MOLINOS DE VIENTO: MÄGO DE OZ, LA LEYENDA DE LA MANCHA E FORMAÇÃO DE LEITORES Gustavo Nishida - Universidade Federal Tecnológica do Paraná1 Introdução Durante uma das minhas aulas de Leitura, Interpretação e Produção de Textos na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar, campus Sorocaba), em meio às discussões acerca do que deveríamos contemplar em uma resenha, uma aluna comentou a sua insatisfação com relação à adaptação cinematográfica da canção Faroeste Caboclo da Legião Urbana. Indignada, a aluna argumentava que o filme não era fiel ao texto original de Renato Russo e que, como fã sabedora de cor dos 9 minutos da trama, se sentiu traída pelo diretor do filme que se atreveu a mudar o que havia na canção. Ri e achei interessante a indignação, bem como a atitude de alguns alunos não quererem ir assistir ao filme devido ao comentário da colega. Trouxe a aula novamente ao seu tema e deixei a questão da fidelidade dos textos para depois: o que essa insatisfação sobre a “infidelidade” dos textos adaptados nos revela? Retomando as ideias expostas em Coraccini (2003), podemos considerar que essa insatisfação é fomentada por uma concepção de leitura específica chamada essencialista. O essencialismo tem suas bases lançadas no Renascimento e considera que as coisas em geral têm uma essência imutável. Ao levar essa noção ao campo da leitura, consideraríamos que os textos têm um único significado (ou sentido) que é sempre o mesmo. Por exemplo, quando as pessoas imaginam que há uma leitura certa e uma errada, elas estão sendo essencialistas, pois o bom leitor (ou aquele que sabe ler) seria aquele que consegue recuperar a essência do texto a partir da descodificação da escrita. 1 [email protected] Com o intuito, então, de combater as práticas de leitura essencialistas e, com isso, fomentar a formação de leitores críticos, decidimos realizar uma reflexão acerca da adaptação de textos do cânone literário para outras mídias. Argumentamos que tais textos podem servir como um convite para a leitura (inicialmente crítica) do texto base. Para tanto, apresentaremos uma análise preliminar de uma adaptação que estamos considerando como não essencialista do episódio dos moinhos de vento do clássico espanhol El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes Saavedra realizada pela banda espanhola de folk metal Mägo de Oz no álbum de 1998 La Leyenda de la Mancha. Antes de passarmos à análise, trataremos dos pressupostos teóricos que justificam a nossa proposta de introdução de textos de outras mídias (tal como as canções do gênero rock) ao ambiente escolar. Iniciaremos com as críticas acerca da visão de “superioridade” do cânone literário sobre as “outras” literaturas (cf. Sierakowski, 2012). Em seguida passaremos à abordagem dos multiletramentos de Rojo (2009) que justifica a entrada de outros gêneros textuais na sala de aula. Referencial teórico Infelizmente, o meio letrado se vê inúmeras vezes imerso à concepção mais imediata do que significa ser letrado. Mortatti (2004: p. 38) mostra, a partir de um levantamento histórico sobre as definições de analfabeto e analfabetismo, que o termo “iletrado” era considerado como sinônimo desses termos e definido como “o ignorante das letras do alfabeto, que não sabe ler nem escrever e, também, que não tem instrução primária”. Essa definição está relacionada às instruções escolares dos sujeitos. Contudo, há ainda a introdução de uma definição pejorativa ao verbete que seria a de “muito ignorante, bronco, rude” ou “que conhece mal determinado assunto”. Como se pode ver, essa definição do que significa ser letrado fomenta uma certa ideia de que é culto aquele que lê e conhece toda uma tradição literária que se restringe ao cânone ocidental. Mencionamos que o meio letrado se vê atado a essa concepção principalmente quando nos deparamos com comentários aparentemente banais sobre a adaptação de obras literárias a outras mídias, como o cinema, o teatro ou a música. Todos nós já nos vimos diante de comentários do tipo “Vi o filme X, mas o livro é muito melhor” ou “Nem vou ver esse filme, porque li o livro e duvido que a adaptação dará conta dos detalhes da obra”. Tais comentários revelam uma postura de pretensa superioridade da Literatura sobre as outras formas de Arte. Em sua ótima dissertação de mestrado, Sierakowski (2012) argumenta contra essa dita superioridade da Literatura sobre as outras Artes. Basicamente, seu trabalho defende que as adaptações podem sim servir como porta de entrada para a leitura do cânone literário. É importante ressaltar que sua pesquisa não defende também que essa é a única função de tais obras. Pelo contrário, tais adaptações seriam outros textos (ou textos de materialidade diferente do aceito pelo grafocentrismo) e legítimos, uma vez que há enunciadores (ou autores) que pretendem provocar efeitos de sentidos nos seus co-enunciadores (ou público). Em outras palavras, podemos dizer que, em decorrência da sua materialidade multimodal (pois trata de mostrar visual e auditivamente elementos que são narrados em uma obra literária), as adaptações são textos tão genuínos quanto os apresentados em forma de livros. Cobrar uma relação biunívoca entre o que ocorre numa mídia em outra é não considerar as idiossincrasias da materialidade de cada tipo de arte. Por exemplo, seria como cobrar a ausência da trilha sonora da Cindy Lauper2 no livro Os Goonies (Kahn, 2012), uma vez que nesse caso foi o filme que inspirou a publicação do livro3. Contudo, querer pensar outros textos (tais como os filmes e as canções) no âmbito escolar sob a justificativa de combater um certo “preconceito” dos meios letrados com relação aos textos não canônicos pode parecer uma proposta mais pessoal que científica. É diante disso que é preciso pensar os textos em circulação na escola a partir da perspectiva dos letramentos. Ao estipular os limites epistemológicos da Linguística Textual, Bentes (2001) comenta a mudança ocorrida na definição de seu objeto: o texto. Dentro de uma perspectiva ainda vinculada ao Estruturalismo linguístico, o texto era definido como um objeto que extrapolava o limite da frase. É nessa época que surgem os trabalhos da chamada análise transfrástica, que tinham como objetivo analisar como se encadeavam as frases para formarem unidades textuais. Como se pode ver, esse período se limitou a considerar o texto como um conjunto de frases concatenadas entre si que apresentavam alguma unidade. 2 Cindy Lauper teve a música “Good enough” na trilha de Os Goonies de Stephen Spielberg (1985). De maneira geral, os trabalhos sobre adaptações investigam as relações entre as obras literárias e as outras mídias que se valem de tais textos. Seria interessante verificar quais as idiossincrasias quando ocorre o contrário, i.e., quando um livro é publicado a partir de um filme, seriado ou música. 3 A partir da “revolução” teórica promovida pela abordagem gerativo-transformacional, tentaram-se criar gramáticas que gerariam textos a partir de regras de boa formação textual. Contudo, esse empreendimento não deu certo devido justamente a grande variedade e possibilidades de se organizarem as sentenças em um texto. Em outras palavras, as regras de boa formação de sentenças não parecem ser as mesmas regras que geram textos. É diante dessas dificuldades em definir e tratar o texto além das suas limitações fraseológicas que alguns pesquisadores começam a pensar o texto como uma unidade de cunho sócio-discursivo. Isso significa que um texto deve ser definido a partir do seu uso real, levando em conta seus produtores em condições de uso contextualizadas. Essa perspectiva promove justamente um aumento do que se pode chamar texto, i.e., toda e qualquer enunciação verbal (escrita, oral ou sinalizada) que parte de um produtor real para leitores (ouvintes ou videntes) legítimos é um texto. Essa definição abarca, então, desde um texto de uma única palavra como “Socorro!”, passando por solicitações domésticas como bilhetes e listas de compras, até uma tese de doutorado em linguística que discute a incomensurabilidade entre teorias de percepção da fala. O leitor menos familiarizado com essas noções pode pensar que essa definição de texto proporciona uma relativização sobre o que pode ser levado à sala de aula. Sim, essa crítica é válida, uma vez que se pode hipotetizar, no limite, uma sala de aula em que os alunos apenas escrevem bilhetes e listas de compras. Não é essa a proposta! Mesmo porque se formos pensar nas práticas escolares (cf. Geraldi, 1984), por que pedimos aos nossos alunos a escrever narrações, descrições e dissertações se esses textos não “existem” fora da sala de aula? Pretende-se com isso que os textos trabalhados e produzidos não tenham como único leitor o professor, uma vez que essa condição promove o mero preenchimento de linhas. Com o intuito então de superar as definições de texto antiquadas e as práticas pedagógicas demasiadamente estruturais, Rojo (2009) propõe trabalhar com a noção de letramentos (no plural) para desenvolver a leitura crítica nos alunos. A partir de Kleiman (1995: p.15-16), a autora comenta que “o conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos numa tentativa de separar os estudos sobre o ‘impacto social da escrita’ (Kleiman, 1989a) dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática escrita”. Mas o termo técnico letramento se viu em um certo período relacionado ao tecnicismo do aprendizado da leitura e da escrita. Trata- se do enfoque autônomo (cf. Street, 1993 apud Rojo 2009: p. 99) que considerava os elementos técnicos da escrita sem levar em conta o contexto social da produção textual. Na tentativa de ultrapassar esse enfoque autônomo, há a proposição de uma versão forte de letramento, chamado ideológico, que se aproxima da visão paulo-freiriana de alfabetização (cf. Soares, 1998). Nessa perspectiva, levam-se em conta não apenas os elementos que fazem o sujeito se adaptar à sociedade letrada ou às dificuldades cotidianas nas grandes cidades, mas sim todos os elementos que fomentam o estabelecimento e uso de relações sociais permeadas pela escrita que proporcionam a autonomia e a criação de identidades dos agentes sociais. Rojo (2009) comenta que há pelo menos dois tipos de letramento: os dominantes e os vernaculares. Os primeiros seriam aqueles regulamentados pelas agências de organização formal da sociedade, tais como a escola, as igrejas, o local de trabalho ou o sistema legal. Esse tipo de letramento pressupõe a presença de agentes como professores, padres e pastores, especialistas, pesquisadores, juízes e advogados, por exemplo. É preciso salientar ainda que tais conhecimentos são valorizados de maneira ampla dentro da sociedade. Já o segundo não é organizado ou regulamentado por instituições sociais. Elas têm sua origem nas relações cotidianas, nas chamadas culturas locais. A proposta da autora é a de que sejam considerados não apenas os letramentos dominantes, mas sim os vernaculares. Em suas palavras: “Cabe, portanto, também à escola potencializar o diálogo multicultural, trazendo para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante, canônica, mas também as culturas locais e populares e a cultura de massa, para torná-las vozes de um diálogo, objetos de estudo e crítica. Para tal, é preciso que a escola se interesse por e admita as culturas locais de alunos e professores” (Rojo, 2009: p. 115). É devido a tais questionamentos e propostas que tais estudos decidem considerar o termo letramento no plural, pois não se trata apenas de um único tipo de atividade de interação social permeada pela escrita. Como se pode notar na proposta de Rojo (2009), estamos considerando toda relação social permeada pela escrita, sejam as valorizadas socialmente como as (ainda) não legitimadas. Levando-se em conta as considerações teóricas apresentadas, podemos dizer que podemos abarcar outros textos no âmbito escolar (tais como filmes e canções), uma vez que se trata de textos que compõem outros letramentos (quase sempre vernaculares) que merecem sair de sua localidade para alcançar meios globais. É por isso que decidimos utilizar o rock como elemento de uma cultura vernacular que pode servir como porta de entrada para um letramento dominante. Não estamos argumentando que sempre se deve chegar a um letramento dominante. Pelo contrário, estamos argumentando que há nos letramentos vernaculares os mesmos elementos que são valorizados nos letramentos dominantes. Trata-se de um argumento para a valorização de tais letramentos, ou melhor, para considerar que o vernacular também letra. Na próxima seção, apresentaremos o famoso episódio dos moinhos de vento descrito na obra de Miguel de Cervantes. Em seguida passaremos para a análise da canção Molinos de Viento da banda Mägo de Oz. Como se poderá ver, a adaptação feita pela banda espanhola não é um olhar essencialista sobre a obra. Essa diferença pode servir como porta de entrada para uma leitura crítica da obra original, por combater as leituras essencialistas de outros textos. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha encontra os moinhos de vento Interessantemente, uma das partes mais comentadas das aventuras de Don Quijote e seu fiel escudeiro Sancho Panza é uma das mais breves que encontramos na narrativa. O episódio do encontro com os moinhos de vento não passa de duas páginas na edição da Real Academia Española em comemoração do quarto centenário da novela! O episódio é narrado no capítulo VIII do primeiro livro e há uma glosa do que ocorrerá nele: “Del buen suceso que el valeroso don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos dignos de felice recordación” (Cervantes, 2004: p.75). O capitulo se inicia com o narrador constatando a presença de 34 moinhos de vento em um campo. Em seguida, don Quijote, em discurso direto, comenta para seu “amigo Sancho” a presença de “desaforados gigantes” no campo e pensa guerrear com eles para que comecem a se enriquecer. Sancho não vê gigantes e imediatamente explica a seu amo o que realmente há no campo: “ – Mire vuestra merced – respondió Sancho – que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas, que, volteadas del viento, hacen andar la piedra del molino” (Cervantes, 2004: p.75). Don Quijote desaprova os comentários de Sancho com a justificativa de que o escudeiro nada sabe sobre as aventuras de cavaleiros. A narrativa segue com o ataque do cavaleiro montado em seu cavalo Rocinante mesmo sendo advertido incessantemente pelo escudeiro. O pobre cavaleiro investia contra os moinhos aos gritos: “Non fuyades, cobardes y viles criaturas, que um solo caballero es el que os acomete” (Cervantes, 2004: p.75). A aventura segue com a descrição da investida desastrosa do cavaleiro, pois, ao chegar próximo ao moinho, as suas pás começam a se movimentar e golpeiam a espada, Don Quijote e Rocinante; jogando-os para longe. Sancho os socorre e adverte seu amo mais uma vez: “ – ¡Válame Diós! – dijo Sancho –. ¿No le dije yo a vuestra que mirase bien lo que hacía, que no eran sino molinos de viento, y no lo podía ignorar sino quien llevase otros tales en la cabeza?” (Cervantes, 2004: p.76). Antes de ser ajudado por Sancho, don Quijote desaprova seus comentários salientando que de fato ele estava agora acidentado e diante de moinhos. Contudo, isso era obra de um feiticeiro (Frestón) que transformou os gigantes em moinhos. Como se pode ver, a saída do cavaleiro para dar conta das atrapalhadas é sugerir uma explicação fantástica sobre a realidade. De maneira recorrente, o feiticeiro Frestón prega peças nos aventureiros durante a narrativa. Nas palavras de don Quijote: “ – Calla, amigo Sancho – respondió Don Quijote –, que las cosas de la guerra más que otras está sujetas a continua mudanza; cuanto más que yo pienso, y es así verdad, que aquel sabio Frestón que me robó el aposento y los libros ha vuelto estos gigantes en molinos, por quitarme la gloria de su vencimiento: tal es la enemistad que me tiene; mas al cabo al cabo han de poder poco sus malas artes contra la bondad de mi espada” (Cervantes, 2004: p.76). Como se pode notar, o episódio é muito breve e é basicamente trabalhado sob a ótica ora imaginativa de don Quijote e ora realista de Sancho Panza. Apresentaremos na próxima seção o episódio dos moinhos de vento adaptado pela banda espanhola de folk metal Mägo de Oz em seu álbum La Leyenda de La Mancha (1998). La Leyenda de La Mancha de Mägo de Oz Em 1998, a banda espanhola de folk meltal Mägo de Oz decide homenagear a obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes com o álbum La Leyenda de La Mancha. Nas palavras iniciais do encarte do álbum, Txus, baterista e letrista da banda, comenta que essa homenagem é um convite à leitura dessa obra de Cervantes que, injustiçadamente, é tida como difícil de ler. Levando em consideração a proposta de composição do disco, decidimos, inicialmente, analisar uma canção para sugerir que o álbum não é uma mera adaptação da novela, uma vez que, ao invés de apresentar os episódios do livro buscando sua “essência”, as canções dialogam com os elementos narrativos produzindo novos textos. Tal como mencionado anteriormente, nossa análise se baseia na canção “Molinos de viento”. Passemos à ela! Logo na epígrafe da faixa, comenta-se que a música trata do diálogo entre Don Quijote e Sancho Panza após o incidente com os moinhos de vento. Ao invés de narrar o famoso incidente, a canção trata das explicações que Don Quijote dá a Sancho. Elas versam sobre um olhar distinto acerca da realidade, baseado na imaginação e no coração, sugerindo outra maneira de ver o mundo: nessa epígrafe, o cavaleiro explica ao escudeiro que vê o mundo com o “corazón” e com a “imaginación”, uma vez que vê o mundo além do que está do próprio nariz (versos 1 a 2); sem contar, é claro, a capacidade de ver elementos fantásticos como o riso de uma flor (verso 3). Seguindo, então, as explicações baseadas na percepção a partir do coração (versos 4 a 6), don Quijote interpela seu escudeiro da mesma maneira que na novela (“Amigo Sancho”) e faz uma alusão ao célebre poema de Antonio Machado (1995). Aqui, os pés fazem o caminho; em Machado, o caminho se faz ao andar. Ainda, para fomentar a visão do mundo a partir do “corazón” e “imaginación”, temos nos versos 13 e 14 o “reforço” de que sonho e realidade estão misturados, pois, mesmo desperto, o sonho é a realidade. Molinos de Viento (Música: Mägo de Oz / Letra: Txus) Que trata del diálogo que establecen Sancho y Don Quijote después de la famosa aventura de los molinos. Don Quijote confunde unos molinos con unos gigantes. Sancho le recrimina por su alucinación y Don Quijote le explica que él no ve con los ojos, sino con el corazón y la imaginación. 1. Si acaso tu no ves 21. Siente que la lluvia 2. Mas allá de tu nariz 22. Besa tu cara 3. Y no oyes a una flor reír 23. Cuando haces el amor 24. Grita con el alma 4. Si no puedes hablar 25. Grita tan alto 5. Sin tener que oír tu voz 26. Que de tu vida, tu seas 6. Utilizando el corazón 27. Amigo el único actor 7. Amigo Sancho, escúchame, 28. Sí acaso tu opinión 8. No todo tiene aquí un porqué 29. Cabe en un sí o un no 9. Un camino lo hacen los pies 30. Y no sabes rectificar 10. Hay un mundo por descubrir 31. Si puedes definir 11. Y una vida que arrancar de arrancar 32. el odio o el amor 12. De brazos del guión final 33. Amigo que desilusión 13. A veces siento al despertar 34. No todo es blanco, 14. Que el sueño es la realidad 35. O negro: es gris Refrão 15. Bebe, danza, sueña 36. Todo depende del matiz, 37. Busca y aprende a distinguir 16. Siente que el viento 17. Ha sido hecho para ti 38. La luna puede calentar 18. Vive, escucha y habla 39. Y el sol tus noches acunar 19. Usando para ello 40. Los arboles mueren de pie. 20. el corazón 41. He visto un manantial llorar 42. Al ver sus aguas ir al mar Do verso 15 ao 27, há o refrão da canção. Nessa parte há uma insistência na percepção de toda a vida (“bebe, danza, sueña, siente, ... vive, escucha y habla”) a partir do “corazón”. Após essas estrofes, a canção segue com uma relativização sobre a realidade que só parece ser possível a partir da percepção a partir do que don Quijote chama de “corazón” e “imaginación”. Por exemplo, don Quijote critica àqueles que conseguem enquadrar as opiniões em um “sim” ou um “não”. Seguindo essa linha de pensamento, há a sugestão de que as coisas em geral não podem ser dicotomizadas em categorias estanques como em “branco” ou “preto”. Aos olhos imaginativos e emotivos de don Quijote, nem tudo é preto ou branco. Tudo pode ser cinza (“gris”, no verso 35), de modo que categorias intermediárias podem ser contempladas se aprendemos a ver a realidade de outras maneiras (versos 36 e 37). A sugestão de don Quijote com relação a realidade é tão relativa ou de natureza fantástica que nos versos 38 e 39 há a proposta de que a lua pode esquentar as pessoas e o sol pode embalar o seu sonho. Por sua vez, o verso 40 ilustra uma “deturpação” da ordem natural das coisas que não é percebida pela maioria das pessoas por não utilizar o coração para perceber a realidade ao redor. Em “los árboles mueren de pie” há a constatação de que uma coisa “banal” como a morte de uma árvore não ocorre da mesma maneira que outros seres, já que a imagem da morte está associada ao tombar, jazer ou deitar das coisas. Por fim, como exemplo de suas constatações imaginativas e emotivas, don Quijote sugere mais uma percepção simbólica da realidade, pois, ao invés de ver apenas as águas de um manancial ir ao mar, ele vê o choro do manancial ao ver as suas águas irem ao mar. Essas imagens sugerem uma olhar figurado do cavaleiro sobre a realidade. Uma reflexão inicial pela formação de leitores Apresentamos nas seções anteriores, o encontro de don Quijote com os moinhos de vento que é narrado na novela de Cervantes e na adaptação de Mägo de Oz. Esperamos que tenha sido possível perceber que a ação em si é a mesma narrada nas duas obras, i.e., há o encontro “equivocado” de don Quijote com os gigantes. Contudo, o que deve ser observado é que o texto da banda espanhola não se preocupa em transcrever ipsis literis o que ocorre na novela para a sua canção. É evidente que a glosa inicial bem como a presença esperada de Sancho Panza (presente na expressão em discurso direto “Amigo Sancho”) sugerida pelo diálogo são elementos que apontam para a adaptação do episódio em outra mídia. Mas tais elementos são apenas alguns que fazem parte do texto original que surgem na canção. Por exemplo, a voz de Sancho não aparece de maneira direta. As explicações de don Quijote sugerem que o fiel escudeiro está ali participando do diálogo, mas seus questionamentos não são materializados na música. Outro elemento interessante que alimenta uma abordagem não essencialista sobre a obra é o fato de que a saída fantástica da obra literária (justificada pela ação do mago Frestón) não está presente nas justificativas do cavaleiro. Tal como apresentado anteriormente, o don Quijote de Mägo de Oz prefere justificar seu olhar diferenciado sobre a realidade a partir do “corazón” e da “imaginación”, sugerindo categorias intermediárias sobre a realidade, mais dinâmicas e menos dicotomizadas. Pode parecer banal, mas a “alucinação” quixotesca sequer é mencionada. O título da música faz uma alusão aos moinhos de vento. Entretanto, na letra da música não é mencionado a presença de gigantes ou de moinhos. Esse elemento por si só aponta para uma abordagem não essencialista do texto original. Tais elementos presentes e ausentes (ou diferentes) podem surgir como um gatilho para a leitura não essencialista da obra original. Sem contar que a própria sugestão de don Quijote sobre a realidade pode servir como um convite para a percepção menos imediatista e mais simbólica sobre o mundo material. Em outras palavras, o don Quijote de Mägo de Oz pode fomentar a leitura crítica sobre os fatos que ocorrem ao redor, i.e., pode fazer com que os leitores em formação “comprem” a ideia do Quijote de ver as coisas de outra maneira, menos categorizadas. Considerações finais Como se pode ver, tentamos mostrar que a obra da banda espanhola dialoga com a obra de Cervantes sem se preocupar com uma busca pela sua essência. Tais diferenças (que também se estendem a outras canções) podem funcionar como porta de entrada para a leitura da narrativa original e, consequentemente, promover a formação de leitores (Rojo, 2009) a partir de outras mídias e gêneros discursivos (Bakhtin, 1992), tal como a canção do gênero rock, um exemplo genuíno do letramento vernacular. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. 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