Universidade Federal de Uberlândia PROGRAD – Pró Reitoria de Graduação Brincando em cima daquilo De Dario Fo e Franca Rame Tradução de Michele Piccoli e Roberto Vignati Obs: cena adaptada para fins da prova de Habilidade Específica do Curso de Artes Cênicas/UFU Elementos cenográficos: Uma sala de uma casa qualquer. Duas portas nas laterais do palco. A da direita é a entrada do apartamento; a da esquerda é do quarto de dormir. No fundo, uma porta que dá para a cozinha. Uma mesa e uma banqueta. Uma mulher entra no palco carregando um cesto cheio de roupas para passar. O rádio está no último volume. A mulher se debruça na janela imaginária e fica olhando prazerosamente para fora. De repente, surpresa, constata que tem alguém no prédio em frente e grita: ATO ÚNICO Senhora! Hei, senhora! Bom dia! Quando foi que a senhora mudou? Eu tinha certeza que esse apartamento ainda estava vazio. Estou muito feliz que... (berrando) Estou dizendo que estou muito contente... não está ouvindo? Ah! Sim, tem razão, o rádio... Um momento... (vai desligar o rádio) Desculpe, mas quando estou em casa sozinha, se não fico com o rádio no último volume, tenho sempre a sensação de que vou acabar me enforcando. Neste quarto (porta da esquerda), tenho sempre uma vitrola ligada... (abre a porta. música) Está ouvindo? (fecha a porta) Na cozinha deixo ligado o gravador (porta da direita; abre; música) Ouviu? (fecha a porta) Só assim eu acho que tenho companhia em todos os lugares, entende? (continua falando e começa a fazer alguns trabalhos de casa: escova uma roupa, costura botões, passa roupa etc) Não, no meu quarto não, era só o que faltava! No meu quarto, tenho uma televisão.... É, sempre ligada. Exatamente... no último volume. Sim, gosto muito de música... qualquer tipo... desde que faça barulho, já me faz companhia... E a senhora, tem que tipo de companhia? Ah! Eu também tenho um filho... aliás, dois... tinha esquecido... Acho que foi a emoção de estar falando com a senhora... Mas os meus não fazem companhia não. A menina já é mocinha e o menino está sempre dormindo! Não, mas eu não me queixo, eu estou muito bem na minha casa... não me falta nada... Tenho tudo!,,, geladeira. Eu sei que todo mundo tem geladeira. Mas a minha faz o gelo de bolinhas! Tenho máquina de lavar roupa que lava, torce e enxuga com água quente. Ela enxuga tanto, tanto que, às vezes, eu tenho que molhar toda a roupa novamente, pra poder passar. Tenho panela de pressão... três. Liquidificador... dois. Mas com tudo isso, a senhora pode não acreditar, mas eu me sinto uma mulher sozinha... Empregada? Tinha uma que sem mais nem menos sumiu. Depois veio outra... que também sumiu. Não é por minha culpa. (embaraçada) É por causa do meu cunhado... É, ele mexe muito com elas. Mexe, entende? É doente... Tarado! Elas se revoltavam. (trabalha enquanto fala) Ele teve um acidente... de carro... imagina, tão jovem, 30 anos e já ficou todo quebrado! Está Universidade Federal de Uberlândia PROGRAD – Pró Reitoria de Graduação engessado da cabeça aos pés. Sabe que tiveram de engessar ele sentado mesmo, pra ficar numa posição mais cômoda?!... deixaram só a mão e um buraquinho pra ele respirar e comer... Não, não consegue falar nada... Os olhos? Não sofreram nada... É, se distrai... Ele lê... lê muito... se atualiza... histórias pornográficas em quadrinhos. Tem o quarto cheio de revistas nojentas... Quem cuida dele? Sou eu, infelizmente. Mas faço isso pelo meu marido... (telefone toca) Deve ser meu marido... ele sempre liga nessa hora.... (atende) Alô?... Como?... Vai tomar no cú! (desliga) Desculpe o palavrão. (está nervosa) Não, não era meu marido não. Era o tarado telefônico! Me telefona duas, três... mil vezes por dia. (telefone) Arr! É ele outra vez! (atende) Seu porco, estou lhe avisando... (muda o tom) Oi, Aldo, querido... (para a vizinha) É o meu marido! (no telefone) Não, não era com você, querido... pensava que fosse... é que tem um cara que telefona sempre pedindo pra falar com você e fala palavrões horríveis... Diz que está furioso, que você está devendo a ele... (muda o tom) É claro que estou em casa... Jurar pra que, Aldo? Está bem, eu juro. Não saí. Não! Como posso sair? Não, não tem ninguém em casa... Desculpa, eu sei que seu irmão é gente, mas é que ele não está aqui, está no quarto, vendo “as revistas”. O menino está dormindo... Sim, já dei comida pra ele... já fez xixi sim. (irritada) Seu irmão também. Não, não estou nervosa. Só estava dizendo que você pode ficar tranqüilo que aqui todo mundo já fez xixi. Tchau! Ahn? Por que estou alegre? Porque eu estou passando um monte de roupa! (desliga) A senhora viu? Tive de contar uma mentira... se ele souber do tarado telefônico é capaz de mandar cortar o telefone... Como se já não bastasse me manter trancada em casa. Toda manhã quando sai, ele me tranca a sete chaves. Fico prisioneira na minha própria casa.