leitura e a literatura? Poderíamos supor ainda que quem pouco leu e lê no livro de papel, seria um melhor leitor no suporte eletrônico? Concordaríamos com o pesquisador francês Roger Chartier quando afirma que “hoje se lê mais que nos anos 50. (...) No computador, tanto se lê os clássicos como publicações acadêmicas e revistas em geral. Podem não ser necessariamente leituras fundamentais, enriquecedoras, mas são leituras” (2004)? Se a biblioteca de livros impressos é demasiadamente pesada e onerosa, principalmente em países como o nosso, poderíamos acreditar que a virtual seria uma solução para o problema da crise da leitura? É evidente que presenciamos muita resistência à leitura dos textos na tela de cristal líquido. Entretanto, sobretudo nos Estados Unidos, a sala virtual já é uma realidade em muitas escolas. Será que esse jovem leitor americano já não se sente tão adaptado ao novo ambiente, que poderia dispensar a biblioteca real, o lápis e a caneta, em virtude da grande disponibilidade de possibilidades de interação dessa tecnologia? 9 Concordamos com Lévy (1999, p. 12) quando nos convida à reflexão: Peço apenas que permaneçam abertos, benevolentes, receptivos em relação à novidade. Que tentemos compreendêlo, pois a verdadeira questão não é ser contra ou a favor, mas sim reconhecer as mudanças qualitativas na ecologia dos signos, o ambiente inédito que resulta da extensão das novas redes de comunicação para a vida social e cultural. Referências bibliográficas: 10 ARAÚJO, Emanuel. A construção do livro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador – conversações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmerllo Corrêa de Noraes. São Paulo: UNESP, 1997. ISER, Wolfgang. Teoria da ficção – indagações à obra de Wolfgang Iser. Trad. Bluma Waddington Vilar e João C. de Castro Rocha (Org.), Rio de Janeiro: Eduerj, 1999. FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Corpo portátil (1986-2000). São Paulo: Escrituras, 2002. KOCH, I. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p. 143-60, dez 2002. ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim do leitor? São Paulo: SENAC, 2001. WEBGRAFIA. Entrevista com Roger Chartier por Isabel Lustosa. Acesso em 11/11/2004. //pphp.uol.com.br/tropico/html/textos /2479,1.shl. 11