ISSN 1980-1858
GUAVIRA
LETRAS
Programa de Pós-Graduação em Letras
UFMS/Campus de Três Lagoas
Guavira Letras
Três Lagoas, MS
n. 15
493 p.
ago./dez.2012
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Reitora
Célia Maria da Silva Oliveira
Vice-Reitor
João Ricardo Filgueiras Tognini
Pró-Reitor de Pós-graduação
Dercir Pedro de Oliveira
Diretor do Campus de Três Lagoas
José Antônio Menoni
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras
Kelcilene Grácia Rodrigues
Editores
Rauer Ribeiro Rodrigues (Chefe)
Taísa Peres de Oliveira (Adjunta)
Kelcilene Grácia-Rodrigues (Secretária)
Claudionor Messias da Silva (Técnico)
Editoração e Diagramação
Rauer Ribeiro Rodrigues
Organizadores e Coordenadores deste volume
Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP)
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
Os autores são responsáveis pelo texto final, quanto
ao conteúdo e quanto à correção da linguagem.
© Copyrigth 2012 – os autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(UFMS, Três Lagoas, MS, Brasil)
G918
Guavira Letras: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras
/ Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e PósGraduação em Letras. – v. 15 (2.semestre, 2012), 493 p. - Três Lagoas, MS, 2012 Semestral.
Descrição baseada no: v. 11 (ago./dez/ 2010)
Tema especial: Poéticas do Conto
Organizadores: Rauer Ribeiro Rodrigues e Luiz Gonzaga Marchezan
Editor: Rauer Ribeiro Rodrigues
ISSN 1980-1858
1.
Letras - Periódicos. 2. Estudos Literários
I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de
Graduação e Pós-Graduação em Letras. II. Título.
(Revista On-Line: http://www.pgletras.ufms.br/revistaguavira/revista_online.htm)
CDD (22) 805
_____________________________________________________________________________________
____________________
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
3
GUAVIRA LETRAS 15
Conselho Editorial
Eneida Maria de Souza (UFMG)
João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis)
José Luiz Fiorin (USP)
Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD)
Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara)
Maria José Faria Coracini (UNICAMP)
Márcia Teixeira Nogueira (UFCE)
Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG)
Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra – Portugal)
Roberto Leiser Baronas (UNEMAT)
Sheila Dias Maciel (UFMT)
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM)
Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS)
Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália)
Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)
Conselho Consultivo
Alice Áurea Penteado Martha
Álvaro Santos Simões Júnior
Ana Cláudia Coutinho Viegas
Ana Lúcia de Souza Henriques
Ana Maria Domingues de Oliveira
Antonio Carlos Silva de Carvalho
Arnaldo Franco Junior
Benedito Antunes (Unesp)
Benedito José Veiga
Clara Ávila Ornellas
Günter Karl Pressler
Igor Rossoni
José Batista de Sales
José Luís Jobim de Salles Fonseca
Katia Aily Franco de Camargo
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
4
Kelcilene Grácia Rodrigues
Leoné Astride Barzotto (UFGD)
Luiz Gonzaga Marchezan
Marcelo Módolo (USP)
Maria Eulália Ramicelli
Maria Eunice Moreira
Maria Zilda Ferreira Cury
Marilene Weinhardt
Marlí Tereza Furtado
Mauro Nicola Povoas
Odalice de Castro e Silva
Pedro Brum dos Santos
Rafael José dos Santos
Rauer Ribeiro Rodrigues
Regina Kohlrausch
Sérgio da Fonseca Amaral
Socorro Fátima Pacífico Vilar Barbosa
Taísa Peres de Oliveira
Tânia Regina Oliveira Ramos
Wiebke Röben de Alencar Xavier
Wilma Patrícia Maas
Todos os pareceristas são professores doutores. Os
laudos, circunstanciados, foram — quando
necessário — enviados aos autores, para que os
artigos passassem por revisão, correções e ajustes.
Os artigos que compõem essa edição foram
recebidos ou reapresentados em out./2012 e
aprovados em meados de dez./2012.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
5
APRESENTAÇÃO
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
6
O CONTO ESTÁ EM FORMA E SE RENOVA
Guavira 15 - Apresentação
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP)
Ao propormos a chamada para o dossiê deste número da Guavira
Letras, traçamos as seguintes diretrizes:
Poéticas do conto
Os contistas paradigmáticos da literatura universal.
Teoria e prática do conto: o estado da arte no século XXI.
Revisão bibliográfica do gênero conto.
O conto brasileiro na interface com a história do conto.
Aspectos teóricos do conto, da fábula ao microconto.
O conto como instrumento pedagógico no ensino fundamental.
Os contos precursores em língua portuguesa.
O conto brasileiro pela análise de seus maiores contistas.
O conto como gênero e a história da literatura.
A contribuição latino-americana para a teoria do conto.
A forma literária do conto e as novas mídias
São onze itens, abrangendo da proposição inicial do conto moderno
— elaborada no próximo e, no entanto, longínquo oitocentos — às
tendências do gênero nesse amanhecer do terceiro milênio, da teoria à
análise, do estudo intrínseco às práticas pedagógicas no âmbito do ensino
de literatura.
O retorno à chamada foi muito acima do esperado: oitenta e dois
textos foram submetidos; três foram devolvidos de imediato e vinte e sete
foram selecionados para comporem a presente edição, em índice de
aproveitamento de 33%, o que nos parece um percentual bastante
elevado, uma vez que os critérios de avaliação consideram se o texto
contribui para o estado da arte no âmbito dos estudos literários quanto ao
tema abordado, tendo por parâmetros a relevância, originalidade e
resultados, se é apresentado em conformidade com a norma culta e
apresenta bibliografia atualizada, coerência conceitual, adequação
metodológica, consistência argumentativa e, quanto à linguagem técnicocientífica, objetividade e clareza.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
7
O volume contém três resenhas, sobre obras de Angela Carter,
Salma Ferraz e Manoel de Barros, assinadas por Tânia Regina
Zimmermann (UEMS), Christina Bielinski Ramalho (UFS) e Rodrigo da
Costa Araújo (FFCL-Macaé). Na seção Artigos, são quatro textos que se
enquadram perfeitamente na chamada do número anterior, organizado
pelos professores Roberto Acízelo (UERJ) e Kelcilene Grácia-Rodrigues
(UFMS), com o mote Literatura / Crise; são os seguintes: Luiz Heleno
Montoril del Castilo (UFPA), que discute ―Literatura intempestiva: crise
de seu ensino‖; Lizandro Carlos Calegari (URIAUIM) e Vanderleia de
Andrade Haiski (Athus Idiomas), que assinam o texto ―Holocausto,
representação e trauma em Quero viver... memórias de um ex-morto, de
Joseph Nichthauser: a literatura de testemunho no Brasil‖; Lidiane Alves
do Nascimento (EMNAP) e Solange Fiuza Cardoso Yokozama (UFG),
com o texto ―Leminski e a poesia concreta‖; e Annita Costa Malufe
(USP), com o estudo ―Marcos Siscar e o verso em crise‖.
No âmbito do Dossiê Poéticas do Conto constatamos três grandes
blocos: um que discute os fundamentos teóricos do gênero, com três
artigos; outro que analisa a narrativa curta em diversas vertentes, com
onze estudos; e, por fim, um bloco com seis ensaios sobre as tendências
do conto no primeiro decênio do século XXI, voltando-se, em específico,
para o estudo dos fundamentos teóricos que embasam o boom do
microconto.
No primeiro bloco, o professor, pesquisador do conto e ficcionista
Charles Kiefer (PUC-RS) apresenta ―A obscura e reiterada presença de
Edgar Alan Poe em Julio Cortázar‖, assinalando uma das vertentes do
conto moderno, o assim nomeado conto de enredo; Henrique de Oliveira
Lee (UFMT), com ―Um Artista da Fome: resíduos para uma doutrina da
arte?‖, apresenta a dissonante voz de Franz Kafka; e Julio Augusto Xavier
Galharte (UEMS), com ―Os contos de Machado de Assis e Anton
Tchekhov: um pequeno e ampliado diálogo de reticências e silêncios‖,
trata do nomeado conto de atmosfera, a outra vertente do conto
moderno.
O segundo bloco apresenta estudos no âmbito do conto fantástico,
do conto regionalista, da discussão do cânone do conto brasileiro do
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
8
século XIX e do conto feminino, abrangendo autores brasileiros,
portugueses, argentinos, franceses e norte-americanos. São os seguintes:
Ana Luiza Silva Camarani (UNESP), com o artigo ―Conto fantástico e
conto regionalista‖; Fernanda Aquino Sylvestre (UFCG), com ―Uma
leitura do Southern Gothic em ‗Uma rosa para Emily‘, de William
Faulkner‖; Luiz Carlos Santos Simon (UEL), com ―Um lugar menos
discreto para o contista Arthur Azevedo‖; Mayara Ribeiro Guimarães
(UFPA), com ―Dos desastres de Sofia‖; Mariana Sbaraini Cordeiro
(Unicentro) e Alamir Aquino Corrêa (UEL), com ―Aquela que não só
contou um conto – a Sherazade brasileira‖; Alcione Corrêa Alves (UFPI),
com ―Teseu, o labirinto e seu nome‖; Leticia Baron Bortoluzzi (Aliança
Francesa) e João Claudio Arendt (UCS), com ―A outra faceta do eu: o
fantástico e o duplo no conto ‗A insolação‘, de Horacio Quiroga‖;
Josilene Pinheiro-Mariz (UFCG), com ―Relações Brasil-França a partir de
contos fantásticos‖; Fausto Calaça Galvão de Castro (UFMT) e Luane
Vilaça Nogueira da Silva (G-UFMT), com ―Escrita do eu e psicanálise na
‗Teoria do Conto‘, de Balzac‖; Cila Maria Jardim (UNIP), com ―A
produção contista queirosiana‖; e Adriano Loureiro (PM-SP) e Rosane
Gazolla Alves Feitosa (UNESP), com ―Eça de Queirós e Miguel Torga: o
humanismo no conto português‖.
No terceiro bloco, nossos colaboradores se voltam para a poética do
conto na primeira década do século XXI, tendo por foco a
miniaturização do gênero, do qual emerge subgênero denominado de
diversos modos, com aparente predominância, em português, para a
forma ―microconto‖. Assim, Cristina Álvares [Maria Cristina Daniel
Álvares] (Universidade do Minho, Portugal) trata das características
básicas da forma que toma forma, com o texto ―Quatro dimensões do
microconto como mutação do conto: brevidade, narratividade,
intertextualidade, transficcionalidade‖; Márcia Romero Marçal (FMU)
mostra como paradigmas narrativos modelares são retomados em ―O
modo de representação irônico no uso de arquétipos literários em dois
contos breves de Ana María Matute‖; Rita Patrício (Universidade do
Minho, Portugal), em ―Algumas questões de gênero a propósito dos
microcontos de Rui Manuel Amaral‖, através do processo de close reading
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
9
mostra o microconto como ―experimentação das possibilidades e dos
limites da delimitação genológica como condição de leitura‖ do ―universo
microficcional‖; por sua vez, Miguel Heitor Braga Vieira (UENP), estuda
a técnica de miniaturização dos procedimentos narrativos e elipses
narrativas em ―Dalton Trevisan: um minificcionista por excelência‖;
também sobre a ficção do autor curitibano se debruça Sérgio Guimarães
de Sousa (Universidade do Minho, Portugal) em ―As folias fesceninas do
‗vampiro de Curitiba‘. Sobre as ‗ministórias‘ de Dalton Trevisan‖; por
fim, Kayanna Pinter (G-UEOP) e Regina Coeli Machado e Silva (UEOP)
fecham o dossiê — retomando Edgar Allan Poe e Julio Cortázar como
basilares na formulação teórica do microconto e discutindo ainda a
ficcionalização do autor e a importância do leitor na constituição do
microconto atual — com o artigo ―Quem conta um conto, diminui um
ponto: Marcelino Freire e a contística contemporânea‖.
Dessa relação, salta aos olhos a diversidade da filiação dos autores:
são nada menos que vinte e cinco diferentes instituições em que atuam os
colaboradores desta edição, quase todos ligados a algum programa de
pós-graduação de nível de doutorado, sendo que muitos deles já são pósdoutores. Além disso, esses colaboradores são oriundos dos mais
diversos centros de formação, tendo se doutorado nas seguintes
instituições: Indiana University, PUC-RS, UEL, UFF, UFMG, UFRGS,
UFRJ, UFSC, UFSM, UnB, UNESP, Unicamp, Universidade do Minho
(Portugal) e USP, em um total de catorze diferentes instituições, sendo
duas do exterior.
Dos textos selecionados, em seu conjunto, e daqueles que compõem
o Dossiê, em específico, podemos perceber que o conto está em forma e
se renova.
Leia, nas próximas páginas, estudos que demonstram o que aqui se
afirma.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
10
SUMÁRIO
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
11
Guavira Letras 15
dezembro/2012
Orgs.:
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP)
APRESENTAÇÃO
O conto está em forma e se renova
Rauer Ribeiro Rodrigues, Editor – UFMS
Luiz Gonzaga Marchezan, Organizador - UNESP
6
DOSSIÊ: POÉTICAS DO CONTO
A obscura e reiterada presença de Edgar Alan Poe em Julio Cortázar
Charles Kiefer
Um Artista da Fome: resíduos para uma doutrina da arte?
Henrique de Oliveira Lee
Os contos de Machado de Assis e Anton Tchekhov: um pequeno e
ampliado diálogo de reticências e silêncios
Julio Augusto Xavier Galharte
Conto fantástico e conto regionalista
Ana Luiza Silva Camarani
Relações Brasil-França a partir de contos fantásticos
Josilene Pinheiro-Mariz
Uma leitura do Southern Gothic em ―Uma rosa para Emily‖, de William
Faulkner
Fernanda Aquino Sylvestre
Um lugar menos discreto para o contista Arthur Azevedo
Luiz Carlos Santos Simon
Dos desastres da Sophia
Mayara Ribeiro Guimarães
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
16
33
45
65
81
102
116
135
12
Aquela que não só contou um conto – a Sherazade brasileira
Mariana Sbaraini Cordeiro; Alamir Aquino Corrêa
Teseu, o labirinto e seu nome
Alcione Corrêa Alves
A outra faceta do eu: o fantástico e o duplo no conto ―A insolação‖,
de Horacio Quiroga
Leticia Baron Bortoluzzi; João Claudio Arendt
Relações Brasil-França a partir de contos fantásticos
Josilene Pinheiro-Mariz
Escrita do eu e psicanálise na ―Teoria do Conto‖ de Balzac
Fausto Calaça Galvão de Castro; Luane Vilaça Nogueira da Silva
A produção contista queirosiana
Cila Maria Jardim
Eça de Queirós e Miguel Torga: o humanismo no conto português
Adriano Loureiro; Rosane Gazolla Alves Feitosa
Quatro dimensões do microconto como mutação do conto: brevidade,
narratividade, intertextualidade, transficcionalidade
Cristina Álvares [Maria Cristina Daniel Álvares]
O modo de representação irônico no uso de arquétipos literários em
dois contos breves de Ana María Matute
Marcia Romero Marçal
Algumas questões de gênero a propósito dos microcontos de Rui
Manuel Amaral
Rita Patrício
Dalton Trevisan: um minificcionista por excelência
Miguel Heitor Braga Vieira
As folias fesceninas do ‗vampiro de Curitiba‘. Sobre as ―ministórias‖
de Dalton Trevisan
Sérgio Guimarães de Sousa
Quem conta um conto, diminui um ponto: Marcelino Freire e a
contística contemporânea
Kayanna Pinter; Regina Coeli Machado e Silva
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
147
177
190
208
222
237
255
282
301
322
338
374
13
ARTIGOS
Literatura intempestiva: crise de seu ensino
Luís Heleno Montoril del Castilo
Holocausto, representação e trauma em Quero viver... memórias de um exmorto, de Joseph Nichthauser: a literatura de testemunho no Brasil
Lizandro Carlos Calegari; Vanderléia de Andrade Haiski
Leminski e a poesia concreta
Lidiane Alves do Nascimento; Solange Fiuza Cardoso
Yokozawa
Marcos Siscar e o verso em crise
Annita Costa Malufe
401
416
433
449
RESENHAS
RAPUCCI, Cleide Antonia. Mulher e Deusa: a construção do feminino
em Fireworks de Angela Carter. Maringá: Eduem, 2011
Tânia Regina Zimmermann
Nem sempre amar é tudo (de Salma Ferraz): mas é preciso saber rir
dessa verdade
Christina Bielinski Ramalho
Encontros. Manoel de Barros. Rio de Janeiro. Azougue. 2010.
MÜLLER, Adalberto (org.).
Rodrigo da Costa Araujo
475
477
482
CHAMADA E NORMAS
Chamada para as edições de 2013 - Guavira Letras
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
488
14
DOSSIÊ
POÉTICAS DO CONTO
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
15
A obscura e reiterada presença de Edgar
Alan Poe em Julio Cortázar
Charles Kiefer1
RESUMO: O escritor argentino Julio Cortázar traduziu, analisou, organizou
antologias das obras de Edgar Allan Poe, citou-o em seus próprios textos,
desenvolveu e ampliou conceitos latentes em sua poética. O presente artigo analisa
dois ensaios publicados por Cortázar a respeito da vida e da obra de Poe, intitulados
―Vida de Edgar Allan Poe‖ e ―Poe: o poeta, o narrador e o crítico‖. No decorrer desta
análise, a qual destaca a dedicação do escritor argentino em compreender os métodos
de linguagem e efeitos utilizados por Poe e relaciona a biografia conturbada do
escritor americano com a sua escrita fantástica, desvela-se uma proximidade entre o
próprio Cortazar e seu ídolo, tendo em vista que a obra do autor do Sul vai sendo
lenta e progressivamente tomada pela presença do autor do Norte.
PALAVRAS-CHAVE: Edgar Allan Poe. Julio Cortázar. Teorias da criação ficcional.
Conto. Poética do conto.
ABSTRACT: The argentinian writer Julio Cortázar translated, analyzed, and
organized anthologies of the works by Edgar Allan Poe; he quoted Poe in his own
texts; and he developed and extended latent concepts in his poetics. This article, thus,
examines two essays by Cortázar regarding Poe's life and works, ―Vida de Edgar
Allan Poe‖ and ―Poe: o poeta, o narrador e o crítico‖. During the analysis, that
highlights the devotion of the argentian writer in understanding the methods and
effects applied by Poe and connects the tumultuous biography of the american writer
with his fantastic writing, it is unveiled a proximity between Cortázar and his idol,
taking into account that the South author's works begin to be taken slowly and
steadily by the presence of the North writer.
KEY WORDS: Edgar Allan Poe. Julio Cortázar. Fictional writing theories. Short
story. Short story poetics.
No final da década de 40 do século passado, Jorge Luís Borges,
então secretário de redação da Revista Anales de Buenos Aires, recebeu a
visita de um jovem estranho, que lhe trazia um conto inédito, manuscrito,
para leitura. Além da insólita altura do autor, impressionou-o a qualidade do
1
Doutor em Teoria da Literatura pela PUCRS, professor do Programa de PósGraduação em Letras (PPGL) da Faculdade de Letras da PUCRS – Porto Alegre
(RS) – [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
16
relato. E assim, com a publicação de ―A casa tomada‖, nascia o escritor Julio
Cortázar, sobre cuja obra o mestre argentino diria, meio século depois, que
―ninguém pode contar o argumento de um texto de Cortázar‖, porque se
―tentarmos resumi-lo, verificaremos que algo precioso se perdeu‖ (BORGES,
1988, p.10).
Aquele rapaz, que sofria de uma doença rara — não parou de crescer
até a sua morte em 1984, em Paris —, viria a destacar-se, entre os escritores
que também produziram poéticas sobre o conto, como um dos renovadores
do gênero, por seus enredos quase inapreensíveis, por sua linguagem
encaracolada, escorregadia, por suas ousadias sintáticas.
Para Davi Arrigucci Jr., por exemplo, a admirável arte do contista já
está toda em Bestiário, livro de contos publicado em 1951. O crítico aponta a
―perfeita naturalidade com que seu mundo cotidiano sofre a ruptura abrupta
do fantástico‖, ―o gosto por animais insñlitos‖, ―as brechas insuspeitadas no
cotidiano mais banal‖ (ARRIGUCCI JR, 1995, p.14).
O crítico argentino Volodia Teitelboim, por sua vez, lembra a poética
da esponja e do camaleão, referida pelo prñprio Cortázar: ―A esponja como
figura da porosidade de uma realidade intersticial; o camaleão como a figura
da confusão e da alteridade, ligada à épocas obscuras‖ (1996, p. 97).
A poética do conto de Julio Cortázar é tomada, lenta e
progressivamente, pela presença de Edgar Allan Poe. Em artigos, ensaios,
prefácios, notas às traduções, Cortázar, o escritor do Sul, procurou desvendar
os mecanismos de funcionamento da história curta, acrescentando novas
formulações teóricas e preceptísticas às já estabelecidas por Poe, autor do
Norte.
Segundo Jaime Alazraki, organizador da Obra Crítica 2, de Cortázar,
as ―relações de Cortázar com a obra de Poe são tão precoces quanto sua
descoberta do fantástico. Remonta à sua infância e à suspeita de que toda
criança seja ‗essencialmente gñtica‘‖ (CORTÁZAR, 1999, p. 9-10).
Em ―A ilha final‖, Cortázar afirma que
são inegáveis os rastros de escritores como Poe nos níveis mais
profundos de muitos de meus contos, e creio que sem ―Ligeia‖ ou
―A queda da casa de Usher‖ eu não teria sentido essa predisposição
ao fantástico que me assalta nos momentos mais inesperados e me
impulsiona a escrever, apresentando-me esse ato como a única
forma possível de ultrapassar certos limites e me instalar no
territñrio do ―outro‖. Mas desde o começo algo me indicava que o
caminho formal dessa outra realidade não se encontrava nos
recursos e truques literários dos quais a literatura fantástica
tradicional depende para seu tão celebrado pathos (1999, p. 9-10).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
17
*
Cortázar traduziu, analisou, organizou antologias das obras de Poe,
citou-o em seus próprios textos, desenvolveu e ampliou conceitos latentes em
sua poética. Em 1956, publicou, pela Universidade de Porto Rico, a tradução
das Obras em prosa, do escritor bostoniano, em dois volumes, com uma
introdução biográfica. A esse trabalho, anexou notas com comentários sobre
cada um dos contos. Classificou o conjunto em oito grupos, a saber:
a)
b)
c)
d)
e)
f)
g)
h)
i)
contos de terror;
contos do sobrenatural;
contos do metafísico;
contos analíticos;
contos de antecipação;
contos de retrospecção;
contos de paisagem;
contos do grotesco;
contos satíricos.
É importante destacar que essa ordenação dos relatos em grupos
temáticos, tais como a propõe Cortázar, tem por base uma carta do próprio
Poe, em que este afirma que, embora escritos com longos intervalos de
tempo, sempre teve em mente a unidade de um livro. Afirma que cada um
dos contos fora escrito tendo como objetivo ―seu efeito como parte de um
todo‖ (CORTÁZAR, 1999, p. 313-4). Poe escreveu-os com a intenção de
mostrar a ―máxima diversidade de temas, pensamentos e, sobretudo, tom e
apresentação‖ com que, segundo ele, o gênero não sñ podia, mas devia, ser
apresentado aos leitores. Chega a imaginar a antologia em que todos os seus
contos estariam reunidos. Afirma que leria o grande volume como se fosse
―obra alheia‖2. Tinha certeza de que sua atenção seria despertada pela
diversidade e variedade temática.
Os principais trabalhos ensaísticos de Julio Cortázar sobre o criador
do conto moderno são ―Vida de Edgar Allan Poe‖ e ―Poe: o poeta, o narrador
e o crítico‖, escritos como introduções a antologias de contos traduzidos por
2
Poe, aliás, leu seus próprios contos como se fossem escritos por outro. Em outubro
de 1845, a revista Aristidean publicou uma resenha sobre o livro Tales, que reunia
doze de suas histórias mais famosas, em edição de Wiley and Putnam. A tradução
dessa singular autorresenha encontra-se em A poética do conto: De Poe a Borges,
um passeio pelo gênero, São Paulo: Leya, 2011.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
18
ele. Por outro lado, os ensaios ―Alguns aspectos do conto‖ e ―Do conto breve
e seus arredores‖, ensaios fundamentais na constituição da poética do prñprio
Julio Cortázar, sofrem visível influência das ideias do autor da ―Filosofia da
composição‖.
O primeiro ensaio de Cortázar sobre Poe
―Vida de Edgar Allan Poe‖, escrito em 1956, segue as linhas gerais
da biografia de Harvey Allen, Israfel, the life and times of Edgar Allan Poe.
Divide-se em ―Infância‖, ―Adolescência‖, ―Juventude‖, ―Maturidade‖ e
―Final‖. Cortázar elaborou fichas para cada um dos contos da antologia,
destacando o título original, o local, a data e a ordem cronológica de
publicação.
Embora nascido no Norte, Edgar Allan Poe cresceu no Sul. Isto, para
o autor de Bestiário, é importante, já que ―muitas de suas críticas à
democracia, ao progresso, à crença na perfectibilidade dos povos nasceu do
fato de ser um cavalheiro do Sul, com arraigados hábitos mentais e morais
moldados pela vida virginiana‖. Para Cortázar, muito da temática de Poe tem
origem no fato de ter crescido numa região em que as amas-de-leite negras
eram comuns. O menino Poe passou a sua infância e adolescência junto a
criados escravos, ouvindo-os contar histórias de assombrações, de mortosvivos. Esse ―repertñrio sobrenatural‖ da comunidade negra influiu
profundamente na imaginação do autor de ―O barril de Amontilhado‖,
conforme já destacado por inúmeros teóricos e professores de literatura
(CORTÁZAR, 1999, p. 274).
A esses fatores da cultura oral, típica das sociedades agrárias, devem
acrescentar-se outros, da cultura livresca. O pai adotivo de Poe, comerciante
escocês emigrado para Richmond, entre outras atividades, vendia revistas
europeias. No escritório de Ellis & Allan, o menino Edgar entrou em contato
com um mundo erudito e pedante, gótico e novelesco, no qual os restos de
―engenhosidade do século XVIII se misturavam com o romantismo em plena
eclosão‖. Johnson, Addison e Pope preparavam a emergência de Byron e de
Wordsworth. Enquanto isso, Poe lia com avidez romances e contos de terror.
Aos quatro ou cinco anos, declamava extensas composições poéticas às
amigas da mãe, na hora do chá. Para Cortázar, contudo, a obsessão pela
escansão e pela magia rítmica viriam de sua mammy, a ama-de-leite negra.
Os ritmos da gente de cor aparecem em ―O corvo‖, ―Ulalume‖, ―Annabel
Lee‖. Todo o ―ar marinho‖ que circula em sua literatura — as imagens de A
narrativa de Arthur Gordon Pym e o redemoinho do Maëlstrom —, fora
trazido pelos capitães de veleiros que frequentavam o escritório do pai
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
19
adotivo de Edgar Alan Poe. Mais tarde, uma viagem à Inglaterra e à Escócia
daria ao futuro escritor o ―prestígio das singraduras, os crepúsculos em altomar, a fosforescência das noites atlânticas‖. Desse período em Irvine, e em
Londres, de suas lembranças escolares entre 1816 e 1820, nasceria o
―estranho e misterioso cenário inicial de ‗William Wilson‘‖.
A adolescência é o tempo dos amores impossíveis, matriz, talvez, do
amor eternamente irrealizado dos contos de Poe. ―Helen‖, senhora Stanard na
vida real, e mãe de um colega de Poe, é a ―primeira mulher‖ por quem ele iria
se apaixonar ―sabendo que era um ideal, apenas um ideal‖, e pela qual ―se
apaixonava porque era esse ideal e não meramente uma mulher conquistável‖
(CORTÁZAR, 1999, p. 278).
Mais tarde, na Universidade fundada por Thomas Jefferson, Poe
mergulhará numa vida desregrada. Jogava, perdia quase invariavelmente, e
bebia. Cortázar faz uma analogia entre Poe e Púshkin, o grande romântico
russo, dipsômano também3. Ao contrário deste, sobre Poe o álcool tinha um
efeito devastador, misterioso e terrível. A única explicação para essa
hipersensibilidade seriam as ―taras hereditárias‖, segundo Cortázar, que cita
psicanalistas da época, que reduziam tudo a questões de fundo psicológico.
Poe, o ―feixe de nervos à flor da pele‖, intoxicava-se com um único copo de
rum. Antes da depressão, transformava-se num conversador brilhante, um
gênio momentâneo. Não são poucos os contos em que esse estado de
hiperlucidez se manifesta. ―A queda da casa de Usher‖ talvez seja o mais
emblemático. Além do estado de intoxicação de Roderick Usher, sua
profunda depressão, os elementos dos ambientes descritos, tanto os da
natureza, no exterior, quanto os do mobiliário, no interior da mansão, estão
vazados de estranha e sonambúlica melancolia, que os exegetas identificam
como um quadro delirante produzido pelo uso do ópio. No entanto, pouco se
diz sobre a capacidade retórica de Edgar Alan Poe, e, no limite, sobre a
literariedade de seus textos.
No seu período acadêmico, Poe estuda ―histñria antiga, histñria
natural, livros de matemática, de astronomia‖. Sua paixão pelo cálculo e pela
3
Aleksander Púshkin, em Contos de Belkin, escrito em 1830, utiliza um
procedimento narrativo que se tornaria lugar comum durante o Romantismo: a
criação de um autor fictício, Ivan Petróvich Belkin, que teria escrito o próprio livro,
e a criação de um editor, A. P., que comenta e transcreve uma carta de um suposto
amigo de Belkin, que funciona como uma espécie de biografia do falso autor. Jorge
Luis Borges, mais de um século depois, recuperaria o método. Esse kak priem,
procedimento narrativo, que em Púshkin era periférico, em Borges se torna central,
definidor de sua própria arte poética.
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20
circunvolução das estrelas encontrará nos contos de raciocínio e de aventura
campo fértil para desenvolvimento. Dívidas de jogo levam-no a abandonar os
estudos e a retornar para casa.
No entanto, as brigas com o padrasto forçam-no a partir para Boston,
onde inicia a carreira literária, com a publicação de Tamerlão e outros
poemas, em maio de 1827. A miséria absoluta a que se viu submetido
obrigou-o a alistar-se como soldado raso no Forte Moultrie, na Carolina. Da
experiência, e do cenário pitoresco, reuniu material para a composição de um
de seus melhores contos analíticos, ―O escaravelho de ouro‖, que se
transformaria na matriz estrutural e ideológica da literatura policial moderna,
de enredos misteriosos, detetives intelectualizados e auxiliares-narradores.
Sobre o período de juventude, Cortázar descreve Poe guindado à
posição de sargento, depois de prestar bons serviços ao exército como
soldado raso. O ―tédio insuportável daquela medíocre companhia humana‖
leva-o a reatar relações com o padrasto, a quem pede ajuda para ingressar em
West Point. Nesse meio-tempo, sua mãe adotiva morre, sem que ele participe
do velório.
Após a entrada na Academia de West Point, aproximou-se de sua
família verdadeira. Tenta, em vão, publicar ―Al Aaraaf‖, um longo poema.
Para Cortázar, esse momento é crucial na vida de Poe, pois lhe dá um pouco
de estabilidade para escrever. Poe é acolhido pela tia Maria Clemm. Passa a
viver com ela, a avó paterna, o irmão mais velho, os sobrinhos Henry e
Virgínia. Graças ao sótão que compartilhou com o irmão tuberculoso, pôde
escrever em paz e estabelecer relações com editores e críticos. A vida de
caserna, por outro lado, é ―vulgar, tosca, carente ad nauseam de imaginação e
capacidade criadora‖ (CORTÁZAR, 1999, p. 285). Diante desse quadro,
isola-se e estuda Coleridge, mas não consegue suportar o ambiente militar.
Acaba por provocar a própria expulsão, tantos são os seus atrasos e as suas
desobediências. Apesar disso, com a ajuda de um coronel, consegue que os
alunos financiem seu novo livro de poemas, Israfel, a Helena e Leonore.
Em fevereiro de 1831, rompe com o padrasto, definitivamente. Parte,
então, no dia 19, para Nova York, ―envolto na capa de cadete que o
acompanhou até o fim de seus dias‖. Faminto e angustiado, pensa alistar-se
no Exército da Polônia, em guerra contra a Rússia, mas acaba voltando para a
casa de Maria Clemm. Depois da morte do irmão, consegue instalar-se e
―trabalhar com relativa comodidade no desvão que compartilhava com o
doente‖. Dedica-se a escrever histórias curtas, mais vendáveis, e que além
disso interessam-lhe mais como gênero literário. Percebe que, no conto, seu
talento poético pode criar uma atmosfera especialíssima, subjugante. É só não
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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confundir conto com poema, ou conto com fragmento de romance, conforme
declarou nos seus ensaios sobre Nataniel Hawthorne.4
Para Cortázar, ―Metzengerstein‖, a primeira histñria curta publicada
por Poe, já tem ―todas as qualidades que alguns anos mais tarde chegariam à
perfeição‖.
Na casa da tia, Poe comportou-se sobriamente, ajudando-a tanto
quanto possível. Esse período, entre 1831 e 1832, selou definitivamente a sua
carreira de escritor. Em abril de 1833, com ―Manuscrito encontrado numa
garrafa‖, venceu um concurso de contos do Baltimore Saturday Visiter. A
publicação rendeu-lhe os primeiros admiradores e cinquenta dólares. Em
1835, publicou ―Berenice‖, na revista Southern Literary Messenger, de
Richmond. Um pouco mais tarde, regressou a essa cidade virginiana e
assumiu seu primeiro emprego estável, na redação da revista. A saudade da
mulher, que permanecera em Richmond, e a companhia de amigos que
também bebiam, fez com que mergulhasse, outra vez, no seu Maëlstrom
particular. Perdeu o emprego. A conselho do diretor de Messenger, buscou a
família. Reassumiu o posto na revista. Começou a fazer fama com suas
―resenhas críticas, ácidas, instigantes, muitas vezes arbitrárias e injustas, mas
sempre cheias de talento‖, segundo Cortázar. A revista publicou, em forma
de folhetim, A narrativa de Arthur Gordon Pym5. Nos meses em que
trabalhou na redação, a tiragem da revista octuplicou. Poe retornou às
bebedeiras e acabou perdendo o emprego outra vez. Partiu para Nova York.
Desempregado, instalou-se numa precária pensão com a família. Aproveitou
a ociosidade para escrever uma nova série de contos. A grande depressão
econômica do governo Jackson obrigou-o a migrar mais uma vez. Refugiouse na Filadélfia, então o principal centro editorial e literário dos Estados
Unidos. Em 1831, suas dificuldades financeiras eram tantas que envolveu-se
num lamentável episódio de plágio. Justo ele, o agressivo denunciador de
outros plagiários. Publicou, como sendo seu, refundido, um livro inglês sobre
conquiliologia.
Para Cortázar, a publicação do conto ―Ligéia‖, em 1838, marca o
início da maturidade artística de Poe. No ano seguinte, nasceria outro, ainda
4
Estes ensaios de Edgar Alan Poe estão traduzidos e publicados em: KIEFER,
Charles. A poética do conto: de Poe a Borges, um passeio pelo gênero, São Paulo:
Leya, 2011.
5
Poe, ao contrário do que fez com seus contos e poemas, nunca reuniu em livro a
produção crítica. G. R. Thompson, o editor de Essays and Reviews, recompilou
seus ensaios, críticas, artigos e colunas. O mercado editorial norte-americano ainda
não estava suficientemente maduro para consumir esse tipo de bibliografia.
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mais extraordinário, ―A queda da casa de Usher‖, em que ―os elementos
autobiográficos proliferam e são facilmente discerníveis, mas no qual,
sobretudo, revela-se – depois do anúncio em ‗Berenice‘ e da explosão terrível
em ‗Ligéia‘ – o lado anormalmente sádico e necrofílico do gênio de Poe,
assim como a presença do ñpio‖ (CORTÁZAR, 1999, p. 295).
Poe torna-se assessor literário da Burton´s Magazine, colocando-a ―à
frente das outras em termos de originalidade e audácia‖. Em 1839, reúne as
histórias publicadas em jornais e revistas no volume Tales of the grotesque
and arabesque. A Burton´s Magazine funde-se com a Graham´s Magazine e
Poe consegue uma posição mais vantajosa. Com seu talento editorial, faz a
revista passar de cinco mil assinaturas para mais de quarenta mil, em apenas
quatorze meses. Deixa a revista e atravessa uma ―época brilhantíssima‖.
Em janeiro de 1842, uma hemoptise revelou a seriedade do estado de
saúde da esposa, lançando Poe em profundo desespero.
Conforme Cortázar, esta
foi a tragédia mais terrível de sua vida. Sentiu-a morrendo, sentiu-a
perdida e sentiu-se perdido também. De que forças horrendas ele se
defendia ao lado de ―Sis‖? A partir desse momento, seus traços
anormais começam a mostrar-se abertamente. Bebeu, com os
resultados conhecidos. Seu coração falhava, ingeria álcool para
estimular-se e o resto era um inferno que durava dias (1999, p.
297).
Nesse ambiente carregado, o estribilho de ―O corvo‖, ―Never more,
Never more‖, começou a persegui-lo. ―Pouco a pouco, o poema nascia,
larval, indeciso, sujeito a mil revisões‖. Em 1844, alternando períodos de
lucidez e delírio, retorna a Nova York, com Virgínia doente. Publica a
―Balela do balão‖ e faz um grande sucesso. Seu relato é tão verossímil que
uma multidão reune-se para saudar a chegada do balão fictício tripulado por
ingleses, que teria acabado de cruzar o Atlântico. De uma varanda, Poe
contempla a cena com um sorriso irônico e superior. Seu poder narrativo era
capaz de subjugar multidões. Conseguiu, com o dinheiro de seu labor
jornalístico, alugar uma casa de campo, em Bloomingdale. Foi um pequeno
paraíso na vida do casal.
Segundo Cortázar,
ali havia ar puro, pradarias, alimento em abundância e até mesmo
alegria. (...) Edgar começou a escrever regularmente e os contos e
os artigos se sucediam e até mesmo eram publicados rapidamente,
porque bastava o nome do seu autor para interessar os leitores de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
23
todo o país. ―O enterramento prematuro‖, mistura de conto e
crônica, foi escrito no ―perfeito céu‖ de Bloomingdale e prova a
invariável ambivalência da mente de Poe; é um de seus relatos mais
mórbidos e angustiantes, cheio de uma doentia fascinação pelos
horrores do túmulo (1999, p. 301).
Naquele verão, ―O corvo‖ recebeu uma nova versão, quase definitiva,
mas que sofreria ainda infinitos retoques. O inverno chegou, e Poe retornou a
Nova York, onde passou a trabalhar no Evening Mirror, recém-inaugurado.
Em 1845, afastou-se deste jornal e ingressou no Broadway Journal. Publicou
―O corvo‖ e transformou-se no ―homem do momento‖. Segundo Cortázar, o
poema teria abalado os círculos literários e todas as camadas sociais a um ―a
um ponto que atualmente é difícil imaginar.‖
O contista argentino prossegue:
A misteriosa magia do poema, seu apelo obscuro, o nome do autor,
satanicamente aureolado por uma ―legenda negra‖, uniram-se para
fazer de ―O corvo‖ a própria imagem do romantismo na América
do Norte e uma das mais memoráveis instâncias da poesia de todos
os tempos. As portas dos salões literários abriram-se imediatamente
para o contista e poeta. O público comparecia a suas conferências
com o desejo de ouvi-lo recitar ―O corvo‖ — experiência
inesquecível para muitos ouvintes e da qual há testemunhos
inequívocos (CORTÁZAR, 1999, p. 301).
No auge da fama, o álcool ressurgiu na sua vida. No final de 1845, o
Broadway Journal deixou de circular, e o escritor vê-se, mais uma vez,
desempregado. Durante o ano seguinte, frequentou as rodas literárias de
Nova York. Depois, como que enfarado daquela vida artificial, passou a
publicar críticas contundentes sobre a obra dos escritores da moda, no
Godey´s Lady´s Book. Uma série de mais de trinta resenhas, ―quase todas
implacáveis, que provocou uma comoção terrível, réplicas furibundas, ódios
e admirações igualmente exageradas‖.
Em 1846, escreveu ―Annabel Lee‖, um canto de amor à esposa
moribunda. No cortejo fúnebre, em janeiro do ano seguinte, usou a velha
capa de cadete militar, que fora o único agasalho na cama de Virgínia, e que
ele usaria até a sua própria morte. Depois disso, sua vida ingressou num
turbilhão de desespero, bebedeiras, idealizações amorosas e nenhuma
produção literária. Morreu às três da madrugada do dia 7 de outubro de 1849,
sozinho.
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24
O segundo ensaio de Cortázar sobre Poe
Davi Arrigucci Jr. considera ―Poe: o poeta, o narrador e o crítico‖,
ensaio produzido por Julio Cortázar, como um trabalho de cunho acadêmico,
por apoiar-se em aparato erudito e rigoroso. Nesse ensaio, Cortázar observa
que há duas tendências gerais da crítica norte-americana sobre o escritor
bostoniano. Uma, que submete a obra ―às circunstâncias de caráter pessoal e
psicológico que puderam condicioná-la‖; e outra, que ―traduz uma certa
depreciação da poesia e da literatura de Poe‖ (CORTÁZAR, 1999, p. 103-4).
Entre os dois caminhos que se bifurcam — o do caso clínico e o da
simples série de textos literários —, Cortázar opta por outro, quase
metafísico, que se coaduna melhor com sua própria visão de literatura:
Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe.
Todos nós, em algum lugar de nossa pessoa, somos ele, e ele foi
um dos grandes porta-vozes do homem, aquele que anuncia o seu
tempo noite adentro. Por isso sua obra, atingindo dimensões
extratemporais, as dimensões da natureza humana profunda do
homem sem disfarces, é tão profundamente temporal a ponto de
viver num contínuo presente, tanto nas vitrinas das livrarias como
nas imagens dos pesadelos, na maldade humana e também na busca
de certos ideais e de certos sonhos (1999, p. 104).
Cortazar situa o ambiente em que Poe vivia, compadecendo-se de sua
pouca sorte, pois ―à sua aristocracia intelectual teria sido conveniente um
meio de alta cultura‖. A industrialização e o progresso mecânico destruíam o
antigo mundo pastoril e ingênuo; a guerra civil entre abolicionistas e
escravistas principiava; a literatura, em descompasso com a modernidade
emergente, agarrava-se às ―elegâncias retñricas‖; Poe, provinciano da
Virgínia, sentia-se ―incômodo e fora de mão‖ em grandes cidades como Nova
Iorque, Baltimore, Filadélfia. Enquanto os intelectuais de Boston elaboravam
uma filosofia transcendentalista sem ―maior originalidade‖, o mesmerismo, o
espiritismo e a telepatia faziam ―bons negñcios nos salões das senhoras
inclinadas a buscar no além o que não viam a dois passos no aquém‖
(CORTÁZAR, 1999, p. 105).
Cortázar imagina seu companheiro de ofício diante de uma página
em branco, num dia qualquer de 1843:
Que inevitáveis fatores pessoais vão desembocar nesse novo conto,
e que elementos exteriores se incorporarão à sua trama? Qual é o
processo, o silencioso ciclone do ato literário, cujo vórtice está na
pena que Poe apóia neste instante sobre a página? Era um homem
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
25
que amava seu gato, até que um dia começou a odiá-lo e lhe
arrancou um olho... O monstruoso está de imediato aí, presente e
inequívoco. A noção de normalidade se destaca com violência da
totalidade de elementos que integram sua obra, seja poesia, sejam
contos. (...) Mas nada, diurno ou noturno, feliz ou infeliz, é normal
no sentido corrente que aplicamos mesmo às anormalidades
vulgares que nos rodeiam e nos dominam e que já quase não
consideramos como tais. O anormal, em Poe, pertence sempre à
grande espécie (1999, p. 107-8).
Do ponto de vista dos recursos composicionais, essa técnica de
apresentar o monstruoso de chofre para atrair a atenção do leitor,
corresponde, na prática, à teoria do efeito. Para suportar a realidade,
―precária, insuficiente e falsa‖, Poe, o caranguejo ermitão, o orgulhoso
refugiado ―num caracol de violência luciferina‖, que só se abre diante do
carinho e do cuidado das mulheres, refugia-se na literatura, sem prestar
atenção aos outros. Cortázar justifica esse egotismo cabal de Poe: é que só
consigo mesmo ele se dignava a falar. Sem interlocutores, transformou o
espaço nas revistas e nos jornais em tribuna, onde era ―um ‗pequeno deus‘,
miúdo árbitro num mundo artístico miúdo‖. Compensação que talvez o
acalmasse, mas que não foi capaz de salvá-lo da decadência.
O escritor argentino encontra uma explicação psicologizante para o
que a crítica, especialmente nos EUA, sempre apontou como o maior defeito
do contista de Boston. Por causa desse orgulho e egotismo, Poe não teria sido
capaz de compreender o humano, de se ―aproximar dos outros‖, de ―medir a
dimensão alheia‖, de criar uma ―sñ personagem com vida interior‖. Segundo
Cortázar, o romance psicológico o teria desconcertado. No entanto, para
outros críticos — e especialmente nas últimas décadas —, além de ser o
criador do romance policial e da novela de ficção científica, Poe seria,
exatamente, o criador do romance psicológico6.
Para Cortázar, é o mundo onírico que impulsiona as narrativas de
Poe:
Os pesadelos organizam seres como os dos seus contos; basta vêlos para sentir o horror, mas é um horror que não se explica, que
nasce tão só da presença, da fatalidade a que a ação os condena ou
6
Não se pode esquecer que Dostoiévski, considerado um dos criadores do romance
psicológico, leu e traduziu alguns contos de Poe para o russo. Ainda está por se
fazer uma análise acurada da dívida do escritor russo para com o escritor norteamericano.
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a que eles condenarão a ação. E a escotilha que põe diretamente em
comunicação o mundo do inconsciente com o palco das narrativas
de Poe não faz mais que transmudar os personagens e os
acontecimentos do plano sonhado ao plano verbal; mas ele não se
dá ao trabalho de olhá-los a fundo, de explorá-los, de descobrir as
molas que os impelem ou de tentar uma explicação dos modos de
agir que os caracterizam (1999, p. 110).
Cortázar crê que a antipatia dos ingleses e norte-americanos pelo
trabalho de Poe advenha de sua incapacidade de fazer humor. Quando o
tenta, deriva para o macabro ou o grotesco. Da mesma forma que Lúcia
Santaella (1987) pôde dizer que a literatura fantástica criou, borgianamente,
Edgar Allan Poe como seu precursor, pode-se dizer que o atual público
consumidor da estética da violência cria-o como seu ideólogo.
Para o autor de Bestiário, este ―fraco cheio de orgulho e egotismo
precisa dominar com suas armas, intelectualmente‖, o meio social que lhe é
hostil. Por isso, desde cedo organizou um ―sistema de notas, de fichas, onde,
no decorrer de suas leituras variadíssimas e indisciplinadas, vai registrando
frases, opiniões, enfoques heterodoxos ou pitorescos.‖ Nas revistas inglesas,
teria aprendido um pouco de ―francês, latim e grego, hebraico, italiano,
espanhol e alemão‖ (CORTÁZAR, 1999, p. 111). Assim, em cada página de
crítica ou de ficção de Poe, aparece ―uma cultura vastíssima, particular, com
tons de mistério e vislumbres de iniciação esotérica‖, sem que haja, no
entanto, uma organização sistemática e orgânica desses dados. Poe, que
defendeu a informação contra a dissertação, intuía o poder da imagem.
Parecer sábio, profundo e muito ilustrado, no novo mundo em construção, é
tão importante quanto ser. À maneira de Borges, quando lhe é necessário,
inventa autores, obras e citações. Transformar falsas referências
bibliográficas em elementos constitutivos do próprio fazer literário é mais
uma das invenções do escritor norte-americano, processo que Borges
transformaria em uma das funções dominantes de seu estilo.
No cerne da teoria do efeito, na submissão da vontade do leitor ao
autor durante o período de leitura, Cortázar encontra a justificativa para a sua
teoria do egotismo poeano:
Poe escreverá seus contos para dominar, para submeter o leitor no
plano imaginativo e espiritual. Seu egotismo e seu orgulho
encontrarão no prestígio especial das narrativas curtas, quando
escritas como as suas, instrumentos de domínio que raras vezes
podia alcançar pessoalmente sobre seus contemporâneos (1999, p.
121).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Cortázar desvela o calcanhar-de-aquiles do método de Poe, o método
de subordinar os incidentes à intenção de obter um efeito único:
Na prática, ocorrerá com quase todos os contos de Poe o mesmo
que com os poemas, isto é, o efeito obtido depende, em suma, de
episódios ou de atmosferas que escapam originariamente a seu
domínio, o qual só se impõe a posteriori. Mas certas narrativas —
as de puro raciocínio, por exemplo — aparecem mais bem
subordinadas a esta técnica pragmática que devia satisfazer
profundamente o orgulho de seu autor (1999, p. 121).
Cortázar aponta como importante na teoria de Poe ―a liquidação de
todo propñsito estético do conto‖ e a coerência de sua obra neste sentido, já
que, como se pode ver ―pela leitura de seus contos completos‖, não há
um só conto que possa ser considerado nascido de um impulso
meramente estético — como tantos de Wilde, de Henri de Régnier,
de Rémy de Gourmont, de Gabriel Miró, de Darío. E o único que
toca neste campo no plano verbal, no seu ritmo de poema em prosa
— aludimos a ―Silêncio‖ —, tem como subtítulo: ―uma fábula‖
(1999, p. 122).
Para o contista argentino, Poe teve uma perfeita compreensão dos
princípios que regem o gênero:
Às suas observações teóricas se agregam as que podemos deduzir
da sua obra, e que são, como sempre, as verdadeiramente
importantes. Poe percebeu, antes de todos, o rigor que exige o
conto como gênero, e que as diferenças deste com relação ao
romance não eram só uma questão de tamanho. (...) Compreendeu
que a eficácia de um conto depende da sua intensidade como
acontecimento puro, isto é, que todo comentário ao acontecimento
em si (e que em forma de descrições preparatórias, diálogos
marginais, considerações a posteriori alimentam o corpo de um
romance e de um conto ruim) deve ser radicalmente suprimido.
Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a
coisa que ocorre e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento
e não alegoria (como em muitos contos de Hawthorne, por
exemplo) ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou
didáticas. Um conto é uma verdadeira máquina literária de criar
interesse (CORTÁZAR, 1999, p. 122).
Para Cortázar, o critério da intensidade é, no fundo,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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o critério da economia, de estrutura funcional. No conto vai ocorrer
algo, e esse algo será intenso. Todo rodeio é desnecessário sempre
que não seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente digressão por
meio da qual o contista nos agarra desde a primeira frase e nos
predispõe para recebermos em cheio o impacto do acontecimento
(1999, p. 124).
A ―propriedade magnética dos grandes contos‖ — o ambiente — é
trabalhada por Edgar Allan Poe com perfeição, pois ele tem a aptidão de ―nos
introduzir num conto como se entra numa casa, sentindo imediatamente as
múltiplas influências de suas formas, cores, móveis, janelas, objetos, sons e
cheiros‖. Essa aptidão nasce da sua concepção de economia narrativa:
A economia não é ali somente uma questão de tema, de ajustar o
episódio ao seu miolo, mas de fazê-lo coincidir com a sua
expressão verbal, ajustando-a ao mesmo tempo para que não
ultrapasse os seus limites. Poe procura fazer com que o que ele diz
seja presença da coisa dita e não discurso sobre a coisa. (...) Para
ele, um ambiente não constitui como que um halo do que acontece,
mas forma corpo com o próprio acontecimento e, às vezes, é o
acontecimento7 (CORTÁZAR, 1999, p. 125).
Entre os recursos técnicos empregados por Edgar Allan Poe na
composição de suas obras, Júlio Cortázar indica ainda a sua capacidade de
fazer o ―desenvolvimento temático‖ repetir-se na moldura tonal, no cenário, e
a ―perfeita coerência‖ que ele consegue entre duração e intensidade. Com
isso, finaliza o exame dos aspectos doutrinários da poética do escritor norteamericano, para ele secundários, e passa para o ―terreno muito mais amplo e
complexo‖, onde se encontram ―os elementos profundos‖ que dão aos contos
de Poe ―sua inconfundível tonalidade, ressonância e prestígio‖: as obsessões
inconscientes.
Para Cortázar, o material inconsciente se ―impõe irresistivelmente a
Poe e lhe dá o conto‖, sob a forma de ―sonhos, alucinações, idéias
7
Da forma como Cortázar coloca a questão, o ambiente, de Poe, confunde-se com a
atmosfera, de Tchecov. A rigor, são diferentes. E exercem diferentes funções. O
ambiente é uma propriedade magnética da linguagem descritiva de Poe, de suas
antropomorfizações, enquanto que a atmosfera, de Tchecov, advém mais de um
determinado estado de espírito das personagens, dos silêncios e vazios do texto. O
ambiente, em Poe, é fruto do excesso, herdeiro ainda do barroquismo. Em Tchecov,
já é fruto da falta, da melancolia, da angústia da modernidade.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
29
obsessivas‖. O álcool e o ñpio, ao mesmo tempo que colaboram na irrupção
no plano consciente desse material inconsciente, ajudam o escritor a iludir-se
e a pensar que tudo é fruto de ―achados imaginativos, produtos da idealidade
ou faculdade criadora‖. As obsessões fundamentais que assolam o espírito de
Poe — necrofilia, sadismo e desforra da inferioridade social — aparecem nos
seus contos ―refletindo-se umas nas outras, contradizendo-se aparentemente e
dando quase sempre uma impressão de ‗fantasia‘ e ‗imaginação‘ marcadas
por uma tendência aos traços grossos, às descrições macabras‖, com que o
público da época estava acostumado. Para Cortázar, somente hoje em dia,
com o devido distanciamento do modelo gótico, podemos julgar o que, em
Poe, é fruto da criação e o que é fruto da imposição técnica.
Cortázar recusa, parcialmente, a tese de Krutch — de que a mania
analítica de Poe não seja senão ―o reconhecimento tácito de sua neurose, uma
superestrutura destinada a comentá-la num plano aparentemente livre de toda
influência inconsciente‖ –, ao indagar se basta a neurose para ―explicar o
efeito desses relatos sobre o leitor, a existência deles como literatura válida.
Os neuróticos capazes de refletir sobre suas obsessões são legião, mas não
escrevem ‗O homem da multidão‘ nem ‗O demônio da perversidade‘‖.
Depois de admitir que neuróticos possam produzir fragmentos poéticos,
recusa-se a crer que possam escrever contos:
Já é tempo de dizer com certa ênfase aos clínicos de Poe, que se
este não pode fugir das obsessões, que se manifestam em todos os
planos dos seus contos, mesmo nos que ele julga mais
independentes e mais próprios da sua consciência pura, não é
menos certo que possui a liberdade mais extraordinária que se
possa dar a um homem: a de encaminhar, dirigir, enformar
conscientemente as forças desatadas do seu inconsciente. Em vez
de ceder a elas no plano expressivo, as situa, hierarquiza, ordena;
aproveita-as, converte-as em literatura, distingue-as do documento
psiquiátrico. E isto salva o conto, cria-o como conto, e prova que o
gênio de Poe não tem, em última análise, nada que ver com a
neurose, que não é o ―gênio enfermo‖ como foi chamado, e que,
pelo contrário, seu gênio goza de esplêndida saúde, a ponto de ser o
médico, o guardião e o psicopompo da sua alma enferma
(CORTÁZAR, 1999, p. 128-9).
Cortázar reprova em Poe — como Edmund Wilson — o ―vocabulário
enfático‖, influência direta da leitura de romances negros de autores como
Charles Brockden Brown, autor de Wieland e de narrativas onde aparecem
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
30
também ―sonâmbulos, ventríloquos, loucos e seres fronteiriços‖. Os
personagens de Poe
levam ao limite a tendência noturna, melancólica, rebelde e
marginal dos grandes heróis inventados pelo romantismo alemão,
francês e inglês; com a diferença de que estes agem por razões
morais ou passionais que carecem de todo interesse para Poe. A
influência precoce de Byron na sua formação não se discute, e é
evidente que os romances ―gñticos‖ alemães e ingleses, a poesia
noturna francesa e germânica, deixaram marcas num temperamento
avidamente disposto a compartilhar essa atitude romântica cheia de
contradições, na qual, porém, as notas dominantes são o cultivo da
solidão por inadaptação e a busca de absolutos. Se a isto se soma
o isolamento precoce de Poe de toda comunicação autêntica com os
homens, seu contínuo e exasperante choque com o mundo dos
‗demônios‘, e seu refúgio fácil no dos ―anjos‖ encarnados, não será
difícil explicar esta total falta de interesse e capacidade para
mostrar caracteres normais, que é substituída por um mundo
especial de comportamentos obsessivos, de monomanias, de seres
condenados (CORTÁZAR, 1999, p. 131).
Para Edgar Allan Poe ―não há beleza rara sem algo de estranho nas
proporções‖, conceito que ele foi buscar em Bacon. Não surpreende, pois,
que sua obra seja ―um afastamento de todo cânon, de todo denominador
comum‖. Cortázar aponta ainda um outro traço que torna diferentes os
personagens de Poe, a ausência de uma sexualidade normal:
Não é que os personagens não amem, pois com frequência o drama
nasce da paixão amorosa. Mas esta paixão não é um amor dentro da
dimensão erótica comum; pelo contrário, situa-se nos planos de
angelismo ou satanismo, assume os traços próprios do sádico, do
masoquista e do necrófilo, escamoteia todo processo natural,
substituindo-o por uma paixão que o herói é o primeiro a não saber
como qualificar — quando não cala, como Usher, aterrado pelo
peso da culpa ou da obsessão (1999, p. 133).
Cortázar conclui o ensaio lembrando que Poe prescindiu da dimensão
humana em seus contos, pôde ignorar o riso, a paixão, os conflitos do caráter
e da ação porque
seu próprio mundo é tão variado e tão intenso, tão
assombrosamente adequado à estrutura do conto como gênero
literário, que cabe afirmar paradoxalmente que, se ele tivesse
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
31
fingido todas as suas incapacidades, teria agido em legítima defesa
da sua obra, satisfatoriamente realizada em sua própria dimensão e
com recursos apenas seus. No fundo, seus inimigos de ontem e de
hoje são os inimigos da literatura de ficção (e que bem se aplica o
termo aos contos de Poe!), os ávidos de tranche de vie8 (1999, p.
134).
Separados no tempo e no espaço, os escritores do Norte e do Sul, do
século XIX e do século XX, no entanto, são concidadãos desse outro espaço e
tempo que a professora Pascale Casanova chamou de A República das Letras.
Há, sim, uma escura e reiterada presença de Edgar Alan Poe em Júlio
Cortázar. À ―Casa tomada‖, deste último, poderia se acrescentar ainda outra
interpretação: a de um caso poeano de metimpsicose...
REFERÊNCIAS
ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpião encalacrado. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
CORTÁZAR, Júlio. Obra Crítica 2. Organização de Jaime Alazraki. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
KIEFER, Charles. A poética do conto: de Poe a Borges, um passeio pelo gênero,
São Paulo: Leya, 2011.
SANTAELLA, Lúcia. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. São Paulo: Círculo
do Livro, 1987.
TEITELBOIM, Volodia. Los dos Borges: vida, sueños, enigmas. Santiago do Chile:
Editorial Sudamericana, 1996.
8
O realismo melancólico de Tchecov, por outro lado, que deu origem a outra
variante do conto moderno, satisfaz a esse público plenamente. Cortázar é injusto
com a parcela de leitores que prefere outro tipo de ficção.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
32
Um Artista da Fome: resíduos para uma doutrina da arte?
Henrique de Oliveira Lee1
―Não haverá chance de acabar bem.‖
Goethe
RESUMO: O presente artigo propõe um exercício de leitura do conto Um artista da
fome de Franz Kafka. Partindo da indicação de Walter Benjamin sobre a
possibilidade de ler a obra de Kafka como ―uma tentativa de transformar a literatura
em doutrina‖, empreende-se uma leitura do conto mencionado como a possível
expressão de resíduos de uma doutrina da arte.
PALAVRAS-CHAVE: FRANZ KAFKA, ARTISTA DA FOME, ARTE, LEITURA
ABSTRACT: This article is a reading exercise of Franz Kafka‘s tale A hunger artist.
Departing from Walter Benjamin‘s observation about the possibility of reading
Kafka‘s work as ―an attempt to render literature into douctrine‖, a reading is
undertaken in which this tale is a possible expression of a remainder of a doctrine of
art.
KEY-WORDS: FRANZ KAFKA, HUNGER ARTIST, ART, READING
Introdução:
Walter Benjamin escreve sobre Franz Kafka, a propósito do décimo
aniversário de sua morte, um texto no qual encontramos uma declaração
bastante enigmática: a de que toda a obra de Kafka poderia ser considerada
uma fracassada e ―grandiosa tentativa de transformar a literatura em doutrina,
devolvendo-lhe, sob a forma de parábolas, a consistência e a austeridade que
lhe convinham, à luz da razão‖ (BENJAMIN,1996, p.155). Benjamin aponta
para a presença de elementos oriundos de doutrinas religiosas nos contos de
Kafka: ―Devemos lembrar aqui, a concepção de piedade sustentada por Lao
Tsé, da qual Kafka dá uma descrição completa em Aldeia próxima. (...) Kafka
também compunha parábolas, mas não fundou nenhuma religião.‖
(BENJAMIN,1996, p.151).
1
UFMT- IE - Instituto de Educação / Departamento de Psicologia / Doutor em
Literatura Comparada (UFMG) e-mail: [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
33
Alguns dos contos de Kafka possuem formato semelhante a
parábolas, e podem até ser citados, narrados e parafraseados com fins
didáticos. O caráter enigmático dessa declaração de Benjamin se deve ao fato
de insinuar uma possibilidade de revelação de uma doutrina oculta na
literatura de Kafka. Isto faz com que nós, leitores de Kafka dos tempos de
agora, possamos devanear com uma doutrina transmitida por meio dessas
parábolas insólitas que são os seus contos. Decerto que supor existe uma
verdade única oculta nos textos, sejam eles literários ou sagrados, é uma
posição anacrônica que remonta os primeiros esforços hermenêuticos, mas
não deixa de ser interessante considerar a chave de leitura sugerida por
Benjamin que seria abordar a literatura de Kafka a partir de uma estrutura de
revelação2. E se adotássemos sistematicamente esse devaneio de uma
doutrina oculta como um exercício de leitura? O que nos poderia ser
revelado?
Dentre o vasto universo criado pelos contos de um dos contistas
paradigmáticos da literatura mundial, gostaríamos de propor, para este
exercício, um pequeno espaço de leitura composto por três contos que, se
lidos como parábolas, talvez pudessem nos revelar uma doutrina kafkiana da
arte. Esses contos constituiriam uma pequena constelação das imagens da arte
no universo literário de Kafka. Os modos de representar a arte nesses contos
parece estar intimamente relacionado com o conceito de ironia tal como
compreendido pelo romantismo alemão. Segundo a leitura que Giorgio
Agambem faz deste conceito,
ironia significava que a arte devia se tornar objeto para si mesma e,
não encontrando mais serenidade em um conteúdo qualquer que
fosse, podia de agora em diante apenas representar a potência
negadora do eu poético que, negando, se eleva continuamente
acima de si mesmo em um infinito desdobramento. (AGAMBEM.
2012, p.97)
O conceito de ironia, como imperativo de que a arte faça da arte o seu
objeto, descreve um círculo metarreferencial. O exame do círculo
metarreferencial formado através do movimento de representação da arte no
universo literário de Kafka, faz surgir indagações não apenas pelo modo
como esse conjunto específico de contos – e esta é a nossa hipótese inicial –
articularia uma espécie de ―doutrina‖ da arte, ou pelo menos os resíduos dela,
2
Sobre a ideia de uma ―estrutura de revelação‖ conferir LÉVINAS, Emmanuel.
Revelation in the jewish tradition. In HAND,Sean (org.) Lévinas reader
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
34
mas também indagações sobre a relação de Franz Kafka com sua própria obra
de arte literária. O desejo de Kafka, expresso ao seu amigo Max Brod, de que
sua obra fosse postumamente destruída, acaba por constituir um fato
biográfico prenhe de significações imaginárias, criando uma espécie de ponte
metafórica entre a realidade e a ficção. Não estamos com isso desprezando a
complexa discussão que envolve a oposição entre realidade e ficção3, mas,
apenas sublinhando que as significações imaginárias desse fato biográfico
acabam por constituir mais um ponto do círculo metarreferencial desenhado
pelos modos de representação da arte, que atravessa o interior e o exterior da
obra de Kafka.
Selecionamos três contos de Kafka que têm como tema a arte e a
condição do artista. Mencionaremos, brevemente, dois deles para empreender
uma leitura mais próxima do terceiro, Um artista da fome.
Em A primeira dor, narra-se o drama de um trapezista que passa o
tempo todo sobre um trapézio, com o propósito de aperfeiçoar a sua arte.
Cativo dessa condição de limitação, o trapezista demanda de seu empresário
uma melhoria que resulta absurda e apenas perpetuará seu confinamento nas
alturas: um segundo trapézio. Nesse conto a condição do artista assinala uma
inexistência de exterioridade em relação à arte, o trapezista passa toda sua
vida nos trapézios, não existe limite ou diferença entre a vida do artista e sua
arte. A arte do trapezista não representa nada, apresenta a própria vida do
artista. A arte não assume nesse conto, ainda, um valor de plena negatividade,
mas é, em certa medida, a negação dos limites entre vida e arte.
No conto Josefina, a cantora, ou O povo dos camundongos é
apresentada uma descrição da relação da cantora com seu público e/ou povo.
A cantora se torna um ídolo por uma estranha conjuntura, ela afirma
obstinadamente o seu canto quase inaudível diante de seu público, e este,
apesar de todo arrebatamento e devoção, tem plena consciência de que os
sons emitidos por Josefina não podem ser considerado exatamente um canto.
―O enigma de seu grande efeito‖ (KAFKA, 1998, p.39) é como ela encanta
seu público fazendo com que algo semelhante a um assobio e até certo ponto
indeterminado, possa passar como um canto. Desta vez, o tema da
negatividade da arte comparece com mais consistência. O que encanta em
Josefina não é o seu canto, ou seja, o seu conteúdo ou produto, que no fim
das contas é negado, mas sua capacidade de afirmar esse ―canto negativo‖
como a matéria de sua arte.
Essas três narrativas possuem uma série de complementaridades, mas
em Um artista da fome, pode-se dizer que a questão da arte e do artista
3
Sobre esta discussão ver a introdução de ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
35
recebe o acabamento mais enigmático. Josefina, um camundongo, é admirada
como cantora pelo seu público, mesmo que não se possa chamar o que ela faz
de um canto. Do trapezista, apesar de sua vida no ar, sabe-se, no mínimo,
uma determinação: que a sua arte é executada por meio dos trapézios. O
conjunto composto por essas narrativas toca - de modo surpreendentemente
semelhante - problemas levantados pelos prognósticos da filosofia, sobretudo
de Hegel, sobre o destino da arte na civilização ocidental. Tal prognóstico
anuncia a arte como absoluta liberdade, que busca em si mesma o próprio fim
e o próprio fundamento, e não tem necessidade – em sentido substancial – de
nenhum conteúdo. Podemos ler nas páginas finais do segundo livro dos
Cursos de Estética de Hegel:
O ser ligado a um conteúdo particular e a um modo adequado
exclusivamente a essa matéria constitui para os artistas hodiernos
algo do passado, de tal modo que a arte se tornou um livre
instrumento que o artista pode manejar uniformemente segundo a
medida de sua habilidade subjetiva no que diz respeito a qualquer
conteúdo, seja ele de que gênero for. O artista, por isso, está acima
das formas determinadas e a configurações consagradas, movendose livre por si, independentemente do conteúdo e das concepções
nas quais o sacro e o eterno se encontravam antes frente à
consciência. (HEGEL, 2001, p. 374-5)
A liberdade a que Hegel faz menção concerne às discussões que
conhecemos hoje sob o rñtulo de ―autonomia da arte‖ ou ―arte pela arte‖, a
ideia de que a arte não está, ou, ao menos, não deveria estar à serviço de uma
ideologia que determine os seus conteúdos – como foi o caso da arte sacra.
A arte não como um meio, mas como um fim em si mesmo. Um artista da
fome seria metáfora do ápice dessa liberdade ou autonomia da arte, que,
levada às últimas consequências, elevaria o gesto artístico a um grau de
indeterminação e nulificação inaudito. O gesto artístico do artista da fome é
despojado de seus conteúdos, materiais e esteios tradicionais até alcançar o
estatuto de um ato puramente negativo e intransitivo. A arte da fome não se
realiza através de objetos, tampouco produz objetos artísticos, não possui
uma matéria pela qual é constituída, se constitui unicamente pela vontade do
artista de permanecer em seu jejum. O tempo de glória dessa arte é passado,
esta forma de arte tampouco pode ser fruída ou apreciada plenamente pelos
expectadores e pelo público a ela contemporâneo.
Nossa leitura pretende explorar as possibilidades que este conto de
Kafka nos oferece para imaginarmos os resíduos de uma doutrina da arte. Os
subtítulos a seguir vão constituir expressões aforísticas das teses dessa
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
36
doutrina e cada tese será desenvolvida através de aproximações com trechos
de Um artista da fome.
O artista será sempre incompreendido e está
absolutamente só diante de sua obra
A situação do jejuador no início do conto é um emblema da relação
de incompreensão do artista diante de seu público (se chamarmos de público
qualquer receptor de alguma forma de arte). O jejum é vigiado por grupos de
voluntários que, algumas vezes, propositalmente negligenciam a vigilância
por pena do artista, concedendo, de forma manifesta, oportunidades para que
este possa, supostamente, lançar mão de provisões secretas de comida.
Contudo, o público desconhecia que a proibição de se alimentar não provinha
de alguma agência externa, mas do forte sentimento de honra que artista da
fome tinha no zelo de sua arte, o que tornavam essas ocasiões uma verdadeira
ofensa. Quando isso ocorria, o artista da fome cantava do fundo da jaula com
todas as forças que lhe restavam para demonstrar para os vigilantes que ele
não se alimentava. Mas então, o efeito do canto do artista sobre seu público
fugia completamente à sua intenção: admiravam-no, não por reconhecer a sua
capacidade de jejuar, mas por imaginarem que alguém que consegue se
alimentar enquanto canta desempenha uma façanha ainda mais fantástica que
o próprio jejum. Ou seja, o artista da fome recebia de seu público compaixão
ali onde esperava por admiração; e esta, quando a recebia, provinha do
equívoco do público com relação ao sentido da arte da fome. Para o artista,
nada poderia ser mais equivocado com relação aos princípios da arte da fome
do que compará-la a qualquer espécie de ilusionismo, cujo ―truque‖ consiste
em se alimentar por meios ocultos. Embora ―ninguém [fosse] capaz de saber,
por observação pessoal, se o jejum fora realmente mantido sem falha e
interrupção - só o artista podia saber isso e ser o seu espectador totalmente
satisfeito do próprio jejum – ‖, (KAFKA, 1998, p. 25-6)
Nenhum público ou espectador poderia compartilhar com o artista da
fome o sentido e a extensão de sua arte, seja por razão das limitações de
entendimento ou da impossibilidade física de acompanhar o jejum.
O maior obstáculo da arte é, na verdade, seu público
O artista da fome desejava ardentemente superar os seus próprios
limites. Queria continuar jejuando, no entanto, seu empresário limitava o
jejum com o prazo máximo de quarenta dias. ―A experiência mostrava que
durante quarenta dias era possível espicaçar o interesse de uma cidade através
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
37
de uma propaganda ativada gradativamente, mas depois disso o público
falhava e se podia verificar uma redução substancial da assistência;‖
(KAFKA, 1998, p. 26) Este limite externo atendia apenas a conformações da
―recepção‖ da arte da fome e nada tinham a ver com exigências artísticas de
autossuperação. Assim como o artista era o único ―espectador totalmente
satisfeito do prñprio jejum‖, a superação de limites da arte da fome parecia sñ
a ele interessar. O horror proporcionado pela imagem do jejuador no
quadragésimo dia de jejum era um dos argumentos do empresário para limitar
o espetáculo. Sempre aos fins dos jejuns o artista se perguntava: ―Por que
parar justamente agora?‖. ―Por que essa multidão que fingia admirá-lo tanto,
tinha tão pouca paciência com ele? Se ele agüentava continuar jejuando, por
que ela não suportava isso?‖ (KAFKA, 1998, p. 27).
Aí temos a figura do artista injustiçado cuja arte é confinada por
limites estabelecidos por regras do ―bom senso‖ de seu público, pessoas
comuns que nada entendem de sua arte, quando ele estaria disposto a levá-la
a conseqüências mais avançadas, mesmo que isso resultasse em horror.
A palavra ―estética‖ aplicada ao estudo da obra de arte revela que o
centro de atenção de uma teoria do belo é a experiência do espectador, do
receptor, em suma, do público. No entanto, essa intuição difusa de que o
público é, na verdade, o maior obstáculo da arte encontrou uma formulação
mais definida no pensamento de Nietzsche em sua crítica à definição kantiana
do belo como aquilo que ―agrada sem interesse‖. Nas palavras do filñsofo:
Kant imaginava prestar honras à arte, ao dar referência e
proeminência, entre os predicados do belo, àqueles que constituem
a honra do conhecimento: impessoalidade e universalidade. Este
não é o lugar de discutir se isto não foi essencialmente um erro;
quero apenas sublinhar que Kant, como todos os filósofos, em vez
de encarar o problema estético a partir da experiência do artista (do
criador), refletiu sobre a arte e o belo apenas do ponto de vista do
―espectador‖, e assim incluiu sem perceber prñprio ―espectador‖ no
conceito de ―belo‖. Se ao menos esse ―espectador‖ fosse bem
conhecido dos filósofos do belo! – conhecido como uma grande
realidade e experiência pessoal, como uma pletora de vivências
fortes e singularíssimas, de desejos, surpresas, deleites no âmbito
do belo! Mas receio que sempre ocorreu o contrário; e assim
recebemos deles, desde o início, definições em que, como na
famosa definição que Kant oferece do belo, a falta de uma mais
sutil experiência pessoal aparece na forma de um grande verme de
erro. ―Belo‖, disse Kant, ―é o que agrada sem interesses.‖ Sem
interesse! (NIETSZCHE, 1998,p. 93-4, grifos do autor)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
38
Pensar a arte a partir de uma experiência de um público geral,
universal e impessoal, que é expresso na tese do belo como aquilo que é
capaz de agradar sem interesse é, para Nietzsche, o grande erro da estética.
Da perspectiva do artista, que é a perspectiva explorada por Nietzsche, a arte
torna-se uma experiência cada vez mais inquietante, a respeito da qual falar
de interesse é no mínimo um eufemismo, porque aquilo que está em jogo não
parece ser de modo algum a produção de uma obra bela, mas a vida ou a
morte do artista ou, ao menos, a sua saúde espiritual.
No caso do artista da fome, a crescente inocência de seu público
frente ao que seria a ―beleza‖ do jejum – cujo único espectador completo
seria o prñprio artista, ―corresponde à crescente periculosidade da experiência
do artista, para o qual a promessa de felicidade da arte torna-se o veneno que
contamina e destrñi a sua existência.‖ (AGAMBEM, 2012, p. 23).
E não era um acaso muito frequente que um pai de família viesse
com seus filhos, apontasse o dedo para o jejuador, explicasse em
detalhe do que se tratava, contasse coisas de anos passados, quando
presenciara apresentações semelhantes, mas incomparavelmente
mais grandiosas e as crianças, em vista do seu preparo insuficiente
na escola e na vida, continuavam sem entender – o que significa
para elas passar fome? (KAFKA, 1998, p.33)
A noção do público como obstáculo da arte talvez seja o sentido da
estranha invocação de Nietzsche no prefácio à Gaia Ciência: ―Ah, se vñs
pudesseis entender de verdade por que precisamente nós temos necessidade
da arte (...) uma outra arte... uma arte para artistas, somente para artistas‖
(NIETZSCHE, 2001, p.14)
A profecia do fim da arte: como a burocratização da arte irá destruí-la
O mimado artista da fome se viu um dia abandonado pela multidão
ávida de diversão que preferiu afluir para outros espetáculos. Diante da
escassez do interesse do público o artista da fome decide demitir o seu
empresário e assinar um contrato, que mal leu, com um grande circo.
Um grande circo com seus inúmeros homens, animais e aparelhos
que sem cessar se recompõem e se completam, pode utilizar
qualquer um a qualquer hora, mesmo um artista da fome –
naturalmente se as pretensões dele forem modestas; além disso,
neste caso particular não era apenas o jejuador a ser engajado, mas
também o seu nome antigo e famoso; de fato não se podia dizer,
dada a peculiaridade de sua arte – que com o avanço da idade não
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
39
diminuía –, que o veterano artista, passado o auge da sua
capacidade, queria se refugiar num posto tranqüilo do circo; pelo
contrário, o artista da fome garantia que podia jejuar tão bem
quanto antes, o que perfeitamente era digno de fé; afirmava até que
se o deixassem fazer sua vontade – e isso lhe prometeram logo –
,desta vez ia encher o mundo de justificado espanto; uma
declaração, contudo, que só provocou um sorriso nos especialistas,
cientes do espírito da época que, no seu zelo, o artista da fome
facilmente esquecia. (KAFKA, 1998, p. 31)
Este fragmento encerra uma grande virada da narrativa, o início de
uma passagem vertiginosa para o desaparecimento na burocracia do circo. O
artista acredita que, livre das restrições do seu empresário, poderá finalmente,
como tanto sonhou, levar a sua arte a limites inimagináveis que, segundo ele,
encheriam o mundo de justificado espanto. Contudo, o espantoso para os
especialistas do circo nesta declaração é a ingenuidade do artista, que
entregue ao fanatismo do jejum ignora os sinais da decadência de sua arte.
Benjamin observa que nas narrativas de Kafka o destino é substituído
pela organização, pelas estruturas impessoais e burocráticas (BENJAMIN,
1996, p.148). A entrada no circo selará o destino do artista da fome. Dentro
da estrutura organizacional e burocrática do circo, o artista da fome sofrerá a
serialização, e seguirá o caminho progressivo em direção à anulação de sua
singularidade e ao seu desaparecimento.
Pode-se notar a organização como ponto em comum entre
semelhanças entre o circo de Um artista da fome com o Teatro Integral de
Oklahoma de América ou O desaparecido. O teatro ao ar livre de Oklahoma
admitia a todos independentemente de seus talentos para representação
teatral, pois a sua condição de admissão é que todos representem a si
mesmos. No circo, o jejuador será, novamente, o único espectador da
representação de sua incompreendida existência.
A jaula foi emoldurada com cartazes coloridos que anunciavam o
artista da fome que aguardava ansiosamente pelos intervalos das
apresentações do circo. Ele almejava aquelas visitas como a meta da sua vida.
Levou pouco tempo para que percebesse que o objetivo de todas as pessoas
que passavam por ele, sem exceção, era chegar aos estábulos. Como se não
bastasse ser uma atração coadjuvante, o artista se dava conta que, não fossem
os animais da estrebaria, talvez nem chegassem a lembrar de sua existência e
fosse considerado um mero obstáculo no caminho aos estábulos. Até que
após mais algum tempo os cartazes se tornaram ilegíveis e já não era
renovada a tabuleta que marcava o número de dias do jejum. Ninguém mais
contava os dias do jejum e nem o próprio jejuador sabia a extensão do seu
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
40
desempenho. Um ocioso que se deteve diante da jaula escarneceu da velha
cifra na tabuleta e falou de embuste, este foi o maior golpe que o jejuador
poderia receber. Pois ele trabalhava honestamente, ―o mundo é que fraudava
os seus méritos‖.
Mais uma vez, a incompreensão e injustiça do público para com o
artista da fome condenavam-no ao esquecimento, só que desta vez era pior,
ao perder de vista a extensão do seu jejum perdia-se a possibilidade de
fruição do único espectador que ainda restava para a arte da fome: ele
mesmo. Ao ver-se livre dos limites impostos pelo seu empresário para jejuar,
no circo o artista da fome perde também as referências que permitiriam
divisar esses mesmos limites que desejava ultrapassar. É como se neste
episñdio fosse insinuada uma das ―morais‖ da parábola que nos admoesta
sobre as consequências nefastas para o artista que rompe com seu público e
enclausura-se em sua própria arte. Ou ainda, uma lição sobre a frágil
situação do artista frente ao laço social ambíguo que a arte produz: arte tem
em seu público um obstáculo, mas ao mesmo tempo, depende dele e a ele se
endereça. A sobrevivência da arte dependeria de um equilíbrio delicado no
qual ela consegue dialogar com o público, mas não se deixa condicionar
totalmente por ele, porque isso equivaleria a uma total domesticação de suas
potências. Tal como a organização, a institucionalização e a burocratização
da arte, que foram inicialmente um modo de proteger a arte, que perdeu o
amparo de seus mecenas, acabará por submetê-la uma racionalidade técnica
que domesticará e resultará no seu fim.
A arte é, para o artista, apenas uma escolha por falta de algo melhor.
Certo dia o inspetor do circo aproximou-se da jaula e perguntou aos
funcionários por que deixavam sem uso aquela peça perfeita, até que um
deles, com ajuda da tabuleta, se lembrou do artista da fome. Arrastaram a
palha apodrecida com um ancinho e lá estava o jejuador. Segue-se um
diálogo do inspetor com o jejuador, serão as últimas palavras do artista:
— Eu sempre quis que vocês admirassem o meu jejum — disse
o artista da fome.
— Nós admiramos — retrucou o inspetor. — Por que não
haveríamos de admirar?
— Mas não deviam admirar — disse o jejuador.
— Bem, então não admiramos — disse o inspetor. — Por que é
que não devemos admirar?
— Porque eu preciso jejuar, não posso evitá-lo — disse o artista
da fome.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
41
— Bem se vê — disse o inspetor. — E por que não pode evitálo?
— Porque eu — disse o jejuador, levantando um pouco a
cabecinha e falando dentro da orelha do inspetor com os lábios em
ponta, como se fosse um beijo, para que nada se perdesse. – Porque
eu não pude encontrar alimento que me agrada. Se eu tivesse
encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me
empanturrado como você e todo mundo. (KAFKA, 1998, p. 35)
Nas ultimas palavras do jejuador, a expectativa de uma grande
revelação, de uma fala apoteótica, momento de coroamento e glorificação,
cede lugar a uma patética confissão sobre a banalidade daquilo que
impossibilitaria o artista da fome ser outra coisa. Todos os signos que
parecem apontar para uma doutrina da arte como ascese (o jejum, as vigílias,
o silêncio e a humilhação são os signos de um caminho ascético), da relação
do artista com sua arte marcada por uma exigência de sublimação absoluta
(no caso do artista da fome expressa sem metáforas pelo gesto de não se
alimentar), são, no fim das contas, explicados pela aquiescência (aquiescer:
etmologicamente, entregar-se ao repouso, do sono, da morte) do artista diante
de seus instintos alimentares, ou melhor,diante da falta deles.
Considerações finais:
Um artista da fome pode ser citado com fins didáticos, como uma
parábola sobre a condição do artista que, como diria Paul Auster, ―está
disposto a dar a sua vida pela sua arte‖ (AUSTER, 2003, p.324), e sofre com
a volatilidade dos espectadores, ou, em termos contemporâneos,
consumidores, da arte. Esta parábola nos ensina que o artista que tenta
resistir às forças advindas da mudança dos tempos e do mundo está fadado ao
fracasso, e que ele assume para si a tarefa delirante de fazer frente à
decadência e a perda de sentido de sua própria arte, mais por não saber fazer
outra coisa do que por força de uma decisão.
Ler este conto de Kafka como uma ―tentativa de transformar a
literatura em doutrina‖ nos possibilitou extrair quatro teses sobre o a
condição da arte desde o momento em que, como diz Hegel em um trecho
anteriormente citado, ―o ser ligado a qualquer conteúdo tornou-se coisa do
passado e que o artista está livre instrumento que ele pode manejar segundo a
sua habilidade subjetiva‖. A absoluta liberdade do artista é adquire um grau
máximo pela arte da fome, uma arte que consiste em uma vontade de autonegação da vontade.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
42
No entanto, mesmo considerando as quatro teses e outras possíveis
que poderiam ser extraídas do conto, nossa leitura não nos permitiu concluir
com a esperada revelação de uma ―doutrina da arte‖, talvez no máximo seus
resíduos, ou até mesmo pode ter nos conduzido à constatação – alcançada
por Benjamin – de que ―essa doutrina não existe‖ (BENJAMIN, 1996, p148).
―Kafka talvez dissesse: esses trechos constituem os resíduos dessa doutrina e
a transmitem. Mas podemos dizer igualmente: eles são os precursores dessa
doutrina e a preparam.‖ (BENJAMIN, 1996, p148).
Benjamin, ao pensar que os resíduos de uma doutrina da arte podem
igualmente ser seus precursores, sublinha o caráter ―messiânico‖ da literatura
de Kafka. Entretanto, não nos parece que o ―messiânico‖ aí em questão tenha
a ver, nem com uma exaltação das qualidades premonitórias desta obra com
relação ao destino da arte, e nem com uma esperança de que ela seja
elucidada por meio de uma doutrina vindoura. O caráter messiânico tem
mais a ver com uma intuição difusa que declara que – bem ao estilo de O
castelo –a experiências estéticas mais marcante proporcionada pela leitura de
Kafka talvez seja exatamente a compreensão da experiência estética como a
iminência de uma revelação que jamais se produz.
Referências
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
44
Os contos de Machado de Assis e Anton Tchekhov: um
pequeno e ampliado diálogo de reticências e silêncios
Julio Augusto Xavier GALHARTE1
RESUMO: Neste ensaio, algumas narrativas curtas de Machado de Assis e de Anton
Tchekhov são comparadas. Esse contraste é estabelecido em duas seções: a primeira
tem cunho generalizado, levando em consideração vários de seus escritos, e a
segunda seleciona os contos ―Terpsícore‘, do escritor brasileiro, e ―O bilhete
premiado‖, do autor russo, para análise. Toma-se como foco o conto como gênero e
como um veiculador de muitos desdobramentos semânticos do silêncio. O apoio
teórico está ligado, no tocante ao gênero, às reflexões desses dois autores acerca do
assunto, em comparação com o pensamento de Edgar Allan Poe, em sua ―Filosofia
da composição‖. Com relação às discussões em torno do mutismo, tenho como
referência, principalmente, algumas ideias de Eni Puccinelli Orlandi, apresentadas
em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. É provável que o não dito em
Tchekhov e Machado se relacione às entrelinhas, à escuta, à morte e a outros
subtemas.
PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis. Anton Tchekhov. Gênero conto.
Silêncios.
The short stories by Machado de Assis e Anton Tchekhov:
A small and enlarged dialogue of reticence e silences
ABSTRACT: In this essay, some short narratives by Machado de Assis and Anton
Tchekhov are compared. This contrast is established in two sections: the first one has
general aspect, considering many texts by them and the second one selects
―Terpsichore‖, by the Brazilian writer, and ―The lottery ticket‖, by the Russian
author. The focus is the short story as genre and as propagator of many semantic
unfoldings of the silence. The theoretical approach is related, in the genre question,
to the reflection of these two authors about this subject, in comparison to the Edgar
Allan Poe‘s thought, in his ―Philosophy of composition‖. On the discussions about
the mutism, I use as reference, mainly, some thoughts by Eni Puccinelli Orlandi,
presented in The silences’s forms in the senses movement. It is probable that the
unsaid in these authors are related to the implied sense, the listening, the death and
other subthemes.
KEY-WORDS: Machado de Assis. Anton Tchekhov. Short story genre. Silences.
1
Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e Pós Doutor em
Teoria Literária pela UNICAMP. Prof. da UEMS – Universidade do Estado de
Mato Grosso do Sul - Campo Grande. E-mail: [email protected].
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
45
Quando corvos e gaivotas se calam...
Por que atentar para o silêncio em textos de dois escritores, como
Machado de Assis e Anton Tchekhov, tão respeitados pela palavra?
É que o verbo pode suscitar o não dito, quando bons autores, como
esses, empenham-se em elaborar um escrito com lacunas silentes, que se
põem a convidar o leitor a preencher com seus discursos interpretativos os
silêncios dos espaços em branco:
Há o que se silencia no texto, seja porque o escritor não se atreve a
falar de algo, seja porque, silenciando, aquilo que é dito adquire
uma espécie de ambigüidade e força interior. É como se as coisas
que não são ditas, mas que estão subjacentes ao texto, lhe
conferissem uma outra dimensão. Isso ocorre com muitos autores,
alguns extremamente elípticos, que dizem menos do que queriam
dizer e muitas vezes nem sequer sugerem. As coisas não ditas ficam
então flutuando, porque o leitor percebe que foram silenciadas
conscientemente. (SAER, 1999).
Os comentários acima são de um escritor do final do século XX, Juan
José Saer, que ganhou o Prêmio Roger Callois pelo conjunto da obra,
juntamente com Haroldo de Campos, em 1999, mas servem para Anton
Tchekhov e Machado de Assis, que já no século XIX, por apreciarem as
elipses, criaram obras de âmbitos tão silentes que pedem até hoje o verbo
comentado dos críticos e de outros leitores.
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, lê-se:
Capítulo CXXXIX - DE COMO NÃO FUI MINISTRO D’ESTADO
...........................................................................................................
...........................................................................................................
...........................................................................................................
...........................................................................................................
...........................................................................................................
............................................................................................
No capítulo seguinte, o narrador afirma: Há coisas que melhor se
dizem calando; tal é matéria do capítulo anterior. (ASSIS, 1984, p. 132).
Em Dom Casmurro, momentos quietos ganham tremenda força, pela
tensão que geram, como o desta passagem do capítulo CXXXVIII: Seguiu-se
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar um século, tal é
a extensão do tempo nas grandes crises. (ASSIS, 1982, p. 144).
Nesse caso, o silêncio tem significado negativo, mas não se pode
pensar nele sempre com sentido unívoco. Eni Orlandi, no livro As formas do
silêncio: no movimento dos sentidos, afirma: Reduto do possível, do múltiplo,
o silêncio abre espaço para o que não é ―um‖, para o que permite o
movimento do sujeito. (ORLANDI, 1995, p. 13).
Esse caráter semanticamente múltiplo da desarticulação revela-se
ainda no mesmo Dom Casmurro, livro lido e relido não só pelas suas
palavras mas pelos seus silêncios. Ocorre ao menos duas vezes o calar de
Capitu: no foco narrativo, já que não é ela quem conta a história, e no
momento em que lhe é dada a oportunidade de se defender (a resposta é seu
enigmático emudecimento). Além da inarticulabilidade da personagem há
também o silêncio da obra que ganha força nos seus subtextos, que são
fundamentais, pois o livro não afirma uma traição ou uma fidelidade, ele
apenas quietamente as sugere como possibilidades. O verbo, então, associa-se
ao silêncio de quem não informa categoricamente mas sim celebra a
ambigüidade.
Boris Schnaiderman, em resenha à tradução de T. Ivanova para o
russo de Dom Casmurro, publicada na Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, em 1968, percebe o silenciar do livro: o crítico afirma que
traduzir esse texto machadiano é tarefa plena de dificuldades, pois há certo
negacear de quem diz e não diz. (SCHNAIDERMAN, 1968, p. 141).
O gênero conto por si já é afeito ao silêncio já que, ao eliminar
muitas palavras, diferentemente do romance, busca o suscinto e acaba por
incidir nas elipses, apresentando ao leitor personagens em situações tão
fundamentais, quanto, muitas vezes, enigmáticas.
Se há, pois, vários silêncios no meio das muitas palavras de
Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro o que dizer quando
Machado se serve da economia verbal do conto?
Em ―O empréstimo‖, publicado em Papéis avulsos, lê-se: Tudo isso
que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas
páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em
trinta ou setenta minutos? (ASSIS, 2004, p. 108).
Segundo Abel Barros Baptista, esse trecho apresenta-se como uma
metáfora que representa a diferença entre romance e conto (BAPTISTA,
2006, p. 212). E, nela, a consisão é o elemento fundamental.
Se o conto elimina muitas páginas de texto, aproximando-se, mais do
que o romance, do silêncio, este pode estar presente não só na forma, mas
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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também no fundo das narrativas curtas, aparecendo como um tema
importante. Isso pode ser notado já no segundo livro de contos machadianos:
Histórias da meia noite. Em ―Ponto de vista‖, Raquel afirma: Gosto
imensamente destes grandes silêncios, porque então ouço-me a mim mesma,
e vivo mais em cinco minutos de solidão do que em vinte horas de bulício.
(ASSIS, 1977, p. 207).
No caso, o mutismo é elemento fundamental para a personagem se
encontrar. Mas o não dizer acaba tendo outros sentidos nos contos
machadianos, publicados posteriormente; ele pode, por exemplo, estar
associado à morte: as vozes dos que falecem não são mais ouvidas, como a da
cantora Maria, esposa de Pestana, silenciada pelo seu passamento. Esse
silêncio gera um segundo: o do artista, que passa dois anos sem compor.
O silêncio da falta de ―inspiração‖ é um drama também para
Jacobina, em ―O espelho‖, que deixa uma mancha de tinta sem verbo na
página e isso decorre não pela morte da sua ―musa‖, como no caso de
Pestana, mas pela ausência de sua alma exterior. Em um sítio, Jacobina é um
morto em vida, envolto pelo silêncio: [À noite] O silêncio era o mesmo que
de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais
larga. [...]. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando,
um sonâmbulo, um boneco mecânico. (ASSIS: 1992, p. 349-350).
Em introdução a uma coletânea de contos machadianos, de períodos
diversos, Flávio Aguiar mostra que os silêncios se multiplicam em sentidos
em ―Pai contra mãe‖, ―Conto de escola‖ e outras narrativas curtas daquele
livro:
Os silêncios são terríveis: as histórias escondem um segredo
qualquer, uma palavra ou gesto que é impossível precisar qual seja,
mas, sabemos, quebraria o encanto, espatifaria o espelho das
convenções e poria os personagens ao lado de sua própria
realidade. Talvez esta seja a ―lição‖ (ou o sentido) mais
contundente de Machado: o silêncio que há no meio das falsidades,
das frases vazias e sonoras, desse mundo oco e inautêntico de
escravidão e pancadas onde vivem seus personagens. (AGUIAR,
1997, p. 5-6).
No gênero conto, escreve-se menos para significar mais, como bem
notou Anton Tchekhov, que afirmou em carta: Sei escrever curto sobre
coisas longas.2 O autor russo tinha preferência por essa escrita miúda, e foi
2
(TCHEKHOV, apud BELINKY, 1986, p. III).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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reconhecido por isso, diferentemente de Fiódor Dostoiévski, exaltado
principalmente por causa de suas novelas e de seus romances.
Antes do surgimento de Tchekhov, o conto, em sua versão moderna,
contou com o nome de Edgar Allan Poe, que, como faria posteriormente o
escritor russo, não sñ escreveria contos mas teorizaria sobre eles. Em ―A
filosofia da composição‖, é lançada a fñrmula poeana de um bom conto: a
narrativa curta devia ter epílogos conclusivos ou apoteóticos e sua qualidade
seria medida a partir da sua capacidade de prender a atenção do leitor, que
deveria lê-la em uma só assentada. (POE, 2000, p. 40).
Isso costuma ocorrer com os leitores do conto ―A queda da casa de
Usher‖, do escritor norte-americano. A narrativa começa com uma tensão
gerada por uma carta que Roderick escreveu para o narrador, pedindo a sua
presença na sua casa já que se encontrava doente. Muitas outras tensões
acumulam-se sobre essa primeira, instigando quem lê a história a conhecê-la
totalmente sem interrrupção. Seu ápice está no epílogo, que é concomitante
com o desmoronamento da casa dos Usher, soterrando Roderick e sua irmã,
Madeleine; sobra apenas o narrador que foge antes da queda. Nada mais a
fazer, o ponto final é implacável e não há dúvida de que a história encerrouse.
Poe, antes de Machado, já percebia a força da inarticulabilidade, o
que fica patente já no título de um de seus contos: ―O silêncio‖. Nessa
história, o narrador afirma que o demônio certa vez contou-lhe uma de suas
experiências: estava às margens do rio Zaire, na Líbia, quando viu gravada
num rochedo a palavra DESOLAÇÃO. Desceu para o pântano e viu um
homem que impôs a ―maldição do tumulto‖ a todos os elementos da natureza
que começaram a emitir altos ruídos. Em seguida, irritado, aquele homem
lançou a ―maldição do silêncio‖ e as letras do rochedo mudaram para
SILÊNCIO. O escrito poeano termina com estas palavras do demônio: E o
homem estremeceu, voltou o rosto e pôs-se em fuga, precipitadamente: e
nunca mais o tornei a ver.
Edgar Allan Poe e a ―maldição do silêncio‖ aparecem no conto
―Sñ!‖, de Machado de Assis, publicado no livro Relíquias de casa velha. O
autor de ―A queda da casa de Usher‖ é mencionado logo no início dessa
narrativa machadiana:
Um grande escritor, Edgard Poe, relata, em um de seus admiráveis
contos, a corrida noturna de um desconhecido pelas ruas de
Londres, à medida que se despovoam, com o visível intento de
nunca ficar só. 'Esse homem, conclui ele é o tipo e o gênio do crime
profundo: é o homem das multidões'. (ASSIS, 1998, p. 264).
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Essa não é a única referência que Machado faz a Poe: este é
mencionado na advertência, de Várias histórias:
As palavras de Diderot que vão por epígrafe no rosto desta coleção
servem de desculpa aos que acharem excessivos tantos contos. É
um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os
do filósofo. Não são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que
dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe
entre os primeiros escritos da América. (ASSIS, 2008, p. 15).
Além disso, Machado traduziu para o português ―O corvo‖, no qual o
escritor norte-americano se baseou para criar a ―Filosofia da composição‖.
No entanto, o conto machadiano ―Sñ!‖ não segue a fñrmula poeana na sua
elaboração. O narrador mostra que o seu personagem não é igual ao de Poe:
Bonifácio não era capaz de crimes [como é o protagonista poeano], nem ia
agora atrás de lugares povoados, tanto que vinha recolher-se a uma casa
vazia. (ASSIS, 1998, p. 264).
Assim, há várias diferenças entre ―Sñ!‖ e ―O homem das multidões‖,
apesar de as narrativas coincidirem na extensão: são contos curtos. No escrito
poeano a ideia de conclusão é evidenciada no ponto final: o texto se esgota
quando o narrador consegue responder a seu próprio questionamento: por que
um mendigo caminha intensamente nas ruas de Londres com um ar
desesperado? A resposta, que faz com que o conto se acabe, é que ele foge da
solidão; portanto, incansavelmente, procurava estar no meio dos outros.
A possibilidade de crime e a atmosfera macabra de alguns momentos
de ―Um homem das multidões‖ (principalmente quando o
narrador/protagonista percebe que o ancião que persegue porta um punhal)
não existem em ―Sñ!‖.
Se existe crime no texto machadiano é aquele sutil e legalizado, o da
escravidão, que gerou emudecimentos nos escravos, proibidos de
manifestarem-se; Tobias impõe mudez ao seu criado: Costumava ele
desaparecer da cidade durante um ou dous meses; metia-se em casa, com o
único preto que possuía, e a quem dava ordem de lhe não dizer nada.
Existe, nesse caso, o que Eni Orlandi chamou de política do silêncio
ou silenciamento:
Aí entra toda a questão do ―tomar a palavra‖, ―tirar a palavra‖,
obrigar a dizer, fazer calar, silenciar etc. Em face dessa sua
dimensão política, o silêncio pode ser considerado tanto como
parte da retórica da dominação (a da opressão) como de sua
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
50
contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência).
(ORLANDI, 1995, 30-31).
A servidão associada ao emudecimento é apresentada em ―Sñ!‖, pois
Tobias, metido a filósofo, quer solidão e silêncio para refletir melhor3. Seu
poder é medido no ―tirar a palavra‖ do escravo, que nem é considerado como
uma presença:
Bonifácio, um dos seus poucos familiares, perguntou-lhe um dia
que prazer achava naquelas reclusões tão longas e absolutas; Tobias
respondeu que era o maior regalo do mundo.
— Mas, sozinho! Tanto tempo assim, metido entre quatro
paredes, sem ninguém!
— Sem ninguém, não.
— Ora, um escravo, que nem sequer lhe pode tomar a benção!
— Não, senhor. Trago um certo número de idéias; e, logo que
fico só, divirto-me em conversar com elas. (ASSIS, 1998, p. 265).
Na seqüência, o pseudofilósofo aconselha Bonifácio a se afastar do
ruído e do aglomerado citadino. O rapaz, aceitando o conselho, aproveita o
silêncio para refletir, ler, lembrar do passado, principalmente de Carlota, uma
antiga namorada. Mas a quietude passa a tornar-se cada vez mais intensa e
impressionante:
A impressão do silêncio, principalmente, afligia mais que a da
solidão. Ouvia alguns pios de passarinhos, cigarras, - às vezes um
rodar de carro, ao longe, - alguma voz humana, ralhos, cantigas,
uma risada, tudo fraco, vago e remoto, e como que destinado só a
agravar o silêncio. (ASSIS, 1998, p. 269).
Há ao final do conto dois tipos de silêncio: o da escuta, quando
3
Isso tem um tom irônico no caso do pseudofilósofo do texto machadiano, mas para
os verdadeiros filósofos tem uma repercussão séria: a solidão e a mudez são
fundamentais para os pensadores, como mostra Nietzsche, em Assim falou
Zaratrustra e Gilvan Fogel, no seu ensaio ―A respeito do fazer necessário e inútil
Ou do silêncio‖, em que comenta o livro nietzschiano: Aí está o homem, o tipo de
silêncio – de solidão. De silêncio, isto é, feito por ele, por ele atravessado e
performado, então, por ele cunhado, forjado, modelado. O silêncio é mesmo
metalurgia do próprio, da identidade. Forja da verdade e da liberdade. Lugar
único do real. A Vida, todo real possível, é, precisa ser, per-feição de silêncio e
solidão. (FOGEL, 1996, p. 56).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
51
Tobias faz-se mudo para ouvir a experiência da reclusão quieta de Bonifácio
e o do final da narrativa, marcada por reticências, apesar de não estarem
grafadas. Quando pede a Bonifácio para lhe dar as últimas notícias, Tobias
tem a seguinte reação: Tobias ouviu, com olhos meio cerrados, pensando em
outra coisa. (ASSIS, 1998, p. 273).
Esse final, que evidencia o silêncio de um conto aberto, avesso a
esclarecimento e a clímax derradeiros, contraria o término de ―O homem das
multidões‖, de Edgar Allan Poe; ele está mais prñximo dos finais
tchekhovianos.
A tendência de Tchekhov de terminar muitos contos com um
anticlímax, em vez de um final tragicamente retumbante, ao estilo de Poe,
ocorre, não raro, em Machado. Assim, a narrativa curta machadiana, como a
tchekhoviana, opta, amiúde, por um término aberto ou mesmo monótono. Se
o final de ―A cartomante‖ é tão explosivo quanto os tiros de Vilela disparados
em Camilo, já em ―A noite do almirante‖ a tensão cumulativa gerada pelo
ciúme no meio do conto não o pontua com uma apoteose impactante e
sangrenta, evidenciando possibilidades de homício ou suicídio. Apesar de
prometer a Genoveva que extinguiria a sua própria vida, Deolindo VentaGrande não cumpre o anunciado e ao invés do ruído dos disparos de uma
arma tem-se o silêncio da omissão da verdade no final reticente:
A verdade é que o marinheiro não se matou. [...] alguns
dos companheiros pediram-lhe notícias de Genoveva.
Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto,
um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece
que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.
(ASSIS, 1992, p. 451).
Machado e Tchekhov dialogam com seus contos de finais infindos.
Com relação ao autor russo, Elena Vassina, no ensaio ―O eterno Tchékhov‖,
afirma:
Tchekhov nunca sugere soluções para os problemas tão difíceis da
vida, por isso, muitas obras não têm desfecho, terminam em
reticências, como o fluxo natural da vida. Através do indefinido e
do infinito, sempre presentes na narrativa de Tchekhov, suas obras
ficam ligadas com a eternidade da própria vida, com aquela luz
divina que sempre se sente nas verdadeiras obras de arte que
ultrapassam o seu tempo. (VÁSSINA, 2004, p. 16).
Elena percebe que no teatro se dá o mesmo: O estado do espírito nos
dramas de Tchekhov é exatamente aquilo que liga o instante presente com a
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
52
eternidade, por isso suas peças sempre têm um final aberto. (VÁSSINA,
2004, p. 19).
A gaivota é um exemplo disso, já que se ―encerra‖ com o suicídio de
Trigórin. O crítico Rubens Figueiredo, em posfácio da sua tradução desse
drama, comenta:
Em uma composição desse tipo, mesmo que sobrevenha ao final
um acontecimento de impacto – como é o caso em A gaivota –, não
haverá um desfecho propriamente dito. Tal acontecimento, por
mais dramático que pareça, por mais sofrimento que concentre em
si, não representa nem solução, nem desvelamento, nem catarse. O
espectador subentende que a mesma crise e o mesmo desajuste
prosseguirão intactos e apenas se agravarão na vida futura dos
personagens. (FIGUEIREDO, 2004, p. 110).
A inconclusibilidade nessa e em outras peças tchekhovianas talvez se
evidencie por causa do subtexto, como nota Elena Vássina, num comentário
que serve para os contos desse escritor russo: O mais importante torna-se o
subtexto – a ação não verbal que se desenrola na transformação da
atmosfera de cada cena. (VÁSSINA, 2004, p. 19).
O subtexto muitas vezes pauta-se pelos enigmas, como em A gaivota:
Nina: Ultimamente, o senhor se irrita à toa, se expressa de um
modo totalmente incompreensível, como se usasse símbolos. Veja
aqui esta gaivota, também deve ser símbolo, ao que parece, mas me
desculpe, eu não entendo... (TCHEKHOV, 2004, p. 44).
O escritor fictício Trigórin, dessa peça, faz o mesmo que vários
autores reais, como o próprio Tchekhov: comunica-se numa linguagem
enigmática. O autor russo afirmou que acabou esse drama em pianíssimo e
usava a mesma estratégia para seus contos. Essa prática tchekhoviana pode
ser notada em ―Uma natureza enigmática‖. Nessa narrativa, uma personagem
feminina, sem nome, filha de um funcionário público, afirma a um escritor de
contos, em um trem: Eu sou uma sofredora bem ao estilo de Dostoiévski...
(TCHEKHOV, 1991, p. 13)
As reticências que encerram esse comentário também surgem ao final
do conto que é este: O leque quebrado cobre o rostinho bonito. O escritor
apóia a cabeça cheia de pensamentos, suspira e põe-se a meditar com ar de
psicólogo experimentado. A locomotiva apita e solta um longo chio de vapor,
enquanto o sol poente tinge de vermelho as cortininhas da janela...
(TCHEKHOV, 1991, p. 15).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
53
A natureza enigmática está não só na personalidade da personagem,
mas também no próprio escrito com final reticente. Entregue ao silêncio da
reflexão, o contista pensa nas palavras daquela mulher que havia se casado
com um militar que não amava para tirar sua família da miséria. Quando ele
morreu sentiu-se livre, mas arranjou um novo problema: - Um outro velho
rico... (TCHEKHOV, 1991, p. 15).
Outro conto tchekhoviano com muitas reticências e enormes silêncios
é ―Angústia‖. Nele, é apresentada a histñria do cocheiro Iona Potapov, que
anseia por um diálogo com algum de seus passageiros, pois seu filho morreu
e ele quer desabafar sua dor, conversar sobre os detalhes do passamento. São
várias as suas tentativas para conseguir um interlocutor, mas as pessoas, tão
ensimesmadas, não querem ouvi-lo.
O silêncio escuta, afirma Mário Quintana, e muito antes, no ano 100
d. C, Plutarco, já estudava a mudez audiente, na quarta seção do tratado
Como ouvir, intitulada ―Elogio do silêncio‖. Ele mostra a necessidade da
mudez, para que, com método, sejam aproveitadas ao máximo as
experiências auditivas: o silêncio é para o jovem um seguro adorno,
principalmente quando, ao escutar outro, não se excita, nem exclama a cada
instante, mas, [...] se contém e espera que o palestrante acabe de falar.
(PLUTARCO, 2003, p. 13).
No entanto, em ―Angústia‖, de Tchekhov, nem jovens, nem adultos
querem escutar Iona. O final desse texto é surpreendente:
— Assim é, irmão, minha egüinha... Não existe mais Kuzmá
Iônitch... [...]. Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é teu
filho... E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o
outro mundo... Dá pena, não é verdade?
O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu
amo... Iona anima-se e conta-lhe tudo... (TCHEKHOV, 1999, p.
138).
Apenas o rocim de Iona oferece a ele o silêncio da escuta. Nesse
epílogo, o protagonista pronuncia três termos no diminutivo: egüinha,
potrinho e cavalinho. Como essas palavras são dirigidas a seu animal, isso
pode revelar o tom amoroso do protagonista ao se manifestar com o bicho,
mas há outro sentido que o texto pode guardar em suas camadas mais
profundas: o cavalo, mesmo sendo um animal de médio porte, é mencionado
como um ser pequeno, talvez revelando o modo como é visto pela sociedade.
Como Iona se sente pequeno, pela morte do filho e por sua dor ser ignorada,
diminuída por aqueles que ele conduziu durante o dia, já que não quiseram
ouvi-la, ele se refere ao seu igual usando o diminutivo.
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54
Iona é mostrado como um ser mínimo bem antes do final da história,
já que em uma passagem anterior o narrador mostra que a angústia do
cocheiro é enorme, mas não é visível. Ou seja, para ele próprio, ela é
gigantesca, mas para os outros ela é diminuta, afinal quem quer saber das
agruras de um pequeno cocheiro? Assim, lê-se:
Está novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele... A
angústia que amainara por algum tempo torna a aparecer, inflandolhe o peito com redobrada força. Os olhos de Iona correm,
inquietos e sofredores, pela multidão que se agita de ambos os
lados da rua: não haverá, entre esses milhares de pessoas, uma ao
menos que possa ouvi-lo? Mas a multidão corre, sem reparar nele,
nem na sua angústia... Uma angústia imensa, que não conhece
fronteiras. Dá a impressão de que, se o peito de Iona estourasse e
dele fluísse para fora aquela angústia, daria pra inundar o mundo e,
no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber numa casca tão
insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com
muita luz... (TCHEKHOV, 1999, p. 136).
A imensa angústia de Iona cabe numa minúscula casca. Os
personagens tchekhovianos são convidados a constantes revisões das noções
do grande e do pequeno, assim como os leitores dos textos desse autor.
Em outra passagem, o cocheiro conduz três homens: dois altos e um
baixo. Ocorre variação de altura de seus corpos, mas o desprezo e a frieza
com relação ao luto de Iona é da mesma e enorme proporção. O mais baixo
apresenta inclusive a mais alta falta de consideração para com o cocheiro,
chegando a lhe dar um tapa:
— Esta semana... assim... perdi meu filho!
— Todos vamos morrer — suspira o corcunda, enxugando os
lábios, após o acesso de tosse. — Bem, bate nele, bate nele! Minha
gente, decididamente, não posso continuar andando assim! Esta
corrida não acaba mais?
— Você está ouvindo, velha peste? Vou te moer o pescoço de
pancada! Não se pode fazer cerimônia com gente como você, senão
é melhor andar a pé! Está ouvindo, Zmiéi Gorínitch? Ou você não
se importa com o que a gente diz?
E Iona ouve, mais que sente, os sons de uma pancada no
pescoço. (TCHEKHOV, 1999, p. 136).
Não tendo o silêncio da escuta de seus conduzidos, o pobre condutor
emudece e ouve as ofensas a ele dirigidas. Chega também aos seus ouvidos
uma pancada, que não é sentida.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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O início do conto tchekhoviano mostra o protagonista mudo,
diminuído, imóvel e coberto com a brancura da neve: O cocheiro Iona
Potapov está completamente branco, como um fantasma. Encolhido o mais
que pode se encolher um corpo vivo, está sentado na boléia, sem se mover.
Também em plena brancura, imobilidade, pequenez e silêncio está
seu cavalo: Seu rocim está igualmente branco e imóvel. Graças a sua
imobilidade, à angulosidade das formas e ao perpendicular de estaca de suas
patas, parece mesmo, de perto, um cavalinho de pão-de-ló de um copeque.
(TCHEKHOV, 2005, p. 132).
Por causa de um defunto, o cocheiro torna-se um morto em vida,
inclusive a frase Iona Potapov está completamente branco, como um
fantasma pode ser uma observação ligada não só ao fato de ele estar coberto
pela nívea brancura, mas pelo esfriamento de sua vontade de viver.
O branco pode ainda representar não só tal esfriamento, mas em
termos textuais pode se associar à lacuna, ou seja, ao espaço em branco dos
escritos tchekhovianos. Em uma missiva dirigida a Alekséi S. Suvórin, o
autor russo afirma: Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor,
supondo que ele próprio acrescentará os elementos subjetivos que faltam ao
conto. (TCHEKHOV, apud: ANGELIDES, 1995, p. 174).
Boris Schnaiderman, no mesmo ensaio em que afirma que em
Machado há certo negacear de quem diz e não diz, mostra que é empreitada
custosa traduzir Anton Tchekhov, o que ele fez algumas vezes, em virtude da
exploração originalíssima das sutilezas da língua russa, com o emprego de
expressões cuja ausência empobrece e descora inevitavelmente o texto.
(SCHNAIDERMAN, 1968, p. 141).
Assim, Machado e Tchekhov apresentam esse gosto pelas sutilezas
textuais que funcionam como um silêncio de quem se comunica nas linhas e
nas entrelinhas. Esses autores encontram-se no gosto pelo não dito e no
empenho de escrever excelentes contos, como bem notou John Gledson, em
introdução ao livro Contos: uma antologia, publicado em 1998. Para o
crítico, o autor brasileiro e o escritor russo, que foram contemporâneos,
merecem destaque mundial na arte da contística, assim como Guy de
Maupassant e Henry James. (GLEDSON, 1998, p. 15).
Se o não dito é tão importante quanto o dito no romance Dom
Casmurro, pois, como se viu, há nele as entrelinhas e os subtextos, o mesmo
ocorre de modo talvez mais intenso nas vacâncias semânticas do conto ―A
missa do galo‖. A possibilidade de uma relação extraconjugal não é afirmada
com palavras mas silenciosamente pode estar na comunicação não verbal dos
gestos. A sutileza das personagens e da escrita de Machado nesse texto
acabam por celebrar o silêncio, o que fez com que Marta de Senna
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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comparasse esse escrito machadiano com o conto tchekhoviano ―Cronologia
viva‖. A crítica nota um tom impressionista nos escritos de ambos os autores,
já que sua força está presente não na afirmação mas sim na sugestão. É
improvável, segundo Marta, que Machado tenha lido Tchekhov e vice-versa,
pois as traduções francesas do autor russo chegaram ao Brasil nos anos 30 do
século XX e os textos machadianos foram vertidos para o francês e o inglês
bem mais tarde. (SENNA, 1998, p. 105-110).
Para o teórico russo Iuri Tinianov é possível comparar dois autores
que não se leram, mas que viveram no mesmo período histórico, pois suas
obras podem apresentar tensões, angústias e questionamentos comuns.
Assim, prossigamos com o contraste entre os dois autores.
―Terpsícore‖, de Machado de Assis, e ―Bilhete premiado‖,
de Anton Thekhov: um diálogo de silêncios
―O bilhete premiado‖, de Anton Tchekhov, flagra, logo no início da
narrativa, Macha recolhendo os pratos do jantar e Ivan procurando no jornal o
resultado lotérico. Para seu espanto e êxtase, a série comprada com o dinheiro
da esposa é a premiada, falta apenas conferir o número do bilhete, o que não
é feito; ao invés disso, o marido começa a fazer planejamentos com a
possível ―bolada‖:
— A nossa série está aí — disse Ivan Dmítritch, depois de
prolongado silêncio. [...]. Escuta, e se nós realmente ganhamos?
O casal pôs-se a rir e olharam-se por muito tempo, em silêncio.
Aquela felicidade possível nublou-lhes o espírito, não podiam
sequer sonhar, dizer para que precisavam daqueles 75.000, o que
comprariam com aquilo, para onde viajariam (TCHEKHOV, 2005,
p. 156).
O silêncio desse momento revela plenitude e amplitude: extasiados
com a possibilidade do prêmio, os dois emudecem deixando-se levar pela
fantasia, pelos planos futuros. Ivan pensa em comprar um imóvel em Tula ou
Orlóv e, com nitidez, paisagens sonhadoras chegam-lhe:
E as visões aglomeraram-se na imaginação dele, cada qual mais
aprazível e poética. Em todas aquelas imagens, via-se bem
alimentado, tranqüilo, sadio, sentia uma tepidez, calor até! Tendo
comido uma sopa gelada ei-lo deitado de ventre para o ar, na areia
quente, à margem do rio, ou no jardim sob uma tília...
(TCHEKHOV, 2005, p. 157).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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O tempo que antes da consulta ao jornal se arrastava numa ínfima
porção do dia-a-dia que custava a passar agora, com toda aquela esperança,
acelera intenso como os pensamentos que passam pela mente do casal. O
espaço restrito da cozinha, revelando uma vida pautada na economia, agora
se espande na abastança e eles são transferidos, em pensamento, em direção a
praias, a países outros como França, Itália e Índia.
Ao final do conto, tudo se reduz abruptamente, voltando ao universo
minúsculo do início, quando Ivan lê os dois últimos números premiados:
Série 9499, bilhete 46! Não é 26!
Assim, o tempo volta a se arrastar e o espaço se comprime:
A esperança e o ódio desapareceram no mesmo instante e,
imediatamente, pareceu a Ivan Dmítritch e a sua mulher que seus
quartos eram escuros, pequenos e baixos, que a ceia comida há
pouco, não satisfazia e apenas fazia peso no estômago, que as
noites eram longas e cacetes...
— É o diabo — disse Ivan Dmítritch, começando a implicar .
— Por onde ando, piso sempre uns papeizinhos, migalhas, não sei
que casquinhas. (TCHEKHOV, 2005, p. 160).
Papeizinhos, casquinhas... A noção de pequenez está presente não só
no vocabulário do conto, pleno de diminutivos, mas também no seu tamanho:
são seis páginas, tanto na tradução de Boris Schnaideman, quanto na de
Tatiana Belinky. Tais traduções evidenciam a economia e a polissemia desse
conto, já que o próprio título é traduzido diferentemente: Tatiana optou por O
bilhete de loteria.4 No posfácio de sua tradução, Boris mostra como o pouco
dizer tanto do autor quanto dos personagens de ―Bilhete premiado‖ ou ―O
bilhete de loteria‖ dá margem a muitas interpretações:
A concisão máxima faz com que um conto de quatro ou cinco
páginas encerre muitas vezes uma infinidade de caminhos.
Pensemos um pouco em ―Bilhete premiado‖, [...]. Os silêncios, os
olhares, os sorrisos, como tudo adquire importância neste pequeno
episódio! Desde o maior encantamento até a máxima irritação e
revolta, que mundo de sentimentos e sensações no íntimo daquele
pequeno empregado! A figura de sua mulher não foi elaborada
psicologicamente, mas os poucos olhares, as poucas palavras, são
4
Ambas as traduções foram publicadas primeiramente em 1958: a de Tatiana está no
livro Histórias imortais e a de Boris está em A dama do cachorrinho e outros
contos, editados, respectivamente, pela Cultrix e pela Civilização Brasileira.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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mais que suficientes para sugerir toda a situação entre ambos
(SCHNAIDERMAN, 2005, p. 339).
Os silêncios eloquentes realmente merecem capítulo à parte. Depois
de conferir o número da série do bilhete comprado pela esposa, Ivan começa,
em silêncio, a fazer planos e neles a mulher não cabe, ou seja, ele sonha
viajar sem ela. A mulher, também em silêncio, pensa e o marido lê seu mudo,
mas expressivo, olhar: ―- É bom sonhar por conta alheia‖, dizia o olhar dela.
―Não, você não pode!‖ (TCHEKHOV, 1999. p. 160).
Um outro silêncio do texto está ligado ao seu epílogo. Ivan afirma:
Vou-me embora, para me enforcar na primeira árvore! Em seguida não há
nada, nenhuma palavra esclarecedora do narrador se essa promessa se
cumpriu ou não. Só há a mudez narrativa que resolveu colocar um ponto final
na história, cujo efeito é de reticências.
Em ensaio intitulado ―Acontecimento‖, Otto Maria Carpeaux analisa
um conto homônimo de Tchekhov. O crítico encerra seu texto com as
palavras de Biéli, que servem para Bilhete premiado/O bilhete de loteria. O
escritor afirma que o limite e o cinza dos contos tchekhovianos podem se
abrir para a amplidão e para a rutilância:
Os personagens de Tchekhov dizem coisas estúpidas e fazem coisas
estúpidas; comem, dormem, vivem entre as suas quatro paredes e
andam em caminhos cinzentos – mas esses caminhos cinzentos
também são os da verdadeira Vida e podem levar a um ponto em
que as quatro paredes já não nos apertam. Continuamos cinzentos;
sua luz pode ser um crespúsculo sem remédio, mas esse
crespúsculo também é um reflexo de espaços eternos. 5
Isso tudo pode ser comprovado em ―O bilhete premiado‖, texto que é
―parente‖ de alguns escritos do bruxo de Cosme Velho, principalmente
quando se leva em consideração uma história machadiana parecida com a de
Ivan e Macha: ―Terpsícore‖. Em ambas as narrativas, mostra-se a relação de
um não abastado casal com um prêmio de loteria, o que gera tensões, sonhos,
silêncios.
Publicado um ano antes do texto tchekhoviano, ―Terpsícore‖ também
se pauta no mínimo e no sombrio que se deslocam para o gigantesco e o
reluzente. Depois de ocupar páginas de periódicos (Gazeta de Notícias, em
25/3/1886, e O Globo, em 12/6/1991) essa narrativa foi parar em apenas dez
páginas do livro Contos: uma antologia, organizado por John Gledson, em
5
(BIÉLI, apud CARPEAUX, 1960, p. 66).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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1998. O crítico e tradutor afirma: ―[―Terpsícore‖] Fala sobre as camadas
populares com um tom interessante, nem cínico nem sentimental‖6. Essa é
outra coincidência entre os textos de Tchekhov e Machado: em geral, os
narradores não julgam seus personagens.
A observação de Gledson foi colhida por Salete de Almeida Cara,
que no calor da hora do lançamento do conto pela editora Boitempo, em
1996, escreveu o artigo ―Sai conto inédito de Machado‖, publicado em O
Estado de São Paulo, no dia dois de junho de 1996. Salete faz algumas
observações sobre o personagem masculino do conto machadiano, Porfírio,
notando sua preocupação com a ―fachada‖:
O casal vive numa casa pequena e cara, de onde está sendo
despejado, mas que é adornada por arabescos vistosos: detalhe nada
circunstancial, com o qual o narrador marca também o impulso de
ascenção social de Porfírio que, ao fim e ao cabo, não deixa de ser
um ‗vago impulso estético‘. (CARA, 1996, p. D8).
A edição da Boitempo tem uma introdução de Davi Arrigucci Júnior,
que usa o termo continho e a expressão pequena obra-prima (ARRIGUCCI,
1996, p. 9), para ressaltar a economia machadiana nesse texto grande. O
crítico observa que, no conto, opta-se, muitas vezes, pela construção
dramática, e o narrador silencia, evitando comentários sobre as palavras dos
próprios personagens que aparecem em ação já no início da narrativa.
Outro comentário importante é que, nesse escrito, cujo título remete à
musa grega da dança, Glória guarda em si a ambigüidade da carne e do
espírito (ARRIGUCCI, 1996, p. 12), pois concilia a elevada e nobre altivez
do cisne com os movimentos baixos e sensuais da cabrita, evidenciando um
ritmo contraditório. (ARRIGUCCI, 1996, p. 12).
José Miguel Wisnik percebeu nessa dança especial elementos da
cultura nacional e popular, já que essa Terpsícore é brasileira e não grega:
Glória surge como gloriosa encarnação – [...] – da nossa musa da
polca, com seus ―movimentos lépidos, graciosos, sensuais, mistura
de cisne e cabrita‖. Aqui, a soberana vontade de polcar, e a fixação
do marido medusado pela aparição fulgurante da mulher, que é a
própria dança popular em seu esplendor, contracenam com
vantagem inesperada sobre as asperezas e a precaridade da vida
material. (WISNIK, 2004, p. 75).
6
(GLEDSON, apud CARA, 1996, p. D8).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
60
O crítico também observou que, ao longo da obra machadiana, há um
silêncio gerado por um não dito racial (WISNIK, 2004, p. 76), que evita
palavras como mulato, por exemplo.
Terpsícore se atém à vida de Glória e Porfírio que se movimentam
entre as raras festas opulentas e a miséria do cotidiano. A dança é a base do
conto, não só aquela que faz mover os personagens na dinâmica das
oscilações econômicas, mas também a do corpo:
Glória tinha as feições irregulares e comuns; mas o riso dava-lhe
alguma graça. Nem foi pela cara que ele se enamorou dela; foi pelo
corpo, quando a viu polcar, uma noite, na rua da Imperatriz. Ia
passando, e parou defronte da janela aberta de uma casa onde se
dançava. (ASSIS, 1998, p. 336).
Essa foi a primeira e deleitosa imagem que Porfírio teve daquela que
depois de um semestre se tornaria a sua esposa. Também um semestre é o
tempo de atraso do aluguel desse casal que terá o risco de ser jogado à ―rua
da amargura‖ e ver seus pertences despejados em um depñsito.
Um salto redentor nessa dança da vida é dado pela dupla: Porfírio
(que antes de se casar faz um curso, em meio a costureiras magras e
cansadas (ASSIS, 1998, p. 337), para não fazer feio junto à lépida e graciosa
futura esposa em vindouros bailes) paga todas as dívidas e ainda decide
oferecer uma festa de estrondo. A loteria foi a salvação do casal que ao termo
do festejo voltará a ser tão pobre quanto antes.
O final, que silenciosamente se abre para as reticências, embora não
grafadas, é este: Então o oficlide roncava alguma coisa, enquanto as últimas
velas expiravam dentro das mangas de vidro e nas arandelas. (ASSIS, 1998,
p. 344).
Final sem clímax, atmosfera vaga que pode suscitar morte: morte de
uma euforia que de tão intensa expira obscuramente como a vela que antes
clareava a despreocupação de soltos casais dançantes.
Tal desfecho inconclusivo pode fazer vir à tona, dessas entrelinhas
derradeiras, um senso de funda melancolia. No entanto, deve-se observar que
a luz da alegria, que naquele momento falece, em tempos outros, também
havia morrido, na festa de casamento dos dois, mas reacendeu intensa nessa
comemoração última, para brindar a sorte.
Assim, contraditoriamente, o fechamento narrativo pode ser lido
como uma abertura, já que é capaz de apontar não só para futuras desgraças
de um dinheiro que morre fácil mas também para venturas festas organizadas
para celebrar a vividez de um bem-estar que não tem preço.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
61
Cíclico é o conto que, em seu movimento parecido com os giros dos
casais das duas festas, acaba por apresentar certos elementos míticos. Glória,
a Terpsícore carioca, acaba mesmo sendo associada a um horizonte divino já
que, diante das dívidas que, circularmente, vinham aos poucos sorrateiras e
miudinhas (ASSIS, 1998, p. 338) depois de passados os bailes, sempre pede a
Porfírio que tenha fé em Deus ou na madrinha do céu (ASSIS, 1998, p. 335),
pois alguma força do alto os retirará daquelas inquietudes terrenas e
passageiras com o aceno do milagre, da sorte.
A idéia do auxílio altivo acaba aparecendo nas elocubrações desse
pobre marceneiro que, como Ivan, do conto tchekhoviano, voa na fantasia da
possiblidade do prêmio:
Porfírio sentiu uma coisa no coração, um palpite, vacilou, andou,
recuou e acabou comprando. Calculou que, no pior caso, perdia
dois mil e quatrocentos; mas podia ganhar, e muito, podia tirar um
bom prêmio e arrancava o pé do lodo, pagava tudo, e talvez ainda
sobrasse dinheiro. Quando não sobrasse, era bom negócio. Onde
diabo iria ele buscar dinheiro para saldar tanta coisa: Ao passo que
um prêmio, assim inesperado, vinha do céu. (ASSIS, 1998, p. 339).
O fato é que a fé de Glória e a fezinha de Porfírio os libertam e ele
quer presenteá-la com um vestido de seda, cujo azul há de celebrar esse
estado divinal de estarem nas nuvens, suspensos de uma opressiva e rasteira
situação cotidiana. Mas se Glória tem forte relação com o alto, o mesmo se
pode dizer com relação ao baixo, como já foi bem notado, e traz Porfírio para
o plano terrenal, quando o lembra da condição pobre a que pertencem e
recusa a compra do vestido caro. Porém, o esposo insiste:
Glória opôs-se logo, instou, rogou, zangou; mas o marido tinha
argumentos para tudo. Contavam eles com esse dinheiro? Não;
podiam estar como dantes, devendo os cabelos da cabeça, ao passo
que assim ficava tudo pago, e divertiam-se. Era até um modo de
agradecer o benefício a Nosso Senhor. Que é que se levava da
vida? Todos se divertiam; os mais reles sujeitos achavam um dia de
festa; eles é que haviam de gastar os anos como se fossem
escravos? (ASSIS, 1998, p. 342).
A escravidão estava dentro e fora desse escrito, já que ele foi
publicado antes do 13 de maio de 1888. Assim, Glória, vista, nas festas,
como uma rainha e que conheceu Porfírio na Rua Imperatriz, trabalha como
uma escrava; ela e o seu companheiro. Seriam mulatos? Não se sabe, há só
um silêncio, um não dito racial, como já foi observado.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Os dois escritores alcançam um efeito final semelhante nos contos
analisados: a já mencionada inconclusibilidade, que evidencia-se abrupta.
Assim, opto, também, por abolir aqui as conclusões. O resto é silêncio e
reticências...
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
64
Conto fantástico e conto regionalista
Ana Luiza Silva CAMARANI1
RESUMO: O artigo tem por objetivo analisar os contos regionalistas ―A dança dos
ossos‖, de Bernardo Guimarães e ―Assombramento‖, de Afonso Arinos como
narrativas fantásticas, por meio das teorias sobre o fantástico literário de Louis Vax,
Tveztan Todorov e Irène Bessière. A discussão e a análise têm como ponto de partida
o artigo do crítico Jean Molino e a relação que determina entre a lenda (oral) e o
fantástico (escrito), ligada à reflexão de Vax (1965), quando este assinala ter a obra
fantástica uma estrutura não imutável; consequentemente, as obras modificam sem
cessar a ideia que se faz do fantástico, por meio das flutuações tanto das escrituras –
de uma obra à outra -, quanto das culturas – de um meio, de uma época, de uma
sociedade e mesmo de um autor a outro. Os contos de Guimarães e Arinos
apresentam características próprias da narrativa fantástica, entre elas a ambiguidade
que define esse tipo de modalidade literária. Conclui-se, assim, que esses dois contos
regionalistas são também contos fantásticos.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura brasileira. Conto. Fantástico. Lenda regional.
FANTASTIC AND REGIONAL SHORT STORIES
ABSTRACT: This article has the objective of analyzing Bernardo Guimarães ―The
bones dance‖ and Afonso Arinos ―Haunting‖, both regional short stories, as
fantastic narratives through the theories about the Louis Vax, Tveztan Todorov and
Irène Bessière literary fantastic. The discussion and the analysis have as starting
point the article of the critic Jean Molino and the relation that determines between
the legend (oral) and the fantastic (written), connected to the reflection of Vax
(1965), when he points out that the fantastic work has a non-immutable structure;
consequently, the works modify without stopping the idea of the fantastic through the
fluctuations both of the writings -from one work to another-, and the cultures- from a
place, from a time, from a society and even from one author to another. Guimarães
and Arinos short stories show characteristics that are from the fantastic narrative,
such as ambiguity which defines that kind of literature modality. Therefore, we can
assume that these two regional short stories are also fantastic short stories.
KEY WORDS: Brazilian literature. Short story. Fantastic. Regional legend.
1
UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Faculdade de
Ciências e Letras. Departamento de Letras Modernas. Araraquara – São Paulo –
Brasil. 14800-901 – [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
65
Fantástico e regionalismo
No início de seu artigo intitulado ―Le fantastique entre l‘oral et l‘écrit‖, Molino
(1980) assinala ser a análise literária fiel à ligação que manifesta a etimologia da
palavra que designa seu objeto: a literatura é assunto de letras, isto é, de escritura.
Interrogar-se sobre as ligações entre fantástico
oral e fantástico escrito conduz a uma primeira
constatação, evidente, mas essencial: não existe
categoria ―fantástico‖ nas literaturas orais. A palavra,
sabe-se, nasceu, com a acepção que nos interessa, por
volta de 1830, no momento do triunfo de Hoffmann na
França.2 (MOLINO, 1980, p. 32).
Com efeito, o termo ―fantástico‖ surge em sua acepção literária por ocasião
da tradução francesa das Phantasiestücke in Callot’s Manier de E. T. A. Hoffmann,
publicadas na Alemanha em 1813. A palavra alemã ―Phantastich‖ evocava
inicialmente as formas breves da fantasia e, na época romântica, trazia à lembrança
tudo o que se referia ao domínio do imaginário; mas, com a tradução da obra de
Hoffmann, o adjetivo evolui em direção ao substantivo e passa a designar uma
tendência (GLINOER, 2009, p. 109) – ou modalidade literária, de acordo com
Ceserani (2006, p. 7). O entusiasmo pela obra de Hoffmann deve ainda ser
relacionado com a voga dos gêneros breves - e mais propriamente com a propagação
do conto -, que rompiam com os intermináveis romances góticos: o conto vai reinar
durante anos nas revistas, jornais e antologias. (GLINOER, 2009, p. 111).
Em suas reflexões sobre a narrativa fantástica, Molino (1980, p. 34) defende
a ideia de que o fantástico escrito deriva da lenda oral, pois a lenda aparece como a
experiência autêntica da irrupção, situada no real, do excepcional ou do sobrenatural,
susceptíveis de provocar a surpresa, a inquietude ou o medo.
Segundo o crítico, a lenda popular é sempre considerada como remetendo a uma
experiência ou um acontecimento que realmente ocorreu, logo, é passível de
credibilidade; além disso, a lenda está situada em um tempo e um espaço definidos,
nos quais se apresentam seres dotados de uma identidade pessoal consistente: as três
dimensões da dêixis (ego, hic, nunc) estão presentes; a lenda apresenta, ainda, a
irrupção do excepcional ou do sobrenatural no real: há distinção e ruptura entre os
dois domínios (MOLINO, 1980, p. 33).
2
S’interroger sur les liens entre fantastique oral et fantastique écrit conduit à une
première constatation, évidente mais essentielle: il n’existe pas de catégorie
«fantastique» dans les littératures orales. Le mot, on le sait, est né, avec
l’acception qui nous intéresse, vers 1830, au moment du triomphe d’Hoffmann en
France. (As traduções das citações no corpo do texto são minhas).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
66
Este último traço constitui uma das características essenciais da narrativa fantástica
literária, apontado pelos diferentes teóricos que se dedicam ao estudo do fantástico na
literatura. Bessière (1974, p. 56-57), por exemplo, assinala pertinentemente que o
sobrenatural introduz uma segunda ordem possível no discurso realista da narrativa
fantástica: o fantástico resultaria da contradição entre essas duas ordens e de sua
recusa mútua e implícita. Por ser a narrativa dos contrários, o fantástico é a do limite
praticamente apto a evocar os traços extremos do real; a partir das ―formas simples‖
de Jolles (1972), que estariam na origem de formas artísticas, Bessière (1974, p. 2023) considera o fantástico como uma forma mista do caso e da advinha, hibridismo
que remete à oralidade tanto do ato de contar casos (acontecimentos tidos como
reais), quanto ao modo cifrado ou encoberto da pergunta que caracteriza a advinha
(mistério), o que pressupõe a ambiguidade essencial ao fantástico.
Ora, alguns contos regionalistas desenvolvem-se a partir de casos relatados pelos
personagens ou lendas apresentadas pelos narradores. Na ―Introdução‖ à antologia O
conto regionalista do romantismo ao pré-modernismo, Marchezan (2009) assinala a
presença tanto dos casos, quanto das lendas na composição de alguns dos textos que
selecionou. E dois desses contos selecionados podem, a meu ver, ser considerados
também como contos fantásticos: ―A dança dos ossos‖ e ―Assombramento‖.
Em um dos livros fundadores que propõem teorias sobre a narrativa fantástica,
Introdução à literatura fantástica, Todorov (1975) considera o fantástico como um
gênero literário e desenvolve seu pensamento nesse sentido ao estabelecer uma
estrutura que contempla aspectos formais e temáticos recorrentes nesse tipo de
narrativa.
No entanto, os diferentes gêneros considerados pela tradição são o épico, o lírico e o
dramático; e mesmo que consideremos apenas o gênero épico no que tange à
narrativa fantástica, esta pode manifestar-se sob a forma de romance, novela ou
conto. Assim, neste aspecto específico, considero a concepção de Vax (1965) mais
promissora, desde que a incerteza em relação ao sobrenatural ou insólito no universo
ficcional determine a ambiguidade característica da narrativa fantástica.
Em seu texto, também fundador sobre o fantástico literário, Vax aponta a existência
de uma estrutura da obra fantástica, mas uma estrutura não imutável;
consequentemente, as obras modificam sem cessar a ideia que se faz do fantástico,
por meio das flutuações tanto das escrituras – de uma obra à outra -, quanto das
culturas – de um meio, de uma época, de uma sociedade e mesmo de um autor a
outro:
Compreender o fantástico é compreender de dentro a
estrutura e a evolução das obras fantásticas. [...] Nunca
se descobrirá nas obras a marca imutável do fantástico
em si, porque é a própria noção do fantástico que se
nuança, se desvia, se amplia, se contrai segundo as
estruturas das obras que caracteriza. O sentido da palavra
fantástico é o que lhe dá, em um dado momento, um
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
67
homem marcado pelo conhecimento das obras e por seu
meio cultural3. (VAX, 1965, p. 6-7, grifo do autor).
Ao abordar o fantástico principalmente sob um ângulo filosófico, Vax (1965) não
chega a articular uma sistemática da prática da escritura fantástica. Ao contrário,
pretende provar o caráter movente da modalidade invocando a presença da prática
individual sobre o modelo geral, e quer demonstrar que o fantástico não é
circunscrito de modo preciso.
As concepções de Vax (1965) são bastante pertinentes, pois não sendo mais a
literatura regida por regras rígidas e canônicas, os autores contemporâneos não
hesitam em misturar gêneros e modalidades literárias diferentes em suas produções.
Para Bessière (1974, p. 144), o fantástico renova seus elementos objetivos de acordo
com as descobertas científicas. Essa movimentação do fantástico permite, assim, que
este se manifeste no conto regionalista, sobretudo a partir das superstições locais, da
cultura regional.
Essas considerações relativas à forma movente do fantástico não invalidam
a proposta de Todorov que, ao se debruçar sobre narrativas fantásticas do século
XIX, lançou luzes indeléveis sobre o assunto, tanto que é retomado por todos os
teóricos posteriores.
―A dança dos ossos‖
Marchezan (2009) apresenta o conto de Guimarães de forma modelar:
―A dança dos ossos‖ é um conto de 1871.
Bernardo Guimarães, pós-romântico, elege um barqueiro
como protagonista, que, numa narrativa envolta com
casos de assombramentos, dialoga com um homem
ilustrado. O caso constitui-se no enredo do conto,
tramado a partir de uma situação que compara o
comportamento místico do barqueiro, recolhido no seu
mundo, com o comportamento experiente do seu
interlocutor ilustrado, que procura compreendê-lo com o
exercício da observação. (MARCHEZAN, 2009, p.
XVIII).
3
Comprendre le fantastique, c’est comprendre du dedans la structure et l’évolution
des oeuvres fantastiques. [...] On ne découvrira donc jamais dans les oeuvres
l’empreinte immuable du fantastique en soi, puisque c’est la notion même du
fantastique qui se nuance, s’infléchit, s’élargit, se rétrécit selon les structures des
oeuvres qu’elle caractérise. Le sens du mot fantastique, c’est celui que lui donne, à
un moment donné, un homme marqué par sa connaissance des oeuvres et par son
milieu culturel.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
68
Nessa breve síntese, já se observa um dado importante da teoria de Todorov
(1975): a existência de um narrador representado, que favorece a criação da dúvida,
sobretudo se é introduzido como um homem racional e ilustrado, cujas últimas
palavras no conto são: ―À vista de tão valentes provas, dei pleno crédito a tudo
quanto o barqueiro me contou, e espero que os meus leitores acreditaram comigo,
piamente, que o velho barqueiro do Parnaíba, uma bela noite, andou pelos ares
montado em um burro, com um esqueleto na garupa.‖ (GUIMARÃES, 2009, p. 30).
Mas a questão do narrador não é tão simples em ―A dança dos ossos‖, pois o
protagonista faz-se também narrador ao contar seu caso, determinando uma estrutura
que se repete nos textos fantásticos: as narrativas encaixadas, de que muito se serviu,
por exemplo, Guy de Maupassant em vários de seus contos, e que em The turn of the
screw, de Henry James, é essencial para determinar o ponto de vista através do qual
os acontecimentos são focalizados. Na narrativa de Bernardo Guimarães (2009), o
relato do narrador principal, homodiegético de acordo com as proposições teóricas de
Genette (1972, p. 252), serve de moldura para a exposição do caso do protagonista.
Ao começar a contar seu caso, o barqueiro torna-se um narrador autodiegético
(GENETTE, 1972, p. 253); assim, os dois narradores são personagens, o que é
―preferível ao narrador não representado‖, pois ―se o acontecimento nos fosse
contado por um narrador desse tipo [...] não haveria possibilidade, com efeito, de
duvidar de suas palavras; mas o fantástico, nñs o sabemos, exige a dúvida.‖
(TODOROV, 1975, p. 91).
A estrutura do conto de Guimarães (2009) apresenta ainda mais um componente: no
meio do caso contado pelo barqueiro protagonista, o narrador principal, por sua vez,
conta seu caso, com o intuito de convencer o barqueiro de que ele foi vítima de uma
ilusão dos sentidos.
O conto estrutura-se em quatro capítulos: no primeiro, o narrador homodiegético
inicia seu relato, depois de assinalar o espaço em que se encontra, junto das ―florestas
que bordam as margens do Parnaíba, nos limites entre as províncias de Minas e de
Goiás. Eu viajava por esses lugares e acabava de chegar ao porto, ou recebedoria, que
há entre as duas províncias.‖ (GUIMARÃES, 2009, p. 1). Depois de referir-se aos
outros companheiros, apresenta o protagonista: ―O mais velho deles, de nome Cirino,
era o mestre da barca que dava passagem aos viandantes.‖ (GUIMARÃES, 2009, p.
3).
O diálogo entre eles dá ensejo a que Cirino conte seu caso, tornando-se também
narrador, no princípio do segundo capítulo: ―Um dia, há de haver coisa de dez anos,
eu tinha ido ao campo, à casa de um meu compadre que mora daqui a três léguas. Era
uma sexta-feira, ainda me lembro como se fosse hoje.‖ (GUIMARÃES, 2009, p. 6).
A sexta-feira é, então, um dia fatídico para o barqueiro, pois foi nesse dia da semana
que os eventos sobrenaturais teriam se passado:
Quando montei no meu burro para vir-e embora, já o sol
estava baixinho; quando cheguei na mata, já estava
escuro; fazia um luar manhoso, que ainda atrapalhava
mais a vista da gente. Já eu ia entrando na mata, quando
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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me lembrei que era sexta-feira. Meu coração deu uma
pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse
adiante. [...] À proporção que ia chegando perto do lugar
onde está a sepultura, meu coração ia ficando pequenino.
(GUIMARÃES, 2009, p. 6-7).
Observa-se que Cirino penetra em um espaço e um tempo que se tornam recorrentes
na narrativa fantástica desde seu início na primeira metade do século XIX europeu, e
que são componentes característicos do romance gótico inglês: a noite, o luar, a mata
escura. Tendo traçado o cenário, o contador de caso foca-se no evento:
Enquanto eu estou esporeando com toda a força a barriga
do burro, salta lá, no meio do caminho, uma cambada de
ossinhos brancos, pulando, esbarrando uns nos outros, e
estalando numa toada certa, como gente que está
dançando ao toque da viola. Depois, de todos os lados,
vieram vindo outros ossos maiores, saltando e dançando
da mesma maneira. Por fim de contas, veio vindo lá, de
dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e
com os olhos de fogo [...]. (GUIMARÃES, 2009, p. 8).
Ainda outros ossos vão chegando e acabam por formar um esqueleto completo que
começa a dançar defronte do barqueiro, terminando por encaixar-se em sua garupa:
―Eu não vi mais nada depois; fiquei atordoado. Pareceu-me que o burro saiu comigo
e com o maldito fantasma, zunindo pelos ares, e nos arrebatava por cima das mais
altas árvores.‖ (GUIMARÃES, 2009, p. 11, grifo meu).
Esqueletos, fantasmas, sepulturas são também elementos que entram na configuração
da literatura gótica; nesta, porém, a manifestação de fantasmas similares é explícita,
isto é, não há dúvida quanto à presença de figuras e acontecimentos sobrenaturais,
mesmo que se contraponham ao real do universo da narrativa. Em Guimarães, esses
dados que ultrapassam o natural são nuançados, seja pelo ―luar manhoso‖ que
atrapalhava a vista, seja pela superstição e pelo medo do barqueiro, seja ainda pela
modalização (TODOROV, 1975, p. 88) da última citação acima, que extingue a
certeza do evento supostamente vivido pelo protagonista.
A todas essas nuances que determinam a incerteza e a ambiguidade próprias da
narrativa fantástica, juntam-se as considerações racionais do narrador principal, que
fazem parte do terceiro capítulo do conto. Assim, esse narrador lúcido e confiável
que o barqueiro chama de ―meu amo‖, sugere primeiramente que Cirino houvesse
bebido muita cachaça e tivesse ficado ―com a vista turva e a cabeça desarranjada.‖;
depois chama a atenção para a ―imaginação exaltada‖ do barqueiro; assinala ainda
que a floresta era ―frouxamente alumiada por um luar escasso.‖ e que ―os ossinhos
que dançavam não eram mais do que os raios da lua‖, peneirados pelos ramos das
árvores. (GUIMARÃES, 2009, p. 13).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Nessa tentativa de convencer o barqueiro de que nada havia de sobrenatural, o
narrador da narrativa principal passa a relatar seu prñprio caso: ―Eu te conto um caso
que me aconteceu.‖, diz ele, e principia:
Eu ia viajando sozinho – por onde não importa -, de
noite, por um caminho estreito, em um cerradão fechado,
e vejo ir, andando a alguma distância diante de mim,
qualquer cousa, que na escuridão não pude distinguir.
Aperto um pouco o passo para reconhecer o que era, e vi
clara e perfeitamente dois pretos carregando um defunto
dentro de uma rede. (GUIMARÃES, 2009, p. 15).
Em sua descrição aparecem palavras como ―defuntos‖, ―aparição‖, ―terror‖,
―cadáver‖, ―cemitério‖, ―sinistra visão‖, ―sinistra aparição‖, ―sinistro vulto‖
(GUIMARÃES, 2009, p. 16-17), para concluir que a suposta aparição era uma vaca.
No entanto, sua história sequer abala as crenças do barqueiro, que retoma seu caso no
quarto e último capítulo; assim, as duas partes da história de Cirino emolduram a
pequena narrativa que constitui o caso do narrador principal.
―Assombramento‖
A respeito de ―Assombramento‖, de Afonso Arinos, conto publicado na Revista
Brasileira no final do século XIX, em 1895, Marchezan (2009) discorre da seguinte
forma:
O conto, primeiramente, confirma o seu tema: Manuel
Alves começa por se fazer um desassombrador, porém,
com medo, aflito, vê-se diante de assombrações, sofre
uma queda e morre. A seguir, no local de sua queda, seus
companheiros acham ouro, o que confirma a lenda.
Acontece que, para a narrativa, Manuel Alves lutou com
assombrações e foi derrotado pelo que dizia não temer.
(MARCHEZAN, 2009, p. XXVIII-XXIX)
Diferentemente de ―A dança dos ossos‖, no conto de Arinos (2009) o narrador é
heterodiegético (GENETTE, 1972, p. 252). Logo na segunda página, sugere a
existência de uma lenda: ―Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem
as marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite,
teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz
fanhosa a encomendação.‖ E apresenta o protagonista: ―Mas o cuiabano Manuel
Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões, e quis tirar a cisma da casa
mal-assombrada.‖ (ARINOS, 2009, p. 188).
Nota-se que o fato de o narrador ser heterodiegético não prejudica a ambiguidade do
texto, pois o discurso direto por meio dos diálogos entre Manuel Alves, o arrieiro
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
71
aparentemente cético, e seu camarada Venâncio, o crédulo, promove, a princípio, a
incerteza: acreditar ou não que o local é assombrado.
E, de início, o conto de fato centra-se no espaço: a casa assombrada, já em ruínas,
que os tropeiros têm o cuidado de evitar. A partir dos castelos góticos, com seus
labirintos e passagens secretas, o fantástico elege os casarões abandonados como um
dos cenários prediletos, ao lado de bosques sombrios e cemitérios em ruínas.
É nesse espaço que o racional Manuel Alves decide passar a noite, sozinho, a
despeito da lenda sobre o local: ―-Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca
do povo fala verdade uma vez. [...] Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há
de saber amanhã.‖ (ARINOS, 2009, p. 191, 193).
A solidão e a noite entram na composição do espaço propício ao fantástico. Enquanto
Manuel Alves instala-se na casa, seus tropeiros, do lado de fora, conversam:
A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de
coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite,
realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco,
filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um
como terror pela iminência das aparições. (ARINOS,
2009, p. 191, 197).
O relato de casos está, então, também presente no conto de Arinos, embora a
estrutura da narrativa seja linear. Igualmente composta por quatro capítulos, é no
terceiro que são descritos os eventos relativos a Manuel Alves e seu pernoite na casa
mal-assombrada. Dentro dela, toma ciência de seu estado ruinoso: ―O teto de estuque
[...] rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha do
telhado. Por aí corria uma goteira no tempo das chuvas e, embaixo, o assoalho podre
ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido.‖ (ARINOS, 2009, p. 200).
Em seguida, dá-se o que Todorov (1975, p. 118) denomina pandeterminismo,
incluindo-o entre os ―temas do eu‖: trata-se de uma causalidade generalizada, que
não admite a existência do acaso e afirma a existência de relações diretas entre todos
os níveis ou elementos do mundo, mesmo se esses elos nos escapem: uma súbita
ventania junta-se aos elementos que já começam a inquietar Manuel Alves:
Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de
uma janela que olhava para fora, fez o arrieiro voltar o
rosto de repente e prosseguir o exame do casarão
abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada
plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça,
estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta [...].
(ARINOS, 2009, p. 201, grifos meus).
Vê-se que a modalização marca o início da insegurança do protagonista, e introduz
dados, muitas vezes em linguagem figurada, que sempre anunciam o que está por vir
(TODOROV, 1975, p. 88); no caso, o adjetivo ―plangente‖ é significativo: o soar do
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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sino geralmente anuncia a morte, o que o adjetivo parece corroborar. A incerteza
aumenta quando a chama do rolo apaga-se com a lufada de vento e o arrieiro fica só,
tateando nas trevas. Um bando de morcegos, ―mensageiros do negrume e do
assombramento‖ (ARINOS, 2009, p. 204), torvelinha no meio da ventania.
E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito,
que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou
repeli-lo, num conluio demoníaco com o vento, os
morcegos e a treva. Começou a sentir que tinha caído
num laço armado talvez pelo maligno. De vez em
quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os
cabelos [...]. No mesmo tempo, um rir abafado, uns
cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um
lado e de outro. (ARINOS, 2009, p. 204-205, grifos
meus).
As modalizações passam a multiplicar-se à medida que Manuel Alves atinge a
completa irracionalidade:
Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas
vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo
tempo percebia que o chamavam lá dentro: - Manuel,
Manuel, Manuel -, em frases tartamudeadas. O arrieiro
avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando
sombras que fugiam. [...] o arrieiro não pensava mais. A
respiração se lhe tornava estertorosa; horríveis
contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele,
investindo as sombras, uivava [...]. (ARINOS, 2009, p.
206-207, grifo meu).
Em nenhum momento o narrador heterodiegético confirma a presença de
assombrações, limitando-se a descrever os eventos.
Lendas e crenças
Em ―Assombramento‖, a lenda regional já é estabelecida quando o narrador
heterodiegético a introduz no início do conto: enquanto os tropeiros estranham a
resolução inesperada do patrão, Manuel Alves confirma sua decisão de dormir no
casarão abandonado para conferir o que corria pela boca do povo, ou até para
comprovar ser mera superstição: ―Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde
chegavam os receios do povo.‖ (ARINOS, 2009, p. 189).
Diante da disposição do arrieiro, Venâncio observa:
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
73
- Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas olhe,
eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda
de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu
nunca quis foi saber de negócio com sombração. Isso de
coisa do outro mundo, pr‘aqui mais pr‘ali – terminou o
Venâncio sublinhando a última frase com um gesto de
quem se benze. (ARINOS, 2009, p. 193, grifos meus).
Ora, o povo da região conhecia e veiculava a história da casa mal
assombrada, o que constitui a lenda, a partir dos casos contados oralmente,
remetendo a eventos tidos como reais. Além disso, assinala Molino (1980, p. 35-36),
os temas da lenda popular estão em estreita correspondência com as realidades
históricas e culturais, assim como os que entram na composição do fantástico
literário; entre os temas indicados pelo crítico, a morte e os fantasmas aparecem em
primeiro lugar.
Os tropeiros de Manuel Alves sabem dos ―perigos da noite nesse ermo –
consistório de almas penadas [...].‖
- Tá chegando a hora!
- Hora de quê, Joaquim?
- De aparecerem as almas perdidas. [...]
Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.
- Gente! O patrão já está na tapera. Deus permita que
nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta
deste pouso mal-assombrado. (ARINOS, 2009, p. 195196, grifo meu).
As crenças supersticiosas do povo aparecem ligadas à fé religiosa, o que já
se nota nas considerações de Venâncio, seja quando se refere à ―ajuda de Deus‖, seja
quando, ao falar de assombrações, se benze; em seguida, invoca a proteção divina.
As crenças que se manifestam derivam da fé cristã, seja na fala dos
tropeiros, seja na fala de Manuel Alves quando este se deixa levar pela inquietação e
depois pelo medo. A princípio, ao tentar afastar um morcego diz: ―- Que é lá isso,
bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a
Virgem Maria...‖; depois, afirma ―ter caído num laço armado talvez pelo maligno.‖,
o que introduz a dicotomia bem/mal, Deus/diabo; a seguir emite palavras como:
―sombrações do demônio‖ e ―mandigueiros do inferno‖, estas últimos mostrando
uma mescla de crenças cristã e africana, o que espelha a realidade brasileira
(ARINOS, 2009, p. 200, 204, 206).
Da parte dos tropeiros, Joaquim Pampa inicia o dia seguinte ―fazendo cruzes
na boca, aos bocejos frequentes, por impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo
[...]‖ (ARINOS, 2009, p. 209); ao chamar alguns dos homens para entrar na casa à
procura do patrão, Venâncio repete: ―Deus é grande!‖ (ARINOS, 2009, p. 210).
―Nossa Senhora!‖, ―Ai, meu Deus!‖ e ―Deus me livre‖, são exclamações reiteradas
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
74
nas páginas seguintes. Desse modo, superstições e crenças religiosas caminham
juntas e auxiliam na composição das lendas populares.
Encontrado o corpo ferido do patrão em meios a exclamações como ―Ai,
meu Deus!‖ ou ―Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. [...]
Deus me livre!‖ (ARINOS, 2009, p. 214), a narrativa da lenda se completa, pela fala
de um dos tropeiros:
- Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses. Aqui
havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que
está com a boca virada para o terreiro. Aí está a coisa.
Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou por quê, o certo é que
as almas dos antigos donos desta fazenda não podiam
sossegar enquanto não topassem um homem animoso
para lhe darem o dinheiro, com a condição de cumprir,
por intenção, delas alguma promessa, pagar alguma
dívida, mandar dizer missas, foi isso, foi isso! (ARINOS,
2009, p. 214).
Ao estabelecer a relação dos temas da lenda oral com os da narrativa fantástica
literária, Molino (1980, p. 36) indica, detendo-se em considerações antropológicas,
estar a morte no centro do fantástico, como está no coração da vida tal qual os
homens a conheceram durante milênios. A morte é então familiar, bem próxima,
chegando a constituir muitas vezes um ato ritualístico, para o qual o homem se
prepara ou, pelo menos, deve se preparar. Pode, então, ser vista como uma
passagem, e não um fim, um dos umbrais que asseguram a transição entre o natural e
o sobrenatural. E a vida é como guiada pelos elos que mantém com o mundo dos
mortos. Com muita frequência, continua Molino (1980, p. 36) a morte é anunciada
pela aparição de um fantasma, no universo da narrativa; assim, os mortos continuam
a viver, com uma vida empalidecida, meio apagada, assemelhando-se mais ao sono,
mas que os torna capazes de participar do mundo dos vivos. Há lugares onde os
mortos aparecem, momentos em que tomam uma forma visível para intervir entre os
vivos.
A morte e o fantasma, sob a forma de um esqueleto, são o centro da lenda
popular, em ―A dança dos ossos‖, que se dá a conhecer apenas no quarto capítulo,
quando Cirino desenvolve a segunda parte de seu caso, embora seja anunciada um
pouco antes do início do relato do protagonista: ―- Pois muito bem! aí nessa cova é
que foi enterrado o defunto Joaquim Paulista. Mas é a alma dele só que mora aí: o
corpo mesmo, esse anda espatifado aí por essas matas, que ninguém mais sabe dele.‖
(GUIMARÃES, 2009, p. 5).
Ao retomar a palavra, depois de o arrieiro ter contado seu próprio caso,
Cirino assinala o triângulo amoroso que se forma, quando Joaquim Paulista
apaixona-se por Carolina, que acaba por corresponder a seu sentimento, quando se
separa de Timñteo. Este, ―que tinha artes do diabo‖ (GUIMARÃES, 2009, p. 29),
fingindo amizade e desprendimento, vinga-se matando Joaquim Paulista, com a ajuda
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
75
de um companheiro, soldado como ele; presos, os dois são obrigados a mostrar onde
haviam escondido o corpo de Joaquim Paulista. Mal enterrado e já em decomposição,
o cadáver apresentava-se espatifado pelos animais da mata:
Só a cabeça é que, dizem, ficou na sepultura.
Uma alma caridosa, que um dia encontrou um braço do
defunto no meio da estrada, levou-o para a sepultura,
encheu a cova de terra, socou bem e fincou aí uma cruz.
Foi tempo perdido; no outro dia a cova estava aberta tal
como estava dantes. Ainda outras pessoas depois
teimavam em ajuntar os ossos e enterrá-los bem. Mas no
outro dia a cova estava aberta, assim como até hoje está.
Diz o povo que enquanto não se ajuntar na sepultura até
o último ossinho do corpo de Joaquim Paulista, essa
cova não se fecha. (GUIMARÃES, 2009, p. 28).
O conhecimento da lenda justifica as invocações e rezas de Cirino quando se
viu, no anoitecer de uma sexta-feira, no caminho da famosa cova; primeiramente,
encomenda-se ―de todo o coração a Nossa Senhora da Abadia‖ e, em seguida, reza o
―Creio-em-Deus-Padre‖ (GUIMARÃES, 2009, p. 7). No decorrer do relato do caso,
as crenças cristãs se reiteram, em seus princípios opostos, por meio de palavras e
exclamações como: ―Cruz!... Ave Maria!...‖ , ―O maldito esqueleto dos infernos –
Deus me perdoe!‖, ―Valha-me Nossa Senhora da Abadia e todos os santos da corte
celeste!‖ (p. 8, 10, 11).
A fusão de superstições e religiosidade manifesta-se também, no conto de
Guimarães, por meio das palavras do velho vigário, relatadas por Cirino, quando este
vai lhe pedir para benzer a sepultura de Joaquim Paulista com o intuito de afastar a
assombração que aterra o povo da região:
Mas o vigário disse que isso não valia nada; que
enquanto não se dissessem pela alma do defunto tantas
missas quantos ossos tinha ele no corpo, contando dedos,
unhas, dentes e tudo, nem os ossos teriam sossego, nem
a assombração acabaria, nem a cova se havia de fechar
nunca. (GUIMARÃES, 2009, p. 29-30).
Todas essas manifestações de religiosidade que aparecem unidas a
superstições mostram-se imprescindíveis para a formação das lendas populares e
entram na formação do fantástico literário. A elas junta-se outro elemento: o medo.
O medo
Os temas do fantástico estão em relação direta com o medo dos homens em
face do mundo e dos outros, assinala Molino (1980), remetendo ao elo que propõe
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entre a lenda popular e a narrativa fantástica: compreende-se então o quanto é pouco
sério recusar o estudo do medo como não pertencendo à análise literária
propriamente dita, completa o crítico. (MOLINO, 1980, p. 38).
De fato, Lovecraft (1969) é criticado por centrar sua definição de fantástico
no medo. As críticas são, no entanto, válidas: não é o medo que determina se uma
narrativa é fantástica ou não, pois o aspecto formal não pode ser negligenciado.
Mesmo que o fantástico literário apresente-se sob uma forma não imutável, como
quer Vax (1965, p. 6-7), é necessário que apresente dados sobrenaturais ou insólitos
que se oponham à realidade diegética, determinando a incerteza e a ambiguidade
necessárias à caracterização do fantástico.
Essas características maiores do fantástico literário advêm justamente do
que Todorov denomina ―hesitação‖ (1975, p. 31) e Bessière chama de ―interrogação‖
ou ―espanto‖:
Não há estranhamento sem interrogação ou espanto. Que
permaneça insolúvel, mesmo que a razão o circunscreva,
e tem-se o fantástico no qual a razão, graças ao forte
desejo de desfazer o irracional, encontra a permanência
da desrazão e a ruptura irreparável das cadeias de
causalidade4. (BESSIÈRE, 1974, p. 38).
Se os teóricos assinalam a hesitação, a interrogação, o espanto, a surpresa, a
inquietação como fatores determinantes na composição do fantástico literário, não se
pode negar que o medo seja também um componente, e muito frequente, nas
narrativas fantásticas.
Como se viu, sendo a narrativa fantástica posterior ao romance gótico do
pré-romantismo inglês, dele aproveitou muitos elementos. A intensidade do emprego
desses elementos góticos pelos autores de narrativas fantásticas, bem como o grau de
ambiguidade daí decorrente, determinam uma subdivisão dentro do fantástico
literário: enquanto alguns textos se mostram bastante sutis em relação ao
sobrenatural, o qual é expresso por meio de uma linguagem poética que intensifica a
ambiguidade, outros enfatizam certos componentes oriundos do gótico, dirigindo
seus textos para a narrativa de terror.
Em suas considerações a respeito do fantástico, Lovecraft (1969) privilegia
essa segunda orientação, em que o medo é imprescindível. Mostra que muitos
escritores de narrativas fantásticas traçam uma via através dos meandros da escola
gótica, procedimento que, de Poe a Hawtorne, vem ao encontro de autores atuais:
4
Point d’étrange sans interrogation ni étonnement. Qu’il reste insoluble alors même
que la raison l’a circonscrit, et voici le fantastique où la raison, à force de vouloir
défaire l’irrationnel, trouve la permanence de la déraison et la rupture irréparable
des chaînes de causalité.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Qual era o cenário necessário à elaboração de tal tipo de
obra ? Primeiramente o castelo gótico e feudal, castelo
em ruínas geralmente, depois velhos móveis, tapessarias
aterrorizantes, corredores úmidos, criptas macabras. Não
esqueçamos uma multidão de fantasmas evoluindo em
um pesado clima de lendas, suspense demoníaco, terror
sobrenatural5. (LOVECRAFT, 1969, p. 31).
Para Lovecraft (1969, p. 16), a atmosfera é a qualidade mais importante da narrativa
fantástica.
Em ―A dança dos ossos‖, o medo de Cirino é expresso desde o início de seu
relato: ―Meu coração deu uma pancada [...] hei de agora ter medo? de quê? [...].‖
Entre a invocação dos santos e de Deus, toma ―um bom trago na guampa‖. Perto da
cova, toma ―mais um trago‖, e reza: ―[...] meu coração ia ficando pequenino.‖
(GUIMARÃES, 2009, p. 7);
O que eu vi, talvez vosmecê não acredite; mas eu vi [...]:
vi com esses olhos, que a terra há de comer, como comeu
os do pobre Joaquim paulista... mas os dele nem foi a
terra que comeu, coitado! foram os urubus e os bichos do
mato. Dessa feita acabei de acreditar que ninguém morre
de medo; se morresse, eu lá estaria até hoje fazendo
companhia ao Joaquim paulista. Cruz!... Ave Maria!...
(GUIMARÃES, 2009, p. 8).
Tanto o medo, quanto a menção aos goles de cachaça contribuem para diluir as
afirmações categóricas de Cirino.
No conto de Afonso Arinos, o medo dos tropeiros é logo explicitado, ―o
terror pela iminência das aparições.‖: ―Súbito, ouviu-se um gemido agudo,
fortíssimo, atroando os ares [...]. Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se
confusamente para a beira do rancho.‖ (ARINOS, 2009, p. 197).
Em relação ao protagonista, o assombramento surge gradativamente, devido
à firme convicção de Manuel Alves de enfrentar o medo; ou de negá-lo: ―Súbito, um
5
Quel était le décor nécessaire à l’élaboration d’un tel type d’ouvrage ? D’abord le
château gothique et féodal, château délabré en général, puis des vieux meubles, des
tentures effrayantes, des couloirs humides, des cryptes macabres. N’oublions pas
une flopée de fantômes évoluant dans un lourd climat de légendes, suspense
démoniaque, terreur surnaturelle.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o
bote.‖ (ARINOS, 2009, p. 203). Um pouco mais adiante, vemos sua luta contínua e
inútil contra o temor, que dele toma conta: ―De músculos crispados num começo de
reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arrieiro alapardava-se,
erriçando-se-lhe os cabelos.‖ (ARINOS, 2009, p. 204). Segue com cautela nas trevas
do interior do casarão: ―Súbito, uma luz indecisa [...] fê-lo vislumbrar um vulto
branco, esguio [...]. Manuel estacou com as fontes latejando, a goela constrita e a
respiração curta.‖ (ARINOS, 2009, p. 205). Finalmente, ―o arrieiro não pensava
mais. A respiração se lhe tornava estertorosa; horríveis contrações musculares
repuxavam-lhe o rosto [...].‖ (ARINOS, 2009, p. 207).
Como no conto de Bernardo Guimarães, há também no de Afonso Arinos
vários indícios que promovem a ambiguidade, a começar pelo fato que nenhuma
aparição é explicitada; o vento, os ruídos, os morcegos, a casa em ruínas, somados ao
vulto branco em forma de serpente – que se sugere ser a própria rede estendida pelo
arrieiro e por ele estraçalhada em seu combate às forças invisíveis -, estimulam, à
revelia, o medo irracional do protagonista.
É, sem dúvida, o clima de lendas, o suspense demoníaco e o terror
sobrenatural apontados por Lovecraft (1969) que compõem a atmosfera dos contos
de Guimarães e Arinos. Em outras palavras, o medo dos protagonistas, ligado às
superstições populares, faz-se presente tanto em ―A dança dos ossos‖, quanto em
―Assombramento‖.
E são justamente as lendas populares e regionais que, nos dois contos,
revelam-se oportunas para que o fantástico se manifeste. No primeiro conto, o ―eu‖
do protagonista contextualiza-se no passado, por meio do caso por ele relatado, em
espaço e tempo determinados: sexta-feira à noite, junto da cova do defunto. No
segundo, a voz do narrador compõe, também no passado, o contexto: ali, naquele
lugar e naquele momento, o protagonista parece vivenciar aquilo em que relutava
acreditar. No universo real e banal da narrativa, o sobrenatural é introduzido pela
escrita dos autores de tal forma que a incerteza se manifesta, resultando na
ambiguidade característica do fantástico literário.
Referências
ARINOS, Afonso. Assombramento. In: MARCHEZAN, L. G. (org.). O conto
regionalista do romantismo ao pré-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, p.
187-220, 2009. (Contistas e cronistas do Brasil).
BESSIÈRE, Irène. Le récit fantastique: la poétique de l‘incertain. Paris: Larousse,
1974. (Thèmes et textes).
CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton C. Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006.
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GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Seuil, 1972. (Poétique).
GLINOER, Anthony. La Littérature frénétique. Paris: PUF, 2009.
GUIMARÃES, Bernardo. A dança dos ossos. In: MARCHEZAN, L. G. (org.). O
conto regionalista do romantismo ao pré-modernismo. São Paulo: Martins Fontes,
p. 1-30, 2009. (Contistas e cronistas do Brasil).
JOLLES, André. Formes simples. Paris: Seuil, 1972.
LOVECRAFT, Howard Phillips. Épouvante et surnaturel en littérature. Trad. B.
da Costa. Paris: Christian Bourgeois, 1969.
MARCHEZAN, Luiz Gonzaga. Introdução. In: ___. (org.) O conto regionalista do
romantismo ao pré-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, p. IX-XLIII, 2009.
(Contistas e cronistas do Brasil).
MOLINO, Jean. Le fantastique entre l‘oral et l‘écrit. Europe, Paris, n. 611, p. 32-41,
mars 1980.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. M. Clara C.
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.
VAX, Louis. La séduction de l‘étrange. Paris: PUF, 1965. (Philosophie
Contemporaine).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Relações Brasil-França a partir de contos fantásticos
Josilene PINHEIRO-MARIZ1
RESUMO: A literatura fantástica, nascida na Alemanha e divulgada a partir
dos contistas franceses, ressoa na literatura brasileira, sobretudo, em realistas
com Machado de Assis, que adentra na cultura francesa, conduzindo o leitor
a apreciar a literatura do país de Molière. Quando nos debruçamos sobre a
obra machadiana, encontramos muitas referências à literatura francesa, tal
como se pode ver em dois de seus contos: A vida eterna (1870) e Um sonho e
outro sonho (1892), que trazem a temática do fantástico pelos caminhos do
mundo onírico. Neste artigo, buscamos cotejar os referidos contos de
Machado de Assis e obra de Charles Nodier, considerado o iniciador do conto
fantástico na França. Destacamos, neste estudo, o conto Smarra ou les
démons de la nuit (1821), por apresentar uma narrativa descontínua e cheia
de digressões, sob a perspectiva do fantástico de Todorov (1971), bem como
no próprio Nodier (1832) que, além de ficcionista, foi um dos primeiros a
apresentar reflexões sobre o fantástico na literatura. Buscamos também em
Pinheiro-Passos (1996a; 1996b; 2006) pontos de convergência entre a
literatura francesa e a obra machadiana. A leitura dos contos nos revelou um
intenso diálogo entre os textos, especialmente, quanto ao sonho, enquanto
ambiente próprio do fantástico.
PALAVRAS-CHAVE: Conto. Fantástico. Literatura brasileira. Literatura
francesa
Introdução
Ao longo da história, a cultura francesa deixou marcas nas páginas
de nossa literatura produzida nos séculos XIX e XX, de modo mais evidente.
De escritores como José de Alencar e Machado de Assis até os modernistas
da Semana de Arte Moderna em 1922, a presença francesa esteve presente
nas páginas da nossa nacionalidade. Por essa razão, estudar as relações entre
essas duas literaturas não é atividade tão complexa, quanto é prazerosa. Os
1
Professora de Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa na UAL (Unidade
Acadêmica de Letras) e no POS-LE/UFCG. Programa de Pós-Graduação em
Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Campina Grande. Campina
Grande-Paraíba – Brasil. CERP : 58400560 – e-mail. [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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estudos literários comparados Brasil-França são, há algum tempo, fonte de
pesquisa para estudiosos como Pinheiro-Passos, (1996a; 1996b; 2006); Pinto,
(1996; 1999) e Amaral (1996), sendo que os dois primeiros partem de uma
perspectiva da literatura brasileira e a última vê na nossa literatura, a
influência do poeta Baudelaire.
No momento em a que a nossa literatura começa a obter cores mais,
por assim dizer, nacionais, Machado de Assis é, certamente, um dos
principais pintores dessa nacionalidade. Do mesmo modo que acontece com
Flaubert, na sociedade francesa da segunda metade do século XIX, em nossas
terras, é Machado o pintor de nosso cotidiano, em especial, dos modos de
vida do carioca, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro era sede do Império
naquela época e também a sua cidade natal. A presença francesa na obra
machadiana é tão expressiva que, por vezes, em referências explícitas,
revelando o quanto as páginas francesas influenciaram nas nossas.
Nesse sentido, levamos em consideração esses laços tão próximos
entre essas duas literaturas e nos detemos em uma leitura que vê na obra de
Machado de Assis um eco da literatura francesa na sua aurora romântica.
Portanto, nos centraremos em uma leitura cotejada a partir de três contos,
sendo um conto do francês Charles Nodier e dois do nosso Machado de
Assis, focalizando uma literatura particular que permite que a produção
desses contistas seja vista na perspectiva do fantástico. Embora ainda não
sejam abundantes, os estudos que ressaltam a obra machadiana sob essa
perspectiva, há coletâneas que apresentam textos com essas características e,
mesmo, alguns estudos esporádicos já focalizam um número significativo de
contos machadianos como fantásticos. Destaque-se que, muito
provavelmente, pelo fato de ser um conjunto romanesco vasto e intenso, os
estudos sobre o lugar do fantástico na obra machadiana ainda são, por certo,
cautelosos; sem, todavia, perderem a sua importância.
Ao contrário do brasileiro, o francês Charles Nodier tem uma obra
com forte influxo fantástico, em especial porque, sob o ponto de vista da
história literária francesa, Nodier é o iniciador do conto fantástico em seu
país. Fato que se deu pelas vias da literatura alemã, sendo ele diretamente
influenciado por Hofmann e, certamente, por um dos maiores representantes
do romantismo alemão, Goethe. A produção literária fantástica, de Nodier,
estabelece limites da literatura fantástica na França sendo, por essa razão,
considerado o seu iniciador na França (CASTEX, 1962).
Em obra que reúne os trinta e três contos, Castex (NODIER, 1961)
nos deixa a exata noção de quão marcantes são os contos fantásticos de
Charles Nodier; porém, é o próprio escritor quem expõe o seu ponto de vista
sobre o tema ao esclarecer, nos prefácios de alguns de seus contos, quais
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
82
caminhos havia percorrido para construir narrativas fantásticas. Em outros
ensaios, ele mesmo faz reflexões sobre o que é a literatura fantástica, dando
especial foco nas vias oníricas e dissertando sobre o mundo desperto e o
mundo dos sonhos como o principal caminho para se chegar ao fantástico,
estabelecendo, assim, os labirintos oníricos como porta para o fantástico na
literatura. Esse aspecto da obra de Nodier é também percebido na obra
machadiana e, em especial, nos contos, gênero no qual também são
produzidas as principais manifestações do fantástico desse romântico francês.
Assim, neste trabalho, nos propomos a identificar as marcas do
gênero fantástico em dois contos de Machado de Assis: A vida eterna (1870)
e Um sonho e outro sonho (1892), relacionando-os ao conto de Charles
Nodier, Smarra ou les démons de la nuit (1822), que segundo o próprio autor
é «une étude... un travail verbal, ...l‘œuvre d‘un écolier attentif.» (NODIER,
1961, p. 40 e 41). Nesse conto-estudo-sonho, os labirintos oníricos são tão
evidentes que é impossível se fazer uma leitura dos referidos contos de
Machado de Assis sem estabelecer uma relação imediata com o conto
francês.
Para a nossa pesquisa, nos embasaremos em uma perspectiva
intertextual para identificarmos os ecos da presença nodieriana nos contos
machadianos, publicados cerca de cinquenta anos depois da primeira
publicação se Smara. Para tanto, encontramos em Pinheiro-Passos (1996a e
1996b) os principais elementos que nos levam a identificar o nosso escritor
como um assíduo leitor das páginas francesas. Recorremos também a
Todorov (1971), como um dos principais teóricos a discutir elementos que
caracterizam um texto literário como sendo do gênero fantástico. Ainda
buscamos em Barthes (1969) e em Kristeva (1969), noções gerais sobre a
presença constante de um texto dentro de outros textos, bem como sob o
ponto de vista das relações intertextuais; e, em Heidmann e Adam (2010),
fundamentam-nos a respeito da intertextualidade de contos, considerando-se,
em especial, o contexto sócio histórico e cultural de suas produções.
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de cunho bibliográficodocumental, uma vez que tem como principal corpus de análise os três textos
literários dos dois contistas. As ponderações teóricas acima mencionadas nos
auxiliam nas reflexões a respeito da presença do fantástico como um elo que
une os três contos escritos em circunstâncias distintas, sejam nos aspectos
socioculturais ou nos espaço-temporais.
Nossas reflexões percorrem, primeiramente, as relações entre o
Brasil e a França no que tange à literatura, sobretudo, dos últimos séculos; em
seguida, apresentamos ―à vol d‘oiseau‖ a importância de Charles Nodier para
a literatura francesa, bem como a presença machadiana na literatura
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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brasileira. Feitas essas apresentações, prosseguimos nas reflexões,
observando os laços do gênero fantástico que unem esses escritores,
fortalecendo ainda mais os vínculos entre a literatura francesa e a brasileira.
A relevância deste trabalho está no fato de se perceber que mesmo
em escritores de origens distintas, é possível ver ligações entre as suas
literaturas, confirmando obra literária como atemporal e impérissable.
Também é importante que se diga que embora parcos estudos mostrem as
relações entre a produção nodieriana e a machadiana, poderíamos, a partir
destas reflexões, instituir Machado de Assis como o iniciador do conto
fantástico no Brasil, do mesmo modo que Nodier na França.
Relações literárias: Brasil e França
Há alguns anos, em 2005, os governos do Brasil e da França,
reunidos, buscaram afunilar as relações bilaterais tanto na área econômica,
quanto acadêmica e, assim, foi realizado o ano do Brasil na França. Anos
depois, em 2009, ainda com esse mesmo intuito, realizou-se o ano da França
no Brasil. Todavia, não é de hoje que as relações franco-brasileiras são fortes,
influenciando pensadores e, especialmente, na literatura.
A presença da literatura e da cultura europeia e, sobretudo, a
francesa, no Brasil do século XIX teve em José de Alencar um de seus
primeiros bastiões. A obra indianista do escritor cearense é fortemente
influenciada pelo romântico Chateaubriand; evidentemente, não se pode
deixar de ler Iracema, O Guarani e Ubirajara sem se lembrar de Atala e Les
Natchez (PINTO, 1996, p. 23). Na leitura dos nossos poetas simbolistas como
Carvalho Júnior, Teófilo Dias, Vicente de Carvalho, Wenceslau de Queiroz,
Fontoura Xavier e Cruz e Sousa também pode se perceber claros ecos do
―poeta maldito‖, Baudelaire (AMARAL, 1996). Mas, por certo, é PinheiroPassos (1996a; 1996b; 2006) quem nos dá maiores pistas para trilharmos em
busca das relações entre a literatura brasileira, criada ou retratada por
Machado de Assis e a obra do escrito francês Charles Nodier.
Sabe-se que tanto no âmbito histórico-cultural, quanto no social, o
Brasil recebeu um relevante legado da cultura francesa. Algo que se pode
perceber desde as primeiras retratações pictóricas do Brasil, sob o olhar do
pintor francês, Debret (1768-1848), que por aqui esteve em missão artística,
até o século XIX, quando da urbanização da capital do país que sofreu fortes
influências da França na sua paisagem urbana. Certamente, é na literatura que
essas marcas são mais vivas, pois, a nossa literatura moderna também foi
inspirada nas Vanguardas Europeias, oriundas de um momento em que a
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
84
capital, Paris, era um centro difusor de reflexões culturais e literárias. Nesse
percurso histórico de presença francesa, os diálogos literários Brasil e França
podem ser claramente observados a partir da obra de escritores como
Machado de Assis, pois não são poucas as incursões que esse grande autor
faz na cultura francesa, por exemplo, levando ―as suas leitoras‖ a um passeio
por séculos da história dessa literatura, indo do século de François Villon ao
de Victor Hugo.
Porém, é como um pintor dos costumes do século XIX, no Rio de
Janeiro, que Machado se firma com um dos maiores escritores de uma
literatura genuinamente brasileira, embora a presença francesa tenha estado
sempre marcando a sua obra. Cabe ressaltar que, a nosso ver, a marca
francesa impressa na obra machadiana é uma forma evidente de mostrar a
qualidade de sua obra, uma vez que ele conseguiu unir de modo magistral a
força da realidade brasileira do Rio de Janeiro, em uma época em que o
retrato da paisagem urbana não ocupava as páginas da literatura, à literatura
francesa de muitos séculos, provando, assim, a sua exímia nacionalidade e
erudição. Não são poucas as incursões que esse grande autor brasileiro faz
nas literaturas estrangeiras, de um modo geral; pois, não raro encontra-se
Shakespeare, Byron ou Sterne na obra machadiana.
Pinheiro-Passos (1996b), tem se dedicado aos estudos comparados,
olhando para a França, partindo de Machado de Assis, se preocupa em
apresentar como a cultura brasileira do século XIX sofre direta influência da
cultura francesa, dessa forma, as letras constituem-se nos principais veículos
para estabelecer essa influência. Esse pesquisador nos dá essa noção ao
afirmar que:
Não se pode prescindir do estudo de tal presença
estrangeira, não só pela frequência, mas também
sua integração, evidenciando a complexa
capacidade de operar sentidos. Lugar de destaque
pode ser dado à presença francesa, graças à
quantidade (mais de 35 referências ou citações) e à
diversidade (de François Villon a Stendhal,
passando por Corneille, Bossuet, Condillac e
Voltaire), o que lhes confere importância
inconteste, sobretudo por refletir uma soma ampla
de leituras, ultrapassando o número de referências e
citações de qualquer outra literatura (PINHEIROPASSOS, 1996b, p. 11-12)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
85
No que concerne à presença estrangeira na obra de Machado,
certamente os números da presença francesa são impressionantes, tantas são
as citações e referências à literatura francesa que não raramente é possível ler
seus ecos tanto nos romances como nos contos, quando as referências e
citações não são diretas.
Portanto, relacionar a obra de Nodier à machadiana, ressaltando que
mesmo sem que haja fontes explícitas das leituras de Machado (da obra desse
francês), percebe-se uma clara ressonância, sobretudo, quanto ao gênero
conto e à literatura fantástica, que passam a ser, neste momento, o nosso
principal foco.
A literatura fantástica de Nodier e de Machado de Assis
Tanto na França, quanto no Brasil, a literatura fantástica ainda é
vista como algo exótico. Suas características com a presença de demônios ou
de vampiros, em um fantástico moderno, nos fazem identificá-lo como algo,
de fato, diferente / ―estranho‖. Na França, esse foi um gênero bastante
cultivado e ainda hoje, com a presença de recursos da modernidade, seja no
cinema ou mesmo na literatura, é possível se deparar com narrativas
fantásticas que estimulam a imaginação humana com as vertentes do insólito
ou do sobrenatural. Castex (1962) nos apresenta vários escritores que se
firmaram no irreal, no sonho, na loucura, na escuridão da noite, dentre muitas
outras circunstâncias, para contar as suas histórias fantásticas. Dentre esses
grandes nomes do gênero, destaque-se Jean Charles Emmanuel Nodier
(1780-1844), um bisotino da Franche Comté que passou a sua adolescência
no meio de um turbulento período, o da Revolução, e que influenciou,
diretamente, a obra de românticos como Victor Hugo.
No Brasil, esse gênero literário toma forma apenas no século XX,
isso porque coletâneas como as de Magalhães Jr. (1998); Cavalcante (2003);
Tavares (2003) e Calvino (2004) colocam em destaque contistas brasileiros
que tem marcas expressivas da literatura fantástica. Dentre os principais
brasileiros, está Machado de Assis, escritor que surpreende a cada dia com
sua narrativa irônica e, portanto, sendo um escritor com grande diferencial e
fundamental no Realismo brasileiro.
Nodier e a literatura fantástica
Je m‘avisai un jour que la
voie du fantastique, pris
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
86
au sérieux, serait tout à
fait nouvelle, autant que
l‘idée de nouveauté peut
se présenter sous une
acception obsolue dans
une civilisation usée.
L’Odyssée d‘Homère est
du fantastique sérieux,
mais elle a un caractère
qui est propre aux
conceptions des premiers
âges, celui de la naïveté
(NODIER, 1921, p.38 ).
Na literatura francesa, coube a Nodier deixar o legado do conto
fantástico, ainda que tardiamente reconhecido. « En particulier, Nodier
pouvait se flatter à juste titre d‘avoir inauguré au XIX siècle la lignée des
conteurs fantastiques » (CASTEX, 1962, p. 5). Ao publicar Smarra, (1821) e
também Trilby ou le lutin d’Argail (1822), Nodier apresenta a literatura
oriunda do frenético, do alemão Hoffmann, aos franceses.
Entretanto, mesmo antes de Nodier, outro francês deu os primeiros
passos para a literatura fantástica na França. Em sua antologia, Castex (1962,
p. 15) figura Jacques Cazotte (1719-1792), com sua obra-prima Le diable
amoureux, como o precursor do fantástico moderno; narrativa que, segundo
Todorov (1971), possui certa dose de ambiguidade, que é mantida até o final
da aventura e, por essa razão, pode ser classificada como conto fantástico.
Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Para a literatura do gênero
fantástico, tais questões são fundamentais, pois o leitor à essência do
fantástico e nele se produz um acontecimento que não se pode explicar pelas
leis do mundo real (TODOROV, 1971). No conto M. Cazotte, no qual Nodier
faz uma homenagem ao seu precursor, desde o título, já anuncia o seu
conteúdo, sem nenhuma tentativa de camuflar a importância desse autor para
sua obra, não negando essa influência; por isso, no prefácio do referido conto,
expõe a sua escolha, destacando a sua admiração por Cazotte.
Contudo, já por volta de 1815, após a publicação de obras de cunho
claramente werterianos e então nomeado bibliotecário da cidade de Laybach,
Nodier readquire o gosto pelo clássico, colaborando no Journal de L’Empire,
jornal que mais tarde veio a ser Journal des Débats. É nesse momento que
recomeça seu gosto pelo frenético. Então, publica os romances Jean Sbogar e
Thérèse Aubert; obras que, ainda segundo Castex (1962), marcam o início
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
87
deliberado de uma produção pelas vias do frenesi. As teorias filosóficas e
espiritualistas, que germinavam em toda a Europa, também marcam a sua
obra como as teorias do místico sueco Emmanuel Swedenborg. Para quem:
...todas as coisas que existem na natureza, desde o
que há de menor ao que há de maior, são
correspondências. A razão para que sejam
correspondências reside no fato de que o mundo
natural com tudo o que contém existe e subsiste
graças ao mundo espiritual, e ambos os mundos
graças à divindade (apud, GOMES, 1994, p. 17).
A ideia que agradou a muito românticos aprouve ainda mais aos
simbolistas e, em seguida, aos surrealistas; portanto, podem-se encontrar
também marcas da literatura de Nodier nos poemas simbolistas
(CAMARANI, 2006). Envolvido por esta dualidade mundo natural/mundo
espiritual, Nodier inaugura, ainda que com a herança de seus antepassados, o
conto fantástico. A literatura fantástica nasce junto com o século das luzes,
com o triunfo da razão, com a afirmação do indivíduo. Ela seculariza a
relação entre o homem e as forças sobrenaturais, circunstância na qual se
distingue do maravilhoso. Pode ainda favorecer a relação entre Deus e o
diabo, pela possessão do homem, um conflito interior entre duas forças
físicas morais.
No entanto, muito embora tenha dado início ao gênero, Nodier não
o impôs como estilo, isso por que, na sua época, o seu Salão do Arsenal era o
principal foco da intelectualidade parisiense, espaço no qual nasceu e
floresceu a corrente romântica. A publicação de Smarra é a prova que o estilo
novo não agradou nem ao público, nem à crítica. Smarra não é considerada
uma das obras mais importantes de seu autor, porém, corresponde a um
marco na sua produção, pois choca e desagrada e, por essa razão, torna-se o
conto considerado como grande fracasso do autor que tem em La fée aux
miettes, a sua obra prima. Castex, então, reafirma a importância desse texto
como um dos primeiros contos fantásticos franceses, pois, para o seu autor,
Smarra corresponde às nossas curiosidades modernas.
Em 1832, quando de uma segunda publicação do conto, Nodier,
exímio prefaciador, de sua época, explica no novo prefácio que a obra não
havia sido bem entendida pelos leitores por que se tratava de um conto
fantástico com características especiais e que apresentava o sonho como o
caminho para se chegar ao fantástico. Portanto, não se pode dizer que esse
texto com características bem definidas, ainda que desconhecidas dos seus
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contemporâneos, tenha sido um grande fracasso, mesmo porque essas
características desconhecidas teriam sido inovadoras e, por isso mesmo, mal
compreendidas na época.
Machado de Assis, um fantástico contista
Que a obra machadiana é repleta da presença francesa é fato. Nas
tantas citações e referências a essa literatura, não raramente é possível
perceber ecos relidos nos vários gêneros de sua autoria, seja nos romances ou
mesmo nos contos. Portanto, enfocaremos os contos A vida eterna (1870) e
Um sonho e outro sonho (1892) para melhor se perceber esses laços tão
imanentes.
Os contos fantásticos de Machado seguem a mesma perspectiva de
Todorov (op. cit.). Neles não há justificativas ou explicações para os
fenômenos sobrenaturais. Semelhantemente a Nodier, Machado escolhe o
caminho dos sonhos como a solução dos enredos dessas narrativas curtas.
Desse modo, se percebe a presença do onírico ligado ao inexplicável como
fonte do gênero.
No Brasil, o fantástico de Machado assume essa roupagem para
fugir, aparentemente, das críticas da sociedade em uma literatura realista. É o
próprio escritor que afirma ―Descanse leitor, não verá neste episñdio
fantástico nada do que não se pode ver à luz pública. Eu também acato a
família e respeito o decoro‖ (MACHADO DE ASSIS, 2003, p. 66). Essa
citação está presente em um conto que por si só, desde o título, já se
apresenta com decência e cuidado para com os leitores: O anjo das donzelas.
Nesse conto, logo na primeira linha, observa-se um narrador cuidadoso e, ao
mesmo, tempo, irônico: ao incitar o leitor, dizendo: ―Cuidado, leitor, vamos
entrar na alcova de uma donzela‖ (MACHADO DE ASSIS, op. cit.) para em
seguida lembrar que o quê está naquele espaço de compostura e intimidade
poderia também ser visto à luz do dia, não apenas na escuridão da noite,
espaço próprio do fantástico.
Assim, o nosso contista expõe o seu fantástico, quase sempre ligado
à noite e ao sonho, aspecto no qual se assemelha diretamente ao do francês.
No conto Sem olhos, por exemplo, o narrador, dando voz ao personagem
Cruz, afirma não crer em coisas infantis, como aqueles que soam como
sobrenaturais. Nesse aspecto, percebe-se a forma mais explícita do fantástico
na literatura machadiana, pois está diretamente ligada à visão do fantástico de
Todorov (op. cit.), que repousa sob a dúvida.
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Pontes intertextuais nos contos Smarra ou les démons de la nuit, (1822),
de Charles Nodier e A vida eterna (1870) e Um sonho e outro sonho
(1892), de Machado de Assis.
Reflexos de um texto em outro não é algo moderno, autores da
literatura brasileira beberam muito em fontes europeias e, em especial, nas
francesas cujos autores beberam nas fontes dos clássicos gregos e latinos. Se
por aqui, José de Alencar se inspirou em Chateaubriand, esse francês, por sua
vez, foi em busca da literatura de Homero, como muitos de seus
contemporâneos. Essa inspiração direta levou críticos como Sainte-Beuve,
famoso crítico literário do século XIX a recriminar severamente o estilo de
Chateaubriand e a sua intensa inspiração nas fontes da literatura clássica,
afirmando, inclusive, que ele cedeu às imposições do modelo de Homero.
(SAINTE-BEUVE, 1993, p. 590).
É preciso, entretanto, fazer lembrar que a presença de um texto em
outros textos é um procedimento antigo e inerente à atividade da escritura,
principalmente, da ficcional. Por essa razão, Bakhtin (2003), ao analisar os
problemas da obra de Dostoievski, afirma ―[...] que toda obra literária é
interna e imanentemente sociológica. Nela se cruzam forças sociais vivas
penetram cada elemento de sua forma‖ (BAKHTIN, 2003, p. 195). Então,
considerando que o escritor não é o ―Adão mítico‖ que nomeou as coisas, é
natural que se escute os ecos de um texto em muitos outros. Bakhtin (op. cit.)
vê o romance como um lugar muito adequado para dialogismo, uma vez que
os enunciados estão em todo tempo em relação uns com os outros. Para ele, o
romance é multivocal e, portanto, polifônico. É possível, no romance, o
confronto de vozes discursivas e organizações de diferentes ideologias.
A noção de intertextualidade tem suas variantes. Existem várias
concepções do termo, nas quais especialistas fazem suas ponderações. Em Le
langage de Jarry, por exemplo, Arrivé (1972) elabora um estudo semiótico
de três textos: César-Antechrist, Ubu Roi e Ubu Enchaîné, e afirma:
― ...l‘intertexte apparaît comme le lieu de manifestation du contenu de
connotation, soit qu‘il émerge brutalement au niveau de la dénotation [...]
soit qu‘il soit signalé par une transformation intervenant entre les deux
textes‖ (ARRIVÉ, 1972, p. 38). Nesse ensaio, seu autor vê um movimento
de conotação e denotação como um procedimento para se perceber a
intertextualidade, ou seja, o intertexto literário é o lugar onde o conteúdo
aparece na conotação do texto.
Assim, diante das possibilidades teóricas para discutir o diálogo
entre as obras, escolhemos com o pensamento de J. Kristeva (1969) e
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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também o de R. Barthes (1970), quando ao afirmam a mesma ideia com suas
palavras. Para ela « l'intertextualité fonctionne comme une interaction
textuelle qui permet de considérer les différentes séquences (ou codes) d'une
structure textuelle précise comme autant de transforms de séquences (codes)
prises à d'autres textes »; e, sob o atento ponto de vista de Barthes (1970),
« Le texte est une productivité. Cela ne veut pas dire qu‘il est le produit d‘un
travail (tel que pouvaient l‘exiger la technique de la narration et la maîtrise du
style), mais le théâtre même d‘une production où se rejoignent le producteur
du texte et son lecteur.… ». Assim, essas reflexões teóricas nos levam a uma
leitura que reverbera um tipo de co-presença entre obras e no nosso caso, em
particular, a temática do sonho.
A perspectiva do fantástico
Inicialmente, cabe-nos situar a noção de literatura fantástica para
que assim possamos justificar o porquê de esses três contos estarem dentro da
conceituação do fantástico na literatura.
Um dos primeiros teóricos do fantástico é, por certo, Todorov
(1971), para ele, o fantástico é a hesitação entre o real e o não real, possível e
impossível; é um mundo habitado por seres desconhecidos, fora do alcance
humano. É a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis
naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. Já para
Bessière (1974), o fantástico pode até mesmo ser tratado como a descrição de
certas atitudes mentais, pois tem um critério implícito da distinção. Assim,
afirma:
Le fantastique n‘est qu‘une des démarches de
l‘imagination, dont la phénomènologie sémantique
ressortit à la fois à la mythographie, au religieux, à
la psychologie normale et pathologique, et qui, par
là, ne se distingue pas de celles des manifestations
aberrantes de l‘imaginaire ou ses expressions
codifiées dans la tradition populaire (BESSIÈRE,
1972, p. 10).
O fantástico está além do humano, estando, portanto, centralizado
no mundo da imaginação. São as manifestações do mundo imaginário,
estando acima do religioso, do psicológico e até mesmo da tradição popular.
Bessière (op. cit.) parece contradizer Todorov (op. cit.) ao afirmar que o
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fantástico não resulta da hesitação entre essas duas ordens (natural e
sobrenatural), mas de sua contradição e de sua recusa mútua e implícita. Diz
ainda que a narrativa fantástica provoca a incerteza ao exame intelectual,
porque trabalha com dados contraditórios reunidos seguindo uma coerência
própria (BESSIÈRE, op. cit., p. 57). Todavia, seja na hesitação, seja no
âmbito da incerteza, ambos têm o mesmo ponto de vista quando afirmam que
o fantástico está centrado em algo que vai além de uma compreensão
humana, sendo por isso, diretamente ligado ao sobrenatural.
Perspectiva semelhante, encontramos em Bellemin-Noël (1972), ao
assegurar que o fantástico jamais ultrapassa os limites do pensamento
humano, pois pode ser um jogo de veracidade; desse modo, afirma que:
Le fantastique, et c‘est là qu‘il utilise de la manière
la plus retorse la littérature elle-même, feint de
jouer le jeu de la vraisemblablisation pour qu‘on
adhère à sa fantasticité, alors qu‘il manipule le faux
vraisemblable pour nous faire accepter ce qui est le
plus veridique l‘inouï et l‘inaudible (BELLEMINNOËL, 1972, p. 23).
Nesse jogo do verdadeiro falso ou da manipulação do falso real é a
principal estratégia da literatura fantástica no intento de conduzir o leitor a
aceitar o que parece incompreensível aos olhos humanos; assim, o jogo do
falso-verdadeiro permite que se acreditar de modo mais aceitável no que é
verídico, dentro do universo imaginário do fantástico.
Já para o próprio Nodier, que também foi um grande ensaísta, de
sua época, a literatura fantástica reflete um momento no qual o leitor está
completamente entregue, sendo sob a ótica de sua teoria, um dos momentos
mais expressivos de entrega total. Em De quelques phénomènes du sommeil
(1832/1982), esse crítico francês dissertou sobre o sonho como principal
caminho da literatura fantástica. Pare ele, não outro momento no qual o poeta
seja tão inspirado como no momento dos sonhos mais profundos, pois esse é
o momento de inocência, portanto, prñprio para se ―compreender‖ fenômenos
ligados ao imaginário.
No início dos anos de 1970, o tema do fantástico seduziu muitos
estudiosos que buscavam, na literatura, respostas para fatos « verossímeis »
que, em princípio, não tinham explicação pelas vias do real. Atualmente, esse
tema vem sendo bastante estudado, mas, hoje há outra perspectiva e, assim,
diferencia-se o fantástico moderno (ciência-ficção), do fantástico tradicional,
teoria originada das reflexões de Todorov (1971). Contudo, os dois caminhos
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se mostram sob o mesmo ambiente, ligado à noite, à escuridão, ao sono e ao
sonho, sendo essas as características que marcam os contos em questão, tanto
de Machado de Assis, quanto o de Charles Nodier.
Diálogo fantástico entre os contos
Primeiramente, cabe-nos expor o porquê de os três contos estarem
centrados na temática do fantástico. Tanto o conto Smarra ou les démons de
la nuit, quanto A vida eterna e Um sonho e outro sonho.
O conto francês é a estória de um jovem italiano que deita com a
sua esposa, a bela Lisidis, depois de uma noite de baile. Ambos cansados
dormem ao lado do Lac Majeur, em Arona. E então, Lorenzo entra no mundo
dos sonhos, onde ele é Lucius, um jovem grego que, estimulado pela leitura
de Apuleio, está voltando de Atenas para Lárissa, na antiga Tessália, onde
assiste às festas organizadas pelas escravas da cidade. Junto com Myrthé, a
mais bela das escravas e Polémon, seu amigo, Lucius assiste à vingança das
feiticeiras numa atmosfera alucinante povoada por fantasmas. Entre as
vítimas está Polémon, que narra como a bela e terrível Méroé arrancou o seu
coração e como jogou contra ele o seu monstro amado, Smarra, que sai do
seu anel mágico quando ela o chama. Lucius, então, tem um novo sonho
dentro desse primeiro sonho e, dessa vez é decapitado sob a acusação de ter
matado o amigo Polémon e a bela Myrthé. E, por fim, é acordado por Lisidis,
retomando consciência de que é Lorenzo, que nunca saiu de Arona e que
somente junto de sua esposa está livre dos terrores da noite2.
Nos dois contos machadianos o sonho também é a principal porta
de acesso ao mundo dos terrores. Em A vida eterna, por exemplo, o dr.
Camilo, apñs uma ―ceia copiosa e delicada‖ em companhia de seu amigo, o
dr. Vaz, é conduzido ao mundo onírico e se depara com a estranha figura do
rico sr. Tobias que não apenas insiste para que ele se case com a sua bela
filha, a dona Eusébia ; Tobias o obriga, sob pena de morte, a se casar com
uma moça linda, rica e muito jovem. Conduzido, imediatamente à casa de do
sr. Tobias, local do casamento, Vaz percebeu que a tal casa possuía um
mobiliário ―estranho e magnífico‖, sendo antigo, assim como o seu dono e
todas as pessoas que ali estavam para a festa de casamento entre o dr. Camilo
da Anunciação e a bela Eusébia. Após a cerimônia, a esposa entra em uma
compulsiva crise de choro, o marido, sem nada entender busca ajudar a sua
2
Resumo do conto publicado na Revista Raído, como o título: A figura feminina
como a mulher fatal em um conto fantástico francês.
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esposa, mas qual não é a sua surpresa ao tomar conhecimento de que ele não
era o primeiro marido daquela bela jovem; seu pai, o sr. Tobias, e todos
aqueles anciãos, que participaram da festa, eram participantes de uma
associação secreta. Assim, dr. Camilo é conduzido à morte pelos
participantes que, para adquirirem vida eterna, precisavam cear um velho
maior de setenta anos assado no forno e beber um vinho puro por cima. No
momento em que as senhoras assumiram as facas para cortar, de modo mais
adequado, as partes do corpo da vítima e levá-las ao forno, o dr. Camilo
ouviu a voz do amigo Vaz e percebeu que ainda estava em sua sala e que
havia acabado de ter um pesadelo.
Já no outro conto, embora se encontre o sonho desde o título, não
há a presença do pesadelo tão intenso levando à morte como em Smarra e em
A vida eterna; entretanto, o sentimento de culpa parece ocupar um espaço
maior nessa narrativa. Um sonho e outro sonho é a história de uma viúva
recente que havia jurado amor eterno ao falecido marido e se vê diante da
possibilidade de reconstruir a vida ao lado de outro homem. Genoveva, vinte
e quatro anos, bonita e rica estava viúva do dr. Marcondes, já havia três anos
e passara por várias fases da viuvez. Naquele momento, já não estava mais
tão completamente de preto, todavia, isso não significava que havia superado
a perda de seu amor. Embora muitos pretendentes buscassem a mão de
Genoveva, ela só tinha olhos para o marido, concretizado em uma fotografia
na parede de seu quarto. Até que surge um advogado, Oliveira que, de
maneira muito discreta, tenta convencer a viúva a casar-se com ele.
Genoveva, no entanto, resiste às investidas até que se sente atraída pelo gentil
advogado e nesse ínterim, ela sonha com o falecido que, na conversa, a acusa
de tê-lo esquecido e de ter se interessado por outro. Então, Genoveva renova
os votos de fidelidade ao finado e após um grito de desespero, desperta do
pesadelo. Insistindo nesse relacionamento com Oliveira, a viúva volta a ter
um novo sonho e, dessa vez, é mais forte. Nesse sonho, então, ela era
condenada aos infernos por ter quebrado seu voto. Ao acordar, tudo
desaparece e mais tarde, ela mesma reconhece: ―- Casou e não morreu‖.
Nesses contos, são os labirintos oníricos que conduzem o leitor à
hesitação, uma vez que, nas narrativas, existe o falso é o verdadeiro, havendo,
portanto uma intensa manipulação do real, conduzindo os protagonistas a
sofrerem, particularmente, por uma espécie de sentimento de culpa
proporcionado pelos pesadelos.
Em muitos de seus textos, Nodier disserta sobre o fantástico,
destacando as vias dos sonhos. Em De quelques phénomènes du sommeil
(NODIER, 1982), por exemplo, ele disserta sobre os sofrimentos que os
pesadelos podem causar ao ser humano. No conto Smarra, os pesadelos, dos
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quais Lorenzo é vitma, são exemplo do que esse contista nomeia de fantástico
sério, cujas narrativas são tão verossímeis que parecem reais. É esse tema que
faz de Smarra um texto inovador, como uma representação macabra, onde o
funesto toma quase toda a narrativa: ―Ces démons ne sont que de vaines
apparences. Mon épée, tournée en cercle autour de ta tête, divise leurs formes
trompeuses qui se dissipent comme un nuage‖. (NODIER, 1961, p.48)
Na viagem ao mundo imaginário, de nuvens efêmeras, o leitor é
conduzido a sofrer a enorme sensação de impotência face à morte. Esse
cenário macabro é completado com fantasmas e trevas:
Jamais une sombre lamie, une mante décharnée
n’osa étaler la hideuse laideur de ses traits dans les
banquets de Thessalie. La lune qu’elles invoquent
les effraie souvent quand elle laisse tomber sur
elles un de ces rayons passagers qui donnent aux
objets qu’ils effleurent la blancheur terne de l’étain
(NODIER, op. cit. P. 54).
Assim como nesse conto, nos contos de Machado de Assis, também
é possível se identificar sentimentos como medo: ―Naquela noite, Genoveva,
ao deitar-se olhou ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe
dobrado, e tarde dormiu, com medo de outra valsa; mas acordou sem sonhos‖
(ASSIS, 1997). O mesmo é encontrado na história do dr. Camilo:
Ao mesmo tempo era tão singular tudo quanto eu
acabava de saber, parecia-me tão absurdo o meio de
comprar a eternidade com um festim de
antropófagos, que o meu espírito pairava entre a
dúvida e o receio, acreditava e não acreditava, tinha
medo e perguntava por quê? (ASSIS, op. cit.)
Nesse sentido, os três contos se encaixam na perspectiva do
fantástico de Bessière (op. cit.) e Castex (op. cit.), quando afirmam que para
se perceber o fantástico, é necessário que haja uma intrusão brutal do mistério
no quadro da vida real. Esse aspecto é perceptível nos três contos, considerese, pois, que para que essa intrusão brutal seja ―aceita‖, o caminho escolhido
pelos dois contistas é a via das cadeias oníricas. Em Smarra, percebemos o
protagonista (o do primeiro quadro, Lorenzo) adentrando ao mundo dos
sonhos; pois é ele mesmo quem narra esse instante: ―Le sommeil me gagne
aussi
[...]
Dormez,
Lidisidis,
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dormez...............................................................................................................I
l y a un moment où l‘esprit suspendu dans le vague de ses pensées...‖
(NODIER, op. cit. p. 45).
Com o auxílio da pontuação, o protagonista acessa o mundo dos
sonhos. O mesmo que acontece com o dr. Camilo, que inicia a sua narrativa,
dissertando sobre o sonho : ―É opinião unânime que não há estado
comparável àquele que nem é sono nem vigília, quando, desafogado o
espírito de aflições, procura algum repouso às lides da existência‖ (ASSIS,
op. cit.). Com a protagonista de Um sonho e outro sonho, é também o
caminho do sono que abre as portas para o sonho: ―De uma vez, mal
adormecera, teve um sonho extraordinário‖ (ASSIS, id. ibid.).
Nesse momento, é possível perceber de modo manifesto como o
adormecer instara-se como a porta para o fantástico ou o extraordinário. Em
outra circunstância, notamos um cuidado da personagem para manter-se
desperta: ―Posto que tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se
deitou; ao contrário, ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo
acordada‖. No entanto, como se trata de algo mais forte, o sonho também
venceu a protagonista, da mesma forma que aconteceu com o dr. Vaz e com
Lorenzo e Lucius, seu duplo. A despeito de serem românticos e poéticos
esses excetos nos mostram a força que o sonho pode empreender na vida
humana, produzindo assim, o fantástico.
Nas três narrativas curtas, o sonho, via sono, mostra que a vida
desperta pode ser o principal culpado pelos terrores noturnos. Isso se percebe
no conto Smarra, uma vez que Lorenzo, conta ter dançado muito com outras
mulheres no baile de casamento, sendo, então, inculpado pela sua traição à
jovem esposa. O mesmo sentimento de traição toca a jovem viúva, dona
Genoveva que, ao começar a sentir interesse por outro homem, se vê em
plena traição ao marido não vivo, sendo por essa razão, condenada à morte.
No caso do dr. Camilo, a sensação de prazer proporcionado pelo delicioso
banquete e, em seguida, pelo charuto havana, o levam a encontrar uma noiva
jovem e bela, mas, por pouco tempo; apenas o espaço temporal de se ler as
palavras do Elixir da eternidade.
A luz do mundo desperto é, nos três contos, sinônimo de uma
libertação que livra os protagonistas de situações de desespero que pode
sempre resultar em morte. Tanto na voz de Lisidis, a esposa amada e doce de
Lorenzo, ou na voz do amigo, o dr. Vaz; ou ainda, na voz da mãe de dona
Genoveva, há uma terceira pessoa, essa, do mundo dos vivos, responsável por
arrebatar o protagonista dos braços da morte. Logo, em todos os contos,
percebe-se que há uma voz doce que livra o herói dos horrores produzidos no
mundo dos seus pesadelos. Esse mundo é, para Nodier um espaço no qual
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―l‘imagination de l‘homme endormi, dans la puissance de son âme
indépendante et solitaire, participe en quelque chose à la perfection des
esprits‖ (NODIER, op. cit. p.42).
Considerando esse aspecto de o sonho ser um espaço para a
perfeição dos espíritos, lemos esses contos pelo viés da Interpretação dos
Sonhos, na qual Freud (1980, p. 113) analisa o sonho como realização dos
desejos e diz: ―C‘est un phénomène psychique dans toute l‘acception du
terme, c‘est l‘accomplissement d‘un désir.‖ Impossível não se ler textos
literários com a presença do tema do sonho, sem que se pense no médico
judeu-austríaco que ao discorrer sobre a deformação no sonho, também
afirma que todo cuidado é pouco para não se generalizar: ―Mais dire qu‘il n‘y
a que des rêves d‘accomplissement de désir est une généralisation injustifiée
que l‘on peut refuter sans peine. Trop de rêves enferment un contenu pénible,
sans trace de réalisation d‘un désir‖ (FREUD, op. cit., p. 123). Os sonhos de
conteúdo penoso, sem qualquer marca de realização de desejo, são as
deformações que também conhecidos como pesadelos e são sonhos de
angústia, repletos de sentimento de medo, que levam o sonhador a agitar-se
até o completo despertar, que é a porta para a saída desse inferno.
Dessa forma, nos contos em análise, podemos nos questionar se os
tais sonhos poderiam ser realização de desejos. Observamos que no conto de
Nodier, o fato de o herói estar em um universo desconhecido ao lado de belas
mulheres, logo após o baile de seu casamento, o conduziu (Lorenzo) a se ver
como um traidor da sua amada, doce e bela esposa. Algo semelhante se
percebe na história do dr. Camilo, pois em seu sonho, ele, um velho de mais
de setenta anos é conduzido ao casamento com uma jovem e bela mulher que,
na verdade, era uma espécie de mulher fatal, contra o seu próprio desejo, pois
ela era apenas a passagem para que os participantes daquela estranha
sociedade, pudessem ter acesso à vida eterna.
No caso da viúva, parece haver um caminho inverso, uma vez que é
no mundo desperto que ela parece trair seu marido, que não vive mais neste
universo, flertando com um jovem e bem sucedido advogado. Assim, o seu
inconsciente estaria dando o grito de alerta, conduzindo-a aos infernos do
pesadelo, onde é condenada pelo próprio marido falecido, por tamanha
traição.
Essas observações nos fazem perceber no tema do sonho um
importante laço que pode unir escritores de culturas distintas, em espaços e
tempos também diferentes (HEIDMANN; ADAM, 2010), do mesmo modo
que se pôde ver nas fábulas de Esopo e seus muitos revestimentos em fábulas
antigas e modernas ou em micro fábulas, do latino Lucius Apuleio.
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Algumas conclusões
No período romântico (1800-1850), o sonho veio afirmar o valor da
imaginação e da sensibilidade. O tema começou a ser desenvolvido na
Alemanha por Jean-Paul Richter, Hoffmann, Tieck e Novalis. Na França,
começa com Smarra, de Nodier, e segue com Nerval, Alouysius Berthrand e
outros. Na obra de Nodier, o sonho é desenvolvido em vários contos e
também em alguns romances. Mas, é certamente no conto aqui lido que
percebemos, de maneira na intensa, a importância do sonho enquanto
temática, para esse período literário; pois, nesse conto há uma mise en abîme
de sonhos, proporcionando as cadeias oníricas, dada a sua importância para a
intenção do seu autor, que buscava iniciar os franceses nesse gênero literário,
que mais de um século depois foi teorizado por Todorov (1971).
Quando nos propomos, neste trabalho, a perceber este diálogo pelo
espectro literário e no cultural de dois contos machadianos e um do iniciador
fantástico na França, observamos que o conto nodieriano, considerado pela
crítica como um grande fracasso de seu autor, posto que ele traz a temática do
fantástico pelos caminhos dos labirintos oníricos, algo moderno e inovador
para a época, parece ecoar na obra de nosso grande escritor Machado. No
entanto, embora não se encontre claros laços entre a obra de Machado de
Assis e a de Nodier, não se pode deixar de se perceber como reverbera a obra
desse romântico francês dentro da obra do nosso realista.
Por essa razão, a partir da nossa colaboração, podemos
circunstanciar Machado de Assis como um iniciador do fantástico no Brasil,
do mesmo modo que Nodier o foi para a França, uma vez que Machado
produz textos com características do fantástico, pelos caminhos dos dédalos
dos sonhos, em uma época que, socialmente, apenas o sonho poderia permitir
determinados comportamentos sociais. Não obstante mais de cinquenta anos
separando esses dois escritores, não se pode deixar de ressaltar que os modos
da sociedade carioca do final do século XIX poderiam, de alguma forma,
assemelhar-se àquela parisiense da primeira metade do século, já que os
registros literários apresentam essas sociedades tão bem.
Demonstrar que Machado pode ter, de alguma forma, tido acesso à
obra Charles Nodier não é nenhum exagero, posto que o nosso escritor
possuía proficiente leitura em várias línguas, referenciando em suas obras
tanto franceses, quanto obras oriunda de outras literaturas; embora, nem
sempre, as fontes tenham sido explícitas. Por essa razão, nosso trabalho
aponta para mais essa relação entre a literatura brasileira e a francesa,
comprovando que a obra de Machado de Assis tem ecos da obra de Charles
Nodier. Isso confirma que a literatura, de fato, não precisa ter tempo e espaço
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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definidos e, como disse o escritor e filósofo Sartre, (1948) a literatura é feita
para qualquer homem, independente do seu espaço ou do seu tempo.
BRAZIL-FRANCE RELATIONS IN THE PERSPECTIVE OF FANTASY
SHORT STORIES
ABSTRACT : Fantasy literature, of German origin, and made public by
French storytellers, echoes through Brazilian literature, especially through the
realist works of Machado de Assis, which take us into French culture and
help the reader to appreciate the literature of Molière‘s country. When we
read Machado de Assis‘ works, we find lots of references to French culture,
as shown in two of his works, such as Eternal Life ( 1870) and A dream,
another dream ( 1892), which bring us the fantasy theme through an oniric
manner. In this article, we endeavor to compare these two short-stories
written by Machado de Assis with Charles Nodier‘s works, who is known to
be the creator of fantasy short-stories in France. In this study we highlight the
short-story Smarra ou les démons de la nuit (1822), due to its uncontinued
narrative full of degressions. The study is based on the perspective of
Todorov‘s fantasy (1971) and Nodier himself (1832) who, apart from being a
fictionist, was one of the first to reflect on fantasy in literature. We also based
our investigation on Pinheiro-Passos (1996a ; 1996b ; 2006), attempting to
find supporting elements between French literature and the works of
Machado de Assis. The reading of the short-stories revealed to us an intense
dialogue between the texts, especially in relation to dreams as a suitable
setting for fantasy.
KEYWORDS : Short-story. Fantasy. Brazilian literature. French literature.
Referências
AMARAL, G, C. Aclimatando Baudelaire. São Paulo: Annablume Editora,
1996.
ARRIVÉ, M. Les langages de Jarry. Paris: Ed. Seuil, 1972.
ASSIS, Machado de. Obra completa. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1997. 3 v.
BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo.
Martins Fontes, 2003.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
99
BARTHES, R. Littérature et descontinu. Essais critiques. Paris: Ed. du Seuil,
1969.
BELLEMIN-NOËL, J. Notes sur le fantastique. In: Littérature. n.8, Paris:
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101
Uma leitura do Southern Gothic em ―Uma rosa
para Emily‖, de William Faulkner
Fernanda Aquino SYLVESTRE1
RESUMO: William Faulkner pertence a uma tradição literária conhecida como
Southern Gothic, que surgiu no início do século XX, trazendo características do
estilo Gótico Europeu, como o mórbido e o grotesco. Embora os escritores
americanos dessa vertente como Faulkner, Harper Lee, Flannery O‘Connor e
Tennessee Williams tenham emprestado do gótico tradicional suas características
essenciais, eles não se preocuparam em usar em suas narrativas elementos sobrenaturais
apenas para criar uma atmosfera de suspense ou excitação. As características góticas
retomadas por esses autores servem para revelar aspectos psicológicos e sociais do
homem, bem como os valores do sul dos Estados Unidos. A partir das considerações
traçadas, pretende-se apresentar, neste artigo, um estudo do estilo Southern Gothic
no conto ―Uma rosa para Emily‖, de William Faulkner, mostrando, mais
especificamente, como os elementos góticos compõem o embate entre a tradição e
uma sociedade opressiva que surge no sul dos Estados Unidos e busca mudanças,
perturbando o modo de vida daqueles que pretendem continuar arraigados no
passado.
PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA NORTE-AMERICANA. SOUTHERN GOTHIC.
WILLIAM FAULKNER.
A literatura gótica surgiu, no século XVIII, como uma resposta ao
racionalismo em voga na referida época. Nesse período, como atesta Maggie
Kilgour, em The rise of the gothic novel (1995, p. 3), a burguesia se consolidava como
classe revolucionária, as ideias iluministas influenciavam fortemente filósofos e
cientistas, os Estados Nacionais se consolidavam e o racionalismo ditava a ordem
mundial. Nessa esteira, organizava-se a sociedade moderna, pondo fim ao regime
feudal.
Muitos críticos literários consideraram o gótico como extinto no fim do
século XIX, todavia nota-se sua presença até mesmo na contemporaneidade. O fato
desse gênero operar nas fendas da razão, lidar com o incompreensível, com o indizível,
sob os olhos do insólito, fez com que ele atraísse um grande público leitor e se
disseminasse por vários países, perdurando até o presente.
O gótico está estritamente relacionado com as alterações que ocorreram na
cultura, na política e na sociedade do século XVIII e, de acordo com Vasconcelos
(2002, p.126), ―seria a resposta aos medos e incertezas experimentados nesse
1
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período, assim como uma tentativa de superar os limites da ordem racional e moral e
de tratar de tudo aquilo que o Iluminismo havia deixado sem explicação ou varrido
para debaixo do tapete‖.
Consoante Clery (2002, p.21), Horace Walpole (1717-1797) foi o
inaugurador do romance gñtico, ao publicar ―O castelo de Otranto‖. De acordo com o
mesmo autor, para Walpole e seus contemporâneos, o gótico era tido como um longo
período de barbarismo e superstição, iniciado no século V, quando os Visigodos
provocaram a queda do Império Romano, passando pela Renascença e perdurando até o
ressurgimento do aprendizado clássico. No contexto Britânico, ele perdura até a
Reforma, no século XVI, ao romper com o passado católico. Na época de Walpole, o
termo gótico também assumia acepções como obsoleto, fora de moda. A obra de
Walpole apresenta caráter híbrido, misturando o romanesco com o romance, o antigo
e o moderno.
Sandra Guardini Vasconcelos (2002, p. 122) ressalta que o gótico se tornou
o veículo adequado para a época de Walpole, ao funcionar como ―uma reação aos
mitos iluministas, às narrativas de progresso e de mudança revolucionária por meio
da razão‖. Dessa forma, segundo Vasconcelos (2002, p.122), o gñtico aparece como
um meio de perturbar o realismo e expor os ―medos e temores que rondavam a
nascente sociedade burguesa‖.
O romance gótico
Questiona a constituição do real e interroga as
contradições sociais, abrindo espaço para a mescla de
medo e interesse que parece ter caracterizado as relações da
burguesia com a aristocracia [...] coloca a nu todas as suas
ambivalências. A intenção de consolidar valores burgueses,
como a domesticidade, o sentimentalismo, a virtude, a
família, convive com o fascínio pela arquitetura, pelos
costumes e valores medievais, expressão de um mundo
feudal cuja ordem era objeto de admiração, mas cuja tirania,
barbarismo e formas de poder encontravam
desaprovação e provocavam ansiedades projetadas na
criação de vilões aristocráticos malévolos e cruéis.
(VASCONCELOS, 2002, p. 123)
Walpole se vale do exposto acima para criar seu romance, de pouco valor
literário, mas de grande influência para a literatura gótica, já que estabelece
elementos essenciais na constituição desse gênero literário. Conforme lembra
Lovecraft (2008, p. 27), Walpole cria
Um tipo inovador de cenários, personagens típicos e
incidentes que, manipulados para melhor vantagem dos
escritores mais naturalmente adaptados à criação
fantástica, estimularam o crescimento de uma escola [...]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
103
que, por sua vez, inspirou verdadeiros criadores de um
terror cósmico – a linhagem de verdadeiros artistas que
começa com Poe. Essa nova parafernália dramática
consistia, antes de tudo, do castelo gótico com sua
antiguidade espantosa, vastas distâncias e ramificações, alas
desertas e arruinadas, corredores úmidos, catacumbas
ocultas insalubres e uma galáxia de fantasmas e lendas
apavorantes como núcleo de suspense e pavor demoníaco.
Incluía também, além disso, o nobre tirânico e perverso
como vilão; a heroína santa, muito perseguida e
geralmente insípida que sofre os maiores terrores e serve
de ponto de vista e foco das simpatias do leitor; o herói
valoroso e sem mácula, sempre bem-nascido, mas
frequentemente em trajes humildes.
Percebe-se, então, que o escritor inglês vale-se de cenários macabros e
personagens cruéis que se opõem a doces e puras donzelas. O enredo de ―O castelo
de Otranto‖ é centrado na histñria de Manfred, um príncipe usurpador de terras que,
após a misteriosa morte do filho Conrad, na manhã de suas núpcias, tenta eliminar a
esposa Hippolita para se casar com a viúva do filho, Isabella. O castelo é assolado
por uma série de fenômenos insólitos, que geram ambiguidade na narrativa, quando o
escritor contrapõe no romance as leis terrenas ao sobrenatural. Muitos escritores
seguiram o estilo gótico de Walpole. Com o tempo, porém o gótico foi se
transformando, substituindo seus cenários e personagens originais e atingindo
diferentes matizes, como o enredo centrado na distorção psicológica, como se verá
em ―Uma rosa para Emily‖.
Botting (2010, p.1), em sua obra Gothic, traça um panorama evolutivo do
gótico, desde suas origens até a contemporaneidade. Para o autor, o gênero se
configura como uma escrita de excessos, que surgiu para desestabilizar o idealismo
romântico e o realismo vitoriano. Consoante o estudioso, o gótico evoca o passado e o
faz ecoar no presente, provocando o terror e o riso. Botting (2010, p.2) ressalta que, no
século XX, o gótico continua a assombrar o progresso da modernidade, evidenciando
o lado escondido do Iluminismo e dos valores humanos. O autor, ao tratar o gótico
como a escrita dos excessos, assim o define porque acredita que o gênero abusa da
imaginação e dos efeitos emocionais, excedendo a razão.
No século XVIII, conforme Botting (2010), os cenários góticos eram castelos,
passagens secretas, florestas, locais selvagens, igrejas, mosteiros e cemitérios. Esses
lugares evocavam, muitas vezes, memórias de um passado feudal cheio de
superstições. A partir do século XIX, esses cenários vão sendo substituídos por casas
antigas onde o medo impera, cidades selvagens, ruas escuras, violentas, labirínticas. Do
século XX em diante, os locais escolhidos como espaço da narrativa gótica são cidades
repletas de corrupção, violência e horror real e casas de famílias ameaçadas por um
passado de culpa. Também passam a fazer parte desse cenário os mundos
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intergalácticos, os mundos futuros, os mundos que abrigam a subcultura do crime,
bem como os hospitais psiquiátricos.
Quanto aos personagens, eles também vão ganhando novos contornos ao
longo do tempo. No século XVIII, aparecem na forma de espectros, monstros,
demônios, esqueletos, corpos mortos, aristocratas maldosos, monges, bandidos e
heroínas desfalecidas. O rol de personagens, no século XIX, é ampliado, passando a
incluir cientistas, pais, maridos, loucos, criminosos e duplos. A partir do século XX,
ganham espaço cientistas loucos, psicopatas, extraterrestres e monstros mutantes.
O gótico enquanto proposta também sofre alteração através dos séculos.
Quando surgiu, no século XVIII, visava abolir o diabólico e restaurar os limites
impostos pela sociedade, por isso os vilões eram punidos e os heróis se casavam. No
século XIX o gótico assume um viés diferente, questionando a política, a sociedade e
a filosofia. No século XX o horror impera e o sublime cede espaço ao sinistro,
causando incertezas, permitindo a irrupção da fantasia e suprimindo desejos e
conflitos sexuais e emocionais, como atesta Botting (2010). Há uma clara
desestabilização entre o real e o psicológico. O excesso passa agora a emanar do
interior, mostrando, paradoxalmente, indivíduos como produtos do desejo e da razão.
Torna-se evidente, após esse breve relato sobre os desdobramentos do
gótico, que ele se apresenta como um gênero passível de se adaptar às novas
realidades que surgem, por isso é um gênero que sobrevive e se torna bastante
presente na contemporaneidade.
Este artigo tem como objetivo tratar do gótico no século XX e, para tanto,
propõe uma leitura do conto ―Uma rosa para Emily‖, de William Faulkner, centrada
no Southern Gothic, estilo que irrompe no início do século XX, trazendo
características do estilo Gótico Europeu, como o mórbido e o grotesco. Embora os
escritores americanos dessa vertente, como Faulkner, Harper Lee, Flannery O‘Connor e
Tennessee Williams tenham emprestado do gótico tradicional suas características
essenciais, eles não se preocuparam em usar em suas narrativas elementos
sobrenaturais apenas para criar uma atmosfera de suspense ou excitação. As
características góticas retomadas por esses autores servem para revelar aspectos
psicológicos e sociais do homem, bem como os valores do sul dos Estados Unidos.
Mais especificamente, pretende-se mostrar como os elementos góticos compõem o
embate entre a tradição e uma sociedade opressiva que surge no sul dos Estados
Unidos e busca por mudanças, perturbando o modo de vida daqueles que pretendem
continuar arraigados no passado, como é o caso de Miss Emily, protagonista do
conto.
Faulkner explora em suas obras o legado histórico do sul dos Estados
Unidos, o futuro incerto e violento de uma sociedade agrária após a Guerra da
Secessão, ocorrida entre 1861 e 1865. Desde a colonização, Norte e Sul eram
bastante diferentes no que diz respeito às questões políticas, econômicas e sociais e,
após a Guerra Civil, essas diferenças acentuaram-se cada vez mais. Pode-se dizer que
tanto o Sul quanto o Norte defendiam o liberalismo, porém de forma peculiar a cada
região. Enquanto o Norte defendia o solo livre, o trabalho livre e a industrialização; o
Sul defendia a propriedade privada, incluindo nela os escravos e o livre comércio. O
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Sul pretendia, portanto, manter seu caráter latifundiário, aristocrata,voltado para a
agroexportação; enquanto o Norte ansiava pela industrialização, com vistas ao
mercado interno.
Para compor suas narrativas, Faulkner cria um lugar imaginário, o condado
de Yoknapatawpha, cuja capital é Jefferson, cidade em que o conto ―Uma rosa para
Emily‖ é ambientado. O condado baseia-se na cidade de Oxford, Estados Unidos, e
seus arredores. Nesse condado prevalecem as ideias sulistas, todavia, elas são
frequentemente assombradas pelos ideais do Norte, ferindo as origens da população,
como ocorre com Miss Emily.
―Uma rosa para Emily‖ é um conto sublime, permeado pelo grotesco, com
final arrebatador e surpreendente. O conto, dividido em cinco partes, retoma a morte
de Emily Grierson, por meio da voz de um narrador desconhecido, onisciente. O
início da narrativa mostra o enterro de Miss Emily e o interesse das pessoas em
comparecer a ele, já que por mais de dez anos nenhum habitante teve permissão para
entrar na residência da falecida. Apenas Tobe, seu fiel empregado, frequentava a
decadente mansão. Emily era considerada uma excêntrica pela população de
Jefferson. Reclusa e solitária não aceitou a morte do pai, que a repreendeu por toda a
vida, impedindo-a de casar. Guardou o corpo sem vida de seu progenitor por vários
dias em sua casa, não permitindo a realização do funeral. Não pagava seus impostos,
porque acreditava não dever nada a Jefferson, já que seus ancestrais haviam feito um
acordo com coronel Sartoris, morto há dez anos, isentando a família dos impostos.
Incapaz de se adaptar às mudanças do Norte, que avançavam sobre o Sul, e à
modernização que chega a Jefferson, Emily envenena Homer, um trabalhador do
Norte com quem mantinha um relacionamento afetivo, e mantém o corpo do amante
guardado em casa até sua morte, quando a mansão é aberta e o esqueleto é
descoberto em um dos quartos, estendido na cama em que Emily provavelmente
dormia ao seu lado. O fato é levantado, porque no travesseiro ao lado de Homer, um fio
de cabelo grisalho de Miss Emily é encontrado.
A narrativa de Faulkner faz uma clara crítica à opressão que a sociedade
imprime em pessoas como Emily Grierson , que escolhem permanecer eternamente
no passado, presas aos velhos costumes e tradições. Miss Emily evidentemente
apresenta um comportamento patológico durante toda a narrativa, seja por sua
reclusão ou por suas excentricidades, culminando no trágico desfecho, a necrofilia,
que já apresentava sinais na sua vida, desde a morte do pai, quando tentou evitar seu
sepultamento, conforme se nota em trecho a seguir:
No dia seguinte ao da morte do velho, as senhoras da
cidade se prepararam para ir a sua casa, apresentar-lhes
os pêsames, conforme o costume. Miss Emily recebeu-as
no limiar da porta, vestida como nos outros dias, e sem a
menor marca de tristeza ou sofrimento na expressão.
Disse-lhes que o pai não tinha morrido. Repetiu essas
palavras durante três dias, quando os pastores e os
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médicos iam vê-la, tentando persuadi-la a deixar dispor
do cadáver. (FAULKNER, 2004, p.414)
Muito provavelmente a necrofilia em Emily esteja ligada à necessidade de
pelo menos uma vez ela ter poder sobre as pessoas, principalmente sobre os homens,
já que seu pai a havia reprimido e desencorajado todos os pretendentes de Emily,
condenando-a a uma vida solitária. Com a morte do pai, Miss Grierson sentiu a
solidão próxima. Que sentido teria sua vida sem as proibições do pai? Com quem
manteria contato? Com quem dividiria seu mundo ligado ao passado, a uma tradição
já decadente? Emily se transformaria, como ocorreu, em uma alma relegada à
reclusão. Manter o corpo do pai com ela significaria poder fazer dele o que quisesse,
dominá-lo. Dessa maneira, poderia se vingar do pai repressivo. Porém, a sociedade
cumpre seu papel e exige que o pai de Emily seja enterrado. Os habitantes de
Jefferson não acreditavam na loucura de Emily diante da tentativa de esconder a
morte do pai e, de acordo com o narrador, concluíram: ―Pensamos que tinha agido
como devia. Lembrávamo-nos de todos os moços que seu pai afastara, e sabíamos
que, achando-se sem nada, ela deveria forçosamente agarrar-se àquele que a
despojara de tudo, como em geral acontece‖. (FAULKNER, 2004, p.414)
Em ―Totem e tabu‖, Freud (1978) centraliza seus estudos psicanalíticos no
relacionamento pai/filho e, de acordo com o psicanalista há um despotismo patriarcal
instaurado, o pai tem direitos históricos sobre os filhos. Esse despotismo,
representado pela figura paterna, passa a gerar ódio, culminando na rebelião dos
filhos e no assassinato e devoração coletiva do pai. Estabelece-se um clã dos irmãos,
que passam a deificar o pai assassinado e, assim, surge o tabu, para gerar a
moralidade social. De acordo com Freud, a rebelião dos irmãos seria uma revolta contra
o tabu, decretado pelo pai, em relação à proibição do contato com as mulheres da
horda. O sentimento de culpa dos irmãos pelo assassinato do pai provoca a separação
da situação inicial de dominação do pai, para o início de uma nova civilização: a dos
irmãos. O sentimento de culpa introjeta nos indivíduos as proibições e restrições
necessárias para a sustentação da civilização. Para Freud (1978), a história do homem
é a história de sua repressão. O pai funciona como arquétipo da dominação. Nesse
sentido, Emily estaria se rebelando contra o pai, contra seu poder repressor
excessivo.
Assim como a posse do corpo do pai, o assassinato de Homer pode também
ser atribuído à necessidade de dominação e vingança. De início, Emily encontra
esperança de voltar a viver em sociedade ao conhecer Homer. Todavia, a
possibilidade de um relacionamento entre Miss Emily e Homer provavelmente é uma
ilusão da parte de Miss Grierson. Homer representa os homens do Norte e, como
eles, deseja o progresso, os benefícios da industrialização. Emily, por sua vez, está
associada aos costumes sulistas, tradicionais, latifundiários. Além disso, Homer era
um trabalhador, uma pessoa de classe social baixa, enquanto Emily pertencia à elite,
embora uma elite decadente, conforme se descreve, no conto, a casa onde Miss
Grierson habitava:
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Era um casarão quadrado, de madeira, outrora branco,
decorado de cúpulas, de flechas, de balões esculpidos, no
estilo pesadamente frívolo da época de 1870, situado na
rua que já tinha sido a mais distinta da cidade. Mas as
garagens e as debulhadoras de algodão, multiplicando-se
em derredor, acabaram por fazer desaparecer até os
nomes augustos daquele bairro. A casa de Miss Emily
era a única que permanecia, levantando sua decrepitude
teimosa e faceira acima dos vagões de algodão e das
bombas de gasolina. (FAULKNER, 2004, p. 410)
A descrição da casa não apenas mostra a decadência de Miss Emily, como
também apresenta sua obsessão pelo passado, a resistência ao progresso. Sua moradia
era a única que ainda se encontrava erguida em meio ao comércio e às indústrias que
chegavam para explorar o algodão.
Homer chegou à cidade para exercer um emprego temporário, como
supervisor dos trabalhadores negros vindos para pavimentar a cidade de Jefferson.
Descrito como
Um Yankee – homem grande, moreno, decidido, com um
vozeirão enorme e olhos mais claros do que a pele do
rosto. Os garotos seguiam-no aos bandos, para ouvi-lo
gritar com os negros [...] conhecia toda a gente da
cidade. Cada vez que se ouviam ruidosas gargalhadas na
praça, podia-se jurar que Homer Barron estava no centro
do primeiro grupo. Não tardamos a avistá-lo nos
domingos à tarde passeando com Miss Emily.
(FAULKNER, 2004, p. 414)
O trabalhador não foi considerado pelos habitantes um homem adequado
para se casar com Miss Emily, pois seu caráter rude e sua classe social não
combinavam com uma dama da sociedade. Homer vivia gargalhando em rodas de
amigos, bebendo, o que o desqualificava como marido ideal para a distinta e recatada
Miss Grierson.Mas Emily não parecia se importar com o caráter pouco refinado de
Homer e quis tê-lo a qualquer custo, mesmo morto.
Assassinar Homer era uma forma de tê-lo para sempre fora dos olhos da
sociedade que não aceitava o relacionamento entre os dois. Mais uma vez Emily se
vê oprimida pelo papel social repressor, o que pode ter contribuído para a piora de
seu estado mental já doentio, levando-a desejar Homer só para si. O assassinato
funcionaria como uma espécie de catarse e Emily poderia se vingar tanto de Homer,
que não tinha intenções mais sérias de relacionamento, quanto da sociedade que a
reprimia. A repressão que poderia ter acabado com a morte do pai, no âmbito
familiar, passa a fazer parte também do contexto social de Miss Grierson. A
população de Jefferson sentia dñ daquele ―monumento tombado‖, mas ironicamente, não
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poupava palavras cruéis a respeito de Emily e seu amante. Em princípio todos
pareciam satisfeitos com o relacionamento de ambos, porque Homer trouxera Emily
de volta à vida, mas as alcoviteiras da cidade não tardaram a dizer: ―Naturalmente, nunca
uma Grierson tomará a sério um nortista, um assalariado‖ (FAULKNER, 2004,
p.415).
É interessante notar que Homer, da mesma maneira que Emily, pode ser
considerado um marginalizado, um estrangeiro que se torna objeto de intriga da
população. No entanto, diferentemente de sua assassina, ele é um ser sociável, centro
das atenções dos outros trabalhadores e moradores que se divertiam ao lado dele, um
homem agradável que, com sua simpatia, conquistava a companhia de todos que se
aproximavam.
Emily, apesar dos comentários não se deixava abater e parecia tornar-se
mais forte, após cada crítica ou intriga, ela
Erguia a cabeça bem alto, mesmo quando pensávamos
que tinha decaído. Parecia mais do que nunca, exigir que
se reconhecesse sua dignidade de última dos Grierson,
como se fosse necessário aquele toque de vulgaridade
terrestre para acentuar mais profundamente a sua
impenetrabilidade. Tal como no dia em que comprou o
veneno para ratos, o arsênico. (FAULKNER, 2004,
p.415)
Percebe-se que Emily tenta seguir uma rotina, dando um ar de normalidade
para sua vida, mesmo ao comprar o veneno que mataria Homer. A população de
Jefferson, ao saber da compra, acreditava que Miss Emily cometeria suicídio, sem
saber que algo muito mais aterrorizante passava por sua mente doentia. O sórdido
assassinato só seria descoberto tarde demais, após o enterro de Emily. Miss Grierson
parecia ter seu próprio mundo e suas próprias convenções, não se importando com a
imagem que a sociedade fazia a seu respeito, ignorava os contratos sociais e até
mesmo as leis, talvez como forma de se sentir menos desprezada, como uma fuga do
mundo real tão perverso como sua psique.
No mundo de Emily não cabia o novo contexto social que estava dominando
aos poucos o sul dos Estados Unidos no fim do século XIX e início do XX. Miss
Grierson representava a tradição e vivia em uma época em que Jefferson agregava
tanto os resquícios agrários, quanto a modernidade. O tempo para ela era relativo, o
passado não se configurava como uma glória perdida, mas como um local idealizado.
Como uma representante da tradição, Emily era respeitada e honrada pelos
moradores da cidade em que vivia, embora eles não a entendessem nem a aceitassem
verdadeiramente, tolerando-a, apesar de ser um fardo para todos, como atestam as
palavras mordazes do narrador:
Viva, Miss Emily fora uma tradição, um dever e um
aborrecimento:espécie de obrigação hereditária, pesando
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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sobre a cidade desde o dia em que, em 1894, o coronel
Sartóris (o prefeito que baixou o decreto proibindo às
negras saírem à rua sem avental) a isentara do
pagamento de impostos, isenção definitiva, que datava
da morte de seu pai. Isto não quer dizer que Miss Emily
aceitasse a caridade. O coronel Sartóris inventara a
complicada história de um empréstimo em dinheiro, feito
pelo pai de Miss Emily à cidade e que a cidade, por
conveniência própria, preferia reembolsar dessa maneira.
Só um homem da geração e com as ideias do coronel
Sartóris poderia ter imaginado semelhante coisa, e só
uma mulher poderia ter acreditado. (FAULKNER, 2004,
p. 411)
Pelas palavras do narrador, nota-se que Miss Emily realmente vivia em seu
próprio mundo, acreditando, ainda, que poderia ser beneficiada por ter feito parte da
aristocracia sulista. Coronel Sartóris, assim como Emily, também vivia uma realidade
arraigada na tradição sulista. Quando o desenvolvimento chegou ao Sul, vindo do
Norte, Emily ignorou-o. A geração seguinte à de Emily, com suas ideias modernas,
resolveu, por meio dos governantes da cidade, cobrar os devidos impostos de Miss
Grierson, que se negou a pagar, dizendo que não possuía dívidas em Jefferson. Ela
não compreendia o quão absurdo era o fato de não pagar impostos, prendendo-se às
palavras do falecido coronel Sartoris.
Não pagar impostos não era a única prova de que Miss Emily se apegava ao
passado, negando-se a aceitar a modernidade. Emily nunca reformara a casa,
mantendo seus sinais decadentes, típicos dos cenários da literatura gótica. Miss
Grierson também se recusara a mudar de bairro, permanecendo instalada onde
outrora havia uma elite dominante e no presente abrigava garagens e debulhadoras de
algodão. Além disso, a excêntrica moradora de Jefferson ―foi a única pessoa que se
negou a consentir que fixassem um número de metal acima de sua porta e, uma
caixa-postal ao lado. Não houve argumento que a convencesse‖ (FAULKNER, 2004,
p. 417)
A imagem da decadência é uma constante no conto, tanto na descrição de
cenários, como a casa de Emily, quanto na descrição da própria Emily. A morte
também é um símbolo da decadência, presente na história, que reforça a permanência do
passado, impedindo a irrupção do novo. A imagem da morte permeia todo o conto,
desde o início da narrativa, quando o narrador anuncia a morte de Emily, até o
naufrágio da tradição em face das mudanças promovidas pela modernidade. Miss
Grierson vai morrendo aos poucos, como mostra a narrativa, por meio dos flashbacks
que recontam sua vida. O narrador compara-a a uma mulher afogada. Quando os
representantes do conselho municipal foram até a casa de Emily cobrar-lhe os
impostos, depararam-se com
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110
Uma mulherzinha pequena e gorda, vestida de preto,
com uma fina corrente de ouro descendo-lhe do pescoço
até a cintura, onde desaparecia no cós da saia. Tinha a
ossatura pequena e delicada; talvez, por isso, o que em
outra pessoa seria apenas gordura, parecia, nela,
obesidade. Dava a impressão de estar inchada, como um
cadáver muito tempo submerso numa água estagnada;
tinha o mesmo de um afogado, a carne lívida e balofa.
(FAULKNER, 2004, p. 411-12)
Emily, mesmo em vida, tem uma aparência mórbida, decadente como sua
casa. Aliás, ambas são tidas como monumentos, emblemas da aristocracia sulista que
morre lentamente. A casa de Emily pode ser considerada uma extensão da própria
personagem, representando a alienação, a morte e a doença mental de sua dona. A
casa também representa a morte não só por suas características físicas, mas também
porque abriga Homer, um homem morto, em seu interior. É interessante notar que a
casa de Miss Grierson, como ela, é objeto de fascínio da população, que projeta sua
curiosidade, sua atração pelo proibido e pelo desconhecido no local e em sua
habitante. Com a morte de Emily, a população de Jefferson pode finalmente
confirmar suas fantasias e suposições.
A casa de Miss Grierson foi vista internamente, após sua reclusão, apenas
uma vez pelos governantes da cidade que se depararam com ―um saguão escuro, de
onde uma escada se projetava para as sombras ainda mais espessas do andar superior.
Havia em tudo um cheiro de poeira, de guardado, de coisas que nunca são usadas –
um cheiro de mofo e umidade‖ (FAULKNER, 2004, p.411). A poeira da casa parece
tornar opaca e escura não apenas seus cômodos, mas os que nela habitam. A poeira
também sugere o lado obscuro de Miss Emily que só será revelado após sua morte,
assim como os segredos que a casa esconde. A imagem da poeira é retomada no final
da história, quando o corpo de Homer é descoberto, intensificando o horror no conto,
conforme se pode notar pela descrição do narrador:
Durante muito tempo ali ficamos, imóveis, olhando para
o seu rictus profundo e descarnado. O corpo devia ter, a
princípio, repousado na atitude de carícia, abraçado a
outro corpo, mas agora o grande sono que sobrevive ao
amor, o grande sono que vence até mesmo as carícias de
amor, dominara-o afinal. O que restava dele, em
decomposição dentro do que restava de sua camisola de
dormir, tornara-se inseparável do leito em que jazia; e
sobre ele, assim como o travesseiro vazio ao seu lado,
estendera-se aquela camada espessa de paciente e
obstinada poeira. (FAULKNER, 2004, p.418)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
111
Assim como a poeira, o fio de cabelo de Emily também está relacionado à
morte e à decadência. Aos poucos, como apresenta a narrativa, o cabelo de Miss
Grierson vai se tornando grisalho, evidenciando seu envelhecimento e a morte física.
No final da história, podemos considerar o fio de cabelo de Emily como símbolo de
um amor perdido, já que ele aparece ao lado do corpo de Homer: ―Um de nñs
encontrou qualquer coisa caída sobre esse travesseiro, e, debruçando-nos, enquanto a
leve, impalpável poeira acre e seca nos entrava pelas narinas, vimos um longo fio de
cabelo de um tom cinzento-de-aço‖ (FAULKNER, 2004, p.419). O último fio de
cabelo de Emily também representa os últimos vestígios da aristocracia sulista e o
poder de Emily de resistir às novidades, já que Homer, representante da modernidade
do Norte está morto. O fio de cabelo comparado ao aço revela, além da cor do cabelo
de Emily, o poder de resistência da excêntrica senhora, que não se submete às
convenções sociais, vivendo de acordo com suas crenças sem se importar com o quão
terríveis e chocantes elas possam ser. Miss Emily tem seus próprios códigos morais e
cria seu próprio mundo, onde tudo parece ser permitido, até mesmo tirar a vida de
alguém.
O odor da casa de Emily apresenta, ainda, relação com a morte. Após a
compra do veneno, Homer morre e seu corpo entra em estado de putrefação,
acarretando o cheiro desagradável sentido pelos vizinhos. Ao reclamarem, são
desencorajados pelos governantes de procurar por Miss Emily, já que tal atitude
representaria uma falta de respeito com tão nobre cidadã de Jefferson. Jamais se
ousaria interromper sua reclusão. Para solucionar o problema, alguns homens
invadem sua casa durante a noite e espalham cal pelo jardim, atribuindo o mau cheiro
a algum pequeno animal morto. Alguns dias depois, o odor desaparece e a população
não se preocupa mais com o fato. Provavelmente o corpo já tivesse se decomposto,
suspendendo o cheiro desagradável que emanava da casa de Miss Grierson.
No conto,vida e morte se fundem, sendo um exemplo dessa união é o
grotesco casamento de Emily e Homer. Para ele a morte realmente coloca fim à vida,
mas, para Emily, a morte é garantia de uma continuidade de vida. Em ambos os
casos, todavia, a morte triunfa. Colocado em uma cama de casal de um dos quartos
do andar superior da casa de Emily, Homer a ―aguardava‖ todas as noites em um
cômodo empoeirado, paralisado no tempo, até ser descoberto pelos moradores de
Jefferson em uma mórbida cena, assim descrita pelo narrador:
A violência com que pusemos a porta abaixo pareceu
encher o quarto de uma poeira penetrante. Era como se
uma mortalha, tênue e acre, se estendesse sobre todas as
coisas daquele quarto, mobiliado e enfeitado para uma
noite de núpcias: sobre as desbotadas cortinas de pesada
seda cor-de-rosa, sobre os quebra-luzes rosados das
lâmpadas, sobre a penteadeira, sobre os delicados objetos
de cristal, sobre as peças do aparelho de toucador para
homem, com seus dorsos de prata embaciados, tão
embaciados que nem se distinguiam os monogramas
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
112
escurecidos. [...] Entre os pertences do toucador, estavam
jogados um colarinho e uma gravata, como se tivessem
acabado de tirá-los naquele momento; quando os
levantamos deixaram na superfície uma pálida meia-lua
traçada na poeira. O terno de roupa estava dobrado,
cuidadosamente, numa cadeira, sob a qual se viam os
dois sapatos mudos, e as meias largadas no chão.
(Faulkner, 2004, p.419)
O enxoval de Emily e Homer permanecia intacto, eternizado pelo tempo
que, bem ao gosto de Faulkner, é tratado de modo especial, em um presente contínuo,
dando a impressão de que passado, presente e futuro estão misturados. O passado e o
futuro se presentificam, tornando-se inseparáveis.
Podemos considerar Emily uma espécie de heroína clássica, um arquétipo
do Sul, reclusa e solteirona, em busca da felicidade impedida primeiramente pelo pai
e, depois, pela sociedade e por ela mesma ao se tornar reclusa e construir seu próprio
mundo, sua própria ética, afundando-se cada vez mais em sua mente doentia até
cometer seu deslize final, transformado em uma realidade repugnante.
O conto em estudo traz em seu título o substantivo rosa, mas no decorrer da
história não há qualquer referência à flor. Talvez a rosa represente a paz trazida pela
morte, ou seja, uma imagem da morte, já que é comum pessoas levarem flores ao
túmulo dos mortos. Talvez a rosa represente a voz do narrador que acredita que
Emily mereça uma flor, pois embora ela tenha cometido um crime hediondo e se
comporte de maneira excêntrica durante toda a narrativa, o narrador parece ser
simpático a Miss Grierson. Em nenhum momento sua voz condena as atitudes de Emily,
ele parece admirá-la e transmite esse sentimento ao leitor.
O gótico no conto de Faulkner funciona não apenas, conforme observa
Vasconcelos (2002, p.133), como
[...] uma reação a determinados traços da vida cultural e
social setecentista [...] Sua oposição à estética realista
contribui para que ele abale as certezas sobre o mundo
natural, dê voz ao medo do bárbaro, do não-civilizado e
abra espaço para a vida sociopsíquica que, se não
cuidadosamente reprimidas, podem colocar em risco o
equilíbrio dos indivíduos e da sociedade.
Em ―Uma rosa para Emily‖, William Faulkner faz uso dos principais
elementos góticos para criar paralelos entre a casa de Miss Emily e seu estado mental
e personalidade, como foi possível observar. O autor norte-americano se vale, ainda,
dos elementos góticos para mostrar o embate entre a tradição sulista decadente e as
mudanças trazidas pela modernidade a Jefferson. Emily desempenha o papel da
protagonista no embate Norte e Sul, tradição e modernidade. Nesse embate, para
Emily, o Sul e a tradição continuam vencendo, já que ela não se subjuga aos códigos
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
113
de conduta impostos pela sociedade. Com sua morte, porém, nasce a possibilidade do
novo, pois está vencido o último resquício da tradição da cidade de Jefferson. O
comportamento anti-social de Miss Emily parece ser uma reação à sociedade. A
grande ironia do conto de Faulkner reside no fato de Miss Grierson ser a relíquia de
uma família de status em Jefferson e, mesmo estando no topo do estrato social
sulista, cometer um crime hediondo. Evidentemente, Faulkner visa criticar o sistema
de classes injusto do Sul.
O autor de ―Uma rosa para Emily‖ dedicou sua obra à crença
Na indomável alma humana, capaz de compaixão,
sacrifício e resistência. Sobre as ruínas de uma sociedade
semi-feudal, Faulkner concebeu um mosaico que
descortina perspectivas vertiginosas: entrecruzamentos
genealógicos, fantasmas mórbidos e violência costumaz
conjugam-se para sondar as profundezas de uma terrível
memória coletiva. A dimensão universal de seus
romances provém de uma técnica narrativa tão
elaborada, que, por vezes, é considerada obscura. A
densidade metafórica do discurso faulkneriano não
apenas estimula a análise psicanalítica das profundezas
do inconsciente, como também exerce uma fascinação
sobre esse inquietante espelho da natureza humana‖
(Royot, 2009, p.82)
Faulkner, por meio do gótico, examina os estados subjetivos que distorcem
as fronteiras entre a realidade e a fantasia e revela a natureza do horror em um final
surpreendente e aterrador, destacando os aspectos psicológicos e sociais do homem
do sul, em princípio. Revela a psicologia humana, o lado oculto do ser humano e o
motivo que o levou a ficar à margem da sociedade. Porém atentando-se para a
natureza dos acontecimentos brutais do conto, nota-se que Faulkner aborda o
universal, a sociedade como um todo, hipócrita e repressiva, e a mente doente de
muitos que vivem por todos os cantos do mundo, cometendo crimes atrozes.
A READING OF THE SOUTHERN GOTHIC IN "A ROSE FOR EMILY"
BY WILLIAM FAULKNER
ABSTRACT: William Faulkner belongs to a literary tradition known as "Southern
Gothic," which appeared in the early twentieth century, bringing European Gothic
style features such as the morbid and grotesque. Although American writers of this
school such as Faulkner, Harper Lee, Flannery O'Connor and Tennessee Williams
have borrowed from the traditional gothic their essential characteristics, they are not
only concerned about the use, in their narratives, of the supernatural elements to
create an atmosphere of suspense or excitement. The Gothic features taken over by
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
114
these authors serve to reveal psychological and social aspects of men, as well as the
values of the southern United States. Considering what was outlined, the aim of this
work is to present a study of the Southern Gothic style in the story "A Rose for
Emily", by William Faulkner, showing more specifically how the Gothic elements
make up the clash between the tradition and the oppressive society that arises in the
southern United States and search for changes, disrupting the livelihoods of those
who wish to remain rooted in the past.
Keywords: NORTH AMERICAN LITERATURE.SOUTHERN GOTHIC.WILLIAM
FAULKNER.
REFERÊNCIAS
BOTTING, F. Gothic. New York: Routledge, 2010.
CLERY, E.J. In: Hogle, J.E. (Org). The Cambridge Companion to Gothic Fiction.
Cambridge: Cambridge University Press, 2002.p.21-39.
FAULKNER, W. Uma rosa para Emily. In: Moraes, V. (Org.) Contos norteamericanos. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004.
FREUD, S. Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
KILGOUR, M. The rise of the gothic novel. New York: Routledge, 1995
LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Ilumiuras,
2008.
ROYOT, D. A literatura americana. São Paulo: Ática, 2009.
VASCONCELOS, S.G. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São
Paulo: Boitempo, 2002.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
115
Um lugar menos discreto para o contista Arthur Azevedo
Luiz Carlos Santos SIMON1
RESUMO: O artigo tem como objetivo refletir sobre a necessidade de reivindicar
uma consideração mais generosa para a produção em conto de Arthur Azevedo
(1855-1908) no ambiente dos estudos literários brasileiros. Para isso, é feito um
levantamento sobre como as histórias literárias recentes abordam os contistas
brasileiros que escreveram entre 1889 e 1950. Arthur Azevedo, que conviveu com
Machado de Assis, publicou três livros em vida e teve o restante de sua obra
veiculada em edições póstumas: cinco livros, entre 1909 e 1974. No momento em
que aparecem algumas reedições desses volumes, o interesse na reavaliação do autor
e em seu posicionamento no cânone literário ganha evidência. Os dados do
levantamento realizado apontam por si só para resultados diversos, como, entre
outros, a avaliação heterogênea sobre os contistas nas diferentes obras
historiográficas e um reconhecimento tímido do contista Arthur Azevedo. Assim, o
artigo encaminha-se para a análise de um dos contos do autor, com a finalidade de
examinar as possibilidades de correlações entre essa produção e as narrativas
brasileiras mais recentes.
PALAVRAS-CHAVE: Conto. Arthur Azevedo. História literária. Cânone literário.
Nascido no Maranhão, em 1855, Arthur Azevedo mudou-se muito jovem
para o Rio de Janeiro, onde conviveu com Machado de Assis. Antes da mudança,
teve início, ainda na sua adolescência, uma produção intensa e extensa para o teatro,
que somente foi interrompida com sua morte, em 1908. Paralelamente escreveu
também, desde cedo, contos que foram reunidos em livros a partir de 1889: o
primeiro foi Contos possíveis, e depois surgiram Contos fora de moda (1894) e
Contos efêmeros (1897). A maior parte dos contos do autor, contudo, só ganhou
edições em cinco volumes póstumos, entre 1909 e 1974: Contos em verso, Contos
cariocas (1928), Vida alheia (1929), Histórias brejeiras (1962) e Contos ligeiros.
Uma das produções mais famosas do autor para o gênero é ―Plebiscito‖, publicado
inicialmente em Contos fora de moda e depois reproduzido em diversas antologias. O
título do conto chega a compor o título de uma das coletâneas com textos do autor
organizada por Flávio Moreira da Costa e lançada em 1993. Além dessa publicação,
podem ser destacadas mais três iniciativas editoriais interessantes já no século XXI: o
volume dedicado a Arthur Azevedo para a Coleção Melhores Contos, da Editora
Global, com seleção e introdução realizadas por Antonio Martins de Araújo, em
2001; o volume Contos de Arthur Azevedo: os ―efêmeros‖ e inéditos, de 2009, com
1
UEL – Universidade Estadual de Londrina. Departamento de Letras Vernáculas e
Clássicas. Londrina – Paraná – CEP: 86063-390 – E-mail: [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
116
organização, introdução e notas de Mauro Rosso, que acrescentou aos textos
publicados em 1897 sete contos até então inéditos em livros; e a reedição, em 2011,
de Contos cariocas, promovida por parceria entre a EDUSP e a Com-Arte, editoralaboratório da Escola de Comunicações e Artes, da USP.
O conjunto dessas publicações tem o mérito inegável de disponibilizar aos
leitores a produção do contista, que se liberta da circulação restrita a bibliotecas e
sebos, e pode ainda significar um investimento no potencial comercial e na
reavaliação crítica daqueles textos. O início da introdução escrita por Mauro Rosso é
caracterizado por esse otimismo: ―Não seria – a rigor, não é – faltar à mais lídima
verdade e à própria realidade dos fatos, ou melhor, dos textos, afirmar-se ser Arthur
Azevedo um importante contista, dos melhores e mais profícuos da literatura
brasileira de todos os tempos.‖ (ROSSO, p. 13). A afirmação do pesquisador é
sintomática. Ele diz que não seria faltar à verdade o sustentar a defesa da relevância
dos contos de Arthur Azevedo no panorama literário brasileiro, hesitando entre os
tempos verbais (―não seria‖, ―não é‖), o que já demonstra o caráter de ousadia da
reivindicação. Além disso, há uma gradação em que o autor é apresentado,
inicialmente, com uma avaliação contida, sñbria, pouco questionável, como ―um
importante contista‖, para, em seguida, ser alçado, de forma mais entusiasmada, à
condição de figurar entre os ―melhores e mais profícuos da literatura brasileira de
todos os tempos‖. O pesquisador sabe que a segunda parte da afirmação já está mais
sujeita a questionamentos. Tanto que trata de recorrer a depoimentos de historiadores
e críticos que se debruçam sobre o conto, Edgar Cavalheiro e Herman Lima, além de
somar a seus argumentos os elogios feitos por Humberto de Campos em prefácio à
edição de Contos cariocas. No breve espaço de que dispõe para sua introdução,
Rosso ainda admite as críticas menos condescendentes dirigidas ao contista.
Enfim, o pleno reconhecimento de Arthur Azevedo como autor de contos
parece ser etapa ainda a ser conquistada. O convívio do autor com um contista tão
incensado como Machado de Assis, sua projeção enquanto autor de comédias teatrais
e o fato de desfrutar de reedições apenas muito recentemente apontam para uma
instabilidade na definição do lugar de Arthur Azevedo no cenário do conto brasileiro.
Essa suposição ganhou corpo quando me deparei com a necessidade de selecionar
nomes de contistas desde o século XIX até os dias atuais para disciplinas de
graduação e de pós-graduação que tinham como foco o conto brasileiro. Onde seria
possível localizar o respaldo para essa seleção? Provavelmente o primeiro impulso
seria fazer um levantamento em textos específicos sobre contos. Apesar de haver
uma espécie de queixa acadêmica comum quanto à escassez de bibliografia sobre o
gênero, é possível localizar um conjunto razoável de títulos específicos sobre o conto
brasileiro: Brasil (1973), Campos (1977), Cavalheiro (1954), Hohlfeldt (1988), Lima
(s.d.), Linhares (1973) e Magalhães Júnior (1972). Um breve confronto entre esses
títulos já é suficiente para revelar a heterogeneidade dessas publicações. A inclusão
do livro de Raymundo Magalhães Júnior nessa relação pode ser questionada como
uma medida inadequada, pois o autor destina em todos os seus capítulos atenção
especial a contistas de outras nacionalidades. Na antepenúltima página do livro de
Herman Lima, por exemplo, há uma aposta em um dos ―jovens autores, como Dalton
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
117
Trevisan‖ (LIMA, s.d., p. 108), que teve sua estreia em livro de contos ainda nos
anos 1940. Enquanto isso, o livro de Antonio Hohlfeldt, embora tenha alguma
preocupação histórica e reserve um capítulo aos precursores do gênero, está
concentrado no conto brasileiro produzido entre os anos 1950 e 1980. Há, portanto,
diferenças de enfoque (teórico, crítico ou historiográfico) e de recorte cronológico
que dificultam ou inviabilizam o uso desse material como fontes seguras para o
contraste da valorização e do reconhecimento atribuídos a esse e àquele contista.
Situação semelhante pode ser verificada se a ideia for recorrer a artigos, como os de
Fábio Lucas (1983) e Luiz Costa Lima (1983) ou o prefácio de Alfredo Bosi (s.d.)
para a antologia por ele organizada. Nesses trabalhos, acentua-se a questão do recorte
cronológico – são textos escritos nas décadas de 1970 e 1980, voltados para o conto
daquele momento – imposta pela extensão dos textos.
Assim, a opção mais interessante e segura foi a do cotejo de histórias da
literatura brasileira que necessariamente incluiriam a apresentação de informações e
análises do período que interessa aqui. Foram selecionadas cinco obras: A literatura
no Brasil (1986), dirigida por Afrânio Coutinho e co-dirigida por Eduardo Coutinho;
História concisa da literatura brasileira (1994), de Alfredo Bosi; História da
literatura brasileira (2004), de Luciana Stegagno-Picchio; A literatura brasileira
(2004), de José Aderaldo Castello; e História da literatura brasileira (2011), de
Carlos Nejar. Todas as obras, ainda que possam ter tido suas publicações originais
em anos anteriores (a primeira edição da obra de Stegagno-Picchio, por exemplo, é
de 1972), passaram por revisões, atualizações e reedições a partir dos anos 1980,
constituindo material acessível, disponível e frequentemente consultado pelo público
da área de Letras. Isso explica em parte a exclusão de obras como as de Assis Brasil,
Alceu Amoroso Lima, Oliveiros Litrento, Massaud Moisés e Nelson Werneck Sodré.
Enquanto as três primeiras permanecem inalteradas desde os anos 1970, a versão
atualizada da História da Literatura Brasileira de Nelson Werneck Sodré (1986) dá
destaque pequeno a um autor como João Guimarães Rosa, que surgiu no cenário
literário brasileiro ainda em 1946, com Sagarana.
A ideia da análise das histórias da literatura brasileira selecionadas partia do
propósito de verificar como se manifestava naquelas obras a apreciação de contistas
brasileiros que produziram no gênero ao longo do período de 1889 até a década de
1940. A escolha do ano de 1889 decorre do fato de ser este o ano de lançamento do
primeiro livro de contos de Arthur Azevedo. A opção de prosseguir o levantamento
apenas até os anos 1940 – o autor, embora tenha falecido em 1908, tem obras
póstumas publicadas, e seus dois últimos livros chegam ao público em 1962 e 1974 –
decorre da possibilidade de se dividir a produção de contos brasileiros em dois
grandes períodos com duração quase idêntica: cerca de 60 anos entre 1889 e o fim da
década de 1940 e outros 60 anos aproximadamente entre a segunda metade do século
XX e os dias atuais, sem ignorar obviamente que existiu uma circulação de contos no
Brasil anterior aos dois períodos, desde Álvares de Azevedo com Noite na taverna
até o lançamento de Contos possíveis. O recorte permite, portanto, uma avaliação do
período em que a maior parte da produção do contista Arthur Azevedo foi lançada:
seis dos oito livros de contos do autor apareceram entre 1889 e 1929. Assim, foram
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
118
selecionados autores brasileiros que tiveram livros de contos publicados no período
focalizado para o confronto de suas citações pelas referidas histórias da literatura. O
ponto de partida para essa seleção foram os contistas que aparecem no volume Conto
brasileiro contemporâneo, de Antonio Hohlfeldt, como autores de livros de contos
publicados nos três quadros organizados, que incluem informação sobre o ano de
publicação. Trata-se de listas extensas preparadas com muito cuidado e produto de
ampla pesquisa (cerca de cinquenta páginas!), da qual, porém, inevitavelmente
escaparam poucos nomes de contistas com publicação de livros no período. Esses
autores – Júlia Lopes de Almeida, Pedro Rabelo, Lúcia Benedetti, Medeiros e
Albuquerque e Aurélio Pinheiro –, localizados ainda no início do levantamento
através da leitura das histórias literárias, foram incorporados aos contistas que
constavam dos quadros constituídos no livro de Hohlfeldt para compor a tabela com
a lista definitiva dos 55 nomes pesquisados. Foram mantidos na relação final apenas
aqueles autores citados como contistas em, no mínimo, duas das histórias literárias
pesquisadas.
CONTISTAS
Simões Lopes
Neto
Machado de Assis
João Guimarães
Rosa
Monteiro Lobato
Alcântara
Machado
Hugo de Carvalho
Ramos
Mario de Andrade
Lygia Fagundes
Telles
Afonso Arinos
Dalton Trevisan
Inglês de Sousa
Valdomiro
Silveira
Marques Rebelo
Aníbal Machado
Murilo Rubião
Coelho Neto
Alcides Maya
Bernardo Élis
Lima Barreto
Autran Dourado
JAC
AC
LSP
CN
AB
TOTAL
6
6
6
6
6
30
6
5
6
6
6
6
6
6
5
6
29
29
6
6
6
6
5
5
5
5
6
6
28
28
6
6
5
5
5
27
6
6
6
5
5
5
5
6
5
5
27
27
5
4
6
6
6
6
5
5
6
5
5
5
3
6
5
3
6
5
4
6
26
26
25
25
4
6
6
4
2
4
4
5
5
5
4
6
6
6
5
5
5
5
5
5
5
4
4
5
6
5
6
5
6
6
6
5
5
4
4
4
5
4
4
3
25
25
25
24
24
24
23
23
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
119
Raul Pompéia
Ribeiro Couto
Arthur Azevedo
Telmo Vergara
Medeiros e
Albuquerque
Humberto de
Campos
Adelino
Magalhães
João Alphonsus
Graciliano Ramos
João do Rio
Aluizio de
Azevedo
Xavier Marques
Rodrigo M. F.
Andrade
Fran Martins
Afonso Schmidt
Érico Verissimo
Moreira Campos
Breno Acioli
Herman Lima
Viriato Correia
Gonzaga Duque
Orígenes Lessa
Gastão Cruls
Peregrino Júnior
Domício da Gama
Lúcia Benedetti
Pedro Rabelo
Alberto Rangel
Lúcio de
Mendonça
Mário Sete
Ranulfo Prata
Luís Jardim
Gustavo Barroso
Aurélio Pinheiro
Júlia Lopes de
Almeida
4
4
3
4
4
5
6
5
5
5
5
5
4
5
5
4
5
5
5
2
4
2
4
2
4
22
22
21
21
20
4
5
4
5
2
20
5
6
5
2
2
20
4
5
2
4
5
5
5
5
5
4
5
4
1
2
5
2
5
4
2
4
20
20
19
19
4
2
5
5
4
5
2
6
4
1
19
19
4
2
4
4
2
5
1
2
4
4
2
2
2
1
1
2
5
5
2
5
5
4
5
6
5
5
5
5
5
5
5
5
5
5
4
5
5
5
5
5
1
4
4
5
1
5
4
4
1
4
4
1
1
1
1
1
5
1
2
1
1
1
1
1
4
2
4
3
5
2
4
2
1
1
2
1
5
1
2
1
19
18
18
18
18
17
16
16
16
15
15
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Os autores das histórias literárias estão representados no alto da tabela
apenas por suas iniciais. A classificação, de 1 a 6, das referências aos contistas
obedece aos seguintes critérios: (1) o autor não foi sequer citado; (2) o autor foi
apenas citado, mas não especificamente como contista; (3) o autor foi citado como
contista, mas não houve alusão a título de livro de contos; (4) houve citação do autor
como contista e de título de livro de contos, sem comentários, porém, acerca dos
contos; (5) houve citação do autor como contista e de título de livro de contos, com
comentários sobre os contos, de até 1 página; (6) houve citação do autor como
contista e de título de livro de contos, com comentários sobre os contos, que excedem
1 página. A coluna ―Total‖ refere-se à soma simples das classificações atribuídas em
cada história literária.
O detalhamento da classificação, com pontuação que varia de 1 a 6, tinha
como objetivo reconhecer de modo diversificado as referências aos autores, com o
sentido de atribuir valores diferenciados a citações que efetivamente não se
equivalem. Antes de comentar o posicionamento de Arthur Azevedo, dedico-me a
observações gerais sobre o método de classificação. A tarefa de localizar as
referências aos autores foi, de modo geral, muito facilitada pelos índices onomásticos
presentes em todas as histórias literárias utilizadas. Entretanto, não é possível
restringir a pesquisa a esse tipo de informação. Um exemplo: o nome do escritor
Afonso Arinos não aparece no índice onomástico do livro de Carlos Nejar; porém, ao
pesquisar as alusões a Bernardo Élis, lá estão os comentários sobre os contos de
Afonso Arinos (NEJAR, 2011, p. 713). Outro aspecto significativo diz respeito à
variação em torno de como classificar determinados livros: Fantoches, de Érico
Verissimo, na maioria das histórias literárias, é apontado como livro de contos,
exceto em A literatura no Brasil (COUTINHO, 1986, p. 436); o mesmo ocorre com
Insônia, de Graciliano Ramos, incluído entre os romances do autor, no livro de Nejar
(NEJAR, 2011, p. 508); a produção de Raul Pompéia também requer cuidado, pois a
classificação de Microscópicos exige que se investiguem muitas vezes as notas de
rodapé.
Quanto aos resultados, cabe destacar uma possível surpresa com o
―desempenho‖ supostamente abaixo do esperado de determinados autores. São
grandes nomes da literatura brasileira que podem não ter correspondido às
expectativas de leitores e estudiosos: Machado de Assis, Aluizio de Azevedo, Lima
Barreto, Mario de Andrade, Érico Verissimo, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
As explicações são semelhantes, com apenas algumas sutis diferenças. Machado de
Assis e Mario de Andrade produziram em diversos gêneros: romances, contos,
poemas e crônicas levam os historiadores a dividir a atenção entre essa produção, que
ainda inclui a atuação do Machado dramaturgo. José Aderaldo Castello, por exemplo,
detém-se muito nas crônicas machadianas, enquanto Alfredo Bosi reserva espaço
substancial ao poeta Machado. Além disso, os romances de ambos concentram o
maior interesse dos historiadores. Essa sobreposição do romance em relação às
demais produções de cada autor ocorre também nos outros casos. Aluizio de
Azevedo, Graciliano Ramos e Érico Verissimo escreveram e publicaram poucos
contos e ao mesmo tempo se notabilizaram como romancistas muito expressivos em
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seus tempos, o que justifica as tímidas referências às incursões dos autores pela
narrativa curta, embora livros como Insônia talvez merecessem maior
acompanhamento. A situação de Lima Barreto é próxima: Alfredo Bosi e Luciana
Stegagno-Picchio tecem muitas considerações sobre seus romances e até sobre as
obras de caráter autobiográfico, mas praticamente se calam diante dos contos, ao
contrário de Carlos Nejar, que reconhece seu impacto e relevância. Quanto a
Guimarães Rosa, poderia ser desnecessária uma explicação. Afinal, assim como
Machado de Assis, seu índice de aparições como contista é muito bom, com apenas
um ponto abaixo do máximo. É possível, contudo, que as expectativas dos leitores
fossem exatamente de que o autor atingisse o máximo. Mas aí surge o monumental
romance que é Grande sertão: veredas a ocupar páginas e páginas das histórias
literárias e deixar espaço menor para o comentário de contos, como os de Sagarana.
No livro de José Aderaldo Castello, esse espaço acaba ficando muito pequeno.
Se alguns autores surpreendem pela classificação discreta, outros podem ter
causado efeito contrário. Alguém poderia imaginar que no topo da relação estaria,
isoladamente, Simões Lopes Neto? Será que muitos arriscariam incluir Hugo de
Carvalho Ramos e Afonso Arinos entre os dez contistas mais citados do período? E
as presenças de Inglês de Sousa e Alcides Maya entre os vinte praticantes de contos
mais referidos não são motivo de surpresa? A resposta para essas perguntas parece
ter vínculo com uma particularidade do momento focalizado: trata-se de período – o
final do século XIX e a primeira metade do século XX, com ênfase para as primeiras
décadas deste – em que o regionalismo esteve em alta, atraindo grande número de
escritores que aderiam a essa vertente principalmente através do conto. Pode-se até
pensar que o conto, na condição de gênero relativamente novo, sem tanta tradição na
literatura brasileira naquele momento, fosse a via mais apropriada para o exercício de
narrativas rurais ou folclóricas, com o apelo ainda da oralidade. Embora se possa
argumentar que durante o Romantismo já havia experiências no conto como Noite na
taverna, de Álvares de Azevedo, há que se reconhecer a desenvoltura que o romance
adquiriu, na época, com José de Alencar. O conto, assim, afigurava-se como gênero
mais livre, disponível, para a prática regionalista. Aos autores de histórias da
literatura brasileira cabe registrar essa prática, e, nesse sentido, abordar certos
contistas e ignorar outros não é a opção mais adequada. A gradação existe e está
representada pelo destaque conferido a Simões Lopes Neto. Cabe ainda avaliar em
que medida essa vocação ou tendência regionalista, mais expressiva nesse período do
que a partir da segunda metade do século XX, pode ter favorecido alguns dos
contistas, provocando uma possível superestimação de certos nomes e obras.
Ainda no âmbito geral do levantamento, desperta curiosidade a desigualdade
nas referências aos contistas. Simões Lopes Neto é o único autor que tem a mesma
faixa de citações nas cinco histórias literárias. Apenas quatro outros contistas –
Machado de Assis, Guimarães Rosa, Érico Verissimo e Autran Dourado – recebem
as mesmas classificações em quatro das obras pesquisadas. Além disso, o que se vê,
na maioria das vezes, são referências muito heterogêneas. Exemplos: Alcides Maya
não é sequer citado como contista por José Aderaldo Castello, mas tem a
classificação máxima nas obras de Afrânio Coutinho e Carlos Nejar; Ribeiro Couto e
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Adelino Magalhães têm situações semelhantes, pois não são citados como contistas
por Alfredo Bosi (o contista Magalhães, aliás, também é ignorado por Carlos Nejar),
mas recebem grande atenção n‘A literatura no Brasil. Casos ainda mais díspares são
os de Rodrigo M. F. Andrade e de Gonzaga Duque. O primeiro não é sequer citado
por Bosi, enquanto Nejar dedica mais de uma página aos seus contos. O mesmo
Nejar deixa de incluir o nome de Gonzaga Duque em sua história literária, ao passo
que os contos do autor são comentados em mais de uma página na obra de Afrânio
Coutinho. Essas variações observadas nas referências (e também na ausência de
referências) a autores como Alcides Maya, Adelino Magalhães, Gonzaga Duque,
Ribeiro Couto e Rodrigo M. F. Andrade são demonstrações inequívocas da falta de
uniformidade nas avaliações da relevância dos contistas presentes nas histórias
literárias, e também se explicita a natureza diferenciada das obras pesquisadas: é
natural que um trabalho amplo como A literatura no Brasil, dividido em seis
volumes, tenha maior capacidade de se deter sobre a produção de certos contistas do
que um volume mais reduzido, como a História concisa da literatura brasileira, de
Alfredo Bosi. Isso indica que o pesquisador deve levar esses aspectos em
consideração e, ao mesmo tempo, que a exposição e a consulta do estudante ou do
profissional de Letras a apenas uma dessas obras podem levar a distorções, a
aproximações e afastamentos deste ou daquele autor, motivados por decisões que
carecem de maior equilíbrio.
Tomando como base essas últimas ressalvas, podemos chegar, enfim, à
avaliação do lugar de Arthur Azevedo no panorama do conto brasileiro do período
focalizado, entre 1889 e 1950. Em apenas duas das histórias literárias pesquisadas – a
de Afrânio Coutinho e a de Carlos Nejar –, o contista tem sua produção comentada,
sem que cada um dos comentários exceda uma página. Uma análise rápida da coluna
que apresenta os resultados da pesquisa sobre A literatura no Brasil revela que
somente cinco contistas incluídos na relação tiveram classificação entre 1 e 4, isto é,
seus contos não foram minimamente comentados: Aurélio Pinheiro, Ranulfo Prata,
Herman Lima, Érico Verissimo e Murilo Rubião. Além disso, outros contistas – com
sua produção comentada na obra de Afrânio Coutinho – não foram sequer incluídos
na lista final porque não se registrou citação de seus nomes como autores adeptos do
gênero nas demais histórias literárias. Isso significa que o contista obter a
classificação 5 em A literatura no Brasil não é algo surpreendente, um diferencial,
uma grande vantagem na comparação com outros autores, pois mais de sessenta
contistas estão nessa situação. No total, Arthur Azevedo ocupa a 23ª posição, ao lado
de Telmo Vergara, com 21 pontos. Trata-se de uma posição intermediária: 9 pontos
atrás do autor mais citado e 10 pontos à frente dos últimos incluídos. Se
considerarmos apenas os registros de contistas com classificações 5 ou 6 nas histórias
literárias pesquisadas, a situação de Arthur Azevedo piora, pois há 25 autores que
têm seus contos comentados em três ou mais obras. É preciso ainda reiterar e frisar
que o período focalizado para esse levantamento está circunscrito a um recorte – de
1889 a 1950 –, o que força a reconhecer e lembrar outros contistas fora desse
período: Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães e Visconde de Taunay, como
autores que praticaram o conto antes de Arthur Azevedo, além de outros que podem
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ser eventualmente resgatados; e um número muito amplo de contistas que surgiram a
partir da segunda metade do século XX, pois apenas entre os anos 1950 e 1970,
surgem Clarice Lispector, Otto Lara Resende, Ricardo Ramos, Samuel Rawet,
Osman Lins, José J. Veiga, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, Luiz Vilela, Sérgio
Sant‘Anna, Moacyr Scliar, Roberto Drummond, Nélida Piðon, Ignácio de Loyola
Brandão, João Antônio e Caio Fernando Abreu, nomes que dificilmente seriam
esquecidos numa seleção que contemplasse contistas do século XX inteiro. Se a
posição de Arthur Azevedo, afinal, está longe de ser confortável, observemos os
comentários feitos sobre sua obra nas histórias literárias.
Em A literatura brasileira, de José Aderaldo Castello, estão as referências
mais lacônicas a Arthur Azevedo. O autor tem seu nome citado quatro vezes apenas:
uma vez como poeta e três vezes como colaborador de revistas – a Revista Brazileira,
de 1895, e Kosmos, de 1904. Numa das citações sobre essa colaboração para a
Revista Brazileira, aparece a brevíssima informação: ―Arthur Azevedo,
comediógrafo, também poeta e contista‖. (CASTELLO, vol. 1, 2004, p. 368). Não há
disponibilização dos títulos de livros do autor. No volume II, Castello apresenta
apêndices específicos com as obras de autores modernistas, que publicaram a partir
dos anos 30, e depois um roteiro bibliográfico seletivo com livros de autores de
diversos momentos da literatura brasileira, mas Arthur Azevedo não é incluído nessa
seleção. Assim, de acordo com a história da literatura de Castello, o autor não figura
sequer entre os trinta contistas mais significativos, e sobre ele há ali menos
informações do que sobre outros autores de modo geral pouco conhecidos, como
Telmo Vergara, Xavier Marques, Fran Martins, Gastão Cruls e Mário Sete.
Na História concisa da literatura brasileira, Bosi avança um pouco em
comparação a Castello e faz o nome de Arthur Azevedo aparecer sete vezes. Nas
duas primeiras, as referências são feitas à atuação do autor como comediógrafo e ao
fato de ter sido ele irmão de Aluizio de Azevedo. Mais adiante, na seção ―Outros
parnasianos‖, é dedicado espaço superior a uma página ao poeta Arthur Azevedo. Por
fim, ao voltar a falar de teatro, Bosi inclui no rodapé as informações de que o autor
escreveu contos, fornecendo uma relação incompleta dos títulos de seus livros no
gênero. São citados apenas Contos fora de moda, Contos efêmeros e Contos
possíveis, ficando de fora as cinco edições póstumas. Ainda é incluída referência ao
livro de Josué Montello, Artur Azevedo e a arte do conto, mas inexistem comentários
sobre quaisquer características dos contos do autor. Tais referências indicam que, na
história literária de Bosi, o conto de Arthur Azevedo está no mesmo plano do de
Medeiros e Albuquerque, e mais uma vez, Xavier Marques e Fran Martins, além de
gozar de menor atenção do que a produção de Breno Acioli e Lúcia Benedetti.
Luciana Stegagno-Picchio, em sua História da literatura brasileira,
dispensa a Arthur Azevedo atenção muito semelhante à destinada por Bosi. Uma das
diferenças é que na obra da pesquisadora italiana, Azevedo aparece em dois
capítulos: o nono, ―A poesia do parnaso ao crepúsculo: Realistas e Parnasianos‖, e o
décimo-segundo, ―A prosa do Parnaso ao crepúsculo: engajamento social e
hedonismo‖. Assim, há uma comparação entre as atuações de Azevedo, ―cujo nome
iria brilhar mais com a luz do comediñgrafo do que com a de poeta‖. (STEGAGNO-
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PICCHIO, 2004, p. 318). Desta comparação resultam considerações mais extensas
sobre a produção do autor para o teatro: uma página específica para suas peças. As
referências ao conto são localizadas mesmo apenas na bibliografia, que acompanha
cada capítulo da obra e não inclui comentários específicos sobre os contos. Ali
aparece, assim como na obra de Bosi, uma relação incompleta dos livros de contos de
Azevedo: Contos possíveis, Contos fora de moda e Contos em verso, além da citação
do livro de Josué Montello. Para efeito de comparação, as referências de StegagnoPicchio deixam o conto de Arthur Azevedo com o mesmo grau de relevância que o
de autores como Xavier Marques, Gastão Cruls, Alberto Rangel, Peregrino Júnior,
Lúcio de Mendonça, Gustavo Barroso e Aurélio Pinheiro. Outros contistas
desfrutaram, nessa história literária, de maior destaque a sua produção: Telmo
Vergara, Medeiros e Albuquerque, Fran Martins, Afonso Schmidt, Breno Acioli,
Pedro Rabelo e Ranulfo Prata.
As referências ao conto de Arthur Azevedo nas obras de Afrânio Coutinho e
Carlos Nejar são mais significativas do que as apresentadas até aqui por Bosi,
Stegagno-Picchio e Castello. Além das alusões ao autor como homem de teatro e
poeta, presentes tanto no livro de Coutinho quanto no de Nejar – e neste último cabe
informar a curiosidade de que as peças de Azevedo são muito pouco comentadas,
menos do que seus contos –, há um aumento no número de livros de contos citados:
Herman Lima, na obra de Coutinho, cita quatro dos oito volumes, enquanto Nejar
deixa de fora apenas Vida alheia e Contos ligeiros. Mais do que isso, é importante
registrar a avaliação positiva sobre as narrativas curtas de Azevedo. Inicialmente, são
transcritos os comentários de Nejar, específicos sobre o conto do autor:
Escreveu alguns contos extraordinários que povoam sua
vasta obra. Entre eles, O viúvo, Uma embaixada, Ardil
ou A praia de S. Luzia. Suas criaturas são as de todos os
dias, com mitologia urbana eminentemente carioca. Seus
diálogos correm diretos, sem artifício, advindos da
própria vida. O mistério se conjuga com o riso. Diz dele
Agripino Grieco: ―Seus contos são deliciosos, obrigando
a pensar sem remexer o cérebro‖, ocupando-se das
desmedidas: as obliquidades e contornos do ser humano.
[...] Tinha a simplicidade e o despojamento dos adornos,
saltando para fora dos lugares-comuns pela graça e pela
inteligência, levitando o texto, para não dizer que o texto
que o levitava. (NEJAR, 2011, P. 201-202).
Vale destacar o uso do termo ―extraordinários‖, para qualificar os contos do
autor, a citação de alguns títulos de contos, o elogio dos diálogos, a reprodução das
afirmações de Agripino Grieco – que ampliam o respaldo em torno da avaliação
daquela produção – e, sobretudo, na última frase, a referência a uma ―simplicidade‖
que não se deixa contaminar pela adesão aos ―lugares-comuns‖, representando,
assim, o distanciamento de uma solução fácil, o que permite que o conto sobressaia
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com ―graça‖ e ―inteligência‖, ao mesmo tempo, sem alimentar qualquer
incompatibilidade entre essas duas qualidades.
A colaboração de Herman Lima, no capítulo ―Evolução do conto‖ do sexto
volume de A literatura no Brasil, também é generosa para o conto de Arthur
Azevedo. Antes de citar como exemplo o texto ―Plebiscito‖, Lima faz uma breve
apresentação que garante, contudo, certa projeção ao contista:
Digna de nota especial é a contribuição de Artur
Azevedo ao nosso conto do começo do século, tão
importante quanto a sua produção teatral diversa e vasta.
Duma linguagem simples e correntia, numa forma
despretensiosa a que não falta, entretanto, aquela graça
imanente que faz de alguns de seus versos humorísticos
verdadeiras obras-primas, o que distingue a arte de Artur
Azevedo, nos Contos possíveis (1889), Contos fora da
moda (1894), Contos efêmeros (1897), Contos cariocas
(1928), é, de par com seu dom de narrador, a exceção
que constitui o seu estilo desataviado, num tempo de
prosa atormentada e sobrecarregada de ouropéis.
(COUTINHO, 1986, vol. 6, p. 51).
Das palavras de Herman Lima deve ser ressaltada a atribuição de relevância
ao conto de Arthur Azevedo tanto no conjunto das manifestações brasileiras no
gênero quanto no confronto com a produção do autor para o teatro. Essa
representatividade do contista convive, porém, com o afastamento de certos
procedimentos predominantes identificados pela ―prosa atormentada e
sobrecarregada de ouropéis‖, o que não impede, segundo Lima, a necessidade de lhe
garantir reconhecimento. E reconhecimento em sua individualidade.
Essas avaliações de Carlos Nejar e Herman Lima podem nos conduzir mais
uma vez para a suposição de que os contos de Arthur Azevedo têm lugar garantido,
confortável e incontestável no cenário do conto brasileiro. Nesse sentido, cabe
retomar a parcimônia com que essa produção é apresentada nas demais histórias
literárias pesquisadas. No entanto, para não repetir dados já fornecidos e discutidos, o
acréscimo de outras contribuições críticas pode auxiliar na composição de um quadro
mais amplo no que se refere à recepção do autor. A certa altura de seu prestigiado
livro Prosa de ficção (de 1870 a 1920) – que deveria integrar a história da literatura
dirigida por Álvaro Lins, que, por sua vez, se tornou um projeto inacabado –, Lúcia
Miguel Pereira faz as seguintes ponderações: ―Se não existisse Machado de Assis,
poderíamos dizer que no conto, com Domício da Gama e Artur Azevedo, estava o
melhor da nossa produção...‖ (PEREIRA, 1988, p. 234). Trata-se de afirmação
contundente que merece detalhamento de seu contexto: o texto da autora foi escrito
na década de 1950; o trecho transcrito se detém sobre o panorama literário do final
do século XIX e dos primeiros anos do século XX. Assim, o que poderia ser
interpretado como uma exaltação robusta do conto de Arthur Azevedo deve ser
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entendido com sobriedade a partir da constatação de que o período em questão é
muito restrito. Algumas páginas adiante, o diagnóstico da autora ganha em nitidez:
No oferecimento de seus Contos fora de moda asseverou
Artur Azevedo que ―foram escritos sem preocupação de
psicologia nem ginástica de estilo‖ e, no prefácio à
segunda edição do mesmo livro, diz que o seu intento foi
fazer ―uma simples obra recreativa‖. Nestas palavras se
contêm a orientação literária do contista, as suas virtudes
e as suas fraquezas. [...] Artur Azevedo ficou nas
aparências, restringiu a sua zona de observação, fez obra
que, uma vez lida, não deixa nada além da lembrança de
alguns momentos distraídos. (PEREIRA, 1988, p. 261262)
A referência a Machado de Assis antecipa a verificação de traços do conto
de Arthur Azevedo que, segundo a autora, diminuem seu impacto, sua força como
texto capaz de transcender, de conquistar permanência. Em vez disso, ―aparências‖ e
―momentos distraídos‖, palavras que podem ser traduzidas também como
―superficialidade‖ e mero ―entretenimento‖, ideias que passariam longe do juízo a ser
emitido sobre os contos de Machado.
Uma avaliação próxima desse teor demonstrado na obra de Lúcia Miguel
Pereira aparece no livro de Antonio Hohlfeldt, Conto brasileiro contemporâneo,
escrito já na década de 1980. Apesar de focalizar com mais ênfase o conto brasileiro
da segunda metade do século XX, o pesquisador se debruça também sobre contistas
de outras épocas no segundo capítulo, intitulado ―Os precursores‖. Ali é reservado
um parágrafo para a produção de Arthur Azevedo:
se havia facilidade e espontaneidade em seu texto, jamais
foi ele além da superficialidade, limitando-se a anedotas
estruturadas linearmente, em torno de episódios
domésticos, envolvendo a vida de funcionários públicos
medianos, pequenos negociantes, empregados do
comércio, etc. Sempre soube escrever com graça, mas
não se negou a duplos sentidos, por vezes até de gosto
duvidoso, desde que servissem para os fins que tinha em
mente, isto é, distrair o leitor e diverti-lo. Não era o
escritor sutil ou fino que encontraremos em Machado de
Assis. De forma despretensiosa, buscava apoio no
enredo, jamais nas palavras com que o narrava.
(HOHLFELDT, 1988, p. 35).
Se o pesquisador faz referência à ―espontaneidade‖ e à ―graça‖, em seguida
abre-se espaço para explicitar a ideia de ―superficialidade‖, para identificar o conto
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de Arthur Azevedo com anedotas limitadas, com estruturas lineares e ―gosto
duvidoso‖. A distração e a diversão do leitor reaparecem, muito possivelmente como
marcas depreciadas, assim como a comparação desfavorável com Machado,
denotando a preferência por um determinado modelo de texto ou mesmo a convicção
de que esse modelo é o único, o mais valorizado; os demais não servem. A falta de
sutileza e a pobreza na linguagem reforçam a avaliação que, convenhamos, não está
ali para persuadir o leitor contemporâneo a procurar os contos de Arthur Azevedo.
Despontam como traços comuns nessas exposições críticas de Lúcia Miguel
Pereira e Antonio Hohlfeldt sobre o conto de Arthur Azevedo a comparação com
Machado de Assis, a superficialidade e o caráter de entretenimento. No que diz
respeito ao confronto dos dois contistas, acredito que a atitude de estabelecer uma
perspectiva comparativa entre ambos, se for presidida pelo anseio de verificar ―quem
é o melhor‖, ou se Arthur Azevedo ―é tão bom quanto Machado‖ ou ainda pela
tentativa de reconhecer em Arthur Azevedo determinadas marcas machadianas,
constituirá um procedimento anacrônico e estará fadada ao insucesso. Nesse sentido,
basta retomar a avaliação de Herman Lima que vê no estilo de Azevedo um
distanciamento em relação a práticas dominantes em sua época. Além disso,
Machado já atingiu um estágio no cânone literário brasileiro que não nos cabe definir
como meta central quem se aproxima dele ou o quanto algum autor com ele se
assemelha. Nos tempos atuais, identificados com a relativização de questões como
juízo de valor estético, é preciso que um contista como Arthur Azevedo seja avaliado
por sua própria produção, por seu estilo que deve mesmo ser reconhecido como
particular, como diferente, e não pelo parâmetro de outro autor que se propôs a algo
bem diverso. Com uma apreciação dessa espécie, é possível que aspectos como a
vocação para a superficialidade e para o mero entretenimento sejam revistos,
deixando de ser interpretados dessa maneira e proporcionando novas formas de
conexão com contos de outros autores e de outras épocas. Vejamos como um conto
de Arthur Azevedo, ―O telefone‖, pode ser relido e em que medida essa releitura
pode justificar a retomada do autor e promover sentido em sua articulação com o
conjunto das narrativas curtas brasileiras que se seguiram.
O início do conto ―O telefone‖ apresenta o funcionário público Chagas
trocando olhares com Clorinda, uma bonita mulher casada e acompanhada do
marido, no teatro, durante um espetáculo. O marido Barroso não percebe o namoro
nem no interior do teatro nem na saída nem ainda no trajeto para a residência do
casal. Chagas e Clorinda tornam-se amantes, apesar dos sacrifícios e das despesas
que aquele envolvimento secreto exigia de um modesto funcionário com salário
acanhado. Imerso em dívidas, o amanuense passa a ficar nervoso e a ter problemas
no trabalho até que recebe da amante um dia a notícia de que havia sido instalado um
telefone na residência do casal. Alguns dias após essa novidade, na repartição, um
contínuo avisa Chagas que o ministro o aguardava em seu gabinete. O nervosismo
transforma-se em desespero pelo desconhecimento sobre a natureza daquela
convocação. Mesmo depois de saber que o chamado decorria de um telefonema de
Clorinda, o tormento não desaparece. Afinal, o aparelho de telefone ao qual teria de
falar, inovação ainda rara naquele final de século XIX, estava instalado na mesa do
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ministro, que permanece em seu lugar durante a conversa do casal. Os dois amantes
mantêm um diálogo telefônico pouco afinado: enquanto Clorinda fica à espera de
uma declaração de amor, tal qual provavelmente ouvia do amante na alcova, o
funcionário tem o constrangimento de ser cobrado pela mulher e, ao mesmo tempo,
ter de medir suas palavras que seriam naturalmente ouvidas pelo ministro ao seu
lado, em pleno ambiente de trabalho. Até que a impaciência do ministro com aquelas
falas lacônicas fala mais alto. Apenas uma vez, ele cobra de Chagas o fim da
conversa; é o que basta para o amante largar o aparelho telefônico e abandonar o
gabinete, sem dar maiores esclarecimentos a Clorinda, mas pedindo desculpas ao
superior. Este, antes ainda de desligar o aparelho, tem tempo de ouvir as queixas da
mulher: ―– Que modos são esses? Nunca me trataste assim! Já não me amas! E eu
que por tua causa enganei meu pobre marido! Está tudo acabado entre nñs!...‖
(AZEVEDO, 2011, p. 85) A resposta do interventor é breve e decisiva: ―– Tenha
juízo, senhora!‖ (AZEVEDO, 2011, p. 85). E o aparelho é desligado, assim como os
amantes.
Trata-se de conto muito breve: seis páginas e meia nessa reedição, que
apresenta uma fonte grande e várias notas de rodapé; e quatro páginas e meia na
edição da Revan. Mesmo curto, o conto é marcado por cinco subdivisões: a primeira
expõe Chagas, Clorinda e Barroso no teatro e no trajeto do teatro à residência do
casal; a segunda parte mostra a preparação do funcionário antes do início do
relacionamento e as providências tomadas para a discrição dos encontros; a terceira
já revela um amante tenso com os encontros, endividado e com problemas no
trabalho; a quarta parte reduz-se à notícia da instalação do telefone na casa de
Clorinda e à confirmação de Chagas de que também no trabalho havia aparelho
telefônico; a última e mais longa parte contém o aviso do chamado do ministro, o
deslocamento atormentado do funcionário em direção ao gabinete e a conversa
telefônica desencontrada entre os amantes. Essas subdivisões tornam o texto ágil,
eliminando os detalhes desnecessários: o narrador abdica, por exemplo, da
focalização do casal de amantes no quarto de hotel onde se encontravam às
escondidas. Os cortes constituem, assim, uma narrativa veloz marcada pela troca
sucessiva de ambientes, antecipando certos pontos de contato entre a literatura e as
técnicas cinematográficas que se tornariam mais íntimos e constantes ao longo do
século XX. Ao mesmo tempo, essa composição do conto em pequenos fragmentos
sem que o resultado final seja um texto extenso é muito identificada também com a
natureza breve do gênero.
Outro aspecto que ganha evidência no conto é o registro de uma inovação
tecnológica como o telefone. Esse invento chega ao Brasil em 1879, três anos após
sua criação por Alexander Graham Bell. Em 1883, o Rio de Janeiro contava com
apenas 5.000 linhas telefônicas. Não se pode ter a garantia precisa de quando o conto
foi escrito, embora ele esteja incluído na coletânea Contos cariocas, publicada
postumamente em 1928. Como a narrativa se inicia com a seguinte frase – ―Isto
passou-se nos últimos tempos do Segundo Império‖ (AZEVEDO, 2011, p. 79) –,
pode-se concluir que o tempo do enunciado está inscrito nos anos 1880 e que o conto
foi escrito entre a última década do século XIX e o ano da morte do autor, 1908. De
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qualquer modo, o que deve ser considerado é a condição de grande novidade, ainda
não muito acessível, que constituía o telefone, seja na época da produção do conto,
seja, mais ainda, no tempo do enunciado, dois tempos, aliás, não tão distantes entre
si. No conto, o telefone adquire uma relevância inquestionável: além de dar título ao
texto, ocupa integralmente uma das subdivisões da narrativa e exerce um papel
decisivo para o rumo dos eventos narrados. Pode-se dizer, inclusive, que o telefone
assume a condição de protagonista do conto. Esse foco na questão tecnológica
representa o apego e o cuidado do contista com a vida no presente, com o seu próprio
tempo. O autor demonstra-se atento aos acontecimentos recentes, às novidades e suas
influências sobre o comportamento humano, e aí tem lugar de destaque a tecnologia.
Nesse sentido, sua posição é a do artista que incorpora essas movimentações a sua
obra e procura reinterpretar seus significados e os modos através dos quais os seres
humanos interagem com os fatos novos. No conto, Arthur Azevedo apresenta
Clorinda, que reconhece a instalação do telefone em sua casa como um perigo, mas a
personagem também se anima com a possibilidade de fazer contato com Chagas
durante o período de expediente dele. Este, por sua vez, ao confirmar para a amante
que há telefone na repartição, omite a informação de que o aparelho ficava no
gabinete e na mesa do ministro, o que revelaria sua condição de funcionário modesto
e subalterno, sem acesso ao uso privado e irrestrito daquele aparato tecnológico.
Assim, a resposta que Chagas dá a Clorinda tem uma grande dose de pose, de quem
quer ostentar uma familiaridade com a novidade – o que impressionaria a amante –,
imagem muito diferente do constrangimento e do nervosismo experimentados pelo
amanuense a partir do momento em que recebe o chamado do ministro e durante a
conversa telefônica. O conto nos apresenta, assim, essas máscaras que se tornam
muito evidentes nas relações estabelecidas entre humanos e a tecnologia. E se a
tecnologia pode contribuir para que essas máscaras apareçam, ela pode também ser o
canal para fazê-las cair.
A caracterização de personagens no conto também desperta certo interesse.
Barroso, o marido enganado, poderia ser apresentado como objeto da compaixão do
leitor, mas sua imagem predominante é mesmo a de um tolo: durante o espetáculo
nem desconfia da troca de olhares entre a esposa e um espectador e, depois, no trajeto
para casa, ―deixou de fazer considerações críticas sobre o dramalhão que ouvira, e
começou a cochilar, como todos os maridos confiantes.‖ (AZEVEDO, 2011, p. 80).
A esposa é caracterizada como uma mulher que, para os padrões da época, está longe
da integridade moral. É ela que, no teatro, atira os ―olhares libidinosos‖ (AZEVEDO,
2011, p. 79) para Chagas e já no caminho para casa aproveita o cochilo do marido
para se entender com o pretendente com os cotovelos, os joelhos e os pés. Depois
disso, diante da sugestão de um encontro feita pelo ―pré-amante‖, o narrador
esclarece que ―ela não opôs a esse pedido a menor resistência‖ (AZEVEDO, 2011, p.
80). Com o início do relacionamento extraconjugal, aparecem as exigências e as
futilidades: carro fechado e hotel com duas entradas para os encontros e cobrança de
juras de amor. A arrogância da mulher somente se equipara à do ministro que
motivou os seguintes comentários apñs atender o fatídico telefonema: ―– Quem foi o
sujeito que falou antes de ti? É um malcriado! Então? Não respondes?‖ (AZEVEDO,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
130
2011, p. 84). Chagas, então, é um infeliz. Se, no início do conto e dos contatos com
Clorinda, há referências a sua timidez, logo essa caracterização ganha ares irônicos:
―ditoso mancebo‖ e ―venturoso amante‖ (AZEVEDO, 2011, p. 80-81) são expressões
utilizadas pelo narrador para caracterizá-lo e que contrastam com as dívidas
contraídas, com a tensão pela participação numa experiência proibida e com a
degradação de seu desempenho no trabalho. Depois de suar por todos os poros a cada
vez que esperava a amante no carro, é durante o encontro com o ministro e o
telefonema que essa perturbação atinge seu ápice: ―Tremia que nem varas verdes.‖
(AZEVEDO, 2011, p. 83). Tais caracterizações concentram-se sobre a figura do
homem comum. Se há personagens mais ricas e poderosas como Clorinda, Barroso e
o ministro, há também um foco especial sobre Chagas e sua modéstia de funcionário
público, suas dívidas, sua dificuldade de circular por um meio que não é o seu, com
despesas incompatíveis com seu salário. No plano moral, também não há
comportamentos de exceção: Clorinda é o exemplo de que ―as mulheres mais caras
são justamente as que se dão de graça‖ (AZEVEDO, 2011, p. 81), sua entrega ao
amante revela menos paixão e intensidade de sentimentos do que empáfia e
futilidade; o marido é rico e tolo, e sua condição de enganado não chega a inspirar
comiseração; o ministro transpira mais autoritarismo do que honradez; e Chagas,
afinal, ―com seus magros cobres de amanuense‖ (AZEVEDO, 2011, p. 81), tem sua
timidez mais bem traduzida como covardia e medo.
No âmbito da vida íntima, o conto também produz provocações
significativas. A eleição do assunto do conto já constitui uma opção a ser observada,
pois não se trata de uma ocorrência isolada na obra de Arthur Azevedo: muitos
outros contos do autor são orientados pelo interesse nas relações entre homens e
mulheres, e, com frequência, essas relações não são as oficiais. O adultério ali
representado não é decorrência de uma paixão avassaladora, ainda que Chagas se
assemelhe em certos momentos a um vassalo. O narrador não se propõe a ressaltar
sentimentos que aproximavam o casal de amantes. Mais do que isso, vêm à tona os
medos de Chagas e as exigências de Clorinda. Por outro lado, as referências aos
preparativos para os encontros revelam que esses adultérios não eram práticas tão
incomuns: havia um hotel apropriado para receber os adúlteros e um carro fechado
conduzido por um cocheiro discreto para guiá-los. O narrador refere-se a esse local
dos encontros como ―onde se escondiam aqueles amores ignñbeis‖ e ―miserável
ninho das suas poucas-vergonhas‖ (AZEVEDO, 2011, p. 81). Esses registros
indicam, portanto, o conhecimento dessas formas de vida íntima e uma relativa
tolerância com essas práticas que não impede certas manifestações de cunho
moralista. Cabe lembrar, no entanto, que o que destrói a relação dos amantes não é o
arrependimento nem algum condicionamento religioso, mas as circunstâncias da
rotina.
Esses aspectos, brevemente observados no conto ―O telefone‖, de Arthur
Azevedo, são pontos que permitem uma conexão da obra do autor com manifestações
mais recentes na narrativa curta brasileira. A brevidade do conto, com suas
subdivisões e seus cortes que aceleram o texto, exibe o parentesco com os contos
modernistas de Alcântara Machado e com os textos de Nelson Rodrigues em A vida
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
131
como ela é e ainda tem pontos de contato com as narrativas fragmentadas e enxutas
de Dalton Trevisan e Moacyr Scliar. As referências à tecnologia, denotando o apego
à vida do presente e aos fatos recentes, constituem um traço em comum com a
produção de diversos cronistas, como João do Rio, Stanislaw Ponte Preta e Antônio
Maria, que tantos textos escreveram sobre o automóvel, e também a autores de uma
geração mais recente, como Luis Fernando Verissimo e Moacyr Scliar, que trazem
para sua produção o universo de telefones celulares, detectores de mentiras,
microfones escondidos e outros elementos da parafernália tecnológica. A
caracterização de personagens como pessoas comuns, desprovidas de maiores
virtudes e mergulhadas em vicissitudes, é o que sobressai também, com variações nas
doses de humor, entre cronistas como Fernando Sabino e Aldir Blanc e nos contos de
Luiz Vilela, Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio Sant‘Anna e Caio
Fernando Abreu. Enfim, a predileção da vida íntima como assunto para os textos,
com a tendência para a focalização de segredos conjugais, fidelidades e às vezes
infidelidades, é o que desponta com destaque nos contos de diversos autores, como
Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nelson Rodrigues e Luiz Vilela, e nas
crônicas de Rubem Braga, Luis Fernando Veríssimo, Xico Sá e Fabricio Carpinejar,
entre tantos autores que aderiram aos relacionamentos amorosos, desde a segunda
metade do século XX, tempos de transformações da intimidade.
Essa atualidade de Arthur Azevedo, numa época menos avessa ao humor, é
possivelmente um salvo-conduto para a reavaliação do autor. As histórias literárias
cumprem papel importante no registro da produção e da relevância dos escritores em
seus variados períodos e gêneros. Esse registro deve ser respeitado como produto de
pesquisa exaustiva e servir como base, orientação, referência, parâmetro para
seleções, leituras e releituras. Muitas vezes, é a partir delas que podemos ser
despertados para algum nome indevidamente esquecido. No entanto, nas condições
de professores e de pesquisadores, não podemos nos orientar exclusivamente pelas
indicações contidas nessas obras. Uma relação viva e ativa com elas contribui para
um melhor entendimento da formação do cânone literário e para a necessidade de
exercitar um constante processo de questioná-lo. No que se refere ao conto de Arthur
Azevedo, foi esse o esforço aqui empreendido: reivindicar um lugar menos discreto
para suas narrativas curtas, que mantêm uma identificação com o conjunto de contos
e crônicas narrativas do século XX e desse início de século XXI. Com o
levantamento apresentado, quem sabe, outras iniciativas e reivindicações poderão
surgir sob a forma de pesquisa.
A LESS DISCRETE PLACE FOR THE SHORT STORY WRITER ARTHUR
AZEVEDO
ABSTRACT: The article aims to reflect on the need to claim a more generous
consideration for the short stories written by Arthur Azevedo (1855-1908) in
Brazilian literary studies. To achieve this, it is presented a survey on how the recent
literary histories discuss Brazilian short story writers who wrote between 1889 and
1950. Arthur Azevedo, who lived in the same time of Machado de Assis, published
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three books while he was alive and the rest of his work was published in posthumous
editions: five books, between 1909 and 1974. At the moment that some reprints of
these volumes appear, the interest on a new evaluation of the author and its
positioning in the literary canon increases. Data from the survey point by itself to
varying results, such as, among others, the heterogeneous assessment on short story
writers in different literary histories and a shy recognition of Arthur Azevedo as a
short story writer. Thus, the article is heading for the analysis of one of the author's
short stories, in order to examine the possibilities of correlations between such
production and the latest Brazilian narratives.
KEYWORDS: Short story. Arthur Azevedo. Literary History. Literary Canon.
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
134
Dos desastres da sophia
Mayara Ribeiro Guimarães1
Resumo: Leitura do conto ―Os desastres de Sofia‖, de Clarice Lispector, em diálogo
interdisciplinar com a pintura, a partir da reencenação do episódio bíblico intitulado
Noli me tangere, amplamente reproduzido por artistas medievais e renascentistas, e
da literatura moralista do século XIX, de modo a efetuar a releitura da tradição
cultural do Ocidente ressignificando-a e instaurando novos sentidos e referentes.
Palavras-chave: Narrativa brasileira, interdisciplinaridade, tradição,
Abstract: Analysis of the short story named ―Sophie‘s disasters‖, by Clarice
Lispector, in interdisciplinary dialogue with the field of painting, with emphasis on
the dramatization of the biblical episode known and reproduced by artists of the
medieval and renaisssance period as Noli me tangere, and on the moralist literature
of the 19th century, in order to realize a reinterpretation of the cultural tradition of
the West, resignifying it and reintroducing new meanings and references to it.
Keywords: brazilian narrative, interdisciplinarity, tradition
A obra de Clarice Lispector tem sempre como centro e fio condutor da
linguagem o abismo de uma visão. Aos olhos do leitor, o que se vê é o duplo registro
da representação de uma realidade em crise, uma vez que o que implicaria um
esclarecimento, uma sophia, um conhecimento, transforma-se em ignorância e nãoconhecimento. A visão do abismo apresenta a identidade do revelável e do visível,
que, quanto mais se apresenta, mais se retira porque não pode ser tocada. A visão,
sob este ângulo, projeta-se a partir de uma interdição – a do olhar e a do contato como na cena bíblica retratada neste ensaio – o famoso episódio do noli me tangere.
O leitor estaca confuso entre uma presença e uma ausência, detém-se em um
entrelugar, em um espaço de deslocamento e desterritorialização, para em seguida
constatar que está diante de um encontro que impõe um recuo mas também uma
presença.
Tocar o que não tem corpo faz vigorar uma interdição que institui o
domínio de um corte, de uma violência, de uma ruptura. Este movimento é também o
do encontro com a morte, o ausente e o vazio. E no ponto em que o olhar retorna há o
reconhecimento de um desaparecer. A obra de Lispector, e sobretudo dentro de uma
1
Professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Pará, Dra. Em
Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com PósDoutorado em Literatura Comparada pela mesma instituição. Organizadora do livro
No meio-dia verde do agora. Formas do contemporâneo na literatura brasileira,
de 2012, Ed. Oficina Raquel (RJ).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
135
trajetória que marca o conto clariciano, se apresenta como a reencenação desta visão,
instauradora de descontinuidades, conduzindo a subjetividade à visão da imagem
incandescente. Ver é ver dentro e diante da morte.
Nessa perspectiva interpretativa, o tema da paixão de Cristo, já
extensamente estudado por críticos da obra de Clarice Lispector, retorna neste ensaio
pelo estudo do conto clariciano, uma vez que a própria autora concedeu-lhe caráter
privilegiado na elaboração de romances como A paixão segundo G.H.,
explicitamente, ou alusivamente em A hora da estrela e A maçã no escuro, além do
livro de contos A via-crucis do corpo. A edição crítica de A paixão segundo G.H.,
coordenada por Benedito Nunes na década de oitenta, foi conduzida com o propósito
de apontar o diálogo que a obra estabelecia com o texto bíblico. Tom semelhante
orientou o artigo de Olga de Sá, ―Parñdia e metafísica‖, da mesma edição, a partir de
uma interpretação parodística da via-crucis de G.H. como inversão da paixão de
Cristo ―do plano da transcendência para o plano da imanência‖ (SÁ, 1979, p. 220).
Vilma Arêas, por sua vez, constata que o tema era inclusive uma obsessão pessoal de
Clarice, para quem a ―paixão de Cristo‖ configurava-se como condição
irrevogavelmente humana (ARÊAS, 2005, p. 46).
No entanto, se este episódio bíblico foi um tema recorrente na obra de
Lispector, surgindo como fundo estruturador de várias obras, quero agora resgatar
outra passagem bíblica também privilegiada por Lispector com o fim único de servir
como metáfora comparativa ao modo – forma – que a escrita clariciana concebe não
só este mesmo tema, mas todos os outros que se entrecruzam em seu conjunto
literário. O episódio a que me refiro é aquele que sucede à narrativa da paixão: a
revelação de Cristo a Maria Madalena.
Conhecida também pela expressão Noli me tangere, a cena bíblica descrita
pelo Evangelho Segundo São João (João, 20:1-18) foi amplamente retratada por
pintores da escola bizantina medieval, dos Renascimentos veneziano, florentino e
alemão e do Século de Ouro europeu. Giotto, Ticiano, Bronzino, Dürer e Rembrandt
são alguns deles2. Na releitura de uma tradição, seja ela bíblica, mítica ou literária,
aspectos desta mesma tradição são ressignificados, ganhando novos sentidos e
instaurando novos referentes a uma dada realidade. Este movimento, entretanto,
quer-se duplo porque ao mesmo tempo em que se revisita um passado cultural,
efetua-se também a sua crítica. Buscarei, neste ensaio, conduzir a leitura do conto
―Os desastres de Sofia‖, publicado primeiramente em A legião estrangeira (1964), e
depois em Felicidade clandestina (1971), apresentando as alusões referentes ao Noli
me tangere de modo a apontar e refletir sobre as duas vias pelas quais a tradição é
desconstruída no conto clariciano: pela releitura da tradição de contos moralistas do
século XIX e pela alusão bíblica ao par Jesus e Maria Madalena.
2
As referências à cena da revelação de Jesus a Madalena ao longo desta apresentação
são inspiradas na fina e diligente análise feita por Jean-Luc Nancy acerca do
episódio em questão e dos artistas mencionados, na obra Noli me tangere – Essai
sur la levée du corps (Paris: Bayard, 2003).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
136
A tradição literária a que me refiro retorna à cena pela referência que
Lispector faz ao livro escrito pela Condessa de Segur, no século XIX, intitulado Les
malheurs de Sophie. Como todas as narrativas moralistas dirigidas ao público infantil
desta época, textos desta tradição não dissociavam a educação sentimental da criança
de uma aprendizagem moral rigorosa, de cunho religioso, na qual a figura associada
ao encaminhamento e formação moral da criança era geralmente representada pela
mãe ou por um educador. Através da narração dos ensinamentos, julga-se e condenase a criança que não corresponde ao papel esperado, com a intenção de promover um
modelo ideal de adulto. No conto de Clarice, entretanto, invertem-se os termos desta
escola da desaprendizagem.
A figura de ordem é um professor que já de início indica a sua condição de
não-lugar, rompendo com a estética classicizante de símbolo de autoridade e
conhecimento: ―Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara,
mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o
que sabíamos dele‖ (LISPECTOR, 1999, p. 11). Entretanto, é esta condição de
desterritorializado que introduz a transgressão necessária e suficiente para que se
estabeleça um movimento de atração e repulsa por parte da personagem criança.
Aproximação do mesmo, repulsa do diferente. A relação professor-aluno, nesse caso,
repudia a clássica articulação repasse-recepção da aprendizagem vinculada a este par
social. Estabelece-se inversamente uma relação de salvação-perdição em que ―o
projeto de salvação do professor‖ revela um movimento de ―salvar-se a si mesma‖
(ROSEMBAUM, 1999, p. 55), como afirma Rosembaum, para, ao cabo e ao fim,
converter-se em processo de transformação e auto-descoberta de ambos os
personagens. Por trás deste mecanismo, parece-me configurar-se uma verdade mais
complexa que a narrativa clariciana não cansa de atualizar a cada novo texto: o jogo
de destruição e despersonalização do sujeito absoluto e do universo organizado.
No centro desta trama, outro fio narrativo aprofunda a camada textual que
se estabelece sobre a relação adulto-criança. Nesta etapa de leitura, fica evidente o
desastre: as inversões expõem o desamparo do real. A criança rebelde tenta corrigir a
―vida errada‖ do professor, que reconhece como sendo a sua prñpria, porque ―ter
nascido era cheio de erros a corrigir‖ (LISPECTOR, 1999, p. 14). Neste jogo de
destruição e construção, a violência da transformação, que conduz ao lento
desaparecimento da criança e ao ritual iniciático no ―mundo dos adultos‖, acontece
no abismo de uma visão. Visão do incompreensível e inominável. O que antes era do
domínio de um conhecimento, de uma sophia, se converte em ignorância. Em
imagem. Neste ponto, o primeiro dos dois aspectos centrais do Noli me tangere é
convocado.
O episódio bíblico representa o momento em que Jesus aparece pela
primeira vez depois de sua morte, apresentando-se a Maria Madalena na forma de um
jardineiro, reconhecido apenas no momento em que a jovem pronuncia seu nome. Ao
tentar tocar Jesus com as mãos, o mestre recua e diz: Noli me tangere, convidando o
espectador a participar do nascimento de uma visão. O interesse esbarra no sentido
que esta cena carrega: a revelação, em abordagem laica, vem apresentar a ―identidade
do revelável e do revelar‖, do ―divino‖ lado a lado ―do humano‖ e ―mundano‖
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
137
(NANCY, 2003, pp. 9-10). Em outras palavras, vem anunciar a atualização de um
mistério: a identidade do que é visível chega lado a lado da identidade do invisível.
E, se este episódio anuncia uma atualização, quer com isso indicar que a verdade não
se finda com a revelação em si e tampouco com sua interpretação, porque é múltipla
e infinita.
Noli me tangere, que pode ser traduzido por ―Já não podes tocarme‖, ilustra o aparecimento de um desmaio e evoca uma interdição violenta de
contato, como aponta Nancy. Mas, sobretudo, o que mais importa neste episódio é a
construção de um delicado exercício de visão que se ergue na observação da cena
retratada em imagens e que percorre não apenas o conto aqui referido, mas toda a
obra de Clarice Lispector. A escrita deste ensaio é a tentativa de mergulhar nesta
visão e nos abismos que nela se apresentam.
José Miguel Wisnik já acusara exercício semelhante no artigo
―Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados)‖, a propñsito do conto ―O ovo e a
galinha‖. Nele, o crítico identifica uma poética do olhar na escrita de Lispector onde
a visão introduz uma fenda por meio da qual ―aquilo que se esconde no visível‖
apareça ao olhar como ―pura presença‖ (WISNIK, 2006, p. 286). Nesse sentido,
antes, ―olhar‖ e ―pensamento‖ esvaziam-se de forma a poder tocar ―a coisa‖ (idem).
A partir deste ponto, o invisível se mostra como ―desvelamento do real‖3 e enreda a
palavra a construir um ―texto que glosa ilimitadamente a margem entre o vazio e a
palavra‖ (idem). Ou, ainda, entre visível e invisível. Presença e ausência. A potência
do texto clariciano reside, portanto, no ―deslocamento do olhar‖ que força a
desterritorialização do próprio ser e do próprio olhar, promovendo o contato entre
dois universos distintos, um concreto e o outro inefável.
Ainda que este encontro imponha um recuo, antecipa também uma
aproximação, uma vez que a negação de seu significado expresso só aumenta a
afirmação do gesto oposto. A anunciação daquilo que se deseja tocar, mas que se
fecha em sua interdição, aproxima-se do leitor com mais ímpeto, até o ponto da
visão, no caso de Sofia. O corpo - e poderíamos dizer: o real – configura-se verdade
tangível, mas apresenta-se como realidade intangível, esquivando-se ao contato,
terminando por manifestar que a verdade está no recuo. Porque o recuo dá a medida
da presença. Estamos no campo da visão. Ao se apresentar por meio da interdição, o
objeto aponta para uma presença que não está onde se acredita que esteja porque
imediatamente já está em outro lugar. Lembremos que no episódio bíblico a visão
configura-se como visão do corpo ressuscitado que acusa um ―túmulo vazio‖, como
aponta Nancy (NANCY, 2003, p. 40), revisitando a tradição. Já nesta imagem, vida e
morte se tocam, neste outro. Entretanto, com a interdição do toque por parte do
3
O cuidado referido à palavra ―real‖ é apontado pelo prñprio Wisnik: ―embora a
palavra real também tivesse que ser apagada e zerada para que sobreviesse um
contato com um algo real, não-prescrito, não-codificado, não-trilhado de antemão‖
(WISNIK, 2006: 286).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
138
sujeito, a própria imagem se desloca e toca o ponto mais vivo do sujeito - a morte.
Vida e morte se tornam um presente porque ―morrer é ininterrupto‖ (LISPECTOR,
1999, p. 22).
A imagem do fechar dos olhos, portanto, inicialmente associa-se na obra
clariciana à cegueira. Nos contos e romances da autora, a cegueira é sempre sinal de
ruptura do ser, que resulta no aguçamento da visão do mundo e de si e,
consequentemente, em autoconhecimento. ―Mas ser cego é ter visão contínua‖
(LISPECTOR, 1997:217), afirma Martim, protagonista de A maçã no escuro. Por
isso, a cegueira também proporciona ângulos de visão que antes eram obscuros,
oferecendo a abertura de frestas escondidas anteriormente. O ‗ver pouco‘ e o ‗ouvir
quase nada‘ referem-se ao mergulho na escuridão (na penumbra) e no silêncio –
espaços de contato com o invisível e o indizível. A visão proporcionada pela cegueira
é para poucos, Édipos. Ritual iniciático. Uma vez mais, a tensão dialética se instaura:
da escuridão total vem a iluminação do mundo e das coisas. ―Do mundo enfim úmido
de onde eu emergia, abri os olhos e reencontrei a grande e dura luz aberta‖
(LISPECTOR, 1979:50), afirma a narradora de A paixão segundo G. H..
Recupere-se aqui a figura da criança, sobretudo nos contos claricianos,
onde o personagem infante associa-se à noite, ambas representantes do
indiferenciado e imagens fundadoras da escrita, na obra clariciana. Se a criança é o
ser em constante formação, para quem a segmentação ainda não se definiu e instalou,
a noite é o espaço que dissolve as divisões e as formas, para engendrar a escrita, e
torna os seres (seja do mundo animal ou vegetal) e as coisas, todos, semelhantes.
Tornar a realidade distinta um espaço do indistinto é instaurar a lógica relacional, na
qual cada pólo de pares opositivos mantém sua característica individual atuando,
porém, em complementaridade com o seu oposto.
Essa zona originária e fundadora é espaço que introduz a linguagem
enquanto experimento e enquanto iminência de um acontecimento, cujos limites são
buscados na própria experiência, e não fora dela. Em outras palavras, a experiência
não é de um objeto, mas da própria linguagem, de sua existência. Trata-se, portanto,
do espaço em que se busca não o encontro da palavra com o silêncio, com a
insuficiência do nome, mas exatamente daquilo que se possa fazer na e com a
linguagem.
Com a falência desse ato, instala-se a construção. O homem se situa no
espaço da escolha, podendo optar por falar ou não, uma vez dotado da faculdade ou
da potência de falar. Ainda que haja a impossibilidade da fala a partir de uma dada
língua, a sua ética consiste em encontrar a própria língua a partir da faculdade que
possui.
A experiência com a linguagem em si e a partir da revisão de conceitos é a
própria maneira de mostrar que existe uma linguagem, mas somente o revelar-se dela
na sua ilatência, na qual se habita desde sempre, é que pode mostrar isso. Existir no
mundo é existir na linguagem. E a existência da linguagem é a própria existência a
partir de um ethos.
Na experiência clariciana, encontrar esse ethos implica entregar-se ―à
desorientação‖ e à ―desorganização‖ (ao desregramento de que falava Rimbaud!) que
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desmontam a ―idéia de pessoa‖ adquirida com a ―terceira perna‖ da qual trata G.H.
―Todo momento de achar é um perder-se a si prñprio‖ (LISPECTOR, 1979: 12),
resume a narradora de A paixão.segundo G.H. O sujeito só realiza sua
despersonalização porque se encontra em fase de liminaridade, distanciado
temporalmente de sua organização subjetiva anterior e desdobrando-se em diferentes
objetos para que o processo de constante devir floresça.
Quando Rimbaud escreve suas famosas Cartas do Vidente, o poeta
comenta a prñpria escrita e aponta a tarefa do poeta vidente: ―chegar ao desconhecido
pelo desregramento de todos os sentidos‖. A criação poética implica, desde seu
início, a ação do caótico, do indeterminado e do obscuro, suspendendo o sujeito de
sua consciência e permitindo que o trabalho interno das tripas se realize. Em poucas
linhas, Rimbaud reafirma aquilo que se constituirá como imperativo do sujeito
moderno: deslocar o eu pensante para o eu pensado e permitir que a imaginação atue
como articulador central do heterogêneo.
As Cartas do Vidente convocam a vidência como tarefa de abertura
ao ―monstruoso‖ da alma uma vez que ―fazer-se vidente‖ é, ao mesmo tempo,
perscrutar a alma, investigando-a, aprendendo-a, cultivando-a a tal ponto que o
vidente chegue deliberadamente ao excesso no próprio desregramento, para que se
cruze o limiar das semelhanças em direção ao heterogêneo. O vidente deseja e aceita
o máximo do desregramento tornando-se o doente, o criminoso, o maldito, o fora de
si, tudo que se configura como um sintoma. Nesse ponto, despertam-se as forças
noturnas do inconsciente por meio das visões oníricas, convocando à cena o trabalho
do informe. Quando aí chega, o poeta vê as suas próprias visões, fantasmáticas, e,
mais que isso, deixa-se ser visto pelo grande inominável, decorrente do próprio
excesso. O excesso, por sua vez, desconcerta a subjetividade e permite que esse outro
(o heterogêneo) devolva-lhe o olhar. Nessa proximidade, o feio, o baixo, o impuro
tornam-se não apenas coexistentes, mas desejados. Entretanto, a distância não
desaparece quando o desconhecido se apresenta diante do olhar porque o inominável
se torna visão, de forma a garantir a presença constante de seu afastamento. O objeto
olhado torna-se assim ―o índice de uma perda‖, uma vez que nele convive ao mesmo
tempo o que está ―sob nossos olhos‖, mas ―fora de nossa visão‖ (DIDIHUBERMAN, 1998: 148). O sintoma aparece para provocar tudo o que é resíduo e
fragmento, resultando em uma fissura. Essa ínfima cissura é a ruptura necessária para
que a abertura da obra aconteça.
Na crônica intitulada ―Temas que morrem‖, de 24 de maio de 1969, a
autora explica o que mais tarde será apresentado ficcionalmente na elaboração do
romance Água viva. A crônica propõe que há tantos temas a serem tratados na
literatura quanto os há na vida porque todos são sempre experiência viva, isto é,
nascem de uma experiência vital e, portanto, jamais se esgotarão. Diz: ―estou cheia
de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no entanto‖. No entanto. Entretanto, tais
temas se configuram como temas que morrem porque ―morrer‖ é ―parte essencial da
natureza humana, animal e vegetal‖ (LISPECTOR, 1994: 207) e as ―coisas morrem‖.
Assim como viver é parte essencial dessa mesma natureza porque, como diz a
narradora de Água viva, ―antes da morte‖ há o ―delicado da vida‖ (LISPECTOR,
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1978: 57). A reflexão se desenvolve, não obstante, em direção à dificuldade de
escrever sobre esses temas porque são todos ―exíguos‖, quase abstrações. E pela sua
exiguidade o que mais importa é o impulso que obriga o autor a escrever, a força de
criação. E é assim que rapidamente este impulso se torna o tema central, e ―a
experiência de ser desorganizada‖, a sensação de ―estar gripada‖, o ―beber mal‖, o
―comer‖, o falar sobre ―frutos e frutas‖ (LISPECTOR, 1994: 207-8), se constituem
apenas como temas periféricos. Entre fatos corriqueiros e assuntos de densidade
como a dor, a morte, o paraíso, a crônica tratará do processo de criação. Os temas são
temas que morrem porque o momento de criação é tão fulminante quanto a morte.
Toda obra de Clarice tenta dar conta deste ―instante mínimo‖ (LISPECTOR, 1994:
207) em que simplesmente se sabe ―como é a vida‖, ―como a arte deveria ser‖
(idem). Executa-se um pacto entre escritor e escrita: o de ―ver e esquecer para não ser
fulminada pelo saber‖ (ibidem). A escrita de Lispector é, portanto, uma escrita da
visão e da cegueira, do tudo e do nada, por isso forma-se uma escrita do estertor. A
vida mais corriqueira pode conviver, enquanto tema de escrita e exercício de vida,
lado a lado à vida mais profunda, assim como a miséria convive lado a lado da
opulência, o abjeto do puro, o baixo do elevado, e assim por diante. Creio que essa
escrita quer dar conta de um real que se mostra aos olhos do escritor por meio da
apreensão de um universo que é da ordem do haver, isto é, um real que simplesmente
é. E junto ao é há o não-ser, junto ao existir há o inexistir. Como a morte. Morrer, em
sua acepção intransitiva mais direta é simplesmente ―deixar de ser‖. Nesse sentido,
existir e inexistir, morrer e viver, haver e não-haver tornam-se condições
intercambiantes porque partes essenciais de uma dada natureza. ―E vem a idéia de
que, depois de morrer, não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso‖
(LISPECTOR, 1994: 208), afirma a autora na crônica de jornal.
O desvelamento do real, portanto, chegará para Sofia e para G.H, como
para muitos personagens claricianos, por meio da visão. Uma visão que, como
Madalena diante do túmulo, acontece no registro de um duplo olhar. O olhar na
presença de um túmulo revela uma ausência – e desde o túmulo vazio o olhar retorna.
Retorno da morte. Mas a ausência não é de todo vazia, uma vez que Jesus encontrase presente, porém sob outro aspecto. Neste sentido, conforma-se uma dificuldade de
reconhecimento, não tanto pela intangibilidade, invisibilidade ou indivisibilidade do
objeto, como o coloca Wisnik em seu ensaio, mas porque o real diante do indivíduo é
o mesmo já sendo outro, revelando uma dissociação de aspecto, uma ausência
de rosto. O paradoxo da visão, no entanto, ocorre no ponto em que no
reconhecer há o desaparecer. Assim como as reencenações do episódio pela
pintura, a escrita de Lispector é, da mesma forma, uma tentativa de enfrentar
o invisível de frente, dar continuidade ao gesto de ver e conduzi-lo até o
cegar do olho e a incandescência da imagem.
O que vi, vi de tão perto que não sei o que vi. Como
se meu olho estivesse colado ao buraco da
fechadura e em choque deparasse do outro lado
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com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de
um olho. O que era tão incompreensível como um
olho (LISPECTOR, 1999, p. 21).
Ver se sobrepõe ao dizer, ao compreender e ao tocar. Mas no reconhecer há o
desaparecer. Por isso a realidade que morre congrega em si a presença de
uma morte e de um viver.
Voltemo-nos agora para o sujeito desta ação. O episódio da
revelação de Jesus a Madalena envia-nos também a mensagem de que só os
iniciados enxergam dentro do túmulo vazio. Dentro da morte. O que não é
para ser visto só se deixa ver por poucos, por olhos que um dia já souberam
ver dentro da noite. Por aqueles que se mantiveram de pé dentro e diante da
morte. Para Madalena, no episódio bíblico. Para Sofia e para G.H.
E o conto abre uma nova camada textual: aquela que se estabelece
entre o homem e a mulher. A escrita da desaprendizagem de Sofia (que é
também de Lori, de G.H., de Macabéa, e tantas outras personagens
claricianas) é também narrativa da desconstrução de mitos e papéis sociais
erguidos durante séculos de civilização. ―Em superfície de tempo fora um
minuto apenas, mas em profundidade eram velhos séculos de escuríssima
doçura‖ (LISPECTOR, 1999, p. 12). O tempo sofre corte vertical e se divide
entre a narração de uma invenção (conto) e a invenção de uma cultura
(tradição). Esta cultura reaparece no conto simbolizada pelo par homemmulher, que se converterá, por sua vez, no par prostituta-rei da Criação, e não
mais pelas figuras da aluna e do professor. A narrativa entre Sofia e o
professor é apenas ―um dos motivos‖ do conto, que não termina nunca
porque é uma longa história, encenada em diferentes tempos por diferentes
protagonistas. ―É que outros fazem outras histñrias‖ (LISPECTOR, 1999, p.
26), afirma a narradora do conto, indicando que o motivo continua o mesmo
ainda que com outra aparência.
Com o corte temporal, a narrativa é remetida ao par de Noli me
tangere: a prostituta e o santo.
Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas
com uma sabedoria com que os ruins já nascem –
aqueles ruins que roem as unhas de espanto -, sem
saber que obedecia a uma das coisas que mais
acontecem no mundo, eu estava sendo a prostituta e
ele o santo (LISPECTOR, 1999, p. 12).
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A prostituta, neste exemplo, segue o modelo cultural daquela que
está desviada do caminho reto, daquela que está em contato com o sujo e o
imoral e que carrega também as marcas de Satã. Se seguirmos com a alusão a
Madalena, a prostituta de quem Jesus afastou sete demônios, segundo o
Evangelho de São Lucas (Lc, 8:2), então esta personagem, Maria Madalena
ou Maria de Magdala, foi também aquela que mais se aproximou do divino
por conhecer alguns de seus segredos. Como aponta Nancy (NANCY, 2003,
pp. 63-72), além da associação que lhe é feita ao papel da mãe de Jesus,
alguns episódios revelam seu contato com o divino, de dentro do mais baixo
plano em que pode se encontrar o homem, lembrando que Madalena era a
única a conviver com os aleijados, leprosos, mendigos e doentes de todos os
tipos, a única que junto de si estabelecia um vínculo com o reino da morte, a
quem os mortos não deixavam de acompanhar e para quem a morte não se
restringia ao fim da vida. Como aponta Nancy, Madalena será a única a
ocupar o lugar e a tarefa de lavar os pés de Jesus com água e ungir seus pés
com óleo perfumado. Segundo o crítico, este gesto é uma prefiguração do
episódio da revelação porque ungir com óleo é também prática realizada para
embalsamar os mortos e a única que responde ao título de Cristo nos
batismos. Portanto, Madalena é o símbolo do indivíduo iniciado que nesta
vida e neste mundo mantém a proximidade com aquilo que não é deste
mundo. Com aquilo que é do universo intangível, invisível e indivisível, nos
termos de José Miguel Wisnik.
A referência feita à prostituta no conto de Clarice seguirá como um
mote repetindo-se três vezes ao longo da narrativa. Nessas repetições, nota-se
que a imagem da prostituta vai confundindo seus limites com a imagem da
virgem anunciada, descrição que remete à figura de Madalena e de Maria,
mãe de Jesus. A prostituta de alma convertida pelo santo representante do rei
da Criação. E, como Madalena, Sofia representa vários papéis, o principal –
―ser matéria d‘Ele‖, papel que sñ seria perdoado pelo prñprio Deus porque
―sñ Ele sabia do que me fizera e para o quê‖ (LISPECTOR, 1999, p. 13) –
transforma-a em uma adoradora da matéria e dos prazeres, motivo que a
aproxima ainda mais da figura de Madalena, e que une as pontas do divino e
do profano. Não se pode esquecer que a referência ao rei da Criação, este
Deus que desenha e conduz os papéis encenados por suas criaturas, associase à figura do escritor que, tanto quanto Deus, é o rei de sua criação, só ele
conhece os segredos e razões condutores de suas criaturas; e ainda ao
professor, figura de autoridade e conhecimento que, mais uma vez, vem
inverter estes mesmos sentidos.
Para Madalena, o reconhecimento daquele real disfarçado e fugidio
acontece com a proclamação do nome. Maria só reconhece Jesus quando este
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143
a chama pelo nome porque outrora soubera ver dentro do túmulo e antecipar
a morte de Jesus, ungindo seus pés. Porque seu nome é uma convocação.
Como afirma Nancy, ―Madalena vê a vida na morte porque já viu a morte na
vida‖ (NANCY, 2003, p. 71). Mas o fundamental no episñdio relido pelo
crítico francês não reside na condição que o iniciado tem de poder enxergar
dentro das trevas, mas de ―abrir os olhos dentro das trevas para que sejam
invadidos por ela‖ (idem) – e se queimem, como ―o santo se queima até
chegar ao amor do neutro‖ (LISPECTOR, 1979, p. 164).
O momento de escuta do nome é também, para Sofia, o que une
dois extremos, tanto para professor, quanto para aluna: o da morte, também
momento de iniciação, despojamento da ―crosta‖ que recobre a vida
esmagada do professor e que ocorre simultaneamente ao seu nascimento,
também uma revelação. Note-se que aquela ―matéria inerte‖, que lentamente
se erguia diante dos olhos da menina, é comparada a ―um grande mortovivo‖, não no sentido fanstasmagñrico, mas no sentido do tangível dentro do
intangível. Mas a metamorfose é também da menina, portanto, dupla, porque
a nomeação é um rosto. Presença dentro da ausência. A revelação do nome
chega simultaneamente à anunciação do rosto. ―Foi quando ouvi meu nome‖
(LISPECTOR, 1999, p. 18).
Como no episódio bíblico, este é o momento em que se introduz o
único diálogo entre o par. Explicitamente, esta cena contém um dado que a
faz aproximar-se de outra passagem bíblica, contextualizada em alusão a um
episódio distinto dos anteriores: o da Anunciação. No momento em que o
professor pede a Sofia para aproximar-se e pegar seu caderno, ocorre a
anunciação. ―Um arrependimento estñico manteve ereta minha cabeça. Pela
primeira vez a ignorância, que até então fora o meu guia, desamparava-me.
Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era o único
eu.‖ (LISPECTOR, 1999, p. 19). Como é comum na obra de Lispector,
algumas frases, parágrafos e mesmo textos completos se repetem ao longo da
obra, como reescrituras ou mesmo como motes, reencenações do mesmo no
outro. Esta última frase – ―Eu era o único eu‖ – reaparece no conto ―Miss
Algrave‖, de A via crucis do corpo, e é interpretado por Vilma Arêas. Na
leitura feita pela pesquisadora, dos índices reproduzidos hereticamente ao
longo da obra o da Anunciação aparece no conto mencionado através das
núpcias entre Ixtlan, ser extraterrestre do planeta Saturno, e a secretária
virgem e recatada que se transforma em prostituta, invertendo os termos do
episódio em questão. Ao se apresentar a Ruth Algrave, depois de entrar pela
janela como um enviado de Deus, Ixtlan se auto-define, como Sofia, da
seguinte maneira: ―Eu sou um eu‖ (LISPECTOR, 1991, p. 29). Segundo
Arêas, esta frase é ―um claro simulacro do ―sou o que sou‖, palavras de Jeová
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a Moisés‖ (ARÊAS, 2005, p. 66), isto é, da anunciação de Deus ao profeta
(Ex, 3:14).
Em ―Os desastres de Sofia‖, este pronunciamento se torna clara
anunciação da prostituta que se transformará em santa. Depois deste
encontro, que se apresenta quase como uma via-crúcis da criança e do
professor, segue a ressurreição: ―Estava sozinha, na relva, mal em pé, sem
nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada‖
(LISPECTOR, 1999, p. 24). E aqui então a figura de Madalena se confunde
com a de Maria, mãe de Jesus. E mais adiante, a repetição:
Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que
tudo o que em mim não prestava servia a Deus e
aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o
meu tesouro. Como uma virgem anunciada, sim.
Por ele ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir,
por isso ele me anunciara. Ele acabara de me
transformar em mais do que o rei da Criação: fizera
de mim a mulher do rei da Criação. (LISPECTOR,
1999, pp. 25-6).
Assim, Madalenas, Sofias, G.Hs. e Loris iniciam-se como neófitas
no universo do duplo domínio porque mergulham e permanecem naquela
zona em que o descortínio do real é também o seu afastamento. E o gesto
torna-se mais importante do que a imagem, ponto de abandono: abandonar-se
a uma presença, ou a uma visão, que nada mais é do que seu próprio retirarse, seu apagamento, é o mesmo que enxergar a glória, que, por sua vez, é
também treva (NANCY, 2003, p. 72). Onde os olhos se abrem, sem medo da
cegueira. De chofre se explica para que se nasce com olhos e garras, sem
nojo da visão. É que outros olhos fazem outras histórias.
Não à toa, a notícia da morte introduz a escrita. Uma escrita
elaborada em estrutura de mise-en-abîme que introduz, por sua vez, pequenas
mortes, seja nos distintos planos de relato, como aponta Rosembaum
(ROSEMBAUM, 1999, p. 53), seja no plano do discurso, elaborado sobre
paradoxos, pares opositivos, inversões. Uma vez que o sujeito se constrói na
própria elaboração da linguagem, e por isso devém escrita, parece-me que
essa estrutura em espiral quer mostrar que não há construção definitiva do
discurso, apenas a repetição do movimento de contínua e inexaurível
metamorfose do ser.
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BIBLIOGRAFIA
ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector. Com a ponta dos dedos. São Paulo:
Cia. das Letras, 2005.
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GUIMARÃES, M.R. Clarice Lispector e a deriva dos continentes: Da
descoberta do mundo à encenação da escrita. 249f. Tese (Doutorado em
Literatura Brasileira) - Faculdade de Letras da UFRJ, Rio de Janeiro, 2009.
LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
______ A Paixão Segundo G.H. 6ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1979.
______ A via-crúcis do corpo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991a.
______ Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres. Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1991b.
NANCY, Jean-Luc. Noli me tangere. Essai sur la levée du corps. Paris:
Bayard, 2003.
ROSEMBAUM, Yudith. Metamorfoses do mal. Uma leitura de Clarice
Lispector. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 1999.
SÁ, Olga. A Escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-Lorena: Vozes,
FATEA, 1979.
WISNIK, José Miguel. Iluminações profanas (poetas, profetas e
drogados). In: NOVAES, A. (Org.) O olhar. São Paulo: Cia. das Letras:
2006, p. 283-300.
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Aquela que não só contou um conto – a Sherazade brasileira
Mariana Sbaraini CORDEIRO 1
Alamir Aquino CORRÊA 2
RESUMO: A forma contística se configurou como um lugar de fala, um
espaço de onde a mulher podia ser ouvida e compreendida, uma vez que
muitas mulheres puderam relatar as infinitas situações femininas, procurando
no público leitor, sobretudo o feminino, uma identificação, certa aprovação
de seus pares. Isso foi possível com a efetivação do conto moderno apoiado
pelas mudanças no contexto literário e, como consequência, houve um
aumento considerável de publicações de autoria feminina. Essas narrativas se
preocuparam em evidenciar os sentimentos de suas personagens, explicitando
não só o lado belo, mas revelando seus complexos, suas dores, sua
impotência perante as situações vivenciadas. O mundo interior passou a
configurar como uma tendência muito enfática na escrita feminina. O
propósito desse trabalho é mostrar as circunstâncias da produção contística
feminina salientando o tema da maternidade em tais produções. Após um
percurso histórico sobre o conto e a escrita de mulheres acerca desse gênero,
há a análise de dois contos de Lya Luft que exemplificam como o tema da
maternidade possibilita uma nova visão da mulher agora narrada por ela
mesma.
PALAVRAS-CHAVE: Conto brasileiro. Conto de autoria feminina.
Maternidade. Lya Luft.
Quando se estuda a evolução do conto brasileiro se percebe que a
escrita feminina teve um papel crucial nesse processo. Como Sherazade, que
ao narrar suas histórias almejava salvar sua vida, a escritora de narrativas
curtas buscou sua ―salvação‖. As palavras se tornaram redentoras para as
mulheres tanto para as que escreviam como para as que liam, e assim, a prosa
1
Doutora em Letras pela UEL; [email protected].
2
UEL - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Estado do Paraná, Brasil.
Doutor em Literaturas Hispânicas pela Indiana University (1990), Professor
Associado de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira do Departamento de
Letras Vernáculas e Clássicas. CEP: 86051-940 E-mail: [email protected].
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
147
de ficção, de um modo geral, serviu como um lugar de fala, um espaço de
onde a mulher podia ser ouvida e compreendida. Foi um momento de se
conhecer a mulher por ela mesma. A forma contística se configurou como um
meio de grande valia a esse propósito, uma vez que muitas mulheres puderam
relatar as infinitas situações femininas, procurando no público leitor,
sobretudo o feminino, uma identificação, certa aprovação de seus pares. Isso
foi possível com a efetivação do conto moderno apoiado pelas mudanças no
contexto literário e, como consequência, houve um aumento considerável de
publicações de autoria feminina. Essas narrativas se preocuparam em
evidenciar os sentimentos de suas personagens, explicitando não só o lado
belo, mas revelando seus complexos, suas dores, sua impotência perante as
situações vivenciadas. O mundo interior passou a configurar como uma
tendência muito enfática na escrita feminina.
Nesse novo rumo tomado pela literatura brasileira, Clarice Lispector
teve papel seminal ao conferir à sua produção literária temas que antes
pareciam estar desgastados, aparece uma forma diferente de apreciar a vida
em família. Essa outra perspectiva dá voz às suas personagens femininas
inseridas em um ambiente familiar burguês, sob uma ótica que criticava essa
nova estrutura familiar, questionando a sua estabilidade, convergindo para a
efemeridade dos sentimentos e das relações. Além disso, essas obras
evidenciam a ânsia em se manter as aparências a despeito de todo tipo de
frustração, principalmente a econômica, revelando a instabilidade das
relações. Os valores passaram a se mostrar muito mais ilusórios, atestando a
marca existencialista da autora. Isso é exemplificado com os inúmeros
estudos produzidos sobre seus contos, com uma relevância maior para ―Feliz
aniversário‖ e ―Amor‖. Ao dar voz a personagens que configuram o espaço
do protagonista em seus mais diversos papéis, mais evidentemente os atuados
dentro do ambiente familiar como o da mãe, esposa e filha, o ambiente
familiar passou a assumir um lugar de destaque na narrativa. Lispector
marcou uma nova geração de contos. Luiz Costa Lima diz sobre ela: ―Não
me furto a escrever que Clarice contista é a que melhor realiza a via aberta
por Mario de Andrade‖ (1983, p.186). Com os contos de Lispector, não sñ o
gênero atingira outro patamar, mas também a literatura de autoria feminina
no Brasil. Foi com um tipo de conto centrado em um modo peculiar de
narrar, alimentado pela tônica existencialista, apresentando personagens em
seu drama particular, exasperadas por motivos banais, corriqueiros, que suas
personagens encontraram na estrutura formal do conto um lugar profícuo.
A agilidade imposta a esse tipo de narrativa guia suas personagens
por ―labirintos da condição humana, perpassado de contradições e incertezas.
Clarice Lispector explora a fragilidade do ser diante do compromisso
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inevitável com a vida‖ (LUCAS, 1983, p.140). Sobre essa nova concepção
do gênero, Luiz Costa Lima aponta que ―os dilemas e contradições dos
personagens só são possíveis enquanto determinadas pelo onde e como estão,
não sendo, como sucede com freqüência no romance, deles independentes‖
(1983, p.184), e que isso foi positivo para a produção contística de Clarice
Lispector.
Nos contos da autora, o cenário urbano passa a ser responsável por
muitos conflitos, sobretudo os existenciais. Sobre essa característica da prosa,
Manuel da Costa Pinto afirma que ela acabou se tornando a marca da
literatura brasileira contemporânea: ―a problemática realidade urbana eclodiu
como uma experiência ao mesmo tempo incontornável e irredimível,
passando a ser o habitat predominante na literatura brasileira a partir dos anos
60. [...] A urbanização do imaginário da literatura brasileira é um fenômeno
recente, porem irreversível‖ (2010, p.83). Uma vez que o Brasil não é mais
um país rural com a mudança de seu perfil populacional através do
crescimento das cidades e da intensa emigração da zona rural para a área
urbana, a cidade e as consequências do processo de urbanização tendem a
influenciar as normas de conduta das personagens a partir de então.
O espaço urbano não só passou para a ambientação do conto
moderno, como passou a garantir sua evolução. Nadine Gordimer, refletindo
sobre a permanência do conto, conclui que isso só foi possível devido ao
espaço que ele passou a representar e à representação do modo de vida que
esse espaço passou a exigir; ela diz que o conto
is an art form solitary in communication; yet
another sign of the increasing loneliness and
isolation of the individual in a competitive society.
You cannot enjoy the experience of a short story
unless you have certain minimum conditions of
privacy in which to read it; and the conditions are
those of middle-class life (2010, p. 171).
Quem vende um conto: o mercado do conto no Brasil
Desde a década de 1960, o conto tem despertado muito interesse,
sobretudo o econômico. Para o mercado editorial, ele representa uma opção
mais lucrativa uma vez que o senso comum sobre a leitura no país crê que o
brasileiro lê pouco e o conto pode ser uma forma de cativar o leitor para o
universo da literatura devido a sua curta extensão. Se esse é ou não o
principal interesse por tantas antologias de contos, o fato é que a veiculação
das narrativas curtas tem logrado êxito.
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149
Algumas antologias podem ser apontadas como responsáveis pela
ascensão do gênero ou, no mínimo, contribuíram para isso. O mercado
editorial viu nesse interesse um nicho de vendas promissor. A seleção de
contos proposta por Ítalo Moriconi, Os cem melhores contos do século
(2000), se destaca como um desses veículos, resgatando contos de autores
que há muito tempo não eram publicados. Tal obra marcou uma retomada do
gênero; depois dela, foram lançadas outras coletâneas como Os melhores
contos de crime e de mistério da literatura universal, 100 melhores contos de
humor da literatura universal, Melhores contos de loucura, entre tantas
outras agrupadas por um assunto em comum até estendendo esse tipo de
coletânea para outros gêneros como poema e crônicas. Claro está que as
antologias dos ―melhores‖ sinalizam um viés subjetivo e, muitas vezes,
criticável; as escolhas feitas pelos organizadores denotam uma tutela e um
senso de poder que não correspondem necessariamente ao que se espera da
crítica literária.
Entretanto, é fundamental salientar que tais coletâneas reforçam a
exclusão dos textos de autoria feminina. Dos cem contos que compõem o
volume organizado por Moriconi, somente vinte e quatro são de mulheres,
com destaque para a década de 1980 com oito autoras. O livro também não
traz nenhum autor desconhecido do grande público, sendo explicita a
intenção de agrupar em uma só obra os contos de autores já consagrados da
literatura brasileira, garantindo dessa forma a sua vendagem.
A mesma exclusão acontece em uma coleção da editora Scipione
chamada ―A palavra é...‖. Publicadas no início dos anos 1990, a editora via
nas antologias de contos uma ferramenta indispensável para a difusão da
literatura. Com esse intuito e dentro dessa proposta, os editores agruparam
contos da literatura brasileira sob vários títulos: ―A palavra é...‖ criança,
mulher, mistério, escola, humor, natal, cidade, entre tantos outros. O volume
destacado aqui é o ―A palavra é... mãe‖. Publicada em 1993, a obra reuniu
dez contos sobre mãe, mas somente um foi escrito por mulher, ―Feliz
Aniversário‖ de Clarice Lispector. A temática da maternidade sempre foi
muito explorada pelos autores de contos brasileiros desde Machado de Assis
no conto ―Uma senhora‖, mas o que se vislumbra com esse trabalho é a
recusa feminina em escrever sobre a maternidade antes dos anos 1990. A
pesquisa da professora Regina Dalcastgnè que mapeou os romances
brasileiros publicados pelas três editoras mais importantes do país entre os
anos 1990 e 2004 revelou que o discurso da maternidade é muito mais
normatizado em torno do instinto materno e fixado nas narrativas escritas por
homens. Apesar do foco de sua pesquisa ser o romance, o mesmo acontece
com a produção de contos. A professora ainda afirma:
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150
Entre os autores homens as personagens ocupam
bem mais a função de mães (38,5%), têm um
número maior de filhos do sexo masculino, e mais
filhos biológicos. As autoras, por outro lado, se
diminuem o ‗fardo‘ da maternidade para as brancas
(29,6%), o impõem em dobro para as não-brancas
(57,1% delas são mães), aumentando inclusive o
número de filhos (2007, p.132).
No título A palavra é mulher (1990), acontece o mesmo que a
reunião de contos proposta por Moriconi, dos dez autores que configuram a
antologia, apenas três são mulheres: Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes
Telles e Clarice Lispector, autoras muito bem conhecidas do grande público.
Considerando tais seleções como um problema, Luiz Ruffato
procurou sanar esse déficit com a publicação de 25 mulheres que estão
fazendo a nova literatura (2004). O escritor constatou a existência de uma
lacuna na história da literatura brasileira ao apontar a publicação contística
sempre de poucas e das mesmas autoras. Os trabalhos críticos que
acompanharam o desbravar da literatura brasileira em nosso país
confirmaram que essa lacuna não representa a inexistência de outras
escritoras, mas que houve uma super legitimação das mesmas escritoras pela
história literária. Esses trabalhos evidenciam que autoras como Rachel de
Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector tiveram apoio de um
mercado editorial e que tal propaganda influenciou nas intensas pesquisas
sobre essas autoras. Não que elas não merecessem esse olhar ou que suas
obras não fossem realmente dignas de estudo, o problema foi outro: a
imagem de que no Brasil não haveria outras mulheres com obras tão dignas
de estudo quanto das autoras citadas.
Luiz Ruffato credita aos anos de 1970 o boom literário que
proporcionou ampla entrada feminina no mercado editorial. Ele ainda afirma
que as mulheres que surgiram nesse momento ―refletem esse caos criativo, e,
sem querer compartimentar os inúmeros rumos posteriores, podemos afirma
que as várias tendências consubstanciadas em algumas delas vão dar o tom da
produção das décadas de 1980 e 1990‖ (2004, p.14-15). Outras coletâneas de
contos publicadas antes dos trabalhos de Ruffato em 2004 e 2005 já
evidenciavam a mesma necessidade: a de propiciar um espaço para que novas
autoras se fizessem conhecidas. Um exemplo dessa tentativa foi a obra
Contos Femininos, de Raimundo Magalhães Junior em 1967. A justificativa
para a realização desse trabalho foi a preocupação que o organizador teve de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
151
que, já naquela época, havia um vazio com respeito à publicação da produção
literária de mulheres. O mesmo questionamento foi partilhado por Edla van
Steen ao organizar o livro Conto da mulher brasileira, em 1978. Em 2003,
Lucia Helena Vianna e Márcia Lígia Guidin publicaram uma antologia
intitulada Contos de escritoras brasileiras, da mesma forma focada em
preencher essa lacuna.
Algo em comum entre esses organizadores foi o questionamento
levantado diante de uma rica produção contística de autoria feminina e sua
esparsa publicação. Edla van Steen se questiona na apresentação de sua
coletânea ―Por que uma antologia sñ de contos de mulher?‖ e a mesma
pergunta é repetida por Vianna e Guidin vinte e cinco anos depois na
apresentação do seu volume. A resposta pode ser encontrada quando Ruffato
afirma que ―o papel intelectual que a mulher exerce na sociedade brasileira
não corresponde à sua verdadeira importância‖ (2004, p.7). Ainda na orelha
do mesmo trabalho, a professora Regina Dalcastagnè lembra que, apesar de
todas as conquistas feministas, ―a voz da mulher ainda é pouco ouvida em
nossa sociedade‖. No seu segundo trabalho, + 30 mulheres que estão fazendo
a nova literatura brasileira, Ruffato declara as razões que o levaram a
empreender nesse projeto:
O que me motivou inicialmente foi um incômodo,
ou antes, uma intuição: as páginas dos jornais
dedicavam-se a exaltar a explosão de uma nova
geração de talentosos escritores, mas o nome
subscrito, em geral, eram masculinos. [...] sabia
haver várias mulheres que pó direito pertencem a
essa ‗nova geração‘ e não eram citadas, talvez por
um inconsciente machismo, esse mal que nos
persegue a todos, homens e mulheres. (2005, p.9)
A professora Tânia Ramos, em seu trabalho de pesquisa (2009) sobre
a importância da publicação das antologias de Luiz Ruffato, averiguou que
das autoras dos 55 contos reunidos, apenas dez declararam ser escritoras e
apenas uma ―escritora profissional‖. Acercar-se a respeito da experiência
profissional de cada autora pareceu importante para o compilador que fez
questão de nos dois volumes apresentar cada uma das escritoras antes do
conto com dados como local de nascimento, data, obras publicadas e a
profissão que cada uma exercia.
As escolhas claro que foram cercadas pelo critério estético e formal
de cada conto escolhido. No entanto, a preocupação em evidenciar o aspecto
profissional de cada contista reflete que ainda existe no Brasil um número
muito reduzido de escritoras que podem viver exclusivamente de seu ofício.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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A necessidade de registrar a produção contística de autoria feminina
brasileira é pontual entre todos os organizadores que afirmam que as editoras
e o público leitor merecem conhecer as autoras ―marginais‖ do conto
brasileiro.
O comércio livreiro reflete ainda uma forte preferência pelos
escritores e tem demonstrado pouco interesse em lançar autores
desconhecidos. Uma situação totalmente inusitada tem acontecido graças aos
novos meios de divulgação da informação como a Internet. Muitas autoras
foram ―descobertas‖ devido ao sucesso que suas narrativas faziam em seus
blogs, como é o caso de Cris Passinato, Fernanda França, Vitória Zavalla e
tantas outras como relata a professora Regina Corrêa em seu trabalho
―Leitoras a escritoras: uma viagem pelo ciberespaço‖ (2012).
Outra constatação sobre a situação do conto de autoria feminina pode
ser feita em grandes livrarias que separam seus volumes por gênero. Na
estante de contos, fica evidente a supremacia masculina. Em uma breve
pesquisa em um site de uma das maiores livrarias do país foi rápido
estabelecer que dos 500 exemplares classificados como conto de literatura
brasileira, trinta e quatro eram de coletâneas de diversos autores e noventa e
três eram escritos por mulheres, o que representa menos de 20%.
Mesmo dentro desse panorama literário ainda muito androcêntrico,
muitos contos sobre o tema da maternidade foram passíveis de serem
encontrados em antologias de autoras já consagradas pela crítica literária,
como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Sonia Coutinho, Ivana
Arruda Leite, Cecília Prada entre tantas outras. Muitos dos contos sobre tal
temática só foram possíveis de serem encontrados graças à preocupação
daqueles que resolveram amenizar a exclusão das escritoras brasileiras, por
meio da compilação de seus contos, propiciando um espaço para o registro e
inclusão de autoras ainda desconhecidas do grande público leitor. Para a
realização desse trabalho, o gênero conto foi escolhido por sua curta extensão
que possibilitaria uma abrangência maior sobre o tema da maternidade na
produção literária brasileira em termos de número de autores. Trabalhar com
tal gênero também possibilitou encontrar uma maior variedade de
personagens e representações da maternidade nas narrativas de curto fôlego
que capturam e emolduram as ações e relações maternais no seu instante mais
precioso de forma precisa.
Quem escreve contos de mães...
Na busca por um objeto de estudo, a imagem de dona Anita,
protagonista do conto ―Feliz Aniversário‖ de Clarice Lispector, era deveras
inquietante. Na condição de filha, o comportamento daquela mãe suscita o
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questionamento sobre a possibilidade de uma mãe realmente ser capaz de
eleger um filho como o favorito, repudiando os demais. Enquanto mãe, o
desprezo pela prole fazia cair por terra toda imagem sacralizada que se podia
ter da mãe até então. Muitos questionamentos surgiram com a leitura desse
conto: seria coisa de Clarice Lispector somente, ou situação parecida fora
retratada por outras autoras naquela condição tão conflitante? Claro que a
busca por outras ―mães‖ à moda de Lispector fizeram despertar um interesse
por uma pesquisa literária muito mais densa. Não foi difícil detectar que de
fato havia outras mães como aquela. Mães que mais se assemelhavam à
madrasta da Branca de Neve foram surgindo. Contos e mais contos foram
sendo selecionados, sob várias perspectivas que desconstruíam o estereótipo
não só do amor materno como também do amor filial. Onde estaria a santamãezinha, mulher resignada, capaz de todos os sacrifícios por seus filhos?
Ela existiria na literatura brasileira produzida por mulheres? Claro que essa
classificação foi fruto dos ideais judaico-cristãos impregnados na sociedade,
mas que ao longo da pesquisa ela assumiu um novo sentido.
Outra questão inquietante leva a investigar o que fez com que o ideal
de mãe perfeita, pregado e exigido incessantemente pela mais variadas
vertentes, mudasse ou fosse representado pela literatura dessa forma? O que
aconteceu na história para fazer nascer tantas mães como Dona Anita? Não
era suficiente saber o que havia acontecido, era preciso investigar quando e
por que essas transformações foram transplantadas para o cenário literário.
Não bastava encontrar tais mães nos textos, precisava compreendê-las
também. A temática não é nova na literatura, porém, o que se apresenta de
forma inédita é como essa relação é desnudada do seu caráter sagrado, ou
seja: ―novas narrativas em posições de dissidência e subversão às
formulações patriarcais e cristãs da maternidade‖ (STEVENS, 2006, p.27). O
assunto também envolve um despertar de lembranças que todos têm, boas ou
ruins, da relação maternal, como bem disseram Vianna e Guidin: ―a
maternidade e a recorrente figura da mãe, entre todos os temas, é o que
parece provocar maior mobilização das lembranças e dos afetos‖ (2003,
p.11).
Todos os contos encontrados apontam uma reflexão sobre o tema,
abordado a partir dos diferentes lugares que a mulher ocupa nas relações
familiares como avó, mãe e filha. A partir dessas posições femininas, o narrar
propicia um olhar diferenciado sobre um discurso outrora proferido pelo
homem como pai, principalmente. Esse espaço agora assumido pela mulher
enquanto mãe lhe garante um lugar de destaque para dizer a sua maneira de
encarar a maternidade.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
154
Na grande maioria dos contos analisados, a maternidade não é
rejeitada, a mulher não se lamenta ou se resigna por ter sido mãe. Na verdade,
nenhuma das personagens descreve seu arrependimento pela maternidade
explicitamente. O que acontece é um narrar do sofrimento, das desventuras,
do ―feio‖ da maternidade. As mulheres-mães não conseguem equilibrar esses
dois papéis, apontando a urgência em revisar o conceito de maternidade.
A maternidade: destino e carga
Seria uma mãe capaz de fazer mal ao seu próprio rebento em
circunstâncias não míticas? Como no mito de Medeia – a mãe que se vinga
do marido que a traiu, matando seus próprios filhos – mães que não amam
seus filhos são excluídas do seio familiar e social ao qual fazem parte. É fato
que ao menor indício de que uma mãe possa ter cometido alguma atrocidade
contra alguém de sua prñpria ―carne‖ sempre foi motivo de repulsa. ―Medéia
toca em nossa cultura, em áreas repletas dos mais profundos tabus e de que,
em nós também, estas áreas estão enraizadas em tabus: a raiva, a ira, a
oposição, o poder, a violência e a vingança não cabem na nossa imagem de
feminilidade‖, com essas palavras Olga Rinne (2005, p.8) revive o mito de
Medeia associado ao estigma feminino.
Na nossa sociedade, matar um filho nunca será um ato justificado,
nem mesmo se resultante de um momento de extrema loucura da mãe. E hoje,
não estaríamos nós, mães, agindo como Medeia ao deixarmos em casa, ao
cuidado de outras pessoas, os nossos pequenos frutos? Essa é uma questão
que se levanta na chamada ―era da culpa materna‖. Rinne afirma que: ―muitas
mulheres rejeitam a imagem patriarcal da feminilidade e buscam uma nova
compreensão de si mesmas, sentindo-se hoje como se fossem estranhas e
estivessem exiladas no mundo em que nasceram‖ (2005: 13). A autora ainda
sustenta que a identificação da mulher moderna com a Medeia simbolizaria
o aspecto ‗feminino sombrio‘, portador de valiosas
energias, que só podem ser liberadas, no ego de
uma mulher, quando esta ousa olhar para o interior
dessa escuridão e ir sem medo ao seu encontro [...]
ela surge como a imagem oposta à mulher
demasiado dócil e retraída criada pelo patriarcado,
e símbolo da dignidade, sabedoria e competência
femininas, que as mulheres atualmente procuram
reconquistar. (2005, p.14)
Essa sublimação do sentimento materno resultou no mito que
envolve todas as mães, pelo menos as do mundo ocidental, desde o final do
século XVIII, como se todas as mães amassem seus filhos de uma mesma
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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maneira e jamais fossem capazes de lhes infligir algum mal. Mas é esse mal
que tem suscitado tantas pesquisas nos mais diversos campos do
conhecimento e, mais recentemente, pelas artes. Tal assunto acabou ficando
silenciado, principalmente nos anos 1980, a década na qual a mulher queria
fugir de qualquer resquício do Essencialismo Biológico, aquele que postulava
que ―a woman has an essence, that woman can be specified by one or a
number of inborn attributes which define across cultures and throughout
history her unchanging being and in the absence of which she ceases to be
categorizes as a woman‖ (SCHOR, 1995, p.46). Porém, quando o assunto era
tratado, mostrava uma mãe totalmente desvirtuada de seu estereótipo ideal,
personificando mães que mais se pareciam com as madrastas dos contos de
fada.
Algo relevante para se discutir é a importância do corpo para a
mulher e para a mãe. Se para a primeira, ela precisou fugir das ideias
essencialistas para se afirmar como sujeito, a mãe depende muito dos
aspectos biológicos e fisiológicos para a sua permanência. O essencialismo,
portanto, não deixa de ser um paradoxo para a mulher moderna. Cristina
Stevens acredita que apesar das ideias controversas que o essencialismo
biolñgico pode levantar, ―precisamos continuamente enfrentar essa oposição
natureza/cultura – o que se tornou quase uma obsessão ocidental, e que tem
estreita relação com a dominação e exploração da mulher – quando
trabalhamos a questão do corpo da mãe‖ (2008, p.86).
Sufocada pelos dogmas patriarcais, a mãe esteve reclusa por muito
tempo no limite do privado. Garantir que essa mulher estivesse sempre pronta
a parir e a cuidar de sua prole era a forma mais eficaz de limitá-la ao seu
próprio espaço. Dona e refém ao mesmo tempo, é assim que muitas mulheres
vivem até hoje. Pensar que a sua liberdade enquanto indivíduo foi
conquistada há menos de um século pode até ser um motivo a se comemorar
– e de fato foi uma grande conquista. Por outro lado, há situações que
demonstram a própria mulher ainda muito arraigada aos ideais patriarcais. Há
lugares onde a informação das conquistas das feministas ainda não chegou.
Pode até ser um termo forte a ser usado – libertada –, mas quando se tem a
oportunidade de conhecer como as mulheres brasileiras viviam, esse termo
acaba sendo o que melhor se encaixa para descrever o que mais a mulher
queria. A questão que fica é quanto custou a luta pela liberdade e se de fato
ela foi alcançada ou acabou resultando em um plano frustrado cujas
consequências nós mulheres sofremos até hoje.
A situação da mulher dentro do sistema patriarcal foi denunciada não
só pela a crítica feminista, mas também pela antropologia, sociologia, história
despertando um olhar para a causa da mulher. A literatura compartilhou
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
156
desses pensamentos e coube a ela mostrar de forma ficcional, mas não menos
importante, a luta da mulher para se libertar dos grilhões que a subjugavam
ao seu próprio lar. A pesquisa passa a ser relevante quando faz uma reflexão
de que maneira isso se torna ficção, por isso se torna imprescindível
considerar o papel que as narrativas de autoria feminina tiveram para que, no
mínimo, esse panorama fosse questionado. Pesquisar como a voz feminina se
faz visível e audível na produção literária abre um mundo de possibilidade de
estudo do texto literário portador de um discurso emancipador do sujeito
feminino.
Especificamente no Brasil, tem-se que levar em consideração como
conflitos sociais e culturais tiveram o poder de influenciar a produção
literária. Se forem considerados os reflexos da industrialização do país
juntamente com a Segunda Guerra Mundial, que demandou uma crescente
mão-de-obra feminina, vê-se que a nação vivera um prenúncio de
modernidade (era Juscelino) e depois foi embotada pelos anos de chumbo.
Assim, é racional que todo esse contexto histórico-social tenha influenciado
profundamente a produção artística brasileira.
Se a década de 1980 se abre para novas conquistas para os homens,
para as mulheres se mostrou como o grande primeiro momento de romper
com os ideais patriarcais. A década que exaltou o corpo ao máximo
(MORICONI, 2000, p.391) revelou uma produção literária de autoria
feminina no mínimo audaciosa. Fruto de séculos de dominação do ―macho‖ e
mais vinte anos de imposições e perseguições militares, as mulheres gritaram
o mais alto que puderam que aquele era o momento delas serem ouvidas. A
professora Lúcia Osana Zolin afirma que essas mulheres que se lançaram no
mundo da ficção tiveram uma mudança de mentalidade descortinada pelo
feminismo em relação à mulher, ―engendrando narrativas povoadas de
personagens femininas conscientes do estado de dependência e submissão a
que a ideologia patriarcal relegou a mulher‖ (2005, p.277).
Toda essa liberação foi buscada até seus últimos limites. Passado o
momento de efervescência, houve uma análise das consequências dessa
liberdade desenfreada. Foi assim que a família passou a estar no centro das
atenções dos textos literários de autoria feminina a fim de desvelar os
conflitos do ambiente familiar, trazer para a sociedade discussões do que o
solo privado andava fazendo. Vianna e Guidin afirmam que na literatura há
temas que mobilizam mais mulheres que homens:
Em geral, são aspectos referentes ao cotidiano
doméstico, a habilidades, afazeres e percepções
femininas do entorno familiar; são recorrentes a
visão perturbadora do pai, do marido, do amante –
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
157
do ser masculino em geral. É frequente a memória
peculiar que as mulheres carregam de suas dores e
das dores do mundo bem como a apreensão das
coisas míninas e desimportantes, das quais não raro
conseguem extrair efeito simbólico inesperado e
incomum. (2003, p.7)
Quem conta um conto... esqueceu-se da mãe
A mãe considerada sagrada, atrelada à imagem da Virgem Maria,
permeou o pensamento da sociedade ocidental até que, depois de uma
liberação não só do corpo, mas sim do sujeito mulher, sua imagem passa a ser
muito mais atrelada a de Eva e para esta, a família e os filhos vêm em
segundo lugar. Primeiro seria a sua busca de felicidade por meio da carreira,
de vários relacionamentos amorosos, do seu corpo, da sua beleza. Então,
porque essa Eva não é mais feliz que aquela Maria presa a uma ideologia
patriarcal? Para buscar uma resposta para esse questionamento, rever como
os encaminhamentos feministas evoluíram até o presente pode ajudar.
Uma questão que preocupava as feministas da metade do século
passado era como se diferenciar dos homens e onde buscar fundamentação
para se definirem. A feminilidade, então, chegou a ser postulada pela
capacidade natural de procriação da mulher, o que biologicamente seria o
elemento fundamental (Essencialismo). Mas tal definição não foi suficiente.
Simone de Beauvoir questiona essa premissa com a frase que acabou sendo
um mote do Feminismo: ―Ninguém nasce mulher: torna-se mulher‖ e
continua atribuindo um papel relevante para a cultura nessa questão ao
afirmar que ―[n]enhum destino biológico, psíquico, econômico define a
forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado
que qualificam de feminino‖ (1980, p.9).
Pela possibilidade da capacidade reprodutora vir a ser o que
diferenciaria a mulher de fato do homem, a maternidade foi um tema
polêmico para as feministas da década de 60 influenciadas, principalmente,
pelos pensamentos de Simone de Beauvoir. A maneira de abordar tal tema
seria a aceitação desse destino; então muitas delas ou se referiram à
maternidade de forma muito superficial, ou deixaram de abordá-la, e se
fizeram, muita vezes foi de maneira preconceituosa.
Devido a isso, a opção de excluir a maternidade como tema literário
fica muito evidente. Parece contraditório, porém tal ausência mostra muito
sobre a nova mãe que estava sendo representada na negação da sua vocação
―natural‖. A mulher passou a ser representada com muita frequência como
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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aquela que conseguiu sua independência financeira e obteve total autonomia
sobre o seu corpo. É significativa a ausência de uma mãe carinhosa, que
cuidava dos filhos, dona de casa primorosa e esposa sempre pronta a agradar
o seu marido como o mito da mãe perfeita pregava. Por representarem mais o
domínio patriarcal, essas características foram renegadas e o outro extremo
ficou em evidência – mães que abandonavam seus filhos e maridos para irem
atrás de seu bem estar e, o que é muito interessante, sem peso nenhum na
consciência. A literatura acabou por representar mães que declararam não
gostarem de todos seus filhos da mesma maneira e houve aquelas que
escolheram o aborto para que esse arrependimento não as acompanhasse para
o resto de suas vidas.
Diante disso, a maternidade foi um ponto nevrálgico a ser tratado, ao
fazê-lo, muitas pareciam temer assumir que as mulheres teriam mesmo um
destino a cumprir. Elas queriam ser reconhecidas como sujeitos ativos,
sociais, políticos – assim como eram os homens – e não pela sua anatomia
(ou destino biológico). Por esse motivo, a maternidade, que havia sido vista
com auras de sagrado, ou como uma maneira de controle da sociedade
patriarcal, foi silenciada. Hoje, estudos teóricos têm se preocupado em trazer
à luz tema da maternidade que ficou por tempo demais às margens do
pensamento.
Esse comportamento da nova maternação suscitou questionamentos
sobre esse inesperado papel da mãe na sociedade contemporânea. O que antes
era preconizado e até esperado do homem, agora vem chocar uma sociedade
diante do discurso da nova mulher. Pesquisar o assunto nesse período não
parece, num primeiro momento, tarefa fácil. No início da ―anistia cultural‖
pela qual passou o Brasil, é difícil encontrar contos com essa temática. A
mulher acaba sendo representada como uma filha rebelde, uma solteirona
resignada, uma amante, mas aquela mãe preconizada pelos ideais cristãos
quase nunca aparece. A mãe, quando é retratada, mostra-se uma mulher
infeliz por causa do casamento e que ainda não sabe como se libertar da sua
escravidão existencial. De forma geral, no início dos anos 1990 já é mais
comum surgirem aquelas que são infelizes, principalmente no casamento,
mas que tomam coragem para romper com seus estigmas sociais, mesmo que
sejam ―apedrejadas‖ pela sociedade que ainda continua subjugada pelos
ideais patriarcais. Mesmo que esses ideais tentem reger o comportamento da
mulher, essa nova mãe tem como objetivo principal buscar sua felicidade,
consertar a sua vida, mesmo que isso venha a punir pessoas queridas como
seus filhos.
Na década de 1990, a mãe aparece mais em cena e ainda por cima
retomando os ideais de maternidade que regeram tantos anos a sociedade
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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ocidental. Porém, esta vai continuar procurando a sua felicidade, mas de
forma mais serena. Agora ela tem o poder da decisão em suas mãos, e não
precisa mais romper abruptamente com os ideais sociais apenas para se impor
como sujeito ativo de suas escolhas. Ela entende quais são as exigências de
seu papel porque agora ela escolhe quando e como ser mãe. Mesmo tendo
que romper com os laços do matrimônio, a mãe ao longo da década de 1990 é
autônoma de suas escolhas, assim, ela aceita suas consequências também. A
nova mulher-mãe fugirá da sacralização, da castidade e contestará a tal
fragilidade feminina. Ainda sobre essa década, Elódia Xavier aponta:
A narrativa de autoria feminina, da década de 90
pra cá, vem apresentando protagonistas mulheres
que passam a ser sujeitos da própria história,
conduzindo suas vidas conforme valores
redescobertos através de um processo de
autoconhecimento. Este processo é exatamente o
conteúdo da narrativa, que nos leva da personagem
enredada nos ‗laços de família‘ ou nas prñprias
dúvidas existências à personagem, enfim, liberada.
(2007, p.167)
Como a mulher é repaginada, também o é o homem. Ideias como as
de Engels, que o homem teria participação no processo de fertilização como o
―plantador da semente‖, passam a ser questionadas e colocadas em xeque. A
literatura, então, passa a participar do processo de construção do sujeito ativo
da sociedade de forma efetiva. Para a realização desse estudo, foi necessário
compreender como se deu, ao longo da história ocidental, a cristalização da
imagem da mulher-mãe oprimida pelos ideais sociais, culturais e religiosos.
Cristina Stevens atesta que assim como outras manifestações artísticas, a
literatura busca representar a maternidade pela própria mãe e que
Podemos dizer que a revisão do conceito de
maternidade tem sido uma preocupação
relativamente recente por parte dos estudos
feministas. Articulando formas alternativas de
construir uma nova ideologia da maternidade nos
espaços vazios dos discursos hegemônicos [...]
buscam entender o sentido da maternidade, da
gravidez, do parto, dos cuidados com a criança, a
partir da perspectiva/testemunho da mãe. (2006,
p.41)
Buscar tal compreensão contribui para a desconstrução/reconstrução
do arquétipo de mãe e possibilita localizá-la no tempo e no espaço. O que se
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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faz pertinente para os estudos literários é saber como todas as questões
sociais, políticas, sociais e até econômicas transmitiram novos valores da
maternidade.
E as mulheres contam o quê? – problemas pós-1960
As narrativas curtas dos últimos cinquenta anos no Brasil têm nomes
representativos como Lygia Fagundes Telles, Lya Luft, Adélia Prado, Nélida
Piñon, Marina Colasanti e Sonia Coutinho. Há também aquelas que
acrescentaram textos primorosos para este estudo como Cecília Prada, Lucia
Castello Branco, Tânia Jamardo Faillace, Ivana Arruda Leite entre muitas
outras. Os contos dessas autoras falam de paixão, solidão, realização ou a
busca dela. Temas como o ideal feminino, a preocupação de se afirmar
enquanto mulher-sujeito e a sua luta contra o seu destino social e biológico
são da mesma forma recorrentes. Há aquelas vozes mais libertárias que
buscam romper com a divinização da mulher, que cobram uma postura
condizente com seus anseios. Esses textos demonstram uma maior
preocupação com os conflitos de ideologia e a condição da mulher
objeto/abjeto lutando para ser agente de seu destino, sujeito de sua própria
história e não mais aquele ser passível de manipulação.
Elódia Xavier assegura que, a partir de 1960, as narrativas de autoria
feminina reuniam características comuns para retratar esteticamente a
condição da mulher, vivida e transfigurada, passando a representar o mundo
pela ótica feminina, o que seria diferente dos textos de autoria masculina
(1991, p.11). Xavier aponta que essa escrita teria como característica o uso
frequente da primeira pessoa, um tom confessional que chegaria a confundir
o leitor – ―narradora ou autora? ficção ou autobiografia?‖ (1991, p.12);
personagens em busca constante por sua identidade e de um espaço para
autorrealização. Além dessas marcas do texto literário de autoria feminina, a
mulher teria consciência de que o lar significava um lugar que tolhia seu
acesso a um contexto social mais amplo e que elas viviam ―dilaceradas entre
o ‗destino de mulher‘ e a ‗vocação de ser humano‘‖ (XAVIER, 1991, p.12).
Teriam esses textos, de um modo geral, uma natureza introspectiva.
Xavier confere ao passado uma característica marcante e imprescindível para
o texto de autoria feminina:
O passado adquire, nesses textos, uma importância
fundamental, porque o dilaceramento das
personagens geralmente se justifica pela infância
reprimida ou mal-amada. O resgate da memória é
um dos caminhos para o autoconhecimento; a volta
às origens, através do tempo passado, faz parte da
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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busca da identidade, pulverizada em diferentes
papéis. (1991, p.13)
A recuperação do passado é muito presente e se configura como um
elemento fundamental para que a protagonista consiga encontrar sua
plenitude. Nesse retorno temporal, as personagens femininas são
arremessadas a um mar de sentidos confusos, quando as imagens do presente
se confundem com as do passado. Muitas lembranças ganham sentido devido
à maturidade e ao distanciamento que a personagem tem no agora.
Obviamente, que a literatura de autoria feminina será uma
consequência dos movimentos feministas, por ter sido graças a eles que a
mulher tomou consciência de seu papel e de como estava sendo obstruída
para exercê-lo devido às imposições androcêntricas do nosso mundo. Esse
espaço aberto propiciou um repensar sobre a condição da mulher nas mais
variadas áreas; assim, a problemática da ideologia dominante passou a ser
representada e questionada também pela literatura. Ao representar a mulher
inserida nesse novo contexto, o lar passou a ser o centro das discussões para
mais tarde ser totalmente renunciado, mostrando que a mulher poderia ocupar
outros espaços além dele somente.
O prñprio termo ―literatura de autoria feminina‖ revela que houve,
em um determinado momento da historiografia literária e da teoria literária, a
necessidade de uma nomenclatura que distinguisse o texto produzido por uma
mulher daquele produzido pelo homem. Ao usar essa nomenclatura, há uma
evidência de que o texto de autoria feminina é distinto do de autoria
masculina, mesmo que esse termo não exista. A inexistência do termo não
significa a sua ausência, pelo contrário. O descompromisso em não precisar
ser denominado dessa maneira evidencia que toda (ou quase toda) produção
literária era masculina e que, a partir de um determinado momento na história
da literatura, as mulheres passaram a escrever. Diante disso é que o termo
precisou ser aplicado por outras razões. Luiza Lobo afirma que
a literatura de autoria feminina precisa criar,
politicamente, um espaço próprio dentro do
universo da literatura mundial mais ampla, em que
a mulher expresse a sua sensibilidade a partir de um
ponto de vista e de um sujeito de representação
próprios, que sempre constituem um olhar da
diferença. (1997, p.6, grifo da autora)
A mesma crítica ratifica que será o distanciamento dos temas
―domésticos‖ e ―femininos‖, optando por aqueles de sua escolha, que
resultará na mudança do cânone da literatura feminina. E seria a presença
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
162
desses temas que permitiria uma intertextualidade com outros campos
científicos, a saber, a filosofia, antropologia, sociologia, por exemplo.
Porém, a prevalência e a imponência do texto literário devem ser
um pressuposto a ser seguido pelos estudos literários, para que não haja a
inversão do foco investigativo. O texto literário deverá ditar os apontamentos
necessários para a sua compreensão dentro de um sistema cultural mais
amplo. Luiza Lobo ainda descreve o que viria ser esse tipo de texto:
o texto literário feminista é o que apresenta um
ponto de vista da narrativa, experiência de vida, e
portanto um sujeito de enunciação consciente de
seu papel social. É a consciência que o eu da autora
coloca, seja na voz de personagens, narrador, ou na
sua persona na narrativa, mostrando uma posição
de confronto social, com respeito aos pontos em
que a sociedade a cerceia ou a impede de
desenvolver seu direito de expressão. (1997, p.9,
grifo da autora)
É certo que as mulheres passaram a ocupar definitivamente um
lugar só seu, mas não porque não houvesse mulheres que escrevessem antes,
mas sobretudo devido à linguagem instaurada principalmente por Clarice
Lispector. O texto de autoria feminina passa então, não só no Brasil, como
em todo lugar do mundo, a se colocar politicamente contra a hegemonia
masculina: ―somente a partir de Clarice Lispector que não sñ a mulher
começa a ocupar um espaço significativo na cena literária brasileira, como
também começa a produzir uma obra que se peculiariza por uma série de
razões já apontadas‖ (XAVIER, 1991, p.15).
A alteridade passa a ser, para a literatura de autoria feminina, uma
de suas abordagens centrais. Luiza Lobo adverte que essa forma de alteridade
não é simplesmente considerá-la de acordo com a definição antropológica de
Lévi-Strauss nem a de cunho filosófico, mas há a possibilidade de deslumbrála pelo viés psicanalítico ―no confronto entre consciente e inconsciente, e, por
conseguinte, na consciência de que não somos um eu total, sem arestas [...]
mas um eu com fissuras, com desdobramentos. [...] alteridade do eu em
relação a si mesmo é o ponto de partida da literatura contemporânea‖ (1997,
p.9). Propor-se a um estudo sob a abordagem feminista na literatura é
considerar o outro que foi excluído, considerado estranho, por isso esse olhar
sobre a mulher e os papéis que ela representa resultam em uma maneira de
compreendê-la.
A mulher, como qualquer outro ser humano, passou a utilizar
máscaras para tentar conviver melhor em sociedade; a diferença é que a
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
163
mulher precisa de um leque maior dessas máscaras dentro do seu espaço
privado – o de mãe, esposa, filha, entre outras. Entretanto, a máscara de
mulher como é concebida hoje foi a última a ser usada. Ou poderia se
falar que, nesse caso, o espaço privado seria o único em que ela não
precisaria usar máscara alguma? Creio que não. Nós mulheres acabamos
por usar máscaras para nós mesmas quando lutamos contra o que somos,
quando tentamos criar outra mulher para nos convencer de quem somos.
Esse processo de busca por uma significação no mundo e para nós mesmas é
constante na medida em que passamos nossa vida toda no intuito de nos
conhecermos. Essas personae que vestimos, e fazemos isso de forma
consciente, umas vezes mais e outras menos, depende do grau de importância
que cada mulher dá aos requisitos exigidos pelas mais diversas facetas da
sociedade para ser aceita. Na igreja se espera um determinado
comportamento, no grupo social ao qual frequenta também. Se vai à escola,
como aluna veste outra máscara, o que se espera dela no trabalho determina
que tipo de máscara deve ser usada. Essa multi-identidade tem revelado, na
verdade, uma total falta dela. A ausência de autenticidade nos momentos em
que o sujeito precisa se mostrar fica entre seguir a norma que todos seguem
ou correr o risco de ser diferente e sofrer suas implicações. No âmbito
privado também é assim – quanto maiores as representações sociais, maior o
guarda-roupa de máscaras.
No campo da literatura, a mulher para ser aceita como escritora e
ter certo prestígio precisou se imbuir das marcas que lhe garantiriam ser
aceitas pelo cânone, como bem mostra Lilian de Lacerda em sua obra Álbum
de leitura (2003). Por isso, o estudo da nova autoria feminina a partir de 1960
se justifica, uma vez que o termo autoria feminina não se remete a todas as
obras escritas por uma mulher. Foram somente as desse período em diante
que se propuseram a tirar as máscaras, buscar uma marca de alteridade que as
distinguisse do discurso dominante, nesse caso o do homem, para marcar a
sua identidade. Logo, é uma consequência pensar que nem todas as obras
escritas depois daquela década por mulheres sejam pertencentes a este gênero
– literatura feminina – pois para isso é necessário um constante despir, deixar
para trás o todo, o comum, para marcar o novo, o silenciado, o que não fora
dito. Consequentemente, o tema da maternidade revelado a partir daquele
momento serve não só para que o homem conheça a nova mãe como também,
e primordialmente, a própria mãe se conheça.
A inclusão social da mulher passa por um momento de
questionamento das posições que ocupa tanto no seu domínio público quanto
no privado. A professora Níncia Borges Teixeira afirma que essa inclusão
social permite à mulher a ―renovação da sua identidade em todos os setores,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
164
inclusive no campo literário. A produção literária de autoria feminina
pretende falar da luta por espaço, reconhecimento, igualdade, mas, sobretudo,
da reformulação da identidade feminina na sociedade (2008: 33).
A criação desse espaço permite que a mulher-mãe se sinta segura
em se despir de suas máscaras as quais filhos, marido, sociedade e ela própria
exigiram por tanto tempo que ela usasse e, assim, ela se identifique com
outras novas mães ao evidenciar as diferenças. Esse lugar onde as
experiências subjetivas podem ser manifestadas é cheio de vazios e é nele
que o discurso da literatura de autoria feminina encontra razão para existir.
Preencher as lacunas da história, tanto a social quanto a literária, foi a maior
marca de alteridade e o que determinou a permanência desse tipo de texto.
Lembrando que tal empreendimento só foi possível graças às primeiras
feministas que há mais de um século lutaram para que isso ocorresse, o que
levou a determinadas mudanças sociais, culturais e políticas chegando ao
máximo desse momento na década de 1960 afetando as mais diversas formas
de pensar e por todo o mundo, inclusive no Brasil. Mesmo que aqui tenha
tido interferências, esse momento aconteceu.
Os filhos da mãe
Para exemplificar como o tema da maternidade é tratado nos contos
de autoria feminina, foram escolhidos para a análise duas narrativas da obra
O silêncio dos amantes, de Lya Luft (2008). Tais narrativas têm em comum a
relação entre mãe e seu filho homem e surpreendem pelo comportamento
materno fugir daquele padrão tão explorado pela psicanálise, o complexo
edípico. As mães agora não devotam todo o seu amor ao seu filho e podem
parecer egoístas e, até mesmo, seletivas. Como resultado, tais narrativas são
construídas em torno do sofrimento de seus filhos.
O silêncio do filho mais novo de um casal com dois filhos se contrapõe ao
grito da mulher, mãe e esposa na narrativa ―A Pedra da Bruxa‖ de Lya Luft
(2008, p.13-22). Esses três papéis que a personagem tenta equilibrar ao longo
do conto tendem a acentuar que tais incumbências afligem a mulher casada e
se centralizam no seu papel de mãe. E é desse último papel que a sociedade
ainda espera muito para poder atestar a sua qualidade como mulher, pois para
a nossa cultura a mãe é a representante do bem estar da família. É ela quem
se responsabiliza e é responsabilizada pela qualidade da vida familiar no
espaço privado do lar, onde lhe é atribuído e cobrado um papel além de suas
forças.
O conto narra a história de uma família marcada pela morte do filho
caçula e como o seu corpo nunca foi encontrado, a mãe vive a eterna ilusão
de que um dia ele irá entrar pela sala: ―Quando meu filho tão querido sumiu,
quando se transformou, se matou, se jogou ou caiu da Pedra da Bruxa, se
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165
perdeu no mato – ou saiu voando e nunca mais voltou‖ (p.13). A mãe conta
como o menino era ―difícil‖, fechado, calado, descrevendo-o desde o
nascimento como um menino sombrio, que tinha prazer na solidão. Recorda
que ele sempre quis aprender a voar para ir embora. Incompreendido pelo pai
e pelo irmão mais velho – que acabou sendo o preferido do pai por ser uma
criança que não exigia tanta atenção e cuidado – a mãe se esforça para poder
se chegar a ele. Ela cria uma dependência ilusória e passa a acreditar que o
menino dependia muito dela, o que na verdade era o contrário: ―O pai não
tinha a menor paciência, e se dedicava ao outro. Do mais novo, eu imaginava
ser a melhor amiga‖ (p.14). O filho menor nunca teve amigos, vivia sempre
sozinho e desde muito pequeno chorava bastante. A mãe, na ânsia de alguma
maneira se aproximar dele, fazia de tudo sem resultado. A criança desenhava
pessoas sem rosto, por isso fez terapia, mas nem a psicóloga conseguiu
adentrar o seu mundo solitário. O pai, com menos insistência que a mãe,
também procurou se aproximar do filho, mas logo concluiu que ele era um
menino ―muito esquisito‖ (p.15).
Depois de anos à margem da família, o menino surpreende a todos
quando de repente convida o pai para assistir a um jogo de futebol. Porém,
aquela alegria súbita que o pai sentira acabou se tornando uma experiência
frustrada, pois ao primeiro grito da torcida o menino começou a chorar:
―Passei vergonha – disse o pai, e se foi fechar no quarto‖ (2008, p.16).
Mesmo tendo decepcionado o pai, o menino o procura de novo para
conversar antes de subir numa saliência de rocha chamada Pedra da Bruxa. O
pai, desacostumado, deu uma desculpa qualquer e prometeu que quando
voltasse do trabalho conversariam.
O menino não voltou de seu passeio. A morte dele é cercada pelo
insñlito e a presença de um velho da região contribui para isso: ―Sim, ele
tinha visto, há um bom tempo, um rapaz sair voando do alto daquele morro
[...] Pois, dona, aquele voou. Sim senhora. [...] quando olhei de novo a pessoa
estava de pé. Parecia um rapaz. E abriu os braços, mas não se atirou: saiu
voando feito uma garça, devagarinho‖ (p.20-21). A ausência de um corpo
para ser velado vai marcar a eterna busca da mãe pelo seu filho. A morte
pode ser dolorosa, mas a dúvida dela se torna muito pior e a mãe passará o
resto de seus dias à espera do filho.
O voo do filho marcará a morte da mãe e da esposa. Ela se recusa a
sair da casa da montanha, abandona, então, marido e filho. A ―morte‖ do
filho menor foi mais forte que a vida do mais velho. Questionada pelo seu
outro filho, a mãe responde: ―Você é o meu filho que existe, é tudo que eu
tenho, que seu pai e eu temos, e é bonito, e bom e amigo. Mas seu irmão
morreu‖ (p.21). Como se sente culpada pelo que aconteceu, a mãe passa a
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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preferir seu filho morto ao mais velho. Mesmo o pai também tendo se
culpado, ―era pai dele. E na única vez em que precisou de minha ajuda, eu
não entendi. Penso nisso cada dia, quando acordo, antes mesmo de abrir os
olhos. Eu matei meu filho. Ou pelo menos lhe dei um empurrãozinho‖ (p.18),
consegue, a sua maneira, sobreviver a toda aquela tragédia. Também ao
irmão ele recorreu: ―Mãe, acho que naquele dia antes de sair ele quis me
pedir conselho. Nunca vou me perdoar‖, mas este também volta à rotina de
sua vida. Ao longo da narrativa, pai, mãe e irmão repensam todas as vezes
que se calaram diante do filho/irmão.
O que agrava o sentimento de culpa da mãe é o fato do filho
recorrer ao pai e ao irmão e não a ela. Se não a procurou, seria porque ela não
seria capaz de ajudá-lo: ―Muito me doía o rapaz não ter procurado por mim.
Eu, a sempre atenta, disponível, eu, que me achava tão boa mãe... e na hora
fatal ele tinha querido o pai‖ (p.18). Há na voz da mãe um tom de
ressentimento por não ter sido uma mãe suficientemente boa, por isso a morte
do filho atestará a morte da mãe também. Ela não poderá ficar com o filho
que lhe restou por não ser uma mãe boa.
A culpa é o tema central desse conto. Vivenciada pelos três
integrantes da família, ela foi passageira para o pai e o irmão, mas não o foi
para a mãe. Ao relembrar a vida do filho desde o seu nascimento, ela acaba
constatando suas falhas e atesta que ninguém será mais culpado pelo que
aconteceu ao filho do que ela mesma. A culpa lhe atormenta até mesmo com
relação ao filho mais velho, aquele que sempre foi normal: ―Talvez,
preocupada com seu irmão menor, eu o tenha deixado um pouco de lado, mas
ele nunca parecia precisar de mim‖ (p.14).
A mulher passa acreditar na versão do velho, pois, assim, seria um
apanágio para a morte do filho acreditar que ele virou anjo. Essa ilusão
determina a sua escolha de permanecer na casa da montanha:
Meu filho ainda existe, o meu menino voador. Ele
voa, e agora de noite às vezes chega aqui nesta
velha casa de madeira junto do mato para onde cada
vez mais eu venho, já no trajeto o coração batendo
forte na esperança de que alguma coisa aconteça.
Um dia vou abrir a porta e ele vai estar ali. Ou vou
erguer os olhos para a Pedra e avistá-lo de longe.
Não importa quanto tempo já se passou: eu sou a
mesma, o amor é o mesmo, e a esperança. [...] Um
dia vai pousar na grama. Vou abrir a porta e ele vai
entrar, [...] e quem sabe pela primeira vez vamos
falar de verdade. (p.22)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
167
Se o filho virou anjo, a mãe se tornou o pior indivíduo aos seus próprios
olhos. Quanto mais o filho subia, mais a mãe submergia num lamaçal de
culpa, acentuada pela mágoa de não ter sido procurada pelo filho antes deste
alçar voo. Uma mãe que não serve para ajudar um filho na hora da
necessidade, que não conseguiu ser o referencial esperado pela sociedade. Ao
refletir sobre a morte do filho, ela relembra as situações que antecederam
aquele episódio fatídico, revelando a frustração ao perceber quão efêmera
fora a relação que ela tinha com ele:
Essa foi a sua verdadeira morte: nossa relação tão
especial era mentira. A boa vida familiar era falsa.
Andávamos sobre uma camada fina de
normalidade. Por baixo corriam rios de sombra que
eu
não
queria
ver.
Ele,
meu
filho
extraordinariamente amado, era irremediavelmente
sozinho – eu, que me considerava a melhor das
mães de nada adiantei. (p.13)
Lya Luft, pelo narrar do sofrimento, traz à tona questionamentos
sobre a superficialidade dos relacionamentos. Ao perder o filho, a mulher
perde não só sua identidade materna como também sua identidade de mulher,
como se elas coexistissem. É muito forte no conto, a questão das aparências.
Luft critica a estrutura familiar burguesa e da mesma forma o pensamento
feminista é colocado em xeque, uma vez que essa mãe não trabalhava fora,
estava presente para tudo que seus filhos precisavam, mas mesmo assim de
nada adiantou.
Marina Colasanti, em seu artigo ―Mãe que trabalha não precisa ter
filho problema, não!‖ (1980), faz uma reflexão sobre aquelas mães madames,
que dizem formar um novo grupo de feministas, indo na contramão,
permanecendo em casa e se recusando trabalhar fora. Ela diz assim:
Não creio que se eu ficasse em casa o dia inteiro
nos agüentaríamos com facilidade. A não ser que o
fato de não trabalhar significasse tempo preenchido
com cabeleireiros, demoradas sessões de compras,
visitas às amigas, atividades beneficentes. Ou seja,
que eu compensasse o tempo economizado do
trabalho com tempo gasto em futilidades. [...] Não é
assim que acontece com grande parte das mulheres
que, não trabalhando, se dedicam ‗inteiramente‘ aos
filhos. (1980, p.149)
O artigo de Colasanti presume muitas variáveis na vida de uma
mulher que se torna mãe. Maternidade é para sempre, mesmo que um filho
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
168
tenha morrido, ela continuará sendo mãe; que ser mãe é tempo integral, mas
que é impossível ser mãe presente, um misto de ideal, o tempo todo. A
mulher, mesmo que opte por ficar em casa cuidando dos filhos, vai encontrar
brechas que preencham sua necessidade de se sentir mulher, o que não é
definitivamente preenchido somente com a maternidade. A regra da
qualidade passa a vigorar sobre a da quantidade do tempo dedicado a um
filho. Em ―A Pedra da Bruxa‖, a morte do filho atua como uma forma de
acusação dessa mãe que não consegue ser onipresente, mesmo fingindo estar
presente.
Minha mãe, minha culpa
Mais uma narrativa curta do livro O silêncio dos amantes ajuda a compor
uma poética da maternidade que a literatura pode representar. No conto ―Um
copo de lágrima‖ (LUFT, 2008, p.53-62), há a retratação de uma mãe
invertida, desviante, narrada pelo olhar de seu filho mais velho. A narrativa
tem início com as declarações desse filho já casado que, por não ter
conseguido dormir bem nos últimos tempos, sonha com a mãe e é acordado
pela esposa na tentativa de tentar acalmá-lo; no sonho, volta a sua infância
para tentar compreender seu relacionamento com a mãe. Isso se repete
diversas vezes: ―No pesadelo preciso salvar minha mãe e não consigo
alcançar. [...] Sou responsável por ela mas sou pequeno demais, [...] ela
precisa de mim e ao mesmo tempo escapa‖ (p.53). As lembranças do marido,
narradas para a esposa, revelam as desventuras de um menino que desde
muito cedo percebeu que sua mãe não era como as de seus amigos. Os sonhos
confirmam para a esposa que seu marido parece ter sido uma criança sem
mãe, órfã. A suspeita dela o faz recuar no tempo e no espaço, e talvez ela
tivesse razão: ele tinha mãe e ao mesmo tempo era um filho órfão.
O marido passa a relembrar sua infância com seu irmão menor
junto de seus pais. Lembra, também, que sua mãe sempre estava com um
copo na mão cujo conteúdo ele presumia ser água. Mas, ao longo do seu
amadurecimento, o filho descobre:
Não era água: era a sua perdição e a nossa desgraça.
Podiam ter sido todas as lágrimas que chorei
quando menino: de medo, de vergonha, de raiva, e
de culpa por sentir raiva. Do frustrado amor por
aquela mãe dominada por algo que eu não entendia,
que ninguém explicava, que a roubava de nós
(p.53).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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O menino cresce testemunhando a decadência da mãe: ―Uma figura
instável, sem se dar conta da vida, dos filhos, do marido, de si mesma‖
(p.53). Mesmo a empregada tentando suprir o afeto materno, era a falta de
estabilidade e de carinho da sua mãe que marca o crescer da personagem.
O vício pela bebida afasta a mãe de seus dois filhos. Durante a narrativa toda,
a mãe está bêbada, exceto em um único momento quando arrumada para ir a
uma festa com o pai, ela ―inclinou-se para que eu a beijasse. Logo se
impacientou: – Não precisa me lamber. Você já está grandinho. E amanhã
não faça barulho, quero dormir até mais tarde‖ (p.55). O momento de lucidez
evidencia que aquela é de fato uma mãe desviante. De certa forma, essa
lucidez momentânea da mãe permite que o filho também tenha um
comportamento distinto do que ele tinha até então: ―Talvez tenha sido a
primeira vez que conscientemente me permiti sentir um pouco de raiva por
aquela mãe‖ (p.56). E são esses sentimentos controversos, amor e ñdio, que
passam a inquietar o garoto e a persegui-lo até a vida adulta. A obrigação de
um filho amar aos seus pais deveria se sobrepor a do amor materno?
O menino é o porta-voz da cultura do mito do amor materno exemplificado
em vários trechos da narrativa, como este: ―Nos nossos poucos retratos,
temos o ar perplexo de todos os órfãos, embora ela inda estivesse conosco.
Um ar de indagação talvez injusta: como é que ela nos abandona assim,
como? (p.56). Tanto o comportamento da mãe quanto o do filho se desviam
do padrão de amor materno e filial. A representação de uma mãe sob efeitos
do vício, que se desvia de qualquer padrão materno estabelecido social,
cultural e historicamente, reproduz e exige um comportamento atípico
também da criança. É esperado, de certa forma, que os filhos deem trabalho,
façam bagunça, sejam mal educados, mas não é o que acontece aqui.
No desenrolar da trama, o pai é a todo tempo convidado a entrar em
cena para assumir o controle da situação, porém é enfatizada exatamente a
figura impotente de seu pai. Não é somente a ausência da mãe que incomoda
o garoto, ela acaba sendo entendida por ele como reflexo de uma ausência
talvez maior ainda, a do pai. A personalidade forte da mãe contrapõe à
paterna que sempre aceita seus exageros cada vez com mais naturalidade.
Como consequência, a figura paterna acaba sendo responsabilizada pelo que
aconteceu:
Doía em mim que meu pai fosse um fraco, mais
fraco do que ela. Não pôde nos dar o que a gente
mais queria: uma mãe como as outras, uma mãe
comum, brigando porque meu irmãozinho não
queria comer ou porque eu tirava notas ruins, me
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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elogiando ou dizendo ‗essas calcas estão curtas,
você cresceu neste verão‘. Mãe interessada pela
saúde do filhinho menor, que o levasse ao médico,
que fizesse bolo no meu aniversário, que aparecesse
na escola no Dia das Mães, que fosse um pouco
feliz. A gente tinha só aquela da qual era melhor
ficar longe, sofrendo numa confusão de amor e
raiva. (p.56)
Textos de autoria feminina como esse assumem duas posturas perante a
presença masculina na família. Talvez, a mais recorrente nessas produções
seja a total ausência do homem. A segunda opção para representá-lo é como
acontece nesse conto, ele está presente, mas é um fraco. E sua ausência pode
até parecer não fazer diferença, mas é essa ausência que serve de justificativa
para infortúnios das personagens. O menino de ―Um copo de lágrima‖
precisa de um referencial masculino que ele não encontra; sabendo o quanto
isso o machuca, ele decide atuar como referência para o irmão mais novo,
que será seu foco de proteção até a vida adulta.
O momento de epifania do conto marca o amadurecimento do menino e se dá
quando ele descobre o que a mãe tinha no copo: ―Tudo desmoronou quando
entendi que não havia água no seu copo‖ (p.58). Depois de um jantar, a mãe
se recusa deixar a mesa e faz um escândalo; sentindo-se responsável pelo
mais novo, o irmão o leva para o quarto e confessa que dessa vez foi difícil se
acalmar. Depois do episñdio, ele procura saber se a mãe está melhor: ―queria
ver se estava bem. Podia ser doente, podia até ser malvada, mas era minha
mãe. E eu de alguma forma me sentia responsável‖ (p.58). Há uma inversão
de valores durante toda a narrativa, o que se contrapõe àquele sentimento de
culpa materna do conto ―A pedra da Bruxa‖.
A culpa neste conto é fardo do filho. Pode ser que tal culpa não o
destrua por ele se sentir ―mãe‖ do seu irmão caçula e, de certa forma, de seu
pai também, mas ela o destrói por ele não ter conseguido resgatar a mãe do
vício. Quanto mais a mãe sofria, mais o menino se sentia responsabilizado
por ela. De certa forma, ele se via como a causa do vício da mãe. Ele e o
irmão poderiam ser o motivo do vício, a mãe não queria ser mãe e ele como
filho mais velho era o responsável. Um auto-ódio pelo seu nascimento, por
não ter conseguido fazer nascer também aquele instinto materno que as outras
mulheres que ele conhecia tinham, por não ter sido suficientemente bom para
fazer a mulher escolhida pelo fraco do seu pai se transformar em mãe. O
fraco, talvez, não fosse o pai.
Essa responsabilidade invertida, uma vez que ela é esperada da mãe
e não do filho, atormenta o filho adulto. Seus sonhos/pesadelos buscam
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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maneiras de curar a mãe, mesmo que ela não esteja mais ali, mas permanece
viva e o atormenta: ―Porém continuei obcecadamente desejando que ela se
curasse. Que saísse do quarto e se vestisse direito, que nos olhasse com um
pouco mais de alegria, que para ela fôssemos mais importantes do que seu
vício‖ (p.61). A cura da mãe seria a cura do filho. Se ele fosse
suficientemente bom teria uma mãe suficientemente boa e estaria perdoado
do pecado que lhe persegue – ser filho:
Eu acho que falhei com ela; não fui suficientemente
bom e atento. Embora sendo tímido e nervoso,
quem sabe eu poderia tê-la ajudado a se curar, a
gostar de si, a olhar para nós. Fui um bom menino,
mas não adiantou. [...] Deve ser por isso que tenho
esse sonho mau: quero em vão salvar minha mãe
[...]. Quero ajudar e não posso. Ela corre depressa
demais, e eu não sou bom o suficiente. Ou não amo
minha mãe o bastante para a salvar. (p.62)
O menino passa a infância nesse ambiente onde todo sofrimento
favorece seu crescimento, um amadurecimento muito prematuro. A cena da
mãe encontrada morta revela numa grotesca descrição de como deveria ser o
papel tão esperado de mãe. O filho pequeno sai do quarto sem que ninguém
perceba: ―Devia ter subido na cama, e numa rara exceção a mãe não se
retraiu, não reclamou, não o mandou embora. Quando meu pai entrou no
quarto, ele dormia aconchegado na morta, cujo rosto, devastado pela bebida e
pela angústia, estava singularmente bonito, como eu quase nem lembrava
mais‖ (61). A imagem não deixa de ser uma representação de uma La Pietà
às avessas.
Nos dois contos comparados, ―A pedra da Bruxa‖ e ―Um copo de
lágrimas‖, há representações de envolvimentos maternais totalmente opostos.
No primeiro, tem-se aquela que narra sua maior desventura enquanto mãe,
mas que é atormentada por um sentimento nada altruísta – não ter sido
procurada pelo filho. No segundo, há a representação de uma mãe totalmente
desviante do ideal materno, uma mulher que não servia, ou não estava pronta
para ser mãe. As duas narrativas são exemplos de textos literários que atuam
como um veículo de representação dos ideais falidos pelos quais a mulher foi
por tanto tempo subjugada. Se mãe é para sempre, ela o é independente de ter
sido boa, como conclui o menino no conto ―Um copo de lágrima‖: ―E nunca
nos libertamos de nossa mãe‖ (61).
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172
Conclusão
Se a pergunta embrionária desse estudo era saber se na literatura de
autoria feminina brasileira haveria outras mães como D. Anita, que assumem
sem pudor que não gostam de seus filhos e que há um filho preferido, a
resposta é afirmativa. Existem sim e são muitas. Creio que com esse trabalho
consegui investigar as razões sociais, culturais e, até mesmo, biológicas para
compreender por que essas mães existem. Ao olhar para o texto literário,
mais especificamente as narrativas de curto fôlego, foi possível ver o quanto
os ideais feministas influenciaram na produção brasileira. E o tema da
maternidade parece ter sido uma espécie de termômetro para medir tais
influências, uma vez que repudiar a maternidade era uma das linhas de frente
do movimento.
Se o tema da maternidade foi recusado pelas primeiras feministas, ao
retomá-lo, a mulher agora o faz como forma de marcar realmente a sua
diferença. Com isso, ela pode reivindicar seu lugar de direito ao dar voz a
essa experiência que até então era narrada pelo olhar masculino. A mulher foi
além de falar da maternidade apenas como uma experiência prazerosa e
comum a todas as mulheres. Da mesma forma se percebe que o outro
extremo, narrar a história de mães que abandonam seus filhos também não se
tornou um padrão nos textos de autoria feminina.
O objetivo de uma nova literatura de autoria feminina é narrar a
mulher sob a sua ótica de ver o mundo a sua volta, por essa razão a poética da
maternidade reúne características para retratar esteticamente essa condição
feminina de forma repaginada. A maternidade pode até vir a ser um ideal de
felicidade para algumas mulheres, e isso mostra que sua cultura particular
nem sempre compartilha os ideais universais como um padrão fixo a ser
seguido. Essa liberdade de escolha é que deve ser a marca da mulher
moderna, e não somente substituir os dogmas patriarcais pelos feministas.
São personagens em constante busca pela autorrealização e identidade por
meio de outras experiências que podem incluir, ou não, a experiência da
maternidade.
Essa nova maneira de olhar para a maternidade pode ser também uma
marca exclusivamente feminina. Os textos literários são marcados agora por
uma mulher que tem consciência de que o lar não mais impedirá o seu acesso
ao contexto social. Essa poética da maternidade escrita por mulheres criou
um espaço dentro de um contexto literário maior que possibilitou à mulher
expressar sua sensibilidade sobre o tema, o seu ponto de vista. Ela passou a
ser um sujeito de representação e não teve mais medo de constituir um olhar
da diferença.
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173
Se uma das primeiras iniciativas para se constituir um cânone de
autoria feminina era se distanciar de temas domésticos e exclusivamente
femininos, e aí se revela a opção de silenciar o tema da maternidade, a
evolução do contexto literário e cultural mostrou que a mulher pode sim
abordar tais temas, mas agora ele é uma escolha, e não mais sua única opção.
Como Luiza Lobo afirmou, os textos de autoria feminina permitem
apresentar um ponto de vista que enfatize a experiência vivida, tendo um
sujeito da enunciação consciente de seu papel social.
Uma das grandes conquistas no campo da produção de autoria
feminina foi a mulher poder se ver livre de suas personae, despir máscaras
que antes se faziam tão necessárias. Esse novo olhar para a maternidade
propicia trazer à tona o discurso silenciado, um discurso que permite não
somente o homem, mas também a mulher conhecer a nova mãe. Ao tirar o
―pano‖ que cobria esse discurso, a prñpria mulher pode se identificar com
outras formas de maternidade. Assim sendo, o discurso literário realmente
preenche os vazios, as lacunas da história tanto social quanto literária.
O tema da maternidade, mais do que qualquer outro, permite uma
abordagem literária enfatizada na alteridade do eu em relação a si própria,
uma abordagem que considera o que foi excluído por muito tempo, ou que foi
mostrado pelo olhar pautado nos costumes patriarcais, e que, portanto, não
traziam boas lembranças. Essa temática, de certa forma repaginada,
possibilita um olhar mais compreensivo sobre a mulher.
That woman who not only told a story – a Brazilian Sherazade
ABSTRACT: Short story was configured as a place to talk, a place from
where a woman could be heard and understood, since many women could
show endless female situations waiting that other women could identify
themselves. This was possible with the settled of the modern short story
supported by changes in the literary context and, as a consequence, there
was a considerable increase in female publications. The concern of these
narratives is to show the feelings of their characters, highlighting not only
the beautiful side, but revealing their pains, their impotence in the face of
experienced situations. The inner world has set as a trend very emphatic in
feminine writing. The purpose of this paper is to show the circumstances of
female short story production stressing the theme of motherhood in such
productions. After a historical path about women writing and about short
story genre, there is the analysis of two short stories by Lya Luft which
exemplify how the theme of motherhood enables a new vision now narrated
by the woman herself.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
174
KEYWORDS: Brazilian short story. Women writers. Motherhood.
Luft.
Lya
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
176
Teseu, o labirinto e seu nome
Alcione Corrêa ALVES1
RESUMO: o presente artigo propõe uma interpretação do conto ―La casa de
Astérion‖, integrante da obra El Aleph, de Jorge Luís Borges, com vistas a
evidenciar as reivindicações do nome, e do labirinto como lugar habitado,
enquanto instâncias de construção identitária do protagonista, Astérion. Os
conceitos de Desvio, na formulação conferida pelo filósofo Édouard Glissant
(1997), assim como os conceitos de lugar (GLISSANT, 1996) e glocalidade
(WALTER, 2008), são ora tomados como referenciais teóricos fundamentais
a este trabalho. A interpretação ora proposta, operando um recorte textual que
incide sobre a enunciação de Astérion em suas definições de si e do labirinto,
se assenta no esforço do protagonista para definir o labirinto como casa e,
nesta condição, habitá-lo e preenchê-lo de sentido.
PALAVRAS-CHAVE: Desvio. Lugar. Glocalidade.
À Taís Bopp da Silva
O presente artigo propõe uma interpretação do conto ―La casa de
Astérion‖, presente na obra El Aleph, de Jorge Luís Borges, evidenciando as
reivindicações do nome e do labirinto enquanto instâncias de construção
identitária do protagonista, Astérion. A interpretação ora proposta se assenta
em uma hipótese central: o protagonista construiria seu discurso com vistas a
definir o labirinto como casa e, nesta condição, habitá-lo e preenchê-lo de
sentido. Para tanto, discutir-se-á a contribuição do conceito de Desvio,
conforme a formulação inicial do filósofo Édouard Glissant na obra Le
discours antillais (1981), a fim de verificar a abordagem do papel do nome e
da casa enquanto instâncias de construção identitária aos sujeitos
americanos2. Malgrado o título deste trabalho sugira os mitemas em torno das
1
Professor atualmente lotado no Departamento de Letras da Universidade Federal
do Piauí (UFPI). Teresina, Piauí, Brasil, CEP 64049550. Correio eletrônico:
[email protected]
2
O passo argumentativo que reivindica, em Glissant, a extensão de formações
identitárias caribenhas a formações identitárias americanas encontra uma
formulação mais explícita no primeiro capítulo de Introduction à une poétique du
Divers (1996), obra em que o filósofo martinicano, apresentando as condições de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
177
aventuras de Teseu e, sobretudo, sua luta contra o Minotauro, como eixo
comparativo propriamente dito3, o exercício acerca do conto de Borges
fundamentar-se-á no esforço de Astérion em definir o labirinto não
exatamente como prisão, conforme o projeto arquitetônico de Dédalo, mas
como uma casa àquele que a habita e a preenche de sentido: ―Otra especie
ridícula es que yo, Astérion, soy un prisionero. ¿Repetiré que no hay una
puerta cerrada, añadiré que no hay una cerradura?‖ (BORGES, 2005, p. 85).
O mote à evocação do estatuto de casa se preserva na reflexão do
protagonista, no momento em que busca compreender a relação entre seu
lugar, o labirinto, e Creta, na condição de mundo possível:
(…) también he meditado sobre la casa. Todas las
partes de la casa están muchas veces, cualquier
possibilidade ao conceito de crioulização, constrói sua hipótese do Caribe tomado
como um prefácio às Américas. Com vistas a ampliar a discussão sobre o tema, e
projetando a composição de um corpus literário americano a um Projeto de
Pesquisa sobre o nome e as práticas desviantes nas literaturas americanas, uma das
etapas posteriores de pesquisa prevê a apresentação de um trabalho, em janeiro de
2013, no evento Ciencias, tecnologías y culturas. Diálogo entre las disciplinas del
conocimiento. Mirando al futuro de América Latina y el Caribe: Hacia una
Internacional del Conocimiento, a ser realizado em Santiago do Chile. Na ocasião,
o autor apresentará a comunicação intitulada Meu nome, uma casa-mundo,
propondo uma análise comparada entre o conto de Borges ―La casa de Astérion‖ e
o poema Metaformose, de Paulo Leminski, e com posterior publicação de trabalho
completo nos Anais do evento.
3
O verbete ―Labirinto‖, de Ana Maria Lisboa de Mello, integrante do Dicionário de
figuras e mitos literários das Américas (2007, p. 377), leva a termo o exame dos
mitemas próprios ao mito de Teseu como tertium comparationis entre dois contos e
três poemas de Borges com romances contemporâneos da literatura brasileira,
implicando em uma análise das apropriações literárias do mito grego em solo
americano. Nesta obra coletiva, sua organizadora, Zilá Bernd, advoga a fertilidade
dos processos de apropriação de figuras e mitos literários europeus, africanos,
orientais e pré-colombianos que, uma vez ressignificados nas diferentes literaturas
americanas, ofereceriam prova dos processos de hibridação próprios às formações
culturais nas Américas. A este respeito, cabe sublinhar que este trabalho não
reivindica os mesmos pressupostos fundadores do Dicionário como, por exemplo,
o conceito de mitema a partir de Gilbert Durand (1996), ainda que dialogue
constantemente com seus resultados quando da análise do conto de Borges, e ainda
que, de modo subjacente, aceite as formulações de Gérard Bouchard (2003; 2005) a
seu conceito de mito.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
178
lugar es otro lugar. No hay un aljibe, un patio, un
abrevadero, un pesebre; son catorce [son infinitos]
los pesebres, abrevaderos, patios, aljibes. La casa es
del tamaño del mundo; mejor dicho, es el mundo
(BORGES, 2005, p. 87)
Conforme a formulação de Apolodoro, citada como epígrafe ao conto
de Borges, coube ao arquiteto Dédalo construir um labirinto para aprisionar
Astérion, o filho monstruoso de Minos. Como sacrifício imposto aos
atenienses, resultado da guerra entre Atenas e Creta, em dados períodos
dever-se-ia oferecer sete jovens vítimas para saciar a fome do Minotauro,
arremessadas à própria sorte no interior do labirinto do qual a fuga era,
virtualmente, impossível. Contra tal condição, Teseu se insurge para,
posteriormente, emergir vitorioso em sua batalha contra a besta. Ariadne que,
do lado de fora, sustenta um carretel para que Teseu se guie por ele, permite
ao herói mapear o caminho, a fim de travar luta com o Minotauro, matandoo, e regressar do labirinto rumo a sua consagração ao trono de Atenas. Podese deduzir que Astérion, doravante nominado Minotauro, é monstruoso
porque disforme em sua aparência metade homem, metade touro, e porque
fruto da paixão de Pasífae, esposa de Minos, por um deus metamorfoseado
touro, de modo a saciar seu desejo e punir o rei cretense pelo
descumprimento de um sacrifício.
Tomando o conto de Borges ―La casa de Astérion‖ como um
exercício de apropriação da narrativa grega de Apolodoro enquanto processo
criativo, o presente trabalho construirá uma interpretação do conto de Borges
buscando incidir, precisamente, no papel da significação do próprio nome e
da própria casa, levados a termo no discurso de Astérion, compreendendo-os
como processos de construção identitária do sujeito. Em tal quadro,
sublinhar-se-á em que medida a contribuição do conceito glissantiano de
Desvio, bem como da noção operatória de práticas desviantes (ALVES, 2010;
2011; 2012) permite compreender os processos de construção identitária de
Astérion de modo necessariamente provisório, dizendo respeito a seus modos
de habitar o labirinto que, significado pelo próprio sujeito habitante como
casa, mostrar-se-ia indissociável, e necessário, a seus modos de estar-nomundo4.
4
O artigo ora proposto tem sido concebido no âmbito do Projeto Cadastrado de
Pesquisa ―Teseu, o labirinto e seu nome‖, e teve sua primeira formulação na forma
de uma comunicação oral apresentada no I Encuentro de las Ciencias Humanas y
Tecnológicas para la integración en el Conosur, realizado na cidade de Pelotas, em
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
179
Cumpre destacar que a interpretação ora construída não reivindica a
necessidade da casa de Astérion ao centro de seu estar-no-mundo como um
dado evidente. Antes, situa-a no quadro de uma corrente contemporânea de
pensamento latinoamericano que, embora heterogênea, e de referenciais
teóricos variáveis conforme o campo de conhecimento em questão, traz como
uma de suas premissas a centralidade do lugar e, dentro desta, a
problematização das relações possíveis entre o lugar e um contexto mais
amplo – por exemplo, uma relação entre o local e o global, empenhada em
um esforço de não recair em generalizações quanto a nenhum dos dois
termos. Tais termos se aproximam significativamente da ideia norteadora das
epistemologias do sul que, reivindicadas e discutidas por pensadores
contemporâneos enquanto alternativa contrahegemônica, têm continuamente
questionado o lugar da(s) teoria(s) nas Américas, incluindo-se o próprio lugar
do pós-moderno e do pós-colonial que, enquanto discursos de pretensões
macro, trariam em si o germe das generalizações anteriormente citadas, a ser
criticamente evitadas:
Proponho, ao contrário, como orientação
epistemológica, política e cultural, que nos
desfamiliarizemos com o Norte imperial e que
aprendamos com o Sul. Mas advirto que o Sul é, ele
próprio, um produto do império e, por isso, a
aprendizagem com o Sul exige igualmente a
desfamiliarização em relação ao Sul imperial, ou
seja, em relação a tudo o que no Sul é o resultado
da relação colonial capitalista. Assim, só se aprende
2011, com o título ―Práticas desviantes na literatura francñfona antilhana:
hipñteses‖. O passo seguinte consistiu na apresentação de comunicação oral nas II
Jornadas Internacionales: Fronteras, Ciudadanía y Conformación de Espacios en
el Cono Sur. Una mirada desde las Ciencias Humanas y Sociales, realizadas em
2012 na cidade de Río Cuarto (Província de Córdoba, Argentina), intitulada
―Teseo, el laberinto y su nombre‖, com posterior submissão de trabalho completo a
ser publicado nos Anais do evento. Atualmente, as discussões resultantes destes
dois trabalhos têm sido prosseguidas na proposição da disciplina optativa ―LET
303580 – Teoria da Literatura III Monográfico‖, ministrada aos alunos da
Licenciatura em Letras da UFPI no primeiro período de 2012, a fim de
proporcionar uma atividade de ensino que resulte em uma experiência de
divulgação e discussão de resultados do Projeto de Pesquisa. Partindo dos avanços
subseqüentes ao trabalho submetido a estes dois eventos, bem como à referida
disciplina, propõe-se o presente artigo.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
180
com o Sul na medida em que se concebe este como
resistência à dominação do Norte e se busca nele o
que não foi totalmente desfigurado ou destruído por
essa dominação. Por outras palavras, só se aprende
com o Sul na medida em que se contribui para a sua
eliminação enquanto produto do império
(SANTOS, 2006, p 33)
Deste modo, subjaz à presente interpretação do conto de Borges, cuja
estratégia metodológica concentra-se no discurso de Astérion compreendido
como reivindicação da legitimidade de suas construções identitárias, um
conjunto de referenciais teñricos prezando pela definição de um ―lugar
asteriano‖ do qual emana uma fala, pressupondo a possibilidade de analisar
os processos de construções identitárias do sujeito a partir de, e para além de
sua fala5. Os limites próprios ao discurso de Astérion, a ser identificados por
índices de leitura do conto de Borges, evidenciariam sintomas de um sujeito a
se debater ante uma fala ressentida que, camisa-de-força de sua
Weltanschauung, apresentar-se-ia de modo desesperador como única
viabilidade a sua fala?6 O desafio posto à presente interpretação do conto de
5
Ao se situar na perspectiva de uma possível teoria literária nas (e às) Américas,
seria possível vislumbrar um leque de caminhos teóricos frutíferos à análise ora
proposta à luz dos conceitos de lugar em Édouard Glissant e em Walter Mignolo:
por exemplo, a formulação de Fernando Ortiz ao conceito de transculturação, bem
como sua releitura desde Angel Rama, forneceria subsídios significativos à
hipótese de um Teseu transculturado que, embora aparentemente vencedor da
suposta batalha com o Minotauro, não lograria êxito em sua aniquilação porque a
espada não pode aniquilar o relato, nem sangrá-lo. Limitando-se a apenas mais um
exemplo, a construção de uma interpretação do conto à luz do conceito de
antropofagia permitiria compreender tanto como Astérion vê Creta (conforme o
quadro de Watts, na base das referências de Borges à construção do conto) quanto
como se dá sua compreensão da relação travada com aqueles arremessados ao
labirinto, danados sob a ótica de quem está do lado de fora e que, desde fora, goza
de legitimidade para condenar, arremessando (dado não evidente, e não
questionado): partir-se-ia da hipótese de que um Astérion antropofágico não se
perceberia selvagem, de modo a desenvolver uma conclusão parcial de que, tal
como seu nome e sua condenação por Minos, a atribuição de uma essência
selvagem se mostraria, ela também, exógena, à revelia do sujeito nomeado.
6
Uma leitura de Cultura e imperialismo talvez se colocasse em acordo não
exatamente à hipótese de tais limites, mas ao fato de que as construções identitárias
sob tais condições seriam acometidas do que Edward Said denomina ―tragédia
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
181
Borges se apresenta, qual equação identitária a ser resolvida por Astérion
enquanto sujeito-fora (Creta ainda lhe é o Dentro?), nos termos de uma fala
labiríntica que, se se reivindica casa em vez de prisão (ao que a palavra casa
aparece três vezes no primeiro parágrafo do conto), não pode obliterar o
caráter exógeno das definições de si, cujo nome fora roubado e substituído;
nem de seu lugar habitado e significado, definido pelos cretenses como
prisão; quiçá das narrativas de si pois, de fato, quem narra o conto?
Acompanhando desde o princípio a argumentação de Astérion, ora
tomado como narrador, se supõe que, ainda que Dédalo haja construído o
labirinto, Astérion se faz sujeito austiniano ao construir, a partir do que fora
planejado como prisão, sua própria habitação, apropriando-se ao preenche-la
de sentido. Ao engenho do arquiteto que executa sua obra ordenado pelo rei,
eis um sujeito a mudar o estatuto do labirinto que, de prisão designada por
um código jurídico externo, passaria a casa, construída por e para aquele que
a habita e a preenche de sentidos (ALVES, 2011). Para Astérion, não faz
sentido denominar prisão a uma construção sem portas. Dadas tais condições,
cabe a pergunta do narrador sobre o que autoriza seus interlocutores a pensar
que esteja preso onde não há portas: ―¿Repetiré que no hay una puerta
cerrada, añadiré que no hay una cerradura?‖ (BORGES, 2005, p. 85).
A hipótese de leitura do conto de Borges encontra parte de seu
fundamento no primeiro parágrafo, com as três ocorrências do termo casa,
designando o labirinto. Astérion apresenta-se sujeito enunciador a partir de
sua casa que, dada a ausência de portas, se encontra aberta àqueles que nela
desejem entrar, ainda que ―es verdad que no salgo de mi casa‖ (BORGES,
2005, p. 85). Mira-se aqui o personagem do quadro de Watts, na dupla
dimensão de contemplação à cidade-mundo e de espera àqueles que queiram
(que possam) entrar à casa. O argumento deste personagem depende de duas
verdades, não excludentes: não sai de sua casa e suas portas estão
permanentemente abertas. O uso da locução conjuntiva pero también es
parcial da resistência‖: ela precisa trabalhar a um certo grau para recuperar formas
já estabelecidas ou pelo menos influenciadas ou permeadas pela cultura do
império‖ (SAID, 1995, p. 267). Ciente de que a parcialidade atribuída à resistência
constitui não uma limitação, mas uma pedra de toque seja ao surgimento de
literaturas autônomas e renovadas nas Américas, seja ao estabelecimento de
ferramentas teóricas que propiciam aos pesquisadores a análise destas literaturas e
de sua relação com a literatura considerada canônica ocidental, é fundamental, em
um primeiro momento, evidenciar a legitimidade e originalidade deste discurso que
emerge de dentro do labirinto, de e sobre ele, a fim de estabelecer relação com
quem habita fora dele.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
182
verdad que assinala a preocupação de Astérion, ora narrador, em mostrar que
as verdades não são excludentes: isso oferece indícios de uma lógica não
homóloga ao princípio de contradição. Malgrado hoje se possa vislumbrar
diferentes sistemas lógicos coexistentes, e em concorrência à posição de
paradigma, pode-se supor a hegemonia de uma lógica silogística, regida pelos
princípios de não-contradição e do terceiro excluído, como base inconteste
ou, ao menos, majoritária no pensamento cretense (e portanto, grego) à época
do relato mítico. Eis um homem touro eivado de motivos para ser excluído da
cidade: além de filho da esposa do rei sem ser filho do rei; e além de haver
operado a prática desviante sobre a prisão que se lhe impingiu; seu
pensamento opera em uma lógica distinta a de seus algozes que, para o
devido tratamento da diferença, suprimiram-na.
Uma análise das condições sob as quais Minos, com a aquiescência
dos cidadãos cretenses, condena Astérion ao labirinto como punição
exemplar a sua diferença, seguida da ressignificação e apropriação do
labirinto da parte por Astérion, a ponto de condenar à morte todo aquele que
adentrá-lo pela impossibilidade de não se perder, ofereceria um exemplo
representativo do modelo panóptico apresentado por Michel Foucault no
terceiro capítulo de Surveiller et punir: no que concerne ao mecanismo de
dominação, tudo está previsto no sistema, exceto a possibilidade de que
aqueles que estão subjugados reconheçam e se apropriem das regras e
códigos do sistema. Convém não esquecer que a saída triunfal de Teseu só se
torna possível mediante o recurso ao mapa, desde a posição externa de
Ariadne. Da prisão sem portas construída por Dédalo, somente Astérion tem
a chave: ―Por lo demás, algun atardecer he pisado la calle; si antes de la
noche volví, lo hice por el temor que me infundieron las caras de la plebe,
caras descoloridas y aplanadas, como la mano abierta‖ (BORGES, 2005, p.
85). Como possibilidade aterradora aos cidadãos cretenses, aquele que
deveria permanecer prisioneiro tem a chave do que não têm portas; Astérion
pode entrar a sair da cidade, sem que a recíproca seja verdadeira. A cidade
não é labiríntica; a cidade não tem quatorze (infinitos) desdobramentos como
o labirinto. Talvez por isso, Astérion não se satisfizera com o simples uso de
pero a fim de propor uma relação disjuntiva: neste caso, o labirinto consistiria
de fato em uma prisão exatamente porque ele nunca sairia de casa, devido ao
trancamento das portas. A porosidade do labirinto, em sua condição de casa
sem portas, permite trocas culturais e, em decorrência destas, processos
identitários entre o sujeito e a alteridade pois o labirinto, enquanto
encruzilhada (WALTER, 2008), perfaz o lugar de entrecruzamento, de
trocas, de processos nos quais Astérion se insere saindo ou permanecendo no
labirinto e, mais radicalmente, à revelia de um projeto arquitetônico que
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
183
visava, em sua origem, ao isolamento do suposto prisioneiro. Se as portas
infinitas aprisionariam a criatura monstruosa pelo excesso de saídas
absolutamente iguais, promovem o efeito contrário de permitir a porosidade
entre Astérion e os sujeitos fora do labirinto, conforme suas vontades:
Es verdad que no salgo de mi casa, pero también es
verdad que sus puertas (cuyo número es infinito)7
están abiertas día y noche a los hombres y también
a los animales. Que entre el que quiera. (…)
Asimismo hallará una casa como no hay otra en la
faz de la tierra (BORGES, 2005, p. 87)
Contudo, instaura-se um conflito na definição do lugar de Astérion
quando se percebe a necessidade de construir o labirinto externo à cidade:
graças ao muro em torno de Creta, toda a grande porção de mundo além-deCreta resume-se a um lado da cidade, o de fora. Astérion, porque monstruoso,
não pertence à condição humana da qual partilham o conjunto de habitantes
cretenses, ao que se lhe deve estabelecer um lugar específico, externo aos
muros da cidade8.
Desde a passagem do Livro III da República (376e – 401d), constatase um modo clássico de lidar com a diferença, tratando-a como algo a ser
suprimido (por execução, por catequese, por aculturação). Afim a este
7
A passagem em questão traz a seguinte nota: ―El original dice catorce, pero sobran
motivos para inferir que, en boca de Astérion, ese adjetivo numeral vale por
infinitos‖.
8
Muros têm a propriedade de definir essencialmente, estabelecendo uma dupla
dimensão do que está dentro e do que está fora, melhor dizendo, do que é e do que
não é. O muro divide o mundo em duas grandes partes constitutivas: o dentro, e o
resto. Supondo por um momento que a cidade é o mundo, torna-se possível supor,
como conseqüência, que o resto do mundo traz em si, como deficiência congênita,
o fato de não ser mundo: the West and the rest, conforme a expressão de Stuart
Hall. Não por acaso, o termo resto demonstra uma ambiguidade análoga em
diferentes línguas modernas (inglês, francês, português, espanhol), denotando o
excedente e conotando o dispensável, a sobra, o detrito. De modo agudo, o muro
define em sua natureza o que não pertence à cidade. Para além de seus domínios,
constroem-se o cemitério, o asilo, o manicômio. Para além de seus domínios,
constroem-se presídios e conjuntos habitacionais definidos arquitetonicamente
como lugar da população de baixa renda. Para além de seus domínios, negros
marrons construíram quilombos espalhados pelas Américas, entre os séculos XVII
e XIX.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
184
conceito subjacente de diferença, a metafísica da presença, na formulação de
Jonathan Culler (1997), intenta demonstrar precisamente o fundamento
filosófico responsável pela definição da diferença não apenas como o que
define em relação ao ser (daí a diferença, definida essencialmente como o que
não é) mas como ausência ou insuficiência de ser. Sobre a diferença como
conceito definidor de Astérion, é preciso ressaltar que Teseu jamais cogita a
possibilidade do Minotauro dizer algo sobre sua própria condição humana em
uma voz, quando enunciada, capaz de questionar e subverter o lugar
estabelecido por Minos. Teseu jamais supõe que este do qual não sabe o
nome seja capaz de, através do relato sobre si próprio, efetuar um trabalho
que, desde a primeira palavra, desde o primeiro tropo, transformaria o
labirinto em um lugar praticado reorganizando, destarte, o jogo das relações
entre o labirinto e Creta: ―-¿ Lo creerás, Ariadna? – dijo Teseo -. El
minotauro apenas se defendiñ‖ (BORGES, 2005, p. 88). Não se trata de uma
coincidência o fato de que muitos leitores de Borges, antes deste conto
específico, desconheciam o verdadeiro nome do minotauro. Astérion, como
quaisquer dentre nós, não necessita rememorar o próprio nome em seu
discurso: sabemo-lo através do título do conto, da epígrafe de Apolodoro em
seu papel de assinalar o nome com o qual o sujeito percebe e nomeia a si
mesmo, bem como da passagem em que descreve seu jogo preferido, ―es de
el outro Astérion‖:
Pero de tantos juegos el que prefiero es el de otro
Astérion. Finjo que viene a visitarme y que yo le
muestro la casa. Con grandes reverencias le digo:
―Ahora volvemos a lo encrucijada anterior‖ o
―Ahora desembocamos en otro patio‖ o ―Bien decía
yo que te gustaría la canaleta‖ o ―Ahora verás una
cisterna que se llenó de arena‖ o ―Ya verás como el
sótano se bifurca‖. As veces me equivoco y nos
reímos buenamente los dos (p. 87)
A necessidade de nomear-se três vezes ao longo da narrativa pode,
contudo, também ser interpretada com impossibilidade de dizer-se a si
próprio, da parte de um sujeito condenado a um nome exógeno, amiúde pleno
de sentidos apenas no horizonte cultural daquele que nomeia. A nomeação
exógena, e a violência dela decorrente, fornecem um sintoma nas últimas
palavras do conto, nas quais se percebe um Teseu vitorioso em seu intento,
descrevendo a Ariadna uma besta recentemente morta, ou seja, ―el minotauro
apenas se defendió‖. Há dois indícios textuais de que Teseu termina
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185
vitorioso, na forma de duas violências: a espada na qual ―ya no quedaba ni un
vestigio de sangre‖, representando o aniquilamento físico de Astérion; e o
apagamento do nome daquele que morrera, condenado a permanecer
registrado na história como ―el minotauro‖. Aniquila-se não apenas o corpo e,
com ele, a existência física, mas o nome e, com ele, todas as memórias dela
decorrentes. É possível dizer que o recurso à memória para nomear a si
próprio representa uma prática desviante porque busca respostas provisórias
(a memória, uma vez inventada, traz em si o germe da reinvenção) a uma
dominação não evidente (Quem nomeia? quem outorga o direito de nomear?)
ante a qual é preciso buscar os fundamentos de resistência em outro lugar.
Em se tratando de sua casa, é pertinente supor que Astérion, como
qualquer pessoa, jamais se perde dentro dela; contudo, em seu depoimento,
convém perceber o quanto considera necessário observar, reiteradamente, que
não há portas ou fechaduras em sua morada, bem como o fato de que se trata
de uma casa e não de uma prisão. Nessa operação de reiterar, reexplicando as
razões pelas quais não é um prisioneiro, se instaura a prática de um lugar
anteriormente imputado por um outro, mediante um ato de violência. A
despeito da prática desviante de tomar para si a definição do nome e da casa,
constata-se um limite fulcral no discurso de Astérion, permanecendo definido
e condicionado pela apreciação de um Outro que o domina excluindo e
aprisionando, um Outro que ressurge sorrateiro, soberbo, na última palavra
própria ao vencedor da batalha. A análise do conto de Borges permite
perceber uma troca cultural entre dois interlocutores que partilhariam de uma
mesma língua; contudo, seus respectivos usos dessa língua gozam,
paradoxalmente,
de
estatutos
distintos,
porque
estabelecidos
hierarquicamente e condicionados não a possíveis níveis de proficiência mas
ao lugar de onde se enuncia nessa mesma língua. Eis porque, ao final, Teseu
declara admirado a Ariadna que este apenas se defendera, o que sinaliza ao
leitor os ouvidos moucos de Teseu a todo discurso anterior de Astérion, em
um relato encerrado por uma linha em branco (talvez a navalha da espada de
bronze de Teseu) e o discurso final de Teseu a Ariadna, relatando
laconicamente toda sua ignorância ao discurso de Astérion ora proferido na
mesma língua. Teseu, no romance homônimo de André Gide (1947) que
consiste, exatamente, em seu compte rendu, constroi uma narrativa
igualmente mouca, ainda que seu capítulo final pretenda, em certa medida,
compreender o Minotauro, a compreensão tomada, aqui, em seu sentido
hermenêutico. Não obstante, em vez de uma retratação, percebe-se em sua
expiação o limite de seu esforço de compreender tanto a esposa que, enfim,
não era adúltera, quanto o ser híbrido que, ao fim e ao cabo, não era um
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
186
monstro9. Nos termos da reflexão ora em curso, é possível sugerir que, cinco
anos depois de André Gide, Julio Cortázar propõe em Los reyes uma fórmula
mais efetiva no momento em que o minotauro passa, efetivamente, a ter voz,
não permitindo a Teseu outra alternativa salvo o assassinato: ao travar a
batalha contar aquele que não deveria ter voz, só resta ao heroi matá-lo
calando-o.
A prática desviante de Astérion se evidencia quando aquele que
certamente tem um nome, um discurso e sabe como organizar sua própria
casa, reivindica que prescinde da intervenção de Teseu ou de quaisquer
cidadãos cretenses. Contudo, em momento algum, durante sua breve entrada
no labirinto (entrada de uma linha em branco e quatro linhas textuais), Teseu
compreende Astérion, ser derradeiramente renomeado por quem o assassina.
Em uma outra perspectiva, a homologia reivindicada por Astérion
entre a casa e o mundo pode ser, à guisa de conclusão, nutrida de um sentido
positivo, no qual o deslocamento conferiria ao ser labiríntico, provido de
uma língua labiríntica e nutrido por uma cultura labiríntica, a condição de
estar em casa em qualquer lugar uma vez que a casa é o mundo – marca
ressaltada pela expressão mejor dicho, a ratificar a primeira ideia de que a
casa é ―do tamanho do mundo‖. À medida que este habita de linguagem e de
sentido sua ilha-casa, torna-se possível examinar as práticas desviantes no
conto de Borges enquanto movimentos identitários, sob a forma de processos
de mobilidade cultural constantemente negociáveis e necessariamente
provisórios.
THESEUS, THE LABYRINTH AND HIS (ITS) NAME
ABRSTRACT: The present article proposes an interpretation of "La casa de
Asterion", in Jorge Luis Borges´ work El Aleph, to highlight the claims of the
name, and the labyrinth (as a place inhabited) while instances of identity
construction of the protagonist, Asterion. The terms Detour, in the
formulation given by philosopher Édouard Glissant (1997), as well as the
concepts of place (Glissant, 1996) and glocal (WALTER, 2008), are now
taken as theoretical fundamental to this article. The interpretation proposed,
operating a clipping text that focuses on the enunciation of Asterion in their
9
Não é negligenciável o fato de que, das leituras posteriores do contexto grego,
apreendera-se a definição de hybris como impureza, defeito congênito a ser
suprimido.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
187
definitions of himself and the labyrinth, is based on the protagonist's effort to
understand it like home and, in this condition, inhabit it and fill it sens.
Keywords: Detour. Place. Glocal.
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GIDE, André. Thésée. Paris: Gallimard, 2005 (Collection Folio, 334)
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
188
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WALTER, Roland. Mobilidade cultural: o (não-)lugar na encruzilhada
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ABECAN, nº8, p.37-56, 2008.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
189
A outra faceta do eu: o fantástico e o duplo no
conto ―A insolação‖, de Horacio Quiroga
Leticia Baron Bortoluzzi1
João Claudio Arendt2
RESUMO: Este artigo, sustentado no referencial de Nubia Hanciau (2005),
Eduardo Coutinho (2003), Davi Arrigucci (1998) e Cecil Zinani (2010),
analisa o papel desempenhado pela literatura latino-americana no que se
refere ao tratamento de temáticas ligadas ao imaginário, as suas relações com
o real e o ilusório e à posição privilegiada outorgada ao fantástico. Tem-se
como objetivo examinar de que forma concretiza-se o duplo, amparado na
teorização de Clément Rosset (1998) e Ana Melo (2000), no conto ―A
insolação‖, de Horacio Quiroga, em um cenário repleto de elementos
insólitos, em que o leitor é convidado a mergulhar nos mistérios e
profundezas que envolvem os desdobramentos do ―eu‖. Dessa forma,
percebe-se que o duplo do protagonista, o fazendeiro Mister Jones, aparece
na figura da Morte, e o encontro entre ambos gera a colisão e a extinção da
existência e, por consequência, do conflito gerado entre as duas facetas
pertencentes ao mesmo ser.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura latino-americana. Horacio Quiroga. A
insolação. Fantástico. Duplo.
A literatura latino-americana e o papel desempenhado por Horacio
Quiroga
Durante um lapso temporal significativo, a literatura latinoamericana, mesmo com obras importantes, não era devidamente reconhecida
pela crítica e pelo público leigo. Situá-la dentro do panorama literário
1
Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade pela UCS (Universidade de Caxias do
Sul), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, CEP: 95010-550. E-mail:
[email protected].
2
Doutor em Linguística e Letras pela PUC/RS (Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul) e Docente no Doutorado em Letras, no Mestrado em Letras e
no curso de Letras da UCS (Universidade de Caxias do Sul), Caxias do Sul, Rio
Grande do Sul, CEP: 95010-550. E-mail: [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
190
mundial constituía uma dificuldade, visto que, no decorrer de uma época,
esteve relegada à margem do sistema literário, até assumir a posição,
classificada atualmente, de entre-lugar, termo elaborado por Silviano
Santiago e, mais tarde, estudado por Nubia Hanciau. A expressão serve para
designar o meio-termo capaz de congregar dois extremos e o sentimento de
permanente modificação cultural.
É um ponto de encontro de diferentes culturas, que, a partir do
estabelecimento de seus contatos, pela fusão e agregação de elementos, dá
origem a uma terceira configuração, que assume uma roupagem distinta das
duas primeiras, por ser dotada de caracteres peculiares. Justamente por isso,
as obras latino-americanas adquirem traços próprios, distanciando-se da
matriz europeia. Nessa senda, cumpre trazer a noção destacada por Hanciau
(2005, p. 127), de descentramento, presente na essência do conceito:
(...) o que para Régine Robin representa o hors-lieu,
são algumas, entre as muitas variantes para
denominar, nesta virada de século, as ―zonas‖
criadas pelos descentramentos, quando da
debilitação dos esquemas cristalizados de unidade,
pureza e autenticidade, que vêm testemunhar a
heterogeneidade das culturas nacionais no contexto
das Américas e deslocar a única referência,
atribuída à cultura europeia.
Assim, o entre-lugar constitui um grande avanço para essa literatura,
por fornecer abertura ao hibridismo e pelo distanciamento dos padrões
provenientes de sua fonte, além do nascimento de muitos escritores que
deslocaram a sua atenção para temáticas inexploradas e totalmente distintas
do que se havia feito. No entanto, juntamente com isso, surgiram algumas
dificuldades na divulgação do que se produz, seja pela precariedade dos
meios de comunicação, de acordo com Arrigucci Jr. (1998), seja em virtude
da ausência de uma crítica bem consolidada.
Apesar desses percalços, vários autores conseguiram destacar-se no
cenário mundial, como Borges e Cortázar. Com a diversidade e a riqueza de
temas explorados pelos latino-americanos, a literatura passou a receber outro
tipo de valorização e um olhar distinto. Além disso, os escritores trouxeram
contribuições significativas e ressignificaram os modelos literários vigentes
até o momento, com a contundente inserção do fantástico e com o
questionamento de toda a essência literária, como declara Arrigucci Jr. (1998,
p. 118):
Borges e Cortázar podem ser vistos dentro de uma
longa corrente de literatura fantástica no Rio da
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
191
Prata, desde Holmberg, no século passado, até
Macedonio Fernández e Adolfo Bioy Casares,
amigos pessoais de Borges. Corrente essa que
inclui outros contistas importantes como Leopoldo
Lugones, Horácio Quiroga, José Bianco, etc.
Contudo, o mais importante é verificar como
Borges e Cortázar, propondo a oscilação ambígua
entre o real e o irreal, tema central de toda a
literatura fantástica, acabam tematizando a própria
essência da literatura (...)
O real e o irreal agem como vocábulos chave ao se desvendar as
obras dos autores citados, construindo uma identidade própria. Dessa forma,
muitas vezes, nas análises realizadas em trabalhos acadêmicos, pensa-se em
como seria possível caracterizar a literatura latino-americana, problema
levantado por Zinani (2010, p. 79), que questiona o que seria essa América e
o que compreenderia o seu aspecto ―latino‖. A estudiosa ressalta que a
carência de respostas precisas apenas denota o quanto a literatura latinoamericana tem um conceito ambíguo e com limitações, considerando a sua
permanente mutação, que impera nos mais variados contextos, dentre eles, o
acadêmico.
Porém, em razão de sua complexidade e do risco de cair no
empobrecimento, visa-se somente conceder ênfase e analisar alguns dos
componentes mais expressivos que a compõem. Dentro disso, não se pode
olvidar que os temas ligados à magia, ao misticismo, ao mistério, ao
inimaginável, ao surpreendente, ao sonho, ao sobrenatural se encontram com
recorrência e ocupam um papel especial ao se examinarem os romances, os
contos, os poemas etc. Talvez essa seja uma das principais razões pelas quais
exerça tanto fascínio em seu público, visto que o ser humano, diante das
dificuldades e problemas do cotidiano, necessita ―construir‖ universos
paralelos em sua imaginação.
O escapismo e a fuga permitem a projeção de outros mundos,
estimulam a criatividade e tocam em elementos integrantes do imaginário
social. Dessa maneira, um dos componentes mais expressivos dos escritores
latino-americanos diz respeito à destreza na utilização dos instrumentos que
abrem e permitem o aparecimento de outros contextos e atmosferas, os quais
guardam distância do real, dando surgimento ao fantástico.
Este se encontra no rol das temáticas preferidas e mais abordadas
pelos autores latino-americanos e caracteriza-se como um dos constituintes
mais instigantes e envolventes, por possibilitar àquele que lê a imersão em
um plano ficcional profundo, capaz de ser transportado para mundos incríveis
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
192
e fascinantes. Isso ocorre, em grande medida, devido à modificação de
perspectiva dos autores latino-americanos e à forma de trabalhar com a
literatura, como destaca Coutinho (2003, p. 67):
A mudança de foco verificada no seio dos estudos
latino-americanos, que passaram da preocupação
com a construção de uma literatura nacional para
respaldar a identidade de um país para a
preocupação com a representação da diversidade ou
heterogeneidade desses países, é talvez o traço mais
relevante desses estudos nas duas últimas décadas.
Com essa mudança, a literatura proveniente desses países teve
ganhos expressivos, com o aparecimento de grandes nomes no palco literário
mundial. Dentre os destaques que têm adquirido força, figura o escritor
uruguaio Horacio Quiroga. Nascido em 1878, possui vasta produção,
composta por poemas, crítica literária, teatro, ensaios e contos, dos quais
alguns dos mais famosos estão reunidos na obra Contos de amor, de loucura
e de morte (2010).
Percebe-se que o título é bastante significativo, considerando que a
vida de Quiroga foi marcada por eventos trágicos, e a morte atuou como
constante em sua jornada. Perdeu o pai, quando criança, e posteriormente, seu
padrasto suicidou-se. Em sua juventude, matou o melhor amigo por acidente,
depois, adveio o falecimento de sua primeira esposa, que ingeriu veneno, e,
por fim, o próprio Quiroga teve câncer de próstata e, diante da frustração,
também, recorreu ao veneno.
Acredita-se que a escolha do título de sua obra consegue expressar
justamente a essência de seus contos, até porque a sua produção ocorreu
durante o período em que a sua primeira esposa faleceu, pois se permeiam de
perplexidade, assombro, horror, sentimentos fortes e avassaladores que
envolvem com grande intensidade. A narração se faz com tanta qualidade,
que as figuras descritas tomam forma e parecem situar-se diante do leitor,
como a morte, ilustrada no conto ―A insolação‖. Abordá-la como uma das
temáticas principais revela-se um encontro entre o eu escritor e o eu que
vivenciou os fatos na vida real.
Como já mencionado, as obras escritas pelo contista uruguaio
revestem-se pelo anunciado no título: amor, loucura e morte. Os assuntos
explorados provêm de diferentes vertentes, figurando o fantástico
(característica que o projeta fortemente dentro da literatura latino-americana),
a morte e a tragédia como destaques, elementos que aparecem com
profundidade no conto ―A insolação‖.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
193
O fantástico: sonho ou realidade?
Desde os primórdios do pensamento filosófico, busca-se conceituar o
real, elemento gerador de diversas discussões. Muitas foram as tentativas e
poucas foram as certezas na consolidação de uma definição. Para a presente
análise, o que se constitui como verdadeiramente relevante diz respeito à
ideia envolta em torno da noção de fantástico. De acordo com Rodrigues
(1988), o fantástico, em sentido amplo, é aquele que guarda afastamento com
o realismo estrito.
Cabe ressaltar que tal espécie de narrativa, além de ser bastante
antiga, apresenta-se entre as prediletas dos autores latino-americanos,
conforme já mencionado. Com sua atmosfera irreal, captura autores e
leitores, principalmente pelo fato de o elo entre os motivos da narrativa ser
mágico e exibir sua máquina ficcional, diferentemente das obras realistas.
Consoante Rodrigues (1988), o nascimento do fantástico ocorreu
com a refutação, feita pelo Século das Luzes, do pensamento teológico
medieval e de toda a metafísica, desvinculando as correntes de pensamento
dos pressupostos religiosos. Em razão da insuficiência da racionalidade para
explicar o que cada ser humano tem como mais singular, o fantástico surgiu e
desenvolveu todo o seu sistema de organização.
Nele o sobrenatural alcança destaque especial, no entanto, totalmente
distanciado dos componentes provenientes da ordem religiosa, como destaca
Rodrigues (1988, p. 27-28):
O imaginário transposto para a literatura chama a
atenção para os elementos inquietantes e
inexplicáveis ao nível de uma lógica racional. É
importante observar que na literatura fantástica
(séculos XVIII e XIX) o sobrenatural é de natureza
humana, nunca teológica. O Diabo, que passa a ser
tema constante da literatura, é laicizado, a
contaminação da realidade pelo sonho engendra
novas histórias, existências do duplo, e mais: o
magnetismo, o hipnotismo são usados para explicar
experiências, a viagem no tempo (o salto no
tempo), a catalepsia, a volta dos mortos, as
desordens mentais, as perversões, etc. Todos são
temas antropocêntricos.
O sobrenatural exerce papel fundamental na narrativa fantástica, em
virtude do efeito desencadeado no leitor, pois, como assevera Todorov
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
194
(1979), para que uma obra assuma o caráter de fantástica, ela deve gerar
efeito de incerteza e sentimento de hesitação, quando o leitor se defronta com
um evento dessa natureza. Ressalta-se que é necessária a instauração e
constância da sensação de incerteza, haja vista que, se o sobrenatural recebe
uma teorização racional, migra para o estranho, e se a aceitação dos fatos fazse sem questionamentos, adentra-se no maravilhoso. Como se pode observar:
Somos assim conduzidos ao âmago do fantástico.
Num mundo que é bem o nosso, tal qual o
conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros,
produz-se um acontecimento que não pode ser
explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele
que vive o acontecimento deve optar por uma das
soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos
sentidos, um produto da imaginação, e nesse caso
as leis do mundo continuam a ser o que são. Ou
então esse acontecimento se verificou realmente, é
parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é
regida por leis desconhecidas para nós. (...) O
fantástico é a hesitação experimentada por um ser
que só conhece as leis naturais, face a uma
acontecimento aparentemente sobrenatural. O
conceito de fantástico se define pois com relação
aos de real e de imaginário (...) (TODOROV, 2010,
p. 31)
Com isso, percebe-se que os limites entre o fantástico, o estranho e o
maravilhoso caracterizam-se por serem muito tênues. O fantástico
permanece, essencialmente, no plano da dúvida, visto que é uma tarefa
complexa determinar até que ponto o vivido constitui uma experiência real ou
até que ponto trata-se de uma experiência onírica e, na maioria das
circunstâncias, caracteriza-se como um questionamento que paira no ar e fica
sem resposta. Esse se configura como um dos aspectos mais interessantes que
integra esse tipo de narrativa, ou seja, a pluralidade de possibilidades que fica
sem resposta.
Para que se possa afirmar a existência do fantástico, esse precisa estar
atrelado a três condições essenciais, formuladas por Todorov (1979), quais
sejam: 1) a dúvida não pode ser respondida, considerando que a essência do
fantástico reside justamente na permanência da ambiguidade; 2) a hesitação
que é provocada no leitor e, igualmente, na personagem; e 3) exige-se que o
leitor tome uma atitude com relação ao texto.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
195
Desse modo, a concretização do fantástico depende da atuação
concomitante das três características enunciadas, sendo estas possibilitadas
pelo processo imaginativo, um dos maiores instrumentos de transgressão do
real, que não possui fronteiras na criação de novas realidades, mas tem
riqueza na composição de seus mundos ficcionais.
Acredita-se que um dos vocábulos elementares para a compreensão
da narrativa fantástica é a transgressão, pois os paradigmas estabelecidos no
universo real ruem completamente e instaura-se um novo percurso e uma
nova jornada pelo desconhecido. As leis e explicações adotadas não
conseguem mais dar conta dos fenômenos, considerados sobrenaturais, e
descortina-se, diante do leitor, um novo contexto, completamente distante
daquele a que ele estava habituado.
Dessa maneira, outra característica motivada pelo fantástico refere-se
à sensação de desestabilização e de desconforto provocada pela obra, pois as
certezas consolidadas tornam-se elementos incertos. Tudo aquilo que se
compreendia até o presente instante, simplesmente não se compreende mais,
a atmosfera desencadeada pelo fantástico impõe outra ordem de
funcionamento, com outra organização e outros parâmetros, ou seja, a
transgressão do real impõe suas próprias regras de lógica interna, bem como a
jornada para descobrir tais preceitos.
No conto de Quiroga, ―A insolação‖, tem-se a presença dos
elementos fantásticos. O fazendeiro, Mister Jones, cercado por seus cachorros
e empregados, padece de insolação, fato que poderia ser considerado
―natural‖, sem nenhum tipo de violação das leis, a não ser por alguns
caracteres fundamentais. Antes de morrer, a morte aparece com a forma dos
personagens que pretende buscar, anunciando o mau agouro, tudo isso se
desenvolvendo num meio em que os cachorros dialogam, possuem
sentimentos humanos, característica manifestada especialmente no momento
em que expressam a lamentação diante da ameaça de morte do dono:
Os cães, então, sentiram mais próxima a mudança
de dono e, sozinhos, ao pé da casa adormecida,
começaram a chorar. Choravam em coro,
despejando, como que mastiga seus soluços
convulsivos e secos em uivos de desolação, que a
voz caçadora de Prince sustentava, enquanto os
outros retomavam o soluçar. O filhote só conseguia
latir. (QUIROGA, 2010, p. 83)
Caso o conto não colocasse os cães na condição de animais, poderse-ia perfeitamente vislumbrá-los enquanto seres humanos, em virtude de sua
percepção e da articulação da palavra, haja vista que os únicos diálogos
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
196
apresentados têm os cachorros como emissores e receptores. A sua
sensibilidade atinge um grau expressivo, levando em consideração que são os
únicos a ver e a perceber a morte.
Nota-se, entretanto, que Old, o mais novo, teve dificuldade em
distinguir o seu patrão da imagem mortuária, o que pode revelar a ausência
de experiência, em decorrência da idade, diferentemente dos demais, que
perceberam o que era e fizeram questão de sinalizar ao pequeno.
O outro componente diz respeito à insolação. O sol é marcado pela
antítese, constituindo-se num paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que
fornece luminosidade, calor e carrega sentidos positivos por estar vinculado à
iluminação, pode conduzir, outrossim, à seca, ao mal estar e, por
consequência, à insolação, como se verifica no conto. Ele atua como fonte
geradora de vida, mas, igualmente, como a fonte responsável por prejudicar
ou retirar a vida.
No conto, o sol apresenta-se na segunda situação, porque o calor
surge com forte intensidade, fazendo com que o leitor consiga imaginar
aquele meio sufocante, seja sugado por sua força até a última gota e tenha as
mesmas sensações dos personagens: ―O dia avançava igual aos precedentes
de todo aquele mês: seco, límpido, com catorze horas de sol calcinante, que
parecia manter o ciclo em fusão, e que em um instante trincava a terra
molhada nas encostas embranquecidas.‖ (QUIROGA, 2010, p. 81)
Outra passagem que reitera a negatividade existente em torno do sol
diz respeito à equiparação feita com o fogo, o qual atua na mesma diretriz,
visto que, ao mesmo tempo em que emana calor e tem diversas utilizações
positivas, pode conduzir à destruição: ―Às duas, os peões voltaram para a
carpição, apesar da hora de fogo, (...)‖ (QUIROGA, 2010, p. 81).
E, com isso, a sensação de desconforto e mal-estar apresentada pelo
contista concretiza-se profundamente. Aquele que lê insere-se naquele
ambiente abafado e sufocante, em que o sol castiga os personagens e retiralhes a vida progressivamente: ―Ao calor queimante que crescia sem cessar
desde três dias antes se acrescentava agora o sufoco da virada do tempo.‖
(QUIROGA, 2010, p. 85). Tais elementos demonstram o quanto a energia
solar consumiu a sua existência, levando-o a morte.
Dessa forma, cabe estabelecer uma relação com o conto ―À deriva‖,
do mesmo autor. Nele, um personagem é picado por uma cobra e sai em
busca de ajuda, porém acaba falecendo. Em ambos os contos, ―À deriva‖,
como em ―A insolação‖ constata-se o triunfo dos agentes naturais sob a força
humana. Por mais que se tente lutar contra isso, o destino já foi traçado e os
dois personagens não possuem alternativas para se desvencilhar do
inevitável.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
197
Outra questão importante concerne às pistas de aproximação da
morte dadas pelo autor, desde o início do conto, elementos que auxiliam na
constituição da atmosfera de suspense. Ao apresentar a fazenda, no instante
inicial, com o diálogo dos cães, o narrador assevera que: ―(...) o oriente
começava, feito um leque, a tornar-se púrpura, e o horizonte havia perdido
sua precisão matinal.‖ (QUIROGA, 2010, p. 80)
Sabe-se que as cores roxa e, por consequência, púrpura são ligadas
aos rituais fúnebres, especialmente na Igreja Católica, visto que fazem
referência ao período litúrgico. Tanto o roxo, quanto o preto, assumiram essa
significação, questão desenvolvida por Toledo (1964, p. 39):
O roxo é a cor do sacrifício, da penitência e, ao
mesmo tempo, da dignidade real. No Advento ele
relembra a vinda de Cristo com seu poder soberano,
e na Quaresma, quando se representa o seu grande
sacrifício, faz apelo aos homens para o
arrependimento e a penitência. (...) O preto é usado
na Sexta-feira da Paixão e nas missas dos mortos.
Sendo ausência de cor, negação de luz, simboliza a
ruptura com a vida terrena, a passagem para o
abismo insondável.
Nesse contexto, pode ser suscitada a possibilidade de penitência, caso
se enxergue a postura do fazendeiro como desafiadora do meio natural.
Apesar de todos os sinalizadores de quanto o sol poderia provocar prejuízos,
ele decide procurar o parafuso da carpideira e ignorar os malefícios oriundos
da insolação, que acaba castigando-o.
No momento em que o contista utiliza a tonalidade púrpura, concede
indicativos de que virá algo ligado à morte, especialmente, porque algumas
linhas após, na primeira referência feita ao patrão, Mister Jones, aponta que
estava com o ―olhar morto‖ (QUIROGA, 2010, p. 80). Essas características,
aparentemente simples, servem para a elaboração do ambiente sombrio e
tenebroso que irá se firmar posteriormente.
Mais uma questão sinalizadora do encontro com o destino inevitável
diz respeito à cena em que Mister Jones vai comprar o parafuso. Na volta à
fazenda, com o intuito de encurtar o trajeto, resolve passar por um riacho,
fato que remete, de imediato, ao barqueiro Caronte, que conduz os mortos ao
submundo, conforme apresentado por Bulfinch (2002, p. 318), ao descrever o
trajeto feito por Enéias e Sibila, ao reino de Hades:
Dirigiram-se, então, ao negro rio, o Cócito, onde
encontraram o barqueiro Caronte, velho e
esquálido, mas forte e vigoroso, que recebia em seu
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
198
barco passageiros de todas as espécies, heróis
magnânimos, jovens e virgens, tão numerosos
quanto as folhas no outono ou os bandos de aves
que voam para o sul quando se aproxima o inverno.
Ao se adotar essa perspectiva, nota-se que há mais um sinalizador.
Mister Jones, ao realizar a busca e a compra do parafuso, sob o calor intenso
e sufocante, inicia a sua travessia ao universo habitado por Caronte, que
culminará
no
encontro
com
a
Morte, na cena final. E, por corolário, ao tornar o seu caminho mais curto,
também facilita o encontro com o seu duplo, porque o fazendeiro, mesmo
com as dificuldades apresentadas pelo trajeto, resolve tomá-lo, mesmo
repleto de raízes emaranhadas.
E, ainda, outro constituinte que acentua e auxilia no desenho dessa
atmosfera fúnebre faz referência aos cães. Esses são elementos simbólicos
que guardam fortes relações com o mundo dos mortos, como, por exemplo,
Cérbero, um cão assustador, composto por várias cabeças e responsável por
cuidar das almas na entrada do reino dos mortos, segundo destaca Graves
(2008, p. 147): ―Cérbero era equivalente grego de Anúbis, o filho com cabeça
de cão da deusa líbia da morte Néftis, encarregado de conduzir as almas do
mundo subterrâneo.‖ O interessante é que ele somente permitia a entrada das
almas e, em hipótese alguma, a sua saída.
Tem-se, também, Garm, um cachorro coberto de sangue, que deve
zelar pela casa dos mortos, e os cães de Yama, compostos por quatro olhos,
como duas figuras que demonstram o quanto a morte e os cachorros possuem
laços estreitos. A morte, com astúcia, engana os cães e fá-los acreditar na
mudança de foco e, ao invés de se apoderar de Mister Jones, preferiu possuir
o cavalo. Percebe-se que essa figura, dotada de proeza, confere ―A
insolação‖, um caráter peculiar frente a todas as demais obras que enfocam o
duplo, considerando que ela tem a aptidão de incorporar seres diversos,
adquirindo uma feição praticamente camaleônica e anunciando a sua
chegada.
Entretanto, traduz-se como uma cópia imperfeita do real, fato
comprovado pela percepção dos cachorros mais experientes, os quais
constataram desde o encontro inicial que se tratava de algo falso. O
surgimento da morte indica um elemento, trabalhado anteriormente, referente
à impossibilidade de coexistência entre o Eu e o outro. Na primeira vez, ela
não vai ao encontro de seu alvo, mas assim que se dá a colisão entre Mister
Jones e seu duplo, e o perecimento torna-se inevitável.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
199
A concretização do sonho: a outra faceta do eu
Sabe-se que uma das vertentes da literatura fantástica diz respeito à
manifestação do duplo. Temática bastante explorada por diversos autores, tais
como Borges, Poe, Fuentes, entre outros, assume diferentes formas dentro da
esfera literária, de acordo com o entendimento de Rodrigues (1988). Para ela,
em um dos casos, os personagens podem ter semelhança física e ligações nos
processos mentais, como a telepatia, em que o conhecimento, os sentimentos
e a experiência atuam como denominador comum entre ambos.
Em outra hipótese, a identificação entre as duas facetas ocorre de tal
forma, que surgem dúvidas em qual delas reside a essência do ―eu‖ e em qual
delas há o desdobramento. Destaca-se que, porém, o duplo materializa-se de
diferentes maneiras, considerando que ele pode alcançar uma grande
multiplicidade de facetas. Como se pode constatar, esse se situa em um dos
temas mais instigantes de nossa literatura, seja pela diversidade de formas
que alcança, seja por revelar o lado mais sombrio que integra o ser humano.
Aquilo que muitas vezes se reprime, esconde-se, dissimula-se, aparece
corporificado no ―outro‖.
Nos estudos de Mello (2000), o duplo possui raízes bastante antigas,
visto que na filosofia abordava-se o dualismo platônico, o qual se centra na
ideia de que homem e mulher fariam parte do mesmo ser que foi cindido e
transformado em dois e, por isso, está sempre em busca da sua ―carametade‖. Entretanto, na grande maioria das situações, a relação estabelecida
do ―eu‖ com o duplo está distante de apresentar um caráter harmônico.
Na maioria das narrativas em que se explora o tema, são apresentados
finais trágicos (com exceções, como no conto ―O outro‖, de Borges, em que o
encontro dos duplos gera um sentimento de desestabilização e afastamentos),
como a morte, pois, como fazem parte do mesmo ser e estão interligados, o
fim de um acarreta a morte do outro. Esse fato é corroborado com a
afirmação que se encontra no conto ―William Wilson‖, de Poe (2003, p. 145),
o qual afirma:
Você venceu, e eu me rendo. Todavia, doravante
você também estará morto – morto para o Mundo,
morto para os Céus e morto para a Esperança! Era
em mim que você existia – e, na minha morte, veja
por esta imagem, que também é a sua, quão
completamente você assassinou a si mesmo!.
Acontecimento compreensível, considerando que se dá a colisão das
duas faces que integram o mesmo ser. Como, em regra, trata-se de lados
antitéticos, dificilmente conseguiriam conviver, pois um implica no
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
200
aniquilamento do outro. O encontro entre ambos desencadeia o desequilíbrio,
o desconforto; o conflito desenrola-se tão intensamente, até que assume o
ponto de levar ao término das partes.
Como se destacou, o duplo possui a capacidade de materialização de
diversas maneiras. No conto ―A insolação‖, ele foge dos padrões esperados,
haja vista que o duplo do fazendeiro, Mister Jones, é a Morte, assumindo a
forma física de Jones, que morre devida à alta exposição ao sol:
Ali, o filhote de repente viu Mister Jones, que
sentado num tronco olhava fixamente para ele. Old
ficou em pé, balançando o rabo. Os outros também
se levantaram, mas arrepiados. – É o patrão!exclamou o filhote, surpreendido pela atitude dos
outros. – Não, não é ele – replicou Dick. Os quatro
cães estavam juntos, grunhindo surdamente, sem
tirar os olhos de Mister Jones, que continuava
imóvel olhando para eles. O filhote, incrédulo,
preparou-se para avançar, mas Prince mostrou-lhe
os dentes: - Não é ele, é a Morte. (QUIROGA,
2010, p. 82)
Mesmo que a morte assumisse a forma daquele que iria falecer, não
conseguiu induzir os cachorros a erro, porque perceberam subitamente a
dissimulação, exceto Old (que será analisado adiante com mais vagar). Além
disso, o contista indica que ―quando uma coisa vai morrer, aparece antes‖
(QUIROGA, 2010, p. 82), fator essencial para o desenvolvimento da
narrativa, porque, em outra passagem, a morte incorpora a forma de um
cavalo.
O conceito desenvolvido acerca da morte, no correr do tempo, tem
significações muito diversificadas, dependendo da visão de mundo do grupo
que a concebe. Enquanto para alguns é vista como a maior desgraça que
acomete o ser humano, para outros, constitui-se somente em um ritual de
passagem, condutor da vida eterna.
No conto examinado, o duplo de Mister Jones pode ser encarado
como a ―faceta‖ do ser humano que tem consciência de sua finitude, que já
cumpriu seus afazeres terrenos e que pode deixar esse plano. A figura da
morte age como corporificação de uma insegurança ou de um sentimento de
ameaça, que, talvez, pelo tamanho de suas proporções, acabou tomando
forma.
Em contraponto, o mesmo personagem, Mister Jones, aparece com
outro duplo, que contrasta com a morte, o filhote Old. Esse fica angustiado e
aterrorizado diante dela e, juntamente com os demais cães, procura defender
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
201
o seu patrão para afastá-la. Old pode ser compreendido como a outra ―faceta‖
de Jones que não deseja morrer e que se distancia da morte, a fim de evitá-la.
Ambos contribuem para a formação da atmosfera de tensão, considerando
que materializam desejos opostos, o que vai ao encontro das proposições
desenvolvidas por Mello (2000, p. 112):
Uma representação constante no imaginário dos
povos liga-se ao problema da morte e ao desejo de
sobrevivência, de forma que o amor a si próprio e a
angústia da morte estão associados. Se, por um
lado, a personificação da alma imortal – a alma do
morto- é uma ideia através da qual o Eu se protege
do aniquilamento, por outro, esse duplo é percebido
como ―um mensageiro assustador da morte‖, razão
por que gera sentimentos ambivalentes, de proteção
e de ameaça ao mesmo tempo.
A morte, como já discutido anteriormente, age como um dos maiores
inspiradores de temor. Pelo exposto no conto, vê-se que ela caracteriza-se
como o duplo do fazendeiro, ao passo que o desejo de sobrevivência aparece
em Old, o qual concentra toda a manifestação da vontade de viver.
Anteriormente, discorreu-se acerca do desfecho desastroso
ocasionado pelo encontro entre o Eu e o duplo. Em ―A insolação‖, o fim
segue justamente os padrões ―convencionais‖, determinados pelo contato
estabelecido entre ambos. O duplo, ou seja, a Morte, desaparece quando os
personagens falecem, primeiramente o cavalo e, posteriormente, o
fazendeiro.
Entretanto, ela realiza um jogo interessante, capaz de intrigar o leitor.
Na primeira aparição surge como fazendeiro, no entanto, após, apodera-se do
corpo do cavalo e somente na segunda vez o choque entre ela e Jones resulta
no padecimento do fazendeiro:
Com efeito, o outro vulto, após uma breve
hesitação, havia avançado, mas não diretamente
sobre eles, como antes, e sim em linha oblíqua e
aparentemente errônea, mas que devia levá-lo ao
encontro de Mister Jones. Os cães compreenderam
que daquela vez tudo iria se acabar, porque seu
patrão continuava caminhando no mesmo passo,
como autômato, sem perceber nada. O outro já
chegava. Os cães encolheram o rabo e correram de
lado, latindo. Passou um segundo e o encontro
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202
aconteceu. Mister Jones girou sobre si mesmo e
desmoronou. (QUIROGA, 2010, p. 86)
O contato entre o Eu e o duplo dificilmente poderá ser concebido
como algo harmonioso, pois eles representam lados contrários do mesmo ser,
e o encontro leva à desgraça. Inversamente à proposição platônica, presente
em O banquete, em que a complementação faz-se necessária e positiva para o
homem e para a mulher, nesse contexto, a fusão, no mesmo ser, não permite a
coabitação entre ambos. Apesar de o fazendeiro não aperceber-se do contato
com o seu duplo, constata-se a impossibilidade da dupla existência, haja vista
que eles manifestam ideais diversos, ou seja, a vida e a morte.
Além disso, cumpre destacar que esse duplo caracteriza-se como
peça fundamental, pois a Morte é algo que faz parte da essência de Mister
Jones, por se caracterizar como destino inevitável. Ela caminha no sentido
inverso do Eu, na figura de Old, que procura afastá-la, como uma forma de
negação de seu duplo, ao passo que Mister Jones inicia a sua jornada ao
universo dos mortos, no momento em que resolve ir em busca do parafuso,
enfrentando o sol e os percalços do riacho.
No início da análise sobre o duplo, discorreu-se sobre as diversas
formas assumidas por ele. Pode-se dizer que a mais clássica delas, trata-se de
algo que todos possuem, sem que se pense a respeito: a sombra – que no
estudo de Mello (2000, p. 115):
suscita mistério e presta-se à simbolização do duplo
porque acompanha o ser humano em todos os
lugares, mas não faz parte dele. Desdobra-se em
condições particulares (sol/luar) ou sob fontes de
luz particulares. É estranha, mas não é estrangeira.
E, nesse ponto, possibilita-se o estabelecimento de um paralelo
interessante, porque tanto a Morte, quanto a sombra, reveste-se de um caráter
de inevitabilidade. Por mais que se tente escapar, a sua presença atua como
uma constante, em ambos os casos. Não se pode evitar a sombra, assim como
não se pode evitar a morte.
O duplo desencadeia todo esse tipo de litígio, em função de duas
questões principais: a individualidade e o conflito de identidade que se
instaura. No primeiro caso, coloca-se em pauta todo o investimento que se
faz no valor de cada um, pois uma das características mais frisadas concerne
à diferença e ao respeito e valorização que se deve ter diante dela.
O que torna cada ser humano especial, frente aos demais, reside
justamente na sua singularidade, por ser apenas um e somente ele. A sua
essência e os caracteres são exclusivamente seus e mesmo que se empreguem
esforços na tentativa de copiá-los, dificilmente se obterá êxito. Em virtude
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
203
dessa relevância, o duplo atua como um dos únicos, senão o único, que
poderá inspirar temor, visto que ele não é uma terceira pessoa, em uma
tentativa de imitação, mas parte do mesmo ser, em alguns casos desconhecida
e com a qual se tem complexidade para lidar.
Rosset (2008, p. 83-84), ao tratar da matéria, recorre ao exemplo de
Crátilo, de Platão, no qual Sócrates sustenta que não se pode ter dois
Crátilos, porque seria necessário que ambos detivessem a propriedade
essencial, de ser ele mesmo. Assim, a caracterização da predita personagem,
como em todos os seres, está no fato de ser única, como se observa:
Esta estrutura fundamental do real, a unicidade,
designa ao mesmo tempo o seu valor e a sua
finitude: toda coisa tem o privilégio de ser apenas
uma, o que a valoriza infinitamente, e o
inconveniente de ser insubstituível, o que a
desvaloriza infinitamente. Porque a morte do único
é irremediável: não havia dois como ele; mas, uma
vez terminado, não há mais nenhum.
Diante da impossibilidade de coexistência de dois seres idênticos,
haverá constante disputa para estipular quem triunfará e será o autêntico Eu,
na condição de possuidor de toda a singularidade e de toda a essência, capaz
de ser insubstituível. Como assevera Hall (2006, p. 25), ao fazer referência a
Williams:
Raymond Williams observa que a história moderna
do sujeito individual reúne dois significados
distintos: por um lado, o sujeito é ―indivisível‖ –
uma entidade que é unificada no seu próprio
interior e não pode ser dividida além disso; por
outro lado, é também uma entidade que é ―singular,
distintiva, única.‖ (...)
O outro problema provocado pelo duplo, já enunciado, diz respeito
ao conflito de identidade. O clássico questionamento ―Quem sou eu?‖ atua
como questão central frente a esse cenário, considerando que se emerge num
furacão identitário. Faz-se uso dessa metáfora a fim de designar a mistura e a
desorganização gerada pelo desdobramento. As certezas sofrem intensa
desestabilização, a unicidade não impera mais e o ser mergulha em uma
busca incessante pela essência do Eu, aquilo que Rosset (2008) denomina de
propriedade fundamental.
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204
Conclusão
Percebe-se que Quiroga, com a qualidade de sua produção,
contribuiu para a literatura latino-americana conquistar um espaço expressivo
no decorrer de sua trajetória. Com forte inclinação para o desenvolvimento de
contos e narrativas que exploram elementos de natureza fantástica, os quais
transportam o leitor para contextos fantásticos, o florescimento de temáticas
desse cunho tem assumido um papel de destaque na literatura produzida por
Borges, Cortázar, Marquez, Fuentes e, em especial, Quiroga.
Tal autor uruguaio marcou o meio literário de seu país, visto que,
tendo a vida pessoal marcada pela tragédia, explorou temáticas amorosas,
patológicas e sombrias. Seus contos, permeados pela atmosfera de pavor,
angústia e tensão, desafiam os paradigmas instituídos pelo real e colocam em
jogo uma nova engrenagem. Nesse contexto, a inversão de padrões e a
transgressão da realidade atuam como os principais agentes
desestabilizadores da nova realidade, tão irreal e tão imaginária.
Descortinam-se diferentes horizontes, em que se vê outra
organização, outros homens e, com eles, a materialização das facetas
enclausuradas e obscuras que fazem parte do mesmo Eu. Nesse ponto,
adentra-se numa das principais vertentes que compõem o fantástico e um dos
pontos mais explorados pelos latino-americanos: o duplo.
A fragmentação do Eu constitui um dos processos mais complexos
do homem. Lidar com duas faces antitéticas integrantes do mesmo ser vem a
ser um dos mais fortes embates, que guia a extinção de ambos, visto que não
conseguem estabelecer-se sem conflito. O conto ―A insolação‖, de Quiroga,
explora esse tema, pois a morte toma a forma do fazendeiro Mister Jones e de
um de seus cavalos, até apoderar-se de ambos por completo, adentrando-se,
desse modo, em numa das sondagens mais profundas e instigantes sobre o
duplo.
A cisão do desejo de Jones, projetado na figura mortuária com a
mesma feição, e a vontade de viver, depositada no filhote Old, concedem
forma aos lados mais contraditórios e sombrios do ser humano. Cada um, em
seu âmago, guarda sentimentos, sensações e ideais desconhecidos, não
acessados no nível consciente e que compõem o eterno mistério insolúvel do
homem e da mulher e seus confins inexplorados, que impõem,
cotidianamente, novas interrogações, entendimentos e perguntas que não
encontram respostas no desvelamento da dubiedade humana.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
205
THE OTHER FACE: THE FANTASTIC AND THE
DOUBLE IN ―A INSOLAÇÃO‖, BY HORACIO QUIROGA
ABSTRACT: This article, sustained by theoretical references in Nubia
Hanciau (2005), Eduardo Coutinho (2008), David Arrigucci (1998) and Cecil
Zinani (2010), examines the role played by Latin American literature
regarding the approach of themes related to the imaginary, its relations with
real and the illusory, and the privileged position granted to the fantastic.
Analysis have been supported by the theory by Clément Rosset (1998) and
Ana Melo (2000), aiming to examine how the double is realized in the story
"A insolação" by Horacio Quiroga, in a setting full of strange elements, in
which the reader is invited to dive into the mysteries that surround the
development of the "I". As a result, it is clear that the double of the
protagonist, the rancher Mister Jones, appears as a representation of Death,
and the meeting between the two of them causes the collision and extinction
of existence and, therefore, the conflict created between the two sides of the
same being.
Keywords: Latin american literature. Horacio Quiroga. A insolação.
Fantastic. Double.
REFERÊNCIAS
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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TOLEDO, Amelia Amorim. Vestes litúrgicas para a Capela Dominicana de
Brasília. Dissertação (Mestrado em Artes). Universidade de Brasília,
Brasília, 1964. Disponível em:
http://repositorio.bce.unb.br/handle/10482/4230?mode=full&submit_simple=
Mostrar+item+em+formato+completo. Acesso em: 08 fev. 2012.
ZINANI, Cecil Jeanine Albert. História da literatura: questões
contemporâneas. Caxias do Sul: Educs, 2010.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Escrita do eu e psicanálise na ―Teoria do Conto‖ de Balzac1
Fausto CALAÇA2
Luane VILAÇA3
RESUMO: O presente artigo teve como primeiro objetivo realizar uma análise do
texto Théorie du Conte de Honoré de Balzac – conto publicado em meados de 18301832 – promovendo uma discussão sobre este período histórico da literatura francesa,
as estratégias balzaquianas para se constituir como um grande autor de contos e os
sinais de uma escrita do eu. O segundo objetivo foi de estabelecer uma relação entre
a Théorie du Conte e a Psicanálise a partir de uma ideia anotada por Éric Laurent, em
conversa com Jacques Lacan, na qual o gênero conto é considerado como um modelo
de narrativa de si mesmo visado no fim de uma análise: a contração do tempo, que o
conto possibilita, produz efeitos de estilo. Observamos que o conto balzaquiano não
só nos expressa algo como a ideia lacaniana da possibilidade de recriar estilos, mas,
especialmente, nos aproxima de diversos elementos que estão presentes em toda sua
obra romanesca. A escrita do eu neste conto de Balzac se dá como uma multiplicação
do eu que se manifestará em vários personagens dispersos em romances.
Aproximando o texto Théorie du Conte e Psicanálise, observamos que o Balzac
romancista é freudiano e que o Balzac contista é lacaniano.
PALAVRAS-CHAVE: Conto. Balzac. Escrita do Eu. Psicanálise.
« Beaucoup de personnes se
donnent encore aujourd‘hui le ridicule
1
Este artigo é resultado parcial de uma investigação realizada no contexto do projeto
de pesquisa intitulado A construção romanesca do sujeito contemporâneo e a
noção de subjetivação em Balzac, coordenado por Fausto Calaça
(UFMT/IL/PPGEL).
2
Professor do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL) da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Correspondente estrangeiro da
Société des Études Romantiques et Dix-neuviémistes (SERD-Paris) no Brasil.
Atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado no Groupe International de
Recherches Balzaciennes (GIRB) na Université Diderot-Paris7, com bolsa da
CAPES. [email protected], UFMT/IL/PPGEL, 78.060-900, Cuiabá-MT.
3
Membro do projeto de pesquisa A construção romanesca do sujeito contemporâneo
e a noção de subjetivação em Balzac (UFMT/IL/PPGEL). Estudante do curso de
graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT/CUR).
[email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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de rendre un écrivain complice des
sentiments qu‘il attribue à ses
personnages; et s‘il emploie le je,
presque toutes sont tentées de le
confondre avec le narrateur ».
Honoré de Balzac, Préface (18351836), Le Lys dans la vallée.
―O conto é a mais alta expressão da literatura‖
Dentre tantos gêneros literários explorados por Honoré de
Balzac (1799-1850), é principalmente pelo romance que o autor de A
Comédia Humana se tornou um dos mais importantes autores da
literatura moderna. Em sua vasta obra, também foram publicadas
algumas peças teatrais, um grande número de artigos de jornais,
ensaios filosóficos e poéticos, grande diversidade de correspondências
e, em especial, contos e novelas de estilos variados. No período de
1830 a 1832, o ambicioso Balzac sonha em se tornar o grande contista
da sua época. Segundo Chollet & Mozet (1990), o autor teria escolhido
o gênero conto por considerá-lo como o gênero da moda, portanto o
mais rentável e mais rápido meio para se tornar um célebre escritor do
seu século.
Honoré de Balzac não começou sua carreira de escritor pela
literatura. Foi por meio dos Essais Philosophiques (Ensaios
Filosóficos) que o jovem Balzac, herdeiro das Luzes, a partir de 1818,
lançou suas primeiras tentativas no mundo intelectual. Logo, foi pela
filosofia que o grande romancista do século XIX deu seus primeiros
passos. No período de 1818-1823, época dos seus primeiros escritos:
É evidente que o prazer de Balzac é de se bater com as
ideias e as palavras; ele nos parece assombrado pela
necessidade de escrever, jogando ideias, projetos, notas,
esboços de versos sobre qualquer papel que lhe cai na
mão. Ele carrega este vício de escrever até se consolidar,
após tanto esforço de escritura, como escritor. [...] Para
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
209
ele, tudo é projeto, tudo é assunto. (CHOLLET &
GUISE, 1990, p. 1387)4
Embora não existisse, em momentos da vida de Balzac, a
intenção de escrever uma autobiografia, um jornal diário, ou algum
tipo ―oficial‖ de escrita sobre si mesmo, evidenciamos, segundo a
perspectiva de Georges Gurdorf (1991), que, em seus escritos iniciais –
essencialmente, nos Premiers Essais (Primeiros Ensaios) e nas suas
correspondências – bem como nos seus romances autobiográficos, se
encontra de forma dispersa um tipo de escrita sobre si mesmo. Esta
escrita de si não se dá pela representação do eu do autor, mas, pela:
[...] transposição da realidade vivida em uma outra esfera
de realidade, dotada de características próprias, de forma
alguma insignificantes. Como dizia Merleau-Ponty, as
maçãs pintadas por Cézanne já se apodreceram há
muitos e muitos anos, enquanto que as maçãs sobre a
tela conservam ainda o aspecto de novas. (GUSDORF,
1991, p. 14)
Apesar da habilidade do jovem Balzac em dissertação sobre
temas metafísicos, seus escritos careciam de novidade, de maturidade,
de estilo: por vezes, pareciam simples anotações de leituras de
filósofos, ou esboços para futuras elaborações. Nenhum de seus
escritos filosóficos foi concluído e, muito menos, impresso quando o
autor ainda estava vivo. Depois de experimentar o teatro, a poesia e o
romance histórico, o Balzac do fim década de 1820 encontra no gênero
do conto uma forma de escrita alternativa para tratar de questões que
ele havia experimentado – e fracassado – por meio da especulação
filosófica. Isabelle Tournier (2005) observa que os contos balzaquianos
de 1831-1832 retomam antigas questões que os primeiros ensaios
tinham abandonado.
Na década de 1830, foi publicado um compêndio de contos
medievais, inspirados no estilo de François Rabelais (1485-1553),
4
Todas as citações em língua francesa aqui utilizadas foram por nós traduzidas
livremente.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
210
intitulado Les Cent Contes Drolatiques (Os Cem Contos Picarescos).
Nos apêndices das publicações seguintes até os dias de hoje, sempre
foi incluído um pequeno conto ambiciosamente intitulado Théorie du
Conte (Teoria do Conto)5. Apesar desta inclusão, este conto em nada
se parece com os Contes Drolatiques que, ademais, foram escritos em
grafia medieval. Roland Chollet e Nicole Mozet (1990) observam que,
na parte superior da primeira página do manuscrito de Théorie du
Conte, aparece o título Les Cent Contes. Esta expressão – e não Les
Cent Contes Drolatiques – aparece, pela primeira vez, em uma carta de
Balzac ao seu editor Charles Gosselin, datada de fim de dezembro de
1831. Balzac ainda não havia decidido o número de contos que
deveriam compor o seu compêndio, nem mesmo que todos eles seriam
escritos em grafia medieval. A conclusão de Chollet & Mozet é de que
a Théorie du Conte não é posterior a 1832, pois, a primeira dezena dos
Contes Drolatiques foi impressa em março deste mesmo ano, sob o
título de Premier dixain. Parece que este pequeno conto em apêndice
fez parte de um projeto anterior de publicação de contos diversos no
qual os Contes Drolatiques se constituiriam apenas com um elemento.
Também é possível deduzir que a Théorie du Conte tenha sido redigida
em 1830, tendo Balzac a colhido de seus escritos para compor o
prefácio dos Cent Contes, no fim de 1831. Na perspectiva desta
hipótese, o escritor teria abandonado a ideia de publicar os Les Cent
Contes a fim de publicar os Les Cent Contes Drolatiques. Ainda nesta
época, Balzac publicou outros contos agrupados: Romans et contes
philosophiques (1831), Contes Bruns (em janeiro de 1832), Contes
Philosophiques (em junho de 1832), Nouveaux contes philosophiques
(em outubro de 1832).
Théorie du Conte é moderno em todos os sentidos: na
linguagem, no cenário, na fantasia, na efemeridade. O narrador em
primeira pessoa, que se assemelha ao próprio autor Balzac, andando
pela Rua Saint-Denis, na cidade de Paris, em meados de 1830-1832, se
5
Les Cent Contes Drolatiques foram traduzidos em língua portuguesa por Eugênio
Amado: obra publicada sob o título Contos Picarescos, pela Itatiaia Editora, em
2008. Porém, nesta edição a Théorie du Conte não foi incluída.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
211
encanta com a imagem de inumeráveis exemplares da sua própria
pessoa – pressionados uns contra os outros como arenques – refletidos
em garrafas, na vitrine de uma loja de bebidas. Este narrador se
apresenta como um homem que vive de fantasia, diferenciando-se de
qualquer um dos comerciantes que trabalham o dia todo naquela rua.
Ao inclinar a sua cabeça para cumprimentar os seus sósias e perceber
que todos eles respondem simultaneamente com o gesto idêntico, o
narrador-escritor se senta em sua mesa gótica de trabalho – semelhante
àquela mesa que pertenceu ao autor, até hoje conservada na Maison de
Balzac, museu parisiense onde Balzac viveu nos anos 1840-1847. Até
aqui, temos o roteiro de um conto fantástico que se aproxima de certas
imagens dos sonhos. Em princípio, o cenário da rua de Paris se
transforma no quarto do autor. Na sequência, o narrador recebe a visita
de dois dos seus ―eu mesmo‖: um jovem dândi e um velho homem de
ideias. Ou, segundo Balzac (1990), ―o homem do mundo‖ e ―o homem
das concepções‖ (p. 518).
O primeiro ―eu mesmo‖ do narrador-autor se retira daquela
imagem de ―eus‖ prensados e se posiciona de pé ao lado da chaminé,
de frente para a mesa do escritor. Trata-se de uma figura exemplar de
um dândi: um belo rapaz vestido impecavelmente, com postura
elegante, olhar de impertinência e ar de superioridade. Vale ressaltar
que, em toda obra balzaquiana, em especial, nos romances que
compõem A Comédia Humana, a figura do dândi se destaca entre os
principais protagonistas, dentre eles Eugène de Rastignac (O Pai
Goriot), Henri de Marsay (A Menina dos Olhos de Ouro) e Lucien de
Rubempré (Ilusões Perdidas). Apesar do seu encantamento pela figura
do dândi e das suas tentativas excêntricas para se adequar a esta forma
de vida específica do gênero masculino no século XIX6, Balzac não
tinha nada de dândi em sua pessoa, pois lhe faltava, dentre outros, os
traços essenciais do dandismo: a silhueta, a beleza física, a finesse dos
gestos e das atitudes e, essencialmente, a fortuna. No entanto, em
6
Sobre o dandismo na obra de Honoré de Balzac, ver: CALAÇA, Fausto, VIANA,
Terezinha de Camargo & BARA, Olivier. O dandismo em Balzac: metáfora da
subjetivação no século XIX. In: VIANA, Terezinha de C. (Org.). Sobre
Psicanálise, Subjetivação, Arte e Cultura: linhas de um diálogo. Lisboa-Portugal:
Placebo, 2011, v. C9, p. 33-53.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
212
acordo com Pierre Citron (1986), é justamente na epopeia dos
personagens dândis da Comédia Humana que se constitui uma das
mais expressivas escritas da pessoa de Balzac em sua obra,
constituindo-se como um eu ideal. Pela figura dos personagens dândis,
dentre outras criações romanescas, este autor estabelece uma escrita de
si mesmo.
Segundo o narrador da Théorie du Conte, este ―eu mesmo‖, o
dândi, era aquele que tinha mais sucesso na vida. Encarando-o com
firmeza, o belo rapaz lhe diz:
Meu caro, pare de escrever contos; o conto é uma coisa
ultrapassada, já esgotada, [...] Se você quer se tornar
original, pegue o conto e lhe destroce os rins assim como
se faz com a carcaça de um frango decapitado, e depois
deixe-o lá, moído, destroçado. Sem isso, você não passa
de um contista, um homem especial. É preciso mostrar
que o conto é a mais alta expressão da literatura, que este
título é uma palavra vazia de sentido e que, em cada
espécie de conto, só existem detalhes e uma criação bem
ou mal elaborada. (BALZAC, 1990, p. 517-518)
Após esta declaração, o eu-dândi de Balzac, ajustando
habilidosamente as suas luvas nas mãos delicadas, desaparece: ―o
homem do mundo tinha sido o eco do mundo‖ (BALZAC, 1990, p.
518). É pela aparição de um personagem dândi que Balzac lança em
Théorie du Conte uma espécie de manifesto a favor do gênero conto e
―anuncia outras subversões, cuja histñria estética do século XIX não
vai cessar de soar‖ (DIAZ, 2007, p. 125).
O contexto cultural dos anos 1830 é considerado o período
auge do romantismo na literatura francesa. Neste período, o conto é um
gênero da moda. É justamente nos dois primeiros anos desta década
que Balzac publica diversos contos – além dos romances – como um
dos seus experimentos a fim de se tornar um célebre escritor. Balzac é
um ―aprendiz de feiticeiro, um alquimista de si mesmo que aceita a
colaboração do público e da crítica para edificar o seu eu de forma
adequada ao espírito da sua época‖ (DIAZ, 2007, p. 121). Segundo
José-Luis Diaz (2007), ―o conto, forma deliciosamente esquemática
que permite todas as inconsequências e todas as tagarelas intrusões do
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
213
autor, se presta bem a esta mistura sui generis de fantasia e de
fantástico que está na moda [na década de 1830]‖ (p. 125).
O segundo ―eu mesmo‖, um homem de cinquenta anos de
idade, se dirige ao narrador logo depois do desaparecimento do rapaz:
―este estava vestido em roupão violeta, ele tinha a testa franzida, os
lábios amarelos de café, a barba longa, os olhos brilhantes e calmos, a
tez vermelha, um cordão de seda em torno da cintura, um boné de
veludo violeta sobre a cabeça‖ (BALZAC, 1990, p. 518). Eis uma
descrição que nos remete a um Balzac mais velho, um Balzac do fim
dos anos 1840. Este é aquele ―que não dorme mais, o homem cujo
olhar vai longe, o homem de coragem, o homem debilitado pelo peso
do pensamento‖ (p. 518). Este eu-pensador pede ao narrador-autor que
convoque os seus contistas favoritos, tais como Charles Nodier,
Étienne Béquet, Eugène Sue, aos quais ele atribui a aparência de
mágicos e de feiticeiros ressaltando, assim, as possibilidades
inventivas do gênero conto. Enfim, quando o narrador decide por fim a
sua fantasia, este segundo ―eu mesmo‖ lhe mostra ―as cem expressões
da fórmula algébrica representadas pelos cem eu-mesmo que pareciam
querer sair da prisão e [ir] um a um contar-[lhe] cada um a sua
fñrmula, da qual nenhuma deveria parecer com as outras‖ (p. 518). O
narrador se estende despreocupadamente sobre seu divã e se diz:
―Venham!...‖.
Théorie du Conte nos apresenta, então, dois dos inúmeros ―eu
mesmo‖ de Balzac: um jovem dândi (o homem do mundo) e um velho
homem de ideias (o homem das concepções): um eu de ação e outro de
pensamento. O primeiro, apesar de ser um eu constituído pelas suas
ações, pela encenação diária, pelos deleites da vida concreta, não passa
de uma fantasia do narrador-autor. O eu-dândi de Balzac expressa um
eu que, por meio da literatura – e, em especial, neste contexto de 18301832, o conto – o autor almejava constituir para si mesmo. Um eu um
tanto distanciado do segundo, o eu-pensador. Por sua vez, este segundo
―eu-mesmo‖, apesar deste também se constituir como ideal, parece
estar mais próximo da imagem de uma Balzac que, por vezes, ficava
até dezoito horas sem interrupção escrevendo em seu quarto, nutrindose apenas de café, vestido em seu roupão.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
214
Coordenadas entre conto, escrita do eu e psicanálise
Raymond Massant (1964) dedicou à Théorie du Conte uma
análise em sua edição dos Contes Drolatiques. Vejamos um
fragmento: ―Se refletirmos bem, é [...] o conto mais bonito de todos;
aquele que provém da criação literária, que confronta o escritor com
seus outros ―ele‖, com os aspectos, as faces inumeráveis do seu
espírito e do seu gênio‖ (MASSANT, 1964, p. 12). Massant ressalta o
quanto o conto fantástico proporcionou maravilhas ao escritor dos anos
1830 que pretendia explorar sem limites as dimensões do seu ―eu
mesmo‖, característica marcante do romantismo.
Anne-Marie Baron (2003) apontou que a Théorie du Conte
descreve muito bem o papel essencial interpretado pelo ―estádio do
espelho‖ – segundo Jacques Lacan (1998) – na vida psíquica de
Balzac, que parece retraçar aí uma experiência decisiva de sua própria
infância. Segundo Baron, este texto parece contar um sonho, onde
Balzac se vê, como em um jogo de espelhos multiplicados ao infinito,
em diálogo com dois dos seus duplos, o dândi e o ―homem de
concepções‖: ―a característica deste espelho balzaquiano não é
somente de refletir, mas de multiplicar a imagem refletida‖ (BARON,
2003, p. 73). Ora, para o narrador-autor, homem que vive de fantasia,
não havia nada de extraordinário na imagem fantástica da
multiplicação de sua própria pessoa. O privilégio do contista Balzac
seria o seu dom de se multiplicar em personagens – em ―eus mesmos‖
– sem pudores e limites, a partir de ―uma experiência especular
simbólica, experiência vertiginosa que se apresenta, segundo Lacan,
como aquela de uma identificação onde o eu começa a se esboçar
como formação imaginária‖ (p. 73).
Para além do texto Théorie du Conte, é possível identificar a
multiplicação dos ―eus‖ de Balzac em toda sua obra, afirma Baron
(2003). A princípio, pela sua tendência de se recriar por meio de
personagens. Aqui, fazemos referência a Pierre Citron (1986) que
elaborou a noção de ―duplo‖ em toda obra romanesca balzaquiana,
identificando em personagens ou roteiros, aspectos diversos –
multiplicados,
ressignificados,
reconfigurados,
reinventados,
idealizados, intensificados – da pessoa do autor. Em acordo com
Baron, podemos estender esta prática balzaquiana a todos os seus
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
215
personagens, mesmo os menos parecidos em aparência física, social,
psicológica. Assim, a escrita balzaquiana do eu se faz como uma
―hiperatividade autobiográfica redirecionada‖ (BARON, 2003, p. 73).
Esta estratégia ―permite que o autor reencontre, como no estádio do
espelho definido por Lacan, a imagem reunificada dele mesmo graças
a qual ele poderá ultrapassar o sentimento de sua divisão‖ (p. 73).
Em seguida, conforme Baron (2003), por meio da sua prática
onomástica, cada um dos personagens criados por Balzac contém uma
alusão mais ou menos disfarçada do destino do autor. Cada um dos
seus fracassos é atribuído aos seus personagens e, assim, reivindicados
e exorcizados no drama de cada um. Multiplicado ao infinito como na
imagem do espelho dado pela Théorie du Conte, Balzac se encontra
em toda sua obra e vive, por meio da escrita, uma vida por procuração
que testemunha a clivagem surpreendente da sua personalidade. E, por
fim, Baron (2003) observa que todos os sonhos contados na obra
balzaquiana têm pontos em comum com a Théorie du Conte. Todos os
sonhos ou os conteúdos sonhados desempenham um papel criando
duplificações que evocam a cena de se olhar no espelho, algo que nos
remete à relação íntima das imagens dos sonhos com as imagens
especulares, segundo Lacan (1998).
Em um texto intitulado Quatro observações sobre a
preocupação científica de Lacan, ao abordar algumas lembranças das
suas primeiras sessões de análise e supervisão, Éric Laurent (1993)
apresenta uma transcrição de uma curiosa observação de Lacan:
―Todos acabam sempre se tornando um personagem do
romance que é sua própria vida. Para isso não é
necessário fazer uma psicanálise. O que esta realiza é
comparável à relação entre o conto e o romance. A
contração do tempo, que o conto possibilita, produz
efeitos de estilo. A psicanálise lhe possibilitará perceber
efeitos de estilo que poderão ser úteis a você‖.
(LAURENT, 1993, p. 36)
Partindo da perspectiva desta observação sobre a relação
existente entre o gênero conto e o trabalho da análise, procuramos
analisar, nesta direção, a Thérie du Conte. Parece-nos que este pequeno
texto de Balzac, na sua forma literária, analisado no contexto histórico
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
216
da sua publicação, se constitui como um resultado deste trabalho sobre
si mesmo por Balzac. No período do Balzac contista, 1830-1832,
vemos surgir uma série de contos como produtos de uma nova forma
de elaboração, para além de uma especulação filosófica, ou mesmo
romanesca. Neste contexto, o ambicioso Balzac investe parte do seu
tempo de escritor – pois, ainda manteve-se escrevendo romances e
outros gêneros literários – em contar histórias sem se comprometer
com grandes fundamentos e, muito menos, pretendendo tudo explicar,
tudo descrever. O conto proporciona-lhe outros efeitos de estilo.
Laurent (1993) comenta que ―a prática de Lacan é
contemporânea de uma estrutura narrativa transformada pela escrita
moderna, na qual o romance é subvertido pelas contrações do tempo,
do espaço, dos personagens, do dentro e do fora‖ (p. 37). No tempo de
Freud, o inconsciente caminhava de forma semelhante à forma
narrativa do romance. O modelo citado por Laurent é o do romance
goethiano, no qual se vê uma ―definição clara e distinta dos
personagens, estrutura dividida da interlocução, separação entre
comentário e descrição, entre o dito espirituoso da conversação pública
e a ruminação do monñlogo interior‖ (p. 37). Esta passagem do
romance ao conto é posterior à passagem do mito ao romance, observa
Laurent.
Maria Rita Kehl (2001) explorou com fineza e riqueza de
detalhes este mesmo fragmento de Laurent (1993) no texto Minha vida
daria um romance:
Como não nos deixar afetar pelas duas formas de relação
entre a escrita e o tempo mencionadas rapidamente por
Lacan: de um lado a extensão, a dilatação, a insistência
exaustiva na recuperação da memória e na explicação
casual dos incidentes da vida, próprias do romance e
também da neurose; de outro lado, a contração, as
elipses, a manutenção de um certo enigma, a
modificação de estilo operada por um processo analítico,
e que produz no sujeito a possibilidade de narrar-se de
outra forma, mais aparentada à elegância do conto?
(Kehl, 2001, p. 58)
Neste sentido, o trabalho da análise favorece no sujeito
analisado esta passagem de estilos: de uma forma de narrativa sobre si
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217
mesmo que se assemelha a do romance para outra que tem algo de
parecido com o conto. Abandonamos a grandiosa missão de contar a
história verdadeira do nosso eu singular, insubstituível, inédito,
situando-a na história da humanidade, para nos contentarmos em
apenas contar histórias de nosso(s) eu(s). Saímos da posição
angustiante de romancistas para assumirmos a posição criativa – e,
aparentemente, divertida – de contistas. Realizamos, assim, uma
―operação estética‖ (KEHL, 2001, p. 89) nos nossos processos de
subjetivação.
Em Théorie du Conte, o tempo de Balzac, embora quase um
século anterior ao de Sigmund Freud, parece estar mais próximo do
tempo de Jacques Lacan: o Balzac romancista é freudiano e o Balzac
contista é lacaniano. Balzac é conhecido mundialmente como um dos
maiores romancistas do século XIX. Suas narrativas romanescas são
logo reconhecidas pelo seu estilo exageradamente descritivo,
explicativo, analítico de todas as dimensões possíveis da história
contada. Os romances balzaquianos são produtores das formas de
narrativa da subjetividade contemporânea – no contexto das sociedades
ocidentais capitalistas – bem como dos processos de subjetivação –
pela identificação dos leitores com personagens e roteiros – que são
mediados pela recepção de suas obras. Em acordo com Kehl (2001),
também afirmamos que a leitura dos romances de Balzac, e de tantos
outros romancistas do século XIX, ―se coloca [...] entre os principais
mecanismos responsáveis pela formação dos padrões subjetivos
prñprios ao individualismo moderno‖ (p. 84). No entanto, o Balzac
contista que reconhecemos em Théorie du Conte nos leva para uma
outra dimensão da relação entre literatura e subjetividade, e entre
narrativa e tempo. Neste pequeno texto, perdemos de vista o famoso
narrador balzaquiano onisciente que nos oferece o apoio ilusório do
conhecimento de tudo: dos sentidos, dos porquês, das causas, das
consequências, das relações, das entrelinhas etc. Anterior às mudanças
estéticas e subjetivas produzidas pela literatura do início do século XX
e também pelo trabalho da psicanálise, identificamos um Balzac que
antecipa uma experiência estético-subjetiva na sua época. Balzac,
como tantos outros autores precursores, teria, assim, antecipado
alguma experiência ou a teria inventado? A história da literatura nos
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
218
séculos XIX e XX em sua relação com a realidade social nos leva a
pensar que a criação literária se mantém entre os dois lados.
Não é pelo mérito específico de contista que o nome de Balzac
ocupa uma posição célebre no panteão dos escritores do século XIX,
mas, pelo de romancista. Sua obra romanesca operou, de fato, uma
reorganização na história tanto da literatura quanto da subjetividade.
Entretanto, se considerarmos o conjunto dos diversos gêneros
experimentados por Balzac, veremos que sua obra está carregada de
variações de estilos, de contradições, de retornos, de transgressões etc.
Théorie du Conte é um daqueles textos que nos levam a experimentar
um Balzac que realiza uma reviravolta em tudo aquilo que ele mesmo
constrói.
THE WRITING OF THE SELF AND PSYCHOANALYSIS IN
BALZAC’S ―SHORT STORY THEORY‖
ABSTRACT: This paper firstly aims to make an analysis of Honoré de Balzac‘s
Théorie du Conte – a short story published in mid 1830-1832 –, promoting a
discussion about this historical period in French Literature, together with the
Balzacian strategies to qualify as a great author of short stories and signs of a writing
of the self. The second aim is to establish a relationship between Théorie du Conte
and Psychoanalysis, taking into account an idea registered by Éric Laurent in
conversation with Jacques Lacan, in which the short story genre is considered as a
model of narrative of the self pursued at the end of an analysis: the contraction of
time, which the story enables, produces revealing stylistic effects. We note that the
Balzacian story not only expresses something like the Lacanian notion of the
possibility of recreating styles, but especially approaches many elements that are
present throughout his novelistic work. The writing of the self in this story by Balzac
takes place as a multiplication of the self that will manifest itself in many characters
scattered throughout his novels. Approaching Théorie du Conte through
Psychoanalysis, we conclude that Balzac as a novelist is Freudian whereas as a short
story writer he is Lacanian.
KEYWORDS: Short story. Balzac. Writing of the self. Psychoanalysis.
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CITRON, Pierre. Dans Balzac. Paris: Éditions du Seuil, 1986.
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Saint-Cyr-sur-Loire: Christian Pirot, 2007.
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LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu tal
como nos revela na experiência psicanalítica [1949]. In: LACAN, J.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 96-103.
LAURENT, Éric. Quatro observações sobre a preocupação científica de
Lacan. In: GIROUD, Françoise et al (org.). Lacan, você conhece? Tradução
de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Cultura Ed. Associados, 1993.
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MASSANT, Raymond. Préface aux Contes Drolatiques. In : BALZAC,
Honoré de. L’Œuvre de Balzac, tome 13. Edition publiée sous la direction
d‘Albert Béguin et Jean A. Ducourneau. Paris : Le club français du livre,
1964.
TOURNIER, Isabelle. L‘Apothéose du contier. In : BALZAC, Honoré de.
Nouvelles et contes I – 1820-1832, édition établie par Isabelle Tournier.
Paris: Quarto Gallimard, 2005.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
221
A produção contista queirosiana
Cila Maria JARDIM1
RESUMO: Embora seja mais conhecido pelos seus romances, o escritor
português Eça de Queiroz produziu também contos, ainda que em
quantidade reduzida se comparada à produção romanesca. Neles, discute
temas de toda ordem, ultrapassando a estética que publicamente defende
para tratar de questões tipicamente humanas, como o amor, a educação e
outros valores ligados à burguesia portuguesa do século XIX. No entanto,
apesar de narrativas breves tão bem compostas, do gosto que seu autor afirma
ter em compô-las e do sucesso entre os leitores, elas não recebem atenção
mais cuidada entre os estudiosos da literatura que se detém em analisar outros
veios da produção queirosiana. Por isso, este artigo objetiva traçar o percurso
desse tipo de composição na história do escritor e levantar os aspectos
fundadores dos contos, utilizando-se de estudos críticos- informativos,
tradicionais e recentes. Os resultados indicam que as narrativas de pouca
extensão sempre estiveram presentes na produção do autor, desde seus
primeiros exercícios no campo da ficção até sua fase final de criação.
Observa-se que também nessa modalidade, o autor português demonstra
empenho estético para discutir as questões de seu tempo.
PALAVRAS-CHAVE: Contos. Eça de Queiroz. Literatura portuguesa.
INTRODUÇÃO
A obra queirosiana vem sendo lida e discutida desde as suas
primeiras publicações. Já em seus textos iniciais nos periódicos (Gazeta de
Portugal, As Farpas, Distrito de Évora), sua produção recebe um olhar
crítico, avaliador, que resulta em grandes insultos (basta lembrar o que disse
Machado de Assis sobre o romance O primo Basílio, no jornal O Cruzeiro)
ou em reconhecidos atributos à língua portuguesa. Resultam dessa atenção
várias investigações e conclusões a respeito, referências obrigatórias para
aqueles que se propõem a estudar em maior profundidade o autor e sua
1
UNIP, Araraquara, SP, Brasil, 14801-405, [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
222
produção, como para aqueles movidos por curiosidade desvinculada do olhar
analítico literário.
No entanto, apesar dos estudos serem consideráveis, exponenciais, e
―exista quem pense que tudo já foi dito a respeito do Eça‖, na voz da
professora Beatriz Berrini, no comentário feito na revista Veja2, observa-se
que, até por se tratar de produção de alto teor, há ramais que se permitem ser
analisados, investigados e expostos. Ainda de acordo com a professora na
mesma revista, outros caminhos de leitura estão acontecendo, abrindo outras
interpretações só agora observadas e compreendidas. Nesse sentido, dentre a
produção queirosiana, os contos é que têm despertado um interesse menor,
ou, em outras palavras, os que têm recebido uma focalização menos intensa.
É verdade que os estudiosos os reconhecem como narrativas exemplares e,
esparsamente, surgem abordagens a seu respeito, na maioria das vezes, em
modelos comparativos e exemplificadores. Isso pode ser constatado nas
análises sobre o comportamento estético ao longo de sua produção: os contos
são apontados como uma ocorrência, mas sem um olhar mais preciso. De
modo geral, ao examinar a linha de evolução, é possível rastrear uma
[...] visão de conjunto da obra de Eça de Queiroz,
que revela-nos, antes de mais, um escritor
polifacetado, porque responsável por uma
produção literária que pode ser distribuída por três
sectores: há um Eça romântico (o das Prosas
Bárbaras (1866-1867) e o da primeira versão d‘O
Crime do Padre Amaro (1875); há depois, um Eça
progressivamente atraído pelos valores do
naturalismo [...], há, finalmente, um Eça eclético,
isto é, aberto a várias tendências estéticas e
sobretudo não enquadrado de modo rigoroso em
qualquer corrente específica [...].(REIS, 1978,
p.11-12)
A tradição dos estudos sobre a obra queirosiana aponta ―fases‖,
segundo a qual será possível observar a predominância de um estilo e até de
2
Edição 1664. Ago 2000.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
223
uma estética. Essas fases, de acordo com estudos tradicionais3,
seguintes:
–
–
–
são as
1ª fase: As prosas bárbaras;
2ª fase: 1871 a 1880 (fase realista);
3ª fase: A cidade e as serras, A correspondência de
Fradique Mendes, A ilustre casa de Ramires, As vidas dos
santos.
Em estudos mais recentes, com alguns ―ajustes‖ em relação à clássica
tripartição das fases, Reis e Milheiro (1989) analisam os três momentos da
produção, apontando, no último momento, um certo ecletismo, uma vez que
transita entre o realismo crítico e um encantamento pelo imaginativo
fantástico, operacionalizado nas narrativas. Outros estudiosos, como
Grossegesse (1995), defendem a presença da ambiguidade na produção do
escritor, fruto das influências do século XIX.
Como mencionado, no início dos seus escritos que se têm registrados,
Eça produz as Prosas Bárbaras, título póstumo publicado em 1903 e que
resgata folhetins publicados na Gazeta de Portugal entre 1866 e 1867. A
leitura integral desses textos mostra que
Estas prosas eram ‗bárbaras‘ pelo estilo recheado
de imagens e pelo seu ultrarromantismo que
transportava já em si a própria condenação.
Florestas de fantasmas, de espectros, onde as forcas
escreviam suas memórias [...] (FRANÇA, 1993, p.
67).
São textos curtos, de pequena extensão. Se essa foi uma
―experimentação‖ ou uma ―iniciação‖ no curso do fantástico, o estilo não se
estende: como concorda Franchetti (2007), não há continuidade nem de estilo
nem de forma na sua produção. As Prosas bárbaras representam as notáveis
tendências de Vitor Hugo, Baudelaire, Nerval, Heine, e também Comte,
Hegel e Proudhon, leituras tornadas mais acessíveis com a inauguração da
estrada de ferro que chega a Coimbra. Organizados os encontros, os jovens
3
A classificação é proposta por Óscar Lopes e José Saraiva, na História da
literatura portuguesa.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
224
liderados por Antero de Quental leem e discutem os textos com entusiasmo,
seguidos de longas declamações à madrugada:
Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol
que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e
Vico e Proudhon; e Hugo, tornado poeta e justiceiro
dos reis; e Balzac, como seu mundo perverso e
lânguido; e Goethe, vasto como o Universo; e Poe,
e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros!
(EÇA DE QUEIROZ apud BERRINI, 2000b,
p.815).
A transposição para a segunda fase é gradual. Em Egito, edição
póstuma, observa-se um estilo mais filiado ao dos moços de Coimbra, por
apresentar detalhes advindos de observações precisas, atento à máxima
―fotografia do real‖. Vale lembrar que a obra é constituída por notas tomadas
na viagem que Eça realizou ao Oriente no final de 1869.
É justamente na segunda fase que se observa a precisão da escrita que
consagra o escritor. De 1871 (ano das Conferências no Cassino) a 1880, Eça
leva ao público o resultado fecundo da sua observação aguda, crítica, apurada
da sociedade portuguesa. O crime do Padre amaro e O primo Basílio, obras
de sucesso junto ao público, são títulos tidos como naturalistas e pertencentes
a esse momento, o da segunda fase. Porém, com a publicação de O
Mandarim, pequena novela publicada em julho de 1880 no Diário de
Portugal, cujo enredo possui teor fantástico, Eça se distancia do estilo
realista-naturalista e encaminha-se para um discurso impressionista,
desenvolvendo narrativas com outro estilo.
Para além das produções ficcionais, são consideráveis as colocações
de ordem estética que apresenta em determinados textos, como os prefácios
que escreve para livros de amigos. Em O Brasileiro Soares (1886), de autoria
de Luiz de Magalhães, Eça, aproveitando-se da figura do ―brasileiro‖ contida
na narrativa, evidencia uma suposta falsidade romântica. Segundo ele, os
românticos aproveitam o momento oportuno para tematizar determinado
assunto. Para exemplificar, toma o exemplo do emigrante. Este não agrada,
pois ―esse labrego, largando a enxada, embarca para o Brasil num porão de
galera, com um par de tamancos e uma caixa de pinho‖ (EÇA DE QUEIROZ
apud BERRINI, 2000, p.52). Porém, quando
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
225
[...] este mesmo cavador endinheirado comovia o
Romantismo até à Elegia, quando ele era ainda o
triste emigrante, parando uma derradeira vez na
estrada, para ouvir o ruído do açude entre as
carvalheiras da sua aldeia; quando ele era o pobre
embarcadiço, de noite, do mar gemente, encostado
à borda da escuna Amélia, erguendo os olhos
chorosos para a lua de Portugal... Apenas voltava
porém, com o dinheiro que juntara carregando
todos os fardos da servidão – o saudoso emigrante
passava logo a ser brasileiro, o bruto, o reles, o
alvar. (EÇA DE QUEIROZ apud BERRINI, 2000a,
p.52).
Nesse prefácio evidencia-se a visão da estética plasmada em solo
português. O olhar agudo, preciso e incisivo capta o cotidiano e o analisa. Se
antes o emigrante era um ser que interessava ao romântico, depois passa a ser
repugnante, porque ―o trabalho despoetizara o triste emigrante‖ (EÇA DE
QUEIROZ apud BERRINI, 2000, p.52). O emigrante, então ―brasileiro‖,
apresentado por Luiz de Magalhães em sua obra, traça um novo perfil desse
sujeito, analisado por Eça no prefácio do título:
Querendo estudar um brasileiro, num romance, V.
faz isto, que é tão fácil, tão útil e que nenhum dos
antepassados da literatura quis jamais fazer: abre os
olhos, bem largos, bem claros, e vai de perto olhar
para o brasileiro, para um qualquer, que passe num
caminho, em Bouças, ou que esteja à porta da sua
casa, na Guardeira, com o seu casaco de alpaca. E
imediatamente reconhece que ele, como V. e como
o seu vizinho, é um homem, um mero homem, nem
ideal, nem bestial, apenas humano: talvez capaz da
maior sordidez, e talvez capaz do mais alto
heroísmo, podendo bem usar um horrível colete de
seda amarela, e podendo ter por baixo dele o mais
nobre, o mais leal coração: podendo bem ser
ignóbil, e podendo, por que não? Ter a grandeza de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
226
Marco Aurélio! (EÇA DE QUEIROZ apud
BERRINI, 2000a, p.55).
Ainda nesse segundo momento da evolução literária, não poupa as
bases burguesas. Além da família ser defeituosa na constituição (casamentos
por conveniência), focaliza a mulher, vítima de uma educação romântica, que
a leva ao adultério. Na mesma linha problemática situa-se o clero, portador
de vícios escondidos, como o desvio do celibato, a boêmia, a corrupção,
enfim, a vida desregrada não prevista nos padrões eclesiásticos. O lazer
burguês também vem à cena: os salões, por exemplo, são formados por
personagens frívolas, fúteis, que se divertem por meio da satisfação de vícios
(jogos, bebidas, gula). Esses são frutos das condições culturais, da educação e
da literatura, que são insistentemente atacados pelo escritor português.
Se nesse momento de sua produção Eça segue as recomendações da
teoria do romance realista advindas da literatura francesa, numa análise
perspicaz dos tipos sociais, adiante essa veia incisiva se dilui, tornado-se bem
menos diretiva, traço caracterizador da fase que vem recentemente
denominada entre os estudiosos ecianos de ―último Eça‖. Não que perca sua
crítica, mas a operacionaliza de forma conjugada a outros elementos,
observando diferenças e deveres sociais, numa espécie de conscientização
coletiva. É o que se observa, por exemplo, nos contos das Últimas páginas
(obra pñstuma), especialmente em ―S. Cristñvão‖. Nele, Cristñvão se mostra
um homem puro e inocente, que ajuda espontaneamente o povo, tendo em
vista a vaidade e a hipocrisia da sociedade causadoras da exploração dos
humildes, o que faz dele um homem de ações, acima de ideologias,
preocupado em resgatar valores nobres.
Assim, juntamente com as produções ficcionais mais conhecidas, Eça
de Queiroz vai produzindo os contos, tipo de narrativa que vai acompanhá-lo
durante toda sua história literária, ainda que, para Álvaro Lins (1959), ele os
produza para colaboração remunerada ou amizade. O interesse por essa
modalidade é observado desde seus primeiros exercícios. Levando em
consideração as colaborações para a Gazeta de Portugal e Districto de Évora
constata-se que as primeiras histórias publicadas datam de 1866, estendendose até 1897, atravessando, portanto, toda a história literária do escritor e seus
diferentes momentos de criação estética. Na Gazeta de Portugal publica ―As
misérias: Entre a neve‖, ―Farsas‖, ―O milhafre‖, ―O Senhor Diabo‖, ―Onfália
Benoiton‖ e ―Memñrias duma forca‖, títulos mais tarde organizados nas
Prosas Bárbaras. Os contos nunca foram reunidos para publicação em vida
do escritor; Eça sempre os apresentou em periódicos brasileiros e
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
227
portugueses. Eles são editados de forma reunida apenas em 1902, dois anos
após a morte do escritor, a pedido de sua esposa, pela editora Lello e Irmãos
Chardron. Nessa edição, que leva o título geral de Contos, constam doze
narrativas, que se tornaram conhecidas dos leitores ecianos: ―Singularidades
de uma rapariga loura‖ (publicada no Diário de Notícias, 1874), ―Um poeta
lírico‖ (publicada em O Atlântico, 1880), ―No moinho‖ (publicada em O
Atlântico, 1880), ―Civilização‖ (publicada na Gazeta de Notícias, 1892), ―A
aia‖ (publicada na Gazeta de Notícias, 1893), ―O tesouro‖ (publicada na
Gazeta de Notícias, em janeiro 894), ―Frei Genebro‖ (publicada na Gazeta de
Notícias, em março de 1894), ―O defunto‖ (publicada na Gazeta de Notícias,
em 1895), ―Adão e Eva no paraíso‖ (publicada no Almanach Enciclopédico,
1896), ―A perfeição‖ (publicada na Revista Moderna, em maio de 1897),
―José Matias‖ (publicada na Revista Moderna em junho de 1897), ―O suave
milagre‖ (publicada na Revista Moderna e dezembro de 1898). São textos
publicados, então, vistos e revisados por Eça quando apresentados para os
periódicos, mas não quando são reunidos nos Contos. Dessa primeira edição
não constam outros títulos contidos na Gazeta de Portugal, talvez pela
extensão ainda menor que os mencionados e por se tratarem de narrativas
tétricas, fantasiosas, influenciadas pelas leituras da juventude. Também não
estão selecionados outros títulos que Eça escreveu.
O questionamento realizado por estudiosos ecianos acerca dessa
edição se refere ao critério adotado, uma vez que não atende nem ao
cronológico nem ao temático. Outras edições posteriores a da organizada
pioneiramente por Luís de Magalhães repetem títulos, mas com pequenas
alterações. É o caso da de Luiz Fagundes Duarte (1989), que inclui o texto
―Tema para versos‖, introdução ao conto ―A aia‖, e também o conto
―Milagre‖. De fato, as publicações são, por vezes, aleatñrias: num texto
análogo a um prefácio desse primeiro título, lê-se:
A História que eu, há dias, desejava contar para que
algum poeta, amigo dos temas fecundos e
estimuladores do pensamento, a compusesse em
versos ricos (e que não contei por me ter demorado
a construir diante dela um pórtico de considerações
gerais) sucedeu na Índia. A Índia, terra das
pedrarias, das galas e dos céus suntuosos, sugere
logo a um artista largos desenvolvimentos
decorativos.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
228
Mas a minha história necessita ser apresentada com
toda a simplicidade na sua nudez moral, sem
paisagens, arquiteturas ou trajes que a
materializem.
O poeta, que, por ela se passar na Índia, a orne de
palmeiras, elefantes, e baiadeiras, corre a um
desastre certo. Sem épocas, sem nomes, sem
localizações que possam verificar num mapa,
abstrata e como acontecida no país das almas, esta
história de uma alma, que se dirige só a alma, deve
vir envolta em tão pouca literatura, como aquelas
que o Povo em sua singeleza genial, torna
profundas – vivas e imoventes, afirmando apenas,
com magnífica indiferença pelas épocas, pelas
nações e pelos costumes. 4
A leitura dessa sequência demonstra o diálogo entre a narrativa que
vai se instaurar com a intenção poética do tema, além de colocar em cena a
estratégia de relacionar ―a Histñria que desejava contar‖ a uma outra que já
existia desde longa data, como as narrativas orais. Tais informações contidas
nesse fragmento não são desprezíveis para a melhor compreensão e
interpretação do conto em pauta e, no entanto, são raras as edições que o
apresentam.
Assim, num primeiro momento, há a sugestão de que os contos sejam
agrupados por critérios temáticos contemporâneos a Eça e por temas bíblicos,
medievais ou mitológicos. Também o volume de Helena Cidade Moura
(1999), editado pela Livros do Brasil, traz o conto ―Outro amável milagre‖,
título não incluído na edição de 1902.
Contudo, outras narrativas produzidas continuavam quase no
anonimato, até que o espólio dos textos originais do escritor é comprado em
1975 e depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa, onde uma equipe de
filólogos e queirozianos se debruçam para estabelecer os textos originais. É
fato que a produção queirosiana sofre alterações, sobretudo em relação aos
títulos póstumos. Quando o autor falece, sua esposa, Dona Emília, em carta a
Ramalho Ortigão, solicita que este e Luís de Magalhães examinem os papéis
que ela recolhera e consultem as editoras Lello e Irmão e Livraria Chardron
4
MATOS, A.Campos. Verbete A Aia. Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa:
Caminho, 1988.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
229
acerca do interesse em publicar os rascunhos. Aceitos os pedidos, ambos
passam a realizar a ―revisão‖ daqueles textos. Sabe-se que Luís de Magalhães
cuida para que as publicações aconteçam. Por outro lado, Ramalho não: após
sua morte, em 1915, seus filhos encontram manuscritos de ―A capital‖, ―O
conde de Abranhos‖ e cartas de Fradique Mendes, que são então enviadas a
José Maria de Eça Queiroz, filho mais velho do escritor, em 1924.
De posse dos manuscritos, e passando por dificuldades financeiras, o
filho ―termina‖ o que era inacabado, imitando o estilo do pai. Declara que
toda obra póstuma de seu pai publicada na editora Lello compunha-se de
trabalhos feitos, completos. A família sempre se manteve muito reservada em
relação aos assuntos mais particulares e muito atenta à forma como a crítica
se posicionava diante do autor, o que causou alguns mal-estares e, de certa
forma, continua causando. O filho declara acerca dos manuscritos: ―É claro
que possuímos, minha irmã e eu, cativos, quantidades de papéis íntimos do
nosso Pai, toda uma vasta correspondência, notas, manuscritos, e tudo isso,
todo esse espñlio é nosso, muito nosso, exclusivamente nosso‖. (SIMÕES,
1980, p. 46).
Com o objetivo maior de preparar a edição crítica dos textos
queirosianos, isto é, de restituir a autenticidade possível ou aquilo que seria a
vontade final do seu criador, a Biblioteca Nacional conserva seu espólio
composto por caixas, contendo por volta de 309 documentos. Fazem parte
desse acervo os manuscritos originais das obras póstumas e semi-póstumas,
cartas a sua esposa e alguns rascunhos de textos. Esse conjunto possui
extensão e natureza muito desiguais, de acordo com o responsável pelos
estudos, Carlos Reis, da Universidade de Coimbra e um dos principais
pesquisadores da produção queirosiana. Segundo ele, após todo o processo de
estudo e posterior estabelecimento dos textos, as edições críticas se
estabelecem em obras de ficção, divididas em não-póstumas, semipóstumas e
póstumas; crônicas e textos de imprensa, epistolografia, organizada em dois
blocos: o doutrinária e o particular; narrativas de viagem e traduções. Vale
dizer que a publicação das edições críticas fica a cargo da Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, e há títulos publicados, como Textos de Imprensa
I, IV, V e VI, O crime do Padre Amaro, Alves e Cia, A ilustre casa de
Ramires, O mandarim, A Capital, Correspondências e Contos II.
Nesse último, quatro títulos pouco conhecidos vêm à tona: ―A
catástrofe‖, ―Um dia de chuva‖, ―Enghelberto‖ e ―Sir Galahad‖,
estabelecidos por Marie-Hélène Piwnick, pesquisadora da produção contista
de Eça. Segundo a estudiosa, esses seguiram a releitura dos filhos do escritor,
e publicados, respectivamente, em 1925, 1929 (segunda e terceira narrativa
mencionadas) e 1966, e apresentam-se, agora, corrigidos e esclarecidos,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
230
levando em conta sua condição ser menos acidentada do que em outros casos.
Os manuscritos, encontrados no escritório do escritor em Neuilly e
transportados para Tormes em 1924, mostram que ―A catástrofe‖
(relacionada com o projeto do romance A batalha do Caia, nunca publicado)
e ―Um dia de chuva‖ são narrativas acabadas, mas ―Enghelberto‖ e ―Sir
Galahad‖, não; tratam-se de rascunhos. A leitura deles mostra que os dois
primeiros estão ligados à preocupação realista do autor, enquanto os dois
últimos com as temáticas medievais.
Além dos acima mencionados que já possuem texto estabelecido
criticamente, outros títulos foram publicados postumamente. Em 1912, Luiz
de Magalhães edita as Últimas páginas – teoricamente os derradeiros textos
de Eça –, contendo as três lendas dos santos (―S. Cristñvão‖, ―S. Frei Gil‖ e
―Santo Onofre‖). Apñs a essa publicação, os originais dos dois primeiros se
perderam e apenas do último é que existem algumas folhas. É curioso
observar que se por um lado busca-se trazer à tona narrativas desconhecidas,
por outro apenas as bem conhecidas recebem maior atenção das editoras
brasileiras nos últimos anos (―Singularidades de uma rapariga loura‖ é
transposta para as telas em 2009 pelo diretor português Manoel de Oliveira),
quando determinados títulos são publicados a custo baixo. Também em
língua estrangeira essas narrativas aparecem no mercado editorial: Rarezas de
uma muchacha rubia5, Singularités d’une jeune fille blonde6, Une singulière
jeune fille blonde7.
É importante ressaltar que a edição da Obra completa, organizada e
fixada pela professora Beatriz Berrini, é completa, não só, mas também, em
relação às narrativas breves. Dela constam desde pequenos textos chamados
por Piwnick ―contos latu sensu‖ (BERRINI, 2000, p.1369), reunidos nas
Prosas bárbaras, passando pelos títulos da primeira edição dos Contos, em
1902 e alcançando títulos póstumos, como os dos santos e aqueles com
edição crítica acima mencionados.
Ainda que a narrativa breve não tenha sido exatamente a sua linha de
produção principal, ela o acompanha durante toda sua carreira de escritor. É
fato que essa modalidade narrativa ganha fôlego no século XIX. Sobre isso,
sabe-se que Eça
5
QUEIRÓS, E. de. Rarezas de uma muchacha rubia. Madrid: Aguilar, 1988.
6
______. Singularités d’une jeune fille blonde. Paris: L‘age d‘homme, 1983.
7
______. Une singulière jeune fille blonde. Paris : Gallimard, 1997
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
231
Escrevia contos, porém, com todos os requisitos do
gênero, como era conceituado no século XIX. Não
fez contos-resumos de romance, não fez contossimples, crônica de um fato ou apresentação de
personagens. Os de Eça são sintéticos,
monocromáticos, casuísticos. Não se sabe se
conheceu os de Maupassant, mas os seus são bem à
antiga: o enredo forma-se sempre de um caso fora
do comum. Neles, Eça esquecerá um pouco os seus
mestres e esquecerá de todo as exigências da escola
realista. Nos romances estará murado pela
disciplina e pelos processos naturalistas; nos
contos, sente-se mais livre para as aventuras da
imaginação. (LINS, 1959, p.30)
Dessa fala destaca-se a ideia da originalidade da narrativa ao tratar de
um assunto diferenciado a tal ponto de merecer ser contado. Porém, nem
sempre seus contos se distanciam dos ideais estéticos realistas defendidos e
difundidos por Eça, até publicamente. É o caso de ―Singularidades de uma
rapariga loira‖ e de ―No moinho‖, para ficar nos títulos mais incisivos desse
ponto de vista.
O próprio autor se manifesta, ainda que poucas vezes, sobre as suas
intenções em relação ao conto. Para ele, a linha de composição deve ser
sóbria, rápida, o que está em consonância com os comentadores da época,
como Poe, no que se refere à brevidade, o que parece estar ligado ao
princípio do bem escrever, bem ouvir e bem compreender. Em outras
palavras, tal procedimento mantém o leitor atento, sintonizado à história bem
contada. A esse respeito, Eça de manifesta em carta aos Condes de Arnoso e
de Sabugosa, em 1895, avaliando o volume De braço dado:
Foi um delicado prazer o ter-vos aqui, toda uma
noite, ouvindo, ora a um, ora a outro, uma linda
história bem sentida, real e no entanto poética, e
contada com uma arte fina e sóbria. Positivamente,
contar histórias é uma das mais belas ocupações
humanas [...]. Todas as outras ocupações humanas
tendem mais ou menos a explorar o homem; só essa
de contar histórias se dedica amoravelmente a
entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
232
Infelizmente, quase sempre, os contistas estragam
seus contos por os encherem de literatura, de tanta
literatura que nos sufoca a vida! Vós não sois
desses: contais simplesmente, com elegância, o que
observais com verdade; e por isso nos dais histórias
vivas que deixam uma emoção viva. (EÇA DE
QUEIROZ apud PISSARA, 1961, p.97)
Essa carta, escrita cinco anos antes de sua morte, guarda a opinião do
escritor experiente, conhecedor da prática da composição e da leitura. Anos
antes, em 1884, em carta a Oliveira Martins, Eça reclama de sua ―névoa
intelectual‖ que o impede até mesmo de encomendar com clareza uma peça
ao alfaiate. Diante dessa ―incapacidade‖, por uma questão de honestidade
literária, limita –se a produzir contos para crianças e sobre a vida dos grandes
santos.
A leitura da correspondência de Eça é reveladora em relação ao
cuidado despendido pelo escritor à elaboração de seus títulos contistas. Em
setembro de 1891, quando já reclama de indisposição física, o autor
comunica a Luís de Magalhães, editor, que acredita ser seu conto
encomendado extenso para a publicação pretendida e que não consegue fazêlo menor sem prejuízos. Afirma: ―Cada vez possuo menos aquela arte de
concisão que caracteriza o verdadeiro escritor‖. (QUEIROZ apud BERRINI,
2000, p.86). Um mês mais tarde, dá notícias ao seu editor que o primeiro
número da revista não pode conter o seu conto, porque não conseguiu
diminui-lo na sua extensão.
Eça, pelo o que pode ser observado na leitura de suas cartas,
reconhece a propriedade necessária para aliar qualidade à brevidade,
compatibilidade alcançada por ele em seus próprios contos.
CONCLUSÃO
O interesse pela forma narrativa breve, convertido na produção de
títulos referenciais em língua portuguesa, é importante no percurso literário
de Eça. Nota-se que desde suas primeiras manifestações no campo da ficção,
os contos tomam sua atenção tanto para afinar seu poder de efabulação em
traços precisos de narratividade, quanto para transitar por questões estéticas
defendidas ou repelidas pelo autor, ainda que não se detenha unicamente a
elas e discuta questões tão íntimas da existência. Pelos contos, transita por
uma variedade temática que ultrapassa adesões ou influências. A esse
respeito, já se disse que o conto, para Eça, ―é geralmente uma tese e uma
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
233
fantasia; ou melhor, uma tese revestida de fantasia – melhor ainda, uma
fantasia armada sobre uma tese‖ (SARAIVA, 1992, p.53). Narrativas cujo
enredo provoca uma leitura envolvente, logo finalizada porque seu discurso é
breve, apresentam uma aparente facilidade de interpretação, o que não é
verdade se se considera aquela ocorrida em nível profundo, construída
artisticamente pela linguagem.
Se no campo da ficção são significativos pela fina qualidade da
composição, pela liberdade de criação, observa-se que, pessoalmente, Eça
tem prazer pelo conto, como se vê na sua correspondência quando menciona
o fato de ouvir histórias ou pela prontidão em ler outros contistas. Aliadas
uma coisa a outra, resultaram as narrativas breves queirosianas, que
encantaram e continuam a encantar leitores do seu e de outros tempos,
envolvidos com histórias que são também as nossas.
THE QUEIROZIAN SHORT STORY PRODUCTION
ABSTRACT: Although he is better known for his novels, the Portuguese
writer Eça de Queiroz has also produced short stories, even if in a small
number when compared to his novelistic production. In them, he discusses
themes of all sorts, transcending the aethetics which he publicly defended, in
order to address typically human issues, such as love, education and other
values related to the Portuguese bourgeoisie of the 19th century.
Nevertheless, despite being such well-composed short narratives, the pleasure
which his author affirms to derive from composing them and their success
amongst readers, they do not receive closer attention amongst literary
scholars, who stop at analysing other aspects of the Queirozian production.
Therefore, this study aims to trace the course of this type of writing in the
author's history and survey the founding elements of the short stories.
Keywords: Short story. Eça de Queiroz. Portuguese Literature.
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Eça de Queirós e Miguel Torga: O humanismo no conto português1
Adriano LOUREIRO2
Rosane Gazolla Alves FEITOSA3
RESUMO: Partindo do termo ―humanismo‖, que pode ser entendido em
sentido lato como a valorização do homem e/ou da condição humana, o
objetivo deste trabalho é analisar a maneira como Eça de Queirós e Miguel
Torga afirmam a situação do homem português sem se restringirem aos
estreitos limites do nacionalismo. Nesse sentido, vislumbrou-se a
possibilidade de revelar algumas características estéticas e teóricas dos contos
de Eça e de Torga por meio das quais se forma um conceito identitário, que
ultrapassa o instinto nacional para se tornar universal. Em outras palavras, os
dois autores problematizam o caráter existencial do ser humano a partir do
indivíduo português e expandem os preceitos filosóficos e políticos com que
estiveram comprometidos nos séculos XIX e XX, respectivamente. Ao
cotejar os contos ―O Tesouro‖, de Eça e ―O Sésamo‖, de Torga, em cujos
enredos há a tradição das lendas medievais, percebemos os traços das
perspectivas socioculturais que cada um dos dois lusos imprime ao processo
de criação literária, sendo o ―humanismo‖, elemento contido no cerne das
obras, um importante ponto para a interpretação de dois dos nomes mais
emblemáticos da Literatura Portuguesa, que mesmo quando representam o
habitante local, alcançam significação para além dos limites regionais.
PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós. Miguel Torga. Humanismo. Conto.
1
Trabalho apresentado em sessão de comunicação do 2º Colóquio Internacional de
Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual de Maringá (2º CIELLI
– UEM/ 2012), sob o título: O humanismo nos contos de Eça de Queirós e Miguel
Torga.
2
UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras de Assis
– Departamento de Pós-Graduação em Letras. Assis – São Paulo – Brasil. CEP:
19807-260 – [email protected].
3
UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras de Assis
– Departamento de Pós-Graduação em Letras. Assis – São Paulo – Brasil. CEP:
19806-900 – [email protected] (Prof. Orientadora/ Co-autora).
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Introdução
Eça de Queirós dedicou-se a produções artísticas mais extensas e,
mesmo quando se propôs à escrita do conto, quase sempre se mostrou
inclinado ao romance, fato que pode ser comprovado pelos doze textos de
Contos (1951), mais ―A Catástrofe‖, ―Outro Amável Milagre‖ e ―Um dia de
chuva‖ que perfazem grande parte da bibliografia eciana no gênero. Alguns
desses contos são tidos como embrionários: é o caso de ―Um dia de chuva‖,
que precede as idéias de ―Civilização‖, que por sua vez foi ampliado para
originar a novela ―A Cidade e as Serras‖, uma das principais obras do autor.
―A Catástrofe‖ e ―Outro Amável Milagre‖ também estabelecem estreita
ligação filosñfica com o escrito ―Ultimatum‖, publicado na Revista de
Portugal, e com o outro conto, ―Suave Milagre‖.
Miguel Real4 propõe uma nova periodização da totalidade da obra
queirosiana, dividindo-a em quatro períodos e três fases intermediárias. Eis
os períodos: o Jovem Eça, a Fase de Empenhamento Social (realistanaturalista), a Fase Crítica e a Fase Humanista, sendo a última, de 1893 a
1900, a que nos interessa neste trabalho.
A tentativa de traçar um perfil do autor, baseado na temática e no
processo de elaboração, vai deparar com algumas recorrências que
acompanham Eça desde a juventude até a idade madura. No entanto, pode-se
notar a riqueza e uma diversidade nas atualizações morais e intelectuais do
artista, ou seja, um tratamento diferenciado aos mesmos motes e uma visão
de mundo condizente com os novos contatos artísticos.
Os contos, assim como todos os outros textos, têm propósitos críticos
e estão ligados a questões existenciais, metafísicas, da vivência e do caráter
humano, além de alguns ligarem-se à temática religiosa. A disposição
adotada em Contos (1951) obedece a um critério cronológico, dado pelo
primeiro que organizou esses textos em volume (1902), seu amigo, Luís de
Magalhães. Da mesma forma, Marie-Hélène Piwnik, na introdução da
obra Contos I (2009, p. 15-32), dá mostras do que nomeia ―uma autêntica
porosidade entre os vários tipos de contos escritos por Eça‖:
Os ―Milagres‖ não sñ participam das preocupações
de ―religiosidade social‖ do autor a partir de 1885,
4
Miguel Real é o pseudônimo do professor e escritor, Luís Martins (Lisboa, 1953).
Publicou obras de ensaios sobre filosofia, teatro, crítica literária, romances e vários
manuais escolares. (Cf. Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas. Disponível em:
<http://www.dglb.pt>).
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como oferecem uma belíssima evocação dos
tempos evangélicos, já presente n‘―A Morte de
Jesus‖ (1870). Por outro lado, as preocupações
estéticas são manifestas nos contos ―realistas‖, que
não desdenham a estrutura do conto de fadas; as
preocupações ideológicas estão latentes nas
―Histñrias‖,
embora
pareçam
de
puro
entretenimento; as intenções realistas não desertam
dos contos fantasistas, impondo imagens fortes e
cruas que embatem contra as convenções do género
(PIWNIK, 2009, p. 20-1).
Para um breve comentário tomamos o conto ―O Tesouro‖ (que foi
publicado pela primeira vez em 1894, na Gazeta de Notícias e,
posteriormente na coletânea Contos em 1902, para tentar demonstrar algo da
última etapa literária de Eça, principalmente buscando elementos para
subsidiar a afirmação de uma tendência que rege seus textos dessa fase
literária. O enredo permite estabelecer um paralelo com a criação de outro
português, Miguel Torga.
Miguel Torga (1907-1995) é o pseudônimo literário adotado pelo
médico Adolfo Correia da Rocha, com o qual passa a assinar os textos a
partir de A Terceira Voz (1934). Segundo os biógrafos, o codinome não foi
escolhido aleatoriamente: ―Miguel‖, é em homenagem múltipla a Miguel de
Cervantes, Miguel de Unamuno, Miguel Ângelo e Miguel Arcanjo; e
―Torga‖, em referência à vegetação arbústea das montanhas do nordeste
português (região de Trás-os-Montes) , evocação de resistência e ligação com
a terra. A fusão dos dois elementos na identidade literária resume um tanto
das crenças e da militância política e social do escritor, encerrando na escrita,
que sempre teve o ímpeto de seguir solitária, sem ligação com grupos
intelectuais, o denotativo de todo o sistema simbólico de uma produção
artística multifacetada, de poeta, contista, novelista, romancista, dramaturgo,
crítico literário e político.
De Torga advém, para esta ocasião, o conto ―O Sésamo‖, do qual
extrairemos os objetos para a análise dos princípios criativos adotados pelo
autor que está inicialmente situado entre o Presencismo e o Neo-realismo
portugueses. Inovador e dono de uma vasta bibliografia, o contista se
diferencia do seu antecessor por diversos aspectos e, aqui, o que será levado
em consideração, são as maneiras como os dois, Eça e Torga, produzem suas
obras nas linhas do que os críticos, neste trabalho representados por Miguel
Real e Eduardo Lourenço, chamam de tendência humanista.
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―O Tesouro‖ e ―O Sésamo‖: o humanismo de Eça e de Torga
O conceito de humanismo que nos serve como ponto básico para a
designação do termo em cada um dos dois autores é aquele, em sentido mais
lato e ideológico, que designa toda a problemática do Homem e sua
ação/relação com a Natureza5.
Buscando definir como os elementos literários se apresentam nos
textos, adotar-se-ão as notações advindas, entre algumas outras, das obras O
Último Eça (2006), de Miguel Real e O desespero humanista de Miguel
Torga e o das novas gerações (1955), de Eduardo Lourenço.
Ao caracterizar a fase humanista em O Último Eça (2006), Miguel
Real, primeiramente, traça um panorama dos ideais defendidos por Eça de
Queirós passando pela febre inicial do ultra-romantismo, pelo naturalismorealismo de uma literatura de denúncia e protesto e pela abertura às novas
experiências em que esteve calcado o realismo céptico da década de 1880.
Segundo Miguel Real (2006, p. 131-2), a partir de 1888, a estratégia
discursiva de Eça não estaria na observação direta da realidade social exterior
com o propósito de desmascará-la e criticá-la e sim se dispondo a privilegiar
a consciência psicológica e a subjetividade interior, englobando os momentos
estéticos e estilísticos vividos; a partir de 1893, temos uma defesa da
―autenticidade humana com intervenção social ativa no sentido de generalizar
o bem entre os povos sem a submissão a uma escola partidária ou filosófica
única‖ (REAL, 2006, p.135), ou seja, as últimas produções de Eça perfazem
uma espécie de revisão que reúne o conteúdo filosófico de toda sua obra.
A expressão ‗humanismo‘ significa aqui o ponto de
vista de um autor que planeia colocar-se
epistemologicamente acima dos grupos sociais em
contenda, dos interesses conjunturais da sociedade,
visando abarcar a Sociedade e a História como um
todo, uma espécie de olhar majestático por que
conclui que o que acontece actualmente já de modo
semelhante aconteceu em outras épocas (tempo) e
5
O dicionário Houaiss define humanismo, em uma das três acepções: ―Conjunto de
doutrinas fundamentadas de maneira precípua nos interesses, potencialidades e
faculdades do ser humano, sublinhando sua capacidade para a criação e
transformação da realidade natural e social, e seu livre-arbítrio diante de pretensos
poderes transcendentes, ou de condicionamentos naturais e histñricos‖.
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em outras sociedades (espaço). Assim, o
humanismo conduz, normalmente, a um certo
relativismo comparatista entre épocas e sociedades
diferentes e este relativismo conduz, por sua vez, a
um certo cepticismo, que serão justamente o
relativismo e o cepticismo do Último Eça (REAL,
2006, p. 67).
O conto ―O Tesouro‖, tomado aqui como representante dessa etapa
confluente, mostra peculiaridades diferentes daquelas pelas quais o artista
alcançou o auge da divulgação, de preceitos realista-naturalistas, em que a
ironia pode ser facilmente depreendida. Em uma simplicidade formal, narra
em dez páginas, a saga de três irmãos miseráveis de uma aldeia/vila chamada
Medranhos: Rui, Guanes e Rostabal, que localizam um cofre, onde estava
armazenada grande quantidade de moedas de ouro. A partir de então, cada
um dos irmãos trama a morte do outro, para evitar a divisão do tesouro; o
episódio demonstra a traição familiar na qual a ganância pela riqueza culmina
com a morte dos três: dois por golpes de espada e o último envenenado.
A obra pode ser classificada como alegórica, de um período literário
em que os valores morais são tratados através de uma aparente ausência de
sistematização filosófica. Alegórica em sentido geral, como expressão
figurada de pensamentos e idéias e de um modo simbólico em que o acordo
entre o conjunto dos planos artístico e social se dá traço a traço.
A degradação das personagens do conto, antes de ser lido
exclusivamente pelo viés decadentista, em que impera o pessimismo e o
descrédito pelas instituições humanas e pelo próprio ser humano (leitura que
seria até justificável pela simpatia que Eça nutria pelos preceitos do
Simbolismo que surgia), o episódio medieval dos três homens de Medranhos
deve ser notado como retrato da ―unidade harmñnica da sua multiplicidade‖
[...] Último Eça, sem ideologia definida, sem
filosofia doutrinária assumida, se propõe (empenhase revolucionariamente através da escrita) a
combater a decadência da Europa e de Portugal,
desmistificando e satirizando, pelo romance, pelo
conto e pela crónica, os quatro pilares vetores da
sociedade finissecular oitocentista: a ‗democracia‘
sem hierarquia de valor e mérito, ‗o predomínio do
dinheiro, a educação positiva e a decadência do
Evangelho‘ (REAL, 2006, p. 14).
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Atento ao fervilhar cultural de sua época, Queirós escreve textos
tidos por ―programáticos‖, que expõem ensaisticamente sua visão de mundo
com princípios intelectuais sobre a ciência, as novas propostas do
Simbolismo e a necessidade de renovação espiritual. A absorção dos aspectos
artísticos provenientes do contato com autores como Alberto d‘Oliveira,
António Nobre e De Vogüé, entre tantos outros, contribui para a
transformação mental que se opera nas obras de Eça da última década,
sobretudo quanto à afirmação da incapacidade de o rigor científico explicar
todos os mistérios da vida e satisfazer a ambição ideológica e afetiva do
homem, ordem que estava em alta naquele momento e que começava a ser
contestada pelos simbolistas.
Apesar de Eça participar desse novo cenário e compactuar do espírito
inovador que se sobrepunha à estética naturalista e à literatura experimental
de cunho positivista, esta etapa humanista na qual se orienta o presente
artigo, ainda pouco explorada, se destaca pela confluência de estilos, pelo não
abandono total do método realista, conforme se pode perceber na passagem
do conto ―O Tesouro‖:
Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a
neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o
calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas
como eles, roíam as traves da manjedoura. E a
miséria tornara estes senhores mais bravios que
lobos (QUEIRÓS, 1951, p. 113).
A tendência animalista que visava desnudar as imperfeições e os
desvios de caráter dos homens não deixa de existir totalmente, mas se presta
agora ao papel de complementar uma linha que caminha para focalizar as
inquietações no plano do pensamento e das idéias, em detrimento da ênfase
na linguagem preocupada com os aspectos de representação da realidade. Em
outras palavras, encontram-se no conto trechos descritivos típicos da fase
realista-naturalista, mas que agora vão subsidiar um enredo essencialmente
humanista, onde, interpretando Real (2006, p. 134-5), residem outras marcas,
como a sobrevalorização do ―pobre‖, com inclinação para uma visão
generalizadora do bem e da igualdade entre as pessoas, e a recorrência de um
―fator histñrico‖ que promove o diálogo no campo das idéias e das próprias
fases da História.
É justamente esta característica de cunho historicista por que
penetramos no humanismo do Último Eça: o desprendimento da conjuntura
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histórica circunstancial e a projeção, nos fatos narrados e na estratégia de
narração, de uma visão sobre outras épocas ou sobre a totalidade da História.
Relevante para a análise de ―O Tesouro‖ é a referência ao "Reino das
Astúrias", que delimita a narrativa no tempo (entre 718 a 925 D.C., período
em que perdurou o reino) e no espaço (norte da Península Ibérica). O
regresso histórico à formação da Espanha e de Portugal (o reino das Astúrias
deu origem aos reinos de Leão e Castela, posteriormente, ao Condado
Portucalense e, por fim, a Portugal) pode ser tomado como um exemplo do
que Miguel Real (2006, p. 13) chamou de ―comprometimento ético universal
não cristão, mas meta-histñrico‖. Assim, a obra alegorizaria o início da
civilização portuguesa, como se, ainda na Idade Média, a onipotência da
riqueza já prenunciasse sua permanência por toda a história do país.
Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de
domingo, andando todos três na mata de
Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar
tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas
pastavam a relva nova de Abril, — os irmãos de
Medranhos encontraram, por trás de uma mouta de
espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de
ferro. Como se o resguardasse uma torre segura,
conservava as suas três chaves nas suas três
fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através
da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E
dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de
ouro! (QUEIRÓS, 1951, p. 113-14, grifo nosso).
O excerto traz a marca que confirma a presença moura na terra onde
se desenvolve a trama, como também se vê na cena imediatamente posterior à
morte do primeiro irmão, Guanes:
[...] Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios
da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso,
arreganhando a longa dentuça amarela, não queria
deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao
comprido das sebes. Teve de lhe espicaçar as ancas
lazarentas com a ponta da espada — e foi correndo
sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um
mouro, que desembocou na clareira onde o sol já
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não dourava as folhas (QUEIRÓS, 1951, p. 119,
grifo nosso).
Além dos indícios da existência islâmica, que corroboram para
sustentar a característica de uma narrativa, ao mesmo tempo, histórica
ficcional e de linguagem lírica, o trecho, ao exaltar a lealdade do animal em
permanecer ao lado do dono, provoca o contraste com a atitude gananciosa e
infiel dos homens: não é forçoso inferir das entrelinhas um idealismo
queirosiano, haja vista que outras obras suas dessa época sinalizam para a
sincronia de elementos de propensões literárias novas e passadas. A
subjetividade e a ironia peculiares das críticas sociais de Eça estão presentes
no pensamento do personagem Rui, pouco antes de tomar o vinho
envenenado: no caso, os dogmas católicos são caracterizados como
materialistas, pomposos e aparecem como álibis da corrupção humana:
E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só
restassem, sob as neves de Dezembro, alguns ossos
sem nome, ele seria o magnífico senhor de
Medranhos, e na capela nova do solar renascido,
mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos
mortos... Mortos, como? Como devem morrer os de
Medranhos — a pelejar contra o Turco! (grifo
nosso) (QUEIRÓS, 1951, p. 120, grifo nosso).
As deploráveis condições físicas do início do enredo vão se
transformando em degradação moral dos indivíduos, desencadeada com a
descoberta do tesouro. A idéia de que o poder destrutivo da ganância pelo
dinheiro é maior que aquele das intempéries da pobreza é ensaiado através de
uma trama bem articulada, em forma de parábola, característico dessa última
fase de Eça, a se confirmar por outras obras como, por exemplo, ―A Aia‖, ―O
Suave Milagre‖, ―Frei Genebro‖ e ―São Cristñvão‖. Comum a tais textos está
a opção pelo modelo moralizante, que sempre prega um comportamento
socialmente aceitável em suas ―lições‖.
Agora, a partir de 1888, Eça não pretende fazer
(década de 1870) ou retratar (década de 1880) a
História, mas avaliá-la, não pretende transformar
Portugal criticando as suas elites, mas avaliar todas
as idéias que ideológica ou filosoficamente
encapuçaram Portugal, levando a democracia
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constitucional ao fracasso e fazendo perigar a coroa
de D. Carlos I (REAL, 2006, p. 134).
Ao explicitar o moralmente incorreto, intenta que o leitor reflita sobre
o moralmente correto, mas o faz de maneira velada, exigindo para a
depreensão cognitiva das noções postas no texto a transposição da estrutura
pronta que se percebe em ―O Tesouro‖. O esqueleto pré-moldado da narrativa
abriga as convicções de vida do artista que, se outrora escandalizou ao
escancarar as intimidades da sociedade, nesta etapa final refina (ou
simplesmente afina) o seu fazer literário, colocando nele toda a experiência
adquirida.
Antonio Sérgio (1970), sabendo que nada está posto ao acaso, ou
melhor dizendo, que tudo funciona engenhosamente no conjunto textual,
articula uma análise em que apresenta uma sequência lógica para dar
significado à imagem do cofre cheio de ouro:
Outro traço de moralista está no destino do tesoiro,
se o tomarmos como um símbolo. O que nos pode
dar felicidade duradoura, constante, é a acção
generosa, é a actividade fecunda: não a simples
passividade da satisfação sensível, que acaba em
saciedade ou decepção. Quando o buscamos como
simples instrumentos de satisfação sensível, – todos
os tesoiros que ambicionamos ficam na mata de
Roquelanes (SÉRGIO, 1970, p. 15).
A proposição parece associar o moralismo adotado em ―O Tesouro‖
ao tão controverso e discutido processo empregado na obra-prima A Cidade e
as Serras (1901): o ideal de simplicidade e, por conseguinte, a abnegação à
riqueza e coisas afins. O conto contém nas entrelinhas uma defesa ao
―desapego material‖ e nessa esteira pode-se cotejar com aquele romance de
sucesso. Assim aceita, a proposta do conto, por mais que se diferencie das
demais obras, mantém sinais de um método queirosiano. Ainda que a
temática seja pouco variável, prática que muitos críticos apontam como
negativa no autor, a abordagem no conto se mostra criativa por fundir
tradição6 e contemporaneidade no mesmo gênero literário.
6
―O Tesouro‖, segundo esclarece Castelo Branco Alves, foi inspirado na estrutura
dos Canterbury Tales, de Chaucer, que datam do século IV.
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O humanismo de Miguel Torga aparece em outra configuração,
segundo o crítico Eduardo Lourenço. O contista transmontano traz no cerne
de suas obras um sentimento de agonia que se traduz na vivência do Homem,
em sua relação com a Natureza e, mesmo falando das cercanias da região
nordeste de Portugal, atinge uma abrangência universal. Esse sentimento
aflitivo é denominado por Lourenço (1955, p. 22) de desespero humanista (e
não ―humano‖), porque entende que sua expressão supera os limites humanos
e individuais da inquietação do poeta e a forma dos textos de Torga, o seu
―conteúdo-manifestação‖, está tanto para o poeta na sua situação singular
(de luta consigo mesmo) quanto para o poeta no mundo (sobretudo em
matéria sociológica, literária, de atualidade histórica, política e religiosa).
Para Lourenço, o desespero na linguagem artística é humanista ainda
por fixar o indivíduo no universo da imanência, ou então, por afastá-lo de
Deus na busca de explicação e solução para as iniquidades da vida.
A expressão meditada dentro de uma linguagem e
uma arquitectura voluntariamente nítidas e
acabadas, a espécie de indecisão e luta que nela se
trava entre um conteúdo que devia fazer explodir a
forma e, todavia, se consegue moldar nela, levounos a designar esse desespero como humanista.
Mas ele é ainda humanista noutro sentido mais
importante ainda. É humanista por ser filho da
intenção mil vezes expressa na obra de Miguel
Torga de confinar a realidade humana unicamente
no Homem e na sua aventura cósmica, embora a
presença mesma desse desespero testemunhe que
essa intenção não encontra no espírito total do
poeta uma estrada luminosa e larga (LOURENÇO,
1955, p. 49-50).
Apesar de O desespero humanista de Miguel Torga e o das novas
gerações (1955) se pautar na análise da poesia, estende o tom desesperador
também para a prosa. Em toda a obra torguiana, a luta pela sobrevivência se
faz destituída do auxílio divino e o ser humano é obrigado a se curvar diante
da natureza e reconhecer nela a verdadeira força. A configuração do ambiente
rural não dá margem à ação mítica e os acontecimentos da vida tendem a
concentrar a narrativa nos aspectos verossímeis, nos quais também se
adéquam a vida animal e a vegetal daquela geografia transmontana. Nessa
concepção de mundo, o sentido angustiante está contido: a vida real
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reivindica todos os esforços, suplantando a manifestação da fantasia ou
qualquer atitude que possa afastar o indivíduo da destinação que se conserva
através das gerações.
O conto ―O Sésamo‖ traz a atitude do menino Rodrigo frente às
histórias contadas por um adulto, Raúl. A criança acredita piamente na idéia
da existência, no alto da montanha, de um tesouro que se revelaria do interior
da terra ao brado de um ―– Abre-te, Sésamo!‖ e decide buscá-lo. A aventura
fantasiosa acaba fracassada e o personagem é trazido à realidade pelo berro
de uma ovelha que está a parir.
O contraste entre a rusticidade, a que os personagens torguianos estão
sempre submetidos, e o universo encantado protagonizado pela criança serve
para valorizar a cultura, a tradição e a natureza: logo no início do conto,
definem-se as ―coisas da terra‖ como sendo o que há de efetivamente valioso.
Urros, em plena montanha, é uma terra de ovelhas.
Ao romper de alva, ainda o dia vem longe, cada
corte parece um saco sem fundo donde vão saindo
movediços novelos de lã. Quem olha as suas ruelas
a essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante,
pardo do lusco-fusco, a cobrir os lajedos. Depois o
sol levanta-se e ilumina os montes. E todos eles
mostram amorosamente nas encostas os brancos e
mansos rebanhos que tosam o panasco macio. A
riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas
nuvens merinas que se lavam, enxugam e cardam
pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenar
(TORGA, 1959, p. 106, grifo nosso).
Anterior à desilusão de Rodrigo com o fracasso de sua ―voz de
comando‖ está a exaltação da economia local como a verdadeira fonte de
riqueza, já prenunciando, de certa forma, o desfecho do conto. O elemento
telúrico, tão característico de Torga, vai construindo no leitor a imagem do
cotidiano da aldeia e revela a estreita relação homem-natureza que define o
humanismo torguiano. O bucolismo, que abriga a linguagem aldeã da arte
dita animalista, permite identificar em Torga uma ―técnica naturalista de
reduzir o comportamento humano a uma fisiologia tão estrita quanto
possível, e de, convergentemente humanizar os animais‖ (LOPES, 2002, p.
75). Ocorre em ―O Sésamo‖, na mesma esteira, a formação de uma imagem
―animalizada‖ da terra: o rebanho passa a constituir as paisagens da ruela e
das encostas dos montes, como se fosse a ―matéria-prima‖ daqueles espaços;
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e em outro momento forma uma ―metáfora‖ em que o autor aproxima a
montanha de uma ―fêmea grávida‖.
Daquela feita tratava-se de uma história bonita, que
metia uma grande fortuna escondida na barriga de
um
monte.
E
a
ganapada
masculina,
principalmente, abria a boca de deslumbramento.
Todos guardavam gado na serra. E a todos tinha
ocorrido já que bem podia qualquer penedo dos que
pisavam estar prenhe de tesouros imensos. Mas que
uma simples palavra os pudesse abrir - isso é que
não lembrara a nenhum (TORGA, 1959, p. 107,
grifo nosso).
Os indícios das conexões idílicas são efetivados no encerramento
do conto, fechando o ciclo para formar a alegoria que dá o sentido de toda a
história. A frustração e as lágrimas de Rodrigo pela ineficácia da palavra
encantada são interrompidas pelo nascimento de uma ovelha que exige o
acompanhamento do pequeno pastor.
Valeu-lhe a feliz condição de criança. Ele ainda a
chorar, e já a mão do esquecimento a enxugar-lhe
os olhos. Breve como vem, breve se vai o pranto
dos dez anos. A ovelha chamava sempre. E o balido
insistente acabou por acordá-lo para a realidade
simples da sua vida de pastor. Ergueu-se, desceu da
alta fraga enganadora, e, de ouvido atento, foi
direito ao queixume.
- Olha, era a Rola...
Um cordeiro tinha nascido já, e a mãe lambia-o. O
outro estava ainda lá dentro, no mistério do ventre
fechado (TORGA, 1959, p. 113).
A riqueza esperada do ―ventre‖ da montanha vem mesmo das
entranhas do animal e o tesouro que fascinava a criança se materializa em um
cordeiro recém-nascido.
As cenas de nascimento (humano e animal), apesar de muitas vezes
secundárias no enredo, figuram como ―intenção‖ claramente identificável na
maioria dos contos de Miguel Torga e, para Lopes (2002, p. 78), a frequente
afirmação do início da vida frente aos desafios que a ela se impõem formam
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uma dialética composicional muito bem lograda, como é o caso da
perpetuação da vida em ―O Sésamo‖ que, mesmo sendo a de um animal,
encontra-se intrinsecamente ligada à trajetória do homem. Um homem que ao
tentar fugir de sua sina é trazido de volta e forçado a manter os pés no chão,
submetendo-se aos caprichos de uma soberania mítica, cuja presença não se
percebe e que em nada contribui para a sobrevivência do transmontano.
O tesouro aparece como subterfúgio, justificado no próprio texto
como elemento de transitoriedade entre dois mundos, não sendo, portanto,
determinante para o sentido do texto.
Das riquezas que encontrasse não sabia ainda o que
fazer. Nem sequer pensara nisso, porque os
tesouros não eram o seu fim verdadeiro. A sedução
de tudo estava no caso em si, no dom de proferir a
ordem e ver a terra rasgar-se submissa e calada
(TORGA, 1959, p. 109).
A utopia infantil transcrita no excerto bem resume o desejo de todos
os adultos da história de dominar as forças da natureza para controlar o
próprio destino. O autor projeta no menino a liberdade de experimentar uma
realidade transcendente para em seguida mostrar, uma vez mais, no calejado
aprendizado do passar dos anos que a resignação se torna a tônica dominante.
A reação do montanhês (ou a ausência dela) não significa dizer que há falta
de indignação. Pelo contrário, no mundo descrito, mesmo latente, está a má
sorte do Homem, que clama por justiça e, não encontrando auxílio de outra
entidade, tem no contista o representante disposto a protestar em seu nome. O
próprio Torga assim se postula no prefácio à segunda edição dos Novos
Contos da Montanha (1959) e, em tal perspectiva, confirma a presença
contextual na obra, o seu ―comprometimento social e político‖, através do
qual se tornou conhecido. Note-se a relação de paratextualidade7:
Poeta, prosador, é na letra redonda que têm
descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se
imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a
máquina estampa, fica na alma do artista a sua
condição de homem gregário. E foi por isso que fiz
7
Para Genette, paratextualidade é a relação que o texto mantém com os escritos que
o acompanham, entre os quais o prefácio, os comentários autógrafos. (Cf.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: la litterature au second degre).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
249
aqui uma promessa que te transmito: que estava
certo de que tu, habitante dos nateiros da planície,
terias em breve compreensão e amor pela sorte
áspera destes teus irmãos. [...] me senti humilhado
com tanto surro e com tanta lazeira, e
envergonhado de representar o ingrato papel de
cronista de um mundo que nem me pode ler. Tomei
o compromisso em teu nome, o que quer dizer em
nome da prñpria consciência colectiva‖ (TORGA,
1959, p. 8-9).
O homem que lê Torga não é aquele que protagoniza seu conto. O
―habitante dos nateiros da planície‖ é o leitor a quem essa literatura solicita
―compaixão‖. Ao alcançar objetivo receptivo, a filosofia torguiana amplia seu
campo de atuação, despertando a atenção não só para o espaço de Trás-osMontes, mas para todo o Portugal ou para onde quer se possam identificar os
infortúnios do ser humano no curso de seus dias.
Resumidamente, a obra de Miguel Torga apresenta a mesma temática
do conto queirosiano, entretanto o advento do tesouro é explorado por um
viés positivo. Deixa-se de destacar a ganância do ser humano para se
sobrecarregar no lirismo da inocência pueril, cuja crença acaba compondo o
par antitético realidade-imaginação. Um lirismo que é para Moisés (2005, p.
241) ―desentranhado do dia-a-dia, que não se confunde com sentimentalismo,
pois não há, nas vidas retratadas pelo ficcionista, lugar a derramamentos‖. A
crueza da vida na montanha estabelece o caminho a ser seguido e a constante
luta pela vida sem a interferência externa, como se fosse concebida
espontaneamente, torna-se responsável pelo aspecto desesperador do
humanismo de que temos falado.
Humanismo e telurismo são os termos primordiais do regionalismo
torguiano, que Lourenço (1955, p. 26) distingue como realmente interessado
na situação histórica do seu país e não apenas na situação anímica que desse
país se reflete, concluindo o porquê sua literatura é abrangente (representativa
de toda uma coletividade) e não individual (representativa somente dos
anseios da alma do artista).
Considerações finais.
O conceito de humanismo em ―O Tesouro‖ e em ―O Sésamo‖ pode
ser percebido no ponto de partida: a referência inicial do primeiro está no
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
250
―homem português‖, genericamente; do segundo, no ―homem de Trás-osMontes‖, específico. O objetivo é o mesmo: revelar a desventura do Homem.
Eça escamoteia sua indignação e desnuda a corrupção humana por
meio de uma narrativa parabólica8, que é ancorada na realidade portuguesa
pelas alusões históricas. Como se buscasse na Idade Média uma prova de que
a desgraça moral observada na sociedade contemporânea permanece com as
mesmas raízes de outrora, o artista lança mão de uma estrutura composicional
predefinida, mas que recebe o toque criativo principalmente no desfecho,
com a surpreendente morte do último irmão por envenenamento. Quando
suspende o enredo, sem deixar proprietário para o tesouro encontrado, fica
pressuposta a idéia de perpetuação da maldição dos ―Irmãos de Medranhos‖.
Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que
grasnava além nos silvados, já tinham pousado
sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava
o outro morto. Meio enterrado na erva negra, toda a
face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha
tremeluzia no céu.
O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes
(grifo nosso) (QUEIRÓS, 1951, p. 122).
Contrariando o ciclo de verbos no pretérito, o último período do texto
traz uma forma verbal no presente do indicativo, sinalizando um subjetivo
lapso temporal entre o narrador e os personagens, o que reforça a afirmação
de continuidade da degradação moral até a época em que vive Eça de
Queirós.
Em se tratando do desfecho dos textos, encontramos dois
comentários críticos que exaltam a técnica empregada por Queirós e Torga e
classificam de ―surpreendentes‖ as cenas terminais. Feliciano Ramos entende
que a contística eciana se sobrepõe ao mero ato de narrar uma história ou
descrever uma cena. Para ele, nos contos, o modo de pensar do artista é
potencializado em grau máximo e fica aguardando para ser revelado no
último instante.
8
Entenda-se como parábola o conceito trazido por SANT‘ANNA (2010, p. 157):
―[...] adotaremos para a parábola a definição de que se trata de uma forma narrativa,
curta, alegórica, que desempenha funções específicas no interior de um discurso e
que constitui uma forma de épos.‖
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
251
Queirós adopta o processo estético de só descobrir
no final do conto a idéia dominante, a emoção
fundamental, o objectivo essencial. A acção do
conto é conduzida, ora lenta ora rapidamente, para
esse ponto último, que nos aparece de repente e que
abruptamente, sem mais esclarecimentos nem
explicações, determina a suspensão da narrativa. O
leitor recebe a fundo essa impressão final e fica a
meditar, a interrogar, todo mergulhado em
congeminações (RAMOS, 1945, p. 147).
Semelhante interpretação faz Óscar Lopes da escrita de Miguel
Torga. Como exemplo de virtude estética, cita o episñdio ―Jesus‖, de Bichos,
que traz no decorrer de seu breve enredo um momento inicialmente negativo,
pela ausência de vigor, mas que se positiva no fechamento:
Por outra banda, Torga (como Aquilino) parece
muitas vezes não reparar no paradoxo
composicional que consiste em exaltar a vida
individual de um pícaro, ou bicho prosopopeico, em
flash-back a partir do momento da sua agonia ou
decrepitude. Em Bichos esse processo chega a
acusar monotonia. Mas o contista encontra, por
vezes, uma solução mais adequada, suspendendo,
por exemplo, toda a narrativa de uma tensão de
sucessivos reptos ainda irresolvida, no final da
história. Aqui está um dos ingredientes que
impedem ―Ladino‖, a histñria do pardal, de
converter-se em elegia involuntária. [...] quando a
vitalidade se impõe pelo desenho de caracteres,
quer dizer, por rasgos de complexa originalidade
reactiva, o desfecho do conto assume em geral uma
relevância decisiva, pois é só no último instante
que, por uma réplica ou gesto, o carácter central se
define (LOPES, 2002, p. 80).
A mesma configuração pode ser vista em ―O Sésamo‖, quando o
nascimento da ovelha clarifica todo o enredo, que até então aparentava
descabido, permitindo ao leitor interpretar as razões existentes nas
entrelinhas.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
252
Admitindo-se, então, que tal procedimento pode até ser considerado o
principal ponto para se julgar a qualidade artística do gênero literário,
encerram-se estas análises com a certeza de que o conto português tem nestes
dois, Eça e Torga, um nível de apuração do mais elevado grau.
EÇA DE QUEIRÓS AND MIGUEL TORGA: HUMANISM IN
PORTUGUESE SHORT-STORY
ABSTRACT: Starting from the term "humanism", which can be understood in
a broad sense as the valorization of the man and/or of the human condition,
the objective of this work is to analyze how Eça de Queirós and Miguel
Torga affirm the situation of the Portuguese man without restraining to the
narrow limits of nationalism. In this sense, it was envisaged the possibility of
revealing some aesthetic and theoretical characteristics of Eça and Torga‘s
short-story by which an identity concept is formed and which surpasses the
national instinct to become universal. In other words, the two authors discuss
the human existential character from the Portuguese individual and expand
the philosophical and political precepts with which they were committed in
the 19th and 20th centuries respectively. Comparing the short-stories "O
Tesouro", by Eça and "O Sésamo", by Torga, in whose plots there is the
tradition of medieval legends, we perceive the lines of the socio-cultural
perspectives which they print to the process of literary creation, in which
"humanism" is the main element contained in the works, an important
element for the interpretation of two of the most emblematic names of
Portuguese Literature which, even when they represent the local inhabitant,
they achieve significance beyond regional boundaries.
KEY WORDS: Eça de Queirós. Miguel Torga. Humanism. Short-story.
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coord. de Carlos Ceia. Disponível em:
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_i
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
254
Quatro dimensões do microconto como mutação do conto:
brevidade, narratividade, intertextualidade, transficcionalidade1
Cristina ÁLVARES2
RESUMO: O artigo faz o ponto da situação do debate teórico-crítico em
torno da questão do microconto como mutação do conto. Articulando o
diálogo entre três perspetivas diferentes (Lagmanovitch, Zavala, Roas) sobre
esta questão, analisamos o jogo de forças e de interferências recíprocas entre
as propriedades constituintes do microconto: brevidade, narratividade e
intertextualidade, com base em microcontos em espanhol e em francês.
Inserindo o referido debate no âmbito da narratologia e das suas tendências
recentes (abertas pelo cognitivismo, teoria dos mundos possíveis e cultural
turning), examinamos as conceções de narratividade e de intertextualidade
que nele estão em jogo e de que modo elas contribuem para a definição e
caracterização da relação de derivação, contínua ou descontínua, que liga o
microconto ao conto. Constatando o pouco peso que tem a teoria da ficção no
estudo do microconto, introduzimos no debate o conceito de
transficcionalidade que desloca a análise da relação entre as duas formas
narrativas para o plano do conteúdo diegético. Descrevemos o modus
operandi das figuras transficcionais em vários microcontos que podem assim
ser definidos como transficções de contos e concluímos com a noção de
espaço transficcional e suas vantagens em relação à de género.
Conto. Microconto.
Transficcionalidade
Brevidade.
Narratividade.
Iintertextualidade.
Da leitura de ensaios e artigos produzidos por especialistas e
estudiosos do microconto, também chamado microficção ou micronarrativa, 3
1
Este artigo foi produzido no âmbito do projeto article PTDC/CLELLI/103972/2008 Mutações do conto nas sociedades urbanas contemporâneas,
financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. .
2
UM Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas,
Departamento de Estudos Românicos, Braga, Portugal [email protected]
3
Irene Andres-Suárez afirma que estes termos são atualmente sinónimos (apud
Roas, 2010:162) mas Lauro Zavala insiste em separá-los. Zavala tem avançado
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
255
em várias línguas europeias, decorre que este tipo de textos literários breves e
hiperbreves se define por três constantes: a brevidade, a narratividade - estas
duas explicitamente presentes na designação micronarrativa - e a
intertextualidade. Por razões que se prendem com a história literária do conto
e do microrrelato em espanhol é no mundo hispanoamericano que mais se
tem desenvolvido a reflexão e o debate teórico-crítico em torno das formas
literárias breves e hiperbreves. Aí a questão da relação entre conto e
microconto aparece indissociavelmente ligada a uma outra: a do estatuto
genológico da micronarrativa. Trata-se de um género autónomo ou de um
sub-género ? A resposta a esta questão obriga a pensar a origem do
microconto. Podemos dizer que há uma correlação entre a questão genológica
e a questão genealógica4.
Na coletânea de ensaios editada em 2010 por David Roas, Poéticas
del microrrelato, a questão do estatuto genológico do microconto ou
microrrelato é sistematicamente colocada em conexão com a do vínculo que
o liga ao conto moderno, tal como Poe o teorizou. Roas, Álamo Felices,
Ródenas de Moya defendem que a micronarrativa é uma variante do conto –
daí o bem fundado da designação minicuento -, negando-lhe assim um
estatuto autónomo. O microrrelato é uma forma radical e experimental do
conto que agudiza e intensifica as características formais e estruturais deste
género literário breve. Já Andrés-Suárez alinha com Lagmanovitch na ideia
de que a micronarrativa deriva efetivamente do conto mas que a
intensificação da brevidade sofre a certa altura uma transição brusca
várias propostas para distinguir minicuento e minificción em termos de narrativa
moderna e pósmoderna. Numa delas o minicuento mantém, concentrando-a, a
ordem narrativa do conto, enquanto que a minificción descentra ou desloca a
estrutura narrativa do conto (Zavala-a). Noutra, o minicuento é uma narrativa
linear, clássica enquanto que o microrrelato é antinarrativo e moderno e a
minificción, combinando os dois, é pósmoderna. Andres-Suárez critica esta
terminologia (apud Roas, 2010:165).
4
Diga-se de passagem que a ausência em francês da designação microconte – os
termos usados são microfiction ou micronouvelles - também aponta, na esfera
francófona, para uma conceção da micronarrativa desvinculada do conto e,
portanto, diferente daquela que partilham os principais teóricos hispanófonos do
microrrelato como Zavala, Lagmanovitch, Roas e Andres-Suárez,
independentemente de o considerarem ou não um género de pleno direito. O termo
micronouvelle aponta antes para um vínculo de filiação com a novela (que não
significa o mesmo que novela en espagnol) e um especialista como Andreas Gelz
defende que a micronarrativa deriva de mutações do romance.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
256
correlativa de uma mutação estrutural que eleva a micronarrativa à condição
de género autónomo (apud ROAS, 2010, p.162). Por outro lado, Rojo e
Trabado Cabado acentuam a natureza transgenérica da micronarrativa,
aproximando-a de géneros não narrativos como o aforismo ou a lírica, o que
os leva a postular um estatuto genologicamente dependente, duvidando no
entanto que essa dependência derive do conto. No seio da corrente
transgenérica, Zavala também dá grande destaque à dimensão
genologicamente híbrida e fronteiriça da micronarrativa (ou minificción) mas
define-a como uma mutação pósmoderna do conto.
Brevidade
Embora todos digam que a brevidade não se mede em número de
páginas, de palavras ou de caracteres, a verdade é que especialistas como
Lagmanovitch ou Zavala usam esse critério para distinguir entre narrativa ou
conto breve/curto, muito breve/curto e hiperbreve/ultracurto. Em princípio
uma micronarrativa não ultrapassa as duas páginas impressas mas há-as de
apenas sete, como o Dinosaurio de Monterroso: 'Cuando despertó, el
dinosaurio todavía estaba allí', ou mesmo de quatro palavras, como ‗El
Emigrante‘, de L.F. Lomeli: « ¿Olvida usted algo? -¡Ojalá! ».
Tendemos a pensar a brevidade da micronarrativa como a qualidade
que determina as outras: concisão, depuração, economia de meios,
intensidade. Autores como Lauro Zavala pensam a brevidade como
propriedade condicionada em grande parte pelos novos media: uma história
deve caber num ecrã de computador ou de telemóvel – e em geral pela forma
de vida e pela sensibilidade pós-moderna contemporânea:
Tal vez el auge reciente de las formas de
escritura itinerante propias del cuento brevísimo, y
en particular las del cuento ultracorto, son una
consecuencia de nuestra falta de espacio y de
tiempo en la vida cotidiana contemporánea, en
comparación con otros períodos históricos, y
seguramente también este auge tiene alguna
relación con la paulatina difusión de las nuevas
formas de la escritura, propiciadas por el empleo de
las computadoras. (ZAVALA, 2002, p.552).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
257
Tanto os novos media como o fim das grandes narrativas de
emancipação universal (LYOTARD, 1979) são sem dúvida fatores
contextuais muito propícios à prática da narrativa breve, mas é preciso não
esquecer que esta surgiu na cena literária muito antes do advento da Internet.
A narrativa breve, muito breve e extremamente breve surge sob a ação
conjugada do modernismo e do desenvolvimento da imprensa na transição do
século XIX para o século XX – veja-se por exemplo les nouvelles en trois
lignes de Fénéon – e resulta de mutações da narrativa (ROAS, 2010, p.33)
causadas principalmente pela fragmentação do romance (NUÑEZ
SABARÍS). Sem escamotear o impacto de novos suportes e meios de
comunicação sobre a forma e a estrutura dos textos, David Roas e outros
teóricos do microrrelato põem a tónica nos fatores estruturais,
intrinsecamente literários para dar conta da brevidade deste textos. Para Roas
o microrrelato é mais uma variante do conto, que corresponde a uma das vias
de evolução do género desde que Poe colocou os seus princípios básicos.
Essa via é a da intensificação da brevidade. Esta aparece assim não como
consequência direta de fatores contextuais mas como uma propriedade
estrutural ainda que não a priori do microrrelato. Isto quer dizer que a
brevidade não é uma condição determinante das outras características das
micronarrativas: concisão, depuração, intensidade, mas é, isso sim, diz Roas,
o efeito direto da máxima expressão a que são levadas as potencialiadades do
conto: condensação, intensidade, economia de meios, unidade de efeito. A
unidade de efeito (o impacto do final único) - a característica sine qua non
que, segundo Edgar Allan Poe, define o conto – está na mira do microconto
porquanto este resulta de uma radicalização, própria da literatura
experimental, da estrutura do conto. Daí a importância do final
surpreendente, revelador ou desconcertante (ROAS, 2010, p.25). Elipse,
paralipse e frequência singulativa (contar uma vez o que aconteceu uma vez)
são estratégias narratológicas fundamentais do conto, cuja concertação
produz a brevidade.
Diferentemente de Zavala, que acentua a importância de fatores
extra-literários (ideológicos e tecnológicos), Roas entende portanto o
microrrelato no âmbito de uma dinâmica intra-literária e intra-genológica,
que o vincula continua e inelutavelmente ao conto, do qual mais não é do que
um sub-género5. Por sua vez, Lagmanovitch alinha com Roas no que diz
5
Numa conferência proferida no simpósio Microcontos e outras microformas,
realizado na Universidade do Minho, em Braga, em outubro de 2011, David Roas
voltou à questão do estatuto genológico do microrrelato mas agora sob o ângulo
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
258
respeito ao âmbito genologicamente interno da dinâmica da mutação,
considerando no entanto que se dá a certa altura uma rutura do vínculo de
filiação que liga o microrrelato ao conto. Tal rutura marca o acesso da forma
narrativa breve e hiperbreve ao estatuto de género autónomo.
Narratividade
Tanto David Lagmanovitch como David Roas optam pelo termo
microrrelato que, sendo mais geral do que o de minicuento, afrouxa o laço
que liga ao conto estes textos curtos e ultra-curtos, pondo a tónica na
narratividade a que o prefixo micro ou mini acrescenta a brevidade. Para
Lagmanovitch a narratividade é uma categoria chave das micronarrativas que
permite distingui-las dos microtextos (que existem em vários tipos, géneros e
modos, inclusive extra ou não literários) e das microficções (um texto pode
ser ficcional sem ser narrativo).
Porém a brevidade não deixa de ter uma ação negativizante sobre a
narratividade. Lagmanovitch reconhece-o quando fala da mutação estrutural
que corta o cordão umbilical ligando a micronarrativa ao conto. Afirma então
que essa mutação consiste na redução ou supressão de alguns componentes
da sintagmática narrativa, entendendo-se por tal a sequência exposiçãocomplicação-clímax-desenlace (LAGMANOVITCH, 2006, p.135). Ora,
sendo o conto o exemplo por excelência de uma estrutura narrativa articulada
sobre esta sequência, é justamente sobre a integridade da sua sintagmática,
desenrolada numa ordem sequencial do tempo, que a brevidade faz incidir a
sua ação. Nesta perspetiva, o tempo é a categoria narrativa diretamente
afetada. A brevidade obriga a encolher drasticamente o tempo através do
sumário e da elipse, reduzindo a sucessão de ações a uma ação única contada
uma única vez. É pois na frequência singulativa que reside a narratividade da
micronarrativa, forçosamente reduzida e condensada, mas também por isso
em elevado grau de concentração e densidade. Se por um lado a brevidade
des-narrativiza ao nível da ordem, ela hipostasia a narrativa ao nível da
frequência. Veja-se como esta novela em três linhas de Fénéon se estrutura
numa sintagmática impecável reduzida à sua expressão mínima: uma única
ação (presente histórico equivalente ao passé simple) transforma um estado
(valor iterativo do imperfeito): 'Les filles de Brest vendaient de l'illusion sous
pragmático da receção, tendo concluído que as estratégias de leitura do microconto
não são diferentes das do conto.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
259
les auspices de l'opium. Chez plusieurs la police saisit pâte et pipes (Havas)'
(FÉNÉON, 1998, p.10).
Das micronarrativas diz Marielle Macé que são narrativas sem
narratividade (MACÉ, 2010, p.218) mas também não seria propriamente
inadequado falar de narratividade sem narrativa. Se a expressão de Macé
supõe que a narratividade é temporalidade e sequencialidade, situando-se
portanto no plano imediatamente apreensível do discurso da narrativa, já a
expressão quiasmicamente correlata supõe a narratividade a um nível
semântico mais profundo onde ela é apreensível apenas como tensão
narrativa, sustentada por aquilo a que a teoria semionarrativa chama uma
categoria sémica6. Lagmanovitch fala, a propósito da narratividade, de um
modelo de estrutura universal fundado num conflito entre 'entidades
contrastantes' (2006:44), i.e., num antagonismo entre actantes. Por mais
esquemática ou elítica que seja, há na micronarrativa um núcleo compacto de
narratividade que permite ao leitor inferir uma história. O que está em jogo é
menos a trama narrativa do que a tensão narrativa. Aos olhos de
Lagmanovitch como de Roas, a presença desta tensão delimita a esfera dos
microrrelatos no conjunto mais amplo dos microtextos (ROAS, 2010, p.26;
LAGMANOVITCH, 2006, p.92). Ambos consideram que os géneros
gnómicos – aforismos, máximas, apólogos, provérbios, slogans - são
microtextos mas não micronarrativas, na medida em que apresentam uma
sequência mínima de ideias ou argumentos, mas não uma sequência mínima
de ações. 'À jamais perdue, la taupe qui cherche son chemin dans les étoiles'
(CHÉVILLARD, 2012, p.42) – este microtexto de Chévillard não é uma
micronarrativa. Os géneros poéticos, como o haiku ou o poema em prosa
também ficam fora das fronteiras da micronarrativa. Outras formas narrativas
breves como a anedota e a piada, ou ainda o filler jornalístico tampouco
pertencem à esfera das micronarrativas porque o objetivo visado não é
estético e como tal não são literárias (LAGMANOVITCH, 2011)7.
6
Uma categoria sémica é uma correlação de semas opostos. Os semas são unidades
mínimas de conteúdo definidas de modo relacional pelas suas diferenças. Diz
Greimas que um sema deve a sua existência à distância diferencial que o opõe a
outros semas e que as categorias sémicas opondo dois semas são logicamente
anteriores aos semas que constituem (primado ontológico da diferença). As
categorias sémicas constituem a semântica fundamental que o quadrado semiótico
atualiza fazendo emergir a sintaxe actancial (Greimas, 1993).
7
Um microrrelato não é um poema em prosa na medida em que este é uma ficção
destituída de narratividade; também não é uma notícia curta ou filler que são
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
260
Tomemos este microtexto twiterário de José Luis Zárate: 'Narciso
ama sus ojos peces, su fluyente piel de agua'. (9:06 AM Dec 27th via
TweetDeck.). Não se trata de um texto aforístico (não é uma formulação
memorável de um fragmento da verdade) nem poético (não transmite uma
impressão, um olhar, um instante). Poderá ser considerado uma
micronarrativa? O texto é um enunciado monofrásico sobre uma personagem,
Narciso, que está num determinado estado, o do amor por certas partes do seu
corpo, olhos e pele, a que são atribuídas qualidades aquáticas por via das
expressões metafóricas que as referem. Ora esse estado não sofre nenhuma
transformação. Formalmente, não é um microrrelato. Mas a presença de uma
personagem não é uma marca de narratividade ? Se o enfoque se deslocar do
texto para o leitor, este microtexto poderá tornar-se um microrrelato: o leitor
recorre ao conhecimento que tem da história de Narciso, aqui reativada e
reciclada em mais uma versão, para apreender a tensão narrativa, formal e
literalmente inexistente, no plano metafórico dos olhos de peixe e da pele de
água, que prefigura o funesto destino da personagem afogada por amor de si
mesmo. Afinal, o texto de Zárate, que parecia não narrar nada, usa as
metáforas aquáticas para sugerir ou insinuar a morte de Narciso. O texto
coloca o ponto de partida, o leitor infere o ponto de chegada, apelando ao seu
saber literário e cultural. Ler é uma operação de co-criação. Neste caso, a
intertextualidade é solidária da narratividade, pois permite restituir uma
história que a brevidade tinha suprimido.
A conceção de narrativa e de narratividade que atravessa os ensaios
de Lagmanovitch assim como os ensaios reunidos por Roas, incluindo o seu
próprio, elege a ação como critério fundamental, inscrevendo-se assim na
tradição da narratologia clássica e da sua matriz estruturalista
(PRINCE,2006). Entre os representantes mais prestigiados desta tradição
estão Greimas e Genette. A teoria semionarrativa de Greimas baseia-se, como
já vimos, na tensão e na dinâmica de conflito, que se manifesta
discursivamente como encadeamento de acções. Genette define a narrativa
como expansão transfrásica do verbo, categoria gramatical que exprime a
ação, e por isso a sua narratologia se organiza em tempo, modo e voz.
Estas duas obras, Poéticas del microrrelato mas sobreutdo El
microrrelato. Teoría e historia, traçam as coordenadas teórico-conceptuais
de uma percepção da microconto que escamoteia desenvolvimentos mais
recentes da narratologia donde saem outros critérios de narratividade. A
narratologia pós-clássica de inspiração cognitivista redefine a narrativa como
narrativas sem ficção. Ora, o microrrelato reune narratividade e ficcionalidade
(Lagmanovitch, 2006: 92, 94).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
261
experiência antropocêntrica mais do que sequência de ações (FLUDERNIK,
2006). A narratividade emancipa-se da trama (fabula) e surge como
representação da experiencialidade humana, composta por ações mas também
e sobretudo por ideias, intenções e sentimentos. Esta corrente tem como
referência maior o romance do século XX (Kafka, Joyce, James, Faulkner,
Woolf, Robbe-Grillet) que pratica aquilo a que Stanzel chamou figural
narrative. A narrativa figural é aquela que não parece ser mediada pelo
narrador, sendo a informação diretamente filtrada pelas perceções e
pensamentos do characer-reflector (nos termos de Genette, trata-se da
restrição de campo própria da focalização interna). Na micronarrativa, a
ausência de descrições e de explicações faz com que a introdução brusca de
personagens, surgidas do nada, empregue as estratégias características da
narrativa figural, nomeadamente o etic opening8. Um exemplo disso é o
microconto paradigmático de Monterroso: 'Quando despiertó, el dinosaurio
todavia estaba alí'. Não sabemos sequer quem despertou – o dinossauro ou
outra personagem não identificada ? - mas acedemos à informação sobre o
dinossauro que ainda estava ali (onde?) através da perceção instantânea de
uma personagem – outra ou o próprio dinossauro - que acordou. A
narratologia cognitivista dá grande relevância à atividade mental da
personagem em detrimento da sua atividade externa e, fundamentando-se na
prevalência do discurso sobre a história, formula o postulado do discurso
narrativo sem história (FLUDERNIK, 2006: 105). Correlativamente, a
categoria da ação é substituída pela de personagem como critério privilegiado
de narratividade.
Outra linha da narratologia pós-clássica, inspirada na estética da
receção e na pragmática, desloca do texto para o leitor a instância de
construção ou elaboração do sentido, criando o reader-oriented criticism.
Vimos acima como o estatuto genológico de uma microficção pode depender
da sua receção. Ao afirmar que 'los géneros no responden exclusivamente a
8
A narrativa figural pratica o etic opening como estratégia para introduzir as
personagens e o mundo que habitam. Em contraste com o emic opening, forma
canónica da narrativa autorial e da narrativa retrospetiva na primeira pessoa
(autobiografia), que introduz as personagens através do artigo indefinido e do
imperfeito, seguindo-se a partir daí o artigo definido, no etic opening não há
antecedente para o artigo definido nem para o pretérito ou mais que perfeito.
Enquanto que na narrativa autorial, o narrador apresenta as coordenadas do mundo
habitado pela personagem, na narrativa figural, a personagem ou personagens e
respetivo mundo ficcional são introduzidos imediata e abrutamente, obrigando o
leitor a reconstituir os acontecimentos.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
262
marcas textuales objetivas, necesarias e suficientes, sino que dependen
también de la experiencia textual de los lectores (2010:23), Roas afasta-se de
Lagmanovitch e da esfera da narratologia clássica e aponta duas
características pragmáticas do microrrelato: o necessario impacto sobre o
leitor e a exigência de um leitor ativo (2010:14). De facto, o elevado grau de
indeterminação semântica destas narrativas minúsculas obriga o leitor a um
esforço hermenêutico considerável que passa pela mobilização da sua
memória, experiência e competência literárias e culturais.
Intertextualidade
Lagmanovitch contrasta a sua posição narrativista com a posição
transgenérica cujo principal representante é o crítico mexicano Lauro Zavala.
Estabelecer como requisito da micronarrativa a existência de uma trama
narrativa, ainda que apenas insinuada, implica que o seu género está
perfeitamente determinado (LAGMANOVITCH, 2006, p.31-1). O autor
argentino não nega a presença de diversos géneros literários e discursivos no
microrrelato mas considera que estes se subordinam à estrutura narrativa do
texto em que estão integrados. A esta capacidade assimiladora dá o nome de
omnivoracidade:
(...) el microrrelato, género omnívoro, asimila los alimentos que
encuentra a su paso: observación de la realidad inmediata, lecturas infantiles,
sueños y recuerdos, textos históricos, leyendas y consejas de general
conocimiento, otras construcciones propias de la ficción, textos periodísticos
y, en fin, discursos de los más varidos tipos. No se subordina a ellos, sino que
los incorpora a su estructura y les hace desempeñar las funciones propias de
un relato: los absorbe, pero no por ello tales elementos pierden su naturaleza.
(2006, p.95).
A ideia de uma natureza omnívora da micronarrativa é aqui uma
alternativa à de natureza transgenérica. Zavala define a microficção pela
'tendencia lúdica a la hibridación genérica, especialmente en relación con el
poema en prosa, el ensayo, la crónica y otros géneros de naturaleza no
narrativa' (ZAVALA, 2002, p.548). O autor mexicano apresenta a hibridação
transgenérica como uma contaminação relativista dos géneros cuja fluidez
contrasta fortemente com a visão diferenciadora, hierarquizadora e
integradora do crítico argentino. Escreve Zavala:
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
263
La existencia de una gran diversidad de
formas de hibridación genérica, gracias a la cual el
cuento brevísimo se entremezcla, y en ocasiones se
confunde, con formas de la escritura como la
crónica, el ensayo, el poema en prosa y la viñeta, y
con varios otros géneros extraliterarios, como la
entrevista, la adivinanza, la autobiografía, las cartas
al lector y la confesión (ZAVALA, 2002, p.539).
E acrescenta:
Tal vez por esta razón algunos textos de Julio
Torri (―De fusilamientos‖, ―La humildad premiada‖
y ―Mujeres‖), que en base a todo lo visto hasta aquí
pueden ser considerados legítimamente como
cuentos ultracortos, han sido incluidos en sendas
antologías del ensayo y del poema en prosa.(idem,
p.549).
O hibridismo transgenérico sobrepõe-se à narratividade, diluindo-a, e
daí a opção de Zavala pelo termo minificción em vez do de microrrelato.
Todo o esforço teórico de Lagmanovitch vai no sentido contrário que é o de
estabelecer a boa distância entre o microrrelato e outras formas e géneros
breves, como o poema em prosa, o haiku e o filler jornalístico. A distância
entre os géneros breves é metaforicamente configurada como ordem
territorial, neste caso de espaços urbanos (ou nem tanto) : 'En el territorio de
los microtextos están la plazoleta del micropoema y el palacio de los
aforismos, pero ambos quedan a cierta distancia del amplio parque, o talvez
prado, de los microrrelatos'. (LAGMANOVITCH, 2011, p.6). Compreendese assim que, na medida em que subordina os géneros digeridos à estrutura
narrativa – e daí a opção de Lagmanovitch pela designação microrrelato -, a
omnivoracidade da micronarrativa garante a distância inter em contraste com
a confusão trans. Inter supõe uma ordem de relações entre lugares – uma
estrutura – enquanto que trans implica uma rede de sobre- e justa-posições
num campo de contornos indefinidos e fronteiras inconsistentes, ou seja, um
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
264
espaço que Deleuze diria desterritorializado ou rizomático. Mas o que a
metáfora digestiva não tem em conta é que, dada a esqualidez da trama,
talvez o aparelho narrativo não seja suficientemente consistente e articulado
para assegurar a identidade genológica do texto e careça, para esse efeito, de
intervenção externa. É o que acontece no caso da microficção de Zárate
acima referida, que necessita da atividade hermenêutica do leitor para que o
fio da história, enrolado nas metáforas, se desenrole mentalmente numa curta
sintaxe narrativa. E afinal, insinuar ou sugerir ou subentender uma história
não é também um lance poético ?
O que está tacitamente em jogo nas qualidades omnívoras ou
transgenéricas entra no âmbito do conceito de intertextualidade, que é o
terceiro do conjunto de traços que caracterizam o microconto. Lagmanovitch
não lhe atribui grande importância. Apresenta os microcontos como reescrita
de textos clássicos, dando o exemplo de Prometheus de Kafka (2006, p.1113), texto de 145 palavras, que narra quatro versões do destino de Prometeu
depois que foi condenado pelos deuses à tortura permanente. A reescrita de
mitos e textos clássicos9, continua Lagmanovitch, é uma forma de
intertextualidade que pode utilizar a paródia; esta distingue-se pelo humor de
outras modalidades de reescrita (LAGMANOVITCH, 2006, p.127).
Distingue ainda entre paródias genéricas, cujo hipotexto são as convenções
de um género, e paródias específicas, que incidem sobre um texto particular.
E afirma que é esta última que a micronarrativa pratica: 'debe concentrar-se
en un episodio aislado, no en todo um género' (idem, p.128). Por seu lado,
Zavala procede no campo da intextualidade a uma divisão semelhante mas de
valor diferente:
Cuando el hipotexto es una regla genérica
(por ejemplo, si se parodia el estilo de un
instructivo cualquiera, en general) nos encontramos
ante un caso de intertextualidad posmoderna. Por
otra parte, cuando lo que se recicla es un texto
particular (por ejemplo, el mito de las sirenas o un
refrán popular) nos encontramos ante un caso de
intertextualidad moderna. Esta diferencia implica
relaciones distintas con la tradición literaria.
(ZAVALA, 2002, p.544)
9
Clássico é aqui usado como sinónimo de canónico, pois os exemplos avançados
incluem Cervantes, Shakespeare, As mil e uma noites, Robinson Crusoé.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
265
Reencontramos a diferença entre reescrita de convenções genéricas e
reescrita de textos concretos, mas o teórico mexicano valoriza a
intertextualidade pósmoderna que é a via pela qual a microficção se
reapropria outros géneros. Por outras palavras, intertextualidade pósmoderna
e hibridismo genérico são o mesmo. Paródia, ironia e humor são estratégias
transgenéricas (2004, p.131). Zavala considera que a microficção é o género
mais irónico, experimental e lúdico da literatura, que dialoga com a escrita
literária e extraliterária, incorpora elementos de ambas as categorias e tem,
por isso, uma natureza genológica fronteiriça (2005, p.363-4). Um exemplo
de diálogo com a escrita extraliterária são as novelas em três linhas,
microficções que reescrevem faits divers e headlines (ÁLVARES, 2011,
2011a); ou as que Chévillard posta quotidianamente no seu blog L'autoficitf e
que se reapropriam dois géneros da escrita do real ou do everyday life: o
diário e a crónica (BELLON, 2011). Quando comparamos as posições de
Lagmanovitch e de Zavala, é notória a diferença de amplitude do hipotexto:
reduzido ao cânone em Lagmanovitch, alargado a todos os tipos e categorias
de
textualidade
em
Zavala.
Nesta escala, David Roas parece assumir uma posição intermédia. O
primeiro dos 'rasgos temáticos' da micronarrativa é a intertextualidade
definida como diálogo paródico com outros textos (ROAS, 2010, p.14). O
hipotexto são aqui, por um lado, textos e não géneros e, por outro, os textos
parodiados não têm de se restringir às obras canónicas: são apenas 'outros
textos'. Ao mesmo tempo, a paródia não é uma forma de intertextualidade
entre outras, pois ela define o próprio diálogo intertextual. Deformação de
um texto pré-existente (CEIA, 2010), a paródia funciona, diz Francica
Noguerol, como uma dupla codificação que sobrepõe uma contestação e uma
cumplicidade, uma crítica e uma homenagem, ao texto parodiado e
eventualmente à tradição que ele representa (apud ROAS, 2010, p.80). Nesse
sentido a micronarrativa inscreve-se em pleno no espírito eclético e cínico
com que a pósmodernidade revisita a modernidade. 'Não sendo um recurso
exclusivo de uma época, [a paródia] está suficientemente documentada no
espaço que se convencionou chamar literatura pós-moderna para nos permitir
distinguir a paródia também como paradigma desta época' – lê-se no Edicionário de termos literários (CEIA, 2010).
Mais à frente Roas cita Graciela Tomassini e Stella Maris Colombo que
aumentam ainda mais o âmbito do hipotexto ao classificarem a microficção
como forma de textualidade parasita que prospera à custa do legado da
cultura, submetido a uma reciclagem que pode ou não comportar uma
reorientação axiológica (ROAS, 2010, p.18). Passamos assim da tradição
literária ao legado cultural que inclui a literatura entre outras práticas e
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
266
produções. O campo literário perde autonomia e dilui-se no campo cultural.
É para aí que aponta já a ideia de Zavala, segundo a qual a microficção
dialoga com a escrita literária e extraliterária. Mas a esfera extraliterária não
é só escrita (os géneros da imprensa, por exemplo, como a crónica, a
reportagem, o fait divers), é também oral. São os discursos coletivos que
circulam no seio de uma dada sociedade, com os seus estereótipos, as suas
metáforas e expressões feitas, os seus tiques lexicais e retóricos. As
microficções de Rui Manuel Amaral reunidas em Caravana e que Rita
Patrício estudou (Patrício, 2011), exploram as consequências surrealistas e
absurdas da significação literal de metáforas como 'pedir a palavra', 'onda de
entusiasmo', 'chuva de protestos', fazer-se luz dentro de si', 'ter macaquinhos
na cabeça', entre muitas outras expressões figuradas populares. Mas na
perceção culturalista de Tomassini e Colombo, o domínio extraliterário é
ainda mais vasto, pois coincide com o património cultural e, nessa medida, o
hibridismo não diz respeito apenas aos géneros literários e aos discursos
sociais mas também às diversas artes e media, velhos e novos. Mais do que
reescrita, falar-se-á então de trans-escrita, de transsemiotização e de
transmedialidade, pois na fluida e global paisagem cultural contemporânea as
obras estabelecem relações de continuidade entre si, para lá das fronteiras
artísticas, mediáticas, nacionais e culturais. Mais do que de obras autónomas,
falar-se-á de clusters ou constelações de obras, independentemente de
suportes materiais, canais de comunicação, estatutos socio-institucionais,
públicos, línguas. Deste modo, as microficções ou micronarrativas ou
microcontos parodiam não apenas o canône literário mas todo um imaginário
transversal de grande amplitude.
Da intertextualidade à transficcionalidade: quadros de referência e
personagens
Os contos de fadas constituem uma região destacada da tradição
narrativa ocidental. Devido à sua pregnância imaginária, contam-se entre as
ficções mais recicladas e reinventadas em diferentes textos, media e artes10.
Narrativas de grande circulação e consumo, os contos de fadas, foram, desde
10
A reciclagem dos contos parece seguir duas linhas de orientação: a linha encantada
(ou edulcorada), aberta por Grimm e consolidada por Disney, que reconfigura as
histórias num sentido tranquilizador; a desencantada, que pode ser cómica e
paródica (desenhos animados de Tex Avery, o ciclo Shrek) ou sombria, cínica ou
trágica: Chapéuzinho Vermelho, de Donald Trevisan (Trevisan, 2003:72-4), as
recentes dark fantasies cinematográficas dedicadas ao Capuchinho Vermelho ou
Branca de Neve; a série fotográfica Fallen Princesses de Dina Goldstein (2009).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
267
a sua invenção, capturados numa dinâmica de interação e interseção
complexa entre cultura literária e cultura mediática, que dura até hoje11. Os
contos de fadas ocupam um lugar à parte no campo genérico do conto, onde
estão simultaneamente dentro e fora: dispondo de um cânone literário próprio
(estabelecido por Perrault e Grimm) e amplamente disponíveis ao regime de
funcionamento da cultura popular e mediática (nomeadamente às
apropriações transficcionais de que falaremos adiante), os contos de fadas
têm na cultura literária uma posição institucionalmente periférica que
determina a sua afinidade com a paraliteratura. Isso não os impede de serem
contos como os outros e de se estruturarem em função da unidade de efeito
que é, segundo Poe, o princípio básico do conto. No plano formal, a
diferença principal parece situar-se ao nível da clausura do texto que é
formular e estereotipada, enquanto que o final do conto, principalmente
moderno, é imprevisível e inconclusivo.
Também para os microcontos os contos de
fadas constituem um hipotexto privilegiado. Veja-se por exemplo o lugar que
têm nas obras de Ana Maria Shua, de José Luis Zárate ou de Gilbert
Lascault, ainda que este autor não atribua a designação de microfictions ou
micronouvelles às 50 narrativas breves e hiperbreves, que são outras tantas
versões alternativas do Capuchinho Vermelho, e a que chama 'textes courts'
(LASCAULT, 1989:4). Estes autores escrevem séries de microcontos que
parodiam contos de fadas. Mas vários outros autores, sobretudo de língua
11
Escritos por Perrault no meio aristocrático francês do século XVII, os Contos
sofreram inúmeras reconfigurações e sedimentações, a primeira das quais éa de
Grimm no início do século XIX. Na sequência das reedições dos Contos pelo
Cabinet des fées ao longo do século XVIII, os irmãos Grimm estabeleceram o
cânone dos chamados contos de fadas, concebidos ou sonhados como narrativas
arcaicas de origem oral e popular destinadas às crianças. Mas bem antes de Grimm,
já as edições de 1695 e 1897 dos Contos lhes atribuiam visualmente uma origem
oral e popular e um público infantil, através do título e da imagem que compõem os
respetivos frontespícios. O título Contes de ma mere loye significa, segundo o
Dictionnaire de l'Académie Française de 1694, 'des fables ridicules telles que sont
celles dont les vieilles gens entretiennent et amusent les enfants' (apud Haidmann et
Adam, 2010:201). Em 1697, o título muda para Histoires ou contes du temps passé.
A ilustração representa uma cena doméstica em que uma velha ama, ao mesmo
tempo que fia a lã, conta histórias a um pequeno grupo de crianças, junto a uma
lareira. Na parede, uma placa com a inscrição 'contes de ma mère l'oie'. O peritexto
parece ser uma estratégia editorial para investir o livro daquilo a que Walter
Benjamin chamará a aura – 'l'appartion unique d'un lointain, si proche soit-il'
(Benjamin, 1991:144), sugerindo a dimensão pré-literária do seu conteúdo.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
268
espanhola, reescrevem micronarrativas numa veia lúdica e/ou iconoclasta.
Este texto de Armando José Sequera retoma um segmento diegético da
Branca
de
Neve:
'Júrenos que si despierta, no se la va a llevar – pedía de rodillas uno de los
enanitos al príncipe, mientras éste contemplaba el hermoso cuerpo en el
sarcófago de cristal. Mire que, desde que se durmió, no tenemos quien nos
lave la ropa, nos la planche, nos limpie la casa e nos cocine' (apud ROJO,
2010, p. 51). A tensão narrativa é apreensível na oposição entre os anões e o
príncipe em torno de Branca de Neve. Mas não parece ser esta a tensão
fundamental aqui significada. A tensão narrativa empalidece face a uma
outra situada ao nível dos discursos da personagem e do narrador. O
pragmatismo do anãozinho revela que o afeto que o liga, bem como aos seus
seis companheiros, a Branca de Neve não assenta em valores estéticos e
morais como a beleza e a bondade, mas antes na utilidade doméstica da
presença feminina. Não se trata de afeto mas de interesse. Branca de Neve é
no discurso do anão uma empregada doméstica e não a bela princesa em
coma que o príncipe se prepara para despertar com um beijo. Neste
microconto dá-se um choque entre o discurso do narrador, que mantém o
maravilhoso do conto com a referência ao sarcófago de cristal contendo o
formoso corpo, e o discurso da personagem, que esmaga o maravilhoso com
a banalidade da vida quotidiana e doméstica, quebrando o encantamento do
'era uma vez'. As fórmulas de introdução e de conclusão do conto – 'era uma
vez', 'e viveram felizes para sempre' – não existem na microficção, pois a
paródia desencanta o conto, priva-o das fadas, dissipa o fairy para revelar o
tale. O desencantamento é a orientação dominante das reelaborações pósDisney dos contos de fadas, humorísticas ou não, cómicas ou sérias. Mais do
que o antagonismo entre actantes, interessa aqui a divergência entre duas
perceções do conto, a encantada (narrador) e a desencantada (anão) –
divergência essa que exprime a relação do microconto sem fadas ao conto de
fadas. Ao contrário do que acontece na microficção de Zárate sobre Narciso,
em que a intertextualidade favorece e apoia a narratividade, aqui a
intertextualidade relega-a para segundo plano.
Para Violeta Rojo, a intertextualidade é uma necessidade estrutural
da micronarrativa porque ela lhe dá o seu quadro de referência. Ao suprimir
apresentações, descrições, caracterizações e explicações, elipse e paralipse
tornam necessário ou útil o quadro de referência para situar o leitor no vasto
universo literário e cultural. É essa a função da personagem de Narciso na
micronarrativa acima analisada. Se Rojo tem razão, decorre daqui um
princípio de proporcionalidade entre brevidade e intertextualidade: quanto
mais breve, mais intertextual é a micronarrativa.
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269
A personagem é porventura o indicador mais seguro do quadro de
referência. Nessa função a personagem deve ser facilmente identificável:
uma personagem-tipo, uma figura-estereótipo ou uma personagem
memorável, mítica, gozando de uma pregnância imaginária que a emancipa
do texto que a instaurou e faz circular entre múltiplos e heterogéneos textos:
Adão e Eva, Narciso, Édipo, Rei Artur, Cinderela, D. Quijote, Zorro, Tarzan,
Indiana Jones, etc. É certo que nem todas as personagens têm estas
qualidades. Mas não podemos deixar de constatar que parece haver na
paisagem cultural contemporânea uma correlação entre autonomia da
personagem e perda de autonomia da obra: saliência da personagem que
migra de obra em obra, achatamento da obra em conexão com outras
(clusters).
.
Em La busqueda, de E. Valadés, a presença das sereias e de Ulisses
situa o leitor no quadro de referência homérico, mais concretamente no
episódio célebre entre todos em que Ulisses resiste ao canto das sereias,
amarrado a um mastro: 'Esas sirenas enloquecidas que aúllan recorriendo la
ciudad en busca de Ulises'.(apud ROJO, 2010, p.51). Esta versão urbana (a
ação tem lugar numa cidade e não no mar) procede a várias inversões
paródicas: a irresistível atração (sedução) torna-se perseguição, a entropia
cerebral (loucura) passa do lado de quem ouve para o lado de quem uiva, as
sereias deixam de ser mulheres-peixe ou mulheres-pássaro para serem
(como) mulheres-loba. Notar-se-á que este texto tampouco narra a
transformação de um estado noutro estado. Limita-se a narrar um estado que
coincide com uma ação, a busca, a que o presente dá um sentido de
inacabamento e de prolongamento indefinido. Não há aqui sequencialidade
alguma. E se não hesitamos em inscrever a busca numa relação de conflito,
isso deve-se ao nosso conhecimento do episódio que opõe Ulisses e as
sereias. O objetivo de Valadés não parece ser narrar uma história, por ínfima
que seja, mas antes estabelecer um jogo intertextual no qual, mais uma vez,
as personagens desempenham uma função de primeiro plano. Essa função é
prioritariamente a de indicador ou marcador do quadro de referência, da qual
depende uma outra função: a função actancial que nos chega em eco vindo
do hipotexto. Esta microficção presta-se a ilustrar a tese de Zavala contra a
de Lagmanovitch: a intertextualidade prevalece sobre a narratividade. Mas já
será mais difícil seguir o crítico mexicano quando ele, ao formular a sua
proposta de uma nova teoria literária e de uma nova narratologia derivadas
do modelo da microficção hispanoamericana, delas exclui a categoria da
personagem, sob pretexto de que, na tradição narrativa daquela região do
mundo, a linguagem e o seu poder evocativo têm mais peso do que a
personagem. Neste projeto de narratologia pósmoderna de raíz hispanófona,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
270
as categorias de trama, personagem, ambiente, estilo, ponto de vista e tema,
elaboradas a partir do estudo do romance do século XIX, são substituídas em
toda a linha pelas categorias de título, início, tempo, espaço, narrador,
linguagem, género, intertexto, ideologia e final, as quais derivam do estudo
da microficção contemporânea (ZAVALA,2009, p.39-41). É certo que a
representação das vicissitudes psico-morais da personagem não tem lugar
(nem tempo) nas micronarrativas. A personagem tem valor indicativo e
função de sinal mas esse valor e essa função têm o poder de mobilizar um
texto ou textos. Veremos seguidamente de resto que, vista numa outra
perspetiva teórica, a personagem da microficção não perdeu nem função
actancial nem relevo ontológico. Daí que erradicar o seu conceito não pareça
viável.
Os microcontos como transficções de contos
Abordamos agora as micronarrativas numa perspetiva de análise que
não se encontra nas obras de Lagmanovitch e Zavala: a teoria da ficção.
Embora Lagmanovitch insista na natureza ficcional do microrrelato para o
distinguir das formas breves jornalísticas e que Zavala use o termo
minificción, a verdade é que não se interessam pelas características dos
mundos ficcionais criados por estas narrativas. Ambos os autores estão, cada
um à sua maneira, demasiadamente presos à tradição formalista dos estudos
literários para aderirem a uma teoria que autonomiza o conteúdo (a diegese)
da sua forma de expressão (a narrativa), ou seja, que toma como plano de
análise não o texto mas a ficção. A teoria da ficção estuda na narrativa não a
sua formalidade retórica mas a sua força referencial, a sua semântica
(PAVEL, 1988, p.7). Além disso, a teoria da ficção hipostasia a personagem
(já que a autonomia do mundo ficcional em relação à narrativa que o funda
passa pela autonomia da personagem), o que a coloca em rota de colisão com
o projeto narratológico de Zavala.
Na coletânea de ensaios organizada por Roas, três autores referem-se
brevemente aos mundos ficcionais criados pelo microrrelato: Andres-Suárez,
Álamo Felices e Ródenas de Moya. Este último é quem mais desenvolve a
questão ou o desafio que o microrrelato representa para a teoria da ficção
(apud ROAS, 2010, p.189-91) e que tem a ver com a relação entre dimensão
do texto e dimensão do mundo. Dada a estrutura da micronarrativa, o
respetivo mundo não explicita nem implicita o estado de coisa mas limita-se
a mencioná-lo, produzindo uma 'textura zero' em que os não-ditos, 'os
brancos' ou, nos termos de Gerald Prince, 'o des-narrado' (PRINCE, 2005)
tem muito mais peso do que o narrado. Se é certo que todos os mundos
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
271
ficcionais são incompletos porque comportam zonas indeterminadas,
normalmente irrelevantes para a lógica da ficção (por exemplo, quem eram
os pais de Tintin), as texturas zero fazem do princípio de incompletude o seu
próprio modo de estruturação e funcionamento narrativo. Por isso, os mundos
microficcionais apresentam um grau de acessibilidade muito baixo que
impede o leitor de mergulhar empaticamente na ficção e o obriga a um
grande esforço hermenêutico12. É esse o efeito que tem sobre nós o
Dinosaurio de Monterroso. Como nota Marielle Macé, quanto mais
económica é a escrita, mais dispendiosa é a leitura. Esta relação inversamente
proporcional vem na sequência de uma relação do mesmo tipo entre
quantidade textual mínima (dimensão do texto) e máxima amplitude do
mundo induzido (dimensão do mundo), pois o 'des-narrado' apela a um
preenchimento das lacunas – ou seja, do deserto (não é por acaso que
imaginamos o dinossauro monterrosino no meio de um vasto deserto). Macé
diz também que esta proporção inversa é irónica e paródica (MACÉ, 2010, p.
216-7). Já vimos que os chamados quadros de referências delimitam os
contornos do mundo no seio de um vastíssimo universo ficcional, nele
situando o leitor, através da convocação de um ou mais textos. A
intertextualidade é um fator crucial na redução da despesa hermenêutica. A
leitura de La búsqueda é apesar de tudo menos esforçada do que a do
Dinosaurio.
Em Heterocosmica, Lubomir Dolezel (1998) empreende, no âmbito
da teoria da ficção, uma revisão do conceito de intertextualidade, baseada na
constatação de que a reescrita (ou trans-escrita) conecta as obras não apenas
ao nível do texto mas também ao nível da ficção. Os universos ficcionais
tendem a adquirir uma existência independente das narrativas que os
fundaram e a reciclar-se, completando-se, pondo-se em questão,
transformando-se, competindo uns com os outros. Nesta linha, Richard SaintGélais forjou o conceito de transficcionalidade para dar conta do fenómeno
pelo qual dois ou mais textos, do mesmo ou de outro autor, se referem
conjuntamente a uma mesma ficção (SAINT-GÉLAIS, 2011, p.7). Há de
facto uma relação entre textos mas esta fica velada em proveito de uma
continuidade diegética pela qual uma ficção se liga a outras ficções. As
séries, os ciclos ou sagas, as continuações, as adaptações, as ficções
12
O leitor fica no limiar do mundo como no bordo de um precipício. Em vez da
passividade da identificação (à personagem, à ação, à história), da irresistível
sedução que a ficção exerce sobre ele, o leitor de microficções está condenado a
uma atividade intelectual e crítica demorada, em contraste com a rapidez da
narrativa.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
272
metaléticas, as versões alternativas ou contraficcionais são formas de
transficcionalidade correntemente praticadas pela cultura popular e mediática
(banda desenhada, cinema, televisão, literatura popular) e também pela
cultura literária, se bem que em menor grau, pois a circulação dos elementos
ficcionais é mais fluida no campo mediático do que no literário, onde o
regime autorial é mais vigoroso (idem, p.374-5, 380-1). Apesar de funcionar
de maneira diferente em regime mediático e em regime literário (os textos
agrupam-se de acordo com o modelo satelital determinado pela identificação
da obra ao autor13), a transficcionalidade cria zonas de interação e de
interseção entre ficções mediáticas e ficções literárias.
O que está normalmente em jogo nas práticas transficcionais, diz
Saint-Gélais, não é tanto a transformação paródica de tal texto mas antes uma
incursão numa zona indeterminada do mundo ficcional. As incursões operam
frequentemente através do retorno da personagem. Esta transpõe as fronteiras
da obra que a instaurou e aparece noutras obras, medias e artes, polarizando
mundos ficcionais diversos ou versões alternativas do seu mundo de origem.
As personagens polarizam mundos que passam de um autor para outro, de
um género para outro, de uma época para outra, de uma cultura para outra. É
importante notar que esta função não é meramente alusória ou evocativa,
pois ela cumpre-se através do seu protagonismo na história. É diferente
referir Cinderela como modelo do Capuchinho Vermelho:'Douze coups de
minuit. Le chemin long devint court. Le Petit Chaperon une cendrillon, et le
loup féroce un prince sans imagination au lit' (ZARATE, 2011); e narrar o
segmento de Cinderela desencadeado pelas doze badaladas, infletindo-o em
direção a um final infeliz e aberto, sugerido entre parêntesis:'A la doce en
punto pierde en la escalinata del palacio su zapatito de cristal. Pasa la noche
en inquieta duermevela y retoma por la manana sus fatigosos quehaceres
mientras espera a los enviados reales. (Princípe fetichista, espera vana.)'
(SHUA, 2007, p.70). No primeiro caso (Zárate) temos intertextualidade, no
13
Mesmo aparecendo noutras obras que não a sua de origem, a personagem literária
fica sempre vinculada ao autor que a criou (Romeu e Julieta são personagens de
Shakespeare), enquanto que na ficção mediática a celebridade da personagem faz
sombra ao autor (ou autores). Quem sabe quem são os autores de Fantômas ou de
Bécassine ? Há no entanto ficções mediáticas que funcionam de acordo com o
regime literário. Acontece muito no cinema, onde os filmes são referidos ao
realizador, ainda que seja preciso toda uma equipa para fazer um filme. Tintin, de
Hergé, por exemplo, é uma banda desenhada que funciona de acordo com um
regime autorial vigorosíssimo, de tal maneira que as versões de Tuten, Altarriba e
Spielberg são sempre medidas à versão original e fundadora.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
273
segundo (Shua) temos transficcionalidade. A personagem de Shua não é
apenas um nome remetendo para um outro texto. Na perspetiva
transficcional, a personagem age e/ou é agida na história, desempenhando
funções actanciais (sujeito, anti-sujeito, objeto, destinador, destinatário). Isto
quer dizer que a transficcionalidade recupera o critério da acção, o qual,
como vimos, é desvalorizado e marginalizado no âmbito da narratologia pósclássica ou pósmoderna: personagem sem ação (Fludernik), nem acção, nem
personagem (Zavala). Embora não seja o único, a personagem é um
marcador de transficcionalidade fundamental (Saint-Gelais, 2007, p.6).
Numa entrevista dada à revista em linha Vox Poetica, em abril de
2012, Richard Saint-Gelais afirma:
Il y a transfictionnalité lorsque deux textes ou
davantage « partagent » des éléments fictifs (c‘està-dire, y font conjointement référence), que ces
éléments soient des personnages, des (séquences d‘)
événements ou des mondes fictifs ; quant aux
« textes », il peut s‘agir aussi bien de textes au sens
strict (romans, nouvelles, mais aussi essais dans
certains cas) que de films, bandes dessinées,
épisodes télé, etc. La notion recouvre des pratiques
aussi diverses que la reprise de personnages telle
qu‘on l‘observe dans la Comédie humaine, les
suites (autographes ou allographes), les séries, la
retraversée d‘une diégèse dans une perspective
différente, la modification d‘une intrigue antérieure
(comme dans Emma, oh ! Emma ! de Cellard, où
Emma Bovary ne se suicide pas), la réunion de
personnages appartenant à des mondes fictifs
distincts (Sherlock Holmes vs. Dracula de Loren
Estleman) et quelques autres formules encore.
(SAINT-GÉLAIS, 2012).
A transficcionalidade opera portanto através de várias figuras como a
continuação apócrifa ou pelo próprio autor, o cruzamento, o descentramento,
a contraficção. Há versões que se limitam a fazer uma revisão ou
reinterpretação do material diegético sem o alterar, outras, como a
contraficção e o cruzamento, operam uma alteração de dados diegéticos
prévios. La busqueda é uma versão contraficcional do episódio das sereias na
Odisseia, que, como vimos, procede por inversões simétricas. Algumas
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
274
microficções – ou, em francês, micronouvelles – da série Le Petit Chaperon
rouge, partout de Gilbert Lascault, usam o cruzamento de diferentes contos
para elaborar versões contraficcionais . Nesta, a presença do Capuchinho no
mundo da Bela Adormecida – pois é ela que está na cama e não o Lobo
disfarçado de avó - altera o desenlace num sentido que não é só
desencantado mas homosexual:
Ce n‘est pas le Prince charmant, c‘est le Petit
Chaperon Rouge qui réveille la Belle au Bois
Dormant. En s‘éveillant de cent ans de sommeil, la
Belle sourit au Chaperon, lui tend les bras et lui
murmure : "Est-ce vous, ma douce ? Vous vous êtes
bien fait attendre." Puis, elle demande au Petit
Chaperon Rouge de poser la galette et le petit pot
de beurre sur la table de chevet, de se déshabiller et
de se mettre au lit. Les deux femmes vivent
ensemble pendant mille et un ans. Parfois elles
s‘aiment. Parfois elles se haïssent. Aucune des
deux, bien sûr, ne fait un enfant à l‘autre
(LASCAUT, 1989, p.9)
O cruzamento, que consiste em reunir personagens oriundas de
diferentes mundos ficcionais em encontros inesperados, é uma modalidade
lúdica de transficcionalidade. Uma microficção de A. M.Shua combina três
ficções (o texto bíblico fundador, um mito nacional suiço e uma lenda da
ciência) numa única diegese: 'La flecha disparada por la ballesta precisa de
Guillherme Tell parte en dos la manzana que está a punto de caer sobre la
cabeza de Newton. Eva toma una mitad y le ofrece la otra a su consorte para
regocijo de la serpiente. Es así como nunca llega a formularse la ley de la
gravedad'. (SHUA, 1984, p.304). O cruzamento de mundos de ficção pode
prolongar uma história inacabada ou relançá-la após o desenlace, como nesta
micronarrativa de José María Merino, Ni colorín ni colorado, em que
Cinderela se exila no País das Maravilhas:
Cenicienta, que no era rencorosa, perdonó a
la madrasta y a sus dos hijas y comenzó a recibirlas
en Palacio. Las jóvenes no eran demasiado
agraciadas, pero empezaron a tener mucha
familiaridad con el príncipe, y pronto los tres se
hacían bromas, jugueteaban. A partir de unos días
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
275
de verano especialmente favorables al marasmo,
ambas hermanas tenían con el príncipe una
intimidad que despertaba murmuraciones entre la
servitumbre. El otono siguiente, la madrasta y sus
hijas ya se habiam instalado en Palacio. La
madrasta acabó ejerciendo una dirección despótica
de los asuntos domésticos. Tres anos más tarde, la
princesa Cenicienta hizo público su malestar y su
propósito de divorciar-se, lo que acarreó graves
consedcuencias políticas. Cuando le cortararon la
cabeza al príncepe, Cenicienta hacía ya tiempo que
vivía con su madrina, retirada en el País de la
Maravillas (apud ROTGER y VALLS, 2005, p.88).
Petits Chaperons, de José Luis Zárate (2011) é uma série de 83
micronouvelles que usa todas as figuras transficcionais para reescrever o
conto do Capuchinho Vermelho, desde as mais brandas às mais intensas. 'Le
loup était habillé en mère-grand, mais la mort arriva habillée en chasseur'
(75): a narrativa condensa a sequência que conduz à devoração da menina,
eliminando o diálogo com o lobo disfarçado de avó, mas não modifica a
trama, apenas a contrai. A micronouvelle 68 atravessa de novo a história sob
o olhar retrospetivo da protagonista: 'J'ai été le Petit Chaperon rouge, se ditelle, en touchant avec nostalgie le tissu, le panier plein de poussière, la hache
oxydée, le toujours fidèle tapis en peau de loup'. Os nós privilegiados da
trama são indicados pelos objetos-fetiche – capuz, cesto, machado, pele do
lobo – cuja enumeração nostálgica retoma os eventos nucleares da história
sem a alterar. Mas uma grande parte das micronouvelles de Zárate são
contraficcionais. Esta, por exemplo, altera a história ao ponto de a anular: 'Le
loup n'arriva jamais chez la mère-grand. Le Petit Chaperon s'y prenait très
mal pour indiquer les directions' (61). Esta outra apresenta um desenlace
alternativo: 'La hache vola. Le village entier accueillit le chasseur en héros
quand il revint avec le cadavre de cette dévergondée de Petit Chaperon' (17).
A subordinada temporal introduz o dado contraficcional numa versão que
parecia até aí seguir a trama oficial: em vez de ter morto o lobo, o caçador
executou o Capuchinho Vermelho, acusado de libertinagem. O cruzamento
de ficções está também representado: 'On disait que sa jalousie était déplacée,
mais le Petit Chaperon ne pouvait s'empêcher d'éprouver de la haine envers
les trois petits cochons'(6); 'Un couple de chaque animal, mais le loup refuse
de monter dans l'arche sans le Petit Chaperon'(1). Enquanto que o primeiro
texto de Zárate cruza mundos ficcionais que, além de partilharem a
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
276
personagem do Lobo14, pertencem ao mesmo género, o conto, o segundo
cruza mundos heterogéneos: o do Capuchinho Vermelho e o da Bíblia, este
metonimicamente indicado pelo único mas suficiente detalhe da arca (de
Noé). Desta feita, Capuchinho e Lobo são e estão deslocados no projeto de
preservação pós-diluviana das espécies – tendo aqui o termo 'deslocados' o
duplo sentido de passagem ou transferência (deslocados para outro mundo
ficcional) e de mal integrados, estranhos, inadaptados, porquanto formam um
casal de espécies diferentes (deslocados na taxonomia biológica).
Conclusão
O conceito de transficcionalidade permite focar a relação do
microconto ao conto sob um ângulo diferente. A diferença essencial reside no
nível de análise escolhido que é menos o da forma narrativa do que o do
conteúdo diegético. É aí que observamos as mutações do conto efetuadas no e
pelo microconto e é aí que observamos a correlação de forças entre
brevidade, narratividade e intertextualidade. A relação entre conto e
microconto não se coloca portanto aí em termos de género, como é usual
fazer-se, e como fazem Lagmanovitch, Zavala e Roas, mas antes em termos
de ficção. Em vez da noção de género, categoria literária que se presta mal à
conceção de hipotexto alargada à cultura, lidamos com a de espaço
transficcional, constituído pelos textos que, independentemente do medium
que os suporta, se referem a uma ficção e partilham o respetivo mundo. Um
espaço transficcional tem uma identidade diegética reconhecível apesar das
mutações infligidas aos dados empíricos da ficção oficial. Em vez da
hibridação transgenérica, temos uma hibridação transficcional que opera
entre textos concretos, criando e exacerbando tensões entre identidade e
alteridade, através de dispositivos como a contraficção e o cruzamento. Uma
das vantagens do espaço transficcional sobre o género é que ele invalida ou,
pelo menos, enfraquece a alternativa entre posição narrativista e posição
transgenérica, já que a personagem, por exemplo, é um marcador de
transficcionalidade que mantém o seu estatuto de categoria narrativa. Sendo
uma forma particular de intertextualidade, a transficcionalidade proporciona
um ou vários quadros de referência que amortizam o impacto desnarrativizante da brevidade, situando o leitor mais num mundo de ficção do
que num texto. É certo que nem todos os microcontos são transficções de
14
Os Três Porquinhos não faz parte do cânone Perrault-Grimm, mas The Big Bad
Wolf (1934), desenho animado de Disney, reune o Capuchino Vermelho, o Lobo e
os Três Porquinhos.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
277
contos, nomeadamente de contos de fadas. Mas os que o são têm a vantagem
ou o mérito de projetar a sua relação ao conto no plano da representação
diegética, identificando na trama os mecanismos que fazem dele uma
mutação do conto. É a estes casos que a designação 'microconto' se aplica
com elevado grau de propriedade e de legitimidade.
Four dimension of the short short story as a mutation of the short story:
brevity, narrativity, intertextuality and transficcionality
ABSTRACT: The paper examines the theoretical debate over the issue of the
short short story as a mutation of the short story, through the articulation of
three different perspectives (Lagmanovitch, Zavala, Roas) on the connections
and mutual interferences between the major characteristics of the short short
story – brevity, narrativity and intertextuality – based on a selection of
Spanish and French short short stories/ using texts in Spanish and French.
We place the debate in the frame of post-classical narratology and its recent
trends (as seen in cognitivism, the theory of possible worlds and cultural
turning) and examine the conceptions of narrativity and intertextuality which
are at stake and the way they shape the link of derivation, either continuous
or discontinuous, between short short story and short story. As little weight
is given to the theory of fiction in the study of the short short story, we
introduce in the debate the concept of transfictionality which shifts the
analysis to the level of diegetical content. We describe the 'modus operandi'
of the transfictional mechanisms in several short short stories, arguing that
they can be seen as transfictions of short stories. We finish off with the
theoretical advantages of the transfictional space over the generic field.
Key words: Short story. Short
Intertextuality. Transfictionality
short
story. Brevity.
Narrativity.
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
281
O modo de representação irônico no uso de arquétipos literários
em dois contos breves de Ana María Matute
Marcia Romero MARÇAL1
RESUMO: Nosso artigo analisa e compara os contos ―El niðo que no sabía
jugar‖ e ―La niða fea‖ de Ana María Matute com o fim de mostrar como a
autora espanhola, prêmio Cervantes de 2010, se vale do modelo arquetípico
da narrativa tradicional através de diferentes transgressões e desvios do
mesmo, produzindo um efeito irônico que exprime, por um lado, a
contradição da condição humana entre o ideal e o real e, por outro, a
negatividade da realidade social e histórica da Espanha contemporânea,
contexto ao qual se refere a escritora. Mediante o deslocamento e a
transformação irônica do arquétipo do herói do conto maravilhoso
primordial, da força de imagens simbólicas, míticas e poéticas, a economia da
narrativa breve de Matute logra intensificar a dialética patética entre o
tradicional, o normal, a estabilidade ideal e o extraordinário, o desajustado, as
injustiças do mundo concreto, expressando a distância inexorável entre nossa
condição humana e os feitos heroicos imaginários. Finalizamos o artigo com
uma breve apresentação dos temas e estilo da autora conforme um estudo de
sua fortuna crítica.
PALAVRAS-CHAVE: Ana María Matute. Conto maravilhoso. Arquétipo
literário. Simbolismo
El niño que no sabía jugar
Había un niño que no sabía jugar. La madre le miraba desde la
ventana ir y venir por los caminillos de tierra con las manos quietas, como
caídas a los dos lados del cuerpo. Al niño, los juguetes de colores chillones,
la pelota, tan redonda, y los camiones, con sus ruedecillas, no le gustaban.
Los miraba, los tocaba, y luego se iba al jardín, a la tierra sin techo, con sus
manitas pálidas y no muy limpias, pendientes junto al cuerpo como dos
extrañas campanillas mudas. La madre miraba inquieta al niño, que iba y
venía con una sombra entre los ojos. «Si al niño le gustara jugar yo no tendría
frío mirándole ir y venir». Pero el padre decía, con alegría: «No sabe jugar,
no es un niño corriente. Es un niño que piensa».
1
Professora doutora da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) do departamento
de Letras Espanhol, São Paulo, São Paulo, Brasil, CEP: 05616-011,
[email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
282
Un día la madre se abrigó y siguió al niño, bajo la lluvia,
escondiéndose entre los árboles. Cuando el niño llegó al borde del estanque,
se agachó, buscó grillitos, gusanos, crías de rana y lombrices. Iba
metiéndolos en una caja. Luego, se sentó en el suelo, y uno a uno los sacaba.
Con sus uñitas sucias, casi negras, hacía un leve ruidito, ¡crac! y les segaba la
cabeza.
http://www.uhu.es/cine.educacion/poesiaenlasaulas#El niño que no
sabía jugar
La niña fea
La niña tenía la cara oscura y los ojos como endrinas. La niña llevaba
el cabello partido en dos mechones, trenzados a cada lado de la cara. Todos
los días iba a la escuela, con su cuaderno lleno de letras y la manzana
brillante de la merienda.
Pero las niñas de la escuela le decían: "Niña fea"; y no le daban la
mano, ni se querían poner a su lado, ni en la rueda ni en la comba: "Tú vete,
niña fea". La niña fea se comía la manzana, mirándolas desde lejos, desde las
acacias, junto a los rosales silvestres, las abejas de oro, las hormigas malignas
y la tierra caliente de sol. Allí nadie le decía: "Vete".
Un día, la tierra le dijo: "Tú tienes mi color". A la niña le pusieron
flores de espino en la cabeza, flores de trapo y de papel rizado en la boca,
cintas azules y moradas en las muñecas. Era muy tarde, y todos dijeron: "Qué
bonita es".
Pero ella se fue a su color caliente, al aroma escondido, al dulce
escondite donde se juega con las sombras alargadas de los árboles, flores no
nacidas y semillas de girasol.
http://xoulmuseum.blogspot.com.br/2009/02/la-nina-fea.html
A força simbólica das imagens literárias criadas por Ana María
Matute constitui um elemento que distingue sua escrita romanesca. No
entanto, o conto, talvez por seu poder de síntese, consiste na modalidade
literária que melhor contribui para ressaltar o traço estilístico da escritora
catalã. Em ―El niðo que no sabía jugar‖, um brevíssimo conto seu publicado
no livro Los niños tontos (Madri, 1956), pela editora Arión, as imagens que
compõem a descrição do protagonista e constroem o ambiente no qual a ação
principal se desenvolve reverberam o significado do texto em direção ao
infinito. Daí se identifique uma grave polissemia capaz de sacudir o leitor,
muitas vezes assentado comodamente na crença de uma ordem presidida por
leis naturais e racionais. O estranhamento inquietante, termo atribuído por
Freud a um sentimento macabro no espírito humano provocado por fatos
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
283
inexplicáveis e ameaçadores, é representado mediante um movimento
narrativo e evocações que ao final nos suscitam uma sensação de estar
suspensos no umbral que separa uma zona conhecida de outra perturbadora.
É como se nos tivessem desconectado da simples e ao mesmo tempo
complexa razão humana da vida. De fato, um valor importante da escritora é
colocar em dúvida nossa concepção da condição e natureza humana.
Observemos como então Matute propõe o problema da desconhecida
e estranha humanidade do ser neste conto composto por apenas dois
parágrafos e de que modo a estrutura prototípica do gênero maravilhoso lhe
serve para representar o tema de modo particularmente eficaz.
O texto começa imitando o modo de narrar dos contos tradicionais –
―Había un niðo que no sabía jugar‖. O estado de carência de uma habilidade
considerada como natural num menino, indivíduo concreto de um gênero, nos
cria uma expectativa positiva e negativa ao mesmo tempo. Ansiamos - e
tememos ser decepcionados - que a privação do menino possa ser suprida e
ele aprenda a brincar. Em seguida, aparece a personagem sob a perspectiva
da qual acompanharemos o comportamento do menino. De fato, a entrada da
mãe produz um duplo e contraditório movimento: faz-nos penetrar no âmbito
familiar e ao mesmo tempo nos empurra a uma impaciência devida à
negatividade que esse lugar possa trazer. Em outras palavras, através do que
existe de mais íntimo e acolhedor é que o narrador nos conduz ao aterrador.
De modo que novamente se produz uma quebra em nosso senso comum: no
seio do familiar pode haver perigos inescrutáveis.
Através do olhar da mãe se nos apresentam os incompreensíveis
hábitos do menino e alguns detalhes de seu aspecto físico que sugerem sua
mania. De início, a narrativa já nos anuncia seu movimento autômato e
repetitivo de ir e vir, representando o traçado do movimento principal, o da
―segadora‖, máquina que corta a grama. Esta imagem real e simbñlica ganha
ainda mais sentido quando à continuação o narrador relaciona os objetos do
universo infantil excluídos das afeições do menino. Por um lado, tanto os
brinquedos como os epítetos que os descrevem aludem ao circular: ―pelota,
tan redonda, los camiones, con sus ruedecillas‖. Por outro lado, observamos
como a forma do significante incide na figuração do círculo: ―colores
chillones‖, ―pelota‖, ―redonda‖, ―camiones‖ incluem uma ou mais vezes a
vogal ―o‖. Assim, o que vem ser enunciado no segundo parágrafo já é
sugerido no início do conto: do mesmo modo que as pequenas unhas
cortavam as cabeças dos bichinhos, o vaivém do garoto pelo jardim em busca
de suas vítimas atravessa a redondeza dos brinquedos.
Cabe lembrar que o circular remete ao ciclo, à ordem natural da vida,
como a passagem das estações ou as fases da vida, e sua contínua renovação
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cíclica, ou ainda ao dia e à noite sucedendo-se depois do espetáculo do
amanhecer e do pôr do sol. Enfim, há toda uma simbologia em parte perdida,
em parte dispersa, em nossa sociedade moderna, racionalista e tecnológica,
que se serviu e ainda continua se valendo das concepções de mundo das
culturas arcaicas e tradicionais, presentes ou enterradas, em vários cantos do
planeta. Ademais, não se pode esquecer a frequência com a qual se utiliza o
círculo nos jogos infantis. A criança, mais que ninguém, conhece a função
que desempenha o esférico no plano lúdico e criativo da liberdade
imaginativa, na organização mental e no desenvolvimento cognitivo e
psicossocial.
Quanto ao gesto brutal da ―segadora‖, também as mãos do garoto,
pouco a pouco, vão adquirindo a forma da máquina mortífera. O sentido
escolhido para caracterizá-las é, sobretudo, o auditivo: ―quietas‖, ―caídas‖,
―pendientes como dos extraðas campanillas mudas‖. O silêncio, a
imobilidade e a torpeza das mãos contrastam com sua habilidade destrutiva
final expressa por uma onomatopeia: ―¡crac!‖. Inclusive nesta última oração
se recupera a forma gráfica do ―c‖, significativamente bastante presente na
segunda oração do texto. O desenho da letra poderia ser comparado com um
círculo cortado pela metade, como a cabeça amputada dos seres orgânicos.
Aos indicadores das ―manos pálidas‖, ―no muy limpias‖, ―casi
negras‖, soma-se ―una sombra entre los ojos‖. A escuridão das intenções e
dos atos nefastos do protagonista se reforça com a inquietação e o frio que a
mãe sente ao deter-se no filho. É necessário acrescentar que uma das
acepções de ―maravillar‖ em espanhol é esfriar o corpo bruscamente.
Por um lado, a clareza da intuição materna se opõe à cegueira da
razão paterna. O orgulho do progenitor não lhe permite ver o que se esconde
atrás do que ele considera uma sobriedade pouco comum na idade do filho.
Matute aborda com fina inteligência crítica a valorização superior da lógica
racional, masculina, sinônimo de maturidade psicológica e histórica que rege
a época contemporânea, em detrimento da inferioridade do intuitivo, do
feminino e do infantil. Aos olhos do homem do século XX, a superstição, a
magia e a sensibilidade exacerbada constituem um sinal de inferioridade
cultural comparada ao estágio sociocultural avançado ao qual o levou o
conhecimento científico e tecnológico da sociedade burguesa. As faculdades
da razão se tornaram o fundamento inviolável sobre o qual se desenvolveu o
conhecimento científico, tecnológico e administrativo da sociedade moderna.
O positivismo do século XIX consagrou o racionalismo do Iluminismo e a
noção de superioridade cultural da civilização moderna burguesa ao ter
construído um modelo teórico evolucionista no qual esta ocupava o grau
máximo de evolução material até então constatado entre as sociedades
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existentes. Todo este sistema teórico explicava ideologicamente a dominação
europeia ocidental sobre os demais povos e, dentro de sua civilização, a
dominação de classe social e de gênero entre outras formas.
Por outro lado, as vozes da mãe e as do pai se completam assinalando
que o ponto de vista de cada um revela facetas de uma mesma realidade,
ainda que considerada pela psicologia feminina negativa enquanto que pela
masculina positiva. Um menino que não tem desejo de brincar, já que,
conforme o pai, ele se dedica a pensar, possuirá a frieza do exercício do logos
e estará privado do calor dos sentimentos. O que a mãe percebe como
ausência, o pai considera uma virtude que destaca o garoto das demais
crianças. Curiosa e dialeticamente, é como se as sensações da mãe lhe
transmitissem ―a frieza‖ prñpria do pensar. Em troca, o argumento lñgico
aparentemente frio do pai acarreta o entusiasmo da alegria. É como se mãe e
pai, quando pusessem em funcionamento seus atributos culturais, invertessem
os papéis e ocupasse cada um o lugar destinado convencionalmente ao outro.
O segundo e último parágrafo segue empregando o modelo narrativo
do conto maravilhoso: ―Un día …‖. Um acontecimento, situado em um
tempo impreciso, intervém na repetição da ordem cotidiana ao interromper o
fluxo da ação e, por conseguinte, desequilibra esta ordem. O recurso a esse
esquema literário se dá, entretanto, de modo irônico, posto que se vê
deslocado a uma matéria cuja substância em nada se parece com o universo
irreal dos contos maravilhosos, apesar do insólito a que se refere. Assim, as
fases que conformariam a estrutura da narrativa primordial passam por
transformações significativas no conto de Matute ao qual lhe falta,
essencialmente, um terceiro momento da ação em que a estabilidade da
ordem inicial seria devolvida após a resolução do problema, seguida por uma
qualitativa mudança de estado. Em nossa história, ao contrário, temos uma
tensão inaugural ante um estado de carência estranho que, na realidade,
pouco se assemelha a um estável cotidiano familiar. Essa ―falsa normalidade‖
da qual estão pendentes as impressões aterradoras da mãe se confirma com a
terrível revelação. A mãe sai de sua cômoda janela, o seguro espaço familiar
em contato com o externo, penetra no ―jardim encantado‖, tropos
privilegiado das iniciações, e descobre o menino, junto a um tanque
(metonímia da fonte, metáfora por sua vez da dádiva do nascer da vida),
executando a ―verdadeira anormalidade‖. Ou seja, a tensão inicial se dissolve
sem um retorno à pretendida estabilidade primordial. A história sofre um
corte brusco que reitera um significado da ação principal, o de podar o ciclo
vital dos pequenos bichos.
Efetivamente, o ―¡crac!‖, uma onomatopeia do estalido da ruptura de
uma matéria dura ou substancialmente consistente, ressoa a quebra da alma
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da mãe ao se deparar com a meticulosa conduta do filho de decapitar,
sucessivamente, a cabeça dos insetos e filhotes de répteis; remete ao corte de
respiração materna, à suspensão do fôlego, no nada, na incompreensão, no
estranho lugar onde não se produz a identificação amorosa com o filho. O
próprio fato de não brincar, de se dedicar à destruição da vida, ao invés de
sua criação, ou de lhe carecer a mínima possibilidade de alteridade, de
compaixão com a dor do outro, também representa uma profunda ferida nas
fases do ciclo vital. Como a um psicopata ou algo semelhante, não será
facultado ao menino o processo de individuação, não chegará a ter um
amadurecimento psicológico baseado na experiência humana compartilhada,
orientada por arquétipos universais da iniciação, tema recorrente na obra da
autora.
De ―El niðo que no sabía jugar‖ a ―La niða fea‖, conto também
publicado em Los niños tontos, encontramos uma imagem que se transforma
como em um caleidoscópio, uma perspectiva que se desdobra, ao ser girado o
ângulo do instrumento ótico, jogando com os mesmos elementos do primeiro
conto mas formando um novo conjunto.
―La niða fea‖ possui uma estrutura binária semelhante ao primeiro
conto, agora constituída por dois parágrafos iniciais que apresentam as
circunstâncias que envolvem a protagonista em uma existência adversa e de
exclusão e dois finais nos quais os acontecimentos se precipitam e concluem
seu destino manifesto. Contudo, para além dessa parecida divisão binária, há
um maior grau de complexidade dado por uma oposição contida em cada
metade do conto, introduzida pela conjunção adversativa ―pero‖. Tais
oposições correspondem a réplicas alternantes que recaem nos parágrafos
pares do texto e produzem um efeito de sentido tão irônico quanto no
primeiro conto, cujo conteúdo semântico, porém, se evidencia praticamente
antitético ao último. Acompanhemos esse paralelismo antitético.
―La niða fea‖ apresenta um título reduzido ao máximo. O epíteto
―fea‖ encerra todas as possibilidades existenciais desse particular ser ―niða‖.
Por um lado, não caberia imaginar outra coisa senão que a feiura fosse o
determinante de seu estar no mundo e de seu destino. Por outro, como nos
modelos do gênero em que se apoia o conto, esperamos que esse
determinante sofra um abalo pelas vicissitudes da busca de superação do
desarranjo inicial empreendida pelo herói e se torne um atributo que passe a
beneficiá-lo ou ainda se mostre uma condição falsa. Essa, por exemplo, é a
estrutura da histñria ―O patinho feio‖. A condição inicial desfavorável se
revela, após a superação de algumas provas do noviço, uma falsa condição, já
que o atributo que a fundamenta está erroneamente relacionado ao ser ao qual
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ele pertenceria. Em outras palavras, o patinho não é feio porque não é um
pato e sim um cisne. A infelicidade se desfaz após a descoberta do engano.
A univocidade dessa estrutura narrativa não corresponde, porém,
àquela empregada por Matute nesse conto. As contradições internas do conto
produzem novamente uma crise nas expectativas do leitor que, depois de
acompanhar os desdobramentos contraditórios da realidade representada, se
sente desorientado no efeito de ambiguidade criado por tal procedimento.
À primeira vista, os dois primeiros parágrafos apresentariam as
particularidades da personagem, do espaço e do tempo, que condicionariam
sua situação desfavorável enunciada no título. A descrição realizada no
primeiro parágrafo, contudo, não satisfaz, precisamente, essa pressuposição.
Exceto pela ―cara oscura‖, as demais características físicas não corroboram
exatamente um conjunto desagradável. Por um lado, o adjetivo ―oscura‖ diz
respeito a um fenótipo de um grupo étnico discriminado na sociedade à qual
se refere o conto; ou seja, o fator de exclusão estaria intimamente ligado a
uma relação de conflito e exclusão sofrida por uma identidade sócio cultural
desde os tempos de formação do Estado nacional espanhol: a saber, os
muçulmanos ou ―los moros‖, povo objeto de suspeitas, repúdio e outras
formas de rejeição e violência. Os ―ojos como endrinas‖ reiterariam tal
hipñtese, já que as ―endrinas‖, conforme o dicionário, são frutos similares a
uma pequena ameixa silvestre de cor negra azulada, cor de olhos dominante
entre os muçulmanos que habitaram e dominaram a região da Península
Ibérica durante sete séculos. Por outro lado, um dos significados de ―oscuro‖
em espanhol é incerto, perigoso, azaroso, o que coincide com o destino da
protagonista, caracterizando-se como um indício dos acontecimentos que
definirão o sentido da narrativa. Os demais caracteres, em geral, conformam
um tipo bastante comum de menina, não obstante a relativização que
possamos fazer quanto aos padrões estéticos condicionados historicamente.
Na realidade, tais peculiaridades parecem desenhar o próprio protótipo de
menina: o cabelo repartido ao meio, formando duas grandes tranças a cada
lado do rosto. O comportamento, por sua vez, condiz a um modelo exemplar:
a assiduidade com a qual frequenta a escola e preenche o caderno realizando
as tarefas conferidas; a maçã como merenda ordinária que as crianças
normalmente levam à escola, inclusive significando um tropos recorrente dos
contos de fadas. É interessante perceber como a sombra que é conferida à
face da menina se contrapõe à luminosidade que se desprende da maçã.
A simetria dual e harmônica, que costuma configurar os seres
humanos, outros animais e vegetais de formação mais complexa da natureza,
é representado na própria organização sintática dos períodos que compõem o
parágrafo. Na primeira frase temos ―cara oscura‖ e ―ojos como endrinas‖,
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dois atributos fundantes da condição de exclusão da criança. Na segunda, ao
cabelo repartido diametralmente ao meio, se acrescenta um segundo dado que
aumenta a meticulosidade e cuidado como se fabrica e dispõem as duas
partes idênticas em que se divide o corpo: as tranças a cada lado do rosto. Na
terceira frase, também dois sintagmas especificam a ação rotineira de ir à
escola: o ―cuaderno lleno de letras‖ e a ―manzana brillante de la merienda‖.
Para enfatizar a reciprocidade binária e equilibrada da composição,
observamos que no plano semântico tanto o caderno quanto a maçã possuem
uma compleição dupla especular.
No plano dos significantes, verificamos a recorrência de palavras
com a letra ―ll‖, como ―llevaba‖, ―cabello‖, ―lleno‖, ―brillante‖. Com efeito, a
ll (elle) evidencia um emparelhamento perfeito entre iguais no plano
alfabético.
A proposição adversativa com a qual se introduz o segundo parágrafo
confirma essa leitura. ―Pero las niðas de la escuela le decían: ‗Ninã fea‘‖. Isto
é, apesar da regularidade simétrica com que se apresentava a criança no meio
social, era-lhe atribuído a partir de uma ação externa um qualificativo
impróprio à sua aparência. O estigma inscrito na cor da pele se traduz pelo
rñtulo ―fea‖ e engendra a expulsão do ambiente social. O distanciamento e o
isolamento causado por esse expurgo estão implicados no não
reconhecimento e inadmissão da alteridade. Em outras palavras, não existe
uma relação de alteridade, um reconhecimento e aceitação do outro enquanto
identidade própria e, portanto, diferente, mas digna de respeito e direitos
semelhantes, o que ocorre em forma de exclusão da relação entre pares.
Na sequência das palavras, a noção de pares se materializa,
significativamente, de forma negativa nas atitudes das outras meninas em
relação à protagonista: ―y no le daban la mano, ni se querían poner a su lado,
ni en la rueda ni en la comba‖. A união entre pares não se realiza duplamente:
não lhe dão a mão, nem se colocam ao seu lado. Essas duas ações de
reciprocidade se duplicam novamente nas brincadeiras em que desempenham
uma função fundamental: ―ni en la rueda ni en la comba‖. A ideia de
circularidade aludida no primeiro conto retorna com sua potência simbólica
primordial. A roda e o girar em círculo da corda correspondem a brincadeiras
infantis que representam o sentido cíclico universal da vida e a necessidade
do princípio de reciprocidade no agrupamento social humano para que se
cumpra o ciclo de sobrevivência e experiência do indivíduo no mundo. Como
vimos anteriormente, a iniciação aos códigos de convivência social se dá
nessas brincadeiras infantis, particularmente nas organizadas em círculo e em
colaboração mútua.
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O ato verbal de exclusão aparece como corolário da sequência
pareada de negativas: ―Tú vete, niða fea‖. A consequência é um afastamento
e isolamento junto a um universo que se destaca pela presença crua, inóspita
e ofensiva da natureza selvagem: os rosais silvestres, as abelhas de ouro e as
formigas malignas desprendem no imaginário suas propriedades pungentes e
danosas dadas por seus espinhos e ferrões. Como se houvesse um
procedimento matemático, as flores e os insetos ao redor dos quais a menina
vai se alojar são representados em pares: acácias e rosas, abelhas e formigas.
Por último, ―la tierra caliente de sol‖ opera a fusão entre os dois territñrios
antagônicos, o céu e a terra, através do sol. Aqui o superior, simbolizado pelo
sol, entra em comunhão com o inferior, representado pelas plantas silvestres e
pelos insetos, seres ínfimos, propiciando o calor e a vida. É nesse lugar
habitado por seres pertencentes ao simbolismo do submundo onde a
personagem vai buscar refúgio e encontra abrigo. Um espaço, porém, onde o
superior entra em contato e alimenta o inferior, onde ninguém a rejeita.
O terceiro parágrafo traz o acontecimento que perturbará a ordem
estável que se espera da primeira etapa de um conto maravilhoso, e que aqui
se apresenta como falsa. A terra, que havia sido anunciada como refúgio e
companheira da personagem pária, reaparece personificada, ampliando sua
função na fatura da narrativa. Seu chamado a fazer parte de seu universo
ocorre em forma de identificação: ―Tú tienes mi color‖. A convocação da
terra faz alusão à cor da pele, motivo do estigma que exclui a garota, ao
mesmo tempo em que tal atributo se converte em um aspecto comum entre
terra e menina indicado pelo possessivo ―mi‖ que realiza, ao mesmo tempo, a
relação de pertencimento entre os entes. A ação seguinte conota o funeral da
protagonista, cujos adereços ritualísticos se assemelham bastante àqueles
usados na via crucis de Jesus. As ―flores de espino‖ na cabeça, as flores de
pano e de ―papel rizado‖, papel crepom, na boca e as fitas azuis e roxas nos
punhos configuram uma cena que evoca a do bode expiatório criado e
fabricado socialmente para redimir os ―pecados do mundo‖. Em outras
palavras, trata-se de um arquétipo cultural cuja função é a de administrar a
economia da violência instintiva no plano social através de um depositário
que carrega a quantidade não suportada de violência inconsciente coletiva em
forma de sacrifício.
A frase dita tardiamente por todos em seu funeral, ―Qué bonita es‖,
parece funcionar como uma espécie de recompensa pelo martírio que lhe foi
imposto em vida, um modo de adoração tardia àquele que se sacrifica como
salvação do outro. Do ponto de vista da lógica discursiva, o dito, após a
situação adversa impelida pelas meninas à protagonista na escola, opera a
réplica dessa situação adversa, negando a negação do aspecto agradável da
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menina aos olhos da comunidade. Ou seja, o reconhecimento da beleza e a
identificação com o grupo ocorrem somente na morte, quando o ser deixa de
ser em si mesmo ao atingir o nada em si. A inclusão entre iguais acontece
mediante a fabricação da menina-mártir e tal participação numa identidade
coletiva se dá quando o ser não pode mais exercer o ser para si e, portanto, o
ser em si se transforma no nada. Esse é o valor dialético que se desprende das
proposições discursivas narrativas do conto de Matute. As expressões ―muy
tarde‖ e ―todos‖ insistem na esterilidade do gesto e das palavras finais, que
ironicamente acompanham o cerimonial do sacrifício do bode expiatório. A
inutilidade prática da negação à condição de ―niða fea‖ coincide
dialeticamente com a nulidade concreta em que foi transformada a menina
muçulmana ao mesmo tempo em que sua significância simbólica se
concretiza quando ela assume a forma empírica nula ou a nulidade física.
O quarto parágrafo repõe a réplica ao anterior de modo conclusivo. O
inframundo dos mortos é descrito agora quase positivamente, como se
houvesse perdido seu caráter agressivo. A palavra terra é omitida e no lugar
dessa significativa elipse ganha relevo a cor quente. A cor da terra assimila o
calor que o sol lhe incutia e sintetiza a ―cor quente‖. Numa operação inversa,
porém similar, o doce aroma do esconderijo ou o esconderijo doce e
aromático se desmembra em ―aroma escondido‖ e ―dulce escondite‖. O
espaço da morte ainda alberga as ―flores no nacidas‖, isto é, a esterilidade da
potência irrealizada na natureza, a nulidade daquilo que não floresceu; e as
―semillas de girasol‖, que podem ser interpretadas como o germen da síntese
total. O girassol traz o verbo girar, consoante ao movimento cíclico
mencionado anteriormente, e o sol, signo aqui de fonte de vida. O espaço que
recebe a menina morta se define como um retorno à unidade original, a uma
espécie de pregerminação. Não se trata, pois, efetivamente de um futuro
reparador que envia a personagem a uma plenitude no além, numa paz eterna.
A restauração se dá em forma de devolução ao ponto zero, ao aquém, à
inanidade inicial do preexistente, ao anseio do brotar. É como se a morte
representasse tê-la atirado ao marco de partida. A aniquilação, ironicamente,
se reveste de futuro reparador através do emprego da imagem do ciclo
circular. As sementes de girassol, a propósito, representam uma imagem que
se opõe à ―cara oscura‖, marca de seu breve período de existência na vida.
A irônica síntese restauradora final também ocorre no nível dos
significantes, pois, ao invés de encontrarmos sintagmas que se encadeiam de
dois em dois, se enfileiram duas orações compostas de três sintagmas
predicativos: ―color caliente‖, ―aroma escondido‖ e ―dulce escondi-te‖;
―sombras alargadas de los árboles‖, ―flores no nacidas‖ e ―semillas de
girassol‖. Mas a ironia sintética restauradora reside no modo como a
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narrativa representa a morte da menina: um restabelecimento a uma potência
de vida inicial, que não possuía nenhum escarmento intrínseco à sua
realização, e que, portanto, reúne a premência de fecundidade sem deixar de
ser estado de inanição. É assim que se descreve o território final para onde se
dirige a personagem: lugar ao mesmo tempo de ultratumba, virtual, portanto,
e concreto, descrito com os seres da natureza em repouso, em estágio de
prenascimento. A sensação de feroz vacuidade do viver engendrada pelo
movimento de eterno retorno nos traz uma desolação indescritível.
A síntese como negação da negação ou antítese da antítese também
se torna precária se pensarmos que a tese inicial, a que considera a menina
feia, apresenta-se a priori equivocada, já que o parágrafo primeiro descreve
uma impertinência do atributo feio conferido ao ser menina. Em outras
palavras, se seguirmos a lógica derivada da sintaxe e da semântica aparente
da unidade textual (tese-menina feia, antítese-menina bonita, síntese-menina
feia/bonita), não perceberemos a negatividade irônica do texto. Na realidade,
poderíamos destrinchá-lo da seguinte maneira: tese-menina bonita em sua
essência, antítese-menina feia em aparência social, (sínte)tese-menina bonita
em aparência social, antítese-não menina feia/bonita em essência mortal.
Sendo que cada etapa corresponderia ao jogo semântico de cada parágrafo
com o anterior e o todo do texto. Concluindo, a síntese final corresponderia
melhor a um processo de negação pela sociedade de sua beleza essencial
inicial que revelaria a falsa redenção restauradora da injustiça. A verdade da
feiura final deve ser compreendida não como uma feiura em aparência de
morta, senão como uma impossibilidade de restabelecer a beleza essencial do
ser. Assim ele se sintetiza não como feiura e sim como não ser. O deixar de
ser feia se concretiza por um deixar de ser, o que significa deixar de ser feia
ou bonita, a negação total. Esse estado instala-se como provisório embora se
processe ad infinitum entre os planos do ser e do não ser enquanto morte
concreta do ser. A morte não se apresenta, pois, como uma salvação, e sim
como outra etapa provisoriamente apaziguadora que pode transformar-se em
novo ciclo de negações injustas das potências vitais.
Em termos comparativos, sublinhamos que os dois textos jogam com
os padrões da narrativa tradicional, deslocando-os a serviço de um efeito de
sentido irônico negativo. O primeiro, no entanto, possui uma estrutura mais
simples, aberta e drasticamente alterada por uma abrupta supressão do
desfecho restabelecedor da ordem inaugural. O segundo, ao contrário,
conforma uma aparente simplicidade que revela a complexidade ao
justamente parecer adequar a fórmula restituidora da ordem inicial em seu
encerramento. Em outras palavras, no plano das partes constituintes da
organização do conto, o término de ―La niða fea‖ de fato provê a
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recomposição da ordem inicial: o que era injustamente feio parece acabar
vitoriosamente belo, como num conto de ―La cenicienta‖. Sabemos, contudo,
que a injustiça inicial somente se aprofunda e se torna inexoravelmente um
fracasso da justiça secular em forma de morte e que a possibilidade da crença
em uma justiça transcendental restauradora é negada, pois este universo sofre
a reiteração da ausência ontológica de justiça ou ainda se comunica através
de uma concepção cosmogônica circular e cíclica com o mundo real da
injustiça.
Quanto ao nível psicológico e social, o primeiro conto trata de uma
auto exclusão social mobilizada por razões intrínsecas à natureza psíquica da
criança problematizada enquanto o segundo representa uma exclusão
promovida pelo meio social.
De qualquer maneira, mediante diferentes modos de transgressão e
desvios do modelo arquetípico da forma da narrativa maravilhosa, Matute,
magistralmente, semeia a reflexão através da perplexidade; conduz-nos
habilmente ao caminho da espinhosa realidade da vida psíquica, social e
histórica fingindo ser o ilusório bosque florido de nossos recursos
imaginários; joga com os arquétipos ambiguamente, descortinando, por um
lado, os efeitos maléficos e as funções psicossociais que assumem em
práticas sociais historicamente contextualizadas e, por outro, desconstruindoos para apropriar-se do abalo que tal desagregação formal provoca no
pensamento convencionalmente estabilizado do leitor.
Em geral, os procedimentos analisados em nosso artigo são
apontados pela crítica canônica de Ana María Matute, embora ela não se
detenha exatamente no emprego irônico dos arquétipos literários do conto
maravilhoso e sim na função dos mitos bíblicos como forma de expressão da
singular visão de mundo da autora.
Nascida em 1926, na Catalunha, Ana María Matute viveu sua
infância entre Madri, Barcelona e Mansilla de la Sierra, o que logo lhe
conferiu um senso de desarraigo. Quando tinha dez anos, explode a guerra
civil espanhola que tanto marcou sua literatura. Sua estréia se dá em 1942
com o conto ―El Chico de al lado‖, publicado na revista barcelonesa Destino,
mas ela efetivamente aparece no cenário literário espanhol com Los Abel,
romance publicado em 1948, prêmio Nadal de 1947, que inaugura um tema
bíblico que será recorrente em sua poética, o da disputa entre Caim e Abel.
Matute escreveu livros, romances, coleções de contos e histórias para
crianças. Ganhou diversos prêmios literários como o Premio de la Crítica,
em 1958, com Los hijos muertos; o Planeta, em 1954, com Pequeño Teatro;
o Nadal, em 1959, com Primera memoria; o Café Gijón, em 1952, com
Fiesta al Noroeste, entre outros, e o merecido Premio Cervantes, em 2010.
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Suas obras foram traduzidas a todos os idiomas dos países do Oeste europeu
e a alguns dos do Leste. Considerada como uma das mais importantes
romancistas espanholas do período de pós-guerra e atualmente a principal na
Espanha, Matute possui um estilo pessoal e suas obras formam um mundo
literário próprio. Uma das marcas desta visão original de mundo está
plasmada pela cisão entre os períodos de vida: a infância, a adolescência e a
maturidade.
Situar Ana María Matute na narrativa espanhola de pós-guerra é uma
tarefa difícil devido a sua autenticidade e originalidade2. A crítica tende a
identificá-la com o grupo de 1954, formado por escritores como J. Fernández
Santos, R. Sánchez Ferlosio, I. Aldecoa, C. Martín Gaite, J. Goytisolo, L.
Goytisolo, J. García Hortelano, etc., por possuírem a experiência em comum
da guerra civil espanhola na primeira infância. Em termos classificatórios,
essa geração é reconhecida por seu compromisso político e social, um
realismo objetivo e um caráter testemunhal. A literatura de Matute, não
obstante, apresenta um subjetivismo e uma sensibilidade lírica bastante
realçada através de um deslocamento poético da realidade e de um realismo
de dimensão mítica e simbólica. Nesse sentido, J. Corrales Egea defende que
Matute se situa num lugar à parte, pois seu mundo lírico, mágico, misterioso
e fantástico colabora na construção desse lugar, assim como I. Soldevilla
afirma que apesar da preocupação da escritora com a problemática social,
esta aparece em sua obra como uma justificativa a posteriori da necessidade
de colocar a decepção das crianças e adolescentes frente a um mundo adulto
cheio de mentiras e hipocrisia.
Entre os temas principais da literatura matutiana, José Mas (1994, p.
93) destaca a morte, a infância, a adolescência, o ódio, a fuga e o amor. Para
o crítico, Matute apresenta a vida como algo cruel e duro e suas personagens
representam uma natureza humana egoísta, ignorante, medrosa e desconfiada.
A morte, por exemplo, se manifesta como algo grotesco, bárbaro, sem
sentido, enquanto a adolescência corresponde à perda de um período de
ingenuidade e fantasia. Os adolescentes se sentem assassinando seu paraíso
perdido. Um medo assustador e uma grande resistência os acompanham na
passagem ao mundo adulto.
José Mas observa que uma das formas de manifestação da fuga da
realidade das personagens infantis de Matute é a evasão imaginativa através
2
Para aprofundar-se no assunto, ver Kojouharova, Stefka Vassileva ―La difícil
ubicaciñn de Ana María Matute en la narrativa espaðola de postguerra‖
in
Revista Compás de Letras – Monografías de Literatura española – Ana María
Matute, no 4, Junio, 1994, p. 39-50.
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do mundo dos contos de fadas, por exemplo. O ódio, por sua vez, tem origem
na sua visão mítica da existência humana na terra. Neste sentido, o homem,
proveniente da linhagem de Caim, carregaria em seu sangue o ódio e o
desterro e seu destino consistiria em vagar sofrendo e trabalhando pela terra
sem encontrar repouso. 3
As desigualdades sociais conformam o tema da injustiça. Neste
ponto, o crítico sublinha que Matute não representa as classes desfavorecidas
da sociedade de modo estereotipado e superficial, senão com profundidade e
sensibilidade.
É lógico que sob esta perspectiva trágica da vida o amor não seja um
tema muito desenvolvido, posto que sua realização sempre se vê frustrada,
truncada por algum motivo maior da vida: a guerra, a falta de comunicação
entre as pessoas, o egoísmo, etc.
Margaret E. W. Jones (1970) descreve como temas matutianos a
passagem inexorável do tempo, a desumanização do indivíduo, o motivo de
Caim e Abel, a constante repetição da vida, a comparação do homem ao
animal, a solidão e a desilusão inevitáveis do ser humano. Segundo Jones, a
angústia da existência e o desconsolo devido à sua dura realidade atribuem o
tom da escrita de Matute: seus finais são quase sempre melodramáticos e suas
histórias contêm uma situação trágica que denuncia sua concepção fatalista
da vida. Para a crítica, no mundo cruel vislumbrado por Matute existe uma
distância implacável entre a realidade e o ideal; a guerra vem intensificar
ainda mais tal visão, ainda que desempenhando o papel de pano de fundo
para as tramas da escritora.
Sobre o mais característico da literatura de Matute, a separação entre
as idades da vida, o estudo metódico de Jones aponta que a infância abarca
uma idade total e fechada em si mesma, singularizada pela imaginação e
fantasia ainda não afetadas pela lógica social. Como uma etapa estática, a
passagem do tempo parece dissociar-se dela, de modo que tal fase surge
inalterável em um movimento eterno e isolado. Pertencer à infância significa,
pois, pertencer a um movimento suspenso no tempo, o da inocência. Daí o
despertar para o mundo adulto consistir na perda das qualidades infantis.
Conforme Jones, a adolescência na escrita de Matute não representa
uma simples continuidade da infância, ao contrário, uma profunda
transformação levará o adolescente à maturidade. Esse estágio formativo da
3
O cainismo é abordado em romances como Los Abel, Fiesta al noroeste, entre
outros. Em Primera memoria, por exemplo, Borja e Manuel representariam
respectivamente Caim e Abel, pois ambos disputam o amor do pai, Jorge. A vitória
de Caim é fruto de uma traição a seu irmão.
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295
personalidade enterra a inocência da infância através da força da realidade e
concentra a evolução do adolescente. Vemos um indivíduo em
desenvolvimento, relacionando-se com outros e despertando sua consciência
para o mundo que o rodeia. Esse despertar, momento tenso nas narrativas de
Matute, é provocado de forma dolorosa. À guisa de uma iniciação
contemporânea, o adolescente adquire conhecimentos como o da morte, o da
injustiça, perdendo portanto a ingenuidade que o impedia ver a realidade. A
mudança radical de sua consciência normalmente ocorre por meio de um
desenlace desolador.
Assim como a criança e o adulto, o adolescente vive uma solidão
opressora e a tentativa de romper essa barreira, de comunicar-se com os
demais, o leva a provar o amor, a amizade e a solidariedade, se bem que esse
modelo de relação acaba por fracassar, uma vez que as forças aniquiladoras
da vida costumam destruí-lo. Jones observa que em um primeiro momento o
adolescente matutiano, solitário e alienado ideologicamente, se sente
animado a questionar seu papel no mundo e o sentido da existência. Existe
uma infinidade de possibilidades que o incitam a explorar esse mundo. O
desejo de conhecer ao lado de um sentimento de resistência o expulsa da
infância, expande sua consciência que procura sua própria identidade e o
sentido de estar no mundo. A imagem matutiana frequente do adolescente
diante do espelho atua como metáfora para este processo de reflexão.
A crítica ainda descreve um tipo de adolescentes matutiano que
demonstra forte preocupação social e um idealismo político que ao final se
desmorona.4 A perda da inocência e a entrada na maturidade significam a
perda da esperança e do idealismo. Seus adolescentes muitas vezes terminam
mortos, se suicidam ou se resignam às limitações da vida, do tempo e da
morte. Vida e morte para Matute constituem forças antagônicas que assustam
o adolescente e configuram um motivo duplo em sua literatura. A maturidade
do adolescente depende do reconhecimento de tais forças. Como o tempo é
condição de transitoriedade, entender sua ação implica compreender a morte.
A adolescência, como um ciclo total de vida, contém nascimento, vida e
morte.
Sobre a maturidade, Jones coloca que na obra de Matute ela deriva da
natureza e condição humanas associadas à experiência da adolescência.
Desiludido e insatisfeito, o adolescente buscará dissociar-se da sociedade,
seguir seu caminho solitário. A maturidade, por conseguinte, está marcada
pela solidão, por um sentido de fracasso e desilusão. A transformação do
4
É o caso de Manuel em Los soldados lloran de noche ou de Daniel em En esta
tierra.
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296
adolescente é irrevogável e Matute capta esta angústia em suas personagens.
Amargura e desespero caracterizam a idade adulta.
Algumas personagens adolescentes, no entanto, rejeitam
veementemente submeter-se às regras da vida e a renegam, procurando
escapar através do suicídio: em Pequeño Teatro, por exemplo, Zazu se afoga.
A morte acidental também é um recurso de Matute para expressar o desajuste
entre o mundo real e o ser. Realidade objetiva e emoções subjetivas se opõem
de modo antagônico fabricando a tragédia.
Em geral, a fatalidade e a tragédia na literatura matutiana são
características, reiteradamente sugeridas por seus críticos, que se manifestam
às vezes por meio de presságios, pressentimentos, sinais simbólicos ou
metáforas estilizadas.
Recuperando a descrição da infância, Jones nos mostra que há dois
grupos de crianças no universo infantil de Matute: a criança normal e a não
comum. A normal está desprovida de idealismo enquanto a ―especial‖ nutre
seu reino de ilusão com a fantasia. A criança normal reproduz o
comportamento dos adultos: a violência, a crueldade, o pragmatismo. A não
comum se distingue por um brilho especial nos olhos, uma esperança
intocada, o dourado de seus cabelos, por atributos da imaginação, da
inocência e dos sonhos, pois não se encontra ainda contaminada pela
realidade.
Michele Ramond (1994, p. 190) afirma que a típica personagem
infantil de Matute é extremamente solitária, órfã, com um defeito físico ou
mental, marginalizada, rechaçada, humilhada, doente e aflita. Normalmente
sente-se separada e ignorada pelos adultos, que não a compreendem, e vive
isolada, o que desenvolve nela uma capacidade de evasão, fazendo-a inventar
seu próprio universo no qual se fecha para viver. Tais personagens também
resistem a ingressar no mundo adulto.
María Menéndez Lorente (1994, p. 261) assevera que a criança
matutiana se arma de uma forma de fantasia normalmente ligada à percepção
da natureza contra a realidade. Existe, assim, uma cumplicidade entre criança
e natureza semelhante a uma relação mágica que se desfaz ao crescer.
A respeito do estilo, José Mas (1994) aponta que Matute é dona de
uma prosa rítmica, poética e narrativa, na qual abundam imagens, símbolos e
o uso constante da sinestesia. As imagens, ricas em cores, sons, gestos,
aromas, substituem muitas vezes a análise psicológica, refletindo o estado
mental das personagens.
Margaret Jones (1970), por sua vez, põe em relevo a repetição de
frases ou símbolos, a acumulação, as variações de arquétipos literários, a
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297
imaginação e o uso simbólico das cores como recursos retóricos que
determinam seu estilo.
Nos dois breves relatos que analisamos, é possível notar a presença
de alguns aspectos assinalados pela crítica, principalmente aquele referente à
criança ―especial‖ ou marginalizada. Mas o mais significativo nos contos
escolhidos reside em como, por uma economia discursiva impressionante,
Matute emprega o padrão estrutural da narrativa primordial para tratar de
algo que na sociedade e na psique humana costuma ultrapassar a capacidade
de apreensão ou elaboração. O efeito irônico provocado pelo uso modificado
do arquetípico aqui evidencia o desajuste na vida humana, a constante
contradição entre o ideal e o concreto. Através do deslocamento de uma
forma narrativa tradicional para representar duas formas de negatividade da
vida social humana, a exclusão por si ou para si, ou seja, produzida por
condições intrínsecas a determinado comportamento individual ou pelo meio
social, se intensifica a oposição patética entre o tradicional, o normal, o
integrado e o extraordinário, o defeituoso, o marginalizado. Desse modo,
observamos como os dois contos de Matute, em seu conjunto, não só
realizam uma transformação irônica do arquétipo do herói, expressando a
distância inalcançável entre nossa condição humana e os feitos heroicos, mas
também reflete o sentido da matéria com uma potência metafórica que
somente se acha na poesia lírica.
THE IRONICAL REPRESENTATION MODE IN THE USAGE OF
LITERATY ARCHETYPES IN TWO SHORT STORIES BY ANA MARÍA
MATUTE
ABSTRACT: Our article analysis and compares the short stories ―El niðo que
no sabía jugar‖ and ―La niða fea‖ by Ana María Matute with the purpose of
demonstrating how the Premio Cervantes 2010 awarded Spanish author uses
the archetype model of the traditional narrative through various
transgressions and diversions from it, producing an ironical effect which
expresses both the contradiction of the human condition and the ideal and
the actual at one hand, and the negativity of the social and historical reality of
contemporary Spain at the other, a context to which the author refers to.
Through the displacement and ironical transformation of the hero of the
primordial folktale, the symbolic, mythical, and poetical images, Matute‘s
brief narrative economy manages to intensify the pathetical dialetics between
the traditional and the habitual, the stability between the ideal and the
extraordinary, the misfit, the injustices of the concrete world, expressing the
inexorable distance between our human condition and the imaginary heroic
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feats. We close the article with a brief presentation of the author‘s themes and
style according to a study of her critical richness.
Keywords: Ana María Matute. Folktale, Literary archetype, Symbolism
REFERÊNCIA:
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University Press of Kentucky Lexington, 1970.
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niños en Ana María Matute en Revista Compás de Letras – Monografías de
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Revista Compás de Letras – Monografías de Literatura española – Ana
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Monografías de Literatura española – Ana María Matute. Madrid, n. 4,
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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TODOROV, Tzvetan "A narrativa fantástica" in As estruturas narrativas. 2a
edição. S. Paulo: Ed. Perspectiva, 1970.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
300
Algumas questões de gênero a propósito dos
microcontos de Rui Manuel Amaral
Rita PATRÍCIO1
RESUMO:
Rui Manuel Amaral é um autor destacado na microficção
portuguesa e os seus microcontos, de forte teor metaliterário, refletem
frequentemente sobre questões de gênero. A leitura da sua obra (Caravana,
2008; Doutor Avalanche, 2010) permite pensar o modo como tem vindo a ser
definido o microconto como gênero literário particular. Num autor que
reiteradamente desvaloriza a etiquetagem genológica que lhe é
consensualmente atribuída pela crítica – o microconto –, o que diz essa
recusa do gênero? O presente trabalho pretende refletir sobre o modo como
estes textos jogam com essa inscrição de gênero, questionando-a e tomando-a
como nuclear desse universo literário. A crescente teorização ensaística sobre
microcontos tem vindo a sublinhar a importância da leitura e dos leitores para
este gênero literário. A close reading destes textos dará a ver estes
microcontos enquanto experimentação das possibilidades e dos limites da
delimitação genológica como condição de leitura, concluindo-se que esse
jogo com as expectativas de gênero é determinante neste universo
microficcional.
PALAVRAS-CHAVE: Microconto.
Conto. Gênero. Rui Manuel Amaral.
Microconto, ―uma espécie de rótulo‖
Na já vasta bibliografia teórica sobre a micronarrativa, o microconto é
reiteradamente apresentado como de concetualização e delimitação
problemáticas, pelo excesso que questões que levanta, sem que sejam
consensuais as respostas a dar-lhes. Como resume Lauro Zavala (ZAVALA,
2004,p. 87),
1
Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos, Braga, Portugal.
[email protected]. Este trabalho insere-se no âmbito do Projeto Projecto
Mutações do conto nas sociedades urbanas contemporâneas: exuberância e
minimalismo, UM/CEHUM. Coordenação de Eduarda Keating (Universidade do
Minho). FCT, PTDC/CLE-LLI/103972/2008.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
301
Debido a su proximidad genérica con otras formas
de la escritura, al tratar de ofrecer una definición
del cuento breve nos enfrentamos a varios
problemas simultáneos: un problema genérico (son
cuentos?), un problema estético (son literatura?), un
problema de extensión (qué tan breve puede ser un
cuento muy breve?), un problema tipológico
(cuántos tipos de cuentos muy breves existen?) y un
problema de naturaleza textual (por qué son tan
breves?).
A dificuldade em se definir o microconto, aqui, estaria na necessidade
de se encontrarem respostas simultâneas a vários e bem distintos problemas.
Ora se para o teórico é o excesso de questões a dificultar o conceito,
para o autor aqui tratado o microconto é apresentado como um problema, mas
precisamente por apresentar uma definição demasiadamente simplista. Numa
entrevista a propósito da publicação de Caravana2, respondendo à questão
―Como defines este teu estilo de escrita: micro-narrativa, micro-conto, microficção? Ou optas simplesmente por não o definir?‖, Rui Manuel Amaral diznos recusar os termos ―micro-narrativa, micro-conto ou micro-ficção‖,
justificando-se com ―uma razão simples‖: ―são termos demasiado conotados
com um conjunto de regras e convenções (número limite de palavras num
conto, por exemplo) que eu não sigo nem respeito. Impor regras em literatura
parece-me um paradoxo‖. O autor rejeita uma conceção normativista do que
sejam os códigos literários, mas, não deixando de partir de uma outra
categoria genológica, o conto, reconhece imediatamente a existência de
constantes formais na sua escrita, a começar pela brevidade: ―Os meus contos
são geralmente breves, de facto, mas porque essa é a forma que mais me
convém para contar uma histñria‖.
Se concebermos as regras e as convenções literárias, não como
imposições extrínsecas ao autor e ao seu processo de escrita, mas antes como
regularidades que descrevem as constantes estruturais de um conjunto de
textos, a que chamamos gênero, como por exemplo o conto, torna-se
inevitável lidar com estas categorias, no discurso quer sobre a produção quer
sobre a receção de textos, como a própria citação de Rui Manuel Amaral
2
Entrevista publicada a 12 de Outubro de 2010, originalmente em
http://orgialiteraria.com/?p=1725;
actualmente
disponível
em
http://corposetecnomaquinas.blogspot.pt (consultado em 20 de Março de 2012).
Todas as citações do autor foram colhidas nesta entrevista.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
302
deixa ver. Ainda que o autor prefira inscrever-se numa categoria genológica
mais lata – ―Prefiro dizer que escrevo histñrias ou ficções‖ –, reconhece que,
pragmaticamente, a circulação dos seus textos tem vindo a subsumi-los na
microficção: ―De qualquer maneira, tenho sido sistematicamente associado à
micro-ficção. É uma espécie de rótulo com o qual não me identifico, mas que
também não me incomoda‖.
Contrastando com a distância que o autor diz manter relativamente a
estas espécies de rótulos, o volume surge numa coleção intitulada
Microcosmos (a que se acrescenta, ―A volta ao mundo em 80 segundos‖) e na
página da editora lemos: ―Caravana: um desfile de pequenos e grandes
absurdos corporizados em pequenas criaturas de nomes estranhos. Uma fauna
estranha mas nossa próxima, nossa vizinha, nossa irmã. A microficção
portuguesa ganha em Rui Manuel Amaral, e nesta Caravana, a sua carta de
alforria.‖ Para além disso, os volumes contêm na sua parte final o convite
para que o leitor se torne autor do gênero em causa: ―Seja também um
Microcontista‖, é o claro repto que aparece na página 161 do livro. E seguese uma breve definição, que recoloca a questão não só no gênero, mas
delimita-a a um critério valorativo: ―O bom microconto é aquele texto cujo
resumo acaba por ser maior do que o prñprio microconto.‖ E vem depois o
desafio: ―Propomos-lhe pois o seguinte desafio: nas quatro páginas seguintes,
tente escrever microcontos respeitando o número de linhas indicado. De
página para página, o grau de dificuldade aumenta à medida que o número de
linhas diminui. A primeira linha, mais curta, destina-se ao título,
desejavelmente também curto. Boa sorte!‖. No final de Doutor Avalanche,
encontra-se a mesma incitação, tratando-se pois de um procedimento
paratextual que se repete nos dois volumes e que recupera semelhante desafio
lançado no final de Os cem menores contos brasileiros do século, antologia
brasileira que marca o gênero. Ainda que, sob esse plural, autor e editor se
indistingam, não pode deixar de ser evidente que a obra impressa de Rui
Manuel Amaral surge aos olhos do leitor com uma clara marca de gênero. A
ironia do desafio final, se se dirige à suposta normatividade que o autor
denuncia na microficção, acaba por também reativar o modelo que parodia e
contribuir para a inscrição inelutável do volume numa tipologia genológica: o
microconto.
Ao longo de Caravana, é reiterada a importância das ―espécies de
rñtulos‖ para a leitura. Num dos textos, é mesmo esse o núcleo temático a ser
tratado, pois vemos o infortúnio de um autor condenado a viver na
incompreensão crítica instaurada pela distância entre o horizonte de produção
e o horizonte de receção de um texto:
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
303
Ao concluir a sua primeira peça, Marforio Panurgo
fica convencido que escreveu a mais divertida das
comédias. A obra é levada à cena de acordo com as
suas instruções. No entanto, o público e a crítica
aplaudem-na, no meio do maior entusiasmo, como
a mais bem sucedida das tragédias contemporâneas.
(AMARAL, 2008, p. 127)
E vê depois acontecer a descoincidência inversa, ou seja, um conflito
semelhante: tendo dedicado as suas forças e talento à escrita de ―uma
verdadeira tragédia‖, vê a sua produção ser aclamada como uma comédia
hilariante. Escrita e leitura inscrevem-se sempre num determinado gênero,
ainda que, e esse é o problema da personagem em causa, possam não
coincidir.
Em Doutor Avalanche, há um momento em que o narrador se diz
obrigado a elidir parte da história que pretendia contar, em nome da
brevidade da narrativa:
Casou, comeu chocolates raros e comprou uma casa
de muito bom gosto. Neste ponto a falta de espaço
obriga-me a omitir várias circunstâncias que muito
acrescentariam beleza à história. Direi apenas que
morreu com cento e dezassete anos, sereno e feliz,
depois de uma vida cheia e com múltiplos motivos
de interesse. (AMARAL, 2010, p. 64)
Vemos, assim, que o narrador destas histórias se diz comprometido
com uma condição prévia à escrita, a brevidade, condição essa que o autor
Rui Manuel Amaral dá como principal característica da microficção, sendo
precisamente essa obrigatória sujeição à forma breve que o leva a rejeitar
essa etiqueta genológica.
A recusa aparente dessa espécie de rótulo faz-se também inscrevendo a
sua produção numa tradição que, justapondo nomes de diversas
proveniências genológicas, parece instituir uma ordem que transcende as
fronteiras de gênero. Quando interrogado sobre o efeito que sobre si tem a
colagem do seu nome ao de Mário-Henrique Leiria, Rui Manuel Amaral
responde:
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
304
Não me incomoda nada. E se o Mário-Henrique
Leiria não se queixa é porque também a ele não
incomoda, o que para mim é um excelente sinal. O
Mário-Henrique Leiria faz parte de uma longa
tradição literária, na qual se incluem incontáveis
autores de muitas épocas e origens: Aristófanes,
Rabelais, Swift, Cervantes, Sterne, Fielding,
Gógol, Walser, Harms, Kafka, Piñera ou Russell
Edson. Estou deliberadamente a incluir neste grupo
alguns escritores que não cultivaram o conto curto,
mas que partilham entre si o gosto pelo humor, a
ironia, a sátira, o absurdo e sobretudo um
profundíssimo amor pela liberdade criativa que a
literatura proporciona. Todos eles assaltaram a
despensa uns dos outros. Eu apenas roubei a caixa
dos biscoitos.
O autor assume-se assim como herdeiro de uma ampla tradição,
elencada a partir da comunhão de características literárias que transcendem
gêneros, tais como a ironia e o absurdo, e não pela adoção da forma breve. O
que caracteriza maximamente esta tradição, ―um profundíssimo amor pela
liberdade criativa que a literatura proporciona‖, é uma lição a ser aprendida e
repetida e é o reconhecimento dessa aprendizagem e dessa repetição que
sustenta a escolha deste elenco. Nesta obra, as personagens são muitas vezes
nomeadas a partir destes autores, criando assim um universo textual que
parece convocar e reescrever, em pequenos textos, a tradição literária que Rui
Manuel Amaral aqui elege.
Nos volumes em causa, de diversos modos se redimensiona a
necessidade e a superfluidade do gênero como condição de leitura: os livros
filiam-se explicitamente num determinado gênero por reiteradas indicações
paratextuais; alguns textos explicitam a inevitabilidade genológica como
condição de escrita e de leitura; e, simultaneamente, parodia-se, nessas
mesmas indicações, a eficácia dessas etiquetas dando-se conta do modo como
a leitura recoloca a inscrição de gênero como significativa num texto.
A consciência da importância da instância da leitura está, também ela,
muito presente nestes volumes, ambos dedicados à leitora e ao leitor. Notou
Pedro Mexia que, ―embora haja sabotagem de expectativas, Doutor
Avalanche é um livro generoso.‖ E concretizava essa generosidade na
dedicatória, que entendia não como ―uma simples ‗captatio benevolentiae‘,
mas revela uma genuína crença nos poderes da imaginação‖ (MEXIA, 2010).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
305
Ora podemos antes entender que a sabotagem de expectativas seja
precisamente uma forma de generosidade para com o leitor.
Nos textos de Rui Manuel Amaral, o apelo à imaginação do leitor fazse num regime também irónico. Nas páginas 68 e 69 do último livro, o
narrador deixa-nos a seguinte nota: ―Como se prova na fotografia incluída
nesta página.‖ E, perante a inexistência de qualquer fotografia, na página
seguinte adianta: ―Se o leitor não viu uma fotografia na página anterior é
porque é cego para as coisas do espírito‖. Estamos perante textos que
constantemente interpelam o leitor, jogando com as suas expectativas. O que
se segue é a análise de algumas das estratégias desse jogo e da sua função na
construção deste universo textual.
Algumas questões de gênero
O texto que inaugura Caravana, o primeiro dos dois livros até agora
publicados por Rui Manuel Amaral, intitula-se ―Literatura‖ e anuncia as
questões de gênero como decisivas em literatura:
―Literatura‖
Uma macieira que dá laranjas.
(AMARAL, 2008, p. 11).
O caráter generalista dessa definição metaliterária, colocada aqui como
um princípio, permite-nos lê-la como epígrafe a todos os textos que se
seguem. A ideia de sequência é certamente importante num livro que se
intitula Caravana (título a que não corresponde nenhum texto nele incluído),
mas a posição inaugural deste texto, assim como o alcance do definido,
apresentam este primeiro texto como uma chave inicial a ser dada ao leitor.
No mais curto de todos textos, a sua forma epigramática avisa o leitor sobre o
que se entende aqui por literatura.
O jogo com as identidades mutantes, se imediatamente as destabiliza,
também as reescreve, dando-lhes um novo corpo e, ao longo dos dois
volumes, seremos confrontados com essas mutações súbitas e surpreendentes.
Neste universo ficcional, o princípio é a negação da imagem de absoluta
correspondência entre árvore e fruto, princípio em que Sainte-Beuve
alicerçou a crítica literária biografista e que depois dele ganhou a fortuna que
todos conhecemos. Em ―Literatura‖, a definição apresentada, claramente
metaliterária, pode significar a relação entre o não-literário e o literário,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
306
contraditando explicitamente a crença romântica na ligação genética entre
criador e coisa criada defendida pela crítica biografista, dando a ver, pelo
contrário, a transformação que a literatura impõe aos seus objetos; mas pode
mostrar também a natureza própria da literatura, ou seja, um corpo em
constante mutação, em que os textos devêm de outros textos, e os tipos de
texto, a que chamamos gênero, devêm de outros tipos de textos, a que não são
completamente estranhos (com macieiras e laranjas estamos sempre dentro da
mesma esfera de referência), mas em relação aos quais operam uma mudança
significativa. Assim, a literatura de que aqui se fala pode ser a do próprio Rui
Manuel Amaral, em que a convocação recorrente e explícita de expectativas
de leitura próprias do um tipo de gênero literário é usada, como veremos,
para construir precisamente um universo ficcional que não é o do gênero
convocado.
Conto e microconto: inscrição e recusa
Ao revisitar as várias tentativas teóricas de caracterização do
microconto enquanto gênero literário distinto e cuja autonomia genológica se
susteria na sua diferenciação do conto, David Roas conclui pela
impossibilidade de se defender tal diferença, pois afirma não existirem razões
estruturais, temáticas ou mesmo pragmáticas que configurem o microconto
como um gênero específico e assim autônomo relativamente ao conto.
Sustenta tal afirmação na refutação de que características tidas por essenciais
aos microcontos sejam destes exclusivas, sejam as discursivas (tais como a
narratividade, a hiperbrevidade, de que a concisão e a intensidade expressiva
são naturais consequências), as formais (que decorrem dessa forma breve,
como a ausência de complexidade estrutural, a abundância de personagenstipo, a escassez de descrições espaciais, a utilização da elipse, a tendência
para a supressão de diálogos, a não ser que estes sejam maximamente
funcionais no texto, a existência de finais surpreendentes, a importância do
título e a experimentação linguística), as temáticas (recorrência de paródias
intertextuais, da metaficção, da ironia, do humor e da intenção crítica) e as
pragmáticas (necessidade de um impacto sobre o leitor e exigência de um
leitor ativo). Todos estes traços, recorda o autor, são distintivos do conto
moderno, tal como o entendemos desde Edgar Allan Poe. Propõe, por isso,
que o microconto seja concebido antes como mais uma variante do gênero
conto, gênero que, desde finais do século XIX, tem cultivado a brevidade e a
contenção narrativas, tal como o autor abundantemente exemplifica: ―En
definitiva, nos hallamos ante una variante más de la continua reinvención que
caracteriza al género cuento‖ (ROAS, 2006, p. 76).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
307
Esta posição responde a múltiplas propostas de entendimento do
microconto como gênero literário autônomo e, ao refutar essa autonomia,
recoloca os microcontos como um tipo particular de contos, convidando-nos
a lê-los, não em ruptura com essa tradição, mas na sua continuidade,
caracterizada precisamente por contínuas mutações. Seria próprio do conto,
nestas palavras do autor, uma ―contínua reinvenção‖ de si mesmo e é esse
entendimento do conto como gênero proteiforme que me importa aqui
sublinhar.
Aceitando o repto dessa visão do conto como gênero em constante
mutação e dos microcontos como legíveis a partir dessa mutabilidade,
proponho, neste texto, a leitura dos microcontos de Rui Manuel Amaral
(Caravana, 2008; Doutor Avalanche, 2010) enquanto um reiterado jogo de
filiação e de recusa do próprio gênero conto.
Os microcontos de Rui Manuel Amaral fazem-se a partir do conto: por
um lado, o conto é, a vários níveis, o pano de fundo em que se escreve o
microconto; por outro, estes microcontos contrariam deliberadamente
algumas das características do conto tal como o concebemos modernamente.
Este jogo de convocação e de subversão genológica é determinante no modo
de fazer literatura deste autor. Mas de que conto falamos? Independentemente
de outras matrizes contísticas (penso, por exemplo, em nomes como E. A.
Poe ou em Kafka) que funcionam como uma matriz importante para a leitura
destes ―contos curtos‖, como o autor reiteradamente lhes chama, há uma
outra tradição contística que me parece muito presente nesta escrita e é essa
que gostaria de analisar aqui. Trata-se do conto de tradição oral (e a que com
este se relaciona, mas não se confunde, o fantástico, de que não me ocuparei
agora) de que o conto moderno precisamente se afasta. Estes microcontos
convocam recorrentemente traços desses outros contos. Proponho que
vejamos o que resulta dessa convocação subversiva.
Comecemos com um exemplo evidente:
―Os ombros da menina Caroline Blasius‖
Gildrig tinha três filhas: Anabel, Arabel e Isabel.
Na verdade tinha apenas duas, Anabel e Arabel, a
terceira fui eu que inventei*.
(…)
* Será necessário contar que isto é um conto de
fadas?
(AMARAL, 2010, p. 29)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
308
Se estamos aqui perante uma paródia imediata do conto de fadas,
algumas páginas depois, repete-se a reativação subversiva de procedimentos
próprios deste tipo de texto, retomando uma estrutura narrativa paralela, mas
agora já aplicada a objetos que aí não são tão evidentes:
―O afortunado Scholz Ebenwaldner‖
Scholz Ebenwaldner possuía três bibliotecas: uma
grega, uma alemã e outra húngara. Certo dia,
estando ele mergulhado entre os livros da sua
biblioteca romena, reparou com surpresa num
pequeno volume que não reconheceu e que, por
alguma
feliz,
extraordinária
e
diabólica
coincidência, viera ali parar. Retirou-o da estante e
abriu-o ao acaso: era o Livro do Destino. Quero eu
dizer, o Livro do Destino do prñprio Scholz! (…)
(AMARAL, 2010, P. 63)
A partir destes dois exemplos, podemos perceber que a convocação
deste modelo de conto serve para frustrar o desejo e a expectativa de
narratividade que o conto implica: em ambos os casos, não se passa nada,
seja porque não sabemos o que acontece às personagens, seja porque o que
lhes acontece é tão previsível que a ação se torna insignificante.
A subversão da inevitabilidade da narrativa repete-se neste corpus com
grande insistência. Ilustro-a com o texto seguinte:
―As insaciáveis orelhas de M.‖
Comecei por escrever uma história com a frase:
―Todas as manhãs, M* levava as orelhas a pastar.‖
Mas, refletindo um pouco, achei-a desprovida de
interesse e risquei-a.
Depois lembrei-me de outra história, das mais
engraçadas que se possam imaginar, a respeito de
uma coisa que eu cá sei; mas por ser muito
indecente, preferi calar-me, não fosse ofender os
ouvidos castos e honestos.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
309
E agora, não desejando alongar mais este assunto,
passemos à história seguinte.
* Trata-se de Meujael, cujo nome significa ―Aquela
que sabe assobiar com os dedos‖**.
** Ora, Meujael é um pseudônimo. O seu
verdadeiro nome é Mirandolina, que não quer dizer
absolutamente nada. (AMARAL, 2008, p. 153)
As orelhas do leitor ouvinte ficam igualmente por saciar em muitas
outras histórias. Em todas elas, o que acontece é que não acontece nada e essa
ausência de ação é o objeto da enunciação. Noutros textos, até assistimos ao
desencadear de uma ação, mas esta é suspensa e é precisamente essa quebra,
um anticlímax narrativo, a constituir o seu clímax discursivo.
Para a frustração das expectativas narrativas típicas do gênero conto e
microconto, contribui a expansão discursiva, muito própria do conto oral e
que contraria a lógica da microficção. Este vagar discursivo resulta da
recorrência de repetições lexicais, do uso insistente de paráfrases, da
abundância de excursos a atrasar a narração, da acumulação polissindética de
detalhes, muitos deles redundantes, cujo valor decorre precisamente da sua
estranheza e irrelevância na narrativa e da sua inserção num elenco de pares
que vai contrariando ou mesmo inviabilizando a história, prometida, mas
nunca cumprida, ao leitor.
Para além disso, se a brevidade e contenção narrativas próprias dos
universos de microficção conduzem a uma aparente ocultação ou a uma
discreta presença do narrador, neste corpus, pelo contrário, a voz que conta é
uma personagem onipresente e aqui o contador, isto é, o narrador, domina o
enunciado, sobrepondo-se o plano do discurso ao da história. O narrador
refere-se constantemente à sua enunciação como ―contar‖ e os seus
recorrentes excursos, por vezes remetidos para notas de fim de página,
asteriscos, parênteses, explorando as possibilidades gráficas do suporte livro,
atualizam o modelo de narrativa oral.
É frequente encontrarmos nestes textos um registo oralizante, que
recria a situação copresencial entre contador e ouvintes, com interpelações
constantes e diretas aos leitores, dando voz às suas expectativas, dúvidas,
perplexidades, sobretudo para imediatamente as contrariar.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
310
―Uma pessoa feliz‖
Innocentius Prioris era, sem dúvida alguma, uma
pessoa feliz. Muito feliz. Desde sempre
profundamente feliz. Por isso, esfregava as mãos e
girava sobre si mesmo cantarolando velhas valsas.
E enchia o peito aspirando o ar com prazer,
consciente de que era iluminado por uma boa
estrelinha. E abria os braços e batia com os pés no
chão, e mostrava os dentes amarelos, e deitava a
língua de fora, e fazia piruetas, e dava gritinhos,
porque se sentia muito feliz. E adormecia satisfeito
e tinha sonhos felizes, e acordava cheio de
felicidade. E dava graças a Deus e a Santo Inácio, e
a todos os santos, e a todas as santas pela alegria
concedida. Oh, era feliz, feliz, feliz, feliz. E se
multiplicássemos a sua boa fortuna por mil ainda
ficaríamos longe da medida correta da sua
felicidade
E pronto, é tudo. Esperavam talvez que, de repente,
alguma coisa conduzisse a história numa direção
totalmente diversa? Que irrompesse de algum lado
um grão de areia, um vidrinho afiado que colocasse
um ponto final em tanta felicidade? Compreendo.
Mas não. Innocentius viveu e morreu feliz, muito,
muito feliz. E não digo nada acerca da alegria com
que foi recebido no paraíso, por ser coisa óbvia.
(AMARAL, 2010, p. 57-8).
Assistimos, para além disso, ao longo dos textos, à encenação da
enunciação: o narrador mostra-se a contar, corrige o que conta, simulando a
composição do discurso e da história perante o leitor. Aqui a tradição oral
entrecruza-se com tradição da ironia romântica, de cariz metaficcional,
concorrendo ambas para enfatizar a presença do narrador, que a si mesmo se
toma como objeto do discurso. São constantes as reflexões sobre o seu
desempenho como narrador, antecipando reações de leitura, remetendo para
as regras de bem contar uma história, reconhecendo as limitações do seu
conhecimento sobre a diegese, prometendo e frustrando excursos narrativos,
adiando desenlaces. Para além de juízos sobre a sua competência narrativa, o
narrador vai julgando também a coerência da matéria narrada. Veja-se o
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
311
seguinte exemplo, em que, a inverosimilhança interna da história é legitimada
pela inverosimilhança da própria vida, e assim a falta de lógica da história
subordina-se à falta de lógica do próprio mundo e, ao ilustrá-la, torna-se
necessária e verdadeira:
―Skila Krivonóssovitch, o fabricante de olhos de
vidro‖
(…)
Sem dúvida que o leitor não esperava este
desenlace, que não tem qualquer relação com a
lógica mais elementar. E a própria sintaxe é um
tanto discutível. Mas nem tudo no mundo tem que
ter lógica ou obedecer a uma sintaxe perfeita.
(AMARAL, 2010, p. 26)
Noutro momento, o narrador reflete sobre a qualidade sonora do nome
das personagens da sua história, mostrando que o que conta é, não
propriamente para ser lido, mas antes para ser ouvido:
―Um grandioso plano‖
Permitam-me, deixem-me que apresente Maslav
Daslov*.
(…)
* Há no conjunto formado por este nome e apelido
um efeito pouco eufônico produzido pela repetição
do grupo fonético [az] e pela semelhança entre os
grupos fonéticos [lav] e [lov], que o torna um tanto
ou quanto desagradável. Infelizmente, não há nada
que se possa fazer. (AMARAL, 2010, p. 71)
O narrador chega mesmo a aproximar a escrita da performance,
recriando a situação enunciativa típica do conto oral, em que um contador
está perante os seus ouvintes e a sua narração tende a ser dramática.
―Red delicious‖
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
312
Adão trincou a maçã com prazer, mas quase de
imediato franziu o sobrolho, combinando o gesto
com uma aguda careta de desagrado.
- Com a breca! Mas o que vem a ser isto? –
perguntou Adão com toda a severidade. – Afinal o
fruto proibido, que me custou os olhos da cara, está
cheio de bicho? Essa agora! É assim que o Senhor
nosso Deus trata as pessoas?
Adão pediu o livro de reclamações.
(O narrador faz agora uma breve pausa para
ampliar o efeito dramático das palavras de Adão).
(…) (AMARAL, 2008, p. 157)
Por tudo isto, estes microcontos, ao porem em cena estas estratégias
próprias do conto oral, subvertem as expectativas de leitura que o próprio
gênero moderno conto gera. Se aceitarmos a proposta de David Roas, de
entendermos os microcontos como uma variante (um subgênero, poderíamos
dizer) do gênero conto, então será possível ler nesta convocação do conto oral
uma irônica revisitação da origem da modernidade do conto literário, ou seja,
o que descende de E. A. Poe e cuja emergência decorreu precisamente da
oposição a essa outra tradição contística.
Voltemos à definição de literatura apresentada pelo autor, enquanto
―Uma macieira que dá laranjas‖. Este texto é o primeiro texto de Caravana,
volume inaugural de uma colecção de livros de microcontos, a Microcosmos.
No próprio volume incita-se o leitor a que ―Seja também um Microcontista‖,
recuperando e intensificando o desafio que, na última página, é feito aos
leitores da antologia brasileira Os cem menores contos brasileiros do século
(se, nesta antologia, o leitor é incitado a escrever um microconto até
cinquenta letras, no livro de Rui Manuel Amaral esse convite multiplica-se
por várias páginas, crescendo supostamente o seu grau de dificuldade ao
diminuir o espaço consagrado à escrita do texto). A inscrição destes textos de
Rui Manuel Amaral num tipo de discurso particular – o microconto – é
inegável, apesar das reiteradas resistências do autor à etiqueta de gênero.
A partir da imagem da literatura como uma macieira que dá laranjas
pode-se ler a genealogia deste gênero particular, o microconto, dando a ver a
mutabilidade entre gêneros como a natureza do literário, em que os textos e
os gêneros devêm de outros textos e de outros gêneros, com os quais mantêm
uma relação de subsequência, feita de contiguidade e de diferença. O que é
próprio da literatura é as macieiras darem laranjas; é o conto resultar agora
em ―contos curtos‖, como Rui Manuel Amaral lhes chama, ou em
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
313
microcontos como o próprio volume lhes chama e como podemos chamarlhes. O que resulta da leitura apresentada é que muitos destes microcontos
convocam e subvertem um tipo específico de conto, o conto popular, e nesse
desvio repetido, ou nessa mutação de identidades, podemos ver um traço
distintivo destes microcontos. Neste sentido, a imagem dá a ver os
antecedentes genológicos deste tipo de textos.
Mas os exemplos tratados, se tornam claro o jogo paródico com essa
genealogia, deixam também evidente que os textos aqui apresentados
contrariam o que se espera imediatamente de um conto, e sobretudo, de um
microconto. A imagem da literatura como macieira que dá laranjas pode
assim significar o jogo que o autor cria com o próprio gênero microconto.
Desde logo porque os textos do autor não cabem nos limites impostos aos
leitores no desafio final, também este um jogo paródico, que lhes é colocado
em ambos os livros de Rui Manuel Amaral. Por outro lado, a narratividade é
frequentemente suspensa e a contenção nessa narração negada por um
discurso que privilegia as figuras da expansão: as enumerações, as repetições,
a presença tendencialmente dramática do narrador subvertem a lógica de
brevidade, contenção e concentração narrativas que se espera dos
microcontos. Nessa medida, o texto ―Literatura‖ parece atingir toda a obra de
uma outra maneira: nesta macieira, ou seja, neste livro que se anuncia de
microcontos, e essa inscrição imediatamente gera determinadas expectativas
no leitor, surgem textos que são afinal outra coisa relativamente ao esperado,
isto é, laranjas.
Que esta imagem inicial deva ser retomada ao longo do livro fica
evidente, algumas páginas à frente, se lermos o microconto ―Maçã‖, em que
novamente se dá a ver a dimensão instável e prodigiosa das questões de
gênero.
―Maçã‖
Um homem decide plantar-se no meio dos campos,
à espera de dar fruto.
Durante muito tempo nada acontece.
(Tempo durante o qual nada acontece.)
Um dia, uma prodigiosa laranja irrompe de um dos
lados da cabeça. O homem dá a laranja a comer a
um crítico de laranjas. O crítico explica ao homem
que aquele fruto não é uma laranja mas um pêssego
e que ele, infelizmente, é alérgico a pêssegos. O
homem repara, então, que a laranja não passa de um
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
314
limão. E ele não gosta de limões. Decide acabar
com aquilo. Desfaz em pedaços a maçã prodigiosa
que tinha nascido da sua cabeça. E desta vez tudo
se torna claro a seus olhos. E levantando a voz diz:
―Então era isso!‖ (AMARAL, 2008, p. 7)
Os textos de Rui Manuel Amaral apresentam-se ao leitor como um
universo de inexplicáveis e inevitáveis mutações: talvez a aceitação dessa
inexplicabilidade seja a lição a retirar desse estado de constante mudança. E
essa lição poderá ser também uma lição literária.
Microconto e poesia: o que se passa passa-se dentro da linguagem
Na já citada entrevista, Rui Manuel Amaral, ao dar conta do seu modo
de escrita, contraria a ―opinião geral de que a produção de textos curtos – o
mesmo acontece com os aforismos – são fáceis de fazer acontecer‖.
Declarando o autor que tanto ―há histórias que demoram vários anos a ganhar
forma e que conhecem múltiplas versões ao longo do tempo‖, enquanto
―outras são escritas de um rasgo‖, o que reconhece como denominador
comum é ―nenhuma [ser] um caso encerrado‖. Esta possibilidade de reescrita
atinge mesmo as histórias já publicadas, como o autor avança: ―Se hoje
tivesse que reeditar o meu primeiro livro, Caravana, que demorou cerca de
quatro anos a ser escrito, mudaria várias histñrias‖. Contra a suspeição de
facilidade e imediatez de escrita com que os leitores podem ler estes textos, o
autor reclama a morosidade da composição das histórias e a mutabilidade a
que sentencia vários textos publicados fazer prova da vigilância aguda a que
diz submeter a sua produção: ―É um trabalho minucioso e contínuo que pode
ser comparado ao do poeta, creio‖.
A aproximação do seu trabalho ao do poeta visa aqui precisar essa
índole laborativa da sua composição literária. E acrescenta:
Numa história curta, como num poema, cada
palavra é escolhida com um rigor cirúrgico e vale o
seu peso em ouro. Mesmo certos elementos
supérfluos são usados de forma intencional. Num
romance, o autor pode escrever coisa nenhuma
durante várias páginas sem que isso prejudique de
forma grave o equilíbrio da história. Nos gêneros
mais curtos, não existe essa possibilidade. Cada
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
315
palavra cumpre uma função muito concreta na
economia do texto.
Segundo o autor, a brevidade da forma torna mais urgente e mais
determinante esse trabalho de composição. Tendo implícita uma conceção
organicista de texto, o autor adverte que a dificuldade do equilíbrio entre os
vários elementos cresce à medida que o tamanho do corpo considerado
decresce. Por isso, a escolha deve incidir sobre cada palavra, núcleo de
significação, tal como o autor diz acontecer ―nos gêneros mais curtos‖.
A tentativa de legitimação e de valorização dos seus textos faz-se na
convocação de uma tipologia genológica: a citação da poesia – como se fosse
característica inquestionável do poético essa brevidade formal… –, funciona
aqui como a prova de que as formas breves criam condições especiais de
valor literário. O autor aponta sobretudo para duas características
estruturantes que decorrem desse minimalismo: a atenção dada à palavra
como elemento mínimo de significação, que conduz a um movimento de
escolha e de permanente eliminação do supérfluo, e a consideração do
supérfluo como intenção. Vejamos cada uma delas.
Relativamente à primeira, a indispensabilidade e a exigência na
escolha dos elementos compositivos levam ao pressuposto de que cada
palavra conte superlativamente, pois o movimento de supressão contínua que
constrói um texto torna mais significativos os elementos constituintes desse
texto final e, por isso, cada palavra passaria a valer na medida em que é lida
como a que resiste a um processo severo de rasura. O que releva da leitura
destes textos, contudo, não é um efeito de depuração literária manifestável
numa forma em que se eliminassem todos os elementos excessivos. Pelo
contrário, os textos em causa constroem-se contrariando precisamente esta
natural expectativa de depuração lapidar associada às formas breves: são
frequentes as repetições, as perífrases, como já se discutiu; o léxico utilizado
é muitas vezes demasiado prosaico, mesmo para os gêneros em prosa,
fazendo entrar no discurso palavras e expressões de cunho assumidamente
popular3 ou palavras raras, mas cuja raridade institui no texto um efeito algo
cômico, de que o texto seguinte é exemplo:
3
Cf., por exemplo, AMARAL, 2008: 139, em que o jogo irónico da contraposição de
registos se torna claro na tensão criada entre o nome da personagem, Cassie
Oldman, a personificação do Destino e uma espinha de faneca que entretanto entra
em cena.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
316
―A vida do poeta‖
O poeta passa os dias a coçar o anacoluto.
Muitas vezes, porém, a comichão só passa
aplicando um cacófato.
Não é fácil a vida do poeta.
(AMARAL, 2010, p. 61).
A atenção dada à palavra manifesta-se preferencialmente neste
universo ficcional de um outro modo: em muitos dos textos de Rui Manuel
Amaral, a ausência de ação narrativa é compensada por aquilo a que
poderíamos chamar uma ação metafórica, e o que se passa só se passa dentro
da linguagem: algumas metáforas literalizam-se certos jogos de palavras
expandem-se narrativamente: vejam-se como o fazer-se luz dentro de si dá
origem a ―Eletricidade‖ (AMARAL, 2008, p. 39-40), como se mata o tempo
em ―A vida e quase morte de Arquimedes Trismegisto‖ (AMARAL, 2008, p.
49-50), como as imprecações ganham vida em ―O que aconteceu a Wippich‖
(AMARAL, 2010, p. 95), como formigam as ideias em ―O velho Piper Krejci‖
(AMARAL, 2010, p. 97).
Por outro lado, perante a necessidade de criar uma relação harmoniosa
entre as partes que devem constituir o todo que é o texto, e dada a dificuldade
acrescida de atingir essa harmonia quando essa forma final é curta, também
aqui cada uma das partes se redobra de significado. Essa mesma expectativa
transforma os elementos supérfluos, como as repetições, por exemplo, em
núcleos de significação acrescida. A superfluidade torna-se, nestas
circunstâncias, naquilo que é necessário ao texto e alguns destes textos
tomam precisamente o supérfluo como fundamental. É o que acontece no
exemplo que se segue, pois nele é a acumulação da especificação detalhada
das horas a que se vão dando determinadas ações que acentua o absurdo que
a história ilustra:
―Ora vemos uma pessoa, ora deixamos de a ver‖
A vinte e três de Fevereiro, às vinte e duas horas e
dezassete minutos, Marcus Kottkamp encontrava-se
no café habitual a beber uma cerveja. Dez minutos
depois, às vinte e uma horas e vinte sete minutos,
Marcus Kottkamp pedia uma segunda cerveja.
Cerca de treze minutos depois, às vinte horas e
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
317
quarenta e nove minutos, bebia uma terceira
cerveja. Ora até esse momento nada mais tinha
acontecido digno de ser mencionado.
De repente aconteceu aquilo. Um clarão vindo de
lado nenhum e – zás – Marcus Kottkamp
desapareceu. Assim, sem mais.
Tudo isto se passou num brevíssimo instante, por
volta das dezoito horas e quarenta minutos. Nunca
se conseguiu descobrir que coisa foi aquela e,
sobretudo, o que veio a ser feito de Marcus
Kottkamp. Ora vemos uma pessoa, ora deixamos de
a ver. (AMARAL, 2010, p. 99)
Do blogue ao livro; a questão do livro.
Alguns dos contos que constituem os livros em causa tinham já sido
publicados no blogue ―Dias Felizes‖ (http://last-tapes.blogspot.com). Quando
interrogado sobre o modo como esse suporte condiciona o seu processo de
escrita, o autor começa por referir as suas vantagens: ―O blogue impõe uma
espécie de disciplina de escrita que, no meu caso, é essencial. Leva-me a
escrever de forma regular e a um ritmo constante. Nesse sentido, funciona
como uma boa oficina, onde experimento ideias, avalio recursos, recolho
opiniões‖. Sublinhe-se, em primeiro lugar, a dimensão oficinal que esse meio
adquire, ao impor um ritmo e uma disciplina de trabalho particulares, como
se a exposição pública que o blogue pressupõe funcionasse como uma
pressão produtiva: porque se sabe lido, o autor é levado a ensaiar com
regularidade sistemática as suas tentativas literárias. Espaço de
experimentação, o blogue oferece também, e esse é o segundo aspecto a
salientar destas palavras, a possibilidade de auscultar os leitores durante o
processo de produção. A recolha de opiniões aparece a fazer parte desse
trabalho de oficina, que se especifica, antes disso, em ―experimentar ideias‖ e
―avaliar recursos‖. O blogue surge assim como um laboratñrio de preparação
e de experimentação de escrita. Mas a exposição a que um autor fica assim
sujeito leva-o a falar no ―lado perverso do blogue‖, explicitando: ―por vezes
publico histórias que, na verdade, estão longe de estarem terminadas. E isso
tem a ver com a minha terrível falta de paciência‖. A tentação da publicação
imediata colide aqui com a consciência autoral da conclusão da história. Por
tudo isto, as histórias publicadas no blogue são aqui remetidas para a
condição de experiências literárias (em que se avaliam recursos e opiniões) e
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
318
são parcialmente desautorizadas, na medida em que o seu autor vem dá-las
como formas inacabadas. É por isso que o autor distingue o que publica no
blogue do publicado em livro, dizendo que mesmo as histórias já publicadas
surgem em livro em versões muito diferentes. Descrever deste modo a
passagem do blogue ao livro supõe que este constitua uma forma que dá um
outro estatuto aos textos.
Essa diferença de estatuto torna-se perceptível no modo como o livro é
pensado enquanto objeto autônomo e com uma unidade desde logo atribuível
pelo título. Nem Caravana nem Doutor Avalanche são títulos de qualquer
texto reunido em volume; são pois títulos do todo que é a coleção de textos (o
primeiro aliás exprime a sequencialidade do conjunto, ao mesmo tempo que
afirma o seu caráter inaugural). Além do mais, há uma organização interna
muito evidente no modo como certos motivos se retomam: anteriormente já
se deu conta do modo alguns dos textos são dominados pelo motivo da
mutabilidade entre frutos, mas atente-se agora na distribuição cuidadosa que
o autor faz desses textos ao longo dos dois livros4. Em todos eles, é possível
ler uma reflexão sobre a representação artística, o que coloca o leitor perante
variações e desenvolvimentos ritmados de um mesmo motivo ao longo dos
volumes. Em Doutor Avalanche, encontra-se uma outra estratégia para levar
o leitor a conceber o livro como um composto unitário: há um poema – uma
elegia, uma suposta tradução de um texto anônimo italiano do século XVII,
que transforma alguns exageros verbais das histórias, reescrevendo-os num
tom doloroso – que episodicamente vai intercalando os microcontos e que vai
conferindo um outro tipo de unidade ao livro.
A ironia recai também sobre uma hipotética e desejada estrutura de
livro. Em Caravana lê-se:
―Este pequeno texto dedicado aos limpa-chaminés
foi pelo autor reservado para ser o último deste
livro, porquanto não conheço outro que se lhe
pudesse seguir; sabendo nós que, quando o
tivermos lido até ao fim, estará mais do que na hora
de fecharmos estas páginas para sempre. Nota de
Slawkenbergius.‖ (AMARAL, 2008, p. 154).
O autor, contudo, indo contra a indicação deste suposto editor, reservase o direito de só encerrar o seu livro uma outra história e uma citação depois,
mais uma evidência significativa da persistência da promessa e da recusa de
4
Cf.: AMARAL, 2008: 11; 31; 97; 157 e 2010: 39; 43; 69; 105.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
319
certos procedimentos artísticos instituídos como estruturantes da escrita,
manifestação da pulsão paródica que caracteriza toda esta obra, feita de
histórias que contrariam o fim que anunciam.
SOME GENRE ISSUES WITH REGARD TO THE
MICROFICTION OF RUI MANUEL AMARAL
ABSTRACT:
Rui Manuel Amaral is a distinguished author in the Portuguese
microfiction and his microfictions, intensely metaliterary, frequently reflect
on issues of genre. Reading his work (Caravana, 2008; Doutor Avalanche,
2010) allows for a rethinking of how microfiction has been defined as a
particular literary genre. In an author who repeatedly devalues the
genealogical labeling that has consensually been attributed by critics microfiction -, what does this refusal of genre say? This essay wishes to
reflect on the extent to which these texts play with this entry of genre,
questioning it and taking it as pivotal to this literary universe. The growing
essayistic theorization on microfiction has underlined the importance of
reading and readership to this literary genre. Close reading these texts
discloses microfiction as experimentation of the possibilities and of the limits
of genealogical delimitation as prerequisite of reading, thus concluding that
this game of genre expectations is determining in this microfictional universe
KEYWORDS
Microfiction. Short Story. Genre. Rui Manuel Amaral.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Rui Manuel, Caravana, Coimbra, Angelus Novus, 2008.
AMARAL, Rui Manuel. Avalanche. Coimbra: Angelus Novus, 2010.
FREIRE, Marcelino, Os cem menores contos brasileiros do século, Coleção 5
minutinhos, Cotia, SP, Ateliê Editorial, 2004.
MEXIA, Pedro. O prestígio omnisciente. Ípsilon, Público, 10 de Dezembro de
2010.
ROAS, David. El microrrelato y teoría de los géneros. In: Irene Andres-Suárez
y Antonio Rivas (eds.). La era de la brevedad – El microrrelato hispánico.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
320
Actas del IV Congresso Internacional de Minificción, Universidad de
Neuchâtel, 6-8 de noviembre de 2006, Palencia, Menoscuarto Editiones,
2008.
ZAVALA, Lauro. Cartografías del cuento y la minificción. Sevilla: Editorial
Renacimiento, 2004.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
321
Dalton Trevisan: um minificcionista por excelência
Miguel Heitor Braga VIEIRA1
RESUMO: A obra de Dalton Trevisan (1925) vem sendo elaborada nas
últimas décadas com uma tendência cada vez mais perceptível à concisão
extrema. Cronologicamente, é um fato observado a partir da publicação dos
livros Ah, é? e Dinorá, ambos de 1994. Este artigo visa apresentar e discutir
os procedimentos adotados pelo escritor brasileiro para construir uma
minificção paradigmática no cenário contemporâneo da literatura brasileira.
São procedimentos como a reescritura subtrativa, o trabalho com as técnicas
do mostrar/dizer, o ensaísmo minificcional e a repetição. O referencial
teórico-crítico baseia-se em apreciações panorâmicas sobre o conto brasileiro
da contemporaneidade (como as de Fábio Lucas e Alfredo Bosi); em análises
pontuais sobre a obra de Trevisan (como as de Berta Waldman); em
pesquisadores que se preocuparam com os recursos aqui salientados (como
David Lodge, Roman Ingarden e Wolfgang Iser). Espera-se, ao final, ter sido
demonstrado por que Dalton Trevisan pode ser chamado de minificcionista
por excelência.
PALAVRAS-CHAVE: Minificção. Dalton Trevisan. Literatura Brasileira
Contemporânea.
Dono de uma vasta bibliografia em que constam dezenas de obras,
Dalton Trevisan é um dos mais profícuos escritores brasileiros
contemporâneos e vem publicando regularmente desde sua estreia, com
Novelas nada exemplares, de 1959, até o presente, com O anão e a ninfeta,
de 2011. São, portanto, mais de cinquenta anos de escrita ininterrupta que lhe
conferem significativo reconhecimento como exímio autor de ficção curta
junto ao público geral e diante da crítica especializada.
Inúmeros estudos panorâmicos sobre o conto brasileiro da
contemporaneidade dão lugar de destaque à sua produção, vendo nele um dos
1
UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná (campus de Cornélio
Procópio). Centro de Letras, Comunicação e Artes. Cornélio Procópio – Paraná –
Brasil. 86300-000 – [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
322
principais escritores que renovaram o gênero a partir da segunda metade do
século XX. Fábio Lucas, em ―O conto no Brasil moderno: 1922-1982‖,
menciona a estrutura e a temática do autor:
A estrutura do conto em Trevisan se organiza em
torno de um eixo paradigmático, as revelações dos
impulsos incontroláveis do desejo e das fantasias
humanas, eixo aquele cortado pela fragmentação
cênica, a variedade infinita das situações humanas
construídas ao acaso das circunstâncias externas do
relacionamento em sociedade. (LUCAS, 1989, p.
130)
O crítico toca em ponto sensível da obra trevisaniana, a qual traz em
seu bojo pouquíssima variação temática. Praticamente, toda ela se forma sob
o pendor à concisão, a certo minimalismo de recursos e de um olhar mordaz
para a existência humana, embora lírico para a natureza vegetal e animal.
Desse modo, são histórias na maioria das vezes extremamente curtas, quanto
à forma, e focadas em relacionamentos falidos particular e publicamente,
quanto à matéria. São personagens: homens cínicos, mulheres submissas,
velhos mesquinhos, crianças insolentes; são seus ambientes: casas de
subúrbio, centro da cidade; é sua linguagem: econômica e tendendo ao
exíguo por meio do enxugamento de recursos formais.
O caráter conciso de sua linguagem (bem como de seus temas) e a
variada gama de nuances que ela revela é assunto recorrente na crítica. Ora,
esse é um fato frequente não apenas em Trevisan, como em outros escritores.
Basta pensar em Rubem Fonseca e Luiz Vilela para se verificar que é uma
postura até certo grau comum na ficção e conto modernos do Brasil.
Contudo, de acordo com Alfredo Bosi, o elemento de sua precisão é de
ordem distinta:
Outro é o sentido de concisão nas histórias de
Dalton Trevisan. Aqui, a obsessão do essencial
parece beirar a crônica, mas dela se afasta pelo tom
pungente ou grotesco que preside à sucessão das
frases, e faz de cada detalhe um índice do extremo
desamparo e da extrema crueldade que rege os
destinos do homem sem nome na cidade moderna.
(BOSI, 1978, p. 17)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
323
Bosi discute um conjunto de aspectos nesse trecho. A questão de
gênero literário é relevante, pois, ao sugerir que seus contos se aproximam do
olhar o cronista urbano, evidencia uma tendência viva na literatura moderna
brasileira, a qual se desloca para as cidades e seus convívios problemáticos.
Entretanto, o tom cáustico de seus narradores e o olhar dos personagens, além
do apego ao detalhe do contista preocupado com as vivências menores em
uma cidade grande com marcas interioranas (pensa-se em seu cenário típico,
a cidade de Curitiba), tornaram-se, ao longo do tempo, verdadeiras lendas
obsessivas na literatura de Trevisan.
É por certo no caminho de obsessão em sua literatura que Trevisan se
posiciona em um nível de interlocução com a produção literária brasileira.
Ocorre, assim, que seu lugar em nossa literatura, no exercício do conto, em
geral, e em sua progressão ao diminuto verbal, em particular, podem, a nosso
ver, ser enfocados sob o viés da prática minificcional. Nesse sentido,
poderíamos ir além e dizer que seja um minificcionista por excelência, diante
das razões que elencamos a seguir.
É raro encontrar textos com mais de uma página na produção do
autor nos últimos vinte anos, pois suas soluções ficcionais estão sendo
formuladas em um espaço cada vez mais exíguo2, deparável com um esforço
paulatino de redução da materialidade linguística, de elementos técnicos
(como o narrador, a visão de espaço, de enredo) e concomitante a uma
ampliação de possibilidades de sentido por meio de largo uso de elipses
sugestivas. O ―pico na veia‖ do autor (que, em verdade, é toda uma teoria
ficcionalizada do conto, à maneira da teoria do ―nocaute‖, de Julio Cortázar,
da teoria do ―iceberg‖, de Ernest Hemingway, ou da teoria do ―fuzil‖, de
Anton Tchékhov3) já era suspeitado por Hélio Pólvora na década de 1970, em
A força da ficção, ao dizer: ―Uma das principais características de Dalton é a
procura deliberada da veia‖ (PÓLVORA, 1971, p. 39). Certamente, não
haveria maior novidade em tal concepção do conto, não fosse a consumação
dessa teoria exigir, aos intentos de seu proponente, um espaço ficcional de
reduzidíssima extensão textual. Curiosamente, intitula-se Pico na veia uma
obra de Trevisan, publicada em 2002, em que é dito logo no início:
2
Para não incorrermos em engano, a exceção encontra-se justamente em sua última
obra, em que há, intercalados às minificções, textos com mais de dez páginas:
TREVISAN, Dalton. O anão a ninfeta. Rio de Janeiro: Record, 2011.
3
As teorias de conto citadas são, como se viu, baseadas em analogias. Explicação e
comentários delas se acham em: Valise de cronópio, de Julio Cortázar (2006), em
Formas breves, de Ricardo Piglia (2004) e no texto ―Sobre algumas funções da
literatura‖, de Umberto Eco (2007).
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324
―3‖
Um bom conto é pico
(TREVISAN, 2002, p. 9)
certeiro
na
veia.
Trata-se, pois, de um trabalho gradual e consciente de procura da
exatidão formal e discursiva, prescindindo de todos os despojos que tornem o
texto farto e corpulento. Em uma de seus raros pronunciamentos, o autor
corrobora o que é visível em seus escritos:
Para escrever o menor dos contos a vida inteira é
curta. Nunca termino uma história. Cada vez que
releio eu a reescrevo (e, segundo os críticos, para
pior).
Há o preconceito de que depois do conto você deve
escrever novela e afinal romance. Meu caminho
será do conto para o soneto e dele para o haicai
(TREVISAN apud WALDMAN , 1997, p. 142).
Essas palavras, memoráveis em si, não são alarde de principiante. É
um dado a ser considerado dentro do texto de Trevisan, e não como
propaganda leviana. Uma das principais intérpretes da obra de sua obra, Berta
Waldman, refletiu sobre o processo de redução gradativa de sua prosa. Em
―Mínimo múltiplo: do conto ao haicai de Dalton Trevisan‖, ela diz:
Desde os primeiros textos publicados nos idos dos
anos 50, destaca-se um traço que atravessa a obra
de Dalton Trevisan: a condensação. Para alcançá-la,
o autor lança mão da subtração que basicamente
significa suprimir e ―enxugar‖ frases, trechos de
contos, reescritos estes sistematicamente a cada
nova edição. (WALDMAN, 1997, p. 139)
Waldman divide sua obra em momentos de testes estilísticos e
ousadias redutivas: ―Nos livros Cemitério de Elefantes, O Vampiro de
Curitiba, Guerra Conjugal, publicados antes dos anos 60, e ainda em Rei da
Terra, de 1972, Dalton Trevisan mais investiga seu material literário do que
trabalha estilisticamente a subtração‖ (WALDMAN, 1997, p. 139-140). É um
contista de alta relevância que se apresenta nessas obras (vide os contos ―O
vampiro de Curitiba‖, do livro homônimo, ou ―Lágrimas de noiva‖, de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
325
Guerra Conjugal e ―Uma vela para Dario‖, talvez seu conto mais conhecido,
de Vinte contos menores), o qual assim é analisado em estudos do gênero sob
os mais diversos enfoques, mas ainda não é o cirurgião redutor dos anos
seguintes, o qual se manifesta e crava suas realizações a partir dos anos de
1990.
Com efeito, as ―ministñrias‖ não aparecem ainda nas obras
supracitadas; esse é um termo que surgirá editorialmente apenas com a
publicação de Ah, é?. Mas, além de ser uma designação comercial e genérica,
é nesse livro de 1994 que vem à tona o caráter minificcional de sua obra. Um
fato como esse já chamaria a atenção daqueles que se interessam pela
minificção, como chamou a de Karl Erik Schøllhammer, que, no capítulo de
Ficção brasileira contemporânea dedicado ao miniconto, indica o
movimento de miniaturização do processo criativo e produtivo de Trevisan
com vistas a uma nova compreensão de seu espaço na literatura brasileira:
Depois de mais de trinta livros, o autor depurou seu
processo de condensação e subtração, retrabalhando
obsessivamente o material de livros anteriores –
culminando nos livros recentes Dinorá (1994), Ah,
é? (1994) e 234 (1997), Arara bêbada (2004) e
Maníaco de olhos verdes (2008) –, cada vez em
estilo mais enxuto e depurado para extrair o
máximo de unidades mínimas, chamadas por ele de
haicais. (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 96-97)
Para sermos um pouco mais precisos, é logo depois de Em busca da
Curitiba perdida, de 1992, que emerge um Trevisan, além de minimalista,
minificcionista, em duas obras de mesmo ano, 1994: Ah, é? e Dinorá.
Falamos em minificcionista além de minimalista porque acreditamos que há
em sua obra, desde os contos mais longos, e mesmo em seu único romance (A
Polaquinha, de 1985), um estilo que privilegia a secura e o rompante na
narrativa, utilizando parcimoniosamente os abrigos que a ficção oferece.
Sendo assim, as questões se colocam: de que maneira ocorre,
portanto, a miniaturização de procedimentos na obra Trevisan, conforme as
alusões anteriores? Quais são seus métodos e particularidades? Para a
resposta ser configurada, vejamos de início os textos seguintes.
Em Ah, é?, na ministória de número 166, lê-se:
O velho em agonia, no último gemido para a filha:
– Lá no caixão...
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
326
– Sim, paizinho.
– ... não deixe essa aí me beijar. (TREVISAN,
1994, p. 122)
Em Os cem menores contos brasileiros do século ela ressurge ainda
mais resumida:
– Lá no caixão...
– Sim, paizinho.
– ... não deixe essa aí me beijar. (TREVISAN, In
FREIRE, 2004, p. 20)
No cotejo de ambas, é notório que a única mudança é o primeiro
período, o qual é a própria voz de um narrador em terceira pessoa. Como
narrador, no primeiro, ele introduz o personagem referido (―O velho em
agonia‖), a situação narrativa de morte, pois é seu ―último gemido‖ e a
companhia (no caso, uma companhia familiar, pois é ―a filha‖ quem está
próxima). Já na segunda houve a supressão da voz do narrador, de modo a se
apresentar somente o diálogo curto4. Como dissemos, é propriamente a
mesma história. Mas passa a ter ares de sketch dramático ao exigir a
formação de um contexto não explicitado, ou conhecido e reconhecido pela
atuação dos dois personagens. Mesmo suas identidades e papéis que
desempenham (pai e filha) só são atribuídos em leitura e releitura do texto,
pois a voz narrativa, como dissemos, ausenta-se na reescritura.
O que está aí exemplificado é uma situação de reescrita e subtração,
em que se miniaturizou uma peça ficcional que já era diminuta. Conferiu-lhe
agilidade ainda maior na segunda, sem perda de significado total. Instaurouse um vazio em uma narrativa que desde logo, em sua primeira versão, era
prenhe de vazios a serem preenchidos: ―A elipse, a arte de ocultar palavras e
idéias, tem sido uma das marcas da narrativa de Dalton Trevisan. A
colaboração do leitor para completar o significado de suas inúmeras situações
é inevitável‖ (LUCAS, p. 1989, 138).
Como se sabe, os dois grandes teóricos da literatura que versaram
sobre a ideia de ausência e lacunas nos textos literários foram Roman
Ingarden e Wolfgang Iser (em A obra de arte literária e O ato da leitura:
4
Em sua dissertação A poética da minificção: Dalton Trevisan e as ministórias de Ah,
é?, Pedro Gonzaga evidencia outro caso: uma mudança supressiva de parágrafos
em um conto que aparece em Cemitério de elefantes (de 1964) e depois em
Primeiro livro de contos (de 1979): GONZAGA, 2007, p. 70.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
327
uma teoria do efeito estético, respectivamente). Conquanto seus conceitos
(―pontos de indeterminação‖, de Ingarden e ―vazios‖, para Iser) não sejam
correlatos completos, a proximidade é possível. No exemplo acima disposto,
localizamos a supressão de termos, ficando apenas o núcleo essencial para a
narrativa. Talvez tenha se chegado, por oposição, àquilo que Ingarden diz em
A obra de arte literária:
Estes pontos de indeterminação, em princípio, não
podem ser inteiramente eliminados por qualquer
enriquecimento finito do conteúdo de uma
expressão nominal. Se em vez de ―homem‖ disser
simplesmente ―um homem velho experimentado‖
então alguns pontos de indeterminação são
eliminados pelo acréscimo de expressões
atributivas, mas ficam ainda muitos em quantidade
infinita por eliminar que só numa série infinita de
determinações desapareceriam. (INGARDEN,
1963, p. 272)
Na concepção de Ingarden, sempre há pontos de indeterminação,
como a se multiplicarem ilimitadamente. Quanto mais atribuição, mais
complemento é requerido em uma obra literária. Na resolução formal do
segundo texto de Trevisan, em que o narrador é suprimido, seria como uma
via negativa de determinação, pois se retirou um elemento de voz externa ao
enredo para captar um quadro que não necessitaria de complemento. Esse
quadro deixou de ser narrativo e passou a ser um completo capricho
imperioso: o velho em agonia não quer a proximidade de outra pessoa, não
importa quem seja (sua mulher, sua ex-mulher, sua namorada, amantes,
amiga?). Nesse viés, a reescrita subtrativa de Trevisan ganhou em força
sugestiva justamente por aquilo que não está dito e qualquer complemento
seria requinte desnecessário.
Tangenciando sua reescrita obstinada, outro ângulo da minificção
trevisaniana é o uso do ―mostrar‖ e do ―dizer‖, ou showing and telling, tal
como nomeada pelas teorias de língua inglesa. David Lodge, em A arte da
ficção, aborda esses dois procedimentos usuais na ficção narrativa:
O discurso ficcional alterna o tempo inteiro entre
mostrar e dizer o que aconteceu. A forma mais pura
de se mostrar são as falas dos personagens, em que
a linguagem espelha com precisão o acontecimento
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328
(uma vez que o acontecimento é lingüístico).
(LODGE, 2009, p. 130).
A técnica do mostrar sobrepujando o dizer confere maior desapego
estrutural, na medida em que a voz narrativa (narrador) é disposta em seu
mínimo interventivo. Em Trevisan isso é evidente, assim como encontramos
em outros autores, como no americano Ernest Hemingway, ou em outro
brasileiro, o mineiro Luiz Vilela, autor de contos e novelas (como Te amo
sobre todas as coisas) construídos inteiramente sob a técnica do mostrar.
Em Pico na veia, vemos esse exemplo:
―24‖
– Esse outro eu não aceito. Me recuso a dividir com
um panaca a minha mulher. Você tem de escolher:
eu ou ele.
– Bobice, querido. Ora, o que você perde? Para
mim esse aí nada significa. Você é único. O meu
amor é demais para um só. Grande bastante para
dois e três. Quer a prova, docinho? Vem para os
meus braços. Vem. (TREVISAN, 2002, p. 31)
Nesse texto de apenas duas falas, sem a intromissão de um narrador,
está o cerne da literatura de Trevisan: amores em conflito com desejo sexual,
tipos suburbanos que se revelam não por traços estigmatizados exteriormente,
mas por sua própria linguagem. Aliás, a cena se constrói apenas pela
interação dos dois personagens. Mesmo quando o narrador se coloca na cena
é tão somente para anunciar dados essenciais e caracterizadores:
―4‖
A tipinha de dois anos que passou a tarde com a
avó:
- Pai, pai.
- Sim, filhinha.
- Xópi... compra... cartão...
A mesma pessoinha voltando da outra avó:
- Pai, pai.
- O que, filhinha?
- O Senhor é convosco. (TREVISAN, 2002, p. 10)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
329
Nessa ministória, o narrador basicamente cria a cena em sua única
aparição, como se fizesse as vezes de rubrica dramática, ao contextualizar o
leitor à situação narrativa. Distancia-se estrategicamente para observar seu
desenrolar. É a ―tipinha‖ e a ―pessoinha‖, vocábulos que acentuam certo
marotismo da personagem infantil, que antecipa as razões de sua fala em duas
situações familiares distintas que traduzem e impõem valores cada qual em
sua realidade.
Se a assiduidade da técnica do mostrar, em Trevisan, sobrepuja o
dizer, principalmente em cenas domésticas, de violência e de sexualidade, o
dizer não é menos presente. Para David Lodge, ―A forma mais pura de se
dizer é o resumo autoral, em que a concisão e a abstração da linguagem do
narrador apagam o caráter particular e individual dos personagens e de suas
ações‖ (LODGE, 2009, p. 130). Os usos do dizer seguem duas orientações,
em Trevisan.
A primeira ainda se cerca dos temas mais famosos de sua obra, os
quais desde o início citamos: mesquinharia, assassinatos, amores infundados,
urbanidade cruel. Em um texto como o abaixo, é somente a voz que se expõe:
―145‖
Cartão postal de Curitiba:
Pare na primeira esquina e conte os minutos de ser
abordado por um pedinte, assediado por um
vigarista e trombado por um pivete – se antes não
tiver a nuca partida ao meio pela machadinha do teu
Raskolnikov. (TREVISAN, 2002, p. 173)
Como em um cartão postal preciso, porém cinicamente às avessas, o
narrador (diríamos o pensamento da voz concretizada no texto) direciona sua
artilharia verbal para a cidade-obsessão da obra de Trevisan, Curitiba. Porém,
o dado que incrementa esse cenário é a interiorização da violência, ao se
referir ao personagem principal de Crime e Castigo, de Dostoiévski, como a
acrescentar a variável de culpa individual de cada morador da cidade tornada
espaço ficcional.
A presença solitária da voz narrativa, sem ação aparente, surge
zombeteira, como no texto abaixo:
―15‖
Três da manhã na praça. Ei, cara, ouça os passos da
estátua do Marechal de Ferro que sofre de insônia
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330
e, espadinha na mão, ronda pra cá e pra lá.
(TREVISAN, 2002, p. 22)
Ou ainda mais acintosa em:
―18‖
Curitiba – essa grande favela do primeiro mundo.
(TREVISAN, 2002, p. 25)
Contudo, não é só de mordacidade e acinte que se faz a minificção
de Trevisan que diz com voz concreta em suas ministórias. Consideramos
como novidade e avanço em sua minificção a segunda orientação do dizer em
sua obra, a qual advém do processo que redundou em um texto
verdadeiramente lírico. Surge uma voz poética e são poemas advindos de
uma redução máxima de elementos ficcionais. Disso se pode compreender
um pouco melhor sua noção de haicai. O haicai proposto por Trevisan é um
haicai peculiar, o qual não segue as regras formais da poesia japonesa, mas
que parece manter o mesmo efeito de unidade e visão total de determinado
aspecto da realidade.
―1‖
O amor é uma corruíra no jardim – de repente ela
canta e muda toda a paisagem. (TREVISAN, 1994,
p. 5)
―1‖
Do último verão, no tronco da árvore, a casca vazia
de uma cigarra: ouça o canto. (TREVISAN, 2002,
p. 5)
Esses dois textos (o primeiro de Ah, é?, e o segundo de Pico na veia)
iniciam os respectivos livros com imagens ternas baseadas em metáfora,
como se um elemento mínimo acomodasse todo o mundo ao redor. Atribuem
à natureza um espaço de contemplação de sossego diante dos desmazelos do
mundo, com um acento lírico próximo à sisudez, resignação e parcimônia
orientais. Essa ficção lírica simboliza a força da miniaturização verbal em
Trevisan, exatamente ao unir o todo ao mínimo, ou o máximo de significado
ao espaço ínfimo de representações singelas e exatas.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
331
A minificção lírica de Trevisan alcança, por outro lado, imagens de
acentuado desamparo e tristeza, formadas por visões de passado ou morte e
se constituindo em dolorosos ―picos na veia‖:
―21‖
Assim o cãozinho quer pegar no chão a sombra do
vôo rasante do pássaro, você persegue no tempo a
lembrança em fuga dos teus mortos queridos.
(TREVISAN, 2002, p. 28)
―200‖
Tristeza é ver florindo o vasinho de violeta no
quarto da filha morta. (TREVISAN, 2002, p. 232)
Em A plenitude da linguagem, Jean Cohen reafirma uma concepção
bastante difundida de poeticidade: ―É lamentável que a palavra ‗totalitário‘
tenha recebido do seu contexto político uma conotação pejorativa. A palavra
define adequadamente a própria essência da poesia. Ela é uma linguagem
totalitária‖ (COHEN, 1987, p. 67). Ao revisitarmos essas produções de
Trevisan, em que o dizer perpassa toda a construção textual e compreende
uma realidade aprofundada em imagens ora cruéis, ora líricas, percebemos
que sua técnica literária se mostra ainda mais refinada.
Além da reescritura subtrativa, da oscilação de uso da técnica do
mostrar e dizer e das tonalidades advindas dos usos dessa técnica (retrato
mordaz ou lírico da realidade fictícia), um terceiro procedimento na
minificção trevisaniana é a crítica ou ensaísmo minificcional. Trevisan
constrói pequenas peças de cunho especulativo, em que artistas e personagens
históricos surgem como focos de análise. De Desgracida vem um texto
exemplar:
―Emiliano redivivo‖
Helena Kolody. Dulcíssima senhora. Professora
emérita. Glória do beletrismo paranista. O Emiliano
redivivo.
Poetisa maior? Ai de mim, menos que menor. Não
mais que medíocre. Nem sequer o ruim diferente.
A nossa pobre santinha Maria Bueno do versinho
piegas.
Só que, ao contrário da outra, não faz milagre.
(TREVISAN, 2010, p. 49)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
332
Figuras importantes para a cultura paranaense, Helena Kolody e
Emiliano Perneta são alvos de crítica ferrenha por parte do narrador. A voz
narrativa se apropria das figuras tornadas personagens para, por meio de
avaliação estética, afirmar um estilo particular de literatura: sem ―versinhos
piegas‖, nem ―beletrismo‖.
Se olharmos para o jornalista Dalton Trevisan da revista Joaquim,
encontramos o embrião crítico em trecho do artigo ―Emiliano, poeta
medíocre‖, dos anos 1950:
Os seus temas, sem nenhum sentido ecumênico, são
artificiais como florinhas coloridas de papel. Apolo,
oh! o Apolo, adultério de Juno, oh! o adultério de
Juno, d. Juan, oh! o d. Juan, lírios, neves, a cigarra
e a estrela, o gato e o sapato... Sempre a casinha de
chocolate, e cumpre que se digam tais coisas, a fim
de que os moços, em vez de trilhar seu caminho
fechado, tomem as estradas alegradas de sol de um
Baudelaire ou um Verlaine ou um Vinícius de
Morais. Me entendam bem os chauvinistas. Porque,
em arte, não há prata de casa, é-se Dostoievski ou
L. Romanowski, é-se Rimbaud ou............, e pobre
de quem lê ‗Ciúme da Morte‘ em vez de
Dostoievski, por causa que um é comunista russo e,
o outro nasceu em Mal Mallet...E, pois, hélas!
(1946, p.17, grifos nossos) (TREVISAN apud
GRUBER, 2007, p. 28)
O título do texto de Desgracida, ―Emiliano redivivo‖ talvez aponte
para dois aspectos. Em um primeiro momento, para a comparação de Helena
Kolody com o poeta paranaense. Ela traria, segundo o narrador, os mesmos
aportes e a mesma personalidade político-social que Emiliano. Por outro
lado, o texto pode ser alusão ao texto de Joaquim, agora ―ressuscitado‖.
Porém, esse resgate se dá pela via do ficcional, ou melhor, pela via do
minificcional, como ocorre em outras produções de Trevisan em que surgem
opiniões a respeito de escritores e obras literárias, como o famoso enunciado
de Ah, é?:
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
333
―45‖
Se a filha do Pádua não traiu, Machadinho se
chamou José de Alencar. (TREVISAN, 1994, p. 36)
Por fim, o recurso da repetição é outra estratégia adotada pelo autor
Dalton Trevisan no controle de sua obra. Interessante notar que é um tipo de
repetição pura, no sentido de que linguagem, situações, personagens e vozes
ressurgem despudoradamente ad nauseam em seus livros, o que de alguma
forma recupera o primeiro procedimento que analisamos – a reescritura. Um
traço como esse seria um grave defeito na obra da maioria dos escritores, se
tomarmos como valor a busca pelo original e o inovador. Na obra de
Trevisan, é uma espécie de hipnose discursiva, de modo que latejam suas
vozes do retrato no contato reiterado com os escombros do ser humano. Berta
Waldman, em Do vampiro ao cafajeste, acompanha a trajetória da
representação repetida na obra de Trevisan:
No que diz respeito à inter-relação das narrativas,
sabe-se que cada uma delas, por convenção, se
constitui como unidade independente e opaca na
relação com as demais. Mas no contexto da obra de
Dalton Trevisan, um conto alude a outro, quer pela
presença das mesmas personagens, quer pela
repetição de situações, pela estruturação afim,
chegando mesmo um a continuar o outro,
compondo-se, assim, um universo poroso,
organizado como um jogo de espelhos que, ao invés
de constituir e consolidar a identidade do objeto
refletido, retira-lhe a substancialidade, reduzindo-o
a sombra, sem dimensão de profundidade. Um
conto narra o outro, repete o outro, é reflexo do
outro, inflete sobre o outro, se autoconsome para,
através do desgaste constante, constituir-se como o
resíduo básico em situação de presença plena
(WALDMAN, 1989, p. 115).
Em situação extremada de repetição, é comum encontrarmos o
mesmo conto em vários livros seus. Não apenas o texto reescrito
subtrativamente, como vimos, mas o mesmo conto ipsis litteris e isso em
obras lançadas como originais.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
334
Já se dissecarmos suas antologias publicadas pela editora L&PM (a
editora original de Trevisan, há muitos anos, é a Record), constatamos um
recurso a que podemos nomear de ―randomização‖. Essas antologias
combinam e recombinam centenas de suas ministórias, lançando o leitor em
um emaranhado de textos aproximados, ou mesmo repetidos em duas edições
diferentes. Por exemplo, 111 ais e 99 corruíras nanicas, que são seleções de
textos dos livros Ah, é?, 234 e Pico na veia, entrecruzam textos iguais.
Outras antologias randômicas da L&PM são: A gorda do Tiki Bar e Duzentos
ladrões. Sabendo da rigidez com que Trevisan controla sua própria obra, não
podemos considerar esse procedimento apenas uma jogada de mercado
editorial; provavelmente, há uma razão artística e a sensação que dá é a de
estarmos lendo sempre o mesmo texto, o que, no caso da literatura de
Trevisan, é especialmente verdadeiro.
Além da figura de um contista puro, que se encontra, por exemplo,
em ―Uma vela para Dario‖, Dalton Trevisan se desdobra em atuações
literárias bastante variadas, como ficcionista do cotidiano, do lirismo, e do
ensaio-crítica. E, pairando sobre todas essas versões de um mesmo indivíduo,
há o escritor que nos últimos vinte anos busca miniaturizar incessantemente
seus procedimentos textuais, lançando mão da reescritura subtrativa, da
técnica do mostrar e dizer e da repetição, tornando-se, assim, um
minificcionista por excelência.
DALTON TREVISAN: A MINIFICCIONIST PAR EXCELLENCE
ABSTRACT: The work of Dalton Trevisan (1925) has been developed in the
last decades with an increasingly perceptible trend to utmost brevity.
Chronologically, it is a fact observed in the publication of the books Ah é?
and Dinorá, both from 1994. This article aims to present and discuss the
procedures adopted by the Brazilian writer to build a paradigmatic
minifiction in the contemporary Brazilian literature scene. These are
procedures like subtractive rewriting, the work with techniques of
showing/telling, the minifictional ensayism and the repetition. The theoretical
and critical referential is based on panoramic appreciation on the
contemporary Brazilian short story (such as Fábio Lucas and Alfredo Bosi);
in specific analyzes on the work of Trevisan (such as Berta Waldman‘s); in
researches who were concerned with the resources in here emphasized (as
David Lodge, Roman Ingarden and Wolfgang Iser). In the end, it is expected
to have demonstrated why Dalton Trevisan may be called a minifictionist par
excellence.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
335
KEYWORDS: Dalton Trevisan.
literature.
Minifiction. Contemporary Brazilian
REFERÊNCIAS
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COHEN, Jean. A plenitude da linguagem (Teoria da Poeticidade). Trad. de
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CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. de João Alexandre Barbosa e
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337
As folias fesceninas1 do ‗vampiro de Curitiba‘. Sobre as
―ministórias‖ de Dalton Trevisan
Sérgio Guimarães de SOUSA2
RESUMO: Cada vez mais reconhecido como um dos expoentes máximos da
literatura em língua portuguesa, Dalton Trevisan, recentemente galardoado
com o Prémio camões, é, como sabemos, um autor absolutamente
incontornável na arte do contos breves. Socorrendo-nos de vários Foi nosso
intuito neste texto, oferecer uma leitura panorâmica de boa porção das
―ministñrias‖ do escritor de Curitiba, enfatizando, por uma parte, os
principais eixos-temáticos por que se caracterizam as suas micronarrativas; e,
por outra, parte chamando a atenção para os processos técnico-retóricos a que
o escritor recorre, no sentido de assegurar uma narrativa tão minimalista
quanto possível das histórias e dos cenários que põe em cena através do
género micro-ficcional. Deste modo, foi-nos possível o quanto e de que
modo, Dalton Trevisan se compraz em representar existências alienadas pelo
crime ou, no melhor dos casos (e isso no quadro familiar), por relações
sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez
existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica,
cederam rapidamente lugar à danação antropofágica.
PALAVRAS-CHAVE: microficção; violência; crime; sexualidade.
I
Triângulos amorosos, adultérios,
seduções,
assassinatos,
espancamentos, estupros. Amor e
ódio. O mundo de Dalton. [...]. Com
seu estilo guerrilheiro de diálogos
certeiros, de elipses alucinantes, de
imagens inesperadas que visam à
1
Tomo de empréstimo a expressão ―folias fesceninas‖, referidas a Dalton Trevisan, a
Berta Waldman (2007).
2
UM – Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas,
Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Braga, Minho, Portugal,
[email protected].
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
338
razão e à emoção dos leitores, esses
pobres fantoches manipulados pelo
mefistofélico e mirabolante autor.
Com tais artes e mágicas, para que
Dalton precisa ainda de um velho
vampiro?
Geraldo Galvão Ferraz
Assaz conhecido pela muito sugestiva e indisputável alcunha de
‗vampiro de Curitiba‘, Dalton Jérson Trevisan constitui indubitavelmente um
caso bem atípico no panorama literário brasileiro. Um resumo suficiente da
discrepância do escritor com os seus colegas de ofício (mesmo sabendo-se
que cada autor se define por crenças, gostos, manias, enfim, por todo um
conjunto específico de idiossincrasias) seria este: Trevisan é um escritor
votado privilegiadamente à expressão, com intransigência e coerência
inabaláveis, de um imaginário tenebroso. Imaginário cuja singularidade
provém de enfatizar existências alienadas, grotescas, libertinas e macabras,
violências gratuitas, brutalidades sexuais, contextualizadas em geral por uma
atmosfera lasciva e libidinosa, assentes no gozo instintivo, sadomasoquista e
animalesco. Por essa razão, os textos do autor não carecem de relações
sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez
existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica, deram
lugar à devastadora espiral de um círculo infernal de desentendimentos
crónicos e de brutalidades inclementes. Círculo esse circunscrito
essencialmente à representação de personagens – anti-heróis –, entre as quais
abunda a perversão e todo o tipo de distúrbios provocados pela frustração e
pelo ódio insanável, pautadas pela irrelevância social (embora não faltem
protagonistas oriundos da classe média, note-se; uns e outros, refira-se, não
desafinam do estereótipo que os circunscreve). Portanto, Trevisan vem darnos conta de um estado de coisas sociológico: aquele que, em nome do pudor
literário (ou de um certo pudor literário, cultivado nos bancos das escolas em
textos apetrechados com essa marca maior da compostura estética que é a
linguagem cuidada), suporíamos acantonado em lugares onde mesmo a
literatura não se atreveria a penetrar. Com a ressalva de que esses são, muito
provavelmente, os lugares da literatura enquanto tal.
Mas o merecimento estético-literário de Trevisan, aquilo que fará
dele porventura um escritor imprescritível, é sobretudo tributário da sua
admirável capacidade de dar corpo a este universo assombroso manuseando-o
em prol da máxima contenção, a tal ponto que não é abusivo dizer, com
Maria Leonor Nunes, que «a arte de Trevisan cruza o limiar do
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339
expressionismo» (NUNES, p. 2012: 6). O autor compraz-se, pois, em
expressar, sem hipóteses de redenção, toda esta danação antropofágica, em
que as personagens «passionately clash with each other, revealing
excessively erotic and violent natures that in turn pit them against the allconsuming powers of Sex and Death» (VIEIRA, p. 1986: 45), pelo viés de
esmeradas narrativas breves (ou brevíssimas).3 Se a narrativa, por maioria de
razão enquanto prosa, é o modo ideal de encenar todo esse mundo violento e
as suas gentes, diga-se, todavia, que a forma breve extrai toda a sua eficácia,
por força das elipses de que se nutre, de ser menos do que aquilo que
representa. Isto é, o que está em causa nesta prosa é, não sofre dúvida, o
poder evocativo alcançado espartanamente com o mínimo possível. A
suficiência da forma breve não impede, com as remoções acarretadas, a
expressão da nitidez do real, em pequenas histórias, por assim dizer,
(des)dobradas num contínuo reenvio, na medida em que «Trevisan é um
escritor programático e obsessivo que traça o itinerário de uma busca
incessante, manifestada na repetição de situações, de personagens, de um
tema que se multiplica em voltas infindáveis» (WALDMAN, 2007, p. 255)4.
3
A opção, note-se, pelo culto de uma linguagem radicalmente diminuta dá-se por
volta de 1974, isto é, a partir de O Pássaro de Cinco Asas onde, afora os contos ou
pequenos contos, surgem claramente micronarrativas agrupadas sob a tutela de um
título unificador (é o caso de «O defunto bonito» e de «O gatinho perneta», cf.
TREVISAN, 1996, p. 24-27 e 42-47), processo presente, com facilidade, noutros
livros, como em Meu Querido Assassino ou em Essas Malditas Mulheres. Note-se,
a propósito, que a prosa longa do autor não é sem afinidade com a microficção.
Porque nessa prosa extensa, como muito bem mostrou Edner Morelli (cf. 2007, p.
80-81), em O vampiro de Curitiba, cada parágrafo tende a dispor de autonomia
radicada num fôlego narrativo próprio. Deste modo, os parágrafos não entram
forçosamente em diálogo uns com os outros, consubstanciam-se antes como miniepisódios em cadeia; e em cada um é visível a saliência de uma espécie de miniclímax. Ou seja, dir-se-ia que nos textos mais alongados, Dalton Trevisan já, em
bom rigor, praticava a arte da microficção, só que aferível numa dimensão de maior
fôlego.
4
Com efeito, de microficção para microficção repetem-se, por exemplo, nomes,
repetição destinada a des-individualizar protagonistas, universalizando-os enquanto
indivíduos; deste modo, o nome vem, muito tipicamente, suplementar a condição
dos protagonistas, reforçando-lhes socialmente a pertença e, nessa medida, ganha a
tonalidade de um estigma social. Por vezes, é usado no sentido da caricatura
arquetípica. Sobre este assunto da retoma dos nomes, assinala Nelson H. Vieira o
seguinte: «The penchant for regulary identifying his later heroes as João and Maria
undoubtedly contributes to Dalton Trevisan‘s creation of short stories that telegraph
a compelling sense of ―everyman‖. In so doing, he repeatedly inflicts upon the
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
340
Uma nitidez, refira-se, brutal e, por isso, sem nenhum tipo de
condescendências. Dalton Trevisan revela, com efeito, como muito bem nota
um dos seus críticos, «to the reader the grotesque, horrific underside of the
daily existence within modern Brazilian society» (GORDUS, 1998, p. 13).
Tudo isto que estabelece a originalidade do escritor assenta,
dissemos, na forma breve. Cabe perguntar: com que traços se define essa
forma breve? Afora o que permite eliminar o supérfluo (e o menos supérfluo)
da linguagem (como sejam: verbos, conjunções, articulações hipotáticas,
pronomes, adjetivos) e descarná-la o mais possível (orações nominais), com
os traços de uma irredutível especificidade compositiva. Especificidade
presente nas microficções mas não menos exemplarmente evidente em
narrativas de maior fôlego, e que passa (i) pelo uso sem parcimónia de uma
linguagem oralizante e não raramente vulgar, isto é, estilisticamente não
tratada, descambando, por vezes, sem concessões para o obsceno5; (ii) pelo
reader an uncomfortable sense of familarity vis-à-vis the clandestine minds and
hearts of the depraved Brazilian souls depicted in his fictions. For the comitted
Trevisan reader the deliberate and magnified use of these names in recente stories
becomes cumulative and thus enhances this familiarity, but above all, suggests
more than just a stereotypical portrayal of Brazil‘s middle and lower class mores,
passions and depravities. By presenting a gallery of Joões and Marias, Trevisan
appears to be building his narrations ―upon names‖ or ―eponyms‖ that become
related to a continuous pedigree of behavior or ethology. With each new narrative
Trevisan approaches with keener observation a corpus of similar acts and situations
wherein he slowly unfolds and incisively dissects one more facet, or version of a
complex and often social and psychological human paradigma» (VIEIRA, 1986, p.
45).
5
Se, na sua dimensão estética, as microficções de Trevisan são a expressão de uma
visão que se nutre assaz do que de repugnante a sociedade, ou parte dela, a que vive
lado a lado com a violência, comporta, não é surpreendente que a prosa dessas
microficções não recue perante a representação das múltiplas faces, incluindo as
mais abjetas, dessa violência e, como tal, seja uma prosa passível de desassossegar
um certo tipo de leitor. Especialmente aquele que, sensível à chamada função
poética da linguagem, entende a literatura, mesmo sendo, como neste caso é, uma
literatura em formato mínimo, como a ocasião de sofisticados jogos estilísticos a
bem de uma excelência fraseológica. Ora, Dalton Trevisan acha-se a léguas do
esplendor retórico-estilístico herdado do Formalismo Russo e segundo o qual a
linguagem literária seria muito caracteristicamente a que fosse capaz de merecer
contemplação em virtude do seu valor desfamiliarizante. A tais leitores, cumpriria
responder que a literatura dispõe, e ainda bem, de variadíssimos modos e graus de
realização; e que se há coisa que nela é uma evidência, essa coisa é a de que o
―estilístico‖ surge inseparável do ―temático‖. Nessa medida, forçoso é concluir que
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341
predomínio de diálogos6 que solicitam ao leitor uma ativa cooperação
interpretativa no sentido de completar o pouco que neles se diz; (iii) por
descrições, no caso de existirem, curtas e incisivas; (iv) pelo predomínio, em
consequência, da ação sobre a descrição (e sobre experiências, sentidos,
explicações); (v) pelo recurso não a personagens singularizadas antes a
personagens prototípicas ou caricaturais, o que, em termos de economia
textual, se revela útil por dispensar descrições psicológicas; (vi) por histórias
(já que falamos em economia textual) confinadas em certos casos a pouco
mais do que duas ou três palavras; (vii) por uma narração de tipo omnisciente
e que não hesita em lançar mão de monólogos interiores; (viii) pela dispensa
de introduções descritivo-explicativas (isto é, narração in media res); (ix) por
finais trágicos ou então patéticos; (x) pela notória ironia; (xi) por algum
cinismo; (xii) por uma boa dose de humor negro (e paródico, sem esquecer a
ênfase no grotesco da realidade), que não destoa das vicissitudes escabrosas
que a prosa de Trevisan, com as suas frases «como que a explodir de tensão»
(CARVALHO, 2012, p. 7), exibe sem pudor7; (xiii) pela minudência do
detalhe, de tal maneira que «há [nos seus micro-contos] uma
monumentalidade derivada da concisão e do registo dos detalhes»
(COELHO, 2012, p. 20); e ainda, o que tipifica os dispositivos ficcionais da
sua escrita, (xiv) por uma contaminação cinematográfica não raro ostensiva
(o chamado ―camera eye style‖). Veja-se o que nota, com inteira justeza, um
dos mais sagazes críticos do escritor:
Dalton Trevisan constructs narratives that are
designed to pull the reader intimately into the
a legibilidade que nos propõe Dalton Trevisan é outra: a de uma prosa que se
modela, como nenhuma, às convenções semântico-pragmáticas dos contextos
representados, ao incorporar a linguagem corrente mais banal, sem a qual
impossível lhe seria representar as personagens que representa: «characters [who]
are trapped in an immutable human condition of vice and sin where the common
denominator is man‘s incorrigibility» (VIEIRA, 1986, p. 46). Assim sendo, a
linguagem vulgar de Trevisan é, pode dizer-se, a topografia de um espaço: aquele,
localizado em Curitiba, que (sócio-esteticamente) sobrepõe o submundo (e algum
mundo médio) aos ambientes requintados das classes altas.
6
Diálogos cujas «falas são dessubjetivadas, não se ligam a um corpo, correm as na
boca» (WALDMAN, 2007, p. 258) de arquétipos (falas e pensamentos soltos, digase).
7
Se a sua «linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, [ela] tem a precisão» – como
observa Berta Waldman (2007, p. 258) – «de um tiro à queima-roupa, que não
prescinde de boa dose de humor».
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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experience with a close-up angle that can swiftly
shift to the neat long-short, so necessary for the
desired double perspective. This cinematographic
approach is not only efficient in a nonsustained
genre as the short story, but is most effective in the
portrayel of dramatized action and thought, the
essential elements of a Trevisan story. (VIEIRA,
1984, p. 11.)
Não se faria justiça à qualidade das microficções de Trevisan se não
se enfatizasse o lugar que neles ocupa a lição do cinema 8. É, de resto, pela
força de efeitos de visualidade afins da sétima arte, e que apresentam o
mérito nada despiciendo de subtrair a narrativa à tentação da explícita
aferição moral do que nela é representado9, que o autor persegue sem tréguas
8
«As fragmented instances of life quickly or unexpectely snapped by some unknow
photographer, these narratives are not unlike the many covers or jackets of a
Trevisan publication where old photos or daguerreotypes are used to stimulate our
experience of perussing our old family albums. In the short stories themselves this
close up, instamatic effect is achieved by the extensive use of dialogue, interspesed
with brief interior monologues, and a ocasional monologue – all against a very
sparce backround of omnisciente narration sometimes in the form of a character‘s
alter ego, thus providing the illusion of an objective, impersonal narrative. The
result is a camera-eye view of life, a Human Comedy of conflicts, sins and passions
depicted in short stories [...].» (VIEIRA, 1986, p. 46.)
9
«In the creation and tecnical shaping of this perverted world, Dalton Trevisan
reveals, as mentioned earlier, no overt moral tone in his stories. In fact, one as the
feeling that his stories exist in spite of the author, particularly so with the later
collections. This mock absence is a reflection of Trevisan‘s craft, which relies upon
minimal description and the use of self-sufficient scenes and characters to
dramatize the action. As a result, the reader has the sense of watching rather than
Reading about the characters. The proverbial verisimilitud thus becomes even
sharper with the unobstrusive narrator or author. This visual effect is maintained by
a steady focus upon the point of view, either within interior monologue, dialogue or
first-person, often depends upon direct flow to, or contact with, the character. In
other words, how close we can get to the voice or voices without being interrupted?
As if peeping throught a key hole, these narratives resemble the position of an
invisible observer, or better still, the camera eye which is directed and mainly
concerned with point of view. The illusion of an absent narrative voice is further
perfected by the complex and ingenious use of shifting points of view or
perspectives» (VIEIRA, 1984, p. 15-16.)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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o intuito de pôr a nu o abismo da condição humana, no que dela sobressai de
mais miserável, através das pulsões primitivas de que se sustenta. Ou, como
diria, a propósito de Abismo de rosas, um dos seus leitores, «to strip away
society‘s bourgeois [e a dos de baixa extração social, acrescente-se] trappings
and expose man and women in their most primitive, vulnerable and
unflattering condition» (SILVERMAN, 1977, p. 604)10. O que confere
eventualmente à prosa de Trevisan uma esteticização filiável no chamado
realismo sujo (cultivado, entre outros, pelo cubano Pedro Juan Gutiérrez) ou
bruto. Seja como for, e no tocante ao espaço do escritor de Curitiba na
literatura do Brasil,
[...] fica evidente que a grande contribuição de
Dalton Trevisan, para a evolução da literatura
brasileira, reside no desnudamento de um mundo
descaracterizado e amorfo, cujos seres se alienam,
conduzidos por clichês que lhe são imputados por
toda uma estrutura, voltada apenas para o
consumismo e para o imediatismo existencial,
embora lhes acene exatamente com o contrário: o
amor idealizado, a felicidade conjugal, etc. Acresce
que Dalton não se compraz com a linguagem
enganadora de uma certa literatura, que faz do
sentimental o instrumento que aliena o leitor, sob o
pretexto de defender justas causas sociais. Nele,
tudo é contundente: as meias-tintas são abolidas, a
piedade é sempre filtrada pela ironia e a concisão
estrangula a grandiloquência. (GOMES & VECHI
in TREVISAN, 1981, p. 101.)
Acresce o facto de pouco se saber sobre Dalton Trevisan, exceto uns
escassos dados biográficos de fundo11, o que não é sem despoletar uma
10
A propósito da técnica compositiva de Dalton Trevisan, vide também Karen
Burrell, «Social Prejudice Examined in Dalton Trevisan‘s ―O ciclista‖» (BURELL,
1982, p. 111-118).
11
Se Trevisan tem habilmente sabido, à conta desta estratégia de ocultação total, ou
quase, da sua pessoa, preservar-se da vampirização do que lhe é privado, ainda que
à custa do que suporíamos devesse nele ser público (a concessão de entrevistas, por
exemplo), o certo é que à brevidade dos textos, é caso para dizer, parece
corresponder uma existência empírica minimalista. Tanto mais que o que sabemos
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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intrigante aura de mistério em torno do autor; e esta predileção pelo
anonimato, ou melhor, pelo enigmático, há de notar-se, também não é, nesta
época de marketing literário-cultural e de indústria livreira, de molde a
emparelhá-lo com outros escritores, contribuindo, contudo, creio,
decisivamente para o seu estatuto de autor de culto. Significa isto que se
Trevisan existe à margem das estratégias de promoção editorial, a indiferença
pelos mecanismos mais elementares de difusão, e que corresponde desde logo
a uma manifesta resistência do escritor em ceder a sua prosa a uma definição
de obra enquanto valor de mercado por intermédio da sua presença na
condição de promotor dessa obra, a indiferença pelos mecanismos mais
do trajeto do autor remonta, em boa verdade, aos tempos em que ainda não
enveredara pela microficção. E o que se sabe de Trevisan não anda muito afastado
do seguinte: nasceu em Curitiba no ano de 1925, trabalhou, ainda jovem, numa
fábrica de vidros e, mais tarde, forma-se em advocacia (Faculdade de Direito do
Paraná). Entre 46 e 48, é a figura de proa de um grupo literário cujo órgão de
expressão foi, em homenagem a todos os joaquins do Brasil, a revista modernista
curitibana Joaquim, revista de assinalável notoriedade, se tivermos presente o
elenco sonante de colaboradores: António Cândido, Mario de Andrade ou ainda
Carlos Drummond de Andrade; mas também se considerarmos a ênfase que a
revista concedeu a traduções de nomes canónicos como Joyce, Proust, Kafka,
Sartre ou Gide. Em 1959, surge a público Novelas nada exemplares, título de
referencia na obra do Vampiro de Curitiba e que mereceu na altura dois prémios de
prestígio: o do Instituto Nacional do Livro e o Jabuti. Novelas Exemplares é ainda
relevante por ter sido o primeiro texto traduzido para outras línguas, o que permitiu,
a partir daí, internacionalizar a sua restante obra (eis alguns exemplos: De Koning
der Aarde [O Rei da Terra], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1975; The
Vampire of Curitiba and Others Stories, trad. de Gregory Rabassa, Nova Iorque:
Alfred A. Knopf, 1972; El Vampiro de Curitiba, trad. de Haydée M. J. Barroso,
Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1976; De Vijvfvleugelige Vogel [O Pássaro de
Cinco Asas], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1977; etc.). Afora as
traduções, a proporção do prestígio crescente do escritor pode aferir-se, igualmente,
pelo facto de o seu nome começar a surgir recorrentemente em antologias de
diversos países. Outros títulos emblemáticos maiores vieram consolidar o autor
como um dos nomes cimeiros da literatura brasileira, como é o caso de Cemitério
de Elefantes (1964) e O Vampiro de Curitiba (1965). Em 1969, refira-se ainda, A
Guerra Conjugal é transposta para o cinema pela câmara de Joaquim Pedro de
Andrade (com diálogos de Dalton). Finalmente, é de referir que Trevisan obteve
este ano o Prémio Camões, o que significa uma consagração ímpar da sua obra,
como é evidente. Antes disso, em 2003, o seu merecimento estético-literário tinha
sido reconhecido com o Prémio Portugal Telecom (ex aequo com esse outro grande
escritor brasileiro que dá pelo nome de Bernardo Carvalho).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
345
elementares de difusão, dizíamos, está longe de o condenar à despromoção,
antes pelo contrário. De outro modo: o anonimato, ao fim e ao resto, pela
curiosidade que instiga, constitui uma das razões pelas quais certamente se lê
(ou se deseja ler) Trevisan; e, mais, pelas quais se tende a convertê-lo num
mito. O que, aliás, condiz com a literatura enquanto dispositivo mitológico.
Não por acaso, a alcunha do escritor provém de um dos seus mais
emblemáticos títulos, o que diz bem da ficcionalização da sua figura; ou seja:
à falta de elementos do foro biográfico, a caracterização do autor faz-se pelo
que dele existe, a obra, que se torna assim como que indispensável para
qualificar um autor propenso à rasura da sua condição empírica. Por
conseguinte, se a invisibilidade do escritor é de molde a resistir ao
alinhamento dos seus textos em termos comerciais (ou puramente
comerciais), não é menos certo que é justamente a ocultação da figura do
autor, pela primazia que concede à obra, a começar pela dimensão intrigante
que lhe confere (que obra é essa, a de um autor que persiste em não
aparecer?), que lhe outorga, no fim de contas, também visibilidade e uma
devoção apreciável. Quanto mais, dir-se-ia, o autor se esconde, menos escapa
a tornar-se numa figura incontornável, a do Autor. Eis o que dele diz um
crítico: «Ninguém sabe onde ele mora, ninguém o vê. Sabemos que ele existe
porque publicou alguns livros e porque – eis o principal – de tempos a
tempos alguns privilegiados recebem pelo correio um folheto rústico, onde se
contém a melhor literatura escrita no Brasil» (CUNHA in TREVISAN,
1994b, p. 3).
Descontando o juízo crítico por certo um tanto hiperbólico, sem,
como é lógico, com isso desconsiderar o merecimento estético do autor, tanto
parece singular a sua invisibilidade como o cuidado que põe em enviar por
via tradicional «um folheto rústico» a um conjunto restrito de eleitos. De
resto, Trevisan, sabe-se, começou, na década de 50, a publicar os primeiros
contos justamente em cadernos de papel-jornal; e, depois, enviava-os
precisamente a amigos. Enquanto arte, se a prosa do escritor não escapará
neste circuito de difusão esporádico a ser valor de mercado (é de crer que os
«folhetos rústicos», pela sua raridade, alcancem, pois, a invejável condição
de peças de coleção e, com tal, um valor de mercado considerável), não é
ocioso sublinhar um certo apreço de Trevisan por folhas volantes, que é como
quem diz: a literatura de cordel. O apreço é condizente com o nítido pendor
folhetinesco que especifica muito do que escreve o autor. O que lemos nas
narrativas breves (e em especial nas menos breves) são melodramas que não
destoam com os que acharíamos sem dificuldade de maior em trechos
folhetinescos (de faca e alguidar, apetece acrescentar). Esta consideração não
é despicienda, na medida em que explica o porquê de a obra de Trevisan não
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recuar perante o que noutros micro-ficcionistas se afiguraria decerto
improvável ou então seria quiçá usado com extrema parcimónia (pelo
menos): linguagem popular e coloquialidade, sem o mínimo receio da
obscenidade, Kitsch, clichés, abundância (ou mesmo exclusividade) do
diálogo. Mas também não é despiciendo, refira-se, correlacionar as folhas
volantes que Trevisan fazia chegar a certos privilegiados como um sintoma
decerto inequívoco da invisibilidade do autor atrás assinalada, e isso
essencialmente a dois níveis.
A) Em primeiro lugar, a escassez de folhas volantes endereçadas a
um grupo restrito de amigos e conhecidos, a sinalizarem uma fuga ao circuito
das editoras e de um entendimento da criação como trabalho oficinal, não
alcançam o estatuto de um volume composto, como se sabe; isto é, parece ter
havido, pelo menos a certo ponto da carreira do escritor, a renitência à
constituição de uma obra enquanto tal, correspondendo, assim, a
invisibilidade da figura do autor à quase invisibilidade da sua produção:
textos avulsos escassa e clandestinamente distribuídos e que, em
consequência, dificilmente circunscrevem o espaço de uma obra. Deste
modo, se o autor ao refugiar-se nas trevas, digamo-lo assim, não ganha vida
além da obra, o mesmo dizer, não ganha vida senão através da obra, não é
impertinente dizer que, semelhantemente, pelo menos antes de se constituir
em volumes compostos, esta tendia a não ganhar forma, ou se quisermos,
autonomia além do autor.
B) Em segundo lugar, ao fazer uso de uma linguagem que, sem
dificuldade, ouviríamos perfeitamente em qualquer zona pobre de Curitiba (e
do Brasil), o Autor desaparece naquilo que, em literatura, mais enfatiza a
singularidade de um escritor: a linguagem. Trevisan como que perde voz (o
seu idioleto, se preferirmos) ao mimetizar as vozes perdidas das favelas de
Curitiba (socioleto), já que a fidelidade ao linguajar das suas personagens
obsta à individuação autoral. Dito de outro modo: a individuação de Trevisan
enquanto autor tende a desaparecer em proveito de uma linguagem que, por
tão empenhada e ostensivamente espelhar as camadas desfavorecidas e
subalternizadas da população12, é da ordem do comum e do trivial.
Acantonada nos ambientes que põe em cena, abdicou dos artifícios do estilo a
bem de uma fidelidade sociológica: a que lhe faculta representar com
12
Um tanto como Georges Simenon se esforçava por cultivar o que chamava o estilo
il pleut nos seus policiais, isto é, um estilo desprovido de estilo, suficientemente
cinzento para ser capaz de representar a realidade corriqueira na sua mais pura
banalidade (e, desde logo, com a figura banalíssima, a não ser talvez no instinto, de
Maîgret).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
347
verosimilhança (etnológica) a dicção dos desfavorecidos (e alguns quadros
pequeno burgueses) de Curitiba. Uma dicção empobrecida, sobretudo se
aferida pela aura esplendorosa de registos estético-verbais acalentados pelo
desejo de sublime (e também se avaliada pela inclinação notória pelo kitsch e
pela chanchada), por força da baixa ou média condição social das
personagens que dela fazem uso; dicção empobrecida assaz condizente, digase, com a dimensão mínima dos textos, na medida em que dispensa
exercícios vácuos de retórica, não sendo nela rastreáveis floreados a
prolongarem frases e parágrafos. A bem da concisão, tudo acontece, ou
parecer acontecer, com o mínimo possível e na base da frase curta, do
enquadramento circunstancial das situações bem sumário e do léxico
básico13.
13
Se a ausência pública do escritor, confinado, como dissemos, à enigmática
condição de escritor-fantasma é significativa, não menos significativa é talvez o
que parece ser a insinuação dessa ausência no interior do corpo dos textos. Como?
Pelo apego a uma tradição orgânica de narrar, que é como quem diz: dificilmente se
achará nas narrativas de Trevisan tudo o que pode melindrar a coesão da
forma/conteúdo enquanto dialética expressiva que afasta de si tudo o que possa dar
a entender o modo como funciona a representação narrativo-discursiva. Daí a
inexistência de improvisos, de hesitações, de interpelações ao leitor, de fissuras ou
então de momentos desconjuntados, daí, em suma, que tudo seja impecavelmente
construído. Quer dizer, sem a menor amostra daquela metaficção correspondente à
autorreflexão crítica sobre a arte de narrar. Noutros termos, se Trevisan, apostado
no desvanecimento da orgânica textual, enveredasse pela emancipação estética dos
procedimentos técnicos de que se nutre a sua prosa e não se confinasse a preservar
em estado de latência os expedientes narrativo-discursivos de que se serve –
espécie de força invisível imprescindível à mistificação ficcional – para alcançar a
impressão de autenticidade, esse impulso criativo através do impulso crítico
equivaleria a torná-lo num escritor capaz de abdicar da privacidade da sua criação.
E tanto ficariam à mostra a criação como o criador, com tudo o que isso implica de
dessacralização do ato criador. Ora, como ficou já claramente dito, se há coisa que
Trevisan cultiva é a privacidade; e os textos de Trevisan, pode dizer-se, alinham
por esse princípio de base ao definirem-se em função de dispositivos graças aos
quais se dá, com notável proficiência, corpo ao aparecimento do escritor apenas
como entidade externa e razoavelmente ausente do que narra. Pelo menos no
sentido em que não interfere para chamar a atenção para o modo como entretece as
pequenas histórias que narra. Numa palavra, com Trevisan, estamos perante uma
narração (que não destoa, a não ser pela crueza do que é narrado e pela linguagem
rasteira empregue, de um qualquer folhetim realista-naturalista oitocentista)
nitidamente propensa, como é claro, para uma opção estética de fundo: a
apropriação do real pela narrativa breve e não a representação dessa apropriação.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
348
II
Sua danação por Maria permitiu-lhe
entender Lucrécia Bórgia, Madame Bovary,
Ana Karenina. Ah, pudesse apagar o sol,
presenteá-la com a noite sempiterna.
(TREVISAN, 1994, p. 11.)
A concisão dos textos de Trevisan, à custa de uma prosa enxuta e
«impercetivelmente burilada» (NUNES, 2012, p. 7), supõe-se, de uma
vigilância sem tréguas sobre a forma, não os torna meramente representativos
da comédia humana que o autor põe magistralmente em cena nos seus textos
breves. Assim, as pequenas intrigas merecedoras da atenção estrutural de
uma prosa mínima não colocam o escritor fora dos liames da tradição
literária. Com efeito, não é preciso especial clarividência crítica para detetar
que não estamos longe de um investimento notório em processos de criação
assentes na ironia e na contaminação por via da reescrita paródica, como
ficou já assinalado. A condição de autor marginal a que não escapa Trevisan
não o arreda, por outras palavras, da grande literatura. Veja-se que diversos
títulos exibem ressonâncias intertextuais óbvias: «Educação Sentimental do
Vampiro», «O Fantasma da Ópera», «Carta a um Jovem Poeta», «Paz e
Guerra», «Em Busca de Curitiba Perdida»; e a intertextualidade não se fica
pela paródia de Proust, Flaubert, Tolstoi, Leroux ou Rilke. Afora estas
invocações, a atenção do microficcionista incide igualmente sobre textos
canónicos e fundacionais, que, a seu modo bem peculiar, reescreve e/ou
comenta. É o caso da Bíblia, por mais de uma vez no cerne da modulação dos
textos de Trevisan, sendo as variações norteadas por um intuito de
dessacralização: «Ai Sansão, fosse bom amante não trocaria Dalila por um
filisteu qualquer» (TREVISAN, 1994, p. 116); «O escritor é irmão de Caim e
primo distante de Abel» (TREVISAN, 1994, p. 136); «Em toda a casa de
Curitiba, João e Maria se crucificam aos beijos na mesma cruz»
(TREVISAN, 1994, p. 136); ou ainda este micro-conto, intitulado «A
Primeira Pedra», e onde se nos dá a ver um final alternativo – versão profana
– da emblemática cena bíblica da lapidação da mulher adúltera:
Depois de escrever com o dedo na terra, Jesus fala
aos acusadores da mulher adúltera. Ali no meio do
povinho, Ester, Safira e Jezabel, famosas puritanas,
cada uma com dois seixos na mão.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
349
Mal Jesus remata com quem for sem
pecado, atire a primeira pedra, João acode:
– Falou e disse, ai, Jesus.
E a puxá-lo firme pela manga:
– Se abaixe, Mestre, lá vem pedra.
(TREVISAN, 1994a, p. 27.)
Como se nota sem custo, a variação serve o propósito, se assim se
pode dizer, de um desinvestimento teológico, que resulta aqui de uma versão
que considera o impensável: por entre a multidão sedenta de apedrejar a
adúltera há quem não hesite em lançar o cascalho à pobre e indefesa
pecadora. Mais: é o próprio Jesus, caso não se esquive, que – suprema heresia
que antecipa a da crucificação – pode receber a pedra furiosamente lançada
pela mão do exacerbado puritanismo. E não é ocioso observar que quem é
posto em destaque na linha da frente da punição são mulheres e não homens,
ao inverso do que acontece na versão primeira do episódio. Se o adultério não
parece aqui melindrar por aí e além os homens, pelo que dele usufruem
(supõe-se), já o mesmo não sucede com as mulheres puritanamente ao
serviço da manutenção da boa ordem patriarcal. E não parece haver nenhuma
solidariedade feminina, assente na subalternização do feminino que essa
ordem presume, capaz de travar a fúria justiceira de Ester, Safira, Jezabel...
De resto, heresia das heresias, nem o Messias, repita-se, escapa de poder ser
atingido, o que diz bem do pouco sensível que é o povo à sua mensagem de
perdão incondicional. A ferocidade moral sobrepõe-se à comiseração.14
14
Notemos que a revisão da Bíblia anda a par com uma crítica mordaz de Trevisan às
manifestações místico-religiosas e a tudo o que tenha a ver com ambientes de seita,
cujo triunfo, como se sabe, é especialmente esmagador em meios depauperados.
Leia-se: «Entra o maioral de capacete dourado e espada em punho. Colares
coloridos representam os orixás. As moças, nos vestidos branco ou preto, sem sutiã
nem calcinha, atiram pétalas de rosa vermelha aos seus pés. O mundo carece de
paz, anuncia ele, os filhos da casa guerreando. Pita o cachimbo com fumo. Todos
servem-se de bebida forte. Da galinha preta ele quebra as pernas. Rebenta as asas.
E, ainda viva, lhe arranca o pescoço: que os iniciados provem e bebam o sangue.»
(TREVISAN, 1997, p. 71); ou ainda este microtexto, onde fica evidente o valor de
mercado da religião, sujeita a estratégias de cativação que em nada desmerecem o
marketing empolgado de campanhas comerciais (ou políticas) agressivas; e aqui a
estratégia de engodo está habilmente montada em torno da denúncia de um bode
expiatório, culpado por tudo o que de mau (melhor seria dizer: maléfico) acontece
(Satanás) e, expediente não menos convincente, em torno do pavor que esse
―culpado‖ possa suscitar (e, já agora, repare-se no poder desmistificador da ironia,
sobretudo pelo exagero que é converter algo de tão raro como um «milagre» em
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
350
E este aspecto, se bem considerado, não é menor. Porque, além de ser
essencial para reescrever este célebre episódio bíblico em versão, digamos,
obscena (dir-se-ia o reverso obsceno desse episódio), é especialmente
revelador no tocante à centralidade do adultério na obra do escritor. Ou seja,
se o despudor da multidão que não acata as palavras de Jesus ocorre, é bom
sublinhar, em nome de um pudor maior, o da defesa intransigente e
pundonorosa de valores onde não cabe o adultério, este, se assim é
perspetivado num contexto altamente sagrado que é o da palavra de Cristo,
nunca menos o seria fora do âmbito bíblico, por muitos relicários domésticos
que se possam achar na prosa de Trevisan. Noutros termos, esta tradução
trevisaniana da passagem bíblica é consentânea e (se a quisermos ler como
tal) anunciadora de uma intransigência em relação ao adultério que é um
tema, como sabe todo o frequentador das microficções (e não sñ) do ‗vampiro
de Curitiba‘, pouco menos do que omnipresente.
III
Guerra conjugal: as mil e umas batalhas
sujas de trincheira, entre baratas e ratões, os
pés na lama, tossica a metralhadora, gás
mostarda no pulmão, carga suicida de
algo de perfeitamente quotidiano/banal e ao alcance de todos, conquanto se
professe a fé proposta): «– Em casa, você aí, olha o que está perdendo. Você que
tem visões. Ou escuta vozes. Espuma e sofre de ataque. Tem caroço no seio.
Catarata nos dois olhos. Gosto de sangue na boca. Batedeira no coração. Luta com
bichos na parede. Sente a casa caindo sobre a tua cabeça. Ou está desempregado.
Sem dinheiro e com dívida. Saiba que tudo é obra de Satanás. Ao entrar em nossa
igreja, o teu mal desaparece. Aqui o milagre é todo o dia.» (TREVISAN, 1997, p.
102). E leia-se esta outra microficção em que o culto de um vidente (ou alguém que
o valha), ao jeito do que acontece em regime de seitas, por parte de moças
espiritualmente ávidas dos bons cuidados protetores dessa personagem degenera
sem dificuldade numa submissão afetivo-sexual, que é como quem diz: a crença
fanatizada não é sem degenerar em corpos sexualizados e possuídos. Leia-se:
«Incorporando as entidades, não responde por seus atos. Em transe durante os
trabalhos, nada vê, de nada se lembra. Todas as moças o querem como protetor. Ali
a seus pés, sempre à disposição. Vestidas de preto, sem calcinha nem sutiã.
Carentes de sexo e família. Já não precisam de procurar na rua. Cada qual concorre
a rainha sacerdotisa. Nele acham o pai, guia, irmão, amante, grande príncipe.»
(TREVISAN, 1997, p. 67).
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351
baioneta, a boca no arame farpado, mina
explode a tua virilha, o que mais?
(TREVISAN, 1994, p. 110.)
– Por que não me enterra a faca no coração?
É mais perversa. Corta uma lasquinha, mal
sai sangue. Outro tantinho, rasga
gentilmente. Cada dia, na pinça de
relojoeiro, arranca um fio de pele. Olhe para
mim, assassina. Todo em carne viva. O
corpo inteiro esfolado. E você, lambendo as
unhas, impune. É o crime perfeito.
(TREVISAN, 1994, p. 39.)
«Do meu coração ela fez almofada furadinha de alfinetes»
(TREVISAN, 1994, p. 60), «Basta você beijar o pé da mulher, ela te
espezinha.» (TREVISAN, 1994, p. 56), «– Maria, vamos juntos no enterro.
De carro com chofer. Comendo broinha de fubá mimoso.» (TREVISAN,
1994, p. 68), «– Desde que vi meu pai aos beijos com a pretinha, jurei que
com brasileiro não casava. Casei, sim, com um gringo, de nome Amparo. Ai,
o que ele me fez nem queira saber.» (TREVISAN, 1994, p. 68), «– Na cama
o João vem para cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não
estou nem aí.» (TREVISAN, 1994, p. 16), «Falar com você, querida, é
discutir para sempre.» (TREVISAN, 1997, p. 110), «O marido com dores e a
mulher liga o rádio a todo o volume./ – Quero ver quem grita mais alto.»
(TREVISAN, 1997, p. 3), e poderíamos citar às dezenas microficções deste
tipo que definem o matrimónio na proporção de um lugar pouco salutar, para
dizer o mínimo.
Na melhor das hipóteses, homem e mulher enfrentam-se, sem
disfarce e sem tréguas, como dois carrascos numa guerra dos sexos
infindável. Melhor dizendo, numa espécie de guerra fria, onde os lances
românticos de outrora e toda a idealização supostamente engendrada nessa
altura (pré-matrimonial, certamente) mirífica em que o coração expandia
sacrifícios em nome do afeto, irremediavelmente deixados para trás, cederam
espaço a um ódio insanável que leva a detestar o outro até nos mais irrisórios
pormenores. Eis um exemplo suficiente disso:
Dois malditos carrascos a torturar um ao outro.
Nela tudo lhe desagrada: a boca pintada, o sestro de
beber água e deixar um resto no copo, a maneira de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
352
cortar um bife. Assim a ela aborrece o seu cabelo
comprido, o passo truculento que abala os cálices
na prateleira, o pigarro de fumante. Por amor dela,
contraiu bronquite, gemeu dores de estômago,
padeceu vágados de cabeça e – ainda era pouco –
três furúnculos no pescoço. Mas não hoje. Que ela
surrupie do seu prato uma batatinha frita, capaz de
lhe morder a mão: Te odeio, bruxa velha.
(TREVISAN, 2002, p. 11.)
O ódio crescente torna-se tão insuportável que pode, inclusive,
engendrar um desespero de tal ordem que leve ao suicídio, muito embora se
possa igualmente ler esse suicídio, dado o pré-aviso de que se reveste, como
mais uma (a derradeira) forma de atingir o outro, como serve
reveladoramente de exemplo esta microficção: «O marido ao telefone: –
Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto – eu estou
enforcado.» (TREVISAN, 1994a, p. 88).
Na pior das situações, muito frequente em Trevisan, os ódios
resvalam sem dificuldade para violências de vários tipos. E, numa pura lógica
patriarcal, a mulher, excetuando a figura da mãe (sacralizada), padece sem
cessar. Daí a abundância de relacionamentos sadomasoquistas, onde, regra
geral, o homem sujeita sem mercê a mulher a todo o género de humilhações e
baixezas. E a violência chega a extremos de crueldade, como se verifica
nestes dois textos, particularmente representativos de uma ferocidade insana:
– Você não é homem, cara.
Fico de pé, saco do punhal. Um golpe,
outro, mais outro. Sem um grito, ela cai, derruba na
mesinha copos e garrafas. Pronto se calam as vozes.
– Me acuda, João.
Consegue ainda se levantar. Cambaleia
dois passos no salão. De frente, enfio o punhal.
Mais fundo e de mais baixo para cima. Ela me
abraça:
– Não me mate que eu volto.
Molhado de sangue o peitinho branco.
Estende a mão esquerda, as bijuterias bolem no
pulso:
– Me leva para casa.
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353
Arrasta-se ali a meus pés. Cai do lado numa
poça de sangue.
– Tua casa é o inferno, querida.
(TREVISAN, 1994, p. 125).
Mal a pobre se queixa:
– Ai, que vida infeliz.
Ele a cobre de soco e pontapé:
– E agora? Está se divertindo?
Apanha ela (grávida de três meses) e
apanham as cinco pestinhas. Uma das menores fica
de joelho e mão posta:
– Sai sangue, pai. Não com o facão,
paizinho. Com o facão, dói. (TREVISAN, 1994, p.
23.)
E não raro a violência atinge o cúmulo, o que a torna ainda mais
repelente, por acontecer a troco de (quase) nada:
– Monstro. Igual ao pai. Coragem de me
bater!
– Por que provocou?
– Motivo tão fútil...
– É o mais grave. Todo grande crime é por
motivo fútil. (TREVISAN, 1994, p. 107.)
Note-se um pormenor: a presença da linhagem («Igual ao pai»)
patriarcal. Se a consciência masculina não produz moralidade aceitável ou,
para dizer com outros termos, se nos homens dados à violência doméstica a
consciência parece dispensada, é (também) porque o parentesco a não
reproduz nessa matéria que é a do respeito mútuo entre sexos. Neste sentido,
a microficção de Trevisan assemelha-se um tanto a uma psico-genealogia: os
protagonistas, como se carregassem o peso inapagável de um inconsciente
familiar, feito de episódios trágicos ou próximos disso, tendem a reproduzir
histórias (dramáticas) e flagelos familiares num contexto social que os
propicia. Algo, em todo o caso, parece indubitável: a violência sob as mais
diversas e (sobretudo) execráveis formas é, com ou sem antecedentes
familiares, uma presença imperativa na esmagadora maioria dos
protagonistas, o que diz bem de uma ideologia conservadora descrente da
bondade do indivíduo, posto tratar-se de um indivíduo em sociedade.
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354
Um parêntesis também para comentar a moral do texto, insinuada
através de uma constatação formulada na última frase: o grave parece não ser
tanto o crime, cuja existência se supõe assim inevitável, uma vez que pior do
que o crime é a pouca ou nenhuma justificação que esse crime possa
apresentar na sua origem. É, pois, a ausência de justificação mínima que o
torna socialmente injustificável. Portanto, o pior que um crime pode cometer
é não dispor de uma razão suficientemente apta a justificá-lo. Neste sentido, a
moral das microficções do ‗vampiro de Curitiba‘, ou melhor, a moral que as
suas personagens apregoam e que é a que o escritor, através delas, denuncia,
essa moral, anote-se, é congruente com a mentalidade que propala a justeza
dos crimes de honra.
Convirá, finalmente, ainda sublinhar que esta microficção, à
semelhança de muitas outras, perfaz-se somente pelo uso do discurso direto.
Não sabemos ao certo se se trata de um diálogo com duas ou mais pessoas;
nem sequer nos é dado a conhecer o género ou a condição dessas pessoas.
Nada disso, em bom rigor, é indispensável. O que salta à vista é uma técnica
de representação assente na distância, por ocultação, do narrador. E esta
distância não visa colocar o assunto em causa – a violência conducente ao
crime engendrada por uma qualquer futilidade – à distância, antes o oposto:
torná-lo tão flagrante que entre protagonistas e leitor não se intromete a
presença (distanciadora) de um narrador a comentar o que, em si mesmo, é
tão explícito que dispensa a mediação de quem quer que seja excetuando os
interlocutores do diálogo. Muitas das microficções de Trevisan assentam
nesta técnica do cancelamento da voz do narrador. Consequentemente, as
personagens, em tais micronarrativas, não vivem senão em função do que
dizem.
A bem de um certo equilíbrio de forças, a mulher nem sempre é
vítima indefesa dos maus tratos infligidos ou, pior, de uma morte certa.
Numa reviravolta surpreendente, acontece volver-se em carrasco. E aí não
resta ao homem senão sofrer as consequências do seu ignóbil
comportamento, recebendo em igual proporção o que se propunha fazer à
mulher. Ou seja, não existe sequer a possibilidade remota de uma inversão da
dominação desembocar numa conciliação. A vítima metamorfoseada em
carrasco não foi tão vítima (ou tão pouco vítima) que abdicasse de aproveitar
a inesperada reviravolta para um eventual comiseração apaziguadora. De toda
a maneira, mesmo subalterno, é o homem quem continua a ditar o desenlace
do conflito e fá-lo em função da sua honra conspurcada à conta de se achar
em situação de humilhação irreparável, a não ser matando a mulher («Me
mate, mulher. Senão você morre»):
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355
– Peça perdão, assassina da minha alma.
– Tudo, João. Só não me mate.
Vi a morte nos olhos, achei força de
empurrá-lo. João cambaleou, alcancei uma acha de
lenha. Bati duas vezes na cabeça dele, que derrubou
a faca. Tonto e fraco, caiu de joelho.
– Me mate, mulher. Senão você morre.
Saía sangue pelo nariz e a boca. Meio que se
aprumou:
– Se me levanto, diaba, é o teu fim.
Suspendi a acha, fechei o olho, dei o terceiro golpe.
– Morre, desgraçado.
A força de mãe foi que me valeu.
(TREVISAN, 1994, p. 15.)
Na origem da violência encontram-se diversos motivos. Um deles,
decerto o mais óbvio, consiste na franca misoginia exibida por diversas
personagens e que é co-extensiva às várias condições sociais. Tanto é
misógino o habitante da favela como pode sê-lo o médico que o trata. Alguns
exemplos merecem transcrição:
– Cadê a Maria?
– Lá na cama. Depois de cada discussão corre se
deitar. ―Apague a luz que vou morrer‖ – e cobre a
cabeça com o lençol.
– Tadinha.
– Que nada. Só de fiteira. (TREVISAN, 1994, p.
44.)
O coração da bem-querida: oco de pau podre, aqui
floresce aranha, serpente, lacraia de fogo.
(TREVISAN, 1994, p. 21.)
Ele encerra mais uma discussão:
– Ó grandíssima cadela!
– É você, carniça.
Enfia o chapéu e, quando abre a porta, dois
tiros pelas costas, um na coxa esquerda, outro de
raspão na virilha. Volta-se, agarra-lhe o pulso,
recebe terceiro tiro no pé direito.
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– Me acuda, que vou morrer.
Maria muito arrependida, de joelho e mão
posta.
– Não sei onde a cabeça.
E correndo pela rua aos gritos:
– Eu matei o bichão.
Sentado no tapete xadrez, encharcado de
sangue, bem quietinho. Sete dias no hospital, sorte
não ficar imprestável como homem. O jovem
médico, na despedida:
– Toda mulher é assassina. Cuidadinho, seu
João. (TREVISAN, 1994, p. 79-80.)
Ora, deste desprezo pela condição feminina à sua subalternização vai
um passo mínimo. Por outras palavras: a tirania no lar somatiza o machismo
reinante, elevado à condição de um domínio absoluto, ou perto disso, sobre a
mulher e os filhos (o outro elo fraco), conforme sucede neste micro-conto e
que é mais uma das muitas declinações que a obra micro-ficcional de
Trevisan oferece neste âmbito: «Com a mulher e os filhos no barraco de duas
peças você não é menos que o César Tibério na ilha de Capri.» (TREVISAN,
1994, p. 71). É impossível dizer melhor a condição déspota do Pai talhado na
superfície de uma tirania que não poupa sequer os filhos.
Entre diversos outros motivos, através dos quais os diferentes pais
tiranos tematizados por Trevisan se ligam entre si com alguma variação,
como é o acentuado gosto dos homens pela bebida15, que descamba para a
violência familiar, ou, do mal ao menos, pela boémia16, destaca-se esse
motivo maior, porque preponderante na ficção Trevisaniana que é o adultério.
Adultério que atravessa, dir-se-ia, toda a obra do escritor de Curitiba,
tamanha é a centralidade que lhe é concedida. Fiquemo-nos por alguns
exemplos. Comecemos por este, talvez um dos mais graciosos:
Domingo, de volta do futebol, ele serve-se de uma
cachacinha, liga o rádio.
15
«– Que loucura, João, beber tanto./ – Mais loucura não é, depois de bêbado, voltar
para casa?» (TREVISAN, 1994, p. 97.)
16
«A noivinha em pranto:/ – São horas? Um homem casado? De chegar?/ O boêmio
fazendo meia volta, no passinho do samba de breque:/ – Não cheguei, minha flor.
Só vim buscar o violão.» (TREVISAN, 2002, p. 64.)
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357
– Sabe, paizinho?
É o menino de seis anos, todo prosa.
– O quê, meu filho?
– Essa é a música que a mãe dança com o tio
Lilo. (TREVISAN, 2002, p. 37.)
Por termos aqui um certo decoro social (foram ao futebol, dispõem
de um rádio, enfim, há um certo bem-estar inacessível à classe socialmente
destituída) e talvez sobretudo por a denúncia se ficar a dever à inocente
impertinência de uma criança, e, como é óbvio, ainda pelo facto de o texto
findar sem antes nos fornecer a reação do marido enganado (e a traição, por
envolver o «tio Lilo» confina-se ao meio familiar, o que é de molde a
complicar tudo17), o adultério aqui não chega a funcionar como combustível
de violência. Fica-se pelo estatuto, digamos, de embaraço. A revelação da
criança é, pois, embaraçosa pelo que põe inadvertidamente a descoberto,
mesmo sabendo-se que dela advirão consequências bem mais sérias do que
um simples embaraço. Efetivamente, a verdade é que, em Trevisan, a
proliferação de traições matrimoniais, quando descoberta18, não é pensável
sem a vinculação à brutalidade, quando não atrocidade, que provoca, como
de resto é muito típico das mentalidades patriarcais mais radicais, onde
infidelidade e crime são co-extensivos. Assim, numa das microficções, um
guarda regozija-se pelo seu primeiro preso, cujo encarceramento se deve a
17
Assim se percebe que certos ódios acontecem entre irmãos. Mesmo nessa hora
fatídica e de profunda comoção que é o funeral de uma mãe: «– Os dois irmãos
eram os piores inimigos. Bem me lembro no enterro da velhinha. Eles seguravam a
alça do caixão – e não se olhavam. Pálidos, mas de fúria. Nem a cruz das almas
comoveu os dois. Se odiavam tanto que a finadinha bulia sem parar entre as
flores.» (TREVISAN, 1997, p. 34). Repare-se como Trevisan dá conta
magistralmente da tremenda tensão entre os irmãos: o cadáver da finadinha,
bulindo sem parar entre as flores, parece ganhar vida.
18
O que, por um triz, não é manifestamente o caso deste micro-conto: «Ao chegar
em casa, do programa no motel, o marido é saudado com um grito pela mulher: –
Eu soube de uma coisa terrível!/ Pronto, ele pensa, estou perdido. Ela descobriu
tudo./ – Pô, o quê... Mas o quê... O que aconteceu?/ – Mataram o filho do seu
João!/ – Urr... Orra. É mesmo? Pobre do seu João./ Te devo essa, Deus.»
(TREVISAN, 2002, p. 68). É de notar que se não temos aqui nenhuma violência
(verbal ou física) desencadeada pela infidelidade, uma vez que a traição manteve-se
clandestina, a preservação desta violência ocorre, um tanto ironicamente, à custa de
uma outra violência (e mortífera): a liquidação do filho do seu João.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
358
um crime passional: «O guarda Bruno chega: ―Tá preso.‖ O rapaz deixa cair
o punhal: ―Ela vivia fazendo desfeita pra mim.‖ Vaidoso, o guardinha conta
que é o seu primeiro preso.» (TREVISAN, 1997, p. 75).
Convirá chamar a atenção para o seguinte: em situação de adultério,
a morte não atinge somente a mulher. Pode também ocorrer o caso de o
amante morrer às mãos do marido enganado ou então, surpreendentemente,
de ser este a sucumbir àquele, como parece acontecer aqui:
―Epa, diabo. Não me conhece?‖ De costas, sai para
o terreiro. João segue atrás. Investe com um golpe
traiçoeiro. Tito rebate e acerta de raspão o braço.
Cai a faca. João avança furioso, aos berros. Recebe
dois, três cortes. Tropeça e vai ao chão. Bem
quieto. O outro limpa o facão na cerca. Enrola um
cigarro, a sombra do chapéu no rosto. Pronto a
chamar o sargento. Antes de sair a mulher ao lado
do fogão, cercada de filhos: ―Vá lá ver teu homem
que eu matei.‖ (TREVISAN, 1997, p. 40.)19
19
Ou então, a eliminação do amante se ficar a dever a um impulso momentâneo,
como acontece neste quadro composto por uma sequência de duas microficções:
1.
Ela diz que tem naquela noite uma reunião de trabalho. Desconfiado, vou até lá. Do
meu carro quem vejo ali com o chefão, rindo e de mão dada? Os dois sobem no
carro dele. Entro no bar da esquina e bebo alguns chopes. Só penso no meu bem.
Em vinte anos, ai não, o único amor.
Três horas depois eles voltam. Vou ao seu encontro. Quero falar só com ela e pego
pelo braço. Não chamo pelo nome, sñ de bem. ―Agora, bem, me diz o que há.‖ Ele
se põe na minha frente. Ah, nunca vou esquecer: ―Cala a boca, certo? Não faz
escândalo‖.
2.
Me viro para ele: ―Com você, não falo. Se fez de meu amigo. Foi ao aniversário de
minhas filhas. Não passa de um canalha‖. Daí sacode no meu rosto o anelão
vermelho do dedo: ―Você tem sido um bacaca, certo? Um grande cornudo. A tua
mulher, sacou? É muito minha‖.
Um empurrão no peito quase me derruba. Daí eu atiro, certo? Duas vezes ele roda no
mesmo lugar. Continuo atirando, sacou? E vai de cara no chão molhado. Jogo fora
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
359
O adultério, se calhar compreensível à luz dos tratos violentos de que
padece a mulher trevisaniana, parece, em contrapartida, conter em si como
que a condição de mais uma violência: aquela pela qual se pune
exemplarmente. Mas o excerto acima citado, na verdade, revela um sentido
assaz difícil de circunscrever com cabal exatidão. Afinal, quem morreu e às
mãos de quem? «‖Vá lá ver teu homem que eu matei‖», é frase proferida pelo
marido enganado? Ou é o amante que não se inibe de a dizer perante os filhos
menores da mulher? Ou, hipótese igualmente a não descartar, será que Tito
não é um inimigo, seja por que razão for, que João tentou liquidar com um
golpe pelas costas. A ser assim, restam o crime e a incerteza de ter havido
adultério, ficando indeterminada a razão que levou João a querer apunhalar
Tito. O que fica claro é a morte daquele e a (neste caso, desconcertante)
declaração final. Mas não custa suspender as leituras e resumi-las numa só: a
que envereda pelo adultério e por um marido enganado que fracassou, à custa
da própria vida, na tentativa de matar o rival. A ser assim, esse marido traído
foi por duas vezes vítima. E mais se pode dizer: se foi vítima de traição,
vítima igualmente foi na hora em que procurou desferir um golpe traiçoeiro.
Um pouco como se se dissesse: traição não se vinga com mais traição. Ou,
então, como se se propusesse esta bem duvidosa moral: infidelidade resolvese matando a mulher e não tanto o amante desta.
Outras vezes, a vítima é apenas, e sem ambiguidade, o marido traído,
que fica sem a mulher, que decide partir, e com o cuidado dos filhos,
desapossado assim do matrimónio sem que contasse. Em vez de sangue
derramado, surge a explicação possível. Tudo se resume a uma carta, melhor
dizendo, a pouco mais que um bilhete de despedida:
―João, eu parti para sempre, cuide bem das
crianças, são um pedaço do meu coração, não
esqueço tudo o que fez por mim, você me deu até o
que não tinha e eu? não passo de uma perdida, sei
que não mereço o teu perdão, fugindo na minha
idade, já pensou? caso me veja com o outro finja
que não me conhece, louca! o que eu estou
fazendo? aqui o último beijo da que foi sempre tua
– Maria.‖ (TREVISAN, 2002, p. 75.)
a arma e lhe dou as costas. O bem atrás de mim, aos gritos: ―Louco, louco. Que vai
ser de tuas filhas?‖ (TREVISAN, 2002, p. 48-49).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
360
Não deixa de ser interessante a retórica final da fórmula empregue
para a despedida, logo antes da assinatura: «da que foi sempre tua». Em rigor,
a carta vem justamente ratificar o inverso dessa fórmula. Mas o que cumpre
notar é que parece pairar aqui uma continuidade elidida, mas, afinal, central,
já que é disso que trata a missiva: informar o marido traído que, embora a
esposa fosse dele, já o não é mais. Ou seja, a despedida não é somente um
mero exercício de pragmática comunicacional, na medida em que, a despeito
do encanto que lhe confere a sentimentalidade das palavras escolhidas,
contém a ênfase desse corte com o qual as coisas mudaram de rumo e
deixaram de ser o que eram. O «beijo» final é menos da que «foi sempre tua»
e mais da que «já não é mais tua».
Outro aspecto a considerar é o facto de a despedida insistir um tanto
no que diríamos ser um catecismo da culpa assumida. Trata-se, tudo bem
visto, de mais uma versão negativa da mulher: não só esta foge com outro,
largando inclusive os filhos ao cuidado do marido traído, como não justifica a
fuga, vale dizer, justifica-a com o injustificável: «não esqueço tudo o que fez
por mim, você me deu até o que não tinha e eu? não passo de uma perdida,
sei que não mereço o teu perdão, fugindo na minha idade, já pensou?»,
«louca! o que eu estou fazendo?». Estamos perante a autoexpressão de uma
volubilidade extrema. A da mulher que sem razões para tanto cede, a despeito
da boa vida familiar de que beneficiava (ao contrário de muitas), ao desejo.
Nesta perspetiva, e num autor (d)enunciador de realidades intrinsecamente
patriarcais, a carta tanto é uma despedida como uma flagelação que converte
a mulher numa impenitente adúltera. A ausência aqui de um grão sequer de
violência por parte do marido, que não é daqueles (quer dizer, não se presume
que o seja) dominadores que pululam em Trevisan, é, como se percebe, de
molde a aumentar a culpa da fuga. Porque parece tratar-se de uma fuga sem
motivo aparente, a não ser o desconcerto de um coração volúvel. Eis o que é
suficiente para perturbar a condição masculina (e, faço notar, a obra de
Trevisan pode ler-se como crítica impiedosa a essa condição). Outra leitura
possível, e decerto a não descurar, é a que traduz a carta segundo o amorpaixão romântico. O único senão reside no facto de em Trevisan o amor,
mesmo se convenientemente traduzido em retórica afetivo-sentimental, não
andar a compasso com idealizações românticas e provir mais de sensações
carnais. Mais do que amor, convirá, pois, falar em desejo (carnal, entendase).
Noutras circunstâncias, e ainda a propósito do adultério, é bom de ver
que uma tentativa lograda de fazer justiça pelas próprias mãos é passível de
desembocar num polo oposto ao do crime por razão de honra: o da conversão
mística. Deste modo, e passada a meia idade, ressentimento e ódio
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
361
desvanecem-se em prol de uma fé ardente que não consente em tudo que não
seja bem e espiritualidade:
– Inteirei cinqüenta anos. Enganado pela mulher
mais moça. Nesse loiro que ronda a casa dou uns
tiros, mas não acerto. De católico mudo para crente.
Minha defesa antes era uma faca. Hoje do céu o
meu amparo. Se você é crente, adulterar não pode.
―Nada te faço‖, eu digo. ―Por bem casamos, por
bem nos apartamos.‖ Ela se vai com o loiro, guardo
os três filhos. Esses eu conheço que são meus. Daí
ela se junta com outro, biscateiro de galinha. Agora
acabou, não sei de mulher, para o crente é mais
fácil. A palavra cala no teu coração. A luz vem de
cima. (TREVISAN, 1997, p. 44-45.)
IV
Ele manda e desmanda no vento.
Ralha com a chuva. Castiga o raio.
Silencia o protesto do trovão. Só
pela velha não é obedecido.
(TREVISAN, 1994, p. 41.)
Como se viu, o matrimónio oferece palco a um extremado
sadomasoquismo. Adultérios e crimes são enfatizados pelas microficções de
Dalton Trevisan; e mais do que isso: a danação, nessas microficções, é tanta
que o tempo nem sequer atenua o que quer que seja, a avaliar pela
proliferação de velhos desamparados e humilhados. Dir-se-ia que com o
avançar dos anos a violência recrudesce, o que torna incessante a guerra
conjugal e não apenas. Exemplo flagrante de uma situação de desamparo é,
em «Clínica de Repouso» (O Pássaro de Cinco Asas), o de uma idosa largada
pela filha num hospício infecto, muito ironicamente chamado ―Nossa
Senhora da Luz‖, e onde, ao invés de um merecido repouso, a anciã acha,
entre outras sevícias, o cruel escárnio das freiras.
Se quisermos saber se e de que modo esta situação decrépita dos
idosos, sujeitos a maus-tratos e a um resto de vida atormentado, se reproduz
nas microficções do autor, basta ler algumas como esta, em que um casal não
se abstém de brigar: «Casal brigado, de costas. Longo silêncio. De repente o
velho:/ – Sua diaba. Para de ficar ouvindo o meu pensamento!» (TREVISAN,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
362
2002, p. 90); ou ainda estas duas, particularmente exemplificativas do ódio
que sustenta a (má) relação entre dois velhos, que já dificilmente (isto é, só
mesmo por necessidade) se aturam: «A velhinha geme e o velho liga o rádio
bem alto./ – Se é o fim, desgracida, rebenta duma vez.» (TREVISAN, 1997,
p. 7),
O velho compra um naco de queijo e avisa:
– Se você pega eu te corto em pedacinho.
A velha tem de pegar quando limpa o armário.
Daí recebe um tapa na orelha, dois empurrões e cai
sentada.
– Gostou, sua diaba? (TREVISAN, 1992, p. 83-84.)
Noutro micro-conto, a degenerescência física – a falta de visão –
acarreta uma vantagem apreciável: «Seu João, perdido de catarata negra dos
dois olhos:/ – Meu consolo que, em vez de nhá Biela, vejo uma nuvem.»
(TREVISAN, 1994, p. 127). Não admira, pois, que a morte de um deles dê
azo a uma libertação anteriormente acalentada – «A velhinha meio cega,
trêmula e desdentada:/ – Assim que ele morra eu começo a viver.»
(TREVISAN, 1992, p. 84) –, que pode assumir diversas formas, conforme se
conclui destes dois microtextos, ambos uma boa exemplificação deste estado
de coisas (e um deles um tanto singular e que diz muito sobre o passado de
sujeição do viúvo, especialmente se considerarmos esse apêndice capilar
superior que é o bigode como um símbolo de masculinidade):
A velha morre do medo de morrer. Cinqüenta
quilos reduzidos a trinta e cinco, quase cega.
Pragueja o companheiro, ameaçando com a
bengalinha trêmula. No último dia, a cisma de que
se espirrasse não morria. Espreme-se toda numa
visagem:
– Pronto, espirrei. Hoje não...
Resfriada, espirra e espirra. João prepara o
chá de sete folhas – da janela atira um beijo e dirige
galanteio obsceno, quem pode ser? Lá na cama, ao
terceiro espirro, a sua velha é finadinha.
Primeiros dias o pobre chora muito – as
filhas até escondem o revólver. Suspira, ai, sem
sossego, ai. Ele, que nunca foi de igreja, três missas
manda rezar. Aflita, uma das filhas vai bem cedo
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363
visitá-lo. Não é que surpreendido, atrás da porta,
fazendo arte com a criadinha? (TREVISAN, 1994,
p. 73.)
Durante quarenta anos, a cada sua tentativa
dissimulada:
– Seja ridículo, velho – era a mulher
contenciosa e iracunda. – Bigode? Não tem o que
fazer?
Até que ela morreu. Contrariada de ir
primeiro. Dias depois, os amigos dele já reparavam
no bigodão em flor. Grisalho porém viçoso. Tudo o
que fazer. (TREVISAN, 1997, p. 109.)
Com ou sem libertação, com ou sem o tormento inescapável de um
parceiro insuportável, o certo é que a velhice é também fatalmente uma
deterioração, que fica, muito nitidamente, clara quando acontece a perda de
um sentido de identidade. Nomeadamente a não recordação do básico que
sustenta qualquer identidade, a começar pelo saber quem somos: «Na hora de
assinar, todo soberbo o velhote, no seu oclinho torto:/ – O meu nome, qual é?
Quem mesmo sou eu?» (TREVISAN, 1996, p. 70). E o drama dessa
desintegração é tanto mais acentuado quando se nota o desespero de um
amparo que não virá porque nem tão pouco se é já capaz de estabelecer o
mínimo contacto (neste caso, telefónico) com quem quer que seja. Isto é, a
clausura e o sofrimento inerente atingem o patamar irreversível de uma total
impossibilidade de reverter a situação. É o desespero em toda a sua força que
se nos dá a ver. Leia-se: «Chorando baixinho, o velho disca todas as
combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.»
(TREVISAN, 1994, p. 124).
V
– Ai, amor.
Ai, não
pare.
Irritada com a medalhinha que salta
entre o seios,
atira-a para as costas. E você merece de
relance o triste olhar de Nossa Senhora. (TREVISAN, 1997, p. 26.)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
364
Ela cai-lhe nos braços, toda
trêmula. Nem falar pode,
assustada. Desabotoa o
casaquinho – ―cuidado,
querido, o pregador!‖ Ele se
desfaz da gravata.
Aos beijos, de pé. Aos
beijos, sentados. Deitados no tapete, rolando.
– Quer que morda ou beije?
– Sim.
– Beije ou morda?
– Sim. Ai, sim.
Essa aí a grande tarada do sim, sim.
(TREVISAN, 1997, p. 75.)
Para terminar, resta falar da sexualidade – leia-se: o lado instintivo, e
sadomasoquista, da sexualidade (a satisfação obtida) – e, correlativamente,
do desejo (a satisfação esperada). Ambos, com o leque de fantasias que os
sustentam, são, não se duvide, o tema maior das microficções de Dalton
Trevisan. A grande porção dos crimes por honra devem-se, como se disse, ao
adultério; outros crimes são-no em função de um combustível sexual
incontrolável que se satisfaz através de violações; enfim, não se pode deixar
de reconhecer que a sexualidade é como que a mola sobre a qual assenta
consideravelmente a interação (consentida ou não) entre personagens. Os
exemplos são muitos e variados, limitar-nos-emos a alguns.
Desde logo, a sexualidade coincide em não poucos textos, até onde
pode, com uma fantasia à solta. No seu confinamento mental, a sexualidade
é, numa palavra, antes de mais desejo por cumprir. Neste aspecto, é algo de
inalcançável e de indefinível que suscita o desejo (um não sei quê, espécie de
objeto petit a lacaniano); e que, tratando-se da microficção transcrita a seguir
(notável modulação do motivo donjuanesco), toma a forma de uma
insuperável insatisfação erótico-sexual e da qual dificilmente se imagina
algum resgate satisfatório (não é de prever que o «coroa» quinquagenário seja
solução para acalmar o capital sexual, digamos assim, da personagem, que
vem distorcer por completo a imagem patriarcal da menina bem comportada,
porque contida nos seus desejos; o desejo sexual fora dos parceiros, apetece
dizer, é como que a descoberta de um reencantamento): «– Apaixonada por
um, transo com outro e gozo pensando no coroa de cinqüenta anos – o único
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
365
que me faz sonhar. Meu Deus, como sou dividida. Acha que isso é normal?»
(TREVISAN, 1994, p. 41.)
Veja-se ainda esta outra situação curiosa, em que uma solteira virgem
não aguenta mais a carência de sexualidade e implora por ser desflorada (e é
de supor agora que o desejo, ao arrepio de preliminares e de outras carícias
expressivas do amor, se pretenda conotadamente selvagem) como quem
suplica o direito a uma condição minimamente digna de vida. E se culpa
imensa há na personagem, é a de ainda ser virgem, daí que haja algo de
clemência na penetração pela qual tanto anseia: «A solteirona virgem, depois
de umas doses de uísque, ao antigo namorado:/ – Por favor, me salva. Livra o
meu corpo desse maldito limbo. Dessa terra de ninguém!» (TREVISAN,
1997, p. 39.)
Ainda no domínio da fantasia, é possível desejar e ver a nudez
desejada numa mulher que se desfaz dos seus óculos (e não há como não ver
aqui os óculos em termos de autoridade intelectual semelhante à de uma
professora na sala de aula, sucedâneo fetichista da mãe tirana; neste sentido,
retirar os óculos equivale a entregar-se e, mais, corresponde à presença, em
registo lacaniano, do falo materno circunscrito à nudez de um rosto; e, nesta
ótica, os óculos são, igualmente, o signo de uma identidade racional, sem a
qual se acede à fantasia irrestrita): «Excitação maior que despi-la? É livrá-la
do óculo. Mais nua de estar sem óculo que sem roupa.». (TREVISAN, 1994,
p. 18).
E não falta sequer um ejaculação precoce motivada somente pela
simples contemplação de uma mulher, consequência empírica bastante
reveladora do poder psicossomático da fantasia, sobretudo em situação de
retenção, como parece ser o caso, de desejo até ao instante que é o da visão (o
olhar como catalisador de desejos): «No gesto mágico, duas vezes nua. João
se contém para, de mão posta, não cair de joelho. Quem vê uma mulher nua
já viu todas? Aí se engana, cada uma é todinha diferente. Ah, que bom,
aprender tudo outra vez.» (TREVISAN, 1994, p. 38.)
Mas, em geral, o desejo em Trevisan não abdica de atributos físicos.
E os contextos são múltiplos: o velho que se aquece e reconforta dormindo
com uma moça de 18 anos – «– Na nossa idade, ai, com esse frio, só peço
uma boa canja, um copo de vinho, uma bolsa de água quente – e cama que te
quero./ – Pois a tua bolsa quente, o teu copo de vinho, essa boa canja eu
tenho lá na minha cama de dezoito aninhos.» (TREVISAN, 2002, p. 74), o
homem que se queixa da falta de peito da sua Maria – «– E qual o problema
com a Maria?/ – Ah, ela é boa, é carinhosa, é trabalhadeira./ – .../ – Mas pô!
Nadinha de peito.» (TREVISAN, 2002, p. 72) –, a moça que, a caminho do
gozo, suspira com prazer intenso perante a dureza do órgão genital masculino
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
366
do parceiro (prazer cujo alongamento orgásmico é expresso
grafematicamente, repare-se, pela distensão da palavra «duro»): «Qual
epopeia de altíssimo poeta se compara ao único versinho da primeira
namorada:/ – Que duuro, João!» (TREVISAN, 1994a, p. 90; 1997: 43); ou
ainda a moça que, com indisfarçável orgulho, ostenta o seu poder corporal de
atração: «– Esse aí me adora, sim: daqui pra baixo.» (TREVISAN, 1994a, p.
91).
Finalmente, convirá ainda referir que a sexualidade, em Dalton
Trevisan, está longe de se reduzir a uma troca carnal consentida. Não
rareiam, assim, violações. Desta sexualidade transgressiva e criminosa, não
minguam exemplos. Eis alguns (as duas últimas microficções perfazem uma
sequência narrativa, conforme se depreende do conteúdo):
Sozinha, na rua escura. Lá vem o negrão. Dou três
passos, agarrada por trás. ―É um assalto‖, ele diz.
―Um grito. E já te corto‖.
Me arrasta para longe. Arranca toda a
roupa, inteirinha nua. Mão junta, gemendo e
chorando: ―Meu Jesus Cristinho. Leve tudo. Pode
levar. Só me deixe em paz. Por favor, não faça mal.
Uma pobre mulher doente.‖
Com ele não tem Jesus Cristinho. Ali no
matinho o palco das minhas sete mortes. Sem
pressa ele me desfruta. De todas as maneiras. O que
nunca pensei na vida o negrão fez. Ai de mim, não
me sujeito, esganada por ele, não está de
brincadeira. Me trata o tempo todo de vagabunda e
nomes contra a moral. Ainda resisto, me cobre de
socos, acerta o ouvido e sangra o nariz.
Serve-se à vontade, mais de uma vez se
regala. De joelho peço que tenha pena. Tudo o que
fez já não basta? Quatro da manhã, me deixa na
esquina. Larga o meu braço, some na escuridão, ele
e sua cantiga.
Agora, o pior: abro a porta, meu Deus. E
olha para mim, o pobre João. (TREVISAN, 1997,
p. 113.)
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Fundo da noite acordo, uma faca no pescoço.
―Grite... E está morta!‖ A boca molhada na máscara
de meia. São dois. Cantigas de suor, bebida, droga.
Eles reviram o quarto, querem dinheiro e joia.
―Pelo amor de Deus, levem tudo‖, eu imploro, ―sñ
não façam mal.‖ Não acham quase nada. Já estão de
saída, um deles muda de ideia. Me pega pelo braço:
―Vai ser minha mulher.‖ E para o outro: ―O
segundo é você.‖ (TREVISAN, 1997, p. 8.)
1.
Daí fecha a porta, se livra da meia na cabeça. Loiro,
uns trinta anos. ―Não olha minha cara‖. Faca na
mão, me força ao que bem quer. ―Pôs, três meses
sem mulher.‖ Me agarro à vida, acabar logo com
aquilo. Mas ele não gostou. ―Uma droga de puta.‖
Chama o parceiro: ―Sirva-se.‖ Vão embora quando
clareia o dia. Então choro, choro. Camisola e roupa
de cama enfio na máquina de lavar. Tomo banho
demorado – um grande sapo branco mordendo a tua
nuca. (TREVISAN, 1997, p. 9.)
2.
Choro todas as lágrimas. Não posso deixar que um
bandido estrague minha vida. Meus pais não sabem
até hoje. Outro banho. Pro namorado eu conto, só
que ele some. Dez dias faz que aconteceu. Vou ao
médico, pede exame. Deus meu, grávida, doente,
pesteada? Mais um banho. Já não me lembro da
história inteira, apaguei alguns pedaços. Só não
esqueço o meu ódio daquele maldito. Banho.
(TREVISAN, 1997, p. 10.)
Repare-se agora na singularidade desta outra microficção, ainda
sobre o tema da violação, que dá voz não à vítima mas ao violador. O que
lemos é a perspetiva de quem viola e para quem o ato nada, pelos vistos,
apresenta de moralmente reprovável e assume até a dignidade de (mais) um
trabalho bem feito; quase uma prestação de serviços (a do comércio carnal, a
despeito de não ocorrer transação financeira):
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368
Na rua escura, sozinha, lá vem a coroa. Garro por
trás e afogo o pescoço. ―Quietinha‖, eu digo. ―Ou já
te apago.‖
Levo pro matinho, a par da linha de trem.
―Todo mundo nu‖, eu digo. Ela mais que depressa.
Então me sirvo.
A tia bem legal. Faz direitinho. Aceita
numa boa o que você quer. Não dou soco nem digo
nome feio. Podes crer, amizade.
Ela não reclama da brincadeira. Até sorri,
quem está gostando. Não acho que tem motivo de
queixa. A história dela é bobeira. Isso aí, bicho.
Sem complicar. Tudo dentro dos conformes.
(TREVISAN, 1994, p. 114-116; 2002, p. 20.)
Esta microficção é particularmente merecedora de interesse pelo que
esclarece sem dificuldade sobre as restantes (ou muitas das restantes). Nela
sobressai de modo bem evidente a presunção que sustenta muitas das
microficções do escritor: o que horroriza o leitor não é tanto tratar-se de uma
violação. O que torna a situação verdadeiramente repugnante é a manifesta
ausência de emoção no criminoso, que pratica o crime com um escrúpulo de
perfeição digno de um artesão minudente no exercício do seu mester,
cuidando, até, que a vítima alinha de bom grado. Enfim, «Tudo dentro dos
conformes». É, dito de outra maneira, a banalização extrema do mal, que
integra o quotidiano e, mais do que isso, dele parece indiscernível. Como
escreve Andrew M. Gordus:
It is not the supernatural nature of the protagonits
and the situation that make them so horrifying but
rather the exact opposite: it is the naturalness of
their occurence and the readiness by which each of
the protagonists preys on those around him. The
horrific is thus not what is repressed but what is
shown to be not repressed at all, or rather as a part
of everyday existence. (GORDUS, 1998, p. 24.)
Cumpre também dizer, a propósito, e ainda com Andrew M. Gordus
(a partir de de Rubio Ramón Fernández20), que a componente sexual das
20
Rubio Ramón Fernández, «Moral Erotica in Contemporary Brazilian Prose:
Women in a Macho Society», Selected Proceedings of the 35 th Annual Mountain
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369
microficções (e da restante obra) de Trevisan, onde é visível, como ficou já
claramente assinalado, a implacável dominação masculina (capaz de tudo no
sentido de possuir animalescamente a mulher, o que evidencia o expurgo do
«sentimental»), a componente sexual das microficções, dizíamos, não se
restringe a uma pura questão de género (o homem/senhor e a
mulher/subalterna), mas constitui, metaforicamente, um desdobramento ou
reflexo das relações sociais de dominação com que se defronta a sociedade
brasileira: «Not only are they [relações de dominação sexual do homem sobre
a mulher] indicative of the exploitative nature of sexual relations in Brazilian
society but also wider experiences of the exploitation at the political,
economic, social level» (GORDUS, 1998, p. 22). Mais: «What this has meant
for Brasil is a tradition of representing the broader social relations of the
sexual at either a conscious or incounscious level» (GORDUS, 1998, p. 22).
Conclua-se dizendo que Dalton Trevisan, que pertence ao escalão
literário dos grandes autores, como muito bem reforçou o Prémio Camões,
Dalton Trevisan, livro após livro, detém-se sem descanso a burilar uma prosa
que não é concebível fora dessa intenção primordial de representar, em jeito
de tragicomédia humana, as patologias das gentes de Curitiba; e fá-lo,
escolhendo para tanto sobretudo o espaço literário da micro e nano-ficção,
absolutamente sem contemplações, como se enfiasse as mãos na carne viva.
Munido de frases enxutas, rigorosamente com o mínimo possível de palavras,
como convém à caução do micro-conto, e com um «estilo cortante»,
conforme diria Eduardo Coelho (COELHO, 2012, p. 20), Trevisan é, enfim,
o criador de uma literatura que, por certo como nenhuma outra, pôs, e sem
tonalidades soturnas (diga-se de passagem), em cena – e com as palavras de
Fernando Assis Pacheco terminamos –,
machos em tirocínio de amantes, homens de
madureza desiludida, velhos para quem o desejo cai
como baba pelo queixo. Negrinhas assaltadas em
grupo, empregadinhas indefesas, quarentonas
maquilhadas até ao excesso, avós cegas [...]
tentando surpreender os desmaios amorosos das
netas. Gentes de solidão e mágoa, palavrosa por
necessidade ou finalmente sábia nos meios
silêncios. Outra que tem a vida a prazo, a morte na
Interstate Foreign Language Conference, Greenville, SC: Furmon University,
1987, 387.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
370
praça emboscada. Por safadezas, desonras, razões
obscuras (PACHECO, 2012, p. 6.)
ABSTRACT: Considered as one of the most preeminent writers in
Portuguese, Dalton Trevisan has recently been awarded the Camões Prize.
Trevisan is a master in the art of the short story. It is our purpose to provide a
panoramic view of a good portion of this ―mini-stories.‖ We will emphasize
both the main thematic axis of his micronarratives and we will draw attention
on the technical-rhetorical processes that are often used by this writer with
the aim of producing minimalist narratives and scenes. In this way, Trevisan
introduces his typical characters alienated by crime or, in the best cases, by
love relationships where marital happiness and idealized love, if they ever
existed in the canon of romantic and late-romantic mythology, speedily give
way to anthropophagic wrath.
KEYWORDS: micro-fiction; violence; crime; sexuality
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
373
Quem conta um conto, diminui um ponto: Marcelino
Freire e a contística contemporânea
Kayanna PINTER1
Regina Coeli Machado e SILVA2
RESUMO: Compreender de que maneira, a partir das concepções teóricas de
Edgar Allan Poe e Júlio Cortázar, foram elaboradas as novas estruturas do
conto e do miniconto na contemporaneidade, bem como problematizar a
relação cada vez mais estreita entre autor, obra e público receptor são os
objetivos principais deste trabalho, que se apóia nas noções de performance
que entendem o autor não como sujeito uno, mas como um imbricamento de
personas, ficcionalizadas tanto na literatura, quanto nas mídias de massa.
Outro ponto importante aqui enfatizado será, justamente, o papel do leitor na
interpretação e compreensão dessas novas posturas literárias, tendo em vista
o fato de que a presença de um leitor crítico é cada dia mais requisitada pela
literatura. Neste sentido, utilizamos como principal referencial teórico as
considerações de Poe e Cortázar, bem como teorias contemporâneas que se
ocupem do miniconto, para enfatizar o papel e a importância do leitor
enquanto formador de experiências e compreensões em relação a este gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Conto contemporâneo. Miniconto. Estrutura narrativa.
Marcelino Freire
Introdução
O futuro perde muito tempo.
(FREIRE, 2010, p. 158)
O ditado popular ―quem conta um conto, aumenta um ponto‖, que há
muito tempo refere-se à especificidade do conto no Ocidente, não parece
fazer parte da contística brasileira contemporânea. Desde Sherazade, contar
1
UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – CECA – Centro de
Educação, Comunicação e Artes. Cascavel – Paraná – Brasil. 85814-110. E-mail:
[email protected].
2
UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – CECA – Centro de
Educação, Comunicação e Artes. Cascavel – Paraná – Brasil. 85814-110. E-mail:
[email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
374
alguma coisa a alguém é a arte de viver mil e uma noites – e além. Criar uma
narrativa e ―passá-la adiante‖ é uma maneira de adiar a morte, ou até mesmo
de burlar o fado de todo ser humano: ser (em) um dia esquecido, apagado da
memória. Sherazade fazia questão de, ao contar um conto, aumentar um
ponto, mostrando ao rei-algoz, a cada dia, um pedaço maior do iceberg que
se escondia em suas palavras. Mas, Fim de papo. ―Na milésima segunda
noite, Sherazade degolou o sultão‖ (SECCHIN, 2004, p.8). Das sucessivas
narrativas d’As mil e uma noites ao Fim de papo, um miniconto publicado na
coletânea Os Cem menores contos brasileiros do século (2004), organizada
por Marcelino Freire, há a emergência e o desenvolvimento de uma profusão
de gêneros ficcionais, cuja riqueza historiadores e críticos da literatura não
cessam de apontar. O conto é um deles, tornado evidente sobretudo no século
XIX, quando conquistou autonomia do romance por sua estrutura breve e
concisa (MOISÉS, 2004). Hoje, essa estrutura diferenciada evidencia um
processo de radicalização identificado no miniconto, que tanto mais irradia
seus significados quanto mais curto ele se apresenta. Como uma manifestação
recente, esse processo no cenário brasileiro necessita ser compreendido em
suas condições e possibilidades, sociais e literárias. Esse é o objetivo deste
artigo, enfocando o miniconto como categoria literária nas obras de
Marcelino Freire. Para isto, e procurando enfatizar as características recentes
do miniconto contrastados ao conto, o argumento será desenvolvido,
primeiro, expondo as proposições ―clássicas‖ de Edgar Alan Poe e Julio
Cortázar, para, depois, expor a estratégia de Marcelino Freire.
Ítalo Nunes Ogliari, em sua tese intitulada A poética do conto pósmoderno e a situação do gênero no Brasil (2010), demonstra a característica
paródica que envolve o miniconto na literatura brasileira atual. Para o
pesquisador, tal (micro) estrutura narrativa ―transcendeu a estrutura teñrica
[do conto moderno], mostrando que o conto não é somente isso: um gênero
moderno‖ (OGLIARI, 2010, p. 118), configurando-se como um gênero pósmoderno3. Esta transgressão da estrutura teórica, empreendida pelo
miniconto, é uma paródia da necessidade de brevidade do conto, evidenciada
por Edgar Allan Poe, Tchekhov e Julio Cortázar, entre outros, além de ser,
nitidamente, uma estratégia de veiculação comercial. Incentivar a leitura,
transgredir as regras impostas pelo cânone, desmanchar, negar e reconstruir a
3
A definição de pós-moderno e a ideologia implícita a ela, problematizadas por
Ogliari (2010), não fazem parte da discussão proposta aqui. No entanto, as
propostas analíticas propostas por esse autor permitem compreender o conto
brasileiro contemporâneo e, especificamente a obra de Marcelino Freire,.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
375
literatura de uma maneira ―não-canonizada‖ são estratégias que estreitam
ainda mais a relação escritor/ editor/ público.
Nádia Battella Gotlib trata dessa comercialização do conto em sua
Teoria do conto (1987), afirmando que ―no século XIX o conto se
desenvolve estimulado pelo apego à cultura medieval, pela pesquisa do
popular e do folclórico,[e] pela acentuada expansão da imprensa, que
permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais‖ (GOTLIB,
1987, p. 7 – grifo nosso). No entanto, a especificidade deste gênero não se
encontra na sua circulação. A principal questão parece simples, mas abre
espaço para uma infinidade de interpretações: O que é o conto? O que faz
com que os contos continuem sendo contos, apesar das mudanças
experimentadas por este tipo de narrativa na contemporaneidade? Qual a
posição do escritor frente a estrutura usual do conto e à desestruturação
narrativa proposta pelo fazer literário contemporâneo?
O questionamento relativo ao gênero, a elaboração de propostas
teóricas para entendê-lo frente as novas mídias, como os blogs da internet,
bem como as estratégias narrativas são imprescindíveis para que o
compreendamos como parte da dinâmica própria do campo literário em seus
desdobramentos recentes, por sua vez inseparável dos modos de existência da
cultura contemporânea. É sob esse prisma que os minicontos de Marcelino
Freire, escritor pernambucano, serão objeto de interesse, em diálogo com as
propostas de Edgar Allan Poe e de Julio Cortázar.
O conto, esse gênero indefinível
A definição mais comum e usual do conto refere-se a toda narrativa
que é contada, narrada por alguém, seja de forma oralizada ou escrita. A
natureza do conto é a de simplesmente contar estórias. Mas, quando nos
voltamos ao gênero literário conto, as complicadas (in)definições que
englobam literatura e teoria mostram-se complementares, ou completamente
opostas, concordando somente com a afirmação de que o conto é toda
narrativa curta. Fora isso, o gênero apresenta-se, segundo Mario de Andrade:
―indefinível, insondável, irredutível a receitas‖ (ANDRADE, 1976, p. 7 apud
GOTLIB, 1987, p. 9). Contudo, refletir sobre o conto é, para Julio Cortázar,
uma maneira de problematizar nossa própria experiência, a própria vida, que
se entrelaça com a vida do conto, pois
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
376
se não tivermos uma idéia viva do que é o conto,
teremos perdido tempo, porque um conto, em
última análise, se move desse plano do homem
onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam
uma batalha fraternal, se me for permitido o termo;
e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma
síntese viva ao mesmo tempo que uma vida
sintetizada, algo assim como um tremor de água
dentro de um cristal, uma fugacidade numa
permanência. Só com imagens se pode transmitir
essa alquimia secreta que explica a profunda
ressonância que um grande conto tem em nós, e que
explica também por que há tão poucos contos
verdadeiramente grandes (CORTÁZAR, 1974 apud
GOTLIB, 1987, p. 10).
Os contos verdadeiramente grandes aos quais Julio Cortázar faz
menção ―fisgam‖ o leitor a partir da densidade do conteúdo transmitida em
poucas palavras e em um único acontecimento, um recorte minúsculo das
experiências humanas do cotidiano. Esta concepção, ao levar em conta uma
reflexão sistemática, um trabalho consciente na estruturação que culmina no
gênero literário conto, é relativamente nova na história da teoria do conto, e
até mesmo na historiografia do contar, do narrar histórias.
No século XIX, com o advento da impressão e a crescente indústria
jornalística, o conto passa a ser essencialmente um gênero escrito – não
abandonando completamente seu caráter socializador, ainda que, com a
crescente individualização da sociedade, fecha-se, voltando-se não mais para
a experiência coletiva, mas sim para a experiência individual. Sua estrutura
textual compõe-se uma narrativa curta, densa, que pode apresentar
características do conto de acontecimento (ou de efeito) ou do conto de
atmosfera.. No conto de atmosfera o cenário predomina sobre os personagens
e sobre o enredo, enquanto o conto de efeito visa simular uma sensação no
leitor, de terror, de pânico, de surpresa, como nas narrativas de Edgar Allan
Poe. Personagens, ação, ambiente, tudo nele converge para o objetivo
principal, que é despertar uma emoção em quem lê. O que realmente importa
no conto é a economia de palavras: todo supérfluo pode e deve ser retirado; a
densidade do conteúdo deve apresentar-se subjetivamente, como em um
iceberg, que condensa somente 20% de seu volume em local visível. A
―grande sacada‖ do conto é criar histñrias com inúmeras interpretações (mas
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
377
não sentidos) em poucas linhas, em poucas palavras, em poucas páginas. É
esta a principal contribuição de Edgar Allan Poe para a contística moderna,
que tem início no século XIX, com o crescimento da industrialização e da
mercantilização da obra de arte.
O efeito, o mercado e a composição: Edgar Allan Poe
O século XIX foi um período de grandes e profundas mudanças para
a história do mundo ocidental. Com o crescimento e a consolidação da
indústria, a mentalidade modificou-se radicalmente. A vida começou a ser
contada em horas: as horas passadas nas fábricas, o tempo de descanso, a
invenção e popularização da luz elétrica, que tornou as noites mais curtas e os
dias mais longos, a possibilidade da reprodução das obras artísticas, e a
conseqüente expansão das revistas – literárias ou não – e dos jornais. Todas
essas modificações tornaram a experiência humana mais rápida e mais
controlada pelo capitalismo. E a narrativa literária, com Edgar Allan Poe,
acabou por seguir este caminho: da rapidez, da fluidez e também do
divertimento da massa, pois comas modernas técnicas de impressão, a
massificação seria uma das palavras de ordem, em conjunto com a própria
rapidez. O conto encontraria nesta mudança de concepções um espaço aberto,
no qual poderia firmar-se.
Edgar Allan Poe compartilhou a opinião de que o conto é o gênero
literário que melhor representa a ideologia capitalista do século XIX e a
emergência das novas formas literárias que dela derivam: as histórias de
crime, de mistério, as personagens com comportamentos desviantes, bem
como é a estrutura textual que ―oferece o melhor campo para o exercício do
mais nobre talento‖ (POE, 1842 apud KIEFER, 2011, p. 336)4. Para Edgar
Allan Poe, o conto ―possui vantagens peculiares sobre o romance. É,
obviamente, uma área muito mais refinada que o ensaio. Chega a ter pontos
de superioridade sobre a poesia‖ (POE, 1842 apud KIEFER, 2011. 329). O
conto é o gênero literário que melhor se adapta a ―nova vida‖, que consegue
captar a atenção tanto da burguesia quanto do proletariado crescente do
século XIX; ele é o gênero que requer mais trabalho intelectual do escritor,
visto que ―em toda composição não deve haver sequer uma palavra escrita
4
Todas as citações de Edgar Allan Poe retiradas da obra de Kiefer são referentes às
três resenhas publicadas pelo autor, em 1842, em relação à obra de Nathaniel
Hawthorne.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
378
cuja tendência, direta ou indireta, não leve àquele único plano
preestabelecido‖ (POE, 1842 apud KIEFER, 2011, p. 338-9).
Este único plano preestabelecido, do qual fala Edgar Allan Poe,
refere-se ao efeito pretendido pelo autor, no momento de construção do conto
– ―um artista literário habilidoso constrñi um conto‖ (POE, 1842 apud
KIEFER, 2011, p. 338-9) e tal efeito deve ser pensado e elaborado de
maneira que nenhuma palavra da composição se volte para uma direção não
apontada por ele, desde o início da leitura – e da escrita. Neste sentido, o
raciocínio do autor é imprescindível para a construção do conto, sendo ainda
que o princípio da totalidade, no conto, tem imensa força.
Este princípio, apresentado por Poe nas três resenhas da obra Twicetold tales, de Nathaniel Hawthorne, confere à narrativa em prosa curta uma
força que não é encontrada no romance – gênero no qual a totalidade de
leitura pode ser adiada. Assim, ―a narrativa em prosa curta, que exige de meia
hora até uma ou duas horas de leitura atenta‖ (POE, 1842 apud KIEFER,
2011, p. 338-9) ganha por nocaute do romance, se pudermos utilizar da
expressão de Julio Cortázar, seguidor e problematizador da teoria do conto de
Poe na América Latina.
A totalidade da leitura, no conto, seria um ponto positivo do gênero,
pois ―os interesses do mundo que intervém durante as pausas da leitura
modificam, desviam, anulam, em maior ou menor grau, as impressões do
livro. Porém, a simples detenção da leitura por si só seria suficiente para
destruir a verdadeira unidade‖ (POE, 1842 apud KIEFER, 2011, p. 338-9),
que seria encontrada em uma narrativa que tomasse a atenção do leitor em
um tempo de leitura que variasse entre meia hora a duas horas, que pudesse
ser feita em uma assentada. Para Poe, ―esta unidade [de leitura e de efeito]
não pode ser totalmente preservada em produções cuja leitura não possa ser
feita de uma assentada‖ (POE, 1842 apud KIEFER, 2011, p. 336).
Ultrapassando esta medida de tempo, a leitura tornar-se-ia cansativa; a
unidade e a totalidade da obra seriam perdidas.
O conto, para poder ser caracterizado como gênero literário, deveria
seguir determinados caminhos de elaboração, que culminariam em uma
narrativa que proporciona uma transformação psicológica no leitor, e tal
transformação seria empreendida principalmente a partir do conflito
norteador do plot5 e do efeito pretendido pelo autor. Toda a narrativa em
5
Edgar Allan Poe, nas três resenhas publicadas nas revistas Graham’s Magazine, em
abril e maio de 1842, e Godey’s Lady’s Book, novembro de 1847, afirma que nem
todas as narrativas publicadas por Nathaniel Hawthorne em Twice Told Tales
podem ser realmente denominados tales, contos – na concepção moderna da
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
379
prosa curta deveria ser elaborada a partir do efeito pretendido, o que
culminaria em um único acontecimento, provocando certo tipo de epifania no
leitor, ou ainda uma espécie de katharsis. O conto de efeito – ou o efeito do
conto – tem como principal virtude e também como principal tarefa
representar uma realidade verossimilhante, capturandoo leitor para a narrativa
através de um suspense, que só será desvendado no instante do clímax do
conto. Neste sentido, Edgar Allan Poe ―concebeu o conto como uma obra de
arte, como veículo para a discussão da condição humana e como meio de
entretenimento no qual os elementos ficcionais básicos, personagem,
incidente, espaço e idéia motivadora, são compacta e inseparavelmente
combinados‖ (PEDEN, 1971, p. 7 apud KIEFER, 2011, p. 45).
Na literatura da América Latina, os passos de Edgar Allan Poe foram
seguidos pelo escritor argentino Julio Cortazar. Suas concepções
correspondem àquelas empreendidas por Poe, modificando-se sua
nomenclatura, mas ainda assim possibilitando uma abertura na contística,
conforme pensada e teorizada por Poe. Cortazar busca no conceito de
epifania grega uma abertura para o divino – que se dá naquilo que chamamos
realidade.
Julio Cortazar e a (re)leitura de Edgar Allan Poe: modificando o
conceito original
Faz parte do senso comum da crítica literária a idéia de que Julio
Cortázar apropriou-se das postulações teóricas feitas por Edgar Allan Poe no
século XIX. No entanto, uma compreensão tão reducionista não poderia
definir as contribuições teóricas do escritor argentino. Julio Cortázar fez
muito mais do que apropriar-se das contribuições de Poe em suas obras.
Em primeiro lugar, as abordagens feitas pelo argentino levam em
conta um contexto social diferente, que possui representações e ideologias
distintas daquelas mencionadas e defendidas por Poe, pois os contrastes da
palavra, cunhada a partir do século XIX. Para o autor, alguns textos não passam de
sketchs, por não contarem com o plot, com um acontecimento que leve o leitor à
reflexão: ―sem plot, sem ação e praticamente sem personagens, [alguns textos] são
telas, descrições de estados de ânimo, de paisagens naturais e de estações.‖
(KIEFER, 2011, p. 53).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
380
América Latina revertem as escolhas culturais anglo e ibero americanos que
precederam a colonização, conforme Damatta (1981), demonstrou.Os
regimes ditatoriais – alguns ainda em voga na América Latina no século XXI
– são outra característica que transformam em originais as considerações de
Julio Cortázar, como o escritor mesmo demonstra em A casa tomada, conto
no qual uma casa é tomada por espíritos, cômodo a cômodo, expulsando de lá
seus legítimos moradores – um casal de irmãos6. Aqui, a alegoria se mostra
como uma oposição feita ao regime ditatorial argentino.
Porém, não negamos a nítida presença da teoria de Poe nos escritor
de Cortázar, assim como também não o faz o escritor argentino. Em seu
ensaio Poe: o poeta, o narrador e o crítico (2006), o escritor afirma que
há em nós uma presença obscura de Poe, uma
latência de Poe. Todos nós, em algum lugar de
nossa pessoa, somos ele, e ele foi um dos grandes
porta-vozes do homem, aquele que anuncia o seu
tempo noite adentro. Por isso sua obra, atingindo
dimensões extratemporais, as dimensões da
natureza humana profunda do homem sem
disfarces, é tão profundamente temporal a ponto de
viver num contínuo presente, tanto nas vitrinas das
livrarias como nas imagens dos pesadelos, na
maldade humana e também na busca de certos
ideais e de seus sonhos. (CORTÁZAR, 2006, p.
104).
A presença obscura de Poe na crítica de Julio Cortázar se dá nos
diversos artigos, ensaios, prefácios e notas de obras que ele traduziu.
Segundo Charles Kiefer, ―o escritor do Sul procurou desvendar os
mecanismos de funcionamento da história curta, acrescentando novas
formulações teóricas e preceptísticas às já estabelecidas pelo escritor do
6
Edgar Allan Poe, em 1838, escreve o conto A queda da casa de Usher, que trata da
mesma temática do conto cortazariano. Nesta narrativa, a queda de uma casa sólida,
na qual também vive um casal de irmãos, funciona como alegoria para a queda da
aristocracia, no século XIX. Vê-se nitidamente uma denúncia social, como também
o é o conto de Cortázar, no entanto, cada um deles denuncia um problema típico de
seu contexto social.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
381
Norte‖ (KIEFER, 2011, p. 152). No entanto, há uma diferença básica entre a
compreensão da literatura de Edgar Allan Poe e a maneira pela qual esta
mesma compreensão é tida por Julio Cortázar. É inegável que Poe
preocupava-se com a linguagem, em seus contos e também nos contos aos
quais eram objetos de sua crítica, mas, para o escritor argentino, a questão da
linguagem era de suma importância. Cortázar perguntava-se ―qual é o
processo, o silencioso ciclone do ato literário, cujo vórtice está na pena que
Poe apñia neste instante sobre a página?‖ (CORTÁZAR, 2006, p. 102). A
página aparecia como um mundo de possibilidades do escritor, neste caso,
um mundo aberto por Edgar Allan Poe para si mesmo, pois é através das
imagens construídas pela linguagem, na narrativa poeana, que se torna
possível sua aplicação da teoria do efeito, que Cortázar (re)nomina.
Na crítica de Cortázar, assim como nas formulações de Poe, são
levantados três elementos como base para o conto: significação, intensidade e
tensão. O tamanho reduzido da narrativa para se tornar um bom conto
também tem sua importância. ―O contista sabe que não pode proceder
acumulativamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é
trabalhar em profundidade, verticalmente, seja para cima ou para baixo do
espaço literário‖ (CORTÁZAR, 2006, p. 152). Assim, para tratar do tamanho
reduzido do conto, o escritor traça comparações entre o conto e a fotografia,
deixando para o romance as características do cinema:
Enquanto no cinema, como no romance, a captação
dessa realidade mais ampla e multiforme é
alcançada mediante o desenvolvimento de
elementos parciais, acumulativos, que não excluem,
por certo, uma síntese que dê o clímax da obra,
numa fotografia ou num conto de grande qualidade
se procede inversamente, isto é, o fotógrafo ou o
contista sentem necessidade de escolher e limitar
uma imagem ou um acontecimento que sejam
significativos, que não só valham por si mesmos,
mas também sejam capazes de atuar no espectador
ou no leitor como uma espécie de abertura. De
fermento que projete a inteligência e a sensibilidade
em direção a algo que vai muito além do argumento
visual ou literário contido na foto ou no conto.
(CORTÁZAR, 2006 apud KIEFER, 2011, p. 182).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
382
Neste sentido, o contista deve ―recortar‖ uma cena cotidiana para que
a partir dela se dê a representação, o espaço e o tempo da narrativa e, desde o
início do conto, a tensão deve fazer-se presente: ―deve manifestar-se desde as
primeiras palavras ou desde as primeiras cenas‖ (KIEFER, 2011, p. 183). O
conceito de tensão do conto, proposto na crítica cortazariana, parece
confundir-se, então, à noção de efeito formulada por Edgar Allan Poe, pois
tanto em relação à primeira, quanto em relação à segunda formulação teórica,
o conto deve voltar-se à intenção do autor e guiar o leitor, com base nesta
intenção, até a última palavra da narrativa. A tensão também se liga, na
poética cortazariana, ao conceito de significação, inovador em relação às
proposições de Poe.
O conceito de significação formulado por Cortázar diferencia-se da
concepção de Poe, pois, apesar de também requerer a excepcionalidade para
realizar-se, a significação pode mostrar-se até mesmo no cotidiano ou no
banal. No entanto, somente a partir do momento em que o conto se torna
significativo a narrativa adquire estatuto estético. Porém, tal conceito,
segundo o prñprio Cortázar, é problemático. Entendida como a ―misteriosa
propriedade que determinados acontecimentos têm de irradiar alguma coisa
para além deles mesmos‖ (KIEFER, 2011, p. 183), o conto adquire – ou não
– distintas significações, que se tornam memoráveis em razão da experiência
do leitor. Para Cortázar, ampliando a teoria do conto de Poe, o leitor participa
do projeto de atribuição de significado à narrativa; primeiramente
empreendido pelo escritor é ―modificado‖, tornado significativo para o leitor.
A significação do conto forma-se na relação estabelecida entre a tensão, a
intensidade e o leitor. Desta maneira,
um conto é significativo quando quebra seus
próprios limites com esta explosão de energia
espiritual que ilumina bruscamente algo que vai
muito além da pequena e às vezes miserável
história que conta. A significação não reside
somente no tema do conto, mas depende da
intensidade e da tensão, elementos de natureza
técnica, resultantes do tratamento literário que o
contista dá ao tema (KIEFER, 2011, p. 184).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
383
O conto, na crítica cortazariana, é uma verdadeira ―máquina de criar
interesse‖. Toda palavra transposta ao mundo ficcional, que dá forma – e
conteúdo – à narrativa, visa prender a atenção do leitor e a significação
aparece como o clímax da leitura, que não deve ser, como encontramos na
poética de Poe, excessivamente curta ou excessivamente longa. O trabalho
com a linguagem, feito pelo contista, dá à narrativa a aura da
excepcionalidade, que deve acompanhá-la e pode ser encontrada até mesmo
em experiências triviais: ―o excepcional reside numa qualidade parecida à do
imã; um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no
autor e, mais tarde, no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões,
sentimentos e até ideias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na
sensibilidade‖ (KIEFER, 2011, p. 184-5).
Quando Cortázar atualiza a teoria do conto de Edgar Allan Poe, ele
privilegia o leitor e seu vínculo com o conto e com o autor, na construção da
significação e da excepcionalidade do conto. Além do leitor, o escritor
argentino amplia o lugar do conto. Do estrito trabalho com a linguagem, que
deve ser realizado para que a narrativa adquira sentido e demonstre o efeito
pretendido, o contista se vê frente a frente com o fazer estético e com algo
que se encontra antes e depois desta lapidação da linguagem: o tema..O tema
também deve exercer um fascínio sobre o seu criador, pois é somente assim
que o conto, após apresentar o leitor ao mundo da ficção, o devolverá de
maneira mais lúcida, mais crítica. Para que isto aconteça, o ofício do escritor
é de suma importância. Este ofício ―consiste entre muitas outras coisas em
conseguir este clima próprio de todo grande conto, que obriga a continuar
lendo, que prende a atenção, que isola o leitor de tudo o que o rodeia, para
depois, terminado o conto, voltar a pô-lo em contato com o ambiente de uma
maneira nova, enriquecida, mais profunda e mais bela‖ (KIEFER, 2011, p.
186) efeito alcançado somente com uma base que una intensidade e tensão.
Enquanto a tensão trabalha desde a primeira palavra do conto,
exercendo-se ―na maneira pela qual o autor vai nos aproximando lentamente
do que conta‖ (KIEFER, 2011, p. 187), sendo talvez o traço mais marcante da
trama narrativa – de um modo que nenhuma técnica narrativa poderia ensinar
ou prover, ―o grande conto breve condensa a obsessão do escritor; é uma
presença alucinante que se instala desde as primeiras frases para fascinar o
leitor, fazê-lo perder contato com a desbotada realidade que o rodeia, arrasálo numa submersão mais intensa e avassaladora‖ (CORTÁZAR, 2006, p.
232) – a intensidade consiste na eliminação de qualquer palavra supérflua, de
qualquer expressão que não contribua para o efeito pretendido no conto.
Assim, anoção de tensão, proposta por Cortázar, assemelha-se ao
efeito (conceito empreendido por Poe), mas entendemos que tal noção está
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
384
para o conto de atmosfera, proposto por Tchekhov, assim como a noção de
intensidade está para o conto de efeito, de Edgar Allan Poe, pois a tensão
organiza os fatos, acompanhando o leitor ao clímax da narrativa, mostrando a
ele o caminho para que o efeito pretendido seja obtido na leitura, enquanto a
intensidade, ―os fatos, despojados de toda preparação, saltam sobre nós e nos
agarram‖ (CORTÁZAR, 2006 apud KIEFER, 2011, p. 187).
Outro conceito proposto por Julio Cortázar, que enfoca a estrutura
narrativa do conto, é o de esfericidade. Com ela, a máquina infalível,
destinada a cumprir sua missão narrativa com o mínimo possível de meios
técnicos, fecha-se sobre si mesma. Com a noção de esfericidade, postula-se
que o narrador poderia ter sido uma das
personagens, vale dizer que a situação narrativa em
si deve nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando
do interior para o exterior, sem que os limites da
narrativa se vejam traçados como quem modela
uma esfera de argila. Dito de outro modo, o
sentimento da esfera deve preexistir de alguma
maneira ao ato de escrever o conto, como se o
narrador, submetido pela forma que assume, se
movesse implicitamente nela e a levasse à sua
extrema tensão, o que faz precisamente a perfeição
da forma esférica. (CORTÁZAR, 2006, p. 227).
Quando o narrador transforma-se em personagem da narrativa, a
máquina infalível que é o conto ―blinda-se‖ contra qualquer intervenção que
não contribua para o efeito pretendido pelo escritor, tornando-se significativo
para o leitor. A noção de esfericidade do conto é proposta por Cortázar no
ensaio Do conto breve e seus arredores (2006), e do décimo preceito de um
perfeito contista, publicado no Decálogo do perfeito contista, de Horácio
Quiroga: ―conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o
pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não
há outro modo para obter a vida no conto‖ (QUIROGA, SD apud
CORTÁZAR, 2006, p. 227). Isto é, o escritor não pode mostrar-se na
narrativa, nem mesmo com a voz do narrador, pois a história que ali é narrada
diz respeito, principalmente, às personagens representadas. Desta maneira a
narrativa passa do plano simples da narração para o plano da ação, fazendo-se
alheia ao mundo do escritor, construindo um mundo próprio no qual vivem
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
385
os personagens e a ação que se desenrola na narrativa. Cortázar procurava,
em sua própria escritura, ficar alheio a sua escrita e deixar a ação por conta
das personagens – e do narrador-personagem:
Encontrei uma espécie de explicação pela via
contrária, sabendo que quando escrevo um conto
busco instintivamente que ele seja de algum modo
alheio a mim enquanto demiurgo, que se ponha a
viver com uma vida independente, e que o leitor
tenha ou possa ter a sensação de que de certo modo
está lendo algo que nasceu por si mesmo, em si
mesmo e até de si mesmo, em todo caso com a
mediação mas jamais com a presença manifesta do
demiurgo (CORTÁZAR, 2006, p. 228).
Essa explicação de Cortázar parece transformar o conto em uma
narrativa que existe por si mesma, em si mesma e para si mesma, uma ficção
com vida independente. Porém, não há ficção que existe por si mesma, pois
todo o mundo ficcional, como já demonstrou Umberto Eco (1994), é parasita
do mundo real, assim como o mundo real torna-se parasita do mundo
ficcional quando a mímesis literária lhe empresta algo próprio da ficção,
como a maior criticidade do leitor, a problematização da sociedade
contemporânea. Nos voltamos então às questões estruturais do conto
contemporâneo e sua relação parodística com as poéticas de Edgar Allan Poe
e Júlio Cortázar em Marcelino Freire.
Quem conta um conto, diminui um ponto: os minicontos e Marcelino
Freire
Edgar Allan Poe, Julio Cortazar, Jorge Luiz Borges, Machado de
Assis, Mario de Andrade e outros inúmeros contistas e teóricos
desenvolveram proposições sobre o conto. Desde o século XIX, este gênero
literário foi alvo de reflexões, polêmicas, transformações, teorias e práticas
diversas que, para alguns, iniciaram-se com as reflexões empreendidas pelo
contista Edgar Allan Poe, com sua teoria do efeito, sua defesa da retirada de
todo e qualquer supérfluo da narrativa, enfatizando um recorte de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
386
acontecimento para prender a atenção do leitor por, no máximo, duas horas.
Ao público do século XIX - vivendo em um período de mudanças sociais,
com a crescente rapidez dos meios de comunicação e da locomoção, com a
adoção de uma jornada de trabalho e de horas de lazer reguladas por um
relógio impiedoso - não mais interessava o caráter pedagógico da literatura,
mas sim o momento catártico da leitura: uma aproximação entre a sua
realidade e a ficção que lhe era apresentada. Aí, o sujeito era o centro da
narrativa; as experiências narradas, acontecidas, representadas pela ficção
deveriam ser verossimilhantes àquelas da ―vida real‖. O sujeito uno7era a
principal preocupação do contista e, apesar da rapidez da nova ordem
econômica, do capitalismo emergente, as representações literárias tratavam
especificamente deste sujeito.
A problematização da relação da narrativa com o público é
ligeiramente diferente para Julio Cortázar. Esse autor ―subordina a estética
(ou melhor, a arte verbal) a uma pretensão que a transcende, colocando-a a
serviço de uma busca integral do homem‖ (YURKIEVICH, 1998, p. 12). A
linguagem, para o escritor, é uma maneira de subversão e, a fim de
fundamentar este propósito, o contista empreende uma revisão histórica da
literatura moderna, tendo por base o seguinte questionamento: Como recriar
literariamente personagens que não falam, mas vivem? Essa interrogação
leva Cortázar a um programa que consiste em ―levar a linguagem ao seu
limite, extremá-la, desaforá-la, para que as possibilidades humanas mais
profundas possam se exercer‖ (YURKIEVICH, 1998, p. 17).
O trabalho cortazariano com a linguagem, empreendido na maneira
pela qual seus contos são concebidos assemelha-se, desta maneira, a ideia que
Edgar Allan Poe tem do trabalho intelectual, realizado a partir do
acontecimento, do efeito pretendido pelo autor, na narrativa. Tanto Cortázar,
quanto Poe acreditam – aquele por influência das teorias propostas por este –
que o trabalho incansável com a linguagem é um dos princípios norteadores
da variante ocidental do conto moderno.
Outro princípio apontado por Julio Cortázar e Edgar Allan Poe
refere-se ao tamanho da narrativa, de suma importância para a construção do
conto: a extrema, ou ainda, qualquer prolixidade deveria ser banida, assim
7
Para Luiz Costa Lima, o sujeito uno é aquele para o qual toda forma de
representação e explicação do mundo convergem. De suas experiências emanam
todas as demais representações e explicações dos fenômenos sociais. Esta
concepção de sujeito, estreitamente ligada à filosofia predominante até o século
XVIII, opõe-se à noção de sujeito fraturado, também proposta por Costa Lima
(2000).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
387
como o tamanho reduzido do conto também era considerado um aspecto
negativo: ―a brevidade excessiva é censurável tanto no conto quanto no
poema, mas a excessiva extensão deve ser ainda mais evitada‖ (POE, 1842
apud KIEFER, 2011, p. 339). Toda palavra supérflua deveria ser eliminada
da narrativa, assim como toda brevidade excessiva, que não apresentasse ao
leitor o efeito pretendido pelo autor deveria ser evitada. A preocupação com a
extensão ideal do gênero conto era, portanto, tanto estética quanto
inseparável das condições de apreciação do público leitor inserido nos modos
de vida impulsionados pela industrialização crescente, do advento da
impressão e até mesmo da maneira pela qual o pagamento era feito aos
escritores no século XIX.
A partir destas teorias, influenciadas pelas profundas mudanças do
século XIX, o conto passou a fazer parte de uma concepção de literatura que
possuía, além da função pedagógica, exercida pela literatura no período
clássico, e para a qual o texto ficcional deveria apresentar um caráter
educacional, moral, visível desde a Antiguidade Clássica, uma função de
divertimento, aliada à reflexão provocada pela narrativa. No entanto, esta
―reflexão‖, este ―divertimento‖, deveria prender a atenção do leitor por pouco
tempo. Afinal os tempos eram outros e a rapidez da indústria, das
locomotivas e o tempo cronometrado não deixavam um grande espaço para o
―lazer‖ que a leitura proporcionava.
Essa mesma experiência do tempo é vivida com intensidade
recentemente e há, paralelamente, a radicalização da estrutura textual do
conto, visível no miniconto. Marcelino Freire afirma, na coletânea Os cem
menores contos brasileiros do século, –assim como nas duas edições das
coletâneas Cinco minutinhos – que o propósito de tal organização está em
propiciar cinco minutos de leitura, entre o intervalo da novela ou do jornal.
Não só o tempo parece estar mais rápido e mais fragmentado, mas reduzido
para leitura, que deve ser feita no intervalo de programas televisivos e no
espaço deixado pelo acesso à internet. Marcelino Freire se insere nesse modo
de experiência recente, tanto a partir das personas autorais que construiu para
o público e para seus companheiros de profissão, quanto em seus contos e
minicontos. Marcelino Freire sabe que não precisa seguir à risca todas as
proposições feitas por Edgar Allan Poe e recontextualizadas por Julio
Cortázar para fazer literatura, e é brincando com a estrutura textual do gênero
conto que ele mostra sua(s) voz(es).
Os contos de Marcelino Freire, neste sentido, aparecem como
paródias da estrutura narrativa proposta por Edgar Allan Poe, no século XIX.
Podemos até mesmo inferir que o escritor, e as personas por ele criadas, tem
consciência da transfiguração do gênero que faz em seus escritos, pois não
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
388
caracteriza nenhuma de suas obras como uma coletânea de contos. Contos
negreiros, publicado em 2005, tem suas narrativas denominadas cantos, e
não contos. Considerando ainda a figura que nos remete a imagem de um
código de barras fixo no homem negro que ilustra a capa da obra, a palavra
contos pode não se referir à narrativa, mas ao valor de mercadoria vinculado
a imagem do negro brasileiro ali representado.
É interessante ressaltar, no entanto, que mesmo quando são tratadas
como narrativas-cantos, encontramos contos de estrutura similar àquela
proposta no século XIX, como em Solar dos príncipes, publicada em Contos
negreiros (2005). A narrativa enfoca a tentativa de realizar uma filmagem em
um grande condomínio: ―a ideia é entrar num apartamento do prédio, de
supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador‖ (FREIRE, 2005, p.
24). Nesse mesmo momento tem início a uma inversão do significado do
espaço, pois o ―normal‖ é realização de filmagem na favela como forma de
apresentar o ―diferente‖ e tematizar questões sociais: ―O morro tá lá, aberto
24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os malandrões entram,
tocam no nosso passado. A gente se abre que nem passarinho manso. A gente
desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola. A gente oferece nossa
coca-cola‖ (FREIRE, 2005, p. 25). Nesse conto, os espaços sociais
funcionam como sinais opostos: a idéia de entrar subitamente no condomínio
opõe à receptividade dos moradores da favela, que nem precisam ser
entrevistados. O que nos encaminha para o efeito pretendido pelo escritor é a
apresentação da desigualdade e os sinais inversos dos significados atribuídos
aos moradores da favela como ―diferentes‖.
O conto enfoca essa relação de igualdade/diferença na figura do
porteiro do prédio: ―Nordestino é homem. Porteiro é homem ou não é
homem? (FREIRE, 2005, p. 24); ―O porteiro apertou o apartamento 101, 102,
108. Foi mexendo em tudo que é andar. ‗Estou sendo assaltado, pressionado,
liguem para o 190, sei lá.‘‖ (FREIRE, 2005, p. 25) e esta relação transformase no conflito norteador da narrativa. A paródia feita por Marcelino Freire
exibe-se nas nomenclaturas dadas às narrativas publicadas em suas obras, na
excessiva brevidade de sua escrita – condenada tanto por Edgar Allan Poe,
quanto por Julio Cortázar – e na representação de suas personagens, mas a
continuidade literária da modernidade do século XX é visível em sua escrita,
ainda que possam ser escamoteados pela persona transgressora do escritor e
pela representação contemporânea do real.
Trazendo a tona esta performance de Marcelino Freire – o autor –
pretendemos mostrar a revolução do gênero que foi empreendida por este
contista com sua coletânea Os cem menores contos brasileiros do século
(2004), que também funciona como uma paródia, uma denúncia ao
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
389
academicismo e ao cânone literário, ao excluir de seu campo todo conto que
não se enquadra na forma e no conteúdo daqueles publicados em Os cem
melhores contos brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi. Essa
publicação deixa implícito que todo conto que se encontra fora dela, não é
um dos melhores, atualizando uma forma de exclusão e de classificação no
campo literário brasileiro, na qual Marcelino Freire se situa e se posiciona,
confirmando-a pela contestação. Nesse mesmo movimento, escreve
minicontos, tanto reiterando quanto transformando a crítica literária que
tematiza a estrutura narrativa do conto.
EnquantoEdgar Allan Poe e Julio Cortázar propunham uma
estruturação rígida para o gênero conto, que se baseava principalmente no
tamanho da narrativa e no tempo de leitura necessário para que fosse lida em
sua totalidade. Vários escritores contemporâneos convidados por Marcelino
Freire, seguindo os passos de Augusto Monterroso, autor do primeiro e mais
conhecido miniconto contemporâneo, O dinossauro, demonstram que não há
mais a necessidade dessa estrutura e fazem da paródia, tanto relativa ao
gênero literário quanto à representação das personagens, uma nova maneira
de fazer literatura. As personagens não são mais compreendidas como
representações ―universais‖ do homem, apresentando-se como
ficcionalização das experiências do autor, às quais o leitor acaba por
identificar-se.
Neste sentido, o miniconto ganha destaque na América Latina no
século XX, período no qual foram publicadas coletâneas reunindo escritores
brasileiros e latino-americanos, uma das evidências de que o novo gênero
havia ganhado notoriedade entre leitores e entre teóricos, pois os estudos
relativos a essa nova (des)estruturação do gênero ganharam popularidade.
David Lagmanovich afirma que, na América Latina, os minicontos tiveram
rápida aceitação pelo fato de que o conto em si apresentava uma dimensão
estrutural menor nesta cultura, em relação às narrativas norte-americanas e
inglesas, por exemplo:
Pensemos que Princesa, de D.H. Lawrence; The
Bear ou A rose for Emily, de William Faulkner;
Rain, de W. Somerset Maughmam; ou inclusive
The Short Happy Life of Francis Macomber ou
The Snows of Kilimanjaro, de Ernest
Hemingway, superam em várias vezes a
extensão de contos tão característicos das letras
hispânicas como Adios Cordera, de Leopoldo Alas,
La muerte de la Emperatriz de la China, de Ruben
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
390
Darío, Las ruinas circulares, de Jorge Luis Borges,
El patio de vecindad, de Miguel Delibes, ou La
autopsia
del
sur,
de
Julio
Cortázar
(LAGMANOVICH, 2003, p. 14 apud SPALDING,
2008, p. 26).
No entanto, os minicontos publicados até o século XX, anteriores a O
dinossauro, de Monterroso, não eram tão condensados quanto aqueles
publicados em Os cem menores contos brasileiros do século, que contém, no
máximo, 50 palavras. O que aconteceu após a abertura estrutural possibilitada
por Monterroso foi uma reinvenção do gênero miniconto, e não do gênero
conto. A condensação de uma narrativa em 50 palavras, ou menos, mantendo
as possibilidades de apreciação e a identificação por parte do leitor em uma
pequena frase, é a grande modificação do gênero vista pela crítica literária e
pelos leitores contemporâneos. Não somente a apreciação literária e a
identificação obra-leitor são proporcionadas pelos minicontos publicados no
Brasil neste início de século. O efeito, como pretendido por Poe, também
garante seu lugar nesta (mini)narrativa.
Em Amar é crime (2010), última publicação de Marcelino Freire,
trinta minicontos escritos pelo autor ganham destaque nas páginas finais do
livro. Em muitos deles podemos notar a presença de um intenso trabalho com
a linguagem, facilmente percebido nas formas ambíguas das frases-contos, e
do ―desenrolar‖ de uma (mini)histñria, que caminha para um desenlace sem
supérfluos que possam desviar o leitor do sentido original do miniconto,
pretendido pelo autor8. No entanto, por apresentarem-se de forma ambígua,
os minicontos de Freire, ao mesmo tempo em que rompem com alguns
aspectos da estrutura proposta por Poe, como o tamanho da narrativa, acabam
por dar continuidade à noção da criação de efeito, pelo autor. A escrita de
Freire, desta maneira, apresenta-se como uma continuidade na ruptura,
quando atualiza determinadas características do conto – e do miniconto – ao
mesmo tempo em que rompe com outros postulados da teoria do efeito de
8
Esta é, no entanto, uma característica que não está presente nos contos publicados
em outras coletâneas de Freire. Na maioria de suas narrativas há uma subversão,
um desvio do efeito original provocado pela leitura. Em suas últimas frases, os
contos do autor apresentam ao leitor uma nova perspectiva, que provoca um
estranhamento, um deslocamento do horizonte de expectativas antes consolidado.
Desta maneira, a literatura de Freire pode ser considerada como mímesis de
produção, se tomarmos como princípio norteador de tal caracterização a definição
proposta por Luiz Costa Lima (2000).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
391
Poe, parodiando, desta maneira, a estrutura do gênero, que se condensa ainda
mais na literatura contemporânea. Esta ambigüidade é característica do
miniconto de número [29], de Amar é crime (2010):
Olhou o relógio.
Hora de cortar o pulso.
(FREIRE, 2010, p. 159)
Aqui, a paródia voltada às estruturas narrativas propostas nos séculos
XIX e XX se faz clara: em duas frases, o narrador deste miniconto transforma
uma atividade corriqueira, o ato de olhar para o relógio, em uma anunciação
de uma tragédia, deslocando, assim, o efeito inicial do conto.
Desestabilizando a leitura ao excluir um enredo, transforma-a em uma
atividade que exige a reflexão do leitor diante do desfecho dos
acontecimentos, levando-o a preencher os vazios do miniconto com
suposições do que poderia ter conduzido aos momentos tensos de uma ação,
em vias de realização. Em relação ao tempo, os cinco minutinhos requisitados
por Freire para a leitura de seus minicontos operam um curto-circuito entre
temporalidades contrastantes e simultâneas. O verbo cortar tem a finalidade
de separar, terminar, dividir um espaço de tempo entre o existir e o não
existir. O ponto final que divide a leitura e a não-leitura, aqui, é somente o
ponto de partida para uma reflexão que não se extingue em 50 palavras.
Percebemos então, que o elemento literário principal dos minicontos não se
restringe mais, como postulava Edgar Allan Poe, ao autor, ou ainda como
afirmava Julio Cortázar, a linguagem. Tratando-se dos minicontos
contemporâneos, o protagonismo passa a integrar-se à figura do leitor, que
pode, à sua maneira, ―continuar‖ a narração, interpretando-a nas mais
diversas direçõese segundo seu tempo subjetivo de reflexão, inserido no fluxo
da hipervelocidade que torna o tempo tão curto e condensado, como os
minicontos de Freire.
Assim, Marcelino Freire é um escritor que nunca pára. Suas
coletâneas trazem consigo, a cada lançamento, uma nova proposta do autor,
seja em termos de conteúdo ou em termos estruturais. Um exemplo disso
reside no fato de que, apesar da crítica literária especializada caracterizar suas
narrativas na estrutura rígida do gênero literário conto, o autor as denomina
de maneira diferente a cada nova publicação. Em Balé Ralé (2003) temos
dezoito improvisos, em Contos Negreiros (2005) a nomenclatura dada por
Freire às narrativas que compõem a coletânea é a de cantos, que assimila a
narração dos contos ao caráter de narrativa oral presente em suas produções,
como Santiago Nazarin aponta na Apresentação de Rasif: mar que arrebenta
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
392
(2009). Essa penúltima coletânea intitula cirandas e cirandinhas no lugar de
contos, , enquanto em Amar é crime (2010), o autor opta por caracterizar
seus escritos como capítulos de um romance que, como anuncia o próprio
título, é composto por histñrias de amor ―ardentes, que exibem sua chama.
São desmedidos, urgentes, desenfreados, e por isso mesmo é que se oferecem
– ou melhor, se impõem – à vista de todos‖ (NAZARIN apud FREIRE,
2010).
A escrita de Freire é, então, uma transformação da oralidade, fruto da
pesquisa da tradição cultura brasileira em literatura. Ao mesmo tempo em
que sua escrita expõe uma beleza poética comovente, com rimas leves, e
personagens que, apesar do sofrimento, são representações dos inúmeros
sentimentos humanos, é também um festival de explosões, de pancadas das
ondas no mar de Recife, que o autor faz ―ouvir‖ através de suas narrativas e
das falas de seus personagens9. Esses personagens geralmente são oriundos
de ―guetos representacionais‖, como a pequena indiazinha de Yamamy, de
Contos negreiros, ou o homem da carroça – que se iguala a tantos outros
homens da carroça brasileiros – de Amar é crime (2010), cujo único crime foi
―amar‖ um sofá atirado ao lixo.
Não só os personagens são expressões da experiência cultural
brasileira recente, mas também os temas. O amor aparece articulado às
9
Em Rasif: mar que arrebenta (2008), Marcelino Freire utiliza o seguinte trecho
como uma das epígrafes da coletânea:
Estava na beira da praia
ouvindo as pancadas
das ondas do mar
Lia de Itamaracá
e é exatamente deste pequeno trecho que inferimos as afirmações anteriores,
relacionando o estilo de Freire com o título dado à obra e a menção feita pela poeta
ao som das ondas do mar, que assimilado às narrativas do autor podem caracterizálas como explosões literárias de um Brasil até então pouco escutado, pouco
representado.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
393
diversas formas de sexualidade e à diferentes representações dos corpos10.
Assim, as coletâneas de Freire possuem um ponto em comum: a
representação de seus personagens e a fala de seus narradores é voltada
principalmente àquelas esferas sociais que possuem pouca ou nenhuma
representação na literatura brasileira dita canônica, sendo as relações destas
personagens, seus corpos, enfocando o amor e o sexo, os principais temas da
literatura de Freire. O amor, em Marcelino Freire, é o grito preso, ―é a
mordida de um cachorro pitbull‖ (FREIRE, 2008, p. 77), assim como a
linguagem é somente uma das maneiras pelas quais este sentimento pode ser
externalizado, mesmo que, às vezes, o trabalho com a linguagem não seja o
bastante para a representação completa da felicidade, da tristeza ou até
mesmo dos atos cotidianos, também personagens das (micro)narrativas de
Freire.
Considerações finais: da leveza e da rapidez da leitura
As histórias das mil e uma noites são consideradas por muitos, a
principal fonte originária do conto. Contudo, até mesmo as origens dessas
histórias são controversas, pois são remetidas tanto aos anos de 870, quanto
aos períodos que compreendem os séculos XII e XIII.
Uma das principais características das histórias de Sherazade é o
caráter socializador de sua narrativa, encontrado tanto em sua relação
originária com o rei Shahriar, pois aqui Sherazade constrói uma relação
interpessoal entre ela e seu ouvinte, quanto nas referências sobre a obra, que
se atualizam à mesma velocidade que as próprias narrativas. Um indício desta
atualização é a afirmação de, até a segunda metade do século XIII e a
adequação das histórias à moral islâmica, existiam somente histórias para mil
noites (FERREIRA, 2012), não para mil e uma noites, como nos afirma o
título e conhecimento comum sobre a(s) narrativa(s).
Na literatura contemporânea, mais especificamente a coletânea Os
cem menores contos brasileiros do século (2004), nos apresenta mais uma
atualização da leitura (e da elaboração) das histórias de Sherazade.
Relacionando a nova proposta estrutural do miniconto, conforme solicitada
por Freire aos autores convidados à participar da coletânea, a uma releitura
10
Temos observado tais características nas narrativas de Freire através da realização
de nossa pesquisa, intitulada Ser ou não ser: sexo e gênero nos contos de Marcelino
Freire.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
394
tanto das relações de gênero, quanto da tradição literária, Carlos Secchin
constrói uma possível narrativa para a milésima segunda noite de Sherazade e
de seu rei:
FIM DE PAPO
Na milésima segunda noite, Sherazade degolou o
sultão.
(SECCHIN apud FREIRE, 2004. p. 8).
O título é, no miniconto de Secchin, um indício da ambigüidade
característica do miniconto contemporâneo, encontrada não somente na
literatura do século XXI, mas também no miniconto precursor de
Monterroso, pois nessa (mini)narrativa não temos convicção de quem ainda
estava lá quando o dinossauro acordou – ou se o dinossauro, enquanto
narrador, encontrava-se no lugar no qual havia adormecido. Em fim de papo,
não é diferente: o leitor pode tanto compreender este título como um indício
da morte do rei, quanto como uma finitude das histórias de Sherazade. O
papo encerra uma vida e uma tradição literária que não teve um início
especificado mas que, para Secchin, parece ter um final. No entanto, quem
decide qual será o final das mil e uma histórias de Sherazade é, na literatura
contemporânea, o leitor.
A nova estrutura proposta para o conto e para o miniconto da
literatura brasileira contemporânea se configura como um importante desafio
analítico, principalmente pela centralidade que o leitor vem ocupando, não só
recentemente, mas especialmente a partir da maior aceitação do miniconto.
Na contística de Clarice Lispector, que leva o leitor a acompanhar o fluxo de
consciência dos narradores e personagens, já havia indícios dessa
modificação do papel do leitor, para além da idéia do autor como um
demiurgo. Os minicontos de Freire, neste contexto, são um campo fértil para
inúmeras interpretações de leitura, que acompanham tanto as experiências do
sujeito leitor – um sujeito fraturado (COSTA LIMA, 2000), quanto as
representações e performances do autor, atualizando, de forma revigorada, a
tríade autor-obra-público conforme proposta por Antonio Candido (2008).
Neste sentido, os cinco minutinhos de leitura que Marcelino Freire
espera dos receptores de suas ―minicoletâneas‖ transformam-se em uma
recepção diferente da literatura, que desde o surgimento dos meios de
comunicação em massa, como o rádio e a televisão, perde espaço e tem a
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
395
cada dia menos leitores. No entanto, não podemos perder de vista o cunho
comercial que os minicontos de Freire englobam, visto que, por
apresentarem-se de maneira hiper-condensada, sua elaboração, além de sua
leitura, exige uma postura diferente por parte do escritor: essa postura única
transforma-se, em Freire, em diferentes personas autorais que se posicionam
de maneiras desdobradas tanto dentro da narrativa (quando o autor Marcelino
Freire transforma-se em personagem e/ou em narrador), quanto nas inúmeras
entrevistas e mini-cursos ministrados por ele.
Em sua literatura, o autor tece uma inter-relação entre oralidade e
escrita não somente em seus contos, mas também nos minicontos publicados
em Amar é crime, (2010) demonstrando um trabalho minucioso com a
linguagem, que se torna ambígua e passível de uma riqueza interpretativa na
apreciação. Neste sentido, ―o poeta, jogado e perdido no meio do anonimato
das massas, já não tem mais nada a dizer, ou já não tem quem o escute. Daí
esse fechamento do poema numa economia da fala, que é ao mesmo tempo
excesso de reflexão‖ (SPALDING, 2008, p. 92).
Essa economia relativa à fala que, consequentemente, nos leva uma
maior reflexão nos minicontos de Freire, é uma das características da rapidez
necessária para a boa narrativa literária, conforme pensada e estruturada por
Ítalo Calvino em uma de suas Seis propostas para o novo milênio (1988). Ela
também pode ser pensada por meio das contribuições de Ricardo Píglia para
compreender o conto contemporâneo. No ensaio Tesis sobre el cuento, Píglia
afirma que ―un cuento siempre cuenta dos historias‖ (2004), assumindo um
caráter duplo a partir do momento em que se constitui como a escrita de uma
história explícita, narrada de forma não subjetiva, e outra história oculta, que
se constrói nas entrelinhas deste primeiro sistema.
Tratando-se do miniconto, essa segunda história, oculta na
objetivação e na descrição de personagens e objetos representados na
primeira história narrada, está alojada principalmente na reflexão
empreendida pelo leitor, em sua experiência da leitura daquilo que ―não está
dito‖ pela/na narrativa. A rapidez da escrita literária, que chega a um ponto
máximo com a elaboração de minicontos de até 50 palavras, dá espaço para
uma reflexão mais profunda não só para o universo da crítica literária. Ela se
apressa em alojar-se não somente no leitor, mas também em suas relações
com o mundo e, especialmente, com as mídias de massa. A utilização de uma
linguagem mais coloquial e, com Marcelino Freire, a apropriação da internet
para a construção de personas autorais e como lugar de proliferação e
aproximação entre o(s) discurso(s) autoral(is) e seu público leitor sugerem
que as trocas entre as diversas artes e a comunicação de massa são também
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
396
uma maneira de se apossar da velocidade com que os media contemporâneos
aproximam a produção e o público.
Outra característica que nos leva a afirmar que a rapidez é uma das
características da narrativa de Freire não se encontra na escrita literária do
autor, mas em sua relação com o mercado editorial, tendo em vista que a
elaboração de minicontos e a leitura rápida por eles proporcionada é mais um
atrativo aos leitores que, em meio a uma vida agitada e espetacularmente
rápida, vêem na leitura uma distração ―rápida‖. Contudo, a literatura
contemporânea não se apresenta apenas como distração. A estruturação do
miniconto, a reflexão a ela interligada e as novas posições do autor e das
personagens são, apesar de sua aparente leveza e da rapidez de sua leitura,
um emaranhado de densidade de significados e significantes, que se
atualizam na experiência do leitor.
WHEN THE TALER LOSES IN THE TELLING: MARCELINO
FREIRE AND THE CONTEMPORARY SHORT STORY
ABSTRACT: To comprehend, from Poe‘s and Cortázar‘s theoretical concepts,
how the new structures of the contemporary short story and short-short story
were made as well as the strict relation with the author, the work and the
target public are the main goals of the present paper which is supported by
the performance theory that understands the author not as subject but as the
interrelationship of personas. Another important issue is the reader‘s role in
the interpretation and comprehension of these new literary attitudes as a
critical reader is so much required by literature nowadays. Hence, our main
theoretical references are the considerations from Poe and Cortázar, as well
as the contemporary theories which concern the short-short stories, to
emphasize the reader‘s importance as an experiences and new understandings
producer, in reference to this new literary gender.
Keywords: Contemporary short story. Short-short story. Narrative structure.
Marcelino Freire.
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399
ARTIGOS
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400
Literatura intempestiva: crise de seu ensino
Luís Heleno Montoril del Castilo 1
RESUMO: O presente artigo trata da crise da literatura no contexto atual.
Tem como principal objetivo pensar a literatura a partir de um recorte
filosófico específico, qual seja o da natureza e função intempestiva da
literatura em confronto com o contexto de crise atual. Faz isso tomando como
ponto de partida e principal plano diretor o pensamento sobre
intempestividade no filósofo Nietzsche constante da obra Segunda
Consideração Intempestiva, com acréscimos e considerações oriundas da
filosofia e da teoria da literatura pertinentes ao assunto. Levanta como tese
que o que está em crise é a literatura como instância discursiva e meio
privilegiado da sociedade letrada, hoje circunscrito às escolas, às
universidades e aos círculos acadêmico-científicos. Não obstante, a literatura
tem o poder vicário capaz ainda de ―mimetizar-se‖ e ―mimetizar a forma do
outro‖, levando a concluir que é necessário ensinar a ler essa literatura.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura: Crise: Intempestividade: Ensino
De resto, me é odioso tudo o
que simplesmente me instrui,
sem aumentar ou imediatamente
vivificar a minha atividade.2
Nietzsche, em sua Segunda Consideração Intempestiva (1988), abre
seu texto com essa citação de Goethe para movimentar a questão da
importância de se destruir todas as formas de amortecimento e paralisia do
conhecimento supérfluo. A questão é posta em relação à história, mais
propriamente Da utitilidade e do inconveniente da história para a vida. No
presente artigo, faz-se importante retomá-la e torná-la necessária para refletir
sobre a literatura num contexto acadêmico-científico que produz
conhecimento sem interferir na produção de realidades capazes de dar algo
mais do que ―um passeio ocioso pelos caminhos da ciência‖.3
1
Professor na UFPA; [email protected].
2
Carta de Goethe a Schiller de 19 de dezembro de 1878.
3
Expressão de Nietzsche levemente alterada: ―o passeante mimado no jardim do
saber‖ ( NIETZSCHE, 1988, p. 05).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
401
Pode-se responder à questão posta por Nietzsche, de por que o
homem necessita da história para viver e agir, com outra inquietação advinda
do campo dos estudos de literatura e de sua importância para o sistema de
saber vigente em que o conhecimento técnico é mais um ato do teatro de
nossa morte enquanto ser pensante, livre e de ação.
Tem-se a teoria e a técnica e nenhum método ou estratégia de ação,
de leitura, leitura essa como primeiro movimento de sua atividade. A
inquietação se faz presente quando se tem uma hipertrofia de textos e
discursos em eventos de estudos literários de vários tipos, em que a
relevância é o alinhamento teórico e/ou temático da literatura, a demonstrar a
importante atividade acadêmico-científica da disciplina. Em sentido oposto,
tem-se um ensino de literatura, nas escolas, com o estudo de estilos de época
ultrapassado, enumerador de características estéreis porque não são sequer
relacionadas adequadamente ao contexto histórico-sócio-cultural, o que
poderia servir de justificativa para a adjetivação ―de época‖. Em ensino
sustentado pelo sistema de vestibular que propõe questões derivadas dessas
caracterizações, o uso da teoria literária para o ensino da língua inexiste
porque não vai ser cobrado nas provas dos processos seletivos das mais
cobiçadas instituições de ensino superior que, em sua maioria, são públicas. E
a diferenciação entre as linguagens, entre as artes, entre as formas de
descrever e narrar das disciplinas e ciências são totalmente apagadas.
A literatura continua pondo o mundo e o que está fora dele, a vida e o
que está fora dela, em atividade. Mimesis e poiesis? Sim, também Signos em
rotação, outridade, atividade verbivocovisual, função poética e
metalingüística, intertextualidade, dialogismo, hibridização, meta e
hipertextualidade, metaficção historiográfica, literatura como bem de
cultura4, todos esses conceitos ajudam à apropriação teórica da literatura para
melhor ensinar a ler. Mas a teoria, restrita aos encontros ou revistas
especializadas, servirá pouco à intervenção mais importante e à ação mais
relevante, a que está na base da vida, na genealogia de um conhecimento
adquirido ao longo da vida escolar que tem em média doze anos, até a
chamada vida adulta.
4
A série não encerrada de conceitos traz obviamente seus autores ou teóricos da
literatura, bem como suas tradições críticas. Aristóteles (Poética), Octávio Paz
(Signos em rotação), Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari
(Poesia Concreta), Roman Jakobson, Julia Krysteva, Bakthin, Genette, Linda
Huctheon, e estudos de cultura provenientes dos Estudos Culturais e de uma
Literatura Comparada interdisciplinar.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
402
E afinal, como ensinar a ler os textos disponíveis no largo campo de
gêneros literários e com a concorrência das outras formas, objetos e meios de
―imitação‖ disponíveis? Sem que para isso a literatura não sirva senão para
motivar a leitura e não se restrinja a um dileto passeio pelo bosque da ficção?
Mas que esse passeio de leitura movimente e desloque aquele que o
empreende. Talvez seja o caso de trazer Nietzsche novamente, desta vez
aproveitando o que ele diz sobre a finalidade de uma disciplina fora de época
como a filologia clássica, no contexto dos fins do século XIX, tempo a que
ele se refere. Nietzsche lembra que essa disciplina teria o objetivo de ―agir de
maneira inatual‖. Que interesse e que objetivos pode ter aquele que se propõe
estudar literatura? Talvez uma resposta pertinente seja a de Nietzsche à
filologia clássica em sua época: interferir no tempo, ir contra o tempo de
nossas certezas infalíveis. De maneira inatual, dobrando o tempo,
desdobrando-o, favorecer um tempo em aberto.
Mas como na prática de um ensino-aprendizagem de literatura isso
pode ser efetivado? E através de quê, na literatura em si, isso está posto? As
dobras do tempo estão presentes na linguagem, ensinar literatura é
empreendimento de linguagem que dobra espaço e tempo de experiências
diversas. Essas dobras estão na forma de dispor e organizar os códigos da
―linguagem atual‖ contra si, contra sua atualidade, ou a favor dela, a soar
como sua grande ironia.
Duas falhas são facilmente diagnosticadas no ensino de literatura: a
primeira diz respeito à divisão ensino de língua/ensino de literatura; a
segunda é desdobrada da primeira, a de considerar somente o estilo ou a
linguagem do texto literário em detrimento da multiplicidade de saberes
contida nele. Mas tem-se uma terceira falha, a de considerar o texto literário
somente como ―documento‖ de um contexto, seja social ou histórico. Mas
como superar as falhas? Ou evitá-las? As respostas às questões devem partir
do texto que se tem diante de si, é ele que será o meio pelo qual as séries de
relações serão abertas ou estarão disponíveis para serem aproveitadas. Por
que não abri-las? Receio de perder-se? É uma previsão plausível, visto que a
experiência textual atual, a depender do material que se tem, é quase
incomensurável.
Mas é preciso que a abertura do texto não seja estreitada pela ordem
da disciplina literatura. O devir da literatura, contido em uma espécie de
―canto‖ há muito entoado, é controlado e delimitado pela ordem do textoobjeto, esse a ser informado pelo estudo de literatura. Por esse caminho
disciplinar, o poder de mimesis que o texto literário pode oferecer como saída
para outra experiência de linguagem e de atividade é enfraquecido.
A fábula de Rubem Alves explica pela alegoria:
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
403
Urubus e sabiás
Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em
que os bichos falavam... Os urubus, aves por
natureza becadas, mas sem grandes dotes para o
canto, decidiram que, mesmo contra a natureza eles
haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto
fundaram escolas e importaram professores,
gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir
diplomas, e fizeram competições entre si, para ver
quais deles seriam os mais importantes e teriam a
permissão para mandar nos outros. Foi assim que
eles organizaram concursos e se deram nomes
pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor
em início de carreira, era se tornar um respeitável
urubu titular, a quem todos chamam de Vossa
Excelência. Tudo ia muito bem até que a doce
tranqüilidade da hierarquia dos urubus foi
estremecida. A floresta foi invadida por bandos de
pintassilgos tagarelas, que brincavam com os
canários e faziam serenatas para os sabiás... Os
velhos urubus entortaram o bico, o rancor
encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos,
sabiás
e
canários
para
um
inquérito.
— Onde estão os documentos dos seus concursos?
E as pobres aves se olharam perplexas, porque
nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse.
Não haviam passado por escolas de canto, porque o
canto nascera com elas. E nunca apresentaram um
diploma para provar que sabiam cantar, mas
cantavam
simplesmente.
— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação
devida
é
um
desrespeito
à
ordem.
E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta
os passarinhos que cantavam sem alvarás...
MORAL: Em terra de urubus diplomados não se
houve canto de sabiá. (ALVES, 1995, pág. 81)
O devir do canto dos pássaros é cortado pela máscara e falseamento
dos títulos e legitimações inautênticas dos urubus togados. A ―invasão
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
404
bárbara‖ dos cantos pode ser a dos textos que são liberados das amarras das
teorias preformalizadoras de seu modo e status de leitura, algo como é
permitido ou é proibido segundo a ordem dos discursos e comentários
titulados pela sociedade científica ou de discurso, com autoria de reconhecido
autor já devidamente titulado e citador de outros não menos importantes e
ilustres. E o ―canto‖ do texto em sua produção discursiva nova, capaz de
oferecer possibilidades de novas ferramentas teóricas, escoa pelo silêncio dos
interlocutores surdos-mudos.
Sobre a educação, Edgar Morin traçou muito bem o plano em Os sete
saberes para a educação do futuro (2000) ao observar que aprender é
atividade do homem para ser, fazer, viver e conhecer. Essas quatro formas
não estão separadas, decorrem de um acontecimento, de um devir da própria
vida, de tal forma que essa autoconsciência do homem dá maior clareza para
ver que o compartimento disciplinar precisa ser compartilhado, um jogo
retórico (do autor desse artigo não de Morin) para dizer sobre a necessidade
de tornar a aprendizagem transdiciplinar, aberta portanto às relações inerentes
à própria vida do homem no mundo.
Os sete saberes estão organizados nas seguintes partes: 1. é
necessário saber o que é conhecimento humano para transmitir
conhecimento, nem que para tanto se tenha que ensinar a conhecer o que é
conhecimento, ou ensinar a conhecer, essa disposição evitará ―a cegueira do
conhecimento, o erro e a ilusão‖; 2. é necessário passar do método de
conhecimento que tem como princípio partir do todo fundamental e essencial
para o do objeto em seu contexto, com suas relações de conjunto, para isso é
importante estar disposto a sair da fragmentação disciplinar em direção à
relação entre as partes, daí decorrem ―os princípios do conhecimento
pertinente‖; 3. é necessário restaurar o conhecimento do homem em sua
complexidade, esse é o principal objeto do conhecimento, a segmentação
disciplinar é reacionária se não faz a reunião após a divisão, logo é preciso
―ensinar a condição humana‖; 4. é preciso ensinar, com a histñria, para se
alcançar uma autoconsciência atual, do homem do século XXI, ensinar sobre
o que formou e tem formado esse homem ao longo do tempo, não deixar de
falar sobre a história de morte e sofrimento, mas ensinar sobre o futuro, esse
que se faz pelo agora, pelo presente, nesse ponto Morin quer pensar sobre a
vida do homem no planeta e com isso propõe ―ensinar a identidade terrena‖;
5. Morin é muito feliz ao apresentar o princípio da incerteza como algo da
vida e do mundo no qual se insere o gênero humano; tal princípio fala sobre
aprender a perceber, a tomar conta da situação, posicionar-se no melhor
ponto, escolher a melhor estratégia, para agir ou se necessário esperar porque
o mínimo de interferência em certos eventos resulta no menor prejuízo ou no
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
405
maior ganho, logo ensinar a ―enfrentar as incertezas‖; 6. é necessário ensinar
a compreender e com isso sair do ―estado bárbaro de incompreensão‖; Morin
propõe principalmente estudar as raízes dessa incompreensão mútua que sob
a forma de racismo, preconceito, intolerância, xenofobia e desprezo, capaz de
gerar violência e conflitos de toda ordem; é preciso portanto ―ensinar a
compreensão‖; 7. finalmente, Morin observa a necessidade de ensinar a
―antropo-ética‖,
uma
ética
do
homem
pautada
na
tríade
indivíduo/sociedade/espécie, algo como construir uma cidadania terrena que
se faça pela autonomia do indivíduo, pela participação em sociedade e pela
consciência do homem como espécie, uma espécie de antroponcetrismo ético
da espécie humana; Morin propõe então ensinar ―a ética do gênero humano‖.
Eis os sete saberes. A literatura situa-se dentro de toda essa rede
complexa de conexões própria da condição humana no mundo:
é necessário promover grande remembramento dos
conhecimentos oriundos das ciências naturais, a
fim de situar a condição humana no mundo, dos
conhecimentos derivados das ciências humanas
para
colocar
em
evidência
a
multidimensionalidade e a complexidade humanas,
bem como integrar (na educação do futuro) a
contribuição inestimável das humanidades, não
somente a filosofia e a história, mas também a
literatura, a poesia, as artes... Devemos reconhecer
nosso duplo enraizamento no cosmos físico e na
esfera viva e, ao mesmo tempo, nosso
desenraizamento propriamente humano. Estamos
simultaneamente dentro e fora da natureza
(MORIN, 2000, p. 48)
Retomando a alegoria de Rubem Alves, há um canto da língua que se
enuncia pelo texto literário, uma outra voz, ou língua suplementar. É possível
ensiná-la? Não no sentido de doutrinar, amestrar, encaminhar seu significado.
Fazê-la dessa forma é incorrer naquilo a que se referiu Roland Barthes em
sua aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária, do Collège de France:
(...) por sua própria estrutura, a língua implica uma
relação fatal de alienação. Falar, e com maior
razão discorrer, não é comunicar, como se repete
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
406
com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é
uma reição generalizada. (BARTHES, 1997, p.13).
Certamente, a língua a que se refere Barthes (1997) não é a que
produz a literatura ou é produzida por ela, esta é seu desvio desde o interior
daquela. Então não se ensina literatura a não ser fora dela, fora de seu texto,
fora dessa outra língua. O que é fatal para a literatura pode ser mortal: nomes
de autores, suas biografias, suas obras, seus textos compilados em um estilo
geral, relacionados ao seu contexto, seu uso da língua e as marcas gerais de
sua linguagem. Para além disso, é literatura.
O que se pode ensinar para além desses limites dessa História da
Literatura ou Teoria da Literatura? Certamente o despertar de um espírito
livre e vivo, capaz de produzir campos de significação de uma língua
renovada pela literatura. Talvez aí esteja o maior desafio do cientista da
linguagem, na ultrapassagem da língua natural, ponto este em que a cognição
é desconstruída pelo desafio dessa nova ordem linguística. Deslocamento e
movimentação que mobilizarão sinapses estruturantes de outras realidades.
Afinal trata-se disso, língua, literatura e linguagem que se pluralizam. Os
outros campos de saber, de outras possíveis leituras, deverão permanecer ou
modificar-se segundo sua derivação desse trabalho com a linguagem. O
entendimento da história, da sociedade, da psique, por exemplo, via texto
literário, seguirá um roteiro de linguagem informada em discurso e texto.
A literatura como linguagem produz uma discursividade e
textualidade capaz de ―colonizar‖ outros campos de saber. Seu controle se
deve a outra falha, não a do ensino que está na relação professor-texto-aluno,
mas aquela que pode alterar o cálculo de um outro ensino, o de língua.
Ensinar literatura é um ato-fato de experiência de linguagem dentro e fora da
língua. É uma falha produtiva de uma língua desde o texto literário que a
estranha, atrita. E uma língua estrangeira passa a ser movimentada em torno,
dentro, atravessando nossas familiaridades e confortos de tranquilamente
saber que estamos certos sobre nossos fatos e atos de linguagem dessa língua
conhecida. Algo como a alteração de uma lógica de programação de uma
linguagem utilizada para nos colocar dentro de um sistema linguístico
infalível. Mas quais razões movimentam escritores em todo mundo, em
diversas línguas, em diversos ambientes de saberes e viveres, a ameaçar ou
ainda afirmar, negando, a ―matrix‖ linguística?
Diversidade nem sempre é diferença. Tem-se muitas línguas, mas a
mesma ordem gramatical sintática, semântica, fonética e fonológica. No
entanto há uma ―diferença‖ derridiana produzida em ausência e de difícil
gramaticalização. Tal diferenciação tem sido a da literatura e das artes,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
407
deslocamento e movimento para fora, para dentro e através do centro, mas
sem nomear com a obrigação de determinar o ser como presença. Os
deslocamentos disciplinares em direção ao centro produzem os variados
nomes para uma mesma metafísica da presença, como escreve Derrida em "A
estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas", ao falar dessa
longa jornada do ser das coisas através dos seus nomes em movimento
centrípeto:
[...] toda a história do conceito de estrutura [...] tem
de ser pensada como uma série de substituições de
centro para centro, um encadeamento de
determinações do centro. O centro recebe,
sucessiva e regularmente, formas ou nomes
diferentes. A história da metafísica, como a história
do Ocidente, seria a história dessas metáforas e
dessas metonímias. A sua matriz seria [...] a
determinação do ser como presença em todos os
sentidos desta palavra. Poder-se-ia mostrar que
todos os nomes do fundamento, do princípio, ou do
centro, sempre designaram o invariante de uma
presença (eidos, arche, telos, energeia, ousia
[essência, existência, substância, sujeito], aletheia,
transcendentalidade, consciência, Deus, homem,
etc.). (Derrida 1978, p. 278-80)
Filiação Derrida-Nietzsche que é trazida a fim de descentrar o
ensino-aprendizagem da língua por meio do texto literário. A literatura pode
permitir a crítica da verdade pela pluralidade de sua interpretação; pode
permitir o descentramento da língua pelo estudo da narrativa e poesia;
também pode oferecer a saída e abertura para um comparatismo produtivo
entre artes, entre disciplinas em que o significado é construído da relação. Ter
a possibilidade de a literatura ser o meio pelo qual as muitas formas
particulares estão manifestas na multiplicidade, em confronto com as
fórmulas universalizadoras de discurso e de linguagem; a depender do texto,
possibilitar a leitura de relações mais complexas entre sujeito, discurso e
sociedade.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
408
II
Antoine Compagnon pensa o espaço da literatura na França dos dias
atuais, e ao fazê-lo, ajuda a pensar sobre uma possível crise da literatura:
Pois o espaço da literatura tornou-se mais escasso
em nossa sociedade há uma geração: na escola,
onde os textos didáticos a corroem, ou já a
devoraram; na imprensa, que atravessa também ela
uma crise, funesta talvez, e onde as páginas
literárias se estiolam; nos lazeres, onde a aceleração
digital fragmenta o tempo disponível para os livros.
(COMPAGNON, 2009, p. 21)
Nesse mesmo texto-aula inaugural do Collège de France, de 30 de
novembro de 2006, Antoine Compagnon observa que a indagação ―O que é
literatura?‖, pertinente no passado para a teoria e histñria literária, perdeu a
força e talvez a sua própria razão de ser. Em seu lugar, outra questão,
literatura para quê? – mais crítica e política – sobressai de um contexto de
crise da cultura literária que tinha como modelo dominante, desde o fim do
século XVIII, o casamento entre língua, literatura e civilização.
Principalmente a questão sobre a pertinência da literatura para a vida
– indo ao encontro das indagações levantadas anteriormente através dos
recortes de Nietzsche, Rubem Alves, Barthes e Derrida – deve ser ressaltada,
a partir do que Compagnon observa não se tratar somente de um prazer do
texto, mas de conhecimento, não somente de evasão, mas de ação. Ainda
observa que os anteriores meios de legitimação da literatura, tidos na
autonomia da forma e seu processo de depuração, até o domínio restrito da
obra de arte, são postos em relação com a vida e o mundo.
Compagnon ainda organiza os poderes da literatura em uma diacronia
que parte do clássico como mimesis e conhecimento; percorre o romântico
como reunificação da experiência contra o individualismo utilitarista;
atravessa o moderno como acerto de contas com a língua, subvertendo-a para
emergir o conteúdo latente, obliterado pelo poder da língua como dispositivo
de controle e delimitação dos discursos; e estaciona na recusa de qualquer
poder da literatura, o impoder do pós-moderno. Acrescido à síntese histórica
dos poderes da literatura, tem-se, pelo texto de Compagnon, talvez a maior de
todas as suas traições, o uso menor da literatura, como ato lúdico de leitura,
no ensino-aprendizagem da língua, nas escolas. É recuperando Ítalo Calvino
que ele busca reaver a literatura, restitui-la a sua ação e acontecimento da
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409
vida e do mundo, ensinar a ver a matéria sensível dos seres e das coisas, o
―canto‖ de uma polifonia que sñ a existência estendida para além do território
de si mesmo pode ouvir.
À questão central proposta por Compagnon, literatura para quê?, temse as respostas: para ler melhor o mundo; para uma educação sentimental;
para adquirir consciência histórica, ética e moral; para escrever a história
cultural e das mentalidades pela história do livro e da leitura; para uma
filosofia moral analítica; para transmitir a experiência da alteridade; para
dignificar o homem e compreender a condição humana; para ―construir e
desenvolver um eu autônomo‖ (BLOOM, 2001, p.188); para construir uma
identidade narrativa (RICOEUR, 1994); para limpar a mente dos
conformismos, farisaísmos e convenções (KUNDERA, 2006); para
experimentar os possíveis; para voltar a si depois de longa deriva, e voltar
diferente.
A aula de Compagnon deixa um rastro, o de que todas essas respostas
à questão podem ser apropriadas por outras formas de expressão humana,
artísticas ou não, e que no campo das artes a literatura concorre com a
música, cinema, vídeo, arte digital, formas, objetos e meios artísticos da
sociedade contemporânea audiovisual. E a experiência literária é aquela de
um ato de linguagem dentro e fora da língua, não propriamente da escrita,
mas de sua recepção, mais precisamente o ato de ler. Aqui o fenômeno
literatura é precisado desde essa passagem para um acontecimento da língua,
uma atividade da língua em outro horizonte de linguagem, inteligível e
sensível. E o desfecho de Compagnon é exemplar: ―O exercício jamais
fechado da leitura continua o lugar por excelência do aprendizado de si e do
outro, descoberta não de uma personalidade fixa, mas de uma identidade
obstinadamente em devenir.‖ (p. 57).
A identidade em devenir da leitura de literatura é feita através da
experiência da língua, nesse espaço da língua em atividade poética. E a crise
da literatura é a dessa língua como possibilidade plena de realização. Tal
experiência tem sido reduzida em uma sociedade cuja lógica cultural
predominante é a do consumo de bens e serviços, estéril em relação ao
conteúdo de significação histórica, ética e moral. O que está em transição nos
centros dos quais Compagnon emite sua voz é a etapa histórica da
modernidade à qual a literatura, como experiência dessa língua, se vincula.
Etapa de realização plena dos projetos emancipatórios, inovadores,
renovadores e democratizadores, por meio de secularização do conhecimento,
desenvolvimento da técnica, educação escolar voltada para o cumprimento
dessas fases na formação do indivíduo. Não que cinema, vídeo e
computadores não tenham decorridos desse processo, mas é que a literatura
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era um dos seus elementos estruturantes porque realizava a língua da
civilização, a língua da cultura letrada.
A automatização é geradora de um esvaziamento do discurso,
silenciamento do discurso na língua. Daí a predominância da língua-código
de decifração. Língua de fluxogramas em input e output. Uma crise então da
língua literária que também é de classe, de uma camada da sociedade, letrada,
com ócio suficiente para a leitura de um romance, essa mesma classe que
agora opta em ir ao cinema, ver televisão, navegar na internet. E navega não
para ler, mas para relacionar-se socialmente, marcar a agenda do lazer e do
trabalho, planejar-se ou simplesmente matar o tempo. A literatura, nessa
sociedade, é uma impostura, a vir sobre a forma de esnobismo, às vezes de
relicário, de hierñglifo. E quando se tem um campo de saber como ―histñria
do livro e do leitor‖, é possível pensar se isso tudo não é pertinente.
Escapar do automatismo, ficar dentro do livro, ainda que o livro
esteja na tela do computador. Depois romper a crisálida. Voltar ao tempo dos
acontecimentos depois de ter respirado. Eis a figuração do ato de ler literatura
na pós-modernidade, sem o qual não há como sobreviver à proliferação de
discursos e textos que liquida a existência. Nesse sentido a literatura delira o
mundo e a vida, delirare,5 ela produz realidades ―fora do sulco‖, do curso
normal e rotineiro da vida de todos os dias.
Essa literatura está em crise? Aqui se volta ao ponto de Nietzsche, da
utilidade e do inconveniente da história [literatura] para a vida, de seu
caráter inatual, de estar fora do tempo, contra o tempo, intempestivamente. E
aqui não se trata somente de experiência com a língua senão com existência
fora do tempo. É assim que a literatura pode ensinar o homem a esquecer e,
aterradoramente, lembrar seus fantasmas; o mesmo homem de Nietzsche que
olha o rebanho e se admira de o animal não lembrar, bem como se admira de
si por não ser capaz de esquecer. Ou talvez ensine o homem a brincar, como a
criança de Nietzsche, entre os gradis do passado e do futuro; ensinar a viver a
felicidade de esquecer e lembrar para esquecer. O que a literatura pode
ensinar faz parte das experiências do homem através dos tempos, em que
viver é ser informado pelo mundo até o instante da vontade do primeiro
registro, do primeiro traço que o faz lembrar o caminho de volta, que o faz
retomar o sulco.
5
Do latim delirare: fora do sulco produzido pelo ato de arar a terra. É claro que a
literatura sob essa analogia é desvio e ultrapassagem da língua normativa, da
existência controlada, da realidade opressora que produz o tédio do sempre mesmo,
mais do mesmo. Também de um exercício de resistência e combate contra a ordem
e o poder limitador das liberdades do sujeito.
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411
Nesse sentido, a literatura parece atravessar pelo que o fantástico
passara quando Maupassant escreveu:
Lentement, depuis vingt ans, le surnaturel est sorti
de nos âmes. Il s‘est évaporé comme s‘évapore um
parfum quand la bouteille est débouchée. En
portant l‘orifice aux narines et en aspirant
longtemps, longtemps, on retrouve à peine une
vague senteur. C‘est fini... Dans vingt ans, la peur
de irréel n‘existera plus même dans le peuple des
champs. Il semble que la Création ait pris un autre
aspect, une autre figure, une autre signification
qu‘autrefois. De là va certainement résulter la fin de
la littérature fantastique.6 (1986, p. 07).
O fantástico superou o sobrenatural e outros estatutos de realidade
possibilitaram sua sobrevida, como os estranhamentos oriundos dos estados
psíquicos, dos exotismos provenientes de experiência diversa de seu mundo
familiar, das anormalidades e dos absurdos reais das guerras, dos
colonialismos e do passado que não cessa de produzir seus efeitos de
irrealidade até o presente. O exemplo do fantástico diz sobre as fronteiras
plásticas do real, possível porque a imaginação e o inconsciente produz
realidade nos limiares, nessas zonas próprias dos atritos.
E isto é uma lei universal; cada vivente só pode
tornar-se saudável, forte e frutífero no interior de
um horizonte; se ele é incapaz de traçar um
horizonte em torno de si, e, em contrapartida, se ele
pensa demasiado em si mesmo para incluir no
interior do próprio olhar um olhar estranho, então
6
(Lentamente, há vinte anos, o sobrenatural saiu de nossas almas. Evaporou como
evapora um perfume em que a garrafa está destampada. Levando a abertura às
narinas e aspirando por longo tempo, por longo tempo, encontra-se apenas uma
vaga essência. É o fim... Em vinte anos, o medo do irreal não existirá mais mesmo
entre os camponeses. Parece que a Criação tomou um outro aspecto, uma outra
figuração, um outro sentido que de outrora. Daí vai certamente resultar o fim da
literatura fantástica). Esta é uma citação que está no prefácio André Fermigier, ao
livro Le Horla, de Maupassant.
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412
definha e decai lenta ou precipitadamente em seu
ocaso oportuno. (NIETZSCHE, 2008, p. 11)
Antoine Compagnon tem razão ao observar que a literatura não é a
única a encenar tudo isso. Mas certamente é anterior a muitas formas de
encenação, figuração, mimesis ou poiesis contemporâneas. E não mais a
língua é o elemento distintivo, mas a ―palavra‖. Com sua natureza vicária de
signo, a palavra ―elide sujeito e objeto‖7 em som, imagem e ritmo, seja nas
linhas da narrativa ou nas composições das formas da poesia. Tal natureza
vicária recende à essência antiga inferida pelo excerto citado de Maupassant,
de modo que ao ver um filme, ao assistir a uma peça de teatro, à telenovela;
ou ao ouvir as canções, um texto em palavras subjaz, um pensamento em
palavras. Sob as cidades, as palavras vivem em estado de latência. Escrever o
mundo e a vida com sons e pedras tem sido há muito tempo literatura.
Certamente a literatura é ameaçada quando dentro de um sistema
social cuja ordem é produção, circulação e consumo de uma mercadoria. E o
que deverá medir seu valor é quantitativo, o que deverá colocar em evidência
a obra literária é a melhor estratégia de propaganda, plano de marketing,
consórcio com outras mídias, de forma que se consuma o livro, não
necessariamente lido, mas vendido. E certamente desde que se forjaram as
massas, e que se viu seu alto potencial para concentrar e intensificar a tolice,
a estupidez e a idiotice, a cultura tem sido conveniente à lógica do mercado,
porque o homem de rebanho é como o animal que pasta de lá para cá e é feliz
(NIETZSCHE, 2008, p. 7). Tornar o livro de massa é empreendimento
impossível, tornar a literatura – de que se tem falado aqui nesse texto – de
massa é o ápice do romantismo comunal, e se isso algum dia acontecesse, terse-ia que duvidar do estatuto desse literário.
O tempo da literatura é precário, por isso valioso, demanda atenção,
dedicação e amor, no sentido de que quem a lê se dá completamente. Isso é
fato, a precariedade do tempo é aguda quanto mais o homem tem tempo
disponível proporcionado pela crescente maquinização e automatização da
sociedade contemporânea, curioso paradoxo esse da condição pós-moderna.
Tem-se as máquinas mais rápidas e eficientes, o processamento mais rápido,
a maior quantidade de informação, no entanto não é possível dar conta de
tudo. E o próximo produto da vitrine não pode esperar pelo tempo do leitor. É
essa insuficiência de tempo que também esvazia o campo das relações entre
7
De ―Procura da Poesia‖, poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no
livro de poemas A rosa do povo, de 1945.
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literatura-livro e os leitores porque torna precária a atividade de crítica, capaz
de oferecer as pertinências deste ou daquele texto.
E aqui a última citação de Nietzsche, ambígua, pode ser recuperada.
No meio desse rebanho, cada vez mais é necessário saber traçar o horizonte,
sob pena de cair por completo ou no eterno esquecimento, ou na eterna
lembrança. Viver no limiar portanto. Quem ensina? Mais de uma língua
dentro da língua; mais de um país dentro do país; mais de um eu dentro do
eu; mais de uma natureza dentro do ser; mais de uma lógica dentro da razão.
E muitas vezes parece ser tudo repetição do mesmo. Onde está a diferença?
A literatura é aquela espécie de Vampyroteuthis de que fala Vilém
Flusser, sua natureza é do tipo da dos entes que buscam imortalizar-se dentro
dos outros através dos objetos (FLUSSER e BEC, 2011). Eis o que a
literatura tem a oferecer, uma vida dentro de outra, expressa pelos objetos
dessa outra vida, para traçar os horizontes sem receio do estranho.
Finalmente, é possível ensinar com a literatura, e como a literatura
intempestiva, a traçar os horizontes? A se posicionar ou plasmar-se dentro do
outro, em outra natureza? Viver fora do tempo, vicariamente? Certamente, na
era da exaustão do mesmo, e do paroxismo da repetição pela técnica, em que
a escola não ativa seus signos, em que a sociedade de consumo legitima o
livro, em que a crítica inexiste, em que os círculos acadêmico-científicos
congregam-se, o desafio da literatura está posto. Sua única arma é a
intempestividade.
UNTIMELY LITERATURE
ABSTRACT: The paper deals with the crisis of literature in the current
context. The objective is to think literature from a specific philosophical
clipping in which the untimely nature and function of literature is confronted
with the context of the current crisis. It does that by taking as a starting point
and primary masterplan thinking about untimely in Nietzsche's work
constantly Second Consideration Untimely, with additions and relevant
considerations coming from the philosophy and theory of literature
concerning the subject. It defends the thesis that what is in crisis is the
literature as a privileged instance of discursive and literate society, now
confined to schools, universities and academic and scientific circles.
Nevertheless, the literature has the vicarious power to mimic itself and to
mimic the shape of the other, making the conclusion that it is necessary to
teach to read this literature.
keywords: Untimely literature: Crisis:Teaching
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414
REFERÊNCIAS
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Vestibulares. São Paulo: Ars Poética, 1995.
BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Editora Cultrix, 1997.
BLOOM, Harold. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O‘Shea.
Revisão de Maria Miranda O‘Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê?.Tradução de Laura Taddei
Brandisi. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.
FLUSSER, Vilém e BEC, Louis. Tradução: Daniel P. P. da Costa; São Paulo:
Annablume, 2011 (ilustrações: Louis Bec).
KUNDERA, Milan. A cortina: ensaio em sete partes. Tradução de Teresa
Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução
de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya, revisão técnica de Edgard
de Assis Carvalho. – 2. ed. – São Paulo : Cortez ; Brasília, DF : UNESCO,
2000.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Da utilidade e do inconveniente da
história para a vida. Trad. Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São
Paulo: Escala, 2008.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Costança Marcondes
César. Campinas: SP: Papirus, 1994.
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415
Holocausto, representação e trauma em Quero viver... memórias de um
ex-morto, de Joseph Nichthauser: a literatura de testemunho no Brasil
Lizandro Carlos CALEGARI1
Vanderléia de Andrade HAISKI2
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo realizar uma breve reflexão teórica
acerca da modernidade e de um dos acontecimentos mais violentos e
traumáticos deste período: o Holocausto. Além disso, pretende-se verificar
como tal episódio é representado através da literatura de testemunho e, por
fim, trazer um exemplo de um relato de testemunho, Quero viver... memórias
de um ex-morto (1976), obra de autoria do judeu-brasileiro Joseph
Nichthauser, que narra suas memórias como vítima do Holocausto. A análise
do livro, considerando-se a perspectiva do trauma e da representação,
evidenciou que a tentativa de reduzir o relato em lógicas lineares, falsearia a
dimensão do evento. Para o embasamento desta proposta, servirão como
suporte teórico as obras de autores como Alain Touraine, Zygmunt Bauman e
Márcio Seligmann-Silva. Assim, é possível refletir sobre um dos mais
terríveis fenômenos da modernidade e a sua representação.
PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Holocausto. Trauma. Literatura de
testemunho.
Depois de tempos de desastres e de
grandes infelicidades; quando os povos
fatigados começam a respirar. Então as
imaginações, abaladas pelos espetáculos
terríveis, pintam coisas desconhecidas,
para aqueles que não foram testemunhas.
(Denis Diderot)
Pensar a modernidade implica refletir, dentre outros aspectos, sobre
seu propósito primário e os eventos que caracterizaram este período. A
modernidade, além de ser um período marcado pelo desenvolvimento
1
Prof. Dr. DLLA, PPGL / URI-FW, Frederico Westphalen, RS, Brasil, CEP: 98400000, E-mail: [email protected]
2
Mestranda, PPGL / URI-FW, Frederico Westphalen, RS, Brasil, CEP: 98400-000,
E-mail: [email protected]
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
416
científico, tecnológico e das formas de produção, foi também um período
assinalado por grandes catástrofes, em que a evolução da técnica também foi
empregada em atos bárbaros. Este trabalho tem por objetivo verificar alguns
aspectos teóricos concernentes à modernidade e a um dos fenômenos mais
marcantes e brutais deste período: o Holocausto. Além disso, pretende-se
avaliar a tentativa de representação desse acontecimento através da literatura
de testemunho e, por fim, apresentar um breve exemplo de relato de
testemunho produzido no Brasil, intitulado Quero viver... memórias de um
ex-morto (1976), obra de autoria do judeu-brasileiro Joseph Nichthauser, que
narra suas memórias como vítima do Holocausto.
Na sua forma mais ambiciosa – e também contestada pelos críticos –,
a ideia de modernidade foi, segundo Alain Touraine (1999, p. 9) a afirmativa
de que ―o homem é o que ele faz‖. Assim, deveria existir uma relação cada
vez mais próxima entre a produção, melhorada por meio da ciência,
tecnologia ou administração, e a organização da sociedade, regida pela vida
pessoal e a lei, animada tanto pelo interesse quanto pela vontade de se libertar
de todas as opressões, especialmente as relacionadas à religião, que até então
interferiam na vida privada. Nesse sentido, a sociedade moderna seria uma
sociedade de indivíduos livres, que repousa sobre o triunfo da razão. É esta
que motiva a ciência e o seu emprego, bem como conduz a adequação da vida
social, as necessidades individuais e coletivas e substitui a arbitrariedade e a
brutalidade pelo Estado de direito e pelo comércio.
Conforme a noção de modernidade acima mencionada, se a
sociedade operasse conforme suas próprias leis, ela avançaria ao encontro do
sucesso, conquistando abundância, liberdade e felicidade. Contudo, ―[a]
afirmação de que o progresso é o caminho para a abundância, a liberdade e a
felicidade e que estes três objetivos estão fortemente ligados entre si, nada
mais é que uma ideologia constantemente desmentida pela histñria‖
(TOURAINE, 1999, p. 9). Em oposição a esse conceito mais ousado de
modernidade, há ainda uma visão mais modesta sobre ela, que pretende
escapar às críticas: ―o apelo à razão não funda nenhum tipo de sociedade; é
uma força crítica que dissolve os monopólios como os corporativismos, as
classes ou as ideologias‖ (TOURAINE, 1999, p. 11).
A ideia de modernidade, da sua forma mais ousada à sua forma mais
branda, quando definida pela aniquilação das ordens antigas e pelo domínio
da racionalidade, objetiva ou instrumental, perdeu sua força libertadora e de
criação. Assim sendo, Touraine propõe uma nova definição de modernidade e
interpretação da histñria ―moderna‖ nos seguintes termos:
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417
[a] modernidade rompeu o mundo sagrado que era
ao mesmo tempo natural e divino, transparente à
razão e criado. Ela não o substituiu pelo mundo da
razão e da secularização devolvendo os fins últimos
para um mundo que o homem não pudesse mais
atingir; ela impôs a separação de um Sujeito
descido do céu à terra, humanizado, do mundo dos
objetos manipulados pelas técnicas. Ela substituiu a
unidade de um mundo criado pela vontade divina, a
Razão ou a História, pela dualidade da
racionalização e da subjetivação (1999, p. 12).
A modernidade possibilitou o rompimento com o sagrado na medida
em que o colocou como parte da vida privada dos indivíduos, e não como
forma de dominação social como era concebido até então. A noção de
modernidade substitui Deus do centro da sociedade pela ciência, reservando
as crenças religiosas para a esfera da vida familiar. Dessa forma, a
modernidade possibilitou a separação da vida pública e da vida privada, além
de difundir a produção da atividade racional, científica, tecnológica e
administrativa. Isto provoca a progressiva distinção entre os diversos setores
da sociedade tais como a política, a economia, a vida familiar, religião, e a
arte em particular, ―porque a racionalidade instrumental se exerce no interior
de um tipo de atividade e exclui que qualquer um deles seja organizado no
exterior‖ (TOURAINE, 1999, p. 17).
Além do mais, Touraine (1999) menciona que a atividade intelectual
deve estar protegida de qualquer influência, seja ela política ou religiosa. E
que a vida pública e a vida privada sejam separadas, bem como suas fortunas
e administrações. Quanto às leis, estas devem ser imparciais, protegendo a
sociedade contra o clientelismo, o nepotismo e a corrupção (p. 18). O que
deve prevalecer, na modernidade, é a racionalização.
Ainda de acordo com o mesmo autor, um componente fundamental
da ideologia clássica da modernidade é a sociedade como fonte de valores,
isto é, o bem é útil enquanto o que é considerado mal prejudica a integração e
a eficácia da sociedade. Há a formação de um novo pensamento político e
social. Nessa perspectiva, o papel exercido por Deus – ou pela religião – na
sociedade, de princípio de juízo moral, é substituído, e a própria sociedade
torna-se um princípio de avaliação e explicação de condutas. Assim, a ciência
social surge na forma de ciência política.
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418
Considerando a ideologia clássica da modernidade, a ordem social
deve basear-se apenas na liberdade de decisão do ser humano, fazendo dele o
princípio do bem e do mal. Os princípios que regem a sociedade deixam de
estar a cargo de um representante de Deus ou da natureza. O ser humano
passa a dirigir a sua própria vida e estabelecer seus princípios, conforme
julgar adequado.
Segundo Rousseau (apud TOURAINE, 1999, p. 25), existe uma
ordem natural na qual o homem deve estar inserido, que visa a atender as
questões mais gerais da sociedade, e, quando o homem se distancia dessa
ordem com o intuito de atender a seus desejos e ambições, ela passa para o
campo do mal, que separa e opõe os indivíduos. Desse modo, o indivíduo
deve pensar na coletividade ou no funcionamento social, visando o que é bom
ou prejudicial à sociedade como um todo, e não olhar além da sociedade, na
direção de Deus ou de sua individualidade. Contudo, Rousseau defende um
consenso entre a união e a vontade, para que se tenha uma liberdade menos
revolta contra a ordem social do que a submissão à ordem natural.
Assim, vale ressaltar que a visão clássica de modernidade foi ―antes
de tudo a construção de uma imagem racionalista do mundo que integra o
homem na natureza, o microcosmo no macrocosmo, e que rejeita todas as
formas de dualismo do corpo e da alma, do mundo humano e da
transcendência‖ (TOURAINE, 1999, p. 37). Entretanto, é importante destacar
que a ideia de modernidade não busca seu ânimo em sua utopia positiva, ou
seja, na constituição de um mundo racional, mas sim em sua função crítica.
Touraine faz uma importante observação quando trata sobre a modernidade,
pois, para ele,
[a] modernidade não repousa sobre um princípio
único e menos ainda sobre a simples distribuição
dos obstáculos ao reinado da razão: ela é feita do
diálogo entre a Razão e o Sujeito. Sem a razão, o
sujeito se fecha na obsessão da sua identidade; sem
o Sujeito, a razão se torna o instrumento do poder
(1999, p. 14).
Por esse viés, é importante dar ênfase ao diálogo entre o sujeito e a
razão, pois, se tomada como princípio somente a razão, esta pode tornar-se
instrumento de poder e de dominação. Nesse sentido, há um forte
questionamento dos críticos em relação à racionalização ou ao que chamaram
de ―reino da razão‖, sobre o qual argumentam: ―não é em nome da razão e da
sua universalidade que se estendeu a dominação do macho ocidental, adulto e
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
419
educado no mundo inteiro, sobre trabalhadores e colonizados e sobre
mulheres e crianças?‖. Afora isso, questiona-se ―[c]omo tais críticas não
seriam convincentes no final de um século dominado pelo movimento
comunista que impôs a um terço do mundo regimes totalitários baseados na
razão, na ciência e na técnica?‖ (TOURAINE, 1999, p. 10). Nessa mesma
perspectiva, é válido pensar sobre a racionalidade exercida em um dos
fenômenos mais terríveis ocorridos na modernidade: o Holocausto e as
milhares de pessoas vitimadas.
Faz parte do conhecimento geral que a tentativa de decifrar o
Holocausto como uma barbárie cometida por criminosos natos, sádicos,
loucos, depravados sociais ou qualquer outro tipo de insanidade moral não
encontra respaldo nos fatos envolvidos. As pessoas que participaram dos atos
cruéis do Holocausto poderiam ser compreendidas, segundo Zygmunt
Bauman (1998, p. 39) como pessoas normais da ―ação racional moderna‖.
Em tal perspectiva, Bauman afirma que ―a maioria dos que executaram
genocídio eram pessoas normais, que passariam facilmente em qualquer
peneira psiquiátrica conhecida por mais densa e moralmente perturbadora‖
(1998, p. 39). Assim, é intrigante pensar e compreender teoricamente que as
instituições responsáveis pelo Holocausto, mesmo sendo criminosas, não
eram, no sentido sociologicamente legítimo, patológicas, tampouco anormais.
Portanto, é importante ter um olhar atento para esses padrões supostamente
compreendidos como normais.
Bauman cita a célebre frase de Hannah Arendt, na qual afirma que o
problema foi ―como superar... a piedade animal que afeta todos os homens
normais na presença do sofrimento físico‖ (1998, p. 39). O que é considerado
humano, dentro do que a sociedade reconhece como normalidade, revela-se
em atos cruéis e desumanos, transformando indivíduos normais em
assassinos ou participantes conscientes do processo de extermínio. Assim, a
questão do Holocausto coloca em evidência uma questão perturbadora de
ordem social: a luta em torno de questões morais. A questão moral envolve
grande complexidade ao fazer pensar fatos como o genocídio, que
envolveram um número grande de pessoas que ―nunca enfrentaram
conscientemente no processo nem opções morais difíceis nem a necessidade
de reprimir uma resistência interior de consciência‖ (BAUMAN, 1998, p.
44). Além disso, a problemática acerca dessa questão dá-se em função de que
―a luta em torno de questões morais nunca tem lugar, pois os aspectos morais
das ações não são imediatamente óbvios ou sua descoberta e discussão são
deliberadamente evitadas. Em outras palavras, o caráter moral da ação é
invisível ou propositalmente encoberto‖ (BAUMAN, 1998, p. 44).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
420
Deve-se lembrar, portanto, que a maioria dos participantes do
genocídio não conduziram diretamente crianças às câmaras de gás ou
atiraram nos trabalhadores dos campos de concentração. Grande parte dos
burocratas elaborou memorandos, redigiu planos, atendeu a telefonemas e
participou de conferências, tendo, desse modo, a capacidade de destruir todo
um povo, sentados em seus escritórios, sem sujar suas mãos (BAUMAN,
1998, p. 44). Com isso, muitos dos atos que conduziram ou foram
responsáveis pelos genocídios não tiveram quem os assumissem
conscientemente, expondo, assim, a cegueira moral estarrecedora que pairava
sobre grande parte da sociedade. Além disso, os nazistas se sobressaíram
através de um método que eles conseguiram aperfeiçoar em um grau sem
precedentes: ―o método de tornar invisível a prñpria humanidade das vítimas‖
(BAUMAN, 1998, p. 46). E, nessa perspectiva, se não há ―humanidade‖ nas
vítimas, não há também o compromisso ou obrigação moral e, pode-se
acrescentar, ético, de protegê-las.
O século XX pode ser pensado como um período marcado por
massacres e guerras, verdadeiras catástrofes que, na maioria dos casos,
continuam vivas na memória coletiva da humanidade. Entre os diversos
massacres ocorridos, é válido considerar a sociedade do século XX como a
sociedade da ―pñs-Primeira Grande Guerra, pós-Segunda Guerra Mundial,
pós-Shoah, pós-guerras de descolonização, pós-massacres no Cambodja [...].
Mas esse prefixo ‗pñs‘ não deve levar a crer, de jeito nenhum, em algo
prñximo do conceito de ‗superação‘, ou ‗de passado que passou‘‖, conforme
chama a atenção Márcio Seligmann-Silva (2005, p. 63). Essas experiências
traumáticas conservam-se na memória e no cotidiano de muitas sociedades.
Esses eventos, capazes de massacrar toda uma sociedade, através dos
variados meios de comunicação, repercutem no mundo inteiro, afetando
direta e indiretamente toda humanidade. Dessa forma, a mídia, ao mesmo
tempo em que reproduz essas catástrofes, muitas vezes apenas com o intuito
de informar, também é uma multiplicadora do trauma (SELIGMANNSILVA, 2005, p. 64).
Nessa perspectiva, Seligmann-Silva destaca que o ―elemento
traumático do movimento histórico penetra nosso presente tanto quanto serve
de cimento para nosso passado, e essas categorias temporais não existem sem
a questão da sua representação‖. O autor ainda acrescenta que a
representação dessas categorias acontece através do jornal, cinema, artes,
televisão, e até mesmo na fala cotidiana e em gestos, sonhos e silêncios,
chegando, enfim, na literatura (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64). Essas
situações violentas ou catastróficas originaram um novo tipo de literatura. Do
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421
desejo ou necessidade de narrar essas situações extremas e traumáticas, surge
a literatura de testemunho, que ganhou maior ênfase depois de Auschwitz.
Na tentativa de melhor esclarecer o que compreende a literatura,
Antoine Compagnon (2001, p. 30) relembra dois regimes literários
complementares sugeridos por Genette: o regime constitutivo e o regime
condicional. O primeiro regime sugere à literatura um sentido mais restrito,
de acordo com as convenções, limitando a literatura a seu sentido clássico, no
qual um soneto ou um romance sempre serão classificados como literatura,
independentemente da aceitação ou do número de leitores que ele tenha. Já o
regime condicional abrange um conceito mais amplo de literatura, pois é
dependente de uma estimação ou análise revogável, com caráter de sanção
provisória, dependendo do período histórico que se passa. Assim, o que não é
considerado literatura para o constitutivo, pode ganhar status de obra literário
no regime condicional, como, por exemplo, o romance reportagem, a
autobiografia, o romance de formação e o relato de testemunho.
Com relação ao relato de testemunho, este está intimamente
relacionado com um determinado período sócio-histórico, do qual vítimas e
testemunhas de catástrofes sentem a necessidade de narrar suas experiências.
É válido afirmar que a literatura de testemunho é ―um modo literário de
reagir à brutalidade de nossa histñria‖ (FRANCO, 2003, p. 306). Pode-se
dizer que Auschwitz foi o marco central da literatura de testemunho e que,
desde então, questões como o trauma e a memória de eventos como o
Holocausto adquiriram uma dimensão difícil de narrar, pois tais atrocidades
por vezes não encontram nas palavras suporte necessário para expressar os
sentimentos envolvidos nas experiências vividas. E, quando se fala em narrar
tais experiências sob a ótica literária, é imprescindível refletir entre a
linguagem, a ficção e o real. O relato de testemunho promove o cruzamento
entre a necessidade de narrar e a impossibilidade de essa narrativa expressar
de forma satisfatória os eventos sofridos pela testemunha.
De acordo com Seligmann-Silva, por meio da literatura de
testemunho, dá-se a articulação entre a angustiante necessidade de narrar
experiências e a percepção de que a linguagem é insuficiente diante de fatos
inenarráveis e do aspecto inimaginável desses acontecimentos e,
consequentemente, sua inverossimilhança (2003, p. 46). O conceito de
literatura de testemunho conduz os teóricos a repensar a relação entre a
literatura e a realidade na medida em que
[a] literatura de testemunho é mais do que um
gênero: é uma face da literatura que vem à tona na
nossa época de catástrofes e faz com que toda a
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história da literatura – após 200 anos de
autorreferência – seja revista a partir do
questionamento da sua relação e do seu
compromisso com o ―real‖ (SELIGMANN-SILVA,
2003, p. 373).
Nesse sentido, a questão principal não é afirmar o que é realidade ou
não. Segundo Northrop Frye (1957, p. 78), uma obra literária não pode ser
caracterizada como verdadeira ou falsa, pois não é essa a sua pretensão.
Assim como se verifica a partir da história ou da narrativa de um
acontecimento, não se pode afirmar que tal versão seja verdadeira ou falsa,
pois cada pessoa tem uma percepção, leitura e interpretação próprias dos
acontecimentos que o cercam. O fundamental é a capacidade de percepção e
simbolização do real, ou seja, a verossimilhança. Quando uma situação
traumática é narrada tal qual a realidade, o relato pode ser considerado
―absurdo‖ (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 51). Assim, ela perde a
característica basilar da obra literária: a verossimilhança. Segundo
Seligmann-Silva (2003, p. 50), ―o real resiste ao simbñlico‖ e é
especialmente quando o real é demasiadamente monstruoso e inenarrável que
se dá essa resistência.
Nesta perspectiva, é razoável questionar como conferir ao absurdo ou
ao ―inenarrável‖ um sentido admissível. É válido ressaltar o tripé aristotélico,
o qual é regido pela verdade, o belo e o bom. A narrativa de um evento
traumático, por si só, pode ser considerada portadora de verdade. Contudo,
apenas a verdade não é suficiente para tornar a narrativa verossímil. Faz-se
necessário uni-la à noção de belo (estético) e à noção de bom (ética).
Diferentemente do romance, o relato de testemunho dá, de um modo geral,
maior ênfase à ética do que a estética, mas ambos devem estar presentes.
Seligmann-Silva relembra a afirmação de Aristóteles, que declara que ―devese preferir o que é impossível, mas verossímil, ao que é possível, mas não
persuasivo‖. Desse modo, aliando o relato de testemunho (verdade) ao bom
(ético) e ao belo (estético), o que apenas com a verdade era absurdo, ganha
um sentido aceitável, verossímil, pois a literatura é a linguagem com poder de
convencimento. De acordo com Márcio Seligmann-Silva (2005, p. 110),
a literatura do testemunho [...] talvez seja uma das
maiores contribuições que o século XX deixará
para a rica história dos gêneros literários. Nesse
sentido ela é uma filha da própria história: pois
nunca houve um século com tantos morticínios de
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populações inteiras como esse. E mais: essa
literatura difere das duas grandes linhas que
governaram a produção literária até hoje: ela não
visa nem a imitação (da natureza, da história, ou
mesmo de ideias) nem a criação ―absoluta‖ (como
na doutrina romântica que levou à busca da ―arte
pela arte‖). Nem privilégio do sujeito, nem do
objeto: antes ela implica uma apropriação das lições
do Romantismo (e da ironia romântica: não existe
um eu estável, nem um mundo independente de
nós, nem uma linguagem independente do mundo)
e a afirmação da necessidade de se construir um
passado que está fadado a ficar em ruínas (a estética
das ruínas, aliás, como é bem conhecido, também é
romântica nas suas origens). Indivíduo e mundo são
construídos simultaneamente através dessa
literatura.
A literatura de testemunho difundiu-se pelos diversos países que
tiveram eventos violentos ou que acolheram as vítimas de catástrofes, como,
por exemplo, o Brasil, que recebeu imigrantes judeus em busca de refúgio no
país. A temática judaica teve seu ingresso na literatura brasileira, em meados
do século XX e em língua portuguesa, como uma reação literária aos
problemas típicos decorrentes da imigração. É uma escrita com
características próprias, que trata de tópicos pertencentes à cultura judaica e,
muitas dessas escritas estão relacionadas às experiências de judeus em
território brasileiro. No Brasil, as escritas envolvendo a temática judaica
englobam obras ficcionais e relatos de testemunho. Quanto à classificação de
uma obra literária como inserida nessa temática, segundo Regina Igel (1997,
p. 7), cabe enfatizar:
reconhece-se um tema como judaico quando o
conflito principal de uma obra estiver
expressamente ligado ao judaísmo quanto a sua
gênese e à vivência física, mental, espiritual e
psicológica de quem a escreve. Essa condição deve
encontrar-se tanto na manifestação literária
ficcional quanto na poética, dramática e na crônica,
como também na semificcional e em depoimentos.
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424
Além disso, os textos nos quais prevalece a temática judaica e
escritos por autores judeus não são, em sua maioria, reconhecidos como
trabalhos modelares ou exemplos de construção refinada. E tampouco muitos
dos autores se definem ou aspiram ser escritores profissionais, e alguns até
fogem do termo escritor, pois não almejam uma profissionalização como tal
(IGEL, 1997, p. 7). Porém, apesar dessa resistência, a escrita judaica é digna
de ser analisada como integrante do mundo literário e do imaginário
brasileiro.
Tratando-se da temática judaica na literatura brasileira, cabe destacar
a literatura de testemunho. Neste tipo de literatura, a transmissão da memória
pessoal para a cultural é um fator essencial. E para a transmissão das
experiências violentas sofridas, como o Holocausto, ―precisamos de todas as
nossas instituições de memória: da escrita histórica tanto quanto do
testemunho, do testemunho tanto quanto da arte‖ (HARTMAN, 2000, p.
215). Assim, a história se funde com a arte e a imaginação, para que num
processo de rememoração tais circunstâncias sejam narradas.
Toma-se aqui como exemplo de literatura de testemunho a obra
Quero viver... memórias de um ex-morto (1976), de autoria do judeubrasileiro Joseph Nichthauser, que relata suas memórias como vítima do
Holocausto. No relato de testemunho de Nichthauser, o autor começa o
prñlogo de sua obra declarando que não é seu anseio ―mostrar ao mundo algo
novo, ou tentar justificar quem quer que fosse, pois já se escreveu muito
sobre esse tema‖ (NICHTHAUSER, 1976, p. 11). Tampouco sua ambição é
produzir uma obra literária, pois em seguida, na mesma página, afirma que
―existem livros que descrevem de maneira muito literária o heroísmo dos
soldados aliados, dos sacrifícios inúteis dos soldados inimigos e das
atrocidades cometidas nos campos de concentração‖. Sua pretensão é, pois,
apenas descrever os vários aspectos de sua história como sobrevivente do
Holocausto.
Nichthauser, aos 11 anos incompletos, assistiu à invasão da Polônia,
sua terra natal, pelos exércitos alemães, em 31 de agosto de 1939. A partir
daí, passou por vários campos de concentração, como os de Auschwitz,
Gross-Rosen e Buchenwald, de onde foi liberto pelo exército americano.
Durante sua trajetória pelos campos de concentração, viu sua família ser
exterminada, ao passo que, apenas ele, em suas próprias palavras,
―milagrosamente‖, conseguiu sobreviver, ganhando a liberdade aos dezesseis
anos e meio.
A obra de Nichthauser, de acordo com seu prefaciador Hugo
Schlesinger, é ―o primeiro relato escrito em português e aqui no Brasil‖
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
425
(1976, p. 6). Seligmann-Silva concorda com essa afirmação e destaca que o
trabalho de ―Nichthauser é talvez o mais bem escrito da literatura de
sobreviventes produzida no Brasil‖ (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 143).
Nichthauser demonstra a preocupação em proporcionar ao leitor a impressão
de realidade em cada parte de sua obra, tanto que, no prólogo de seu livro, o
autor destaca que ―os personagens deste livro são todos reais e com nomes
certos‖ (NICHTHAUSER, 1976, p. 11). No decorrer da obra, o autor
preocupa-se em fazer uma descrição extremamente detalhada das situações
por ele vivenciadas, com o intuito de transmitir a sensação de realidade no
seu relato. Seligmann-Silva (2007, p. 143) destaca ainda que
[o] autor consegue o desafio de narrar sua história e
construir um livro de ―memñrias‖, como ele o
denomina, com uma forte estrutura narrativa e
literariamente muito bem resolvido. A narrativa em
primeira pessoa, típica do registro da escrita dos
sobreviventes, é mantida, mas ao mesmo tempo o
autor reconstrói diálogos e situações cotidianas nos
seus mínimos detalhes, gerando um forte ―efeito de
realidade‖ no leitor.
Nichthauser não descreve sua vida após a libertação dos campos de
concentração. Seu relato se concentra no período em que passou como
prisioneiro, em diversos locais, suportando privações, trabalhos pesados,
pouco descanso, o rigoroso regime interno dos campos e o eminente risco de
morrer. Diante de uma situação tão violenta e traumática, Nichthauser perdia
toda a esperança e expectativa em relação à liberdade e ao futuro. Só existia
um presente em que o tempo não tinha mais o mesmo sentido, ―o tempo não
estava sendo medido em horas, minutos ou segundos. O tempo não
significava nada para todos. Tudo fora reduzido à simples eternidade.
Comecei a compreender que um minuto representa a mesma coisa que uma
hora ou cem horas‖ (NICHTHAUSER, 1976, p. 164). Nichthauser descreve
como a apatia tomara conta dele e os homens foram reduzidos à animalidade:
[a]ndei totalmente apático e indiferente a tudo.
Nem o troar dos canhões bem próximos me
animava. Há dias não havia qualquer distribuição
de alimentos, e padecíamos de tonteira. O animal
saía do homem. Andávamos naquela lama pegajosa
e fria, num vai-e-vem constante, sem objetivo. Não
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426
sabia o que fazer comigo. Aproximei-me da cerca,
olhava para longe, para os vilarejos espalhados lá
embaixo, ao pé da colina. Veio-me ao pensamento
o livro O último dos Moicanos, que lera antes da
guerra. Sentia-me abandonado e infeliz como o
principal personagem do livro. Sou o último dos
Nichthausers. [...] Viver ou não viver
(NICHTHAUSER , 1976, p. 228).
O texto de Nichthauser traz várias reflexões acerca do que sofreram
os judeus europeus, desde o sentimento de desolação, quando o autor declara
que ―aquele dia foi semelhante aos outros. Nada mais tinha importância.
Sabíamos o que estava nos esperando‖ (NICHTHAUSER, 1976, p. 228), até
a percepção da indiferença dos que conheciam, mas ignoravam, as condições
dos judeus. O autor enfatiza essa indiferença ao relatar sua visão de uma
cidade, a qual observou de uma estação trem: ―[u]ma vez fora do vagão,
fomos imediatamente isolados dos transeuntes que passavam sem nos ver‖
(NICHTHAUSER, 1976, p. 106). De acordo com o ensaio ―O narrador‖, de
Walter Benjamin (1985, p. 198), narrar implica a capacidade de trocar
experiências e, na obra de Nichthauser, o autor se esmera em detalhar
justamente o que o conduziu à produção de sua obra: suas experiências não
apenas particulares, mas também da percepção que tinha da experiência dos
que, juntamente com ele, eram prisioneiros:
[f]iquei entre os cem. Senti uma tristeza enorme
invadir-me. [...] agora compreendia muito bem
todos aqueles que tinha visto morrer na forca, a
pauladas, de frio ou a balas. Eles nunca suplicaram
por piedade ou pela vida. Nunca ouvi gritos a não
ser de dor. Todos recusavam esta satisfação a eles:
pedir piedade (NICHTHAUSER , 1976, p. 229).
Benjamin (1985) também argumenta, no texto ―Experiência e
pobreza‖, sobre a dificuldade de encontrar pessoas que saibam narrar as
histórias como elas deveriam ser narradas (p. 115). Ao observar combatentes
que voltavam das terríveis experiências de guerra, notou-se que, embora
tivessem vivenciado muitos eventos, eles voltavam mais pobres em
experiências comunicáveis. Assim, os livros que abasteceram o mercado
durante a década seguinte a 1918 não possuem experiências passíveis de
serem transmitidas de boca em boca, pois a experiência da guerra é
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extremamente desmoralizadora (BENJAMIN, 1985, p. 115). Dessa forma,
percebe-se a dificuldade em narrar eventos violentos, traumáticos e que
expõe a degradação humana. Nesse sentido, Nichthauser declara: ―[q]ue mais
poderei dizer? Não existem palavras exatas para descrever tudo que nossos
olhos viram e o que nossos ouvidos escutaram‖ (NICHTHAUSER, 1976, p.
13). Dá-se, então, a tentativa de tornar aceitável e compreensível aos leitores
os relatos de tais experiências.
Nas obras de ficção sobre o Holocausto, de maneira universal, há um
consenso no reconhecimento deste evento como um período de terror,
violência e extremamente desumanizador. Quanto à literatura de testemunho,
cabe questionar qual posição esta ocupa. Segundo Regina Igel (1997, p. 2389), o tema do Holocausto, desenvolvido literariamente por sobreviventes aqui
refugiados, como a obra de Nichthauser, ―poderia inserir-se na literatura
brasileira ao lado de categorias já formalizadas, como o romance e o conto‖.
Contudo, existem várias questões, como as de ordem éticas e estéticas, que
merecem ser averiguadas para entender a questão de localização das diversas
narrativas sobre o Holocausto.
Ainda no âmbito desta questão, a pergunta que se coloca é a seguinte:
por que é importante para Joseph Nichthauser narrar o seu passado? A
resposta pode ser dada com base nos argumentos de Claude Lévi-Strauss,
Hayden White e Walter Benjamin. Para esse último, a narração teria um
poder de cura. Segundo o autor (1987, p. 269), ―o relato que o paciente faz ao
médico no início do tratamento pode se tornar o começo de um processo
curativo‖. Benjamin, frente a essa ideia, trabalha com a hipótese de que a
narração formaria o clima propício e a condição mais favorável de muitas
curas. Um horizonte de questionamento afim a essa reflexão benjaminiana é
dado pelo antropólogo Lévi-Strauss.
O autor francês procura entender como, em uma comunidade
primitiva, um feiticeiro pode curar um doente. O ensaio aborda a tribo
indígena Cuna, que habita no Panamá. Uma mulher, que está parindo, sofre
muitas dores. A cura é possível porque, atribuindo significado às dores
internas e aceitando a sua presença dentro do sistema de significados
conhecido, a doente se integra a uma experiência na qual ―os conflitos se
realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenvolvimento e
conduzem ao seu desenvolvimento‖ (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 229). Não se
trata de explicar conceitualmente à enferma as causas das dores, mas de
propiciar condições para que ela simbolize essas dores e as integre a um
sistema conhecido. O que é estranho torna-se familiar, provocando o
―desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido
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428
favorável, da sequência [de transformações] cujo desenvolvimento a doente
sofreu‖ (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 228).
Hayden White (1994) desenvolve argumento similar. Para o autor, o
conjunto de acontecimentos do passado do paciente, que são causa do seu
sofrimento, manifestados na síndrome neurótica, deixaram de ser familiares,
tornando-se ameaçadores, e assumiram um sentido que ele não pode aceitar
nem rejeitar. O paciente, justamente por conhecer o evento muito bem,
convive com ele constantemente de modo que se lhe torna impossível ver
quaisquer outros fatos, exceto aqueles que carrega na mente. De acordo com
a teoria da psicanálise, o paciente supertramou esses acontecimentos,
―carregou-os de um sentido tão intenso que, sejam reais ou apenas
imaginários, eles continuam a moldar tanto as suas percepções como as suas
respostas ao mundo muito tempo depois que deveriam ter-se tornado ‗histñria
passada‘‖ (p. 103).
A solução para determinados traumas, para White, é então levar o
paciente a retramar toda a sua história de vida de maneira a mudar o sentido
(para ele) daqueles episódios e a sua significação para a economia de todo o
conjunto de acontecimentos que compõem a sua vida. Assim, a terapia é um
exercício no processo de refamiliarizar os acontecimentos que deixaram de
ser familiar. Como resultado, ―os acontecimentos perdem seu caráter
traumático ao serem removidos da estrutura do enredo em que ocupam um
lugar predominante e [são] inseridos em outra na qual tenham uma função
subordinada ou simplesmente banal como elementos de uma vida partilhada
com os demais seres humanos‖ (p. 104).
No livro Quero viver... memórias de um ex-morto, Nichthauser
recorre à narração como forma de aliviar ou ressignificar a sua dor.
Considerando o que há em comum entre os apontamentos de Benjamin, LéviStrauss e White, pode-se dizer que esse relato consiste em história cujo
objetivo não é simplesmente narrar o que aconteceu, mas fazer com que
elementos da experiência do sobrevivente que, a princípio, são estranhos,
misteriosos e ameaçadores, passem a ser compreendidos de forma
sistemática. O que importa, antes de mais nada, é a possibilidade de
verbalizar (representar) o estranho e o maligno e reconhecê-lo dentro de um
processo em que conflitos acontecem, mas a ordem pode ser recuperada e
ressignificada.
Como quer que seja, o testemunho, ou literatura de testemunho, deve
ser considerado não apenas um produto da modernidade, mas também,
conforme propõe Geoffrey H. Hartman (2000), como um ―processo
humanizador e transitivo, que faz exatamente aquilo que Appelfeld deseja
que a arte faça: ele atua sobre o passado resgatando o ‗individual, com rosto e
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nome prñprios‘, do lugar do terror do qual aquele rosto e aquele nome forma
levados embora‖ (p. 215). Além disso, Bauman (1998, p. 31) propõe tratar o
Holocausto ―como um teste raro, mas importante e confiável das
possibilidades ocultas da sociedade moderna‖. Então, se o Holocausto é uma
possibilidade ou um fruto da sociedade moderna e racional, a rememoração
desse evento através da literatura de testemunho é pertinente na medida em
que possibilita o não-esquecimento de tais catástrofes. A literatura de
testemunho expõe uma época de eventos violentos – histórica – aliada a
elementos literários, a fim de que as barbáries presenciadas se tornem
verossímeis ao leitor. E, através da rememoração, dá-se também a tentativa
de evitar que tais catástrofes voltem a ocorrer novamente, pois a literatura de
testemunho mantém o compromisso ético do não-esquecimento, quando a
memória sobre os fatos históricos ameaça dissipar-se na cultura da
modernidade contemporânea.
HOLOCAUST, REPRESENTATION, AND TRAUMA EM JOSEPH
NICHTHAUSER’S QUERO VIVER... MEMÓRIAS DE UM EX-MORTO:
THE TESTIMONY LITERATURE IN BRAZIL
ABSTRACT: This work aims at carrying out a brief theoretical reflection
about the modernity and one of the most violent and traumatic event in this
period: the Holocaust. Besides, we intend to verify how the Holocaust is
represented through the testimony literature and, at last, to expose an example
of a testimony narrative, Quero viver... memórias de um ex-morto, written by
the Brazilian-Jewish Joseph Nichthauser, who tells his memories as a
Holocaust victim. The analysis of the book, considering the perspective of
trauma and representation, showed that any attempt to depict such an account
in linear logic can distort the size of the event. Thus, we use as a theoretical
support works written by authors like Alain Touraine, Zygmunt Bauman, and
Márcio Seligmann-Silva. So, it is possible to reflect about one of the most
terrible events from the modernity and its representation.
Keywords: Modernity. Holocaust. Trauma. Testimony literature.
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432
Leminski e a poesia concreta
Lidiane Alves do NASCIMENTO1
Solange Fiuza Cardoso YOKOZAWA2
RESUMO: Propõe-se, neste estudo, uma leitura da poesia de Paulo Leminski,
levando em conta a sua relação dialógica com o concretismo, e objetiva-se
perscrutar o modo como essa relação se engendra dentro do campo de
assimilações e/ou referências que afluem para edificar a ossatura de seu perfil
artístico. Discutir o parentesco do poeta com o concretismo é, entre outros
aspectos, trazer à tona referências outras: a verificação, em seus poemas, e
ainda, em seus ensaios críticos, da afinidade com Mallarmé, Pound, Oswald e
outros poetas que alicerçam a base de construção do movimento da poesia
concreta. Os recursos balizados como importantes para se urdir esta ―nova
poesia‖ foram devidamente aproveitados na estética individual do ―poeta
malandro‖, o qual soube também, destacadamente, ser ―guerreiro‖, dadas
suas engenharias no trato com a linguagem. Ao chegar ao concretismo pela
afinidade com os teóricos do movimento no tocante à acepção criativa das
teorias e ideias advindas dos clássicos supracitados, mas, com destreza para
captar estritamente os ingredientes convenientes ao interesse de sua poesia, o
poeta mistura o rigor (objetividade) do concretismo com o jogo do humor,
ponto de fuga dos modelos sistêmicos, dessacralizador dos valores vigentes
na sociedade moderna, que dele se acerca.
PALAVRAS-CHAVE: Leminski. Concretismo. Poesia.
Os ecos da tendência do concretismo na poesia de Leminski não
devem passar ao largo das considerações do crítico que se proponha a
analisar os meandros que o poeta curitibano trilhou na literatura brasileira,
uma vez que recursos importantes na configuração da ―nova poesia‖ foram
incorporados, com deslocamento, à estética individual do poeta malandro.
O propósito de se elegerem poucos elementos na página, a
valorização da distribuição espacial, a exploração da sintaxe visual em
detrimento da linearidade do verso, em suma, o primar pela estrutura em uma
1
UFG – Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Letras. Goiânia – Goiás –
Brasil. CEP 74001-970 – [email protected]
2
UFG – Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Letras. Goiânia – Goiás –
Brasil. CEP 74001-970 – [email protected]
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poesia ancorada em instrumentais da modernidade, tais como a publicidade e
os mass media, são, sinteticamente colocadas, as lições gerais do concretismo
acatadas pelo poeta curitibano. Essas lições concretistas estão circunscritas
em menor ou maior grau em todo o Leminski ocupado com a metalinguagem
poética, com o rigor formal. Mas os caprichosos vultos concretistas não se
afiguram de modo dominante em nenhum de seus livros de poesia, exceto
nos textos publicados na revista Invenção, escritos sob a batuta da poesia
concreta, visto que o poeta não abdicou de seu espírito malandro, de um
capricho relaxado, para ceder à subserviência do formalismo acirrado e
cultuado pela vanguarda. Entretanto, não se pode deixar de lembrar que os
poetas concretos deram um norte poético inicial ao rapaz talentoso, leitor
voraz, um tanto quanto perdido na provinciana Curitiba, o qual, depois,
trilhou o seu próprio caminho.
Para se entender a ligação de Leminski com a vanguarda concreta,
cumpre resgatar, mesmo que de passagem, a história desse movimento
vanguardista, suas pretensões e suas realizações contributivas para a poesia
brasileira, de forma a verificar como o poeta curitibano, à margem de todas às
escolas, se filia, inicialmente, às ideias desse grupo paulista.
A poesia concreta corresponde a várias experiências formais nascidas
entre poetas de muitos países a partir da Segunda Guerra Mundial, como uma
maneira de se perceber e refletir acerca das novas necessidades, sobretudo
lingüísticas, do homem moderno. Assim, fundamenta-se em usos outros da
linguagem, tais como a publicidade e os mass media, modos de comunicação
sustentados em bases internacionais.
Com efeito, essa poesia centra sua atenção sobre o material em
detrimento das ideias, numa linguagem que, reduzida, irmana-se bem mais a
outras modalidades artísticas (ou não) do que à literatura propriamente dita.
O fato é que o poema concreto, consoante nos reporta Haroldo de Campos
em Teoria da poesia concreta, ―põe em xeque, desde logo, a estrutura lñgica
da linguagem discursiva tradicional, porque encontra nela uma barreira para o
acesso ao mundo dos objetos‖ (CAMPOS, 1965, p. 69). Assim, a vanguarda
pretende fazer da estrutura o próprio conteúdo do poema, rompendo,
deliberadamente, com a tradicional linearidade discursiva do verso. Não se
objetiva, com isso, atestam os seus idealizadores, desvanecer a comunicação
perpassada pela linguagem, mas superar as formas tradicionais do verso,
assentadas na sintaxe linear. Para isso, a poesia concreta adere a novos
códigos.
O movimento da poesia concreta é lançado em 1956 em São Paulo
pelo grupo Noigandres, liderado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos
e por Décio Pignatari. O denso trabalho de equipe gera produções não
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limitadas a poemas, mas estendidas a ensaios críticos de divulgação da nova
poesia. Em sequência, surge o manifesto ―Plano-piloto da poesia-concreta‖ e,
no início dos anos de 1960, principia-se a publicação da revista Invenção. Do
esforço intenso das atividades laboradas pelo movimento, entre elas, a tese de
Décio Pignatari exibida no Congresso de Crítica de Assis, resultará a
realização da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, ocorrida em 1963,
em Belo Horizonte. Orientados pelas experiências de Mallarmé, Pound,
Apollinaire, Joyce, Cummings, para citar os poetas internacionais, e, ainda,
de Oswald de Andrade e de João Cabral, para citar os brasileiros, os
concretistas engendram uma poesia de interesse formal, pautada em recursos
gráficos, tais como desenhos, figuras, fotomontagem, os quais aludem à
proposta do poema visual apresentada pelo movimento.
Conta-nos Augusto de Campos (1965) que a raiz da poesia concreta
está na publicação de Un coup de dés (1897), de Mallarmé, obra em que se
pode constatar o trabalho em favor da valorização espacial do poema sobre a
página e cujo autor, esvaído das limitações da linguagem discursiva, logra
apresentar novas feituras possíveis no campo linguístico, ligadas à
convergência com as artes plásticas, a música e os modernos meios de
comunicação. No Brasil, o nome de João Cabral aparece como precursor das
ideias da poesia concreta, haja vista a construção engenhosa de seus versos.
Entende-se, pois, que o poema concreto fundamenta-se na contemplação
visual instantânea, em que cumpre valorizar a palavra, muito além de signo,
como objeto donde se extirpa não apenas valores semânticos, simbólicos,
mas se aproveita o significante. É a estética da palavra-imagem. De acordo
com Moriconi:
O que Guimarães Rosa fazia na prosa de ficção,
com seus neologismos adaptando formas do falar
sertanejo, os irmãos Campos faziam na linguagem
crítica, misturando neologismos com prefixos e
palavras gregas, dando às vezes coisas
estranhíssimas, mas que não deixavam de exalar
um perfume irresistível de modernidade, de estar de
acordo com as necessidades do tempo.
(MORICONI, 2002, p. 113)
Considerando a técnica do verso inerente ao passado, os poetas
concretos intentam, no realçar da dimensão visual e da imediatividade da
poesia, desenvolver novos métodos a partir do aproveitamento do material
verbal, entre os quais a justaposição, a aglutinação, o recorte, as formas
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fônicas semelhantes entre as palavras etc., alçando ―às últimas conseqüências
certos processos estruturais que marcaram o futurismo (italiano e russo), o
dadaísmo e, em parte, o surrealismo, ao menos no que este significa de
exaltação do imaginário e do inventivo do fazer poético‖ (BOSI, 1997, p.
476). É de filiação concretista o poema seguinte de Augusto de Campos,
extraído da obra Viva vaia:
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(CAMPOS, 2001, p. 107)
Nesse poema, o verso ―colocaramascara‖, esboçado reiteradamente
na página, propiciará a construção de outras palavras, entre as quais se
destaca ―caracol‖, resultante de partes das palavras: ―mascara‖ / ―colocar‖. O
poema se organiza, pois, como um caracol. Nele, as palavras se enrolam
umas às outras. Uma primeira coadunada a uma segunda gerará uma terceira
palavra, que se nos apresenta desenrolada em sequência.
Afora outras palavras se desenrolem do novelo ―colocaramascara‖,
permanece evidente o destaque para ―caracol‖ e o mesmo formato da
imagem de espiral atribuída ao texto. Assim, entende-se que, nesse poema, o
rigor da estrutura permite, ao realizar, no plano da página, o baile ritmado das
letras, o desmascarar de palavras que passariam despercebidas à primeira
vista.
A ordem, a princípio, é ―colocar a mascara‖, quiçá, na face do
poema. Aliás, de ―mascara‖ depreende-se ―cara‖, para onde se destina a
máscara. Por sua vez, ―cara‖, que aparece como última palavra destacada no
poema, se aliada à sílaba que o inicia, ―col‖, retoma o ―caracol‖, voltando à
ideia dantes aventada do texto construído em formato espiral (―caracol‖).
Considerando as tantas possibilidades e movimentos de leitura para
os quais o recurso da (des) montagem, comum aos poemas concretos, pode
conduzir, esta leitura mesma se converteria em um verdadeiro ―caracol‖
delineado sob uma ―linha que nunca termina‖. Assim, pode-se dizer que o
poema concreto escolhe, em sua construção melindrosa, colocar a máscara
para que os leitores, em suas posições outras, porém, igualmente de
construtores, possam aceitar o desafio de desvelar a (s) sua(s) cara(s) (a do
poema).
A poesia concreta, ao aderir aos meios de comunicação de massa,
quer ater-se à velocidade da comunicação proveniente dos tempos modernos,
ideia que teria sido registrada por Haroldo de Campos, na compreensão de
que as vivências hodiernas do homem demandam um poema destoado de seu
estado de duração e acalentado pela marca da rapidez, o que permite inferir
que tomar de empréstimo elementos análogos aos dos mass media atenderia,
sobremaneira, os anseios concretistas, de modo a atingir o público afeito a
esses procedimentos em prejuízo da poesia tradicional versificada.
Essa seria, nos dizeres de Franchetti (1993), não uma tentativa de se
―massificar‖ a produção erudita, mas de ―eruditizar‖ a comunicação de
massas, uma vez que a poesia concreta transmutaria a arte da poesia numa
forma de arte popular, acessível como programas de televisão e rádio e,
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portanto, detentora de público considerável. Teria o concretismo alcançado
esse feito?
Para pensar essa questão é preciso ter em mira o contexto
contemplado pelos concretos: o da modernidade técnica, da comunicação,
concernentes a realidades outras não mais passíveis de se representar via
unidade versolinear. Perante a explosão da sociedade industrial, a
comunicação a que se refere o concretismo é firmada em padrões nãoverbais, da linguagem publicitária, do outdoor e do cartaz, não remetendo,
pois, à comunicação de temas e conteúdos, mas à da própria estrutura, da
imagem acústica das palavras. Nas acepções de Reis (1998), a sintaxe
espacial eminente no concretismo vence as barreiras tradicionais que incidem
sobre a comunicação, dada a existência de diferentes idiomas. Ocorre que a
não supremacia sobre o conteúdo semântico das palavras compondo o poema
desperta novas concepções de interpretação, de leitura, não mais relacionadas
a representações miméticas do mundo objetivo. Observa Haroldo de Campos:
―Dizemos que a poesia concreta visa como nenhuma outra à comunicação.
Não nos referimos, porém, à comunicação de formas. Não há cartão de visitas
para o poema: há o poema‖ (CAMPOS, 1965, p. 48).
No entanto, ainda versando sobre as questões relativas à
comunicação da poesia concreta, é lícito assinalar que o uso de técnicas
publicitárias e a economia verbal sujeitas a produzir o impacto do instantâneo
não asseguram ao poema concreto os trâmites que o levam à pretensa
comunicabilidade. A verdade é que a poesia concreta não parece facilmente
entendível, o que pressupõe o equívoco de se considerá-la uma arte popular.
Embora se possa identificá-la com as técnicas dos meios de comunicação de
massa, ela não logrou comunicação com o grande público. Observam-se as
referências que constituem o veio erudito do concretismo para se
compreender que elas não são facilmente veiculáveis, ao contrário,
demandam uma leitura demorada não condizente com a velocidade dos
tempos modernos e, portanto, não acessíveis ao público.
Entende-se, desse modo, que a poesia concreta não tem como
pretensões primeiras, com seus recursos aparentemente facilitados, conquistar
um grande público, donde se depreende, na esteira de Teles, que as inovações
concretistas teriam deixado ―perplexo o leitor mais culto e completamente
indiferente o leitor comum, para o qual se dizia eram endereçados tais
poemas‖ (TELES, 1979, p. 160). Outrossim, a veemente labuta dos poetas
concretos para fins de divulgação das propostas do movimento empenhou
olhares atentos para os textos teóricos, passando ao largo de maiores atenções
do público o acervo poético.
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A linguagem industrial apanhada pela poesia concreta não enseja,
como se poderia acreditar, a popularização da arte. Em tempos de fratura,
deve-se, como adverte Melo Neto (1998), salientando que os poetas
modernos fecharam-se em si mesmos, não querendo se adequar ao novo
público, ao menos, com essas técnicas, garantir a sobrevivência da poesia.
Mas a poesia concreta quer mesmo, como asseguram os poetas concretos,
comunicar a sua própria modernidade e dialética com outras formas de arte.
Chega-se a dizer, posto o denso caráter teórico do movimento, de poesia
voltada para poetas em detrimento do público comum.
Após breve apresentação da poesia concreta, esta discussão será
direcionada para a relação dialógica de Leminski com o movimento da poesia
concreta, que o teria engendrado e apresentado como poeta dentro da
literatura brasileira. Leminski encontra os poetas concretos quando da
realização da Semana de Poesia de Vanguarda em 1963, na cidade de Belo
Horizonte, estando então com dezenove anos. Vaz (2001) conta que os ventos
concretistas já haviam invadido a área do poeta curitibano através da revista
Noigandres. O poeta descobre afinidades com o grupo de São Paulo e almeja
comparecer ao evento de Minas, para conhecê-los. Para tanto, procura, na
ocasião, o poeta Afonso Romano de Sant‘anna, um dos organizadores do
encontro literário que asseguraria sua participação no evento não aberto ao
grande público.
Apaixonado por Pound tanto quanto os irmãos Campos, Leminski se
aproxima de Augusto de Campos e é por ele convidado a participar da
Revista Invenção, onde publicará seus primeiros poemas. Além disso, enceta
uma série de correspondências com Augusto de Campos, nas quais se podem
achar, claramente, o entusiasmo e a sofreguidão de quem consome literatura
com voracidade.
O concretismo influencia Leminski também no que tange ao feito de
instigar sua disposição poética para o humor, pois alguns dos preceitos do
movimento, assentes em sua poesia, subsidiam o exercício de (des)
montagem de palavras sobre o branco do papel; brincadeira capaz de pôr em
jogo relações sintáticas e semânticas, realçar o campo visual, descortinando,
assim, a partir do diálogo construção / desconstrução, vários sentidos
passíveis de se transmitir o riso. Dessa forma, o concretismo acalenta a
poesia leminskiana, sobretudo com a eminência do rigor formal, da estrutura
que acarreta a estirpe engenhosa do poeta crítico, o que não o impede de, com
os mesmos elementos do rigor, brincar, escrevendo os seus ―relaxos‖.
Tomado pela herança de poetas modernos tais como Mallarmé e
Rimbaud, entre outros que experimentaram posturas de ruptura e, acorrendo
como contributo justamente o fato de ser um poeta formado no calor da
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440
contracultura, Leminski se inscreve no rol de artistas que tenderam para a
poética da resistência e da relação dialética com a modernidade. Se há, por
um lado, em Leminski, uma negação de valores burgueses, capitalistas, por
outro, a poesia leminskiana incorpora, em sua linguagem, a rapidez, o
fragmentário, o apelo ao visual, tão próprio da época moderna. A atitude de
resistência converge para o espírito das vanguardas, entre as quais, emerge,
patente, o concretismo. Quiçá tenha sido este espírito dos que optam por
insurgências e posturas marginais que Leminski foi absorver entre os
concretos, donde extirpou o formalismo, o capricho, que fizeram par
equilibrado com seu despojamento contracultural.
A poesia concreta se afirma como ruptura frente à cultura dominante,
porquanto, entre outros aspectos, revoluciona a forma de se conceber um
poema. A sua opção pelo nonsense constitui mais um exemplo da resistência
simbólica do artista moderno frente à modernidade. Nesse sentido, consoante
Bosi, ―a poesia construtiva exprime, como toda linguagem, um modo de
relacionar-se com as coisas e com os homens. [...] o próprio uso do nonsense
significa que o poeta não vê sentido no seu mundo‖ (BOSI, 1997, p. 482). É
percebido, então, que o universo referencial marcado pelas malhas do
capitalismo está posto criticamente nos poemas concretos em imagens que
eles intentam criar com os seus objetos (palavras).
No número 3 de Invenção, conforme elucida Albertus da Costa
Marques (1971), se atesta tanto o repúdio ao mundo capitalista, como ao
―mercado de consumo ideológico‖ (MARQUES, 1971, p. 218), o que permite
inferir que a fuga do sistema linguístico remete, ao mesmo tempo, à fuga de
modelos sistêmicos outros. Leminski rejeita o mundo com o qual não se
harmoniza, indo, à guisa de mestres como Mallarmé, buscar alento na arte.
Com o concretismo, o poeta descobre a saída na crítica, no fazer literário e no
pensar sobre a literatura, no rompimento com padrões estabelecidos e na
possibilidade de erigir o novo. O poema a seguir, publicado inicialmente na
revista Invenção, nos anos de 1960, e posteriormente em Caprichos e
relaxos, nos anos de 1980, exemplifica a filiação de Leminski ao
concretismo:
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PARKER
TEXACO
ESSO
FORD
ADAMS
FABER
MELHORAL
SONRISAL
RINSO
LEVER
GESSY
RCE
GE
MOBILOIL
KOLYNOS
ELECTRIC
COLGATE
MOTORS
GENERAL
CASAS PERNAMBUCANAS
(LEMINSKI, 1983, p. 148)
Esse poema é urdido sob a prática do processo de colagem das
palavras, rompendo com o formato disciplinado, versolinear, esperado para o
poema, de modo a obter, com isso, nova maneira de conceber a construção
poética. A exemplo do que fazem os dadaístas, ao refutarem, como os
concretos, os padrões coercitivos de versificação, aqui, a opção pela técnica
de colagem enseja uma pretensa improvisação com ênfase no ilógico e no
acaso, aparentando falta de sentido. A regra é mesmo a do nonsense, e o
poema, convertido em objeto, em estrutura, pode ser lido em várias direções.
O poeta adere à materialidade dos signos, que busca, com maestria, no
âmbito da publicidade, área em que também atuou.
A poesia mimetiza os instrumentais do universo mercadológico, onde
propaganda, utilizando-se de arcabouço visual, sintética e instantânea,
pretende impactar, agarrando o consumidor em segundos. A brincadeira
irônica com ―marcas‖ de produtos de circulação no mercado engendra uma
poesia que acintosamente desdenha a lógica discursiva, sintática, e faz o
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442
significante incitar diversos movimentos de leitura, ampliando o leque de
realizações semânticas.
O objeto poema quer imprimir sua própria estrutura sob os moldes do
meio industrial, estabelecendo um jogo com o leitor ao dispor,
aleatoriamente, na dimensão da página, marcas que rotulam produtos
expostos no mercado à mercê do consumidor. Abaixo, encerrando o texto,
não tão destacadamente quanto os rñtulos citados, ―Melhoral‖, ―Ford‖,
―Kolynos‖ entre outros, escreve-se ―casas pernambucanas‖. Este arremate
parece sugerir uma tentativa de sintetizar, de forma metonímica, o significado
dos rótulos supracitados. As logomarcas correspondem a produtos
determinados que, para serem sabidos, deve-se fazer inferências, dadas as
suas circulações constantes no mundo publicitário. ―Casas pernambucanas‖,
por sua vez, remetem a lugar, ou seja, casas comerciais onde se vão achar os
produtos com tais rótulos.
Assim, as logomarcas aludidas e suas cargas semânticas estão
circunscritas no sentido mesmo que se vai apreender de ―casas
pernambucanas‖. Numa relação de interdependência semântica, como
coadunássemos faces de um mesmo objeto, as logomarcas e produtos que
representam, somadas a casas pernambucanas, remeteriam para o signo
―consumo‖, arbitrário, por sinal, mas de uma arbitrariedade invisível a olho
nu para o consumidor, afeito a se cobrir com as malhas eloquentes do
capitalismo. Leminski, então, brinca com os recursos da publicidade,
ironizando a cegueira do consumismo, de modo a surpreender igualmente o
leitor pelo impacto instantâneo, pelo insólito que emana do caos e / ou da
desestabilidade da linguagem que irá privilegiar o visual, o material (a
novidade concreta), sem abnegar as estratégias semânticas, modificando,
porém, os meios para manipulá-las.
Cabe recordar, neste momento, o conhecido poema de Décio
Pignatari, ―beba coca cola‖, da obra Poesia pois é poesia, emblemático no
sentido de recorrer a uma forma ideológica (a propaganda) a fim de, com ela,
inscrever uma postura contraideológica, um antianúncio, a partir do slogan
―beba coca cola‖.
beba
coca
cola
babe
cola
beba
coca
babe
cola
caco
caco
cola
cloaca
(PIGNATARI, 1977, p. 113)
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O texto se inicia com o slogan ―beba coca cola‖, que incita a
participação do leitor (no imperativo ―beba‖ reside a intensidade do
chamamento). Através do trabalho de permutação dos fonemas, aos poucos, o
slogan se desmonta. A mensagem publicitária é desconstruída
definitivamente no instante em que se obtém o signo ―cloaca‖, engendrado a
partir das mesmas letras de ―coca cola‖. Alguns dos sentidos para os quais
remete o termo ―cloaca‖ é fossa, esgoto, latrina, o que explicita no poema a
visão crítica assinalada pelo autor acerca da publicidade, a ironia destilada
contra o exacerbado e passivo consumismo característico do sistema
capitalista. Assim, tal como sucede no texto de Leminski discutido
anteriormente, a ideia primeira de um anúncio publicitário se esgarça para,
então, o poema adquirir roupagem avessa, crítica, contra a hipnose da
publicidade.
A relevância da poesia concreta para Leminski evidencia-se em suas
próprias declarações:
A qualidade e o nível da produção dos concretos é
um momento de luz total na cultura brasileira,
como diz Risério. Mas eles não sabem tudo. A
coisa concreta está de tal forma incorporada à
minha sensibilidade que costumo dizer que sou
mais concreto que eles: eles não começaram
concretos, eu comecei (LEMINSKI In LEMINSKI,
BONVICINO, 1999, p. 208-209).
Também, estima-se que o concretismo, corrente primeira pela qual
transitou Leminski, teria desencadeado outras influências para o poeta, tais
como a tradição do haikai japonês. Os concretistas bebem na ideia fonte de
Pound no que se refere à aplicação da teoria do ideograma chinês à poesia.
Ocorre, ao mesmo tempo, que a linguagem concentrada do haikai concorre
para redundar na comunicação rápida e urgente perseguida pelo espírito
objetivo e contemporâneo dos concretos. Leminski, então, nas trilhas de
Pound e em acordo com a ideia de plasticidade da poesia, estudará,
posteriormente, de modo mais detido, a tradição do poema japonês.
Nessa perspectiva, vê-se que Leminski chega ao concretismo pela
afinidade com os teóricos do movimento no tocante à acepção criativa das
teorias e aos precursores do movimento. Mas, com sua destreza para captar
estritamente os ingredientes convenientes ao interesse de sua poesia, mistura
o rigor (objetividade) do concretismo com o jogo do humor, ponto de fuga
dos modelos sistêmicos, dessacralizador dos valores vigentes na sociedade
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moderna. Como visto, os jogos de sentidos buscados na seiva do humor,
indicador da inserção de ―liberdade‖ no manejo com a palavra-signo, passam
justamente também dentro das acepções concretas da palavra-objeto, do
poema visual. O poeta admite que o concretismo teria gerado feitos
importantes em sua carreira literária. Um deles, sua obra mais sublinhada
pela crítica, Catatau, prosa experimental que teria brotado de suas
experiências de leitura de obras como Ulisses, de James Joyce, Grande sertão
veredas, de Guimarães Rosa, e Galáxias, de Haroldo de Campos, todas, aliás,
emblemáticas na contribuição de novidades concernentes à linguagem. Em
carta a Regis Bonvicino escreve:
[...] passei muitos anos de olhos voltados para São
Paulo
para o grupo Noigandres
para Augusto, principalmente
escrevendo para eles
preocupado em saber O QUE ELES IAM ACHAR
nessa época eu era ―concretista‖
mas eu era uma porção de outras coisas também
e quando eu deixei que elas agissem mais forte
fiz o Catatau.
(LEMINSKI,
In
LEMINSKI,
BONVICINO, 1999, p. 44)
Com fins de arrematar as discussões em torno de Leminski e sua
relação com o movimento da poesia concreta, reitera-se que, sob o princípio
de se desenvolver e preservar uma dicção poética própria, notadamente
irônica, Leminski não se fixa às certezas dos manifestos da vanguarda, a eles
se filia de modo provisório e depois se afasta, levando na bagagem apenas o
que interessa para a sua poesia, terminando por permitir a si mesmo libertarse das rédeas do concretismo, visto que o poeta das múltiplas faces ―era uma
porção de outras coisas também‖. Assim, sem deixar de reconhecer a
presença do movimento em sua poética, Leminski encaminha sua poesia para
outros rumos. Já nos anos de 1970, declara a Régis Bonvicino:
[...] houve um momento [...]
em que eu cheguei a me sentir
um fóssil vivo por ainda me preocupar com poesia
concreta
plano piloto e quejandos [...]
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[...] às vezes mais às vezes menos
já consegui ver a fímbria de algo
q já não é mais concretismo3
embora o pressuponha e o tenha deglutido.
(LEMINSKI In BONVICINO, LEMINSKI,
1999, p. 42-43).
Parece que esse afastamento da poesia concreta está relacionado com
uma questão que se torna fulcral para Leminski, isto é, a comunicação entre
poesia e leitor mediano. Em vários momentos de seus ensaios e das cartas
trocadas com Régis Bonvicino, o poeta insiste nessa questão:
quero fazer uma poesia que as pessoas entendam.
q não precise dar de brinde um tratado sobre a
Gestalt ou uma tese de jakobson sobre as estruturas
subliminares dos anagramas paronomásticos...
(LEMINSKI In LEMINSKI & BONVICCINO,
1999, p. 111).
Não é minha intenção fazer poesia voltada
radicalmente para a construção, a produção de
matrizes novas para um sensibilidade nova. No que
faço, subsiste um componente acentuado de
expressão, de comunicação, portanto. Isso só é
possível com certo teor de redundâncias, de
‗facilidades‘, cuja dosagem controlo e regulo
(LEMINSKI In LEMINSKI & BONVICCINO,
1999, p. 194).
A vanguarda concretista ensinou um caminho poético inicial a Paulo
Leminski e o apresentou para o Brasil nas páginas da revista Invenção. Os
poemas publicados nessa revista, um dos quais comentado neste artigo, estão
sob o signo da poesia concreta. Assim também a obra experimental Catatau.
Entretanto, provavelmente, a preocupação de Leminski com a difusão de sua
poesia junto ao leitor mediano faz com ele se afaste dessa vanguarda, levando
consigo algumas estratégias poéticas aprendidas no seio do concretismo,
justamente, ao que parece, as que servem ao intuito comunicativo de sua
poesia e deslocando-as do uso concretista.
3
Mantemos a escrita original das cartas de Leminski.
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LEMINSKI AND THE CONCRETE POETRY
ABSTRACT: We propose in this study, a reading of Paulo Leminski‘s poetry
taking into account his relationship with the concretism and we aim to
scrutinize how this relationship is engendered within the field of assimilation
and / or references which flock to build the backbone of his artistic profile.
Discuss the relationship of the poet with concretism is , among other things,
to bring up other references, such as the verification, in his poems, and even
in his critical essays, about the affinity with Mallarmé, Pound, Oswald and
other poets that underpin the construction of the movement of concrete
poetry. The features marked out as important zto weave this "new poetry"
were underused in the individual aesthetics of the "rogue poet," who knew
too, notably, to be a "warrior" because of its engineering in dealing with
language. Upon arriving at the concretism through affinity with the
theoretical of the group regarding the creative meaning of theories and ideas
that come from the aforementioned classics, but with skill to capture strictly
suitable ingredients to the interest of his poetry, the poet blends the rigor
(objectivity) of the concretism with the game's humor, vanishing point of the
systemic models, ―desanctifying‖ values prevailing in modern society, that is
about it.
Keywords: Leminski. Poetry. Concretism.
REFERÊNCIAS
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1997.
BONVICINO, Regis e LEMINSKI, Paulo. Envie meu dicionário: cartas e
alguma crítica. São Paulo: Ed.34, 1999.
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manifestos 1950-1960. São Paulo: Invenção, 1965.
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Ateliê Editorial, 2001.
FRANCHETTI, Paulo. Alguns aspectos da teoria da poesia concreta.
Campinas, São Paulo: Editora Unicamp, 1993.
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LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.
MARQUES, Albertus da Costa. A poesia concreta. In: COUTINHO,
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Americana S. A., 1971.
MELO NETO, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
PIGNATARI, Décio. Poesia pois é poesia. São Paulo: Duas cidades, 1977.
REIS, Pedro. Poesia Concreta: uma análise intersemiótica. Porto:
Universidade Fernando Pessoa, 1998.
TELES, G. M. A Retórica do silêncio: teoria e prática do texto literário. São
Paulo: Cultrix, 1979.
VAZ, Toninho. O bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
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Marcos Siscar e o verso em crise
Annita Costa MALUFE1
RESUMO: O artigo analisa o percurso da obra poética do paulista Marcos
Siscar (Borborema, 1964-) à luz de algumas ideias desenvolvidas pelo
próprio autor no recente livro de ensaios Poesia e crise. Partindo da
formulação de Mallarmé, Siscar insiste que a crise da poesia moderna (que
será também a crise contemporânea), deflagrada em Crise de vers, não
remete a uma extinção do verso, mas sim, a um estado inquieto e tenso no
interior do próprio verso. De modo que, a partir de suas ideias e do diálogo
com a tradição poética, podemos analisar o percurso dos poemas de Siscar –
observado nos três últimos livros de poesia – como um incessante
questionamento acerca da cesura do verso, criando uma forma que não se
apazigua, não se fixa em um contorno único. Seus poemas dramatizam,
assim, um verso e uma forma sempre em crise, em constante movimento.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea. Crise. Verso. Marcos Siscar.
Versos em estado crítico
Se uma obra é significativa em nosso tempo, se ela de algum modo
merece ser lida hoje, talvez seja porque recoloque em cena questões basilares
– de nossa existência, de nossa cultura, de nossa história. Ou ainda, por ser
capaz de remeter nós mesmos, leitores, a essas questões. A obra poética como
a atração por este ponto de retorno, no sentido em que o diz Maurice
Blanchot: a obra como aquela que ―renova este ‗agora‘ que ela parece
iniciar‖ (1955, p. 305), em um recomeço perpétuo que não deixa de ser o de
todos nós. Que cada poeta hoje recomece, por exemplo, a questão da crise do
verso, deflagrada por Mallarmé no emblemático ensaio Crise de vers (1895),
mas levada a cabo ao menos desde Baudelaire, é um fato em certa medida
inevitável. Sem uma métrica pré-definida, o que define o verso, qual o
sentido da cesura? Por que cortar, quando cortar? Recomeçar consiste, então,
em ousar se recolocar questões às vezes tão básicas quanto grandiosas, que
pareceriam tão bem solucionadas desde os modernos, em mestres como
1
PUC-SP/FAPESP, pós-doutoranda no Núcleo de Estudos da Subjetividade,
Departamento de Psicologia Clinica, São Paulo – SP – Brasil.
[email protected].
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Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé ou Appolinaire, T.S. Eliot, Pound. Consiste
ainda em atualizar um diálogo que nos antecedeu e nele se implicar.
É este diálogo constantemente realimentado pelo presente que vemos
se desenrolar na obra em curso de Marcos Siscar. Como se uma inquietação
com o que nos dão como a tradição moderna se reatualizasse em cada gesto
seu de escrita. Seja na escrita ensaística, seja na literária, as grandes questões
voltam à baila e não hesitam em se esboçar e serem recomeçadas. Numa
espécie de mão dupla, é difícil não encontrarmos pertinências, coincidências,
trânsitos entre a poesia e os ensaios de Marcos Siscar – recém-reunidos no
volume Poesia e crise. Temos ao mesmo tempo um poeta que elabora sua
problemática na reflexão ensaística e um ensaísta tensionado por questões
práticas de poética.2
Trata-se, portanto, sim, de pôr em cena a crise do verso. Recomeçar
esta que parece ser uma das grandes questões para a poesia moderna, a partir
do momento em que ela deixou de estar submetida às normas da versificação
tradicional; uma de suas grandes ―crises‖. Não é por acaso que os ensaios de
Siscar reúnem-se sob o título Poesia e crise; para ele, a definição mesma do
que é poesia para nós não se separa de um estado crítico e de crise – no qual a
própria modernidade está fundada:
O discurso poético é aquele que não apenas sente o
impacto dessa crise, não apenas deixa ler em seu
corpo as marcas da violência característica da
2
A relação de Marcos Siscar com a pesquisa e o ensino da poesia na universidade –
desde 2009, é professor no Departamento de Teoria e História Literária no Instituto
de Estudos da Linguagem da Unicamp, tendo sido, de 1996 a 2009, professor da
Unesp de São José do Rio Preto – não poderia deixar de ser lembrada, neste ponto,
uma vez que está diretamente ligada à sua intensa produção no campo dos
problemas da poética. Para efeito de introdução, podemos relembrar: no mestrado,
Siscar traduziu e analisou poemas de Tristan Corbière; no doutorado travou diálogo
entre a poesia e a filosofia ao estudar a linguagem do poeta Jacques Derrida,
orientado pelo poeta e filósofo Michel Deguy; 2 em seguida, seguiu com outros
projetos de pesquisa na universidade como docente e com a constante publicação
de artigos teóricos sobre o tema. Neste percurso, sublinhemos a relação próxima de
Siscar com a poesia e o pensamento franceses, tendo realizado pesquisas de pósdoutorado e participado de eventos na França como poeta convidado, além de
publicado traduções de poesia e ensaios do francês (sendo o último, o livro de
Deguy Reabertura após obras). E, ainda, a intensa proximidade que sua poesia
expressa, desde o primeiro livro, publicado em fins da década de 1990, com
reflexões de cunho mais teórico e até mesmo filosófico.
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época, mas que, a partir dessas marcas, nomeia a
crise – a indica, a dramatiza como sentido do
contemporâneo (SISCAR, 2010, p. 10).
Na era moderna, a poesia tornou-se um lugar privilegiado da crise em
que estamos imersos, pois nela ocorreria uma ―dramatização‖ deste estado de
crise. É em seu corpo, em seus movimentos, em sua respiração que o poema
vive e expressa um estado inquieto, tenso e não resolvido; uma indecisão da
forma que é inerente ao próprio estatuto de uma poesia que já não obedece
formas preestabelecidas. Daí ser Mallarmé o poeta que condensa a figura
desta crise na poesia – em especial por seu Crise de vers e por toda a
discussão que levou à cabo em outros escritos seus, além do derradeiro
poema Un coup de dés. No ensaio ―Poetas à beira de uma crise de versos‖,
Siscar sublinha o quanto o emblemático ensaio de Mallarmé é, antes de tudo,
um elogio ao verso livre.3 Segundo Siscar é preciso ver em Crise de vers a
necessidade apontada pelo poeta francês de uma ampliação das possibilidades
de versificar, de cortar e ritmar a linguagem. E esta questão, para Siscar,
parece ir para além das questões históricas e discussões de época aí
envolvidas. A crise de verso nomeia um certo ―estado de poesia‖ (2010, p.
113), que é tenso, oscilante, entre a herança da tradição e aquilo que pode
advir, surgir, como modulação nova de estilo.
De modo que a crise não remete a uma extinção do verso ou sua
substituição, mas sim, a um estado inquieto, indeciso, tenso, agitado, no
interior do próprio verso. Já não há um apaziguamento quanto à sua
definição, seus limites e possibilidades. O verso se torna elástico, maleável, e
uma incerteza quanto a seus contornos se instala. Mas não saímos do verso:
―Não há fim do verso porque não há além do verso‖, diz Siscar (2010, p.
113). A discussão se complexifica. Se ali, em 1895 o disparador para o ensaio
de Mallarmé foi a morte de Victor Hugo, marcando o fim de um ―confisco‖
do verso al
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