Revista Jurídica da Faculdade São Salvador • Nº1 - maio 2011 • ISSN: Sua nova faculdade. Sua nova faculdade. Curso de Direito Eidos – Revista Jurídica Página |7 A Autodefesa No Direito: Exposição sobre o direito à autodefesa no Direito sua legitimação histórica, seu reconhecimento legal, análise internacional e suas projeções nos diversos campos do direito. José Nelis de Araújo1 Resumo O presente texto analisa a autodefesa desde sua construção histórica até sua aplicação atual, e seu reconhecimento como direito subjetivo inerente ao homem. Trata-se do estudo da aplicação do direito de defesa pessoal em favor de um interesse ou bem pessoal de forma concreta pela via jurídica, de um modo claro e didático, além de expor o seu conceito, sua análise histórica, as suas fundamentações teóricas e sua aplicabilidade no tempo atual, com posicionamento dos Tribunais pátrios. O trabalho enfoca o direito de autodefesa como direito subjetivo, natural e ético, e suas consequências jurídicas, desde o direito penal até outros campos do direito. Palavras-chave: autodefesa /Direito natural / Direito normativo. Abstract This paper examines the self-concept since its history to its current application, and its recognition as a subjective right inherent in man. It is the study of law enforcement self-defense in favor of an interest or personal property in any concrete way remedy, in a clear and didactic, and exposes its concept, its historical analysis, its theoretical foundations and its applicability at the present time, with the positioning of the Courts patriotic. The study focuses on the right of self-defense as subjective right, natural and ethical, and legal consequences, since the criminal law to other fields of law. Keywords:Self-defense. Natural right.Legal right. INTRODUÇÃO O dogma atual permite amplamente o uso do instituto da autodefesa, pois o reconhece como direito natural inerente à pessoa humana. Sua aplicação chegou mesmo a ser normatizada em matéria infraconstitucional, nas legislaçõese é reconhecida nos tribunais pátrios. A autodefesa seria a utilização dos meios e instrumentos para se defender, sua eficiência percorreu a linha do tempo e, amparado pelo jusnaturalismo, se manifesta mesmo em face à jurisdição. Tem raízes nos fundamentos constitucionais, noCódigo Civil, no Código penal, na CLT, na esfera tributária, no Código de Processo Penal, no duplo grau de jurisdição e no Direito Público Internacional. 1 Bacharel em Direito; Especialista em Ciências Criminais; pós graduando em Direito Público, Professor de Direito Penal e Criminologia da Faculdade São Salvador, Delegado de Polícia Civil. Página |8 Como direito inerente ao homem, se manifesta no direito ao silêncio, a mentir, a se omitir, à greve ou praticar atos formalmente delituosos. A sua planificação alcança o direito de petição, direito de certidão, da legítima defesa e do estado de necessidade, como direito de se escudar nas causas excludentes da antijuridicidade. No sistema civilista, a autodefesa está normatizada como meio necessário para proteção de bens e interesse privado, em prol da posse ou propriedade, quando é imediata e necessária a manutenção ou restituição da posse. Bem fundamentado, vai além, ao declarar que a conduta de deteriorar, destruir bens ou lesionar pessoa para autodefesa é amplamente aceita contra perigo iminente e não constitui ilícito. Na teoria do delito, passou a ser admitida como uso de medidas físicas decorrente do processo volitivo de repelir agressão, iminente ou atual, com empregode força contra pessoa ou coisa. No trato da lei adjetiva, criaram-se instrumentos processuais, estabelecendo requerimentos e petições de forma concreta e efetiva. Exsurge ainda, em face à agressão ou perigo imaginário quando é parcialmente permitida sua realização no interesse legítimo de autotutela. Sua característica relevante é o esforço natural para a proteção pessoal contra forças opostas, em que atua como forma de composição ante os conflitantes. Adotado desde o começo das formações sociais e urbana, mesmo com a passagem do tempo, ainda se faz presente no ordenamento, pois o dogma vigente o prevê e ainda o autoriza em sua plenitude. Embora encontre amparo na legalidade vigente, buscou sua legitimação em ordenações históricas, internacionais, para que pudesse exigirdo Estado efetividade. De vez que é aceito até em casos extremos, contra a vida de semelhante, na prática de lesão corporal, na destruição de bens sem restar sequer a culpa aquiliana. Da sua manifestação decorre o direito da pessoa adotar ações impeditivas de funcionamento de empresas quando na luta por melhoria da condição social, demonstrando um despertar da consciência na relação de trabalho,também, quando a exasperada distorção nos tributos põe em risco a sobrevivência ou vergasta o caráter social da pessoa jurídica. 1. NOÇÃO HISTÓRICA No processo histórico, a autodefesa transitou legalizada por vários ordenamentos que marcaram a humanidade. Desde o período da vingança privada, quando prevalecia a aplicação de penas corporais contra o infrator até a atualidade contemporânea. Neste período, o trato do binômio crime e castigo já assolavam as idéias dos juristas e legisladores que nas construções Página |9 primevas tentavam responder a equação oriunda do tecido social. É certo que nesta fase do direito as penas corporais eram permitidas e aplicadas contra os infratores, pois a construção da reposta era confeccionada especialmente para satisfação da vítima e não necessariamente para proteção dos bens jurídicos. Os legisladores estabeleciam a pena como forma direta estabelecimento da ordem e indiretamente procuravam aplacar ânimo ao saciar a sede de justiça dos que foram ofendidos ou violentados. A convicção do julgador se baseava em estruturar leis e medidas punitivas para aplacar o desejo de vingança pessoal, por consequência a autotutela era ampla e se aplicava de forma desmedidapor impor a solução do mais forte. O Código de Ur-Nammu,com data de2040 a.C., oriundo dos povos Sumérios, destaca as sanções pecuniárias para delitos diversos ao invés de corporais ou sanções aflitivas de ordem física. Estabeleceu dispositivos variados que utilizavam a reparação do dano como castigo. Por sua vez, o Código de Eshnunna de 1930 a.C., descoberto na urbe mesopotâmica de Eshnunna, apresentava trechos com legislações e serviria como matriz fundamental para o Código de Hamurabi. No primeiro império babilônico, durante o governo de Hamurabi, os escribas criaram o mais conhecido sistema de leis escritas da antiguidade. Neste monolito talhado em rocha ígnea constam 282 leis, que expõe punições aos crimes contra o patrimônio, crimes contra a vida e honra subjetiva. Na sua disposição cuneiforme coloca: “Art. 25 § 227 - Se um construtor edificou uma casa para um Awilum, mas não reforçou seu trabalho, e a casa que construiu caiu e causou a morte do dono da casa, esse construtor será morto”.2 Entre os documentos mais antigos que tratou dos direitos humanos, encontra-se o Código de Ciro ou Cilindro de Cirrol, que após a conquista da Babilônia em 539 a.C, inovou impondo até mesmo a liberdade de religião e abolição da escravatura. É apresentado como legislação primordial dos direitos humanos. A Magna Carta da Inglaterra buscou limitar as ações reais em benefício dos súditos e forneceu a idéia primordial de constitucionalismo. Em seu vernáculo latim, apresenta a garantia de certas liberdades políticas e possui disposições que tornavam a Igreja livre da ingerência do Soberano. Na oportunidade, fez uma verdadeira reforma no direito e na 2 Código de Hamurabi. P á g i n a | 10 aplicação da Justiça, ao conceder liberdades civis. Tem inscrito no art. 39, a clásula de maior relevância jurídica, que afirma: Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.3 Com brilhantismo secular e sem merecer qualquer atualização para consagração, o artigo 40 dispõe: “A ninguém venderemos, a ninguém recusaremos ou atrasaremos, direito ou justiça”.4 O movimento revolucionário francês inspirado na Revolução Americana de 1776, no ideário iluminista, com a formação da Assembléia Nacional Constituinte da França Revolucionária aprovou, em 26 de agosto de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sintetizando em dezessete artigos com ideais libertários, entre eles a participação popular na formação das leis. Na era moderna surgiu a fase da vingança pública, que passou o monopólio da jurisdição para o Estado. Após adotar a tripartição de poderes de Montesquieu, entregou ao Poder Judiciário a tarefa de julgar e consolidou-se o conceito de jurisdição como atividade típica do Estado para gerir conflitos intersubjetivos, realizando o direito de forma concreta. A prestação jurisdicional ficou sedimentada no meio acadêmico por normas de verticalização na relação entre Estado e o particular. O binômio crime e castigo passou a ser problema exclusivamenteaçambarcado pelo Estado; na medida em que as sociedades se civilizavam, era outorgado o direito à defesa da pessoa aos prepostos e representantes do Estado. Os juristas passaram a trabalhar para legitimar uma nova ordem mundial, em que a função de dizer o direito ao caso concreto seria legítima quando resultasse de atuação do Estado. O crime seguiu como descumprimento das normas do contrato social de Rousseau, e o castigo passou a exclusão desta pessoa da vida em sociedade. Por fim, no período contemporâneo, foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pela Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 e rascunhada por John Peters Humphrey, com participação de representantes de várias nações e que delinearam o direito de autodefesa entre os direitos humanos. 3 4 Magna ChartaLibertatum. Ibidem. P á g i n a | 11 2. A AUTODEFESA E O JUSNATURALISMO. A teoria do delito preenchida por leis naturais sempre teve defensores e através da filosofia intuiu na formação do racionalismo jurídico do século XVIII, principalmente quanto aos pressupostos basilares dos direitos fundamentais. Encontrava-se em Aristóteles a noção de que, mesmo em face às diversidades culturais decorrentes das regiões, havia um conjunto de preceitos que eram inatos aos homens, por serem frutos da natureza humana. Sócrates e seus seguidores entendiam que deveria coexistir uma justiça natural, que era oriunda do senso do homem como animal político. Na Retórica de Aristóteles de Estagira, buscava-se demonstrar questões e problemas do conhecimento comum aos homens, ante a existência das leis naturais que se diferenciavam das estabelecidas pelas ciências particulares. Dizia-se que o motivo determinante para o homem associar-se ao Estado era a busca de um meio de defesa pessoal. Em Cícero, advogado e grande orador da Roma antiga, firmava-se a certeza de uma lei escrita no coração dos homens e reconhecida pela razão, que por sua distinção não poderia ser modificada ou revogada pelo dogma mesmo que equivalesse a um édito de Creonte. O Estoicismo, que influenciou o direito romano, concitava o homem a viver de acordo com as chamadas leis racionais da natureza. A ação de autoproteção deveria, portanto, ser um fenômeno inato aos seres humanos decorrente de um processo anímico, do atavismo animal e imperava mesmo quando se buscava livrar-se das paixões pelo racionalismo. Era o direito natural que estabelecia a ordem das ações conforme a virtude. Bem colocada, esta tese influenciou de sobremaneira a teoria do delito romana que estava sendo burilada pelos jurisconsultos. No velho testamento da Bíblia, a autodefesa passa a ser ordem obrigatória quando determina que o homem tenha por obrigação a defesa pessoal e defesa de sua família. O trecho bíblico que trata da autodefesa está na porção do Pentateuco conhecida como “O Livro do Pacto”, em Êxodo 22:2-3, que segue a declaração dos Dez Mandamentos e fornece os princípios de verdade e justiça dos hebreus. Informa em sua literalidade o direito à autodefesa P á g i n a | 12 como lei sagrada.“Se o ladrão for achado a minar, e for ferido, e morrer, o que o feriu não será culpado do sangue. Se o sol houver saído sobre ele, será culpado do sangue...”5 Com o cristianismo e sua doutrina pacifista, a autodefesa somente era admitida como “commodus discensus”, uso na fuga da agressão e jamais como revide para repelir a violência injustiça. Mas, em outros trechos, v.g., no escrito de Timóteo de Éfeso, o Apostolo Paulo teria firmado o direito a autopreservação e da defesa da sua casa como ato de fé e credulidade. Em João Batista reconhecia-se o direito de autoproteção dos soldados para no seu ofício de matar pessoas, desde que não cometessem excessos ou abuso no seu serviço. O célebre cobrador de imposto Mateus adota a doutrina do pacifismo e se põe contrário à autodefesa com uso de meios para repelir a agressão, pois entenderia haver o momento de sofrer e morrer. Deixou claro haver um sentido em dar o outro lado da face, e não se submeter ao sentimento de vingança. No século XVI, a Escola Salamanca através de Francisco Suarez definiu o papel da defesa ao Estado como resultado do pacto que existiria para proporcionar vida em sociedade. Definia como justo e na conformidade da natureza humana o estabelecimento da autoridade civil, que deveria proteger o homem e realizar a sua defesa. O dominicano Thomas de Aquino, como representante da escolástica, impunha que a ética seria viver de acordo com a natureza racional, e justiça seria dar a cada um o que é seu.6 Da sua teoria política e filosofia, Thomas Hobbes entendia que a submissão do homem à figura do Estado e a outros homens era antinatural, embora tivesse lógica a sua ocorrência, uma vez que Estado protegia, e não morrer em razão de uma agressão seria consenso. Com base no aprendizado filosófico e sociológico, o “homem” criado por Hobbes abria mão da agressão para compor, mas jamais renunciaria o direito autodefesa. O governo civil seria uma forma extensão ao direito de autodefesa contra agressões e método aceitável de autopreservação da vida. Hobbes entendia que havia uma medida geral e racional, em que seria proibido ao homem arruinar a sua vida, deixar de praticar a autodefesa e adotar ações para auto preservação. Por fim concebe o direito natural ao afirmar: “a liberdade que cada homem tem de usar livremente o próprio poder para a conservação da vida e, portanto, para fazer tudo 5 6 Êxodo 22:2-3 Thomás de Aquino. P á g i n a | 13 aquilo que o juízo e a razão considerem como os meios idôneos para a consecução desse fim”.7 No argumento de etiamsi daremus, no direito da guerra e da paz, o irreverente Hugo Grotiusdiz que nenhuma força superior poderia remover o direito natural de auto preservação, que pertencente ao direito natural, portanto inalterável e irrevogável. Sua visão era de combater a força com a estabilidade e certeza do direito; também afirmavao princípiode quetodasas naçõesse encontram vinculadas peloprincípio dajustiçanatural.8 Entre perseguições e fugas Grotius, afirmava-se que a lei natural está na raiz dos direitos naturais: Os cidadãos chamam de ‘direito’ uma faculdade possuída por todos os homens... Esse direito inclui o poder que temos sobre nós mesmos, que se chama liberdade... Assim como também inclui a propriedade... É injusto aquilo que é repugnante à natureza da sociedade estabelecida entre criaturas racionais. Desse modo, tomar de alguém algo que lhe pertence, por exemplo, em mero benefício de si mesmo, é repugnante à lei da natureza9 Em seu gênio proeminente, reconhecia o direito à autodefesa e o direito de ser recompensado por prejuízos causados por um adversário, mas recomendava que estes fossem exercidos com cautela. Orientador do Direito Internacional moderno acreditava que todas as medidas deveriam ser executadas para resolver pacificamente os conflitos, porque todos os lados certamente iriam sofrer perdas dolorosas pela beligerância. O filósofo dos direitos naturais John Lock testemunhou o direito natural como uma regra eterna e para todas as criaturas racionais, ao ser influenciado pela disposição metódica de jurisprudência natural do insurretoJure Belli ac Pacis. Para Grande filosofo do iluminismo, Rousseau, o homem perde a liberdade do estado natural e aceita se submeter ao estado civil para ter garantido o meio de defesa de sua propriedade, através do pacto social. Logo, o que se busca é uma forma de associação e de defesa que proteja a pessoa e seus bens com toda força comum. Ademais diz que o homem é quem deve ter cuidado na transformação dos direitos naturais em direitos civis. 7 Hobbes, T. (1651), "Leviathan". Grotius, H., Jure Belli ac Pacis, 1625. 9 Grotius, H., Jure Belli ac Pacis, 1625. 8 P á g i n a | 14 3. A AUTODEFESA EM FACE À JURISDIÇÃO A jurisdição é resultado da legitimação da verticalização entre o Estado e o particular na atividade típica de aplicação do direito. É quando o Poder Judiciário pratica a ação de fazer-se,ao se pôr no meio e acima do conflito. O Estado exercita a sua atividade jurisdicional respeitando o direito natural de autodefesa, dado que este está inscrito no ordenamento positivo e é usual na interpretação jurisprudencial. O jurista Giuseppe Chiovenda firma um significativo contraponto ao dimensionar a teoria da ação enquanto direito potestativo conferido ao autor de obter na lide, uma atuação concreta da lei. 10 Logo seria jurisdição a aplicação concreta do sistema legal e substituição da atividade privada pela pública. E a lei como norma abstrata e genérica regularia todas as situações que ocorram em concreto, por isso deve o Estado, no exercício da jurisdição, limitar-se à atuação da vontade concreta do direito objetivo.11 Seria a consagração do Estado-juiz, pois somente ele passaria a poder realizar o direito, deveria então em substituição às partes decidir os pleitos. Como conseqüência, o aparato repressor foi designado para materializar a força coercitiva dos poderes jurisdicionais. De pronto se estabeleceu o monopólio com o princípio da inafastabilidade da jurisdição e vedou-se qualquer tentativa, mesmo por lei, de afastar, dificultar ou excluir o acesso ao Poder Judiciário por quem entenda estar sofrendo abuso ou violação. Sobre a Jurisdição o renomado Fernando Capez, em sua obra, gizou: Jurisdição é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui, na pessoa de um juiz, aos titulares dos interesses em conflito, para, imparcialmente, aplicar o direito ao caso concreto, a fim de fornecer uma pacífica solução ao litígio, reafirmando a autoridade da ordem jurídica e a verticalidade da relação EstadoParticular. 12 Face a todos os conceitos de Jurisdição e a Teoria Geral do Processo, a autodefesa se colocou como norma jurídica. As portas para autotutela ou autodefesa no ordenamento moderno não foram fechadas, mas estabelecidas pelo processo legislativo em vista as determinações do desforço imediato, das previsões civilistas para defesa da posse, nos ditames penalista para o caso de perigo e injusta ameaça. Da sua solidificação legal ocorre a permitida resistência contra turbação da posse ou da imediata ação defensiva no esbulho possessório do Direito Civil. Decorredo uso da força 10 CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos. Belo Horizonte: Líder, 2003. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2000. 12 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Ed. Saraiva, 5ª edição, São Paulo, 2000. 11 P á g i n a | 15 para repelir agressão injusta e emprego de meio para repelir um perigo iminente que não deu causa. 4. O DIREITO A PETIÇÃO E O DIREITO A CERTIDÃO A guerra civil daRevolução Inglesa se deu entre os partidários do Rei Carlos I da Inglaterra e o Parlamento, liderado por Oliver Cromwell. Iniciada em 1642, teve termo final com a condenação à morte de Carlos I, em 1649,quando se admitiu a “petição de direitos” como instrumento de defesa dos súditos contra os excessos reais, assentando o fim das detenções arbitrárias, o consentimento do Parlamento para todos os impostos, a proibição do aboleto de militares em casas privadas e a proibição da lei marcial em tempo de paz.13 Na China Imperial pré-moderna, petições sempre foram enviadas para um Serviço de Transmissão (Tongzheng SI), onde secretários judiciais liam em voz alta para o imperador. Petições poderiam ser enviadas por qualquer pessoa. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanosé formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgãos especializados da Organização dos Estados Americanos, com atribuições fixadas pela Parte II da Convenção Americana de Direitos Humanos. Ambos os órgãos são competentes para verificar o cumprimento pelos Estados membros da OEA das obrigações assumidas com a assinatura da Convenção. Neste, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade não governamental de Estado-parte da Convenção pode denunciar uma pretensa violação aos direitos assegurados por ela à Comissão. E mesmo os Estados-parte em sua defesa podem denunciar supostas ofensas incorridas por outros Estados-membro, contanto que reconheçam eles próprios a competência da Comissão para examinar violações. Já em sede constitucional, criaram-se meios de autodefesa e os fixaram como direito fundamental a ser exercido por qualquer interessado, sem lhe fazer nenhuma restrição, pondoo em vigor como um instrumento geral. Esta ferramenta de defesa por sua amplitude pode ser direcionada a qualquer dos poderes e pode ser usado como elemento de defesa de quaisquer direitos. Por sua natureza jurídica,esse direito possui caráter informal, não necessitando deformas obrigatórias, sendo uma prerrogativa democrática, porém sua forma deverá ao menos ser escrita, com a identificação do peticionante, e independe de pagamento de taxas. 13 Bill of Rights of 1689, Inglaterra. P á g i n a | 16 Toma forma estável e permanente pelo princípio da ampla defesa ao assegurar a qualquer pessoa, física ou jurídica, nacional ou estrangeira, o direito de apresentar reclamações aos Poderes Legislativo, Executivo e ao Judiciário, até mesmo ao Ministério Público, em face de ilegalidade ou abuso de poder. O direito à certidão é recurso que se utiliza para antecipar a medida de defesa. Neste, o interessado passa, conforme texto constitucional, a ter direito de se informar sobre todas as situações jurídicas que envolvam qualquer um dos Poderes, ressalvado o segredo de justiça e segurança nacional. A autodefesa se materializa com uso do direito à petição, à medida que o interessado faz justo uso de defesa direcionada ao Estado, mormente quando houver ofensa e violação a direitos fundamentais, atos viciados pela ilegalidade ou pelo abuso de poder. Um exemplo da autodefesa pelo direito à certidão decorre de julgados em face de negativa quanto ao fornecimento de certidões relativas ao esclarecimento de situações jurídicas que podem ensejar a impetração de mandado de segurança em face da autoridade coatora. APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. VANTAGENS QUE COMPÕEM A REMUNERAÇÃO DE EX-SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO DE CERTIDÃO. NEGATIVA QUE VIOLA DIREITO FUNDAMENTAL. ORDEM CONCEDIDA. O direito à certidão em repartição pública para esclarecimento de situação de interesse pessoal é assegurado pelo art. 5º, XXXIV, letra ´b´, da Constituição Federal. O ex-servidor público tem direito de saber qual a totalidade das vantagens que compõem a remuneração paga pela municipalidade, mês a mês. A negativa por parte da Administração constitui ato ilegal, a ser reparado via remédio heroico. Apelação desprovida.14 REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PLEITO DE EXPEDIÇÃO DE CERTIDÕES VISANDO COMPROVAR O INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. NÃO FORNECIMENTO POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL. DIREITO LÍQUIDO E CERTO DO IMPETRANTE. ILEGALIDADE CONFIGURADA. ORDEM CONCEDIDA. SENTENÇA MODIFICADA PARCIALMENTE EM GRAU DE REEXAME NECESSÁRIO, APENAS PARA ADEQUAR A CONDENAÇÃO DA PARTE QUANTO ÀS CUSTAS PROCESSUAIS. De acordo com o disposto no artigo 5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal, é direito de todo o cidadão obter certidões junto às repartições públicas. A recusa do ente municipal em fornecer informações englobadas pelo direito de certidão caracteriza violação a direito líquido e certo, por ilegalidade ou abuso de poder, passível de correção via mandado de segurança. Modifica-se parcialmente a sentença em grau de reexame necessário, a fim de que recaia sobre o Município de Figueira o encargo do pagamento das custas processuais e não sobre a autoridade coatora.15 14 TJRS, Apelação Cível Nº 70006923270, Vigésima Primeira Câmara Cível, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 05/11/2003. 15 TJPR - 5ª C.Cível - RN 0368790-5 - Curiuva - Rel.: Des. Luiz Mateus de Lima - Unanime - J. 26.06.2007. P á g i n a | 17 Da mesma forma, mas em outro campo, é possível vislumbrar na Certidão de Ônus Reais, que é um documento emitido pelo cartório de registros de imóveis e este informa se há alguma restrição à fruição de propriedade de um imóvel. E também na seara dos tributos a autodefesa pelo direito de certidão se dá quando o sujeito passivo (contribuinte) paga dívida ativa fiscal e pede ao órgão competente, por meio de requerimento, uma certidão negativa de débitos fiscais, que é a prova de quitação dos créditos tributários. 5. AUTODEFESA NO CÓDIGO CIVIL. A prima faciealgumas ações humanas seriam apontadas como ilícitas quando gerarem lesão a outrem ou destruição de um bem de terceiro, mas em razão do reconhecimento da autodefesa, prevista legalmente, estas não geram a obrigatoriedade de reparar o dano. Embora a conduta se direcione a lesionar ou destruir um bem jurídico, será desqualificada como ilícito por ter sido amparada no direito cível.O código civil aprimorou o sentido da autodefesa para proteção de bens e interesses privados, chegou mesmo a normatizá-lo em prol da posse ou propriedade, admitindo quando se concretiza de forma imediata e necessária para manutenção ou restituição da posse. Indo além, declara que é subsistente na conduta de deteriorar, destruir um bem ou lesionar pessoa para autodefesa contra perigo iminente. O mestre Rodolfo Pamplona Filho, com brilhantismo, chega atuar na ideação do tipo conglobante penal no trato do dano moral: (...) a ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Em seus aspectos fundamentais há uma perfeita coincidência entre o ilícito civil e o ilícito penal, pois ambos constituem uma violação da ordem jurídica, acarretando, em consequência, um estado de desequilíbrio social. Mas, enquanto o ilícito penal acarreta uma violação da ordem jurídica, quer por sua gravidade ou intensidade, a única sanção adequada é a imposição da pena, no ilícito civil, pôr ser menor a extensão da perturbação social, são suficientes as sanções civis. A diferença entre o ilícito civil e o ilícito penal é, assim, tão-somente, de grau ou de quantidade.16 Esta distinção tem grande importância para a inteligência do tema que nos propomos estudar, tendo em vista que o dano moral implica responsabilização tanto na esfera civil, quanto penal, pelo que se conclui que as sanções também se consubstanciarão de formas jurídicas distintas, de acordo com o respectivo ramo do Direito. Pôr isso, 16 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O dano moral na relação de emprego. 2ª ed. São Paulo: Ltr, 1999. P á g i n a | 18 explicite-se que a diferença entre estes institutos é de grau, e não de substância, do que resulta a possibilidade de sua aplicação conjunta, em função de um mesmo fato, sem que ocorra bis in idem.17 O art. 1.210, § 1º, Código Civil Brasileiro, prevê o desforço imediato, que é na verdade o uso da autodefesa ou autotutela da posse, quando injustamente houver uma vítima de esbulho ou turbação. A autodefesa permitida deve consistir no imediato emprego moderado de meios necessários à manutenção ou a retomada da posse. No artigo 188 do Código Civil, a encontramos em forma de justificante do ilícito civil ao desconsiderar como ilícito a conduta humana de deteriorar ou destruir coisa alheia, ou a lesionar a pessoa, desde que tenha como fim de remoção de perigo iminente. Como se vê, o uso da autodefesa ganhou legalidade em face à sua legitimação, quando se tornou necessária e se prestou a remover ou encerrar o perigo dirigido. Autoriza-se o possuidor a valer-se da sua força física, sem assistência do Estado-Juiz, desde que a conduta seja na exata medida das necessidades para repelir. O possuidor ou detentor usa do sistema de justiça privada para adotar providências necessárias para defender a sua posse, logo que tome conhecimento de ato lesivo. Entende-se, também, quem o faz em nome da autodefesa quando conta com ajuda de terceiros, para vencer forças superiores a sua capacidade de defesa. “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se, ou restituir-se por sua própria força, contando que o faça logo”. (art. 1210, § 1º, CC) Amplitude da autodefesa permite que mesmo em situação de posse injusta e de má-fé seja atingida para o desforço, pois em qualquer situação permite a reação pessoal do possuidor para oferecer resistência ao ataque. O possuidor pode agir com suas próprias forças, poderá ser auxiliado por terceiro ou empregar armas. Mas, seu requisito é que o próprio possuidor, em pessoa se coloque à frente da reação, assumindo-lhe o ônus da responsabilidade. O Código Civil considera como ato ilícito e passível de reparação da “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.”Em seguida, tratou de estabelecer que desconsidera como ilícita a ação ou omissão pretendente ao uso da autodefesa, mesmo que resulte em perecimento da coisa ou lesão corporal à pessoa, afastando completamente a culpa extracontratual ou aquiliana. 17 Ibidem. P á g i n a | 19 Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo. Nota-se o abrandar da natureza jurídica do ato ilícito decorrente de relação extracontratual, ou seja, nos atos jurídicos que ocorrem sem que haja vínculo de natureza convencional entre o agente e o sujeito passivo do dano. O dever jurídico de reparar o dano fica afastado quando este é consequência da autodefesa, mesmo que resulte em prejuízo para terceiro. 6. A AUTODEFESA DO DIREITO PENAL 6.1 O papel da autodefesa na legítima defesa e no estado de necessidade. Diversas são as diferenças entre o estado de necessidade e a legítima defesa, principalmente quanto ao direcionamento da autodefesa. No estado de necessidade há conflito entre titulares de interesses jurídicos lícitos e existe uma agressão a um bem tutelado pelo direito. O desforço é aplicado contra a agressão ou contra bem diverso para que se alcance a sensação de defesa. Ex: na fuga com dano, no arrombamento da janela para fugir ao incêndio. É a prática da autodefesa contra qualquer causa, em desfavor de terceiros e seus bens, em caso fortuito ou força maior para se configuraruma excludente do estado de necessidade. Quando a autodefesa se dirige à conduta do agressor, se perfaz a legítima defesa no sentido de repelir ação humana injusta. No estado de necessidade, é ação, e na legítima, defesa é reação à agressão atual ou iminente. Naquele se dirige a proteger um bem jurídico que é exposto a perigo e na última é praticada com fito de evitar a uma agressão. Neste sentido, somente há legítima defesa quando se executam medidas contra o autor de uma agressão dirigida contra si ou na defesa de terceiro. Diante do estado de necessidade, a atuação da autodefesa se dirige até mesmo contra terceiro inocente e em face de uma agressão que se sabe justa. Na legítima defesa, evita-se uma agressão perpetrada de forma injusta ao praticar uma ação defensiva com aspectos agressivos. P á g i n a | 20 Compreende-se em estado de necessidade quando há conflito entre vários bens jurídicos diante de uma situação de perigo, que não pôde ser prevista, quando o perigo decorre de conduta humana, animal ou da natureza,não tem destinatário certo, os interesses em conflito são legítimos e é aplicada indistintamente. Por conseqüência, o estado de necessidade real deverá excluir o caráter antijurídico da uma conduta criminosa que se concretizou no uso da autodefesa. Mas há casos de ameaça ou ataque por pessoa imputável a um bem jurídico, do defensor ou de outrem, que tem a agressão definida e sua origem certa. Neste caso, da mesma forma a autodefesa deverá se dirigir contra agressão ou sua fonte, sempre em caso de agressão humana com destinatário certo e o interesse injusto, o que de pronto justifica o direito à autodefesa. O defensor deverá apresentar o requisito subjetivo do conhecimento da situação de fato justificante, como os requisitos objetivos para autodefesa, sempre fazendo uso moderado dos meios necessários, sem jamais deixar de atuar como medida de autotutela contra injusta agressão, atual ou iminente, nos termos do art. 25 do Código Penal. E na hipótese do defensor acreditar estar sofrendo um perigo, por erro quanto aos fatos, chega a inculcar que virá a sofrer um dano e adota uma postura de defesa com uso de força, fazendo perecer ou lesionando pessoa, este age em estado de necessidade putativo ou imaginário. No caso de Legítima defesa putativa ou imaginária,o defensor, supondo por erro que está sendo agredido, repele a suposta agressão inexistentecom uma ação defensiva. Não está excluída a antijuridicidade do fato porque inexiste um dos seus requisitos de ser real, gerando a hipótese de uma excludente da culpabilidade, conforme o art. 20, § 1º do CP. À luz do Código Civil,da conduta resultaria a ocorrência do ilícito civil, através da culpa aquiliana ou extracontratual, gerando a obrigação de reparar o dano ou a lesão que praticou contra o suposto agressor na legítima defesa imaginária. Da mesma forma se torna obrigado a compor em face ao prejuízo do perecimento ou da lesão que provocou quando agiu imaginando em estado de necessidade putativo. 6.2 O exercício arbitrário das próprias razões. O exercício arbitrário das próprias razões não se coaduna com a autodefesa, uma vez que naquele o que se pretende é a justiça comas próprias mãos, que se perfaz na pretensão pessoal, que, embora legítima, está desautorizada pela lei. Enquanto na última, a pretensão é P á g i n a | 21 de concretizar a defesa de um bem jurídico que seria violado no caso de inércia. A autodefesa legítima é autoriza pela lei e se aplica para evitar os efeitos da agressão. No exercício arbitrário das próprias razões o sujeito ativo pretende muito mais do que se defender, pois busca alcançar a justiça com as próprias mãos. O tipo penal previsto no artigo 345 do Código Penal define: Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa. O Estatuto tem por objetivo manter a verticalização da atividade jurisdicional, ao preservar a missão do estado de aplicação do direito e administração pública como ente legitimado a distribuir a justiça. Embora o tipo penal possua preceito secundário brando e seja considerado de menor potencial ofensivo, ainda se presta a resguardar o caráter de substitutividade da prestação jurisdicional, emitindo um comando ao particular que será punido quando sua conduta lesionar a administração da justiça que é o bem jurídico protegido. 6.3 Autodefesa e a retorsão imediata Aqui a autodefesa tem o papel de excludente de ilicitude especial, que ocorre nos crimes contra a honra, quando se faz a defesa do decoro ou da moral, praticando literalmente a agressão mútua. O artigo 140 estabelece: Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena: I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. A previsão legal é na verdade uma consolidação do direito de autodefesa quando o sujeito se vir diante de agressão a sua honra subjetiva e imediatamente vem a injuriar o agressor em resposta a injúria antecedente. A sua aceitação no ordenamento é possível quando realizada imediatamente e para abater o ânimo de quem lhe agredia. P á g i n a | 22 7. ATUAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO A ação de resistência contra medida exterior e defesa de interesse pessoal é fomentada no campo trabalhista através da greve e lockout. Estes movimentos sociais são compreendidos como autodefesa, pois se tratam de forma da própria parte interessada proceder à defesa de seus interesses. No aspecto laboral, a greve e o lockout é defender a si mesmo e por si só, fazendo uso das próprias razões e obrigar a força inversa a aceitar a sua vontade e permitir a realização de seu interesse. A greve é o movimento paredista amplamente aceito e difundido na sociedade contemporânea, por sua vez o lockout é o movimento patronal que paralisa as atividades da empresa fechando seus portões para impedir o acesso da força de trabalho ou quando não fornece instrumentos para atividade laboral. A doutrinadefine os meios da autodefesa como aqueles que as partes de um conflito coletivo, ou uma de elas, utilizam para fazer valer as suas reclamações, ou a negativa das pretensões do outro lado.18 As partes - explica - invocam o direito da autodefesa (como na ordem jurídica geral invoca-se o direito da legítima defesa sem esperar ou confiar na intervenção dos órgãos competentes).19 O meio principal da autodefesa é a greve. A autotutela ou autodefesa no campo jurídico laboral é um instrumento fundamental para a defesa do trabalhador e proteção do trabalho consagrada nas Constituições e nos Códigos de leis laborais. É também ferramenta utilizada para impor o avanço dos trabalhadores, equilibrando interesses sociais e demonstrando sua consciência de classes. A Consolidação das Leis Trabalhista como conjunto de dogma no campo do direito do trabalho normatiza o emprego do lockout. O art. 722 estabelece: Art. 722. Os empregadores que, individual ou coletivamente, suspenderem os trabalhos dos seus estabelecimentos, sem prévia autorização do Tribunal competente, ou que violarem, ou se recusarem a cumprir decisão proferida em dissídio coletivo, incorrerão nas seguintes penalidades: a) multa de 300 (trezentos) a 3.000 (três mil) valores de referência regionais; b) perda do cargo de representação profissional em cujo desempenho estiverem; c) suspensão, pelo prazo de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, do direito de serem eleitos para cargos de representação profissional 18 HernainzMarquez, op.cit., p.28. Entre os alemães, cfr. Walter Kaskel, Herman Dersch, Derecho del Trabajo, trad. Ernesto Krotoschin, Buenos Aires, De Palma, 1961, p.32 19 http://jus.uol.com.br/revista/texto/7795/dos-principios-do-direito-do-trabalho-no-mundo-contemporaneo/3 P á g i n a | 23 Autodefesa se firmou atravésda Consolidação das Leis Trabalhista quando tratou da disponibilidade de empregados e empregadores litigarem sem advogado, no âmbito da Justiça do Trabalho. Uma vez que o seu texto estabelece: Art. 791 - Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a Justiça do Trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final. § 1º - Nos dissídios individuais os empregados e empregadores poderão fazer-se representar por intermédio do sindicato, advogado, solicitador, ou provisionado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. § 2º - Nos dissídios coletivos é facultada aos interessados a assistência por advogado. 8. NO CAMPO TRIBUTÁRIO. A autodefesa ficou sedimentada na Constituição Federal através dos artigos art. 145 § 1º e art. 150 IV, quando observou a capacidade contributiva e o princípio do não-confisco, legitimando as medidas de autoproteção quando não houvesse pagamento das exigências tributárias, para repelir os excessos que se configurariam injusta agressão ao direito subjetivo da pessoa na qualidade de contribuinte. Não existiria razão lógica para impedir o uso da autodefesa em face às constantes aplicações de sistemas tributários exasperados ou distorcidos. Provém do correto respeito à capacidade contributiva das empresas e dos indivíduos o ato de graduar os tributos com justiça ao verificar a capacidade pessoal e ao se distinguir os iguais dos desiguais. Com os tributos confiscatórios e impostos com distorções, fica clara a afronta a princípios universais e constitucionais, mormente quando deixa o sujeito passivo em situação temerária. Conforme o caso, esta distorção pode afetar o direito de existência e de gozo dos bens legalmente adquiridos e da sua função social, assim o não pagamento seria meio e forma de repelir a injusta agressão do seu direito subjetivo. Desde os primórdios dos tempos que se reconhece a autodefesa como direito subjetivo e natural, contudo não se pode confundir com a questão da sonegação fiscal dos fraudadores, que é atuação de forma dolosa para ludibriar o pagamento dos impostos devidos e se locupletar ilicitamente. A autodefesa no campo tributário seria uma atuação atendendo o caráter de sobrevivência, quando em face ao perigo dos excessos praticados pelo Estado e seus prepostos à pessoa que corresse um risco. Seu caráter é de manutenção da sobrevivência em face às violações praticadas pelo Estado, daí decorre que a empresa que não paga os P á g i n a | 24 tributos devidos atuaria com uso da autodefesa, que seria reconhecida como legítima defesa e, portanto, causa excludente da antijuridicidade. 9. O DIREITO ADMINISTRATIVO E A SÚMULA VINCULANTE. A Carta Magna permitiu a garantia da ampla defesa nos dois procedimentospelos quais o Estado administra as demandas, ou seja, pela via do processo administrativo e do processo jurisdicional. “Art. 5º, inciso LV: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” Considerando a autodefesa, o plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou a 5ª Súmula Vinculante para estabelecer que, em processo administrativodisciplinar, é dispensável a defesa técnica por advogado. Estabeleceu-se a seguinte redação: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. A postura foi de encontro à contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que, com base na indisponibilidade da defesa técnica, entendeu ser obrigatória a presença do advogado em processo administrativodisciplinar e até editou súmula dispondo exatamente o contrário do que decidiu hoje o Supremo. Dizia esta súmula do STJ, de número 343: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases de processo administrativo disciplinar.” Entre os Tribunais houve o confronte e debate da renúncia à defesa técnica, se o acusado poderia dispor da defesa técnica em prol da autodefesa. Por entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal a defesa técnica seria dispensável no processo administrativo disciplinar. A presença do advogado seria uma faculdade de que o servidor público disporia, conforme o artigo 156 da Lei 8.112/90. As exceções decorreriam do caso do servidor se encontrar em lugar incerto e não sabido, quando caberia ao órgão público designar um procurador e ainda, no fato da acusação tratar-se de objeto complexo e escapar à compreensão do servidor para ele próprio defenderse. P á g i n a | 25 10. EFETIVIDADE NO PROCESSO PENAL. No processo penal, a sua sustentação decorre do princípio da ampla defesa, que se entende como o direito à defesa técnica e a própria autodefesa, também no simples exercício de preservação da liberdade em razão de fuga do distrito da culpa. A jurisprudência pátria tem compreendido que a autodefesa no direito adjetivo ressai como o direito à audiência, o direito de presença nos atos, o direito de postulação pessoal e o direito à fuga. Esta noção não prega apenas um direito subjetivo fictício e sem efetividade, pois exige dos julgadores que permitam sua concretização e estabeleçam medidas para que tenha eficácia. No processo penal, a autodefesa se realiza quando o acusado é apresentado pessoalmente ao juiz da causa, para que possa ser ouvido no curso da ação penal, oportunidade que poderá expor sua versão dos fatos, demonstrar as excludentes ou justificantes, apresentar o seu álibi, fazer a negatória de autoria e refutar até mesmo as provas produzidas. É também o questionamento da acusação formal que é imputada ao réu direito como requisito fundamental para validade do interrogatório. Reconhece-se a autodefesa quando o réu evade do distrito da culpa, para não ser preso em flagrante delito, pois é antinatural que este assista o cerceamento do seu direito de liberdade. Admite-se que a fuga ao distrito da culpa, por si só, não justificaria nem mesmo a decretação da custodia cautelar da acusado. É no processo penal, todavia, que a ampla defesa recebe uma forma toda própria, distinta da que normalmente possui nos demais tipos de processo. Tal garantia, na persecução criminal, envolve o direito do acusado à defesa técnica e à autodefesa. Explica-nos a doutrina: Quando, nas Constituições, se assegura a ampla defesa, entende-se que, para a observância desse comando, deve a proteção derivada da cláusula constitucional abranger o direito à defesa técnica durante todo o processo e o direito à autodefesa. Colocam-se ambos em relação de diversidade e complementariedade. 20 Se revela com o direito à assistência profissional no curso da ação penal, seja com assessoramento do acusado, por advogado constituído ou designação de defensor público. Na fase acusatória existe a determinação legal que nem mesmo o acusado pode dispor e nem a defesa técnica pode deixar de executar. O processo penal proíbe o patrocínio meramente 20 FERNANDES, Antônio Scarance (2005, p. 293). Cf.: GOMES, Luiz Flávio. As garantias mínimas do devido processo criminal nos sistemas jurídicos brasileiro e interamericano: estudo introdutório. In: GOMES, Luiz Flávio, PIOVESAN, Flávia (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. P á g i n a | 26 contemplativo ou aparente.21 Já a segunda confere ao acusado o direito de, pessoalmente, exercer atos típicos de defesa, independentemente de possuir capacidade postulatória.22 No processo penal, a ampla defesa vai além do trabalho técnico do defensor, dos seus arrazoados, petições e recursos. Alcança também a atuação defensiva do próprio réu, que se desenrola ao longo do procedimento criminal e está expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Carta Magna de 1988. O Mestre Vicente Greco Filho afirma que a ampla defesa é constituída a partir dos seguintes fundamentos: a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável". (Manual de Processo Penal, 5a ed., São Paulo, Saraiva,1998) O paradoxo é que apesar de ser renunciável pela parte não é dispensável pelo julgador. O acusado que desejar pode abrir mão de sua presença no interrogatório e da instrução, como direito que lhe é permitido por lei,mas o juiz não pode dispensá-la sem a expressão livre e consciente do acusado.Para JoséFrederico Marques, (Tratado de direito processual penal, Saraiva, 2º. Vol., p. 153), fica patente: “A defesa técnica não se torna a única a poder desenvolver-se no processo penal. A seu lado existe a autodefesa, a qual consiste na participação direta do réu em quase todos os atos do processo”. Novamente José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, 2 ed., RJ: Forense, 1965, vol. II, p. 64):“A autodefesa é defesa particular do acusado, através da participação em vários atos processuais e da presença àqueles que se realizam coram populi para instrução e debates da causa.” Com seu marcante garantismo penal o jurista italianoLuigi Ferrajoliassinala: O pensamento iluminista, coerente com a opção acusatória, reivindicou a presença de um e de outro a todas as atividades probatórias. Voltaire protestou contra a 21 22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Súmula 523. Pedroso (2001, p. 35) empresta à locução "autodefesa" outro sentido, que não é o acolhido pela maioria da doutrina. Para o referido autor, tal expressão significa "patrocínio próprio, vale dizer, tem vislumbre quando o acusado, possuindo habilitação técnico-jurídica, postula e debate em causa própria". P á g i n a | 27 possibilidade de que o confronto entre o imputado e as testemunhas fosse entregue à discricionariedade do juiz em vez de ser obrigatório. (...) E o mesmo fez Pagano, que desejou que as testemunhas de acusação ‘serão interrogadas ex integro na presença do réu’ e sublinhou ‘o quanto ajuda a conhecer a verdade tal contradição’. 23 Neste sentido se manifesta o Supremo tribunal federal: O direito de estar presente à instrução criminal conferindo ao réu e seu defensor assenta princípio do contraditório penal. Ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, decorrente da presença do acusado aos atos da instrução, quando lhe é dado contraditar a testemunha ou arguir circunstâncias ou defeitos que a tornem suspeita de parcialidade ou indigna de fé (art. 214 do CPP), bem assim auxiliar seu defensor na oportunidade das reperguntas. 24 O direito de estar presente à instrução criminal garante ao acusado a ampla defesa. A violação desse direito importa em nulidade absoluta, e não simplesmente relativa do processo. (RTJ 79/110). No trato das liberdades públicasAda Pellegrini Grinover chegou a vaticinar: O réu, como qualquer cidadão, é portador de uma série de direitos, de relevância prioritária e autônoma. Tais direitos devem ser tutelados pela própria autoridade jurisdicional que, no exercício de sua atividade, encontra, assim, uma série de limites.25 Em face ao reconhecimento ao direito de autodefesa, o juiz na sentença deverá demonstrar que examinou as alegações do acusado, que foram expostas em audiência. E mesmo no júri as argumentações aventadas no exercício da autodefesa irão gerar a missão ao juiz-presidente do Tribunal do Júri de reconhecer a sua relevância e formular quesito específico sobre as questões arguidas pelo réu no plenário do júri. É corolário do processo penal que na sua instrução o acusado terá direito a participar da produção das provas26, sejam subjetivas ou científicas, sendo defeso lhe negar o direito ao exame de corpo de delito. A presença do acusado não é indiferente, mas ao contrário se revela como efetividade da própria defesa técnica,pois somente o acusado no seu interrogatório ou na colheita das provas subjetivas pode se defender, indo além de esclarecer os fatos. É plausível que somente o acusado possa ter ciência dos fatos para justificar a sua conduta delituosa, destacar sobre o dolo ou culpa. 23 FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, SP: RT, 2002, p. 491. BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RHC,Rel. Néri da Silveira – RT 601/443. 25 GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal (As interceptações telefônicas). 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. 26 http://jus.uol.com.br/revista/texto/11250. 24 P á g i n a | 28 Sua dinâmica permite ao acusado de pessoalmente, através de atos postulatórios que lhes são permitidos, como interpor o recursos, em tese propor habeas corpus e de pretender a revisão criminal. Conforme os artigos 577 e 623 do CPP, que denotam o justo direito de peticionar por mãos próprias: Art. 577 - O recurso poderá ser interposto pelo Ministério Público, ou pelo querelante, ou pelo réu, seu procurador ou seu defensor. Parágrafo único - Não se admitirá, entretanto, recurso da parte que não tiver interesse na reforma ou modificação da decisão. Art. 623 - A revisão poderá ser pedida pelo próprio réu ou por procurador legalmente habilitado ou, no caso de morte do réu, pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. Frise-se que o reconhecimento de tais prerrogativas não exclui a assistência obrigatória da defesa técnica. O acusado limita-se à iniciativa processual, na ação penal, no recurso ou em caso de incidente processual. No processo penal, a autodefesa de fato é uma proposta com força cogente suficiente para gerar nulidade absoluta dos atos processuais,de tal sorte que não justifica o impedimento à defesa pessoal sob alegação de impossibilidade de remoção de acusado em ponto distante da sede da Comarca. A efetividade não é benefício, mas prerrogativa que tem fulcro na garantia constitucional do devido processo legal do "due process of law". E fica constitucionalmente assegurado ao acusado o direito de comparecer aos atos processuais e perante o juízo processante. Essa segurança tem caráter fundamental, dado que resulta da aplicação do direito subjetivo de defesa. 11. NO TRIBUNAL (DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO) De fato existe a possibilidade real da prática da autodefesa do réu no Tribunal e em sede de recurso, quando as pretensões esbaldarem para o segundo grau de jurisdição, sem que seja considerado supressão de instância. É o caso do Tribunal entender ser necessário a repetição da prova subjetiva ou a sua produção, quando esta é relevante para a causa e foi indeferida pelo juízo a quo, por ter esgotado a sua atividade jurisdicional de primeira instância e se vislumbrando nos autos a plena inocência do acusado. É natural no processo que, exaurida prestação jurisdicional e com trânsito em julgado, o juiz de primeiro grau que prolatou a sentença não possa se manifestar nos futuros pleitos, ao considerar sua intempestividade. Mas, mesmo assinada a sentença condenatória, advém nova P á g i n a | 29 instrução probatória pelo Tribunal, sem ser considerada supressão de instância ou ofensa ao princípio do juiz natural. Fundamentadamente pode-se abrir espaço para novo interrogatório, em face à eventual versão nova dos fatos, que seja contundente e cabal. Com fulcro no art. 616, do Código de Processo Penal, autoriza-se à Turma Julgadora, em apelação a converter o julgamento em diligência para proceder novo interrogatório do réu, reinquirir testemunhas e determinar outras providências em razão da necessidade de se obter explicação de questões acentuadas no processo penal. Transcreve-se:“Art. 616 - No julgamento das apelações poderá o tribunal, câmara ou turma proceder a novo interrogatório do acusado, reinquirir testemunhas ou determinar outras diligências.” 12. NO DIREITO INTERNACIONAL. A garantia da autodefesa está positivada em tratados internacionais devidamente incorporados àlógica processual brasileira, entre elas: a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/ONU e na Convenção Americana de Direitos Humanos/OEA. No que concerne ao plano normativo, a garantia em questão vem expressa na Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “[é] direito do acusado defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com o seu defensor” (art. 8º, item 2, alínea b, primeira parte). Assim também no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: “[...] o acusado terá direito a estar presente na audiência de julgamento e a defender-se a si próprio ou a ser assistido por um defensor da sua escolha [...] “(art. 67, item 1, aliena d, primeira parte). As duas normas foram incorporadas ao direito interno pelos Decretos 678, de 6 de novembro de 1992, e 4.388, de 25 de setembro de 2002, respectivamente.A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8, inc. 2, f, decreto nº 678 de 06.11.1992 - DOU 09.11.1992) assegura o direito de inquirir a testemunha. Ex vi: P á g i n a | 30 Art. 8º (...) 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos. Parece-nos inquestionável o direito do réu estar presente ao ato procedimental no sistema acusatório adotado no Brasil. O juízo penal se obriga a ser o principal mantenedor do direito do próprio réu e não pode ser seu algoz inquisidor, uma vez que a fase inquisitorial restou vencida. O fato de repetir as aparições de autodefesa nos Tratados e Convenções Internacionais somente ressalta o seu reconhecimento como direito natural e subjetivo, que se sobrepõe além das fronteiras geopolíticas e da soberania dos Estados. Essas legislações estabelecem como princípio universal além dos ordenamentos e se coloca como um conjunto com valor inerente a todas as pessoas. 13 AUTODEFESA E USO O DE IDENTIDADE FALSA. Com força iluminista, o princípio Nemo tenetur se detegere,27 que nosso vernáculo traduz a noção de que pessoa não é obrigada a produzir prova contra si mesma, se firmou como entendimento pacífico aplicado ao caso prática. Para Celso Delmanto,é verdadeiro exercício constitucional do direito da autodefesa que gera a atipicidade da conduta praticada pelo acusado. Ao construir a defesa da fé pública como objeto juridicamente protegido o Código Penal, assinala: Art.307 - Atribuir-se ou atribuir à terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave28 Mas, o direito constitucional de autodefesa induz a interpretação ampla na qual nenhum acusado, réu ou indiciado é obrigado a depor sob compromisso de dizer a verdade e 27 cf. Luiz Flávio Gomes e Valério de O. Mazzuoli, "Direito Penal - Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica", vol. 4/106; Sylvio H. de F. Steiner, "A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e Sua Integração ao Processo Penal Brasileiro", p. 125, item n.º 4.4.7, 2000, RT, v.g. 28 _________. Código penal anotado. São Paulo: Saraiva. P á g i n a | 31 confronta a tipicidade formal da conduta. É necessário relembrar aimorredoura doutrina de Cesare Bonesana, o Marquês de Becária, o acusado não presta juramento perante o tribunal29. Para o festejado mestre Luiz Flavio Gomes, por via reflexiva o acusado tem o direito a mentir e ao silêncio, calando-se sobre os fatos que são imputados. Também ensina que é assente o direito do acusado em mentir ou silenciar quanto aos fatos e quanto sua identificação, pois é meio justo de se proteger do aparato repressor. Na oportunidade, o renomado mestre cita as jurisprudências de nossos tribunais. Vejamos: STJ: Não configura a conduta típica do art. 307, do CP, o fato de a pessoa, indiciada, se atribuir falsa identidade perante a autoridade policial, porquanto tratase, na verdade, de mecanismo de autodefesa, amparado, em última análise, pelo direito constitucional de permanecer em silêncio (RT 814/570). STJ: (...) Não comete crime previsto no art. 307, do CP, aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial como recurso de defesa para encobrir maus antecedentes, pois tal postura encontra-se ao abrigo da garantia constitucional que lhe assegura o direito ao silêncio quando inquirido pela autoridade pública (RT 788/551). TJ/MG: O agente que no momento de sua prisão em flagrante, se atribui outro nome não comete o crime de falsa identidade, previsto no art. 307, do CP. Tal gesto deve ser interpretado como autodefesa, e não como prática delitiva (RT 797/648). A manobra defensiva, intuitiva, de alegar uma idade inferior a 18 anos para escapar ao flagrante, não atinge o bem jurídico da fé pública (TACRIM-SP – AC 436.117-9 – Rel. Mafra Carbonieri – JUTACRIM 90/228). Como consequência lógica, se ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si, tampouco se auto-incriminar.Neste diapasão, a conduta de atribuir a si falsa identidade ou inimputabilidade é autodefesa contra as aflições impostas pelo Estado. É o uso prático do verdadeiro direito a não se auto-incriminar e se autodefender, assegurando a certeza de liberdade ao individuo. Também se entende que o Direito de não auto-incriminação apresenta diferentes faces, entre elas o direito ao silêncio, não declarar contra si próprio, não confessar e não se submeter para produção de prova. No contexto da teoria da tipicidade conglobante, não se pode punir quem atribui a si falsa identidade parase proteger, uma vez que esta teoria diz que quando uma norma do 29 CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia, 4ª, Rio de Janeiro, Impetus, 2009. P á g i n a | 32 direito permite certa conduta, esta não pode ser proibida pelo direito penal, devendo o crime ser considerado como atípico. 14D. ESCABIMENTO DA AUTODEFESA 14.1 Substituição da defesa técnica pele autodefesa. Como se sabe, a defesa técnica e patrocinada por advogado é um direito indispensável e irrenunciável de todo cidadão, mormente na condição peculiar de acusado ou preso. Com esta ótica, os ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal negaram Habeas Corpus, quando o Paciente pretendia fazer uso da autodefesa por não reconhecer o benefício da defesa técnica. No julgamento que direcionou e decidiu o caso da ausência da defesa técnica, o ministro Ricardo Lewandowski firmou que a legislação brasileira dispõe que a defesa técnica é indispensável e será sempre patrocinada por advogado regularmente inscrito. Embora este entendimento venha a ser mitigado pela dispensabilidade de acompanhamento técnico estabelecido pela lei nº 9.099/95. Quando viabilizou a desnecessidade de constituir procurador ou quando facultouao particular exercer sua própria defesa nos Juizados Especiais Cíveis. No que se limita às ações em que o valor da causa não extrapole a vinte salários mínimos. Entendimento que com boa vontade pode-se extrair da Lei nº 8.906/94, que faculta através do art. 28, do Estatuto da Advocacia, admissãoà defesa em causa própria, exceto nos casos que a mesma lei proíbe. Assim, mesmo a OAB, enquanto autarquia federal que assumiu a prerrogativa fiscalizar a atuação profissional e zelar pela advocacia, abriu espaço para o patente uso da autodefesa nas lides processuais. Seria o inolvidável caso de autodefesa qualificada pelo emprego de defesa técnica. 14.2 Não cabimento da corrupção ativa como autodefesa. Não age em autodefesa o ato de oferecer dinheiro a policial com fito de não ser efetuada a prisão em flagrante por outro delito praticado,uma vez, que o princípio da autodefesa não pode escudar ações delituosas e intenções de evitar aplicação justa da lei. Por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federalindeferiu pedido da Defensoria Pública da União em sede de Habeas Corpus que pretendia absolver Paciente, P á g i n a | 33 condenado por ter oferecido dinheiro e ter alegado que o fez em autodefesa. O relator, ministro Gilmar Mendes, rejeitou a tese da defesa, segundo a qual oferecer dinheiro a policial para que não fosse efetuado o flagrante configuraria “ato de autodefesa”. E declarou no bojo: “O artigo reconhece o direito do agente de negar, de infirmar os fatos, de silenciar-se, mas não de oferecer dinheiro”30 14.3 Da impossibilidade de aplicação no porte irregular de arma de fogo. Da mesma forma, no delito de perigo abstrato ou presumido de porte de arma de fogo, não foi admitida a alegação que se faz necessário o porte irregular de arma de fogo em face a determinada profissão como meio de autodefesa. EMENTA: APELAÇÃO - PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO - ART. 14 DA LEI Nº 10.826/03 - ABSOLVIÇÃO - IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - LICENÇA PARA PORTE VENCIDA - DOLO DEMONSTRADO - INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA - INOCORRÊNCIA - RECURSO PROVIDO. Para a configuração do tipo penal previsto no art. 14 da Lei 10.826/03, basta a simples conduta do agente de portar arma de fogo, sem autorização e em desacordo com determinação legal, agindo com dolo o acusado cuja licença para porte se encontrava vencida há cerca de oito anos. Impossível absolver o réu ao fundamento de inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, vez que a simples alegação de que portava a arma para se defender, por si só, não o escusa de agir conforme determinado pelas normas legais que regulam a vida em sociedade. 31 30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, HC 105478/MT, 2ª T, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJU de 14.09.2010, j. 25.02.2011. 31 APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0024.04.287133-5/001 – Comarca de Belo Horizonte. RELATOR. DES. VIEIRA DE BRITO. P á g i n a | 34 CONSIDERAÇÕES FINAIS A definida verticalização da prestação jurisdicional e teoria da ação não esgotou a possibilidade da autodefesa reconhecida como direito natural, ético e subjetivo do indivíduo. Tratado como direito universal do homem, foi apresentado ao mundo através de tratados e convenções internacionais que foram ratificadas por diversos países. Em face ao jus naturalismo de Hugo Grotius, nem uma força superior poderia remover o direito natural de auto preservação, pertencente ao direito natural, portanto inalterável e irrevogável. É axiológico e do sistema normativo a autodefesa amparado pelo direito, também firmado como princípiode quetodasas pessoasse encontram vinculados aoprincípio dajustiçanatural. No ordenamento pátrio, pois como se vê foi recepcionado em sede constitucional. Na legislação infraconstitucional a sua aceitação foi amplíssima e se materializou no dogma vigente. No Código Penal,por força da política criminal, as causas de Exclusão de ilicitude definidas no art. 23, 24 e 25 são o retrato da autodefesa contra injusta agressão ou contra perigo. A lei nº 9.099/95 sedimentou a autodefesa, facultando ao particular exercer sua própria defesa nos Juizados Especiais Cíveis, desde que o valor da causa não extrapole a vinte salários mínimos. O avanço legal em respeito à autotutela é tão significativo que deixa margem para a pessoa jurídica ser representado por preposto credenciado, dispensando a presença de advogado.É natural o entendimento que o defensor se defenda, pois o 8.906/94 facultou através do art. 28 do Estatuto da Advocacia, qual admite a defesa em causa própria. Os movimentos grevistas e de lockout se refletem em fatos sociais que são medidas de autodefesa e sua deflagração pode ser entendida como excludente de antijuridicidade no campo penal, como excludente especial da ilicitude no direito civil. A filosofia define que é um direito que está normatizado nos corações dos homens e, portanto nenhuma nação despótica pode lhe revogar. A concepção que adveio da Escola de Kiel pelas mãos do ilustre mestre Claus Roxin nos indica que o bem a ser protegido pelo Estado deve necessariamente ter relevância P á g i n a | 35 Jurídica. De outra forma se o bem não tiver relevância, à ingerência do Estado, será considerado excessiva intromissão e poderá fazer surgir injustiças. A grande dificuldade que se apresenta é a questão resoluta de que o limite do direito subjetivo do Estado está contido no seu direito objetivo, portanto somente como o reconhecimento dogmático é que se permitiria o uso da autodefesa. Neste contexto, a legalidade não somente serve como limite-garantia, mas garante a permanecia dos princípios de política criminal que seriam derrogados pelo objetivo da segurança imediata. Conclui-se que a autodefesa, mesmo reconhecida como direito natural, subjetivo e ético, somente é admitida em face à sua normatização em dispositivos legais e que dado ao regime da legalidade, ela foi adicionada ao ordenamento como excludente de antijuridicidade, causa justificante especial ou instrumento de desclassificação delitiva. P á g i n a | 36 REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2004. BRASIL. Supremo Tribunal Federal, HC 86.634/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJU de 09.02.2007, j. 18.12.2006. BRASIL. Supremo Tribunal Federal, HC 88.914/SP, Ministro Cezar Peluso, DJU de 05.10.2007 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. ______. Reação defensiva à imputação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. GOMES, Luiz Flávio. As garantias mínimas do devido processo criminal nos sistemas jurídicos brasileiro e interamericano: estudo introdutório. In: GOMES, Luiz Flávio, PIOVESAN, Flávia (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. KROTOSCHIN, Ernesto, - Instituciones de Derecho del Trabajo, Ediciones Depalma (2da. Ed.) Buenos Aires, 1968 p. 669) NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 22. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2000. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. ZAFFARONI, Eugenio Raúl& PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais. P á g i n a | 37 SERVIÇOS PÚBLICOS E O PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO SOCIAL Marcelo Fontana de Sousa32 Resumo A concretização dos direitos, liberdades e garantias individuais dependem de um contexto social em que se implemente direitos fundamentais solidificados através de prestações materiais, as quais necessitam de consideráveis recursos financeiros para a sua efetivação. Discute-se, portanto, o nível de vinculação do Estado a tais direitos prestacionais e sua aplicação em um contexto de mudança estrutural do Estado em relação aos serviços públicos. Palavras-chave: Direitos fundamentais econômicos, sociais e culturais. Reserva do possível. Mínimo social. Não retrocesso social. Serviços públicos. Abstract Individual rights, freedoms and guarantees concretion depend on a social context that implements fundamental rights that make it solid for material services, to which need considerable financial resources for its accomplishment. However, the State’s linking level to such service rights and its application in a context of Governmental structural change in relation to the public utilities is argued. Keywords: Economic, social and cultural rights. Reserve of the possible one. Social minimum. Social nonretrocession. Public utilities. 1. OS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS A partir de finais do século XIX até o início do século XX, objetivando implementar materialmente o exercício da liberdade entre os indivíduos através de condições de igualdade real, observa-se o fenômeno da constitucionalização de direitos fundamentais a prestações do Estado ao 32 Mestre em Ciências Jurídic-políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduado lato sensu em Ciências Jurídicos-Políticas em Direto Empresarial. P á g i n a | 38 cidadão33, aos quais denominam-se direitos econômicos, sociais e culturais, referindo-se comumente a esse grupo de direitos como direitos sociais. Os direitos fundamentais sociais diferem dos direitos, liberdades e garantias individuais por uma característica essencial: enquanto estes são direitos de defesa, aqueles são direitos a prestações e, palavras de Ingo W. Sarlet: “têm por objeto precípuo a conduta positiva do Estado (ou particulares destinatários da norma), consistente numa prestação de natureza fática. Enquanto a função precípua dos direitos de defesa é a de limitar o poder estatal, os direitos sociais (como direitos a prestações) reclamam uma crescente posição ativa do Estado nas esferas econômica e social” 34. Desta forma, não se vinculam à proteção abstrata da liberdade e da igualdade, mas a “tarefas de melhoria, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que deles necessitem” 35. Neste contexto, a Administração de Autoridade passa a conviver lado a lado com a Administração de Prestação36. Esta atividade prestacional do Estado pode se dividir em duas categorias: a primeira, engloba as prestações relacionadas com os serviços públicos sociais e culturais, as quais atendem às necessidades básicas do cidadão, compreendidas, de modo geral, nos serviços de saúde, educação, cultura e assistência social. A segunda categoria é aquela relacionada com o serviço público econômico, que tem por objetivo fornecer prestações materiais37 que possam estar à disposição de todos que a solicitem38, de modo apropriado a satisfazer as necessidades colectivas em condições de disponibilidade, qualidade e acessibilidade financeira. Compreende esta categoria prestações tais como: abastecimento de água, energia, transportes, serviços postais e telefonia. Esta categoria de *.Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. Pós-graduado lato sensu com especialização em Direito Empresarial e em Ciências Jurídico-Políticas. Advogado. Professor de Direito Processual Civil e Direito Administrativo na Faculdade São Salvador. 33 O pioneirismo na questão de positivação constitucional dos direitos a prestações ocorreu nas Constituições Francesas de 1793 e 1848, na Constituição Brasileira de 1824 e na Constituição Alemã de 1849, apesar de esta última não ter vigorado efetivamente. Pormenorizadamente quanto à questão, ver: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 21. ed. 2007, p. 564. 34 SARLET. Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 6.ª edição, 2006, p. 296. 35 Ibidem, idem, p. 297. 36 SOARES, Rogério Ehrhardt. Direito Administrativo I. Porto: [s.n.], 1969. p. 29. 37 Cfr. MOREIRA, Vital. “Os Serviços Públicos Tradicionais sob o Impacto da União Europeia”. Revista do Direito Público da Economia. ano 01, n.º 01, Belo Horizonte: Fórum, p 230, 2003. 38 CAETANO, Marcello. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. 2. reimp. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p. 65. P á g i n a | 39 serviços públicos foi definida por Marcello Caetano como “tipo de serviço administrativo cujo objecto consiste em facultar por modo regular e contínuo a quantos dele careçam os meios idóneos para satisfação de uma necessidade colectiva individualmente sentida”39. As prestações do Estado na forma de serviços públicos necessários à efetivação desses direitos devem-se ao reconhecimento de que as mudanças sociais implicam também mudanças dos níveis de proteção em um contexto no qual a garantia da dignidade humana, pilar dos direitos fundamentais na sociedade atual, exige que o indivíduo tenha acesso a uma gama mais complexa de bens e serviços essenciais40. Ter acesso ou não a esses bens não é uma faculdade do indivíduo, mas condição para sua integração na sociedade. 2. DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: A RESERVA DO POSSÍVEL Surge, então, a discussão quanto à implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais estar limitada pela disponibilidade de recursos do Estado ou, ainda, pela vontade política quanto à disponibilização dos mesmos. A efetivação desses direitos encontrar-se-ia, pois, vinculada à reserva do possível. É o que se denomina de “limite jurídico e fático dos direitos fundamentais”41. Resta saber o verdadeiro alcance da reserva do possível em conformidade com a vinculação do legislador à implementação dessa categoria de direitos e, via de consequência, à disponibilização dos recursos necessários para tanto. Gomes Canotilho coloca severas restrições quanto à aceitação da reserva do possível – ou “reserva dos cofres cheios”42 – para a implementação dos direitos sociais, defendendo que tal aceitação equivaleria a dizer que “os direitos sociais só existem quanto e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos”43. Argumenta, ainda, que aceitar essa reserva implicaria: 1) total desvinculação jurídica do legislador em relação à dinamização dos direitos sociais constitucionalmente consagrados; 2) aceitar o grau zero da eficácia das normas constitucionais consagradoras dos direitos sociais; 3) 39 Ibidem, idem. Neste sentido, ANDRADE, José Carlos Vieira de. “Os Direitos dos Consumidores como Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 78. Coimbra: Coimbra Editora, p. 46, 2002. Jorge Miranda afirma que “pelo menos, de modo directo e evidente, os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos económicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas. Mas quase todos os outros direitos, ainda quando projectados em instituições, remontam também a idéia de protecção e de desenvolvimento das pessoas” e, ainda, que “só a dignidade justifica a procura pela qualidade de vida.” MIRANDA, Jorge. Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais. Estoril: Princípia, 2006. p. 470-472. 41 SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., p. 302. 42 Conforme se refere o próprio autor. Cfr. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 7. Ed. 2003. p. 481. 43 Ibidem, idem. 40 P á g i n a | 40 gradualidade como dimensão lógica necessária da concretização dos direitos sociais, tendo em conta, sobretudo, os limites financeiros; e 4) desindicabilidade jurisdicional das opções legislativas quanto à densificação legislativa das normas constitucionais reconhecedoras dos direitos sociais44. Entretanto, por mais induvidosa que seja a tarefa estatal de assegurar ao cidadão condições reais de exercício de seus direitos, não podemos perder de vista o aspecto pragmático dos direitos sociais: sua efetivação necessita de recursos. Murwiek, citado por Sarlet, afirma que “não se verifica nenhuma ofensa ao princípio da isonomia quando o Estado se restringe (no fornecimento das prestações) aos recursos dos quais efetivamente dispõe”45 . Não vemos nesta afirmação qualquer concessão de discricionariedade excessiva ao legislador, ao contrário, o Estado se mostra vinculado a utilizar os recursos de que dispõe para efetivar o princípio da igualdade, estando em conformidade com a ideia de que o legislador deve considerar os resultados efetivos de sua atuação, em consonância, inclusive, com a lição do supramencionado constitucionalista lusitano, uma vez que preserva a necessidade de optimização dos recursos, a fim de consolidar os direitos fundamentais em pauta46. 3. PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO SOCIAL A ideia de retrocesso social está intimamente ligada à reserva do possível para a efetivação dos direitos sociais, afinal, admitindo-se que esta efetivação está atrelada à disponibilidade de recursos, é de se imaginar que os recursos podem escassear de tempos em tempos. Nesta perspectiva, o alcance desses direitos ocorrerá nos planos subjetivo e objetivo, sendo que o vértice pelo qual se analisa o princípio do não retrocesso será sempre o do plano objetivo, ou seja, relacionado com a existência ou disponibilização, por parte do Estado, dos pressupostos materiais para a efetivação dos direitos sociais, já que o plano subjetivo – consubstanciado na necessidade de efetivação desses direitos para a real efetivação das liberdades e garantias individuais – permanece imutável, ainda que ao cidadão não tenha sido possibilitado o exercício desses direitos. Portanto, a questão que se coloca é se na situação de escassez de recursos poderiam recuar as medidas, já instituídas, garantidoras de direitos sociais. 44 Cfr. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Metodología ‘fuzzy’ y ‘camaleones normativos’ en la problemática actual de los derechos económicos, sociales e culturales”. Derechos y Libertades – Revista del Instituto Bartolomé de Las Casas, n. 6. Madrid, p. 44, fevereiro de 1998. 45 MURSWIEK, Dietrich. Grundgesetz als Teilhaberechte, soziale Grundrechte, In: ISENSEE, J.; Kirchhof, P. (org.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland. v. 5, p. 273. apud SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., p. 320. 46 Neste sentido: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2ª. ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2001, p. 199. P á g i n a | 41 O princípio do não retrocesso social implica a imposição de óbice ao recuo de direitos fundamentais assegurados, os quais dependem de consideráveis montantes de recursos para sua efetivação. Pode-se dizer que tal princípio, em relação aos direitos sociais, econômicos e culturais, consistiria numa espécie de direito social adquirido, oponível ao Estado em relação às prestações efetivadas por este. Restringindo a aceitação deste princípio, Vieira de Andrade argumenta que haveria a necessidade de se considerar como normas de nível constitucional as normas ordinárias de concretização de direitos sociais, o que não ocorreria de forma automática, exigindo para tanto que haja um ‘consenso básico’ e uma ‘radicação na consciência jurídica geral’ de que o grau de realização legislativamente obtido corresponde a uma complementação ou desenvolvimento do direito constitucional, dispondo, como ele, da força ou dignidade normativa das normas constitucionais.”47 O mesmo autor, entretanto, admite que as concretizações referentes aos direitos sociais possuem um grau de garantia e estabilidade, não estando disponíveis para serem suprimidas pela simples conveniência legislativa, já que estão relacionadas com a própria noção de dignidade da pessoa humana. Entretando, posiciona-se no sentido de que a proibição do retrocesso não teria o status de princípio jurídico, sob pena de se eliminar características típicas da função legislativa, como a liberdade constitutiva e a autorrevisibilidade, ainda que se admita um nível de limitação a esses elementos 48. De fato, não são irrelevantes os argumentos contrários à existência de um princípio do nãoretrocesso social. Ocorre que tal argumentação cede ao fato de que há um considerável nível de vinculação do legislador à concretização dos direitos sociais, já que os mesmos apareceriam como garantias constitucionais. Portanto, se essa vinculação no período de criação das formas de efetivação dos direitos sociais é consideravelmente forte, a mesma se encontra substancialmente reforçada no período posterior, em que essas garantias já se encontram colocadas à disposição dos cidadãos. Para Sarlet, o princípio do não-retrocesso social está associado ao princípio da segurança jurídica, o qual extende-se como um direito à proteção do cidadão contra atos do Poder Público que violem direitos sociais já integrantes de um modo de vida da (e na) sociedade49 . Considere-se, também, que as prestações relacionadas aos direitos socias, muitas vezes, correspondem a um mínimo social e sua supressão ou diminuição acarretariam uma afronta à dignidade do cidadão e à fruição de outros direitos relacionados à liberdade e igualdade real50, assim como sua integração plena na vida da 47 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2004. p. 407. 48 Cfr. Ibidem, p. 408. 49 Cfr. Ibidem, p. 435. 50 Neste sentido: SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., p. 447. P á g i n a | 42 sociedade, já que este mínimo “abrange bem mais do que a garantia de mera sobrevivência física, não podendo ser restringido, portanto, à noção de um mínimo vital” 51. Mostra-se correto o entendimento, portanto, de que as prestações mencionadas estariam “blindadas” contra afetações arbitrárias de recursos em desconformidade com princípios constitucionalmente consagrados, universalmente fruíveis por todos os membros da coletividade, e que sua supressão somente poderia ser legítima em casos de comprovada incapacidade material do Estado em um contexto no qual a efetivação de direitos fundamentais tenha alcance de prioridade estatal. Por esse raciocínio, pode-se considerar que o núcleo essencial de direitos sociais que já se encontrar concretizado goza de garantia constitucional, não podendo, assim, ser anulado ou revogado, consistindo tal núcleo essencial naquilo que for necessário para a garantia de uma “existência condigna inerente ao respeito pela dignidade humana”52. É de se ressaltar, todavia, que em determinados casos deve-se considerar a diferenciação entre retrocesso e evolução social, ou seja, situações em que o ambiente social exclui determinadas necessidades ou permite que estas sejam supridas sem a prestação direta do Estado. É o caso, por exemplo, do regime de prestação da categoria específica dos direitos econômicos, os quais atravessam uma mudança estrutural, onde o Estado deixa a função de prestador e assume a função de regulador, objetivando, agora, garantir a prestação do serviço e salvaguardar os interesses da coletividade, em um grau intermédiário de responsabilidade pública, qual seja, a responsabilidade pública de garantia, onde “o Estado, sem se ver convocado para intervir como empresário e operador económico, também não se remete para uma posição de mero protector do contexto”53, de modo que o surgimento do Estado Regulador não vem quebrar o paradigma do Estado Social, vez que não abandona a exigência de satisfação das necessidades coletivas, abandonando tão somente o modo como essa satisfação seja efetivada, qual seja, agora, através de sistema estruturante, em que a prestação do serviço não é feita diretamente pelo Estado, mas sim por um sistema regulatório54. 51 Ibidem, p. 455. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, Ob. cit., p. 340. 53 GONÇALVES, Pedro. Direito Administrativo da Regulação. In: MIRANDA, Jorge (org.). Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, v. 2, p. 536. 54 Cfr. AUBY, Jean-François; RAYMUNDIE, Olivier. Le Service Public. Paris: Le Moniteur, 2003. p. 34. Neste ponto, deve ser destacada a lição de Vital MOREIRA, segundo a qual “existe via de regra uma relação inversa entre a actividade económica do Estado e a sua actividade regulatória. Em princípio, quanto maior for aquela, menor tem de ser esta. Por isso, a redução do papel do Estado produtor e prestador de serviços, sobretudo na área de serviços públicos, implica normalmente o aumento da regulação.” MOREIRA, Vital. Autorregulação Profissional e Administração Pública. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. p. 38. 52 P á g i n a | 43 4. A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO SOCIAL AOS SERVIÇOS PÚBLICOS Trata-se, então, de um dos grandes desafios atuais do Estado os processos de superação do antigo modelo dos serviços públicos, os quais deixam de ser prestados diretamente pela Administração e passam a ser disponibilizados por privados, que o fazem com intenção de auferir lucro. Nesse ponto temos que o legislador, dentro de suas atribuções políticas, dispõe da opção constante de dar novos contornos aos serviços, optando pela prestação dos serviços por particulares em vez da prestação direta pelo Estado, a exemplo de serviços como o abastecimento de água, energia, serviços de telecomunicações e transportes. Fica, entretanto, em respeito ao princípio do não retrocesso, a importância de garantir as medidas necessárias para que o serviço seja prestado pelo privado em condições satisfatórias, inclusive em relação ao amplo acesso, noção na qual se incluem a disponibilidade do serviço e os preços praticados. São fundamentais, pois, medidas concretas do Estado a fim de que, mesmo não prestando diretamente serviços ligados ao bem-estar coletivo, não haja retrocesso social em relação a essas prestações, necessitando-se, pois, de medidas que neutralizem a diminuição dos direitos sociais55 , com a criação de mecanismos de supervisão, orientação e imposição de obrigações aos privados exploradores dos serviços. Portanto, nas missões privadas de interesse público, quando o particular se dispõe a prestar um serviço que a ordem jurídica reconhece como de interesse público, fica sujeito aos preceitos jurídicos garantidores desse interesse, não se admitindo, pois, que os serviços prestados por particulares traduzam-se em um recuo em direitos fundamentais associados aos serviços. Não desaparecem, assim, as preocupações do Estado para que aqueles serviços, intimamente relacionados com a efetivação de direitos sociais, mantenham os aspectos de universalidade, havendo como incumbência do Estado, neste cenário, garantir “a realização dos direitos dos cidadãos”56 , através da criação de condições legais que assegurem a imposição e o cumprimento de “obrigações de serviço público” aos operadores privados, de forma a manter o serviço em conformidade com as garantias fundamentais com as quais os mesmos se vinculam. A imposição dessas obrigações deve, portanto, obedecer a elementos essenciais do interesse coletivo das prestações vinculadas, coincidentes com a tradicional tríade de princípios formulada pela doutrina francesa57 em relação aos serviços de interesse geral, quais sejam: 1) princípio da igualdade 55 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Ob. cit., p. 340. GONÇALVES, Pedro. Direito Administrativo da Regulação. In: MIRANDA, Jorge (org.). Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, v. 2, p. 537-538. 57 Neste sentido, ver entre outros: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Económicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org). Estudos de Regulação Pública. 56 P á g i n a | 44 (égalité), em que se concebem direitos de acesso a todos os potenciais utentes, nas mesmas condições e com as mesmas tarifas financeiramente acessíveis, independentemente da localização geográfica em que se encontrem no território nacional (universalidade), sendo, pois, dispensado idêntico tratamento jurídico a todos os que se utilizam da prestação; 2) princípio da continuidade (continuité), o qual se relaciona com o caráter de essencialidade do serviço, impondo que sua prestação deve permanecer disponível ao tempo em que o utilizador dele necessitar, sem interrupções ou que, ao menos, tenha prestação certa e regular, como o é o caso, por exemplo, do serviço de correios e transporte coletivo); e 3) princípio da adaptação (changement), em que se determina que o serviço deve ser prestado de acordo com a variação dos interesse dos utilizadores, melhorando, modificando e expandindo continuamente a prestação, relacionando-se também com a obrigação de prestar o serviço de forma não obsoleta, atualizado de acordo com o estado da técnica empregada na atividade. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. v. 1, p. 208. CHAPUS, René. Droit Administratif Général. 12. ed. Paris: Montcherestien, 1998. t. 1. p. 538. OBERDOFF, Henri. Signification de la Notion de Service Public a la Française. In: Service public et Coummunauté européenne: entre l’intérêt general et le marché – Tome II: Approche transversale et conclusions (Sous la direction de Robert Kovar et de Denys Simon). Paris: La documentation Française, 1998, p. 89-102. P á g i n a | 45 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se, pois, que o Estado possui função de assegurar a concretização da organização social através de implementação de direitos fundamentais, os quais frequentemente se traduzem em interesses. No caso em pauta, concernente aos direitos sociais, esses interesses consistem na satisfação de necessidades materiais comuns a todas as pessoas, sendo que o aspecto coletivo faz com que assumam a forma de interesses instrumentais na concretização do interesse primário da paz social, exigindo uma atuação do Estado no sentido de realização direta ou de garantia de realização, do fornecimento dos bens necessários para a concretização dos direitos fundamentais. P á g i n a | 46 REFERÊNCIAS ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2004. __________. Os Direitos dos Consumidores como Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, v. 78, p. 43-64. 2002. AUBY, Jean-François; RAYMUNDIE, Olivier. Le Service Public. Paris: Le Moniteur, 2003. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. CAETANO, Marcello. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. 2. reimp. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Metodología ‘fuzzy’ y ‘camaleones normativos’ en la problemática actual de los derechos económicos, sociales e culturales”. Derechos y Libertades – Revista del Instituto Bartolomé de Las Casas. Madrid, n. 6., p. 35-49, fevereiro de 1998. __________. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2. ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2001. __________. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. CHAPUS, René. Droit Administratif Général. 12. ed. Paris: Montcherestien, 1998. t. 1. GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Económicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org). Estudos de Regulação Pública. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. v. 1, p. 173-317. GONÇALVES, Pedro. Direito Administrativo da Regulação. In: MIRANDA, Jorge (org.). Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, v. 2, p.535 573. MIRANDA, Jorge. Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais. Estoril: Princípia, 2006. MOREIRA, Vital. Autorregulação profissional e Administração Pública. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. __________. Os Serviços Públicos Tradicionais sob o Impacto da União Europeia. Revista do Direito Público da Economia. Belo Horizonte: Fórum. ano 01, n. 01, p. 227-247. 2003. P á g i n a | 47 OBERDOFF, Henri. Signification de la Notion de Service Public a la Française. In: Service public et Coummunauté européenne: entre l’intérêt general et le marché – Tome II: Approche transversale et conclusions (Sous la direction de Robert Kovar et de Denys Simon). Paris: La documentation Française, 1998, p. 89-102. SARLET. Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. SOARES, Rogério Ehrhardt. Direito Administrativo. Porto: [s.n.], 1969. v.1. P á g i n a | 48 CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA Ângelo Boreggio Neto58 Resumo Ao tratarmos especificamente do tema apresentado, nos propusemos a elencar um rol de conceitos concernentes aos ramos do Direito Processual Penal, aplicados acerca da interdisciplinaridade com o direito Tributário. Assim, em sede de resumo a importância prestada pelo aplicador do direito à natureza estrutural da norma é de suma responsabilidade, uma vez que é desta que se caracteriza o tipo penal-tributário. Como sabemos, o mesmo não se faz flexível frente ao fato violador de sua descrição, impondo ao Estado-juiz a aplicação da sanção punível adequada ao caso in concretu. Importa, igualmente, descrever o tipo penal-tributário em conformidade com os elementos explícitos e implícitos que decorre de sua própria origem. Nesse contexto, os elementos explícitos do tipo se configuram pela simples leitura do verbo. Trata-se de uma análise menos acurada, fazendo com que o exegeta da lei enquadre o fato ao tipo proposto. Pelos elementos implícitos temos os princípios que originam o verbo, consubstanciando os diversos aspectos do conteúdo do tipo, quais sejam, o aspecto material, espacial, pessoal e temporal. Assim, toda tipificação dos crimes de natureza financeira, econômica e tributária, hão que preservar o princípio da legalidade na estrutura da norma. Palavras-chave: Ordem Econômica, Processo Penal, Princípios Constitucionais, Direito Tributário, Histórico, Direito penal e Crime Tributário. Abstract To deal specifically with the issue presented in the proposed lists a number of concepts concerning the branches of the Tax Law (including financial) and Criminal. Thus, in the abstract the importance given by the applicator to the structural nature of the right of the standard is of great responsibility, since it is this that characterizes the type of taxation. As we know, it is not flexible towards the fact violator of your description, requiring the statecourt application of criminal sanctions appropriate to the case in concretu. It also describe the type of taxation in accordance with the explicit and implicit elements that runs from your own home. In this context, the elements of explicit type is set by the simple reading of the verb. This is a less accurate analysis, making the exegetic the law suit to fit the type proposed. The elements have the implicit principles that give rise to the verb, embodied the various aspects of the content-type, namely, the material aspect, space, personnel and time. Thus, all definitions of the crimes of a financial, economic and tax, which will preserve the principle of legality in the structure of the standard. Keywords: Economic Order, Criminal Procedure, Constitutional Principles, Tax Law, History, Criminal Law and Crime Tax 58 Mestre em direito pela PUC/SP e mestre em educação pela UFMT. Especialista em direito tributário. Professor Titular de direito do consumidor e tributário da UNIME e professor em cursos preparatórios para concursos. P á g i n a | 49 Introdução O Direito Processual Penal vigorante em nosso Ordenamento Jurídico cumpre inúmeras funções sociais, sendo uma delas a de regular a ordem econômico-tributária. Corolário da Carta Magna de 1988, o Direito Penal evoca seus dispositivos para salvaguardar as relações jurídicas advindas de casos de violação aos típicos crimes de natureza tributária. Ao tratar especificamente do tema apresentado, busca-se elencar um rol de conceitos concernentes aos ramos do Direito Processual Penal, aplicados em interdisciplinaridade com o Direito Tributário. Assim, em sede de resumo, a importância prestada pelo aplicador do direito à natureza estrutural da norma é de suma responsabilidade, uma vez que é nesta que se caracteriza o tipo penal-tributário, que, como sabemos, não se faz flexível frente ao fato violador de sua descrição, impondo ao Estado-juiz a aplicação da sanção punível adequada ao caso in concretu. Importa, igualmente, descrever o tipo penal-tributário em conformidade com os elementos explícitos e implícitos que decorrem de sua própria origem. Nesse contexto, os elementos explícitos do tipo se configuram pela simples leitura do verbo. Trata-se de uma análise menos acurada, fazendo com que o exegeta da lei enquadre o fato no tipo proposto. Pelos elementos implícitos, temos os princípios de onde se origina o verbo, consubstanciando os diversos aspectos do conteúdo do tipo, quais sejam: o aspecto material, o espacial, o pessoal e o temporal. Assim, toda tipificação dos crimes de natureza financeira, econômica e tributária hão de preservar o princípio da legalidade na estrutura da norma. 1. DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO 1.1 Conceituação Este ramo do direito está diretamente ligado ao direito penal, apesar das especificações presentes. Como afirmativa do legislador brasileiro, todos os ramos do direito penal que necessitam de regras específicas não fogem a este direito, por mais específico que venha a ser. As regras do direito penal tributário são, portanto, as regras e os princípios aplicados ao direito penal, com algumas características que os diferenciam. Entre as diferenças, está a necessidade de tipificação dentro do direito penal, bem como a aplicação do rito processual penal para a condenação do agente. Em contrapartida, para atribuir como ato ilícito penal tributário determinado fato típico, deve existir uma norma tributária a ser ofendida, sendo que esta ofensa ultrapassa o limite tributário e passa a ser tratado pelo ramo penal. P á g i n a | 50 Dessa feita, estamos diante de normas penais que protegem e tutelam o direito tributário, mas de maneira própria e com características do direito penal, para ser exercida de forma plena, conforme determina a regra Constitucional. 1.2 Legitimidade Em nossa organização político-administrativa, existem dois órgãos governamentais em todas as instâncias, que disputam a legitimidade ativa para este ramo do direito. Para demonstrar, basta verificar a estrutura estatal, que tem, de um lado, o Ministério da Fazenda, e que, internamente, possui a Procuradoria da Fazenda Nacional, que representa este Ministério judicialmente. Os Procuradores da Fazenda estão equiparados, para fins subsidiários, com outras Procuradorias da União, que têm competências diferentes. Por essa razão, e tendo em vista que a qualificação para ser Procurador da Fazenda Nacional é a mesma que para o Ministério Público, a primeira se viu no direito de representar criminalmente a Fazenda Nacional. Por sua vez, o Ministério Público, órgão também ligado ao Poder Executivo, mas com independência constitucional que o transforma, quase, em um quarto poder, afirma que é o único que pode representar criminalmente no País, ressalvados os casos de ação penal privada e de subsidiariedade. Além desse fato, como afirma Hugo de Brito Machado: no que diz respeito à ação penal, nos crimes contra a ordem tributária, temse verdadeira disputa de poder entre as autoridades do Ministério da Fazenda e as que integram o Ministério Público, estas últimas, ao que parece, desacreditando da lisura do comportamento daqueles, que poderia ser complacentes com muitos contribuintes em falta59. A norma tributária, representada pela Lei nº 9.430/96, define como sendo do Ministério Público a competência para representar o Estado em ação penal tributária. Não poderia ser diferente a edição dessa norma, que, até então, trazia certa confusão, pois cabe ao Ministério Público, com certeza, a representação criminal contra o cidadão. Além disso, o bem jurídico tutelado no direito penal tributário é parte do ramo do direito penal, ou seja, segue as suas normas. Afirmar que a representação seria da Procuradoria da Fazenda Nacional é o mesmo que dizer que o Direito Penal Tributário pertence, exclusivamente, ao Direito Tributário. 59 Hugo de Brito Machado. op. cit. p.44. P á g i n a | 51 Isso ocorre porque o direito tributário federal tem como representante legal a Procuradoria da Fazenda Nacional, que tutela a parte judicial. No caso, porém, estamos diante de um ramo do direito penal, portanto, de competência do Ministério Público. Não existia a necessidade de uma norma nesse sentido; contudo, a briga de egos trouxe a necessidade de criar-se uma norma para a situação. 1.3 Ilícito Tributário e Ilícito Penal Tratar de ilícito tributário e ilícito penal é sinônimo de ilícito tributário e ilícito penal tributário, uma vez que a diferença está na origem, na essência, ou seja, na natureza jurídica de cada um desses ramos do Direito. Existem sanções fiscais que decorrem do ilícito tributário, não comprometendo o ilícito penal tributário, pois são apenas obrigações que a lei tributária traz para determinada situação, que, apesar de ser ilícita, não é tutelada pelo direito penal. Dessa maneira, apenas transgride, ofende, rebate uma lei tributária na prática. O ato lesionado não deve ser tão importante para o ramo penal; interessa, portanto, somente ao ramo tributário. De igual modo, o ilícito penal tributário segue as regras do direito penal, sendo que os ilícitos abrangidos por este ramo são penalizados mais severamente. Trata-se de um bem jurídico tutelado de forma diferente, mais agressiva, que é a característica do direito penal. A única exigência legal, que não pode ser diferente, é que a realização das condutas típicas, descritas na lei penal, deve, por sua vez, ofender os deveres tributários. Ambas as normas de ilicitude se completam, pois, apesar de serem de ramos diferentes do Direito, uma do penal e outra tributária. 2. HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO PENAL TRIBUTÁRIA NO BRASIL O Direito Penal Tributário é constituído pelas normas penais que integram violação de leis tributárias em sua tipicidade. Para Fábio Fanucchi,60 “são crimes que só existem em função da existência de obrigações tributárias fraudadas”. Embora o Código Penal de 1940 tenha tratado da questão da evasão fiscal, considerando o ponto de vista do patrimônio individual, os crimes de sonegação fiscal somente surgiram, no 60 FANUCCHI, Fábio. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4 ed. São Paulo. Editora Resenha Tributária, 1980. p. 478. P á g i n a | 52 Brasil, com a promulgação da Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, que, pretendendo intimidar os contribuintes sonegadores de tributos, definiu como crime as condutas que passou a descrever. No entanto, somente com a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, é que foram definidos os crimes tributários propriamente ditos no Brasil. A maioria dos doutrinadores, porém, entende que a criação do Direito Penal Tributário, de certa forma, veio possibilitar a cobrança de tributos com instrumentos de repressão. Como ressalta Hugo de Brito Machado61, questiona-se, por exemplo, o fato de que o descumprimento de certas obrigações acessórias induza a presunção de descumprimento, igualmente, da obrigação principal. O ilustre doutrinador ressalta que “a definição dos ilícitos tributários constantes da legislação brasileira, seja federal, estadual ou municipal, é casuística, e por isto mesmo extremamente complexa e inadequada”. E continua seu raciocínio no seguinte sentido: A aplicação de penalidades pecuniárias, portanto, há de ser feita com cuidado, para que não sejam cometidas graves injustiças. As leis tributárias geralmente estabelecem penalidades específicas para o descumprimento de obrigações acessórias, com valores fixos ou com indicações de limites mínimo e máximo, mas sem vinculação com o tributo ou com o valor de qualquer operação tributável. São as chamadas multas por infrações formais. Se o contribuinte pode demonstrar que o tributo foi pago, afastando, portanto, aquela presunção de inadimplemento da obrigação principal, é esta a multa cabível, e não aquela fixada em função do valor do tributo ou de sua base de cálculo. Na concepção de Maicon Guedes, com a criminalização dos ilícitos de ordem tributária, o legislador: “tinha dois objetivos presentes: contornar as lacunas de aplicação da lei penal tributária, revogando, a saber, Lei 4.729/65, bem como dar fôlego à nova onda que invadia o país com a política ‘caça marajás’, impressa”62. 61 62 Hugo de Brito Machado. Op. cit. p. 499. GUEDES, Maicon. Evolução Histórica e Punição da Sonegação Fiscal. Disponível em: <http://www.uniguacu.edu.br/deriva/Ensaios/docente/artigo%20maicon%20guedes.pdf?id=discente Acessado em: 16 Mai 2009. Advogado, Professor de Direito Penal e Processo Penal da Unicenp, Faculdades Santa Cruz, Faculdade Dom Bosco e Uniguaçu. Especialista em Direito Tributário (UFRGS), Mestre em Direito Penal (UFPR). P á g i n a | 53 Juary Silva63 assegura, ainda, “significativamente que o embrião legislativo do Direito Penal Tributário tenha surgido no Brasil em dois períodos de exceção: com a Lei 4.729/65, sob o guante do AI-164, que se superpunha à Constituição65,”. Num segundo momento, continua: Com a Lei 8137/90, quando, a despeito da aparente vigência do Estado de Direito, o país atravessava séria crise institucional, máxime nos campos econômico e psicossocial, após o desastroso plano econômico editado em março de 1990, que implicou, de fato, em estabelecer a lei marcial no domínio econômico, sem abolir a Constituição. Ocorre que, com a aludida reprimenda, o Estado passou a banalizar o Direito Tributário Penal uma vez que, tornando crime qualquer tipo de infração, que seria meramente tributária, fez nascer o sentimento de injustiça em quem, por meio de trabalho árduo, produz riqueza, vê-se tributado excessivamente e não consegue visualizar nenhum tipo de atividade estatal positiva ao que se paga pela tributação. O Direito Penal Tributário teria, então, como desígnio subsidiário a punição de forma mais severa da prática de todas as condutas com qualquer conotação de fraude fiscal, chegando ao ponto de criminalizar o próprio inadimplemento. 2.1 A Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965. Como já dito anteriormente, embora o Código Penal tenha feito previsão, a tipificação da lesão ao fisco só surgiu na legislação pátria com o advento da Lei 4.729/65. Conquanto a intenção fosse intimidar os contribuintes sonegadores, a lei deu tratamento mais brando às condutas que descreveu, uma vez que, se tipificadas nos artigos do Código Penal, cominaria pena mais gravosa aos agentes infratores da norma. 63 SILVA, Juary. Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 8 64 O Ato Institucional Número Um, ou AI-1, ou somente Ato Institucional, seu nome original sem numeração por supor-se que se trataria do único, foi baixado em 9 de abril de 1964, pela junta militar composta pelos militares: general do exército Artur da Costa e Silva, tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald, que subscreveram o ato. 65 GUEDES, Maicon. Evolução Histórica e Punição da Sonegação Fiscal. Disponível <http://www.uniguacu.edu.br/deriva/Ensaios/docente/artigo%20maicon%20guedes.pdf?id=discente> Acessado em: 16 Mai 2009. p. 4. em: P á g i n a | 54 Sobre o assunto, Hugo de Brito Machado faz importante ressalva: Realmente, todos aqueles comportamentos podiam ser capitulados no art. 171, que define o estelionato, ou nos arts. 297, 298 e 299 do Código Penal, que definem os crimes de falsidade material ou ideológica de documentos. A pena mínima cominada seria de 1 ano, e a máxima de 6 anos de reclusão. A Lei n. 4.729/1965 cominou pena de detenção de 6 meses a 2 anos. Além disso, admitiu a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido, e para os réus primários cominou pena exclusivamente de multa, com o quê fez extinguir-se a punibilidade em apenas 2 anos, pela prescrição66. Nesse sentido, continua expondo que: os dispositivos do Código Penal não eram aplicados. As autoridades da Administração tributária, por desconhecimento ou por razões políticas, não acionavam o Ministério Público para esse fim. Com o advento da Lei n. 4.729/1965, algumas ações penais foram promovidas, e em alguns casos o Ministério Público promoveu ação invocando o Código Penal, sem êxito, porém, em face do princípio da especialidade. Assim, com a finalidade de solucionar a questão e majorar as penas aplicadas aos crimes de ordem tributária, em 27 de dezembro de 1990, foi promulgada a Lei nº 8.137. 2.2 A Lei nº 8.137 de 27 de dezembro de 1990 O escopo da proteção da lesão ao fisco é reprimir condutas que possam levar a supressão ou diminuição da arrecadação tributária, que, segundo Hugo de Brito Machado67, pode colocar em sério risco a atividade estatal “de distribuição (ou redistribuição) de riquezas”, que se justifica como a meta buscada para constituir uma sociedade livre, justa e solidária. Em razão disso, e levando em consideração que a lei anterior não alcançou o objetivo proposto, a Lei nº 8.137 foi promulgada visando combater, mais repressivamente, a sonegação de tributos e a consequente diminuição da arrecadação do Estado. Em que pese tenha-se tornado conhecida como lei dos crimes contra a ordem tributária, a lei nº 8.137/90 trata dos crimes contra a ordem tributária, econômica e, ainda, tipifica as condutas que afrontam as relações de consumo. 66 67 Hugo de Brito Machado. Curso de Direito tributário. p. 501. Ibid., p. 585. P á g i n a | 55 A Lei em análise revogou parcialmente a Lei nº 4.729 e tipificou as condutas de lesão ao fisco, taxando-as de crimes contra a ordem tributária. 2.2.1 Origem Para sustentar financeiramente, o Estado foram criados os tributos, que, no Brasil, remontam à época colonial. O Estado, então, tributa com o fim de auferir recursos, como forma de promover justiça social. Assim, a finalidade da tributação e a da consequente existência do Direito Tributário é promover o equilíbrio nas relações entre os que têm e os que não têm poder, ou entre os que têm mais e os que têm menos poder. Sabido que o Estado é a maior expressão de poder que se conhece, fácil é concluir-se que o Direito Tributário tem por finalidade limitar o poder de tributar e proteger o cidadão contra abusos desse poder. O legislador buscou, para tanto, penalidades para o contribuinte que objetivasse burlar o recolhimento do tributo que lhe caberia, a fim de não deixar que o Estado se visse impossibilitado de oferecer seus serviços básicos à população. As penalidades previstas na Lei. nº 8.137 revestem-se da mesma natureza jurídica das punições civis e penais, representam reposição de prejuízos causados ao erário ou, exclusivamente, possuem caráter de punição. 2.2.2 Conteúdo O artigo 1º da Lei em questão descreve como crime contra a ordem tributária “suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório”, mediante omissão de informação, ou prestação de declaração falsa às autoridades fazendárias; fraude à fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; falsificação ou alteração de nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; elaboração, distribuição, fornecimento, emissão ou utilização de documento que saiba ou deva saber ser falso ou inexato; ou, negativa de fornecimento, quando obrigatório, de nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecimento em desacordo com a legislação. O artigo 1º. prevê, ainda, em todos os seus incisos os verbos suprimir e reduzir, o que significa a tipificação das condutas de não recolhimento do tributo no todo ou em parte. Constituem, do mesmo modo, crimes da mesma natureza, os previstos no art. 2º da referida Lei, que descrevem as condutas de fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre P á g i n a | 56 rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de tributo ou de contribuição como incentivo fiscal; deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de tributo liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Em qualquer dos casos, o legislador estabeleceu que a pena deve ser calculada de acordo com as normas do Código Penal, seja ela de 2 a 5 anos e multa, no caso do artigo 1º, ou de 6 meses a 2 anos e multa, nos casos do artigo 2º. Dentre as condutas que tipificou, a Lei nº 8.137/90 destinou seção única para tratar dos crimes praticados por funcionários públicos, estabelecendo em seu artigo 3º constituir crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Código Penal, as condutas de extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social; exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente; patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. 2.2.3 Âmbito de Incidência Os crimes contra o sistema tributário envolvem atividades de arrecadação de tributos da União, dos Estados e Municípios. Assim, a incidência da Lei nº 8.137/90 dependerá do ente beneficiário do tributo objeto da conduta delituosa, o que também estabelecerá a competência da Justiça Federal ou Estadual para seu processamento e julgamento. P á g i n a | 57 2.2.4 Artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 Os artigos 1º e 2º, da Lei nº 8.137, definem os crimes contra a ordem tributária praticados por particulares. As condutas previstas nos referidos artigos são comumente conhecidas como sendo de sonegação fiscal. Divergências doutrinárias existirão, contudo, no tocante à natureza das condutas descritas. Grande parte dos doutrinadores assevera ser pacífico o entendimento em relação à natureza material da norma descrita no artigo 1º.68, estabelecendo que estará caracterizado o ilícito tributário quando houver o resultado, qual seja, a supressão do tributo. No que tange à natureza da conduta tipificada no artigo 2º69, em que pese o texto da lei faça constar ser ele da mesma natureza, o entendimento majoritário dos doutrinadores é no sentido 68 Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V. 69 Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; P á g i n a | 58 de que os crimes tributários ali descritos estarão configurados ainda que não produzam resultados externos, o que configura a natureza formal da norma, ou seja, considera-se consumado independentemente do resultado. Com isso, sobre os crimes materiais contra a ordem tributária, o tipo descrito no artigo 1º define crimes de cunho material, que se consumam somente quando as condutas nele descritas produzem como resultado a efetiva supressão ou redução de tributo; no artigo 2º, crime de natureza formal, que se consuma independentemente da produção de qualquer resultado como decorrência das condutas que esse tipo penal descreve. 70 Ainda tratando de dos crimes contra a ordem tributária, questão sempre relevante e que não podemos deixar de expor, é acerca da possibilidade da continuidade delitiva ou do concurso material de delitos. Vale asseverar que concurso material é aquele fundamentado no artigo 69 do Código Penal, quando o sujeito ativo realiza condutas diversas e atinge mais de um resultado, o que não é o caso dos crimes tributários, especialmente no tocante a tributos lançados por homologação, com aspecto temporal mensal, como por exemplo, o ICMS. Já o crime continuado tem fundamento no artigo 71 do Código Penal, que é aquele cometido nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução. Assim, é perfeitamente possível o reconhecimento da continuidade delitiva em crimes contra a ordem tributária, especialmente em casos de tributos lançados por homologação de aspecto temporal mensal. Como exemplo, temos a prática de pagamento a menor de ICMS, pela empresa X, nos exercícios de março a junho de 2009. Observa-se a circunstância de lugar – empresa X – tempo – meses seguidos – e execução – lançamento a menos na nota fiscal – praticando, com isso, a continuidade delitiva, fazendo jus ao benefício penal. Ainda nessa vertente, se cumpridos os requisitos do artigo 71 do CP, ainda que ultrapasse o prazo de 30 dias, em geral apontado pela jurisprudência, pelo lastro forte das demais características e requisitos, deve prevalecer a continuidade delitiva nos crimes tributários, visto a existência de ritmo entre os delitos. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou acerca do tema, da seguinte forma: IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. 70 Ibid. p. 69 P á g i n a | 59 I. Sonegação fiscal (L. 8137/90, art. 1º, I e II; e 11): parcial reconhecimento de continuidade delitiva, de modo a que o paciente passe a responder, não a 5, mas a 3 acusações, tendo em vista critério de espaçamento temporal entre as condutas considerado razoável, à vista de tratar-se de sonegação de tributo de recolhimento mensal. Inexistência de continência ou conexão entre o Proc. 3.468-0 (1ª Vara) com os demais feitos em curso na 2ª Vara Criminal de Paulista/PE. II. Habeas corpus: deferimento, em parte, tãosomente para que as instâncias de mérito, relativamente aos processos em curso na 2ª Vara Criminal de Paulista - PE, não considerem - salvo situação mais favorável ao paciente - a existência de mais de 2 crimes, sendo que: O 1º desses dois crimes, constituído pelos fatos ocorridos nos meses de março, abril (Proc. 3 467-1 - 2ª Vara) e maio (Proc. 3464-7 - 2ª Vara) de 1999; - O 2º crime, os praticados nos meses de novembro de 1999, janeiro e fevereiro de 2000 (Proc.3 464-7); março de 2000 a junho de 2001 (Proc.3465-0); e julho a outubro e dezembro de 2001 (Proc. 8702-0). III Habeas corpus: extensão dos efeitos da concessão da ordem ao co-réu, que, à primeira vista, se encontra em situação de todo assimilável ao paciente.” (HC 89573 / PE – PERNAMBUCO, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento: 13/02/2007). Insta salientar que o artigo 1º da Lei nº 8.137/90 traz uma questão fundamental quanto à pena do agente, isto em razão da diferença significativa na quantia da pena, pela aplicação da continuidade delitiva ou do concurso material, sendo certo que, dependendo da regra e cálculo utilizado, poderá chegar a altíssimas penas. Desta forma, pela análise do disposto no artigo 71 do CP, verifica -se que não há determinação de prazo, e isso deve ser considerado em favor do réu. 2.2.5 O bem jurídico protegido O termo bem jurídico possui uma definição extremamente complexa, já que não depende de conceituação puramente jurídica, mas também sociológica, política, entre outras. É, porém, por intermédio de sua eleição, que o legislador estabelecerá condutas passíveis de criminalização. Na acepção de Eugenio Raúl Zaffaroni71 , o “bem Jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegido pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”. 71 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7ª ed. Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 462. P á g i n a | 60 O bem jurídico que o Estado visa proteger com a tipificação de condutas na lei contra os crimes tributários é a legislação tributária e o próprio poder de tributar, objetivando que não se veja impedido de exercer suas atividades perante a sociedade em geral. 2.2.6 Tipo Objetivo e Tipo Subjetivo Em relação ao artigo 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, todas as condutas exigem o dolo; pelo que se percebe, não se verifica crime tributário de natureza culposa. Constata-se, mais adiante, a necessidade fundamental da verificação da existência do elemento subjetivo específico, consistente na efetiva vontade de fraudar o fisco. Na forma exposta por Hugo de Brito Machado, os crimes previstos na Lei em análise não podem configurar-se sem a fraude e somente se consubstanciam pelas incorreções ou inexatidões atinentes aos fatos, sendo irrelevantes quaisquer incorreções. A intenção da prática do ilícito está explícita na íntegra da letra da Lei que traz as expressões. Veja-se: “Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (...)” e “Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; (...)72” Dessa forma, sem o elemento subjetivo do injusto, não haverá crime contra a ordem tributária, e, no caso, configuraria uma atipicidade formal. 2.2.7 Consumação e Tentativa A relevância da verificação do momento em que se dá a consumação do crime tributário se justifica, ante a previsibilidade de impugnação ao lançamento do tributo. Nos casos previstos no artigo 1º, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ73 é no sentido de que a consumação dar-se-á com o lançamento definitivo do tributo, ou seja, quando for exaurido o processo administrativo, culminando na consequente constituição do crédito fiscal. Ainda que o crime descrito no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 seja considerado como sendo de natureza material, dependendo de resultado para sua consumação, não é admissível a tentativa, por trata-se de delito condicionado. 72 73 Grifo nosso. HC 81611. P á g i n a | 61 Os crimes formais, ou de mera conduta, previstos no artigo 2º, não exigem o exaurimento da via administrativa para que se considere consumado. A concretização do elemento é suficiente para que fique caracterizado, até mesmo por ser inerente ao crime formal a impossibilidade de tentativa, uma vez que não se exige o resultado para sua consumação, somente a conduta. 3. A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE E O CRIME TRIBUTÁRIO É cediço que o contribuinte tem o direito subjetivo de ver extinta a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, desde que ele faça o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, e, de outro lado, tal pagamento só é exigível depois de findo o processo tributário não judicial, iniciado com a apresentação de impugnação contra o auto e a imposição de multa. Cumpre observar que o Estado busca, de um lado, a pecúnia, porque é útil a ele como forma de recompor o erário. Prefere, assim, a extinção da punibilidade mediante o pagamento, seja ele efetuado de forma integral, parcelada, ou resultante de alguma transação. De outro lado, coloca-se à sociedade, reclamando que ao delinquente seja atribuída a sanção penal cabível ao crime, cometido em face da ordem tributária. Nos crimes contra a ordem tributária, o que se verifica é a falta de vontade do Estado na punição do infrator, já que o que se espera é que o tributo seja efetivamente arrecadado e destinado ao seu fim. Seria indiscutível e mais interessante ao Estado receber o que lhe é devido, em lugar de processar criminalmente o sonegador, muitas vezes por anos e anos, sem nada conseguir, por qualquer razão. Em razão disso, verificada a infração penal tributária, o Estado busca propiciar meios de adimplemento do débito, beneficiando, de certa forma, o infrator. 3.1 Previsões legais A Lei nº 8.137/90, originariamente, previu, em seu texto, que o pagamento seria causa de extinção da punibilidade pela prática de crimes tributários. Surge, assim, a extinção da punibilidade dos crimes dos artigos 1° a 3°, quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia. Com o advento, todavia, da Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991, que instituiu a Unidade Fiscal de Referência, a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento deixou P á g i n a | 62 de existir, ante a revogação prevista em seu artigo 98. A Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, voltou, no entanto, a prever o pagamento como forma de extinção da punibilidade, quando dispôs que os crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia, extinguir-se-ão. Vê-se, assim, que o infrator da norma tributária penal, novamente, passou a ter a possibilidade de eximir-se da responsabilidade pelo ilícito, se, antes de recebida a denúncia, adimplir o débito. Foi criado, posteriormente, o Programa de Recuperação Fiscal, denominado Refis I e II, respectivamente, inseridos no ordenamento jurídico pátrio pelas Leis nºs 9.964, de 10 de abril de 2000, e 10.684, de 30 de maio de 2003, que fizeram menção expressa à extinção da punibilidade pelo pagamento, além de estabelecer a suspensão da pretensão punitiva do Estado em casos de parcelamento do débito. Cumpre observar que fica suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal. A lei estabelece que a prescrição não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. Em se tratando de pessoa jurídica, se esta tiver relação com o agente, ao efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia, também extinguir-se-á a sua punibilidade. A Lei nº 10.684/03 garante a suspensão da punibilidade pelo Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada como agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. Reafirma que a prescrição não corre durante tal período. Há de se ressaltar que, nesses casos, o oferecimento da denúncia não impede a adesão ao Programa de Recuperação Fiscal, da mesma forma que não se impede que o pagamento total da dívida tributária possa ser efetuado depois de ela ser oferecida, dando ensejo à extinção da punibilidade no decorrer do processo criminal. P á g i n a | 63 3.2 Hipóteses de Incidência A extinção da punibilidade, além das causas previstas na parte geral do Código Penal, como se viu, se dá com o pagamento do débito integral, estando ou não ajuizada a competente ação penal neste sentido. 3.3 Refis O Programa de Recuperação Fiscal, conhecido como Refis, consiste em um regime opcional de parcelamento de débitos fiscais proposto às pessoas jurídicas com dívidas perante a Secretaria da Receita Federal – SRF, à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN e ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Segue jurisprudência: STJ. Tributário. Programa de Recuperação Fiscal - REFIS. Administrativo. Exclusão. Ausência de notificação pessoal. Notificação por meio do diário oficial e da internet. Possibilidade. Legislação específica do REFIS. Precedentes do STJ. Lei 9.964/2000, art. 9º, III. Lei 9.784/99, art. 69. Aplicação. «A 1ª Seção do STJ, no julgamento do recurso repetitivo REsp 1.046.376/DF, em 11/02/2009 (acórdão ainda não publicado), reafirmou entendimento segundo o qual, é legítima a exclusão do contribuinte que aderiu ao REFIS e tornou-se inadimplente, mediante publicação na rede mundial de computadores - internet.» (...) TRF 1ª Região. Crime tributário. Medida Provisória. REFIS II. Parcelamento de débitos. Suspensão da pretensão punitiva. Lei 10.684/03, art. 9º. Inconstitucionalidade não reconhecida. Alegação de conversão de medida provisória. Dispositivo inserido pelo Congresso Nacional. CF/88, art. 62. «Não há que se falar em inconstitucionalidade da Lei 10.684/03 ao argumento de ser esta produto de conversão de Medida Provisória visto que aquela, em sua redação original, não dispunha de dispositivo penal, sendo certo que o art. 9º da referida lei foi introduzido pelo Congresso Nacional, não sendo, portanto, produto de mera conversão de medida provisória e sim de conversão desta com alteração.» (...) Conforme se observa, o programa de recuperação fiscal denominado REFIS envolve inúmeras situações administrativas e fiscais, incluindo os casos previstos em lei sobre os crimes tributários ou chamados de sonegação tributária ou fiscal. Trataremos, a seguir, sobre seus conceitos. P á g i n a | 64 3.3.1 Conceito, natureza e aplicabilidade A Lei nº 9.964, de 10 de abril de 2000, instituiu o Programa de Recuperação Fiscal – Refis e alterou as Leis nº 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.844, de 20 de janeiro de 1994. Estabeleceu que o Programa de Recuperação Fiscal – Refis – destina-se a promover a regularização de créditos da União, decorrentes de débitos de pessoas jurídicas, relativos a tributos e contribuições, administrados pela Secretaria da Receita Federal e pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, com vencimento até 29 de fevereiro de 2000, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou a ajuizarem-se, com exigibilidade suspensa ou não, inclusive os decorrentes de falta de recolhimento de valores retidos. O Refis foi destinado a promover a regularização de créditos da União, decorrentes de débitos de pessoas jurídicas, relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal e pelo Instituto Nacional do Seguro Social, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou não, com exigibilidade suspensa ou não, inclusive os retidos e não recolhidos, com vencimento até 29 de fevereiro de 2000. A Lei em questão buscou promover a regularização dos créditos da União, decorrentes de tributos e contribuições até a data em que estabeleceu, autorizando, ainda, o pagamento parcelado do débito. O referido programa possui como objetivo principal o ajuste dos cofres públicos, com a entrada de valores representativos de débitos tributários dos contribuintes para com a Receita Federal e o INSS, aumentando, por consequência, suas arrecadações. O Refis, contudo, não alcança os débitos de órgãos da administração pública direta, das fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público e das Autarquias; os relativos ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR; a pessoas jurídicas cindidas a partir de 01.10.99, exceto quando atenderem às condições expressas na Lei nº 10.189/01. 3.4 Impunidade e Materialização A possibilidade de exclusão da punibilidade relacionada aos crimes tributários deixa no ar a sensação de total impunidade. O Estado, ao dar tratamento completamente brando, visando a seus próprios cofres, deixa de lado o cumprimento do princípio da igualdade. O que se questiona seria a possibilidade de que a extinção da punibilidade pelo pagamento pudesse acontecer, da mesma forma, com os demais crimes contra o patrimônio. A vítima do delito de P á g i n a | 65 furto, certamente, assim como o Estado, poderia preferir o ressarcimento do dano que sofreu a assistir à má prestação dos serviços de ressocialização dos delinquentes. Há de se reconhecer que, em que pese possa ter havido o ressarcimento ao erário, a ilicitude praticada permanece. O que se remata, dessa forma, é que a intenção do Estado, com a tipificação da lesão ao fisco, desde seu início, se deu como forma de garantir e impor o pagamento de tributos e não a repressão da prática delituosa propriamente dita. Para que se gere a impunidade do crime tributário, basta que o infrator da legislação fiscal efetue o pagamento do que suprimiu ou retirou em relação ao tributo que devia. Ao agir assim, o Estado declara extinta a punibilidade, já que seu objetivo de imposição ao pagamento de tributos foi efetivamente alcançado. 4. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR 4.1 O Direito administrativo sancionador e o Direito Penal O Direito Penal é o instrumento de proteção de bens jurídicos, pois, sem a presença de um bem jurídico, o direito de punir do Estado torna-se injusto e, do ponto de vista eticossocial, desajustado. Em contrapartida, a sociedade apresenta-se cada vez mais submersa num risco oriundo do aumento do grau de complexidade das sociedades pós-modernas. Desse modo, faz-se necessária a defesa de outros bens, que não os clássicos, para que a insegurança social não reine. Criam-se então normas penais, com o objetivo de coibir as condutas delituosas de perigo. A questão é a contrariedade com a missão do Direito Penal, bem como a localização diametralmente oposta do Estado Democrático de Direito e a sociedade de risco. Claudio José Langroiva Pereira entende que: A expectativa penal criada nem mesmo levou em consideração elementos como o meio ambiente, em que a idéia de proteção penal decorre da necessidade de manutenção das condições de sobrevivência humana, que deve ser entendida segundo os âmbitos de proteção estabelecidos de acordo com limites administrativos de proteção que, quando violados, provocam a intervenção do Direito Penal74. 74 PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e Direitos Universais: Tipo, Tipicidade e Bem Jurídico Universal. São Paulo: Quartie Latin, 2008, p. 193. P á g i n a | 66 Nesse cenário, necessário se faz que haja proteção da ordem econômica, sendo essencial repelir as ações contrárias ao anseio social. Assim, para Antonio Luis Chaves Camargo: O Direito Penal e a Política Criminal se integram para facilitar suas intervenções na opinião pública, e se tornam funcionais no sentido de exercer sua função protetora e limitadora. A desformalização, por outro lado, é o caminho dessa funcionalização, eliminando as barreiras de um direito penal garantista que podem limitar os fins políticos75 . Complementa o mesmo autor: O direito penal clássico que tinha como característica a possibilidade de um controle rígido, pelo menos aparente, através da discrição típica fechada, não encontrava mais ressonância na sociedade atual, de forma que não pode mais se privilegiar da punição indiscriminada de todas as ações que considera desconforme com a lei. A complexidade social exige que nos riscos que lhe são inerentes, o Direito Penal encontre um instrumento capaz de selecionar estes riscos, tidos como conseqüências do agir comunicativo, e aceitos pelo grupo social, sem a imposição de qualquer reprovação a priori76. Nessa perspectiva, a ampliação do devido processo legal ao processo administrativo, na Constituição de 1988 e a edição da Lei n°. 9.784/99 foram determinantes para iniciar, no Brasil, o direito administrativo sancionador como uma disciplina que permeia entre o direito penal e o direito administrativo, aproveitando-se de uma dogmática erguida por penalistas e lapidada pelos administrativistas. Como verdadeiro ramo do direito punitivo, informado simetricamente por princípios garantistas aplicados no direito penal, com identidade própria, vem sendo instrumentalizado e concretizado pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), um dos autênticos baluartes dos mercados financeiros e de capitais. As autoridades do Conselho de Recursos têm a incumbência de materializar o direito administrativo sancionador aplicável a esse segmento e influenciar todo o direito penal econômico pertinente a essa esfera de relações. Se nos detivermos à clássica distinção entre dispositivos e normas, é necessário reconhecer que o Conselho elabora verdadeiras normas jurídicas, aplicando os dispositivos abstratos do ordenamento jurídico passivo à realidade concreta da vida em sociedade. 75 CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Cultural Paulista. P. 35. 76 Ibid., p. 139. P á g i n a | 67 Atualmente, sua operacionalização se dá de forma mais próxima ao Banco Central, cujas estruturas servem de apoio ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Nesse sentido o pensamento frankfurtiniano ensejador de um Direito Penal Básico, em conformidade com os princípios constitucionais delega a tutela dos novos bens jurídicos a um Direito Administrativo sancionador, o que seria mais adequado pelo fato da necessidade da sociedade de risco globalizada e da garantia de um Direito Penal que resguarde a justa proteção dos bens jurídicos relevantes. Na proposta de Winfried Hassemer77 se reduziriam do direito penal as penalidades, reportando-as a uma nova espécie de direito administrativo sancionador, onde a política criminal restaria puramente simbólica, impedindo, assim, que a modernização (com seus riscos e princípios de precaução e de acumulação) acabasse por apoderar-se do direito penal clássico, vez que este deve continuar a proteger bens jurídicos individuais, considerados como a ultima ratio para a vida em comunidade. Contudo, ressalta-se que no Brasil ainda paira certa insegurança quanto ao tema. Note-se que, por meio de estudos comparados, em países como Alemanha, EUA, Itália e França, não há um sistema equilibrado que consiga substituir com independência e sistematização o Direito Penal Econômico pelo Direito Administrativo Sancionador. Na Alemanha, a lei contra restrições da concorrência prevê sanções administrativas tais como ordens de suspensão e interrupção e multas. Expõe que os ilícitos administrativos são tratados pelo direito de mera ordenação social, não havendo na lei restrições à concorrência por meio de sanções penais78. Eduardo Reale Ferrari79 expõe que, no direito norteamericano, o Direito Penal Econômico apresenta interessantes características no que tange à proteção da concorrência e do livre mercado, consignando que as principais infrações administrativas à concorrência estão descritas no Sherman Act, Clayton Act e no Federal Trade Comission Act. 77 HASSEMER, Winfried. Direito penal libertário. Tradução de Regina Greve; coordenação e supervisão Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 127. 78 COSTA, José de Faria. SILVA, Marco Antonio Marques (coordenação). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. p. 612. 79 SILVA FERRARI, Eduardo Reale. Legislação Penal Antitruste: Direito Penal Econômico e sua Acepção Constitucional. in SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira. Org.: José de Faria Costa. Temas de Direito Penal Econômico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 612. P á g i n a | 68 No mesmo sentido assevera o autor80: As penas previstas no Sherman Act para os crimes podem ser de multas de até US$ 350.000 ou prisão de até 3 anos. Já as pessoas jurídicas podem pagar multas de até US$ 10.000.000. O Clayton Act e o Federal Trade Comission Act, por serem estatutos meramente administrativos, prevêem multas e indenizações. Na Itália, por sua vez, apesar da transitoriedade de autoridades administrativas para processar e sancionar as mais diversas matérias, houve um claro movimento no sentido de aumentar a utilização do Direito Administrativo Sancionador81. Foi a partir da Lei nº 689, de 24 de novembro de 1981, que houve a descriminalização de algumas condutas abrangidas pelo Direito Penal, quando passaram a ser punidas pelo Direito Administrativo Sancionador. Viu-se, com isso, uma grande vantagem de poder responsabilizar as pessoas jurídicas pelas infrações cometidas82. Eduardo Reale Ferrari83 assinala que, na França, o Direito Penal Econômico engloba o direito penal da concorrência, o direito das vendas, da publicidade enganosa, da usura e dos cheques84. Assim, expõe que o droit penal dês ententes possuí estrutura mais interessante em relação ao Direito Penal e o Direito Administrativo. Desta maneira, por meio da Ordonnance n. 84-1243 de 1º de dezembro de 1986, que regulamenta o Direito Administrativo da concorrência, e contém regras de direito penal econômico e direito administrativo, consubstanciando um sistema híbrido. No Brasil, surge pela primeira vez na Constituição de 1988 o princípio da livre concorrência. Isto significa que a atividade econômica, baseada na livre iniciativa deve desenvolver-se segundo as leis do mercado, sem outros limites que não o estabelecido na própria Carta Maior, como forma de impedir que a concorrência se transforme em abuso, em falta de correção, deslealdade e ganância85. Nesse sentido, existe o interesse que se fixem limites em proteção aos concorrentes e aos consumidores, havendo uma confluência de interesses privados e gerais. Dessa forma, a livre concorrência com os limites do aumento arbitrário de lucros, da concorrência desleal, que leva ao desvio da clientela e à publicidade enganosa, do abuso do poder econômico, é instrumento de defesa da ordem econômica, sendo explícita a Constituição Federal de 1988, no sentido de conferir prioridade 80 Ibid., p. 615. Ibid., p. 613. 82 Ibid., p. 613. 83 SILVA FERRARI, Eduardo Reale. Legislação Penal Antitruste: Direito Penal Econômico e sua Acepção Constitucional. Op. cit. pp. 613-614. 84 Ibid., p. 612. 85 SILVA, Marco Antonio Marques. op. cit. p. 616. 81 P á g i n a | 69 da exploração econômica pelos particulares, salvo nos casos e hipóteses em que se estatuem os contrapesos necessários a que a livre iniciativa, a propriedade privada e a livre concorrência não ofendam o interesse geral. Cabe analisar, nesse sentido, o âmbito administrativo para verificar a necessidade de intervenção penal. No que tange à legislação administrativa, a repressão ao abuso de poder econômico e ao aumento dos lucros existe desde 1960, quando a lei nº 4.317 criou o CADE, consolidando as punições administrativo-econômicas por meio da lei nº 8.884/94, disciplinando as condutas que constituem infrações à ordem econômica. Com função de uma autarquia ligada ao Ministério da Justiça, o CADE tem a finalidade de apurar e reprimir administrativamente as condutas que atentem contra a ordem econômica. Em seus artigos 20 e 21, enunciam uma série de modalidades de conduta que conjugadamente consubstanciam o abuso do poder econômico, podendo as sanções administrativas atingir tanto a pessoa jurídica como as pessoas físicas. Se é verdade que os artigos 20 e 21 da Lei 8.884/94 constituem tipo administrativos inseguros e subjetivos, com previsão de um lado, de várias condutas que exigem afronta à concorrência; atos tendentes a dominar o mercado relevante de bens ou serviços; aumento arbitrário de lucros ou abuso de posição dominante, e de outro, sanções que não dependem sequer de culpa e de resultado, por outro, é necessário destacar a rara aplicabilidade dos tipos penais descritos nos artigos 4º, 5º e 6º da nº Lei 8137/90. Ocorre que não existe até hoje condenação transitada em julgado por abuso de poder econômico no âmbito criminal, restando claro que a interferência no âmbito administrativo decorre de uma opção política legislativa, demonstrando não haver necessidade da interferência da via penal, uma vez que a via administrativa impõe sanções efetivas aos empresários. Assinala Jesús-Maria Silva Sánchez86 que o fenômeno punitivo do direito penal sempre teve efeitos intimidatórios. Entretanto, em respeito ao princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve reduzir sua atuação ao mínimo necessário em termos de utilidade social geral. Assim prescindese da cominação e da sanção penal sempre que outros meios menos lesivos sejam suficientes para provocar efeitos de prevenção iguais ou mesmo superiores que aqueles provocados pela intervenção penal como ultima ratio. 86 SILVA, Sánchez, Jesús –María. Aproximación as Derecho Penal Contemporâneo. Reimpresión. Barcelona: J.M Bosch, 2002. p. 181. P á g i n a | 70 CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. A importância prestada pelo aplicador do direito à natureza estrutural da norma é de suma responsabilidade, uma vez que é desta que se caracteriza o tipo tributário e penal. Oriunda do princípio da legalidade, incumbe ao Estado e à sociedade a sua observância, bem como ao contribuinte o seu adimplemento. Importa, igualmente, descrever o tipo tributário em conformidade com os elementos explícitos e implícitos que decorrem de sua própria origem. Nesse contexto, enquadrado o tipo ao fato, aplicar-se-á não somente a lei concretizada e sim a mens legis. 2. É cediço que o Estado não se faz flexível frente ao fato violador de sua descrição, impondo ao mesmo a aplicação da sanção punível adequada ao caso in concreto ou por meio de outros mecanismos, a aplicação do Direito Administrativo Sancionador. Nesse sentido, temos que o Direito Administrativo Sancionador busca a proteção dos modelos de gestão setorial, sem análise dos critérios de periculosidade ou lesividade concreta, todavia imbuído de um direito repressor que não tenha características exclusivas penais, mas que não deixa de considerar o Direito Penal como necessário em situações extremas – ultima ratio – constituindo uma política adequada e conformada com uma teoria de justiça e verdade. 3. Desta forma, vale observar que a sanção administrativa forte e aplicada de maneira a coibir novas infrações penais tributárias, criando situações de embaraço à empresa com a contratação estatal, importação e exportação, participação em licitações, impedimentos a isenções, e participações em planos do governo de arrecadação facilitada, como SIMPLES, certamente gerará o objetivo estatal de evitar e reduzir o crime tributário, atingindo, assim, a arrecadação correta esperada. 4. Aplicação da pena nos moldes do atual sistema utilizado no Brasil não gera a resposta estatal necessária a coibir a prática delituosa tributária, visto o aumento gradativo de incidência dos tipos em questão, já que a norma processual permite a extinção de punibilidade desde que quitado o débito antes da sentença, criando uma sensação de impunidade e até mesmo deboche a lei penal por seus infratores, muitas vezes reincidentes, assumindo o risco da ineficácia e da fragilidade do sistema vigente. 5. Para a persecução concretista de um Direito Penal mínimo, ou seja, como ultima ratio, outros sistemas jurídicos de proteção são necessários, tendo a finalidade de ocuparem um campo de proteção indispensável na atual sociedade pós-moderna. 6. A busca por novas vertentes nos trouxe sugestões que, aplicadas de forma coerente pelo Estado, realizam o consenso de justiça, tanto almejado em nosso ordenamento jurídico. 7. A junção desses ramos do Direito, tal como o direito processual penal, tributário, penal, econômico e até mesmo o financeiro, formam um emaranhado de instrumentos que viabilizam o controle da administração pública sobre esses atos e fornecem ao credor maior garantia quando do cumprimento de suas obrigações tributárias. P á g i n a | 71 8. Com base nesses fatores, instaura-se a proteção jurídico penal do bem, podendo ser entendido como um valor ideal, proveniente da ordem social, juridicamente estabelecido e protegido, em relação ao qual a sociedade tem interesse na segurança e manutenção, tendo como titular tanto o particular quanto a própria coletividade. 9. Atualmente, a criação de um sistema jurídico adequado para proteger os bens jurídicos de natureza difusa e coletiva, diante da atual crise originada pela expansão do Direito Penal Clássico, pede a integração e a interdependência material e formal como elemento inicial. Notadamente, incumbe ao Estado-Juiz preservar por meio de alguns instrumentos que as diversas legislações garantam a proteção das violações a direitos individuais e coletivos. P á g i n a | 72 REFERÊNCIAS BAUMANN, Jürgen. Derecho penal: conceptos fundamentales y sistema. Trad. Conrado A.Finzi. Buenos Aires : Depalma, 1973. BECK, Ulrick. Risk society. Towards a new modernity. 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P á g i n a | 75 IPVA sobre aeronaves e embarcações Rubia Carla Pinto de Almeida87 Resumo O presente artigo tem o propósito de analisar a incidência de IPVA sobre embarcações e aeronaves, haja vista ser essa uma questão extremamente discutida e que, atualmente, apresenta grandes divergências no que tange ao posicionamento jurisprudencial e doutrinário. Para tanto, será necessária uma abordagem geral acerca do histórico e das características desse tributo, bem como a análise de teorias e posicionamentos jurisprudenciais do STJ. Palavras-chave: imposto / IPVA / constituição / embarcações / aeronaves. Abstract This article aims to analyze the incidence of property taxes on boats and aircraft, considering this is an extremely debated and that, currently, has major differences with respect to the jurisprudential and doctrinal position. Achieving this will require a general approach on the history and characteristics of this tax, as well as analysis of jurisprudential theories and positions of the STJ. Key-words: tax / property taxes / constitution / vessel / aircraft. INTRODUÇÃO Considerando que o IPVA (Imposto sobre propriedade de veículo automotor) é um imposto relativamente novo no Ordenamento Jurídico Brasileira, a ponto de não constar do Código Tributário Nacional, discussões sobre esse tema nunca se esgotam, haja vista as inúmeras divergências que existem em se tratando da sua incidência. Esse trabalho acadêmico visa exatamente trazer uma abordagem acerca da incidência desse imposto sobre as embarcações e aeronaves, uma vez que, tendo os Estados certa liberdade em legislar nesse sentido, muitas contradições têm ocorrido, inclusive a de se suscitar a inconstitucionalidade em determinadas situações de cobranças admitidas pela doutrina. A necessidade de se evidenciar esses posicionamentos e suas respectivas fundamentações vem à tona, pois é necessário se esclarecer a legalidade de cobrança deste tributo sobre as embarcações e aeronaves, uma vez que alguns Estados brasileiros cobram e outros não. Será 87 Graduada em Letras Vernáculas Português/língua Estrangeira; Graduanda em Direito – 10º semestre; Pósgraduada em Gramática e Texto e Metodologia do Ensino Superior. P á g i n a | 76 evidenciado, através de fundamentação teórica e jurisprudências, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que considera inconstitucional a referida cobrança. Para desenvolvimento desta pesquisa, serão utilizadas pesquisa bibliográfica, baseada, principalmente, nas obras de Ricardo Alexandre e Hugo de Brito, bem como a pesquisa documental, através de jurisprudências e outros documentos. Este estudo se inicia fazendo uma pequena abordagem sobre o conceito de tributo (impostos e taxas), prosseguindo com apresentações históricas do objeto de estudo, nos capítulos subsequentes, versará sobre as características do IPVA e sua incidência. 1. BREVE CONCEITO DE TRIBUTO A doutrina apresenta vários conceitos de tributo, o que leva a determinadas controvérsias. Diante disso, apesar de não ser função específica da lei estabelecer conceitos, o tributo é de definido legalmente no Brasil, art. 3º do Código Tributário Nacional: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”88 Diversas são as teorias que classificam os tributos em espécie, contudo o STF tem adotado a teoria da pentapartição.89 Dentre essas espécies de tributo, para desenvolver o tema deste trabalho, se faz mister mencionar os impostos, uma vez que o objeto desse estudo se enquadra exatamente nesta categoria. De acordo com o CTN, art. 16: “imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica.” 1.1 Imposto x taxa Fazer um comparativo entre os conceitos de imposto e taxa é muito importante para a reflexão dos capítulos seguintes deste artigo, haja vista ser esta uma das argumentações utilizadas para justificar a não incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves. Salienta Hugo de Brito: 88 BRASIL, Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2009. Segundo esta teoria acrescenta-se aos impostos, taxas e contribuições de melhorias, os empréstimos compulsórios e contribuições especiais. (ALEXANDRE, Ricardo. 2008). 89 P á g i n a | 77 Costuma-se distinguir imposto de taxa dizendo que o imposto não é contraprestacional, enquanto a taxa é contraprestacional. ... o fato gerador do dever jurídico de pagar a taxa é uma atuação estatal específica relativa ao contribuinte, enquanto o fato gerador do dever de pagar imposto é independente de qualquer atuação estatal específica relativa ao contribuinte.90 (grifo nosso) Diante do exposto, é possível inferir que taxa é o valor pago mediante a obtenção de um serviço ou benefício direto e específico. Em contrapartida, o imposto possui um caráter mais genérico, ou seja, mediante o pagamento deste, o retorno ao contribuinte poderá, ou não, acontecer. Um exemplo disso é o fato de o IPVA, “teoricamente”, ter a sua arrecadação destinada a fazer a manutenção das estradas, porém, ao se passar num pedágio, necessário se faz o pagamento de uma taxa. No caso dos impostos, existe a pretensão de atender as despesas gerais da Administração, e não a uma prestação de serviço específico. 2. O IPVA – IMPOSTO SOBRE PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES Dentre os impostos previstos pela Constituição Federal de 88, o IPVA encontra-se no rol dos impostos estaduais, são eles: ITCMD – Imposto sobre a transmissão de causa mortis e doação; ICMS –Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços; IPVA Imposto sobre propriedade de veículos automotores. Para tratar sobre a incidência do referido tributo sobre embarcações e aeronaves, é necessário compreender o conceito, bem como outros aspectos relacionados às suas características. Tais conhecimentos darão subsídios aos leitores deste artigo para construir um entendimento acerca da incidência do IPVA, bem como fazer um juízo de valor com relação à questão principal: embarcações e aeronaves. 2.1 Breve histórico do IPVA Como dito anteriormente, esse é um tributo relativamente novo no Ordenamento Jurídico Brasileiro, pois somente foi previsto na Constituição Federal de 67. Foi introduzido através da Emenda Constitucional nº27/85, em detrimento da Taxa Rodoviária Única, que era cobrada, anualmente, pela União. O pagamento era realizado pelo contribuinte no momento do licenciamento do veículo e sua arrecadação possuía uma destinação específica, que era o custeio de obras para a conservação de rodovias. Salienta Fernandes: 90 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. P á g i n a | 78 Historicamente o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA, de competência dos Estados e do Distrito Federal, foi instituído em substituição a antiga Taxa Rodoviária Única – TRU, cobrada anualmente pela União no licenciamento dos veículos.91 Percebe-se que, com a instituição do IPVA, através das alterações introduzidas pela Emenda Constitucional supra, a Taxa Rodoviária Única foi abolida e, desta forma, foi conferida aos Estados e ao Distrito Federal a competência para a arrecadação desse tributo. Tal competência assegurou certa liberdade aos Estados em legislar nesse sentido (IPVA), haja vista que desde a sua instituição não houve uma regulamentação por Lei Complementar.É justamente a partir desse fato que se verificam posicionamentos divergentes com relação à incidência do IPVA, variando, muitas vezes, de Estado para estado brasileiro, sobretudo, com relação a sua incidência, especificamente, sobre embarcações e aeronaves. Nesse sentido, Paulsen levanta a seguinte assertiva: Na ausência de lei complementar dispondo sobre esses elementos da hipótese de incidência (fato gerador, base de cálculo e contribuinte) dos impostosnominados – o que ocorre com IPVA, que não está delineado no CTN, eis que surgiu coma Emenda Constitucional nº 27/85 – os entes federados estão autorizados a exercer a competência legislativa plena, forte no disposto no art.24, §3º, da CF [...].92 2.2 Características gerais do IPVA Feito um breve entendimento histórico que tornou possível compreender algumas controvérsias existentes quando da cobrança do tributo em estudo, é relevante trazer a explicitação das principais características que o revestem, de modo a garantir uma fundamentação consistente ao se analisar o seu objeto de incidência. O quadro que se segue apresenta de forma sucinta essas características: 91 FERNANDES, in Freitas, 1999, p. 121. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e código tributário á luz da doutrina e da jurisprudência. 9 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 92 P á g i n a | 79 Função Princípios Fato gerador Base de cálculo e alíquota Contribuintes Lançamento Competência Predominantemente fiscal: criado para melhorar a arrecadação dos Estados e Municípios. Está sujeito aos três princípios: legalidade, anterioridade e noventena. Propriedade de veículo automotor É o valor do veículo, dependendo do seu ano de fabricação, marca e modelo; A alíquota é fixa, contudo a EC. Nº 42/2003 acrescentou o §6º, do art. 155 da CF de 88, possibilitando alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal, vislumbrando a possibilidade de alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização do veículo. É o proprietário do veículo De ofício Estados e Distrito federal MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 2ª ed. São Paulo: Método, 2008. 3. FATO GERADOR: A EXPRESSÃO “PROPRIETÁRIO DE VEÍCULO AUTOMOTOR” Ao tornar-se proprietário de veículo automotor, o adquirente faz “nascer” a hipótese de incidência que enseja na cobrança do IPVA, consoante reza o art. 155, inciso III, da CF/88: “Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre... III–propriedade de veículos automotores.” (grifo nosso). Considerando o foco deste artigo, se faz necessário analisar o conceito dos vocábulos veículo e automotor. “Veículo é o instrumento ou aparelho que, dotados de certos requisitos, serve ao transporte de coisas ou de pessoas, de um lugar para o outro.”93 No caso do IPVA, verifica-se que a CF/88 não restringiu a ideia de veículo a movimentação terrestre, o que torna possível, as legislações estaduais, dependendo do seu entendimento, incluir veículos marítimos e aéreos,94 todavia limita o tipo de veículo: somente os automotores, ou seja, aqueles cuja movimentação é gerada por forças diversas, através de um motor, mesmo que forma auxiliar. A Segundo o Código de Trânsito Brasileiro: 93 SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. Muitas das legislações estaduais, a exemplo da baiana (Lei 6.348/91, art. 1º, caput) falam apenas de veículos automotores de qualquer espécie, incluindo, desta forma, os aéreos e os marítimos. 94 P á g i n a | 80 Veículo automotor – todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a atração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. 95 4. DA INCIDÊNCIA DE IPVA SOBRE AERONAVES E EMBARCAÇÕES A doutrina contemporânea tem vislumbrado a possibilidade de incidência de IPVA sobre embarcações e aeronaves, baseando-se na definição de “veículo automotor” abordada no item anterior deste artigo e constante do texto constitucional. O STF, em contrapartida, considerando uma análise histórica do surgimento desse tributo, limita a incidência do mesmo à propriedade de veículos automotores de transporte terrestre, excluindo, dessa forma, as embarcações e aeronaves. Para dar continuidade a referida análise, é relevante apresentar os conceitos de embarcações e aeronaves. “Considera-se aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas e coisas.”96 Considera-se embarcação mercante toda construção utilizada como meio de transporte por água, e destinada à indústria da navegação, quaisquer que sejam as suas características e lugar de tráfego. Parágrafo único. Ficam-lhe equiparados: a) os artefatos flutuantes de habitual locomoção em seu emprego; b) as embarcações utilizadas na praticagem, no transporte não remunerado e nas atividades religiosas, cientificas, beneficentes, recreativas e desportivas; c) as empregadas no serviço público, exceto as da Marinha de Guerra; d) as da Marinha de Guerra, quando utilizadas total ou parcialmente no transporte remunerado de passageiros ou cargas; e) as aeronaves durante a flutuação ou em vôo (SIC), desde que colidam ou atentem de qualquer maneira contra embarcações mercantes.97 Segundo o Advogado César Augusto Mazzoni, ao analisar as definições descritas acima, as embarcações e aeronaves se diferenciam completamente de veículo automotor e não podem ser equiparadas para efeito de tributação por parte dos Estados. O advogado não acredita que o legislador, ao utilizar a expressão “veículo automotor”, tenha objetivado incluir neste rol as embarcações e aeronaves, pois as considera como gêneros totalmente distintos. 95 96 97 Lei nº 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86), art. 106, caput. Tribunal Marítimo (Lei nº 2.180/54), art. 11, §único e alíneas. P á g i n a | 81 Ademais, é cabível e pertinente abordar outra questão suscitada pelo mesmo autor, no que tange à interferência do Estado na Competência exclusiva da União. O mesmo afirma: O art. 22, inciso I, da Constituição Federal, dispõe que é de competência exclusiva da União legislar sobre direito aeronáutico e direito marítimo: “Compete privativamente a União legislar sobre: I – direito civil, comercial (SIC), penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. Dessa forma, como as aeronaves e as embarcações são registradas de forma única prevista na legislação federal (RAB e Tribunal Marítimo), somente a União poderia criar a tributação sobre a propriedade daqueles veículos. 98 (grifo nosso) Corrobora com tal posicionamento o autor Paulo Bonilha que, ao fazer alusão aos aspectos históricos do IPVA, demonstra: (...) Tem quatro anos do julgamento do Supremo Tribunal Federal. No sentido de que o IPVA é sucedâneo da antiga Taxa Rodoviária Única, cujo campo de incidência não inclui embarcações e aeronaves, vejam o equívoco de confundir imposto com taxa.99 (grifo nosso). (Anexo 1) Uma outra fundamentação que visa explicar a mencionada ilegalidade, no que se refere à incidência de IPVA sobre embarcações e aeronaves, está no o aspecto que compreende o registro da propriedade do veículo, já que o fato gerador do IPVA é a propriedade do veículo, a qual se adquire mediante o registro do mesmo nos órgãos competentes, a saber: Veículos Automotores: são registrados e licenciados no órgão de trânsito do Estado e no município de residência do seu proprietário. Reza o art. 120 do Código Trânsito Brasileiro: Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei. Aeronaves: são registrados de forma única (nacional), no Registro Brasileiro de Aeronáutica – RAB, consoante reza o art. 72, incisos I a IV do Código Brasileiro de Aeronáutica. O Registro Aeronáutico Brasileiro será público, único e centralizado, destinando-se a ter, em relação à aeronave, as funções de: I - emitir certificados de matrícula, de aeronavegabilidade e de nacionalidade de aeronaves sujeitas à legislação brasileira; II 98 MAZZONI, César Augusto. A Ilegalidade da incidência de IPVA sobre aeronaves e embarcações. 05 de abril de 2005. Disponível em http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=5890&. Acesso em 16 de novembro de 2010. 99 BONILHA, Paulo. Em manifestação na Mesa de Debates do IBDT de 28/09/2006. Disposto no site http://ibdt.com.br/2006/integra_28092006.htm P á g i n a | 82 - reconhecer a aquisição do domínio na transferência por ato entre vivos e dos direitos reais de gozo e garantia, quando se tratar de matéria regulada por este Código; III assegurar a autenticidade, inalterabilidade e conservação de documentos inscritos e arquivados; IV - promover o cadastramento geral. Embarcações: registros constantes no Tribunal Marítimo, Lei no 2.180/54, na forma do art. 13, inciso II, art. 76 e 77: Compete ao Tribunal Marítimo: II - manter o registro geral: a) da propriedade naval; b) da hipoteca naval e demais ônus sôbre embarcações brasileiras; c) dos armadores de navios brasileiros; Art . 76. Adquire-se a propriedade da embarcação pela construção ou qualquer outro meio de direito. A transmissão, todavia, só se completa pelo registro no Tribunal Marítimo. Art77. Somente depois de utimado o registro será expedido ao proprietário o título da propriedade naval. A partir dessa análise, conclui Mazzoni. Assim, como as aeronaves e as embarcações não são registradas e/ou licenciadas nos Estados ou nos Municípios, a Fazenda Estadual não pode instituir a cobrança do IPVA, pois a arrecadação desse imposto destina-se para os Estados e Municípios, na proporção de 50% (cinqüenta por cento) para cada um, conforme dispõe o art. 158, inciso III, da Constituição Federal. 100 5. POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Observou-se no decorrer deste artigo que há uma grande discussão acerca da incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves, tudo isso por conta da utilização da expressão genérica “veículo automotor”. É importante ressaltar que essa questão já foi debatida e decidida pelo STF em julgamento do Recurso Extraordinário 379.572, interposto contra decisão do TJ do Rio de Janeiro, que havia julgado válidos os arts. 5º, II, da Lei estadual 948/85 (vide anexo 2) e o art. 1º, §único do Decreto 9146/86, que permitiam a incidência de IPVA sobre proprietários de embarcações e aeronaves. Tais decisões também estão constantes do julgamento dos Recursos Extraordinários 255.111/SP (anexo 3) e 134.509/AM (anexo 4). 100 MAZZONI, César Augusto. A Ilegalidade da incidência de IPVA sobre aeronaves e embarcações. 05 de abril de 2005. Disponível em http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=5890&. Acesso em 16 de novembro de 2010. P á g i n a | 83 Os argumentos utilizados nessas jurisprudências perpassam por questões já levantadas neste trabalho acadêmico, tais como: o fato de o IPVA ter sucedido a Taxa Rodoviária Única, devendo manter os seus elementos conceituais; a intenção do legislador na redação do novo imposto, sendo perceptível a referência a veículos terrestres, dentre outros. Nesse aspecto, salienta Ricardo Alexandre, ao analisar os Acórdãos acima mencionados: Na análise, o redator do Acórdão, Ministro Sepúlveda Pertence, transcreveu longo e notável parecer do Ministério Público Federal em que se fez uma análise histórica do tributo e verificou que o mesmo foi criado em substituição á extinta Taxa Rodoviária Única, de modo que seus aspectos conceituais deveriam ser tomados em harmonia com o tributo extinto, inclusive no que concerne à incidência exclusiva sobre veículos terrestres.101 6. O IPVA NO ESTADO DA BAHIA Como ficou evidenciado neste trabalho, não existe Lei Complementar que regule nacionalmente o IPVA, sendo que cada Estado editou sua própria legislação sobre o referido imposto. A Lei 6.348 de 17 de dezembro de 1991se refere á legislação baiana que “legaliza” a incidência de IPVA sobre embarcações e aeronaves, contudo apresenta algumas ressalvas para as isenções descritas a seguir: Art. 1º O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA, devido anualmente, tem como fato gerador a propriedade de veículo automotor de qualquer espécie. .......................................................................................................................... Art. 4º São isentos do pagamento do imposto: ................................................................................................................. V-o veículo terrestre com potência inferior a 50 (cinqüenta) cilindradas e a embarcação com motor de potência inferior a 25 (vinte e cinco) HP; VI - os veículos e embarcações de empresas concessionárias, permissionárias ou autorizatárias de serviços públicos de transporte coletivo, empregados exclusivamente no transporte urbano e suburbano; .......................................................................................................................... X - a embarcação de propriedade de pescador profissional, pessoa física, por ele utilizada na atividade pesqueira; ................................................................................................................. Art. 7º A base de cálculo é: 101 ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 2ª ed. São Paulo: Método, 2008. P á g i n a | 84 b) em relação a embarcações: potência, combustível, comprimento, casco e ano de fabricação; c) em relação a aeronaves: peso máximo de decolagem e ano de fabricação. 102 Toda a Legislação está constante do anexo 5 deste trabalho. Observa-se nos artigos supramencionados que a legislação baiana apresenta dispositivos que vão de encontro às decisões do STF, sendo, portanto, passível de análise. 102 LEI Nº 6.348 DE 17 DE DEZEMBRO DE 1991(Publicada no Diário Oficial de 19/12/1991); alterada pelas Leis nº 6.697/94, 6.934/96, 7.981/01, 8.534/02, 8.542/02, 8.967/03 e 9.430/05. Dispões sobre o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. P á g i n a | 85 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após analisar o percurso desde o surgimento e instituição do IPVA, considerando os aspectos históricos, bem como o seu conceito e suas características, tornou-se possível inferir que de fato existe ilegalidade quando da incidência deste tributo sobre as embarcações e aeronaves. Os argumentos analisados neste trabalho, em especial as jurisprudências do STF, demonstraram a inconsistência dessa cobrança, dentre os quais foram citados: ter esse imposto (IPVA) substituído uma taxa existente – Taxa Rodoviária Única – aquele deverá, indiscutivelmente, adotar os mesmos critérios desta e, nesse caso, não se incluem as propriedades de embarcações e aeronaves como hipótese de incidência; a intenção do legislador ao desenvolver a redação na Constituição Federal, pois, ainda que não tenha sido mencionado, não há como vislumbrar a possibilidade de incluir as embarcações e aeronaves na incidência do IPVA, basta analisar os aspectos históricos e conceituais; outro aspecto mencionado e extremamente relevante diz respeito à competência, pois a legalização da incidência de IPVA sobre embarcações e aeronaves leva a interferência do Estado na Competência exclusiva da União, consoante argumentos já apresentados. Diante de todo o exposto, torna-se possível inferir que a cobrança de IPVA sobre a propriedade de aeronaves e embarcações configura-se como um ato ilegal, considerando logicamente a fundamentação apresentada neste trabalho. P á g i n a | 86 REFERÊNCIAS ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 2ª ed. São Paulo: Método, 2008. BONILHA, Paulo. Em manifestação na Mesa de Debates do IBDT de 28/09/2006. Disposto no site http://ibdt.com.br/2006/integra_28092006.htm, acesso em 17 de novembro de 2010. BRASIL, Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2009. Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86), art. 106, caput. FREITAS, Vladimir Passos de. Código Tributário Nacional Comentado. São Paulo: RT, 1999. Lei nº 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro LEI Nº 6.348 DE 17 DE DEZEMBRO DE 1991(Publicada no Diário Oficial de 19/12/1991); alterada pelas Leis nº 6.697/94, 6.934/96, 7.981/01, 8.534/02, 8.542/02, 8.967/03 e 9.430/05. Dispões sobre o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. MAMEDE, Gladston. IPVA: Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. MAZZONI, César Augusto. A Ilegalidade da incidência de IPVA sobre aeronaves e embarcações. 05 de abril de 2005. Disponível em http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=5890&. Acesso em 16 de novembro de 2010. P á g i n a | 87 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e código tributário á luz da doutrina e da jurisprudência. 9 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. Tribunal Marítimo (Lei nº 2.180/54), art. 11, §único P á g i n a | 88 O Pensamento Tópico e a Racionalidade das Decisões Judiciais Renato Geraldo E. Salles Junior103 Resumo O presente artigo tem como escopo fazer uma abordagem diacrônica sobre Tópica, a partir das ideias propostas por Theodor Viehweg, bem como definir a sua aplicabilidade e importância para busca da racionalidade das decisões judiciais. Para tanto, será realizada uma abordagem dos fundamentos propostos pelo autor, apresentando o conceito de tópica, informando-a como técnica de pensamento cuja aplicabilidade pode ser evidenciada nas discussões jurídicas, sobretudo, no contexto das decisões judiciais e formação da jurisprudência. Palavras-chave: tópica / norma jurídica / Direito / conflito Abstract This article is scoped to a diachronic approach on Topical, from the ideas proposed by Theodor Viehweg, as well as define its applicability and relevance to the search for rationality of judicial decisions. For both, there will be an approach proposed by the author of the foundations, presenting the concept of topical, informing it of thought as a technique whose applicability may be evident in legal discussions, particularly in the context of judicial decisions and formation of jurisprudence. . Keywords: Topical / legal rule / law / conflict INTRODUÇÃO Os estudos da Tópica Jurídica ressurgiram na Europa no período posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial. Estes se caracterizam por ser um contraponto e, principalmente, uma resposta à crise vivida pelo positivismo jurídico, em decorrência da instauração de regimes políticos totalitários legitimados pelos auspícios da lei. Com efeito, a mudança do cenário histórico-institucional provocado pela I Guerra Mundial produziu faticamente no momento do pós-guerra um sentimento de desconfiança nos postulados da neutralidade e da formalidade da lei geral e abstrata, inerentes à conformação do Estado de Direito legislativo, pois que estes princípios tornavam-se incapazes de acompanhar (e de realizar) as pretensões e finalidades emergentes da necessária ampliação das funções do Estado advindas do politeísmo dos valores imerso nos processos sociais. (DUARTE, 2010). 103 Tem Graduação em Direito. Pós-Graduação em Direito Processual Civil, e atualmente é aluno do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal da Bahia. Coordenador do Curso de Direito da Faculdade São Salvador. Atua principalmente com os seguintes temas: Hermenêutica Jurídica, Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. P á g i n a | 89 Nesse sentido, a tópica atuou como elemento de rompimento do modelo crítico-racionalista do sistema jurídico predominante no séc. XX, pois o método axiomático-dedutivo e o positivismo jurídico não apresentavam referenciais que os credenciassem junto ao pensamento jurídico alemão do início dos anos 50. Seguindo esta linha, em 1953, Theodor Viehweg publica a obra Topik und Jurisprudenz, preconizando o retorno aos ideais estilísticos da tópica-retórica dos gregos e abandonando a visão lógico-formal como base para a pacificação social. Para Viehweg, a Ciência do Direito devia ser entendida como tópica. Nas palavras de Tércio Sampaio Ferraz Jr., ao prefaciar a edição em português do livro do autor citado anteriormente: Viehweg retoma a discussão do paradigma científico do direito à luz da experiência grega e romana, iluminando-a com as descobertas de Vico e atualizando-a com os instrumentos contemporâneos da lógica, da teoria da comunicação, da linguística etc. (VIEHWEG, 1979) Ao afastar a noção de impermeabilidade da norma jurídica sem romper diretamente com o normativismo jurídico, as ideias de Viehweg tiveram o condão de lançar as bases do que veio a se tornar, atualmente, a vertente neo-positivista do Direito, ao buscar no caso concreto a fundamentação valorativa da decisão judicial. A título de referência, é possível afirmar que a teoria da argumentação como proposta por Chaim Perelman é sucedânea da tópica de Viehweg, assim como expoentes da Teoria Geral do Direito como: Dworkin, Alexy, Haberle e Muller. 1. TÓPICA JURÍDICA E ATIVIDADE JURISPRUDENCIAL O conceito de tópica é definido por Viehweg como: Um processo especial de tratamento de problemas ou técnicas do pensamento problemático, que se caracteriza pelo emprego de certos pontos de vista, questões e argumentos gerais, considerados adequados – os tópicos. Os tópicos são pontos de vistas utilizáveis em múltiplas instâncias, com validade geral, que servem para a ponderação dos prós e dos contras das opiniões e podem conduzir-nos ao que é verdadeiro (VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, 1979). P á g i n a | 90 Robert Alexy, discorrendo sobre o assunto e seguindo as idéias de G. Otte sobre o tema, afirma que o termo tópica pode ser ententendido em três acepções: “(1) Uma técnica de busca de premissas, (2) uma teoria sobre a natureza das premissas e (3) uma teoria do uso dessas premissas na fundamentação jurídica”. (ALEXY, 2005) Segundo Viehweg, “as discussões jurídicas devem ser vistas como eternos e infindáveis debates da aporia da justiça, isto é, devem responder a mais basilar das questões do Direito: o que é justo?" (MAZOTTI, 2010). Assim, como o conceito de justiça é extremamente vago dependendo de elementos como: momento histórico, sociedade referencial, classe política etc, para determinar a sua extensão é possível inferir, nestes termos, que a tópica serve como técnica ao operador do Direito, pois busca, no caso concreto, oferecer a interpretação que melhor se adeque ao critério do que é justo, no intento de solucionar as situações conflituosas presentes em sociedade. Nessa linha, para Viehweg, um sistema dedutivo de raciocínio de acordo o estabelecido nos modernos Códigos e legislações não encerra a questão da justiça ao caso concreto, pois o legislador não possui suficiente capacidade de prever todas as soluções justas, tampouco, acompanhar o desenvolvimento da sociedade e do Direito na medida de suas necessidades. Na medida que tal sistema está alicerçado sob uma premissa maior (lei), se esta estiver equivocada ou for omissa, a conclusão estará necessariamente comprometida. É preciso, portanto, empregar um outro raciocínio que esteja livre dessas amarras, um pensar problematizador que busca no caso concreto resolver o que é justo hic et nunc (aqui e agora). (MAZOTTI, 2010). Com base na ideia do autor, é possível inferir que a tópica é uma técnica de pensamento que se caracteriza por direcionar-se ao problema, e, nessa linha, a “jurisprudência deve ser concebida como um procedimento de discussão de problemas, no qual a inventio e os topoi (pontos de vista) devem predominar frente às premissas do tipo axiomática que amarram a decisão” (MAZOTTI, 2010). A tópica visa, portanto, permitir que o objetivo primordial do Direito se realize, qual seja o ideal de justiça. Para tanto, destina-se a alcançar a solução mais justa e razoável para a P á g i n a | 91 resolução dos conflitos. Seu ponto de início se dá através do caso concreto de um problema real, um estado de coisas que Viehweg chamou de aporia104. É justamente a ênfase no problema que dá ensejo à busca pelo operador do Direito da melhor solução ao caso concreto, pois não há uma pretensa vinculação direta à letra da lei, que informa e determina um sistema jurídico hermético e fechado. O Sistema se torna aberto de forma a permitir a prolação de decisões judiciais justas, através da deliberação de comandos concretos razoáveis, criativos e que se incorporam legitimamente por refletirem os anseios comuns da sociedade. O raciocínio tópico situa-se, portanto, no contexto das situações para as quais não há uma solução ou orientação decisória previamente estabelecida, cabendo àquele a quem se submete o problema oferecer uma alternativa plausível, que possa inclusive vir a servir de base para a solução de problemas semelhantes no futuro. (MENDONÇA, 2003). A partir destas ideias fica patente umas das características peculiares da tópica como método interpretativo, seu raciocínio se dirige às questões para as quais inexiste solução ou uma indicação decisória prévia, sendo responsabilidade daquele para o qual o problema se dirige estabelecer os parâmetros para a solução do conflito e, que, potencialmente poderão servir de base para solucionar situações futuras. Para Viehweg, problema é: toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução. (VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, 1979) O raciocínio tópico se estabelece exatamente naquelas situações para as quais inexiste uma solução prévia ou orientação determinada. Aquele que é submetido ao problema tem o dever de oferecer uma solução razoável e prudente que poderá, inclusive, nortear situações semelhantes futuras. “Do acúmulo das soluções dadas aos problemas forma-se um acervo de respostas para problemas, que finda por formar um sistema”. (MENDONÇA, 2003). Destacam-se, então, duas situações, naquilo que Viehweg denominou de: tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau105. No primeiro caso, não existe ainda nenhum tipo de 104 De acordo com ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª Edição. São Paulo, 1992., Aporia é um termo usado no sentido de dúvida racional, isto é, de dificuldade inerente a um raciocínio, e não no de estado subjetivo de incerteza. É, portanto, a dúvida objetiva, a dificuldade efetiva de um raciocínio ou da conclusão a que leva um raciocínio. P á g i n a | 92 referência decisória previamente estabelecida, contudo é imperativo oferecer uma decisão à situação concreta. No segundo caso, se está diante de um procedimento que se iniciou a partir de pontos de vistas já consolidados, presentes nos chamados catálogos de topoi. Como exemplo destes, é possível citar o critério da lex posteriori derrogat legi priori. Destaca o autor alemão que se assim se procede na vida cotidiana, estamos situados no nível da tópica de primeiro grau. Se procedemos, agora, buscando utilizar um catálogo de tópicos, ou seja, estruturados em uma base que foi elaborada a partir de um repertório de pontos de vista, estamos situados no nível da tópica de segundo grau. (DUARTE, Teoria do discurso e correção normativa do direito: aproximação à metodologia discursiva do direito, 2004) Nesse sentido os Topoi´s seriam: Pontos de vista empregados em diversos sentidos, aceitos geralmente, que são adotados a favor ou contra aquilo que se opina, e que possa conduzir a verdade ... e o encontro do sujeito com os topoi se dá a partir da inventio, a criação livre de juízos, cujo limite é o próprio imaginário do sujeito e a aceitação do argumento pela comunidade que os analisa”. (MAZOTTI, 2010) E sobre a função dos topoi, Viehweg afirma que: A função dos topoi, tanto gerais como especiais, consiste em servir a uma discussão de problemas. Segue-se daí que sua importância tem de ser muito especial naqueles círculos de problema cuja natureza está em não perder nunca o seu caráter problemático. (DUARTE, Teoria do discurso e correção normativa do direito: aproximação à metodologia discursiva do direito, 2004) Depreende-se, então, que a tópica tem por base uma amplitude lógica que tem como objetivo inicialmente criar pontos de vista (topoi), atuando como premissas que posteriormente permitirão a solução dos conflitos e pacificação social. São dois momentos distintos: o pré-lógico, com suporte na inventio; e um segundo, lógico, com suporte na demonstração e conclusão. O encontro do topoi, segundo Vihweg, ocorre em dois níveis tópicos: o primeiro, formado pelos problemas particulares e os pontos de vista que os seguem. Já os de segundo nível, consistem em um repertório de pontos de vista geralmente aceitos, que passam a ser concebidos como lugares-comuns. (MAZOTTI, 2010) Corroborando este pensamento, Atienza afirma que, se: 105 Configura-se a primeira quando, em face de um problema, procede-se de modo simples, ‘tomando-se, através de tentativas, pontos de vista mais ou menos causais, escolhidos arbitrariamente’, como sucede na vida diária, segundo mostra a observação. Posteriormente, a investigação conduz a determinados pontos de vista diretivos. Tendo em vista a insegurança derivada deste modo de proceder, busca-se apoio em ‘um repertório de pontos de vista preparados de antemão’, produzindo-se catálogos de topoi configuradores da tópica de segundo grau.” MALISKA, Marcos Augusto. A Influência da Tópica na Interpretação Constitucional. Disponível em: http://www.unibrasil.com.br/arquivos/marketing/palestra_maliska_polonia.pdf Acesso em: 14 dez. 2010. P á g i n a | 93 Por um lado a tópica é, do ponto de vista de seu objeto, uma técnica do pensamento problemático; por outro lado, do ponto de vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a noção de topos ou lugar-comum; finalmente, do ponto de vista do tipo de atividade, a tópica é uma busca e exame de premissas: o que caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nas conclusões (ATIENZA, 2002). Encontra realce na tópica, portanto, uma dinâmica indeterminada de geração de premissas e pensamentos, pois aquelas se caracterizam por serem soluções provisórias e imediatas para os casos concretos apresentados. Nesse sentido, é possível inferir que a tópica produz pontos de vistas compartilhados no intento de desenvolver soluções imediatas, porém centradas especificamente em premissas. Já o sistema dedutivo de raciocínio é calcado em enlaces ou sucessões de pensamentos em busca de uma conclusão final que ofereça, sobretudo, segurança jurídica, portanto, a questão central da tópica é a determinação de um método para a resolução de problemas, e não a busca de um sistema, ideia mais correlacionada à racionalidade cartesiana. Para sustentar suas ideias, Viehweg afirma que a estrutura fundamental do Direito Romano durante a fase conhecida como processo formular era tópica, ou seja, direcionada para a resolução de problemas, pois: ...as fórmulas, que criam remédios (ações, interditos, exceções) para defesa de interesses e situações não previstas no direito quiritário antigo são criadas pelos editos dos pretores. A flexibilização do direito civil (grifo nosso), em geral, dá-se dentro do processo formular, assim como a entrada da retórica grega e dos princípios de direito natural ou de direito dos povos, em oposição ao direito civil romano tradicional. (LOPES, 2002) Neste sentido, Viehweg realiza, inclusive, uma correlação/comparação com o Direito alemão de seu tempo, chegando ao que tange a este, conclusão similar, pois, ao direcionar a questão da decisão judicial para o problema, este inclui uma questão ética, invertendo a forma de pensar. Para ele, agora, a solução para os conflitos se remete ao problema/caso concreto e a partir deste se determina o sistema jurídico a ser aplicado. Suas principais conclusões podem ser assim dispostas: 1) A estrutura total da jurisprudência só pode ser determinada a partir do problema; a aporia fundamental é o problema de determinar o que é o justo aqui e agora. 2) As partes integrantes da jurisprudência, seus conceitos e proposições, precisam ficar ligadas de um modo específico ao problema e só podem ser compreendidas a partir dele. 3) Os conceitos e as proposições da jurisprudência só podem ser utilizados numa implicação que conserve a sua vinculação com o problema. (ATIENZA, 2002). P á g i n a | 94 A tópica, portanto, no entender de Viehweg, seria o meio mais eficaz de se atingir a justiça, pois os casos concretos apresentados seriam definidos como problemas. Este é o ponto que diferencia e tangencia o seu pensamento, havendo uma clara valorização do caso concreto, em detrimento dos aspectos integrantes da jurisprudência, principalmente, os conceitos e categorias, que são postos de lado, e são substituídos pelos topoi que adquirem um sentido especial quando intercalados às questões jurídicas concretas apresentadas. 2. UMA VISÃO CRÍTICA DA TÓPICA A PARTIR DAS IDEIAS PROPOSTAS POR THEODOR VIEHWEG A partir das ideias atuais de busca da racionalidade das decisões judiciais, os estudos da tópica apresentam uma real fragilidade no que concerne a fundamentação racional das opções do julgador. No entender de Robert Alexy, o estudo da argumentação jurídica racional é uma questão que: ...se apresenta da mesma forma insistente para os advogados praticantes e interessa a todo cidadão que seja ativo na arena pública. Da possibilidade da argumentação jurídica racional depende não só o caráter científico da jurisprudência, mas também a legitimidade das decisões judiciais. (ALEXY, 2005). É importante notar que o pensar problemático instituído por Viehweg não implica o surgimento de um sistema axiomático-dedutivo, mas, antes de tudo, reconhece no pensamento tópico uma atividade essencialmente dedutiva, pois os topoi atuam de forma a dar consistência a um conjunto de conhecimentos, estruturando-os, ao invés de determiná-los. Conforme leciona, Marcelo Manzotti: Não se pode dizer que a tópica estabeleceu um método propriamente dito de interpretação como fizeram as escolas anteriores. Mais do que fixar regras de atribuição de sentidos, o pensar problemático revela uma forma de raciocínio que, de certa maneira, subverte a ordem jurídica tradicional, principalmente quando se refere aos países de tradição romanística (MAZOTTI, 2010). Isto porque, nos países em que há predominância da Common Law, os sistemas jurídicos são organizados e assentados sobre o direito jurisprudencial, nos quais o precedente judicial tem papel fulcral, e se harmonizam de maneira mais íntima com a tópica como proposta por Viehweg. Assim: Na common law as regras de direito são extraídas a partir do tecido factual que é colocado perante o juiz. Não há vinculação prévia silogística, mas apenas uma P á g i n a | 95 verificação de precedentes (questões análogas já suscitadas e decididas) e a equity, princípio orientador da justiça com base nos costumes locais e na sensibilidade social. (MAZOTTI, 2010). Contudo, fica patente que os tópicos ou topoi não constituem um sistema hierarquizado ou axiomatizado, e posto que para cada caso concreto são invocados tópicos fundamentais de propostas de decisões contrapostas, conclui-se que: “O pensamento tópico não leva a um sistema (total), mas a uma pluralidade de sistemas, sem demonstrar a sua compatibilidade a partir de um sistema total”. (MAZOTTI, 2010). Nesse diapasão é que se apresenta uma real inconsistência da tópica, pois os indivíduos em sociedade desejam a realização da Justiça, mas também, é fundamental que este contexto venha acompanhado de segurança jurídica e, até mesmo de certa previsibilidade na forma pela qual as decisões judiciais são proferidas. Essa é uma das regras de funcionalidade presente na noção de sistema, pois este, dotado que é de subsistemas, cumpre em suas partes uma função definidora. Essa funcionalidade dos sistemas supõe que os elementos estejam relacionados de uma maneira determinada, sendo esta pré-ordenada, e autopoiética. Como afirma Wilson Hilário Borges: Essas regras de funcionalidade necessária devem ser o resultado da própria operação que deve desenvolver mecanismos próprios de controle interno. Esse tipo de controle, que responde às necessidades é definido no próprio sistema como condição mesma de garantia do cumprimento dos propósitos (BORGES, 2000). A decisão judicial como fenômeno sistemático, portanto, no âmbito de um sistema autopoiético, tem que se autocriar ou recriar-se a partir de si mesmo, recorrendo a sua capacidade própria e única de estabelecer suas regras e formalidades constitutivas, a partir do universo de elementos do próprio sistema e, mais ainda, a partir dos influxos provenientes dos demais sistemas presentes na sociedade (econômico, político, ciência etc). Assim, afirma Niklas Luhman: A contigência, a possibilidade de mudança, enfim, a não necessidade do Direito moderno marca uma nova compreensão: a compreensão do Direito como um sistema que se reproduz a si próprio na medida, sobretudo, que terá agora as possibilidades de regulação de sua própria mudança. (CHAMON JUNIOR, 2010) P á g i n a | 96 CONSIDERAÇÕES FINAIS O ressurgimento da tópica através de Theodor Viehweg, no contexto do estudo e desenvolvimento do raciocínio jurídico, despertou a doutrina jurídica da época para parâmetros além da lógica de um sistema normativo jurídico fechado como proposto por Hans Kelsen. Contudo, os elementos tópicos defendidos pelo pensador alemão não possuíam elementos que o legitimassem e tampouco eram propostos parâmetros que fundamentassem decisões judiciais racionais, seguindo um arquétipo de modelo de justiça, ideal e universalizante. Nesse sentido é o pensamento de Manuel Atienza, ao afirmar que: De qualquer maneira, e como observação final, é necessário reconhecer que na tradição do pensamento da tópica inaugurada por Viehweg pode-se encontrar sugestões e estímulos de inegável valor para quem deseja começar a estudar - e a praticar - o raciocínio jurídico; mas, por si mesma, ela não fornece uma base sólida sobre a qual se possa edificar uma teoria da argumentação jurídica (grifo nosso). O mérito fundamental de Viehweg não é ter construído uma teoria, e sim ter descoberto um campo para a investigação (ATIENZA, 2002). Todavia, é importante destacar que, apesar de se mostrar frágil e inconsistente, em alguns momentos, ao direcionar suas ideias para o ideal de justiça, Viehweg conseguiu romper com uma estrutura hermética do pensar sistemático, no modelo lógico-formal que imperava na seara jurídica da época. Pensar em justiça para Viehweg era solucionar o caso concreto e, nada mais atual do que pensar nesta esteira, pois pensar em princípios e valores é aceitar que existe algo mais no ordenamento jurídico além da letra da lei. Ao julgador compete a concretização dos direitos, fazendo justiça à situação da vida em disenso, garantindo os fundamentos de um Estado Democrático de Direito alicerçado, sobretudo, nos Direitos Fundamentais. Assim, o pensar tópico teve o mérito de pôr em evidência o problema, isto é, a situação conflituosa da vida, e, principalmente, os topoi (pontos de vista) imprescindíveis à sua discussão e solução. Para que a Ciência do Direito não se constitua em mera reprodutora de leis e decisões, servindo apenas à manutenção de status quo, sem acompanhar a evolução e desenvolvimento dos interesses da sociedade em todos os campos (político, econômico, ciência etc), é P á g i n a | 97 necessário que se encontre uma forma de racionalizar e conjugar o pensamento tópico problematizante, inserindo-o no âmbito de uma Ciência Normativa e Sistemática. P á g i n a | 98 REFERÊNCIAS ALEXY, R. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. (Z. H. Silva, Trad.) São Paulo: Landy Editora, (2005). ATIENZA, M. As razões do Direito: as teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, (2002). BORGES, W. H. Decisão Social e Decisão Jurídica: uma teoria crítico-historicista. Jabaquara: Germinal, (2000). CHAMON JUNIOR, L. A. Filosofia do Direito na Alta Modernidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, (2010). DUARTE, É. O. Teoria do discurso e correção normativa do direito: aproximação à metodologia discursiva do direito. São Paulo: Landy Editora, (2004). DUARTE, É. O. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces do direito em tempos de interpretação moral da constituição. São Paulo: Landy Editora, (2010). LOPES, J. R. O Direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Editora Max Limonad, (2002). MALISKA, Marcos Augusto. A Influência da Tópica na Interpretação Constitucional. Disponível em: HYPERLINK "http://www.unibrasil.com.br/arquivos/marketing/palestra_maliska_polonia.pdf" http://www.unibrasil.com.br/arquivos/marketing/palestra_maliska_polonia.pdf em: 14 dez. 2010. Acesso MAZOTTI, M. As Escolas hermenêuticas e os métodos de interpretação da lei. Barueri, SP: Minha Editora, (2010). MENDONÇA, P. R. A Tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar, (2003). VIEHWEG, T. Tópica e Jurisprudência. Brasília: EDUNB, (1979). P á g i n a | 99 A CRÍTICA DA FILOSOFIA ALEMÃ NA FORMAÇÃO DO MARXISMO. Antonio Eduardo Alves de Oliveira106 Resumo O presente trabalho aborda a formação da teoria marxista em especial o desenvolvimento do método dialético, ressaltando as continuidades e as rupturas em relação a filosofia de Hegel e a Feuerbach. Palavras-chave: Marxismo; método dialético, filosofia alemã, Hegel Abstract This paper discusses the formation of Marxist theory in particular the development of the dialectical method, noting the continuities and ruptures in relation to the philosophy of Hegel and Feuerbach Keywords: Marxism; dialectical method, German philosophy, Hegel Introdução Apresentar uma investigação sobre marxismo e sua conexão com a filosofia alemã do século XIX é pertinente para podermos traçar uma compreensão da constituição do marxismo como um instrumento analítico. A questão fundamental que perseguimos neste texto é a apreensão do método marxista a partir da relação entre Marx e a filosofia de Hegel, bem como a crítica elaborada por Marx ao movimento jovem hegeliano, em especial ao materialismo de Feuerbach. Ao contrário das concepções predominantes hoje nas ciências sociais, com os chamados deslocamentos e quebra de paradigmas, escolho esse tema não somente pela significação que teve na formação de uma investigação da realidade social, mas, sobretudo, por acreditar que a concepção elaborada por Karl Marx tem tanto uma vigência teórica e quanto prática na atualidade. A crítica sociológica ao marxismo, mesmo quando efetuada por chamados “marxistas”, em geral partiu de uma profunda mistificação das categorias de análise marxista, ora desqualificando o marxismo como “mera ideologia” ou como uma teoria “reducionista ou economicista”, conservando apenas o que era aceitável para a classe dominante, aviltando o conteúdo revolucionário do marxismo. Quando da publicação dos chamados textos juvenis de Marx em meados do século XX, abriuse uma viva polêmica; para alguns, como Lucian Goldman, estes textos significam que, jovem, Marx 106 Doutor pelo Programa de Pós-graduação em ciências Sociais- UFBA Professor de Sociologia Jurídica da Faculdade são Salvador. P á g i n a | 100 era um humanista e dialético e que posteriormente abandonou a sua verdadeira natureza inovadora nos textos da maturidade, em prol de uma concepção economicista. Por outro lado, Althusser apresentava que nestes textos juvenis Marx ainda não era marxista, que com o posterior desenvolvimento científico da sua teoria na maturidade as imperfeições do período juvenil foram superadas. (MERQUIOR, 1987, ANDERSON, 1989) Essa controvérsia foi extremamente importante durante algum tempo, provocando ainda hoje muita discussão. Entretanto esse debate não será o tema desse trabalho, nem a discussão sobre as objeções à dialética formuladas por críticos contemporâneos como os autores do marxismo analítico, Habermas, filosofia analítica, etc. Procurarei apresentar a discussão sobre a contribuição do método dialético na filosofia hegeliana e seu impacto na teoria elaborado por Marx não em sentido polêmico, mas em uma exposição mais afirmativa a partir de uma análise da crítica Marx a Hegel nos Manuscritos Filosóficos de 1844.107 O nosso estudo sobre o pensamento de Marx nestes escritos da década de 40 do século XIX visa discutir a formação da teoria marxista, em especial o desenvolvimento do método dialético, ressaltando as continuidades e as rupturas em relação a Hegel e a Feuerbach. 1. A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO E A DIALÉTICA HEGELIANA Antes de abordarmos a crítica de Marx à filosofia hegeliana, é importante algumas breves observações à Fenomenologia do Espírito de Hegel, considerada pelo próprio Marx a fonte originária da filosofia hegeliana. A Fenomenologia do Espírito é sem dúvida uma das grandes obras de toda a filosofia; nela Hegel (2003) define a fenomenologia como desenvolvimento e cultura da consciência natural rumo à ciência, rumo ao saber filosófico, ao saber do Absoluto, sendo que o desenvolvimento é a própria consciência engajada na experiência. A filosofia alemã da segunda metade do século XVIII enfrentou a crise da filosofia metafísica, que foi expressa nos questionamentos de Hume sobre a validade das categorias do pensamento para apreender a realidade. Esse problema estimulou a problemática levantada por Kant, de como é possível a experiência e o conhecimento. 107 Texto apresentado na disciplina metodologia ministrada pelo professor Antonio câmara no Programa de pos Graduação em Ciências Sociais -UFBA P á g i n a | 101 Para Hegel (2003), a filosofia não era vista como um mero amor ao saber, mas como ciência, ciência do absoluto. O processo de conhecimento e da construção do saber não poderia ser algo imóvel, pois em vez de permanecer na reflexão no saber do saber, é preciso mergulhar direta e imediatamente no objeto a conhecer. Neste sentido, reprova um relativo subjetivismo de Kant, que apesar da dedução das categorias, apresenta a impossibilidade de um conhecimento da “coisa em si”, como Schelling parte da identidade absoluta do subjetivo e do objetivo no saber, mas concebe o idealismo do absoluto, não a partir da natureza, mas através do desenvolvimento da consciência, sendo que o saber fenomênico será o saber progressivo que o Absoluto tem de si mesmo. A reflexão não será algo acrescentando a ela do exterior, como em Kant, nem algo posto nela, de um modo mais ou menos artificial, como em Fitche. A reflexão será literalmente uma história dessa consciência. Esta apresentação pode ser considerada como o caminho da consciência natural que se submete a um impulso, o qual a incita rumo ao verdadeira saber; ou ainda, como o caminho da alma que percorre a série de suas formações enquanto estações que lhe são prescritas por sua própria natureza; percorre-as para purificar rumo ao espírito e, através da completa experiência de si mesma, chegar ao conhecimento do que ela é em si mesma (HIPÓLITO, 2005). Além disso, Hegel considera a experiência de uma maneira peculiar, pois a consciência faz em toda sua amplitude, deixando essa consciência experimentar-se a si mesma bem como promover seu próprio saber de si e do mundo. A crítica da experiência estende-se à experiência ética, jurídica, religiosa, não mais se limitando à experiência teórica. O processo da formação filosófica segue o desenvolvimento da consciência que, abandonando as suas convicções primeiras, atinge através de suas experiências o ponto de vista propriamente filosófico, aquele do saber absoluto. O desenvolvimento descrito por Hegel não é aleatório, mas vincula-se à noção de necessidade, sendo que a verdade releve-se após percorrer cada momento de desenvolvimento, sendo preciso abandonar a concepção primeira e adotar uma outra. A evolução concreta da consciência que apreende de modo progressivo a duvidar daquilo que anteriormente tomava como verdadeiro. O caminho que se segue à consciência é a história pormenorizada de sua formação. Neste processo, revela-se o método dialético, que parte da noção de processo contínuo de transformação, pela força das contradições e noção de devir, gerada pela negatividade e pela posterior síntese. Assim, o caráter negativo da dialética representa ao mesmo tempo a quebra da consciência ingênua e a constituição de uma nova verdade, pois se é verdade que toda posição determinada é uma P á g i n a | 102 negação, toda negação determinada já é uma posição. A consciência ingênua pretende conhecer o conteúdo integral do saber em toda plenitude, mas deve experimentar a negatividade, o que permite desenvolver o conteúdo em afirmações sucessivas. (HIPÓLITO, 2005). Neste processo necessariamente contraditório, Hegel salienta que existe uma transcendência do que era tido como verdadeiro para a constituição de algo novo, mas que haveria um Aufheben, palavra alemão que significa ao mesmo tempo o negativo e positivo. A consciência não é uma coisa, um ser-ai determinado; está sempre além de si mesma, supera a si mesma ou se transcende. 2. MARX DIANTE DE HEGEL Analisemos como aspecto introdutório ao nosso estudo a temática exposta por Marx (1991) no terceiro Manuscrito Econômico-Filosóficos de 1844, quando o autor faz uma avaliação da herança da filosofia alemã, e em particular em relação à dialética hegeliana. Em face dessa questão, Marx salienta que a moderna crítica alemã estava tão presa ao conteúdo do velho mundo que tinha uma posição acrítica em relação ao método de criticar e colocava a necessidade de uma resposta a uma questão formal, mas essencial. “Em que situação nos encontramos agora frente à dialética hegeliana?” (MARX, 1991). Marx critica as respostas dadas pelo movimento jovem hegeliano, por entender que eram unilaterais e ficavam efetivamente presas a aspectos da própria lógica do sistema idealista. No terceiro Manuscrito, Marx faz uma resenha crítica da filosofia hegeliana, em particular da Fenomenologia do Espírito, para fazer de certa forma um ajuste de contas com o próprio movimento jovem hegeliano, do qual foi integrante. Marx aponta como um dos equívocos da filosofia hegeliana a concepção expressa na fenomenologia de que a riqueza, o poder estatal, etc são formas alienadas no homem, mas simplesmente do pensamento filosófico puro. Ou seja, para Hegel, o pensamento abstrato tem a pretensão de efetividade, e os objetos reais que se alienam, assim “o filósofo (uma figura abstrata do homem alienado) erige-se em medida do mundo alienado” (MARX, 1991:196). Além disso, a história da exteriorização e de toda a retomada dessa exteriorização apresenta-se como produto do pensamento abstrato. Para Marx, apesar do caráter dialético do método, Hegel acaba por força da elaboração de um sistema, por realização um fechamento das contradições e do próprio movimento “todo movimento termina assim com o saber absoluto” (MARX, 1991). Sobre a base desta caracterização, Marx criticou o conceito de alienação em Hegel, uma vez que sendo a alienação o interesse fundamental do processo de exteriorização e superação dessa exteriorização, sendo a oposição entre o em si e o para si; a consciência e a autoconsciência, o sujeito P á g i n a | 103 e o objeto, devido à formulação idealista da filosofia hegeliana e do fechamento com o saber absoluto, acaba sendo as oposições expressas na alienação apenas uma aparência , um “invólucro”. Ademais, Marx critica que a superação da alienação para Hegel se efetiva através do processo que a essência se objetive diferenciando-se do e no pensamento abstrato. Assim, a apropriação se passa apenas na consciência, dentro do pensamento puro, sendo a apropriação do objeto, por exemplo, um movimento do pensamento. A segunda crítica formulada por Marx, que tem um importante alcance metodológico, diz respeito ao problema do mundo objetivo para o homem, que se vincula com o problema anterior. A humanidade da natureza e a natureza produzida pela história, dos produtos do homem, aparece no fato de que eles são produtos do Espírito abstrato e, portanto, nessa mesma medida, movimentos espirituais, seres de pensamento (MARX, 1992:197). Assim, a formulação idealista acaba por obscurecer a compreensão da realidade, na medida em que transforma a própria natureza e a realidade humana em produtos da idéia. A apropriação é condicionada pelas categorias do pensamento, apesar da fenomenologia prever um percurso de alienação e superação da alienação. A divergência de Marx é que a essência e até mesmo o objeto para Hegel são seres do pensamento, e o homem como apenas consciência ou autoconsciência. Entretanto, Marx exalta que a grandeza da fenomenologia hegeliana está na dialética da negatividade, enquanto princípio “motor e gerador”, que produz dessa maneira a transformação e devir como uma compreensão revolucionária da autogeração do homem enquanto processo, abordando a alienação, mas ao mesmo tempo a superação da alienação, a objetivação e também a desobjetivação. Ao refletir sobre a atividade humana, Hegel desenvolve uma compreensão sobre o significado do trabalho para a constituição do homem objetivado, e apresenta o comportamento efetivo do homem para consigo mesmo como resultado de seu próprio trabalho. Marx salienta que mesmo com uma abordagem idealista, Hegel já se colocava do ponto de vista da economia política moderna, na medida em que “concebe o trabalho como a essência do homem”, sendo que o trabalho é a expressão do vir a ser do homem alienado, entretanto Hegel somente reconhece como trabalho o trabalho espiritual, abstrato. P á g i n a | 104 3. PASSAGENS PARA O MATERIALISMO: A HERANÇA DE FEUERBACH Nos Manuscritos, Marx afirma que único que teve uma atitude seria em relação à dialética hegeliana foi Feuerbach, que representou um passo adiante, colocando em perspectiva materialista. Posteriormente Marx, nas famosas teses sobre Feuerbach, apresentou uma crítica ao materialismo proposto por Feuerbach. Para se ter uma idéia da importância de Feuerbach para a elaboração da concepção materialista de Marx e Engels, o próprio Engels assinalou que em determinado momento “todos fomos feurbanianos”. No seu livro o feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, o parceiro de idéias de Marx (1982) salientou que o sistema elaborado por Feuerbach teve um forte impacto sobre os jovens hegelianos, por trazer uma abordagem inovadora da herança hegeliana, saindo do impasse da crítica religiosa e pelo desenvolvimento conservador do sistema. A influência de Feuerbach no marxismo foi analisada por Plekhanov (1978), um dos teóricos da segunda internacional, que não obstante a sua posição anti-bolchevique na revolução russa, foi sem dúvida um dos grandes divulgadores do marxismo, dono de uma vasta cultura filosófica e um leitor de Hegel. Segundo ele, o humanismo de Feuerbach observado posteriormente como um sistema “confuso e indeterminado”, teve mérito indiscutível de ter provocado um deslocamento importante no foco da análise no movimento jovem hegeliano, pois antes a análise era focada no pensamento e a partir de Feuerbach passou a ter como eixo o ser. Isso significou um importante passo para a elaboração posterior de Marx. A crítica de Feuerbach ao sistema de Hegel era que a contradição entre o ser e o pensamento era transportada para dentro de um dos elementos da contradição, o pensamento. Portanto, a existência do ser, da natureza estava subordinada ao pensamento. Na elaboração de Feuerbach, o demiurgo da realidade não é o pensamento, mas o ser. ”As verdadeiras relações entre o pensar e o ser devem ser expressas da seguinte maneira: o ser é o sujeito, e o pensar é o atributo” (FEUERBACH apub PLEKHÂNOV, 1978: 14). Nos Manuscritos de 1844, Marx (1991) enfatiza o significado libertador dessa formulação de Feuerbach, pois fundou um “verdadeiro materialismo” ao colocar a “relação homem a homem” como o princípio fundamental da teoria, além disso, segundo Marx (1991) o grande feito de Feuerbach foi “ter provado que a filosofia nada mais é que a religião trazida para o pensamento e exposta pensamento: uma outra forma, outro modo de existência da alienação do ser humano, e que também se deve condenar”. P á g i n a | 105 Em sua antropologia humana, Feuerbach apresenta uma concepção humana ou humanista da religião, na medida em que Deus é a expressão do próprio espírito humano, ou seja, foi o homem quem criou Deus e não o contrario. É importante salientar que esse materialismo de Feuerbach é ainda abstrato, pois trata-se ainda da apreensão do ser a partir do produto da cabeça humana. (MARX ,2002). Um outro aspecto relevante que teve um importante alcance na metodologia marxista, que estava presente já na filosofia hegeliana, mas que foi reformulada por Feuerbach, é de maneira alguma pensar a relação sujeito-objeto como sendo uma oposição binária simplesmente, como uma oposição absoluta, pois enquanto sujeito faz parte do mundo objetivo, o mundo objetivo não se encontra apenas fora de mim, mas ele esta também em mim. Na dialética do reconhecimento, expressa na relação senhor e escravo, Hegel apontava para a necessidade de a consciência ter uma relação com uma outra consciência. No Terceiro manuscrito, Marx (1991) enfatiza que, na relação entre o homem e a natureza, a condição indispensável para apreender esta relação é perceber que não somente o homem é parte da natureza, mas a própria natureza é humanizada, ou seja, a relação sujeito e objeto, não é uma oposição absoluta, mas são igualmente parte de uma totalidade, que no domínio de uma gnosiologia, o homem conhece o objeto, na medida em que age experimentando a natureza através da sua transformação. Como salienta Plekanov (1978), o pensamento de Marx está de acordo com o que dissera Fausto “no começo era a ação”. 4. A CRÍTICA A FEUERBACH E À IDEOLOGIA ALEMÃ A teoria da unidade entre sujeito e objeto, a primazia do ser sobre o pensamento bem como a análise da transformação da natureza já estão presentes nos Manuscritos Filosóficos de 1844, posteriormente nas famosas teses sobre Feuerbach e na ideologia alemã, obras que não foram publicadas e foram “entregues à Crítica roedora dos ratos”. Marx realiza uma crítica das formulações de Feuerbach e do movimento jovem hegeliano, apresentando os alicerces do que posteriormente ficou conhecido como materialismo histórico e dialético. A filosofia idealista alemã na apreensão do processo de conhecimento e do debate em torno da realidade e da capacidade de ser ter um conhecimento efetivo ou não dessa realidade transformou o pensamento em uma entidade autônoma, assim, por exemplo, para Schelling, pensar era um princípio absoluto, de onde precedia o mundo real. Para Feuerbach, a unidade entre o ser e o pensamento, buscada por Hegel, seria encontrada no homem, e não no espírito absoluto. Já vimos como essa P á g i n a | 106 colocação foi importante para o desenvolvimento da visão marxista, entretanto Marx criticou o sistema elaborado por Feuerbach. A primeira tese sobre Feuerbach, Marx (2002) critica o que seria ao seu ver o principal defeito do materialismo de Feuerbach, que o objeto, a realidade, o mundo sensível somente poderia ser apreendido sob a forma de intuição, mas não como atividade humana, como práxis. Por isso, Feuerbach não considerava a própria atividade humana como atividade objetiva, sendo somente a atividade teórica uma ação efetivamente humana. Dessa forma, Marx critica Feuerbach, por não compreender atividade revolucionária a atividade prática-crítica (MARX, 2002:99). A segunda tese afirma que a questão da verdade objetiva não pode ser respondida simplesmente teoricamente, mas é uma questão prática, sendo na práxis que homem deve provar a verdade. Assim, a discussão sobre a realidade ou a irrealidade do pensamento de maneira Isolada da práxis é uma questão meramente escolástica, no sentido pejorativo do termo, ou seja, um debate vazio de efetividade. Mais que isso, compreender que homem atuando concretamente não somente é influenciado pela realidade, pelas circunstâncias, mas que é preciso interrogar de que forma o ser humano também transforma as circunstâncias. É este o sentido debatido na terceira tese. A doutrina materialista que pretende que os homens sejam produtos das circunstâncias e da educação, e que, conseqüentemente, homens transformados sejam produtos de outras circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado. Por isso que ela tende dividir a sociedade em duas partes, uma das quais está acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). A coincidência da mudança das circunstâncias só pode ser considerada e compreendida racionalmente como práxis revolucionária (MARX, 2002.100). Assim, Marx destaca que relação entre os homens e suas circunstâncias não é uma relação mecânica, é preciso ter uma visão de conjunto, relacionada com a própria práxis revolucionária no processo de mudança. A sexta tese trata da questão da essência humana, tão cara ao idealismo; para Marx, o erro de Feuerbach consiste em converter a essência religiosa em essência humana, transformando dessa forma o próprio ser humano em algo divino. Além disso o materialismo de Feuerbach que, como vimos, Marx salientou que foi o único que apontou corretamente o ponto de partida real, ou seja, o ser invés do pensamento é criticado na sexta tese por ver o ser como “essência humana”. como uma abstração, partindo do indivíduo enquanto “essência genérica” e não do ser humano real. “Mas a essência do P á g i n a | 107 homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na realidade ela é o conjunto das relações sociais (MARX, 2002:101). Nos manuscritos filosóficos, o caráter social do modo de existência humana é discutido tanto em relação ao processo de alienação do trabalho, através da propriedade privada, bem como a superação positiva da propriedade privada, quando o homem produz o homem, a si próprio e o outro homem. Além disso, a atuação, mesmo quando individual, somente pode se realizar como prática de um homem social. Dessa forma, uma atividade teórica, como a atuação científica ou literária, mesmo isolada de uma comunidade imediata, não é apenas a “minha” atividade, pois como pensador ativo utilizo uma língua, que é um produto social. Assim, para Marx, Meu próprio modo de existência é uma atividade social, porque o que faço de mim, o faço para a sociedade e com a consciência de mim enquanto ser social (...) o indivíduo é um ser social. A exteriorização da sua vida __ainda que não apareça na forma imediata de uma exteriorização de vida coletiva, cumprida em união e ao mesmo tempo com outros __ é, pois, uma exteriorização e uma confirmação da vida social. (MARX, 1991:170). O indivíduo, por mais particular que ele seja, tem sua particularidade na medida em que é um ser social e individual efetivamente a partir de uma relação de totalidade. Por isso, mesmo a individualidade conforme foi sendo moldada na sociedade capitalista, é fruto de uma construção social. Por sua vez, a propriedade privada é apenas a expressão de como o próprio homem se torna, ao mesmo tempo, objetivo para si e objeto estranho e inumano, propiciando uma alienação da sua vida ou uma “efetividade estranha”. Segundo Meszaros (2006), Marx caracteriza o capitalismo como realização coerente do individualismo, sendo essa manifestação do individualismo determinada pela alienação do trabalho. Auto-alienação do trabalho, da questão da liberdade até a do significado da vida, da gênese da sociedade moderna até a relação entre a individualidade e o ser comunitário do homem, da produção de apetites artificiais até a alienação dos sentidos, e desde uma avaliação da natureza e da função da filosofia, arte, religião, e direito até problemas de uma possível e integração da vida humana no mundo real. (MESZAROS, 2006.77). Para Marx (1991), a superação da propriedade privada é, por um lado, a superação da unilateridade e estupidez de pensar que um objeto só é nosso quando o temos, quando é imediatamente P á g i n a | 108 possuído e consumido, e por outro é a emancipação total de todos os sentidos e qualidades, tanto objetivamente quanto subjetivamente. No comunismo, o homem não se perde mais em seu objeto, quando o objeto se configurar em objeto humano ou homem objetivado. A sétima tese sobre Feuerbach, Marx chama atenção para o fato que a vida social é essencialmente prática, sendo um dos pressupostos centrais para uma compreensão da organização social. Na ideologia alemã, Marx (2002) apresenta que uma das premissas fundamentais para concepção materialista da história é a necessidade de se partir dos indivíduos reais, a sua ação e suas condições materiais da vida, sendo que primeiramente tomar os indivíduos humanos vivos, sua constituição física e sua relação com a natureza. O segundo aspecto é entender que a diferença fundamental entre os homens e os demais animais é o fato que os homens, ao produzirem os seus meios de vida, produzem indiretamente sua vida material. O mais significante para uma correta caracterização do que é determinado modo de vida é ter em conta que aquilo que os indivíduos são depende das condições da sua produção, por isso é preciso saber o que os homens produzem e como produzem. Essa formulação Marx (1991) apresentou em 1859, de maneira mais sintética e conclusiva no famoso prefácio de Para a Crítica da Economia Política, quando escreveu: Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produções estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produções forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas da consciência (MARX, 1991:29). Este trecho é sem dúvida um dos mais citados na obra de Marx, pois apresenta de maneira magistral uma síntese da concepção materialista. Estas noções já foram apresentadas na ideologia alemã, quando foi afirmado que existe uma conexão entre a estrutura social e política com a produção, que os indivíduos que trabalham produtivamente de determinado modo entram em determinadas relações necessárias, no sentido que estas relações não têm uma existência arbitrária. Além disso, a história não é para Marx (2002) “uma coleção de fatos mortos”, como para os empiristas, nem uma “ação imaginada de sujeitos imaginados”, como para os idealistas.108 Entretanto, 108 Os homens são produtores da suas representações, mas Marx ressalva que são os homens reais, que realizam, que atuam e estão vinculadas as relações estabelecidas para a produção de sua vida material. MARX (1991) P á g i n a | 109 como a ideologia está relacionada com o processo de exploração e dominação, as coisas por assim dizer aparecem como de maneira invertida. Marx utilizava a metáfora da câmara escura, com a imagem aparecendo de cabeça para baixo. Neste sentido, a moral, as formas religiosas, o direito e o restante da ideologia não têm história própria, não apresentam um desenvolvimento independente, mas estão relacionados com a forma de intercâmbio material e a respectiva dominação de uma determinada formação social. Na medida em que avançava no desenvolvimento da sua investigação da realidade, Marx se voltou cada vez mais para o estudo da economia política, incorporando o método dialético, conforme podemos verificar na apresentação do método na Introdução Para a Crítica da Economia Política, quando Marx (1991) manifesta que o método cientificamente correto tem que iniciar pelas categorias mais abstratas e mais simples para posteriormente produzir uma síntese que abarque o concreto construído, na reprodução do concreto por meio do pensamento, não como um dado pré-estabelecido. Novamente uma crítica ao empirismo preso aos dados em si, sem a explicitação da elaboração de categorias analíticas, nem do idealismo metafísico do passado e do presente, que concebe como efetivo os conceitos abstratos em si mesmos. Para Marx (1991: 17), “o concreto é concreto por que é a síntese de muitas determinações, uma unidade do diverso”, assim, por exemplo, o valor de troca da mercadoria pressupõe a população, produzindo em determinadas condições, etc, chegando ao diferentes Estados e mesmo ao mercado internacional. Quando se utiliza o método inverso, geralmente usado pela economia política, partindose da população de conjunto, teremos uma representação vazia e caótica do todo. O todo ou a totalidade concreta é um concreto de pensamentos, sendo um produto do pensar, mas não é autônomo como querem os idealistas, que concebem o produto do conceito separado da representação. O todo como produto de uma construção do cérebro é única maneira de uma apropriação do mundo, que por sinal difere de outras maneiras de apropriação como o modo artístico, religioso, etc. Entretanto, salienta Marx, o sujeito real continua existindo de maneira autônoma fora da própria representação do cérebro, temos que levar em conta que não podemos entender a realidade sem uma forma de construto dessa realidade através de categorias do pensamento, pois é dessa maneira que podemos aproximar do concreto. Por sua vez, o real não é fruto do olhar relativo do observador, ou seja, tem uma existência independente. Na sagrada família, obra de 1845, que marca a ruptura com o movimento jovem hegeliano, que tinha como subtítulo Crítica de uma crítica, critica, desculpe o trocadilho, exatamente a tendência dos doutores em procederem na crítica da sociedade como uma forma separada da massa popular, acreditar que a representação que se construiu da sociedade por mais brilhante que seja não pode ser superior aos próprios sujeitos que atuam na realidade. Uma tendência que Marx (2003) critica nesta obra é que a crítica critica “como separa o pensamento dos sentidos, a alma do corpo, e se separa a si P á g i n a | 110 mesma do mundo” Por isso, o marxismo não é somente uma teoria, mas uma práxis preocupada com “a atividade humana real de indivíduos que são membros laboriosos da sociedade e que, como seres humanos que são, sofrem, sentem, pensam e atuam”. P á g i n a | 111 REFERÊNCIAS ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Editora brasiliense, 1989. HEGEL. Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: vozes, 2003. HYPPOLITE. Jean. Gênese e estrutura da fenomenologia do espírito de Hegel. São Paulo: discurso editorial, 1999. INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio de janeiro: Jorge Zahar editor, 1997. KOJÉVE. Introdução à leitura de Hegel. São Paulo: contraponto, 2002. MARX. Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. E outros textos escolhidos. IN: Marx vol. 1, coleção os pensadores. São Paulo: Nova cultural, 1991. MARX, Karl e Engels, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Martins fontes, 2002. MARX, Karl e Engels, Friedrich. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003. MARX, Karl. e ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Vol.3. São Paulo: alfa-Omega, 1982. MARX, Karl. Philosophie. Paris: Gallimard, 1994. MERQUIOR. Jose Guilherme. O marxismo ocidental. : Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1987. MESZAROS, istvan. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: boitempo, 2006. OLIVEIRA, Manfredo Araújo. 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Rights. Fundamental INTRODUÇÃO O objetivo desse artigo é demonstrar a importância contemporânea que os princípios adquiriram na garantia e na concretização efetiva dos direitos fundamentais, inclusive demonstrando como os poderes legislativo e judiciário devem atuar nesse cenário. Em um primeiro momento, serão abordadas as razões que justificaram a atribuição de normatividade aos princípios, enquadrando-os como verdadeiras normas 109 Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Advogado na Bahia. Professor de Direito Constitucional. P á g i n a | 113 jurídicas dotadas das mesmas características das regras, ou seja, com comandos obrigatórios e conteúdo vinculante. No segundo capítulo, para que não haja confusão na aplicação das normas, serão distinguidas as regras dos princípios. Para tanto serão abordadas três teorias de grande destaque nos últimos anos: a teoria de Ronald Dworkin, a teoria de Robert Alexy e a teoria de Humberto Ávila. Logo em seguida, demonstrar-se-á que o sistema jurídico deve flexibilizar a garantia da segurança jurídica em prol da inserção de valores no ordenamento, promovendo, dessa forma, constantes adequações entre as necessidades da sociedade e o conteúdo dos enunciados jurídicos. Nesse ponto, será traçado um panorama sobre a relação entre a segurança jurídica e o modelo composto unicamente por regras; a relação entre os valores e o modelo composto unicamente por princípios e a relação entre o ideal justo do direito e o modelo misto, evidenciando essa opção como a melhor proposta para a concretização do ideal de justiça almejado pelo direito. No quarto capítulo, parte-se para a análise das normas típicas de direitos fundamentais. Estudar-se-á sobre a possibilidade de se encontrar um fundamento absoluto que permita identificar com clareza os direitos tidos por essenciais, sobre a dificuldade de conceituação de tais direitos e, principalmente, sobre o modo como as regras e os princípios desempenham suas funções com o compromisso de garantia dos valores essenciais para realização de uma vida digna. Por fim, no quinto e último capítulo, apontar-se-á como os princípios são relevantes para a garantia concreta dos direitos fundamentais, demonstrando-se a influência de tais normas tanto no exercício estatal da função legislativa quanto da função jurisdicional. Na conclusão serão recapituladas as mais importantes constatações desse trabalho, as quais estarão ordenadas em uma seqüência lógica que facilite a compreensão de tudo que foi exposto. P á g i n a | 114 1. A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS NO CENÁRIO DO NEOCONSTITUCIONALISMO. Outrora concebidos apenas como fonte subsidiária de aplicação do direito, tendo espaço apenas em casos excepcionais (lacunas, por exemplo), ou, ainda, com o status inferiorizado de meros instrumentos que auxiliam a atividade interpretativa na busca do real significado e alcance das normas, atualmente não se questiona mais que os princípios são dotados de força normativa. No entanto, não se pode ultrapassar essa questão sem enfrentar as razões justificantes e necessárias à atribuição de normatividade jurídica aos princípios, de modo que se deve responder ao seguinte questionamento: por que os princípios devem ter status de normas jurídicas ou, ainda mais importante, por que os princípios devem possuir conteúdo obrigatório e vinculante? Para responder a essas indagações, faz-se necessário traçar uma retrospectiva, ainda que breve, acerca do fracasso do constitucionalismo moderno que tinha como marco filosófico a doutrina do positivismo jurídico. Nesse período, do constitucionalismo moderno, em que pese a valorização das constituições que deixaram de ser vistas sob a ótica de meros manifestos políticos para serem vistas como documentos normativos escritos e rígidos, a ordem jurídica se contentava com a mera validade formal das regras110. Ou seja, inserida no ordenamento mediante o procedimento legislativo previamente estabelecido e dirigido pela autoridade competente, a regra era válida e, uma vez ocorrido no mundo dos fatos os requisitos previstos para sua incidência, a conseqüência jurídica era inexorável. A força substantiva e material das disposições constitucionais, hoje inquestionável, ficava relegada a planos inferiores, sem maiores destaques para o desenvolvimento judicial do direito. No entanto, diante de todas as atrocidades que foram 110 O Constitucionalismo moderno está intimamente relacionado com o surgimento das constituições escritas e rígidas. Pode-se atribuir à Magna Carta inglesa de 1.215, o marco inicial dessa era, mas foi durante o século XVIII, notadamente com as revoluções americanas e francesas que o constitucionalismo moderno ganhou força e atingiu seu ápice, permanecendo como paradigma até meados do século XX quando eclodiu a 2ª Grande Guerra. P á g i n a | 115 constatadas em meados do século XX, sobretudo durante a 2ª Guerra Mundial quando todo o movimento nazista estava amparado formalmente por regras jurídicas, começou-se a indagar sobre a legitimidade desse sistema. Será que a mera conformidade formal das normas jurídicas era suficiente para garantir o ideal justo do Direito? Não deveria o direito agir em busca de garantias concretas e materiais que possibilitassem à sociedade uma máxima concretização de direitos fundamentais? Em razão desses questionamentos, eclodiu no mundo europeu o sentimento de que o Direito deveria estar acima das formalidades excessivas do positivismo e que, portanto, deveria contemplar requisitos materiais para a aferição de validade das normas (legitimidade). É nesse cenário que surge uma nova doutrina filosófica intitulada de neopositivismo, cuja expressão no âmbito constitucional se deu por intermédio da doutrina do neoconstitucionalismo. Esse novo momento da história do direito é bem retratado por Ricardo Maurício Freire Soares,111 quando afirma que o movimento do pós-positivismo jurídico teve por objetivo buscar uma reaproximação entre o direito e os valores da moral e da justiça, atendendo-se às exigências da realidade social e consolidando o entendimento de que a validade das normas jurídicas não podia se contentar unicamente com critérios formais. Assim sendo, o direito justo passou a ser entendido como direito legítimo, sendo que o problema da legitimidade do direito deveria ser abordado não apenas no seu aspecto formal (obediência ao rito de introdução de normas jurídicas no ordenamento), mas, sobretudo, do ponto de vista material e axiológico, isto é, na correspondência dos fins das normas jurídicas com os valores perseguidos e positivados pelo direito. Efetivamente, mostrou-se absolutamente necessária a idéia de que deveria existir um documento jurídico cujo conteúdo servisse de limite material para todas as demais normas do ordenamento; um documento que expressasse os sentimentos sociais e que exigisse a concretização de direitos fundamentais: esse documento foi justamente a constituição. Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior112 atesta que o neoconstitucionalismo destacou-se por justificar uma mudança de paradigma em que se abandonou o Estado 111 SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. 112 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. Salvador, JusPodivm, 2010. p. 39. P á g i n a | 116 Legislativo de Direito e se adotou o Estado Constitucional de Direito, solidificando a constituição, dessa forma, como o centro do ordenamento jurídico que irradiaria seus efeitos para todos os demais ramos do direito e como limite normativo para a verificação de constitucionalidade das normas, seja do ponto de vista formal seja do ponto de vista material. Opera-se, portanto, uma subordinação da legalidade estrita aos paramentos estabelecidos pelas normas constitucionais, exigindo-se que as demais normas sejam não apenas válidas (aspecto formal), mas, sobretudo, legítimas (aspecto material). A constituição, então, passa a ser entendida em sua versão substancialista como o documento mais importante do sistema jurídico, não apenas por regulamentar o exercício do poder estatal, as competências dos entes federados ou a introdução de novas normas no ordenamento, mas, sobretudo, por estabelecer uma série de garantias e direitos fundamentais imprescindíveis para a realização de uma vida digna. Com essa breve explanação, constata-se que a constituição passou a ter a necessidade de possuir normas cujo conteúdo consagrasse os valores clamados por determinada sociedade e impusesse verdadeiro limite material e substantivo à criação de novas normas jurídicas, mormente as que de algum modo pudessem resultar em restrição de direitos. É evidente, no entanto, que tais normas só poderiam ser revestidas sob a forma de princípios, já que o modelo fechado das regras, embora plenamente satisfatório para a garantia da segurança jurídica, não comporta a dinâmica necessária para adequação constante entre as normas e os anseios da realidade social. Daí a extrema necessidade de que os princípios passassem a ser compreendidos como normas jurídicas dotadas dos mesmos atributos que as regras. Merece destaque o ensinamento de Luis Roberto Barroso113 segundo o qual os princípios viveram um vertiginoso processo de ascensão, deixando de serem considerados como mera fonte subsidiária do direito para adquirirem força normativa indiscutível. Segundo esse autor, no ambiente pós-positivista os princípios serviriam como porta de entrada dos valores clamados por determinada sociedade no ordenamento jurídico. 113 BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 318. P á g i n a | 117 Nessa mesma linha, Paulo Bonavides114 enfatiza que na fase do póspositivismo as novas constituições acentuaram a hegemonia axiológica dos princípios que passaram a ser considerados como uma espécie de pedestal normativo sobre o qual se assentaria todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais. Há, portanto, um consenso na doutrina contemporânea no sentido de atribuir normatividade aos princípios jurídicos, sendo que tal conformidade é fruto da mudança paradigmática promovida pelo neoconstitucionalismo, da relevância do Estado Constitucional de Direito, da necessidade de que o ordenamento jurídico permaneça sempre aberto à inserção de novos valores no sistema, permitindo, com isso, uma constante adequação de seus preceitos com as exigências da sociedade e, sobretudo, do propósito firme almejado pelo direito na concretização efetiva dos direitos humanos e fundamentais. 2. A DIFERENÇA ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS. Há em um ordenamento jurídico dois e somente dois tipos de normas: as regras e os princípios. Demonstrou-se, acima, que os princípios se igualaram às regras no que tange à natureza obrigatória e vinculante de seu conteúdo. Nesse aspecto, portanto, tais normas não se distinguem. Existem, todavia, diversos outros aspectos que diferenciam tais normas, o que permite afirmar que princípios não são regras e regras não são princípios, em que pese, repitase, ambos serem do tipo norma jurídica. Dessa forma, para cumprir o objetivo deste trabalho que é demonstrar a importância contemporânea dos princípios na concretização de direitos humanos e fundamentais, faz-se extremamente necessário compreender as diferenças que o direito se utiliza no modo de aplicação das regras e dos princípios. 114 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 264. P á g i n a | 118 2.1 A Teoria De Ronald Dworkin. Partindo de um ataque geral contra a doutrina do positivismo jurídico, notadamente em uma de suas versões mais atuais proposta por Hart, Ronald Dworkin115 pretendeu explanar que os padrões estabelecidos pelas regras não são suficientes para demonstrar o modo como o direito se desenvolve, sobretudo quando se analisa os casos mais complexos nos quais não se encontra claramente uma solução imediata, sendo necessário, pois, o uso de uma argumentação jurídica mais bem fundamentada. As regras, segundo Dworkin, são aplicáveis ao modo tudo-ou-nada116 (all-ornothing), o que significa dizer que no caso de preenchimento dos elementos normativos previstos no antecedente da regra a sua conseqüência, isto é, a prolação de seus efeitos, tornase inexorável. Desse modo, diante de uma situação que se encontra abarcada pelo âmbito de aplicação de uma regra jurídica, abrem-se duas possibilidades: ou a regra é válida e produz os seus efeitos (tudo) ou não o é (nada) e não produz efeitos. Há, todavia, casos mais complexos em que a atividade judicial deve promover uma análise valorativa dos interesses em questão para tomar uma decisão que, embora não esteja imediatamente prevista, seja a mais adequada. É exatamente nesse ponto que o papel dos princípios ganha relevo, sendo determinante no auxílio da fundamentação exigida para definir o que significa ser uma decisão mais adequada. Ao invés do modo tudo-ou-nada, os princípios aplicam-se ao modo da dimensão do peso ou da importância (dimension of weight)117, o que significa dizer que os princípios determinam razões justificantes, mas não determinantes, para a aplicação do direito, razões estas que deverão ser conjugadas com outras para encontrar a decisão mais apropriada para resolver aquele conflito específico. Em cada caso concreto, a decisão será tomada a depender da força argumentativa e valorativa do princípio, repita-se, naquele caso específico. Em outro dia, em outro caso, ainda que semelhante, o mesmo princípio que ora fora determinante para a decisão 115 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Traduzido por Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: WMF Martins fontes, 2010. 116 Ibidem, p. 39. 117 Ibidem, p. 42. P á g i n a | 119 pode deixar de sê-lo, inclusive sucumbindo diante daquele mesmo que por ele fora afastado anteriormente. Portanto, se na hipótese de colisão entre regras uma delas necessariamente deve invalidar a outra, na colisão entre princípios um deles, o que tiver mais peso, deve afastar a incidência do outro apenas naquele caso particular, já que em outra oportunidade, o princípio afastado também deverá ter sua importância dimensionada e poderá, sem qualquer problema, sagrar-se decisivo. Trata-se, destarte, de uma diferença na estrutura lógica das normas. As regras aplicam-se ao modo tudo-ou-nada e os princípios ao modo mais-ou-menos, dimensionando-se o peso e a importância de cada qual no caso concreto. 2.2 A Teoria De Robert Alexy. Nesse contexto de diferenciação entre normas-regras e normas-princípios, Robert Alexy prosseguiu nas formulações de Dworkin e foi ainda mais incisivo na precisão do conteúdo e alcance dos princípios, propondo uma diferença qualitativa. Assim, considera os princípios como mandamentos de otimização, isto é, comandos que determinam a promoção de alguma coisa na maior medida possível de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes118. Já as regras seriam normas que sempre são satisfeitas ou não satisfeitas, o que significa dizer que se uma regra é considerada válida e os seus pressupostos fáticos são preenchidos, então deve ser feito exatamente aquilo que ela exige, nem mais, nem menos119. Segundo Alexy, a melhor maneira de se compreender as diferenças entre as normas-regras e as normas-princípios é analisar os casos de conflito (para as regras) ou de colisão (para os princípios). No caso de conflito de regras verifica-se que a solução só se mostra possível de duas maneiras: ou se introduz uma cláusula de exceção ou pelo menos uma das regras é declarada inválida. Portanto, não se admite o conflito concreto entre regras, haja vista que tais soluções se dão exclusivamente no plano abstrato da validade. 118 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90. 119 Ibidem, p. 91. P á g i n a | 120 Ou seja, se em determinado caso concreto houver a probabilidade abstrata de aplicação de duas regras distintas com conseqüências jurídicas contraditórias, e não houver possibilidade de resolver essa contradição por meio da introdução de uma cláusula de exceção, então, deve ser constatada a invalidade de pelo menos uma dessas regras. Com os princípios, a sistemática é totalmente diferente. Se dois princípios colidem no caso concreto, um deles terá que ceder. Isso não significa, todavia, que o princípio cedente deverá ser declarado inválido, tampouco que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção 120. O princípio afastado, simplesmente, não será aplicado nesse caso específico. Portanto, quando algo é permitido por um princípio, mas proibido por outro, não há que se falar em precedência absoluta de qualquer deles. Há, sim, que ser realizada uma avaliação das circunstâncias dessa colisão no caso concreto para, mediante a técnica do sopesamento entre os interesses conflitantes, concluir pela incidência de um deles. Disso decorre a constatação de que os princípios, por exigirem que algo seja realizado na maior medida possível, não possuem um mandamento definitivo, mas apenas um distinto caráter prima facie. Já as regras, por exigirem que algo seja feito na exata medida em que ela determina, possuem, sim, um caráter definitivo. 2.3 A Teoria De Humberto Ávila. Após essas considerações, em que pese já ser possível estabelecer parâmetros extremamente relevantes na separação do conteúdo e alcance das regras e dos princípios, há que se analisar, ainda, uma última teoria sobre o assunto. A teoria de Humberto Ávila. São pelo menos dois os motivos para esse exame: primeiro o sentimento de patriotismo por se tratar da obra de um brasileiro que ganha cada vez mais destaque no cenário internacional; segundo por ser uma obra que efetivamente avançou no tema e permitiu identificar elementos mais precisos na distinção dessas normas. 120 Ibidem, p. 93. P á g i n a | 121 2.3.1 A Crítica Sobre Os Critérios De Distinção Entre Regras E Princípios. Inicialmente, Humberto Ávila121 analisa a distinção entre regras e princípios sob a ótica do caráter hipotético-condicional segundo o qual somente as regras poderiam ser aplicadas ao modo se – então, enquanto que os princípios seriam utilizados como fundamento jurídico para encontrar a regra aplicável. Em que pese reconhecer a importância desse critério na constatação de que as regras são imediatamente descritivas, enquanto que os princípios estabelecem apenas uma diretriz para a solução do caso concreto, Ávila não poupa críticas a esse modelo. Efetivamente, qualquer norma, seja regra seja princípio, para ser aplicada depende do preenchimento de condições fáticas previstas no seu antecedente, de modo que a existência de uma hipótese de incidência depende unicamente da formulação lingüística realizada pelo intérprete/aplicador do direito. Assim, por exemplo, o princípio democrático poderia ser reformulado para ser expresso do seguinte modo: se o poder estatal for exercido, então deve ser garantida a participação democrática122, o que comprova que não é verdade afirmar que somente as regras podem ser aplicadas ao modo se – então. Já o critério do modo final de aplicação informa que as regras são aplicadas ao modo tudo-ou-nada, enquanto que os princípios ao modo mais-ou-menos (Ronald Dworkin), ou, ainda, que as regras instituem obrigações definitivas, enquanto que os princípios instituem obrigações prima facie (Robert Alexy). A crítica reside no fato de que as regras só podem ser aplicadas ao modo tudoou-nada se os problemas relacionados à validade, ao sentido e à subsunção dos fatos tiverem sido superados123, já que nada impede que razões contrárias ao comando normativo de uma regra possam prevalecer em razão da análise das circunstâncias do caso concreto, sem que com isso a regra seja necessariamente declarada inválida. Ademais, há regras cujo âmbito de aplicação depende de integração normativa (ex. normas penais em branco), o que faz com que tais regras não tenham caráter absoluto, 121 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 40. 122 Ibidem, p. 41. 123 Ibidem, p. 47. P á g i n a | 122 mas relativo, que dependerá necessariamente da análise circunstancial para definir a sua aplicação. Portanto, segundo Ávila, o que importa não é o caráter absoluto ou a obrigação definitiva estabelecida pelas regras que só poderiam ser aplicadas ao modo tudo-ou-nada, mas como o comando normativo instituído pelas regras pode ser validamente ultrapassado. Por fim, segundo o critério do conflito normativo, na hipótese de conflito entre regras ou se estabelece uma cláusula de exceção ou, caso isso não seja possível, pelo menos uma delas deverá ser declarada inválida, enquanto que na colisão entre princípios há que se dimensionar o peso e a importância de cada qual para o caso concreto, afastando-se a incidência daquele que perder no jogo do sopesamento. O que Ávila critica veementemente é o fato de que a técnica da ponderação não é exclusiva dos princípios124. Em alguns casos, as regras que convivem harmonicamente no plano abstrato podem chocar-se no plano concreto, oportunidade em que a solução será tomada mediante a ponderação dos interesses conflitantes. Exemplifica-se com duas regras previstas no Código de Ética Médica segundo as quais o médico tem o dever legal de contar a verdade ao paciente e o dever legal de salvar-lhe a vida. E quando contar a verdade for prejudicial para salvar a vida do paciente 125? Não se pode saber de antemão qual a melhor solução para esse problema, já que esta deverá ser tomada mediante a análise das circunstâncias do caso concreto, mas o que se sabe é que tal solução não acarretará nem na introdução de uma cláusula de exceção, tampouco na declaração de invalidade de qualquer das normas, mas unicamente na aplicação de uma e no afastamento da outra. Em segundo lugar, a própria relação das regras e de suas exceções exige do aplicador uma ponderação dos interesses para saber o que aplicar no caso concreto, se a regra ou se a exceção. Isso porque não há como exigir, como condição de completude do sentido normativo das regras, que todas as hipóteses de exceção estejam previamente estabelecidas, de modo que a própria criação de exceções depende do acolhimento de razões axiológicas que justifiquem a não aplicação da regra naquelas situações. A constatação de que às regras também se aplica a técnica da ponderação resulta na negação da afirmação de que somente os princípios possuem dimensão de peso. A 124 125 Ibidem, p. 52. Ibidem, p. 53. P á g i n a | 123 dimensão axiológica, portanto, não pode ser considerada um elemento exclusivo dos princípios, mas elemento integrante de qualquer norma,126 seja regra seja princípio. 2.3.2 Sobre O Conceito De Regras E Princípios Com tais considerações, evidentemente que resumidas, já que o objetivo final desse artigo não é analisar a diferença entre tais normas jurídicas, Humberto Ávila propõe novos conceitos para regras e princípios, superando, com isso, a distinção qualitativa proposta por Robert Alexy e a distinção baseada na estrutura lógica das normas proposta por Dworkin. As regras seriam normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Já os princípios seriam normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção127. 2.4 Considerações Finais Sobre Regras E Princípios. Esclarecidos os pontos mais relevantes das principais teorias contemporâneas acerca da distinção entre as normas-regras e as normas-princípios, cumpre tecer breves comentários sobre os critérios que realmente importam para os fins deste artigo. Assim, no que diz respeito às regras, saliente-se a sua pretensão de decidir todos os conflitos advindos do agrupamento humano em forma de sociedade, mas registre-se a importância de cada caso para, não apenas precisar o seu conteúdo e alcance, mas, sobretudo para escolher a regra a ser aplicável, sem que disso decorra necessariamente a invalidade da regra que era abstratamente cabível, mas que não foi concretamente aplicada. No que tange aos princípios, merece destaque o fato de serem normas imediatamente finalísticas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas na maior medida possível, de modo que se determinados comportamentos contribuírem para a 126 127 Ibidem, p. 59. Ibidem, p. 79. P á g i n a | 124 promoção desse estado, então tais comportamentos não são meras sugestões nem conselhos, são comandos principiológicos obrigatórios e vinculantes. Os princípios impõem a prática de diversos comportamentos concretos e necessários à consecução do fim almejado, enquanto que a regra impõe a adoção de um ou mais comportamentos, mas sempre específicos. No entanto o que há de mais importante para ser registrado é o fato de que as regras sempre possuem um fundamento axiológico que também é promovido por determinado princípio, embora não seja correto falar em hierarquia entre esses tipos de normas. Até mesmo as ditas regras de estrutura, as quais são definidas por Paulo de Barros Carvalho128 como regras que aparecem como condição sintática para produção e inserção de outras normas no ordenamento e, portanto, não possuem a ordenação final da conduta humana como objetivo direto, até mesmo essas regras sempre estarão promovendo finalidades almejadas por princípios, dentre os quais se destacam o princípio federativo e o princípio democrático. Assim, no caso de choque entre regras válidas (refere-se aqui tanto à validade formal quanto material), se reduzirmos o conflito aos fundamentos axiológicos de cada qual, tem-se também uma colisão entre os princípios que lhes são subjacentes, o que permite concluir que a função primordial das regras é prescrever comportamentos obrigatórios cuja satisfação irá promover o estado ideal de coisas perquirido pelos princípios que lhes dão suporte axiológico. Disso resulta que as regras jurídicas que concretizam direitos humanos, por exemplo, o fazem como uma exigência vinculante de determinados princípios que impõem a promoção daqueles valores fundamentais. Aqui começa a se delinear a importância contemporânea dos princípios na concretização efetiva dos direitos fundamentais, mas esse assunto será abordado apenas no momento adequado. 128 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 42. P á g i n a | 125 3. MODELOS JURÍDICOS. Tratou-se acima das diferenças entre os conceitos e, sobretudo, dos modos de aplicação das normas do tipo regra e do tipo princípio. O que se pretende agora é analisar as conseqüências de se adotar um modelo jurídico puramente de regras, puramente de princípios ou misto, isto é, um modelo que a um só tempo conviva com esses dois tipos de normas. Após, verificar-se-á qual modelo é mais condizente com as exigências sociais, de modo a possibilitar uma concretização mais efetiva dos direitos fundamentais. 3.1 O Modelo De Regras E A Segurança Jurídica. Imagine-se um modelo jurídico composto puramente por normas do tipo regras em que houvesse a pretensão de descrever todos os comportamentos humanos e decidir todos os conflitos concretos de maneira imediata e direta. Seria, dessa forma, um modelo mecânico e estático, no qual a principal função do juiz diante de um conflito seria a de encontrar a regra que prevê a sua solução. Não haveria espaço para falhas nem lacunas, e o poder legislador seria o único legitimado para exercer a função de criação do direito. Do ponto de vista da máxima segurança jurídica, este modelo, sem dúvida, seria bastante satisfatório. Celso Antônio Bandeira de Mello 129 sustenta que o Direito se propõe a promover certa estabilidade, conferindo aos cidadãos um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí destaca a relevância do primado da segurança jurídica como o mais importante (ou um dos mais importantes) dentre os princípios gerais de direito. Já na visão de Paulo de Barros Carvalho,130 a segurança jurídica pode ser definida como a garantia do binômio passado/futuro. Ou seja, ao passo em que o princípio da segurança jurídica determina a previsibilidade dos efeitos das normas (segurança do futuro), também impõe a certeza de que o ato praticado não será posteriormente, salvo raras exceções, desfeito (segurança do passado). A principal relevância desse binômio passado/futuro é tranqüilizar o cidadão, lhe conceder a certeza do seu direito, saber que está agindo de acordo com determinada norma 129 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 124. 130 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 158. P á g i n a | 126 e que ao proceder desta forma surtirão tais ou quais efeitos. Permite, destarte, que o cidadão planeje sua vida, organize as ações de sua empresa e não seja surpreendido com alterações drásticas do sistema normativo. Um modelo estritamente composto por normas-regras estaria, portanto, supervalorizando o princípio da segurança jurídica, o que, por si só, demonstra a sua incoerência. Ora, sendo um modelo unicamente de regras por que ter a salvaguarda de um princípio como objetivo final? Ademais, tal modelo, na medida em que tem a pretensão de catalogar todos os aspectos da vida humana (o que seria impossível, ressalte-se), não permite a adequação necessária entre os valores protegidos pelo direito e as exigências da realidade social, conflitando, portanto, diretamente com a historicidade, uma das características marcantes dos direitos fundamentais. 3.2 O Modelo De Princípios E Os Valores. Já um modelo jurídico puramente composto por normas do tipo princípios seria marcado pelo seu aspecto valorativo. Sem qualquer pretensão de regulamentar diretamente todos os aspectos da vida humana, tal modelo requisitaria do direito a proteção a uma série de valores quase sempre conflitantes entre si, se não abstratamente, pelo menos no plano concreto dos fatos sociais. Haveria, em razão da força normativa dos princípios, a obrigatoriedade de se adotar os comportamentos que fossem imprescindíveis para a materialização dos valores protegidos pelo ordenamento, mas não se saberia com absoluta clareza quais seriam esses comportamentos. Todos os conflitos seriam resolvidos pela técnica do sopesamento, ponderandose os interesses colidentes e dimensionando o peso e a importância de cada princípio no caso concreto, o que significaria um aumento demasiado do poder discricionário do juiz. A atividade de criação do direito deixaria de ser encarada como a função primordial do poder legislativo e seria realizada quase que exclusivamente pelo poder judiciário, órgão composto por membros que não possuem a legitimidade da representatividade popular mediante a participação democrática da sociedade. P á g i n a | 127 O ativismo judicial, que na visão de Eduardo Appio131, seria destinado a corrigir o mau funcionamento do processo democrático tradicional, servindo como um instrumento de proteção dos direitos fundamentais das minorias, em razão de sua baixa ou nenhuma representatividade política, seria substituído por um pseudo-ativismo em que, na verdade, o poder judiciário estaria usurpando as funções afeitas aos demais poderes. Em suma, se com um modelo de regras busca-se a maximização da segurança jurídica, no modelo puro de princípios a segurança jurídica seria drasticamente minimizada, haja vista o aumento demasiado do poder discricionário dos juízes em razão da utilização irrestrita da técnica do sopesamento em todo e qualquer conflito. 3.3 O Modelo Misto E A Justiça. Sempre que dois modelos extremistas não oferecerem respostas adequadas ao propósito para o qual se destinam, há a possibilidade de que a adoção de uma posição intermediária seja a mais sensata. Nesse caso, significa dizer um modelo misto, isto é, composto por normas-regras e normas-princípios. Tal modelo, sem dúvida, é o que melhor se adequa à busca do direito pelo ideal de justiça, uma vez que se encontra calcado em fundamentos axiológicos que permitem uma proteção das demandas exigidas pela sociedade (liberdade, igualdade etc.), mas que também impõe com clareza e precisão a adoção de determinados comportamentos imprescindíveis para a concretização de tais valores. A segurança jurídica não estaria maximizada (sistema puro de regras) em virtude da abertura conceitual dos institutos jurídicos que seria possibilitada pela introdução dos princípios normativos; tampouco estaria relegada ao segundo plano (sistema puro de princípios) ante a compulsoriedade estabelecida pelas regras na regência da conduta humana. Ademais, a atividade de criação do direito seria exercida pelos membros do Poder Legislativo, amparados pela legitimidade proveniente da representatividade democrática, mas com a possibilidade de co-participação do Poder Judiciário no exercício do ativismo judicial, especialmente nos casos de conflitos valorativos. Portanto, a adoção de um modelo misto que seja composto por normas do tipo regras e normas do tipo princípios é a opção que denota a maior coerência com a busca do 131 APPIO, Eduardo. Direitos das Minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 192. P á g i n a | 128 direito pelo ideal de justiça e possibilita a maior probabilidade de concretização dos direitos fundamentais, já que dá margem à atuação garantista do poder judiciário em face da ineficiência dos poderes legislativo e executivo. Nesse sentido, Luis Roberto Barroso132 argumenta que o sistema jurídico ideal é aquele composto por regras e princípios, em uma distribuição equilibrada, as regras desempenhando relevante papel na garantia da segurança jurídica e os princípios, com sua flexibilidade, propiciando a realização da justiça no caso concreto. De fato, as normas que compõem o sistema constitucional, especialmente o sistema de proteção dos direitos humanos e fundamentais, devem estar sempre abertas às exigências da coletividade de modo que possibilite a constante adequação do direito com as transformações das demandas sociais. É evidente que tais normas só podem estar revestidas sob a forma de princípios, haja vista que são justamente os seus comandos valorativos que permitem a evolução do direito e, inclusive, o surgimento de novos direitos fundamentais. Ressalte-se, todavia, que a extrema importância ora atribuída aos princípios no processo de conformação do direito não pode desencadear na supervalorização desse tipo de norma, já que, sem as regras, o conteúdo principiológico torna-se vazio e carente de concretização no plano concreto. Em razão disso, J. J. Gomes Canotilho 133 leciona que a moderna constitucionalística deve ser compreendida do ponto de vista (1) de um sistema jurídico porque é um sistema de normas; (2) de um sistema aberto porque deve captar as mudanças da realidade e as concepções cambiantes da justiça; (3) de um sistema normativo porque a estruturação dos valores, programas e funções é feita através de normas; e, por fim, (4) de um sistema de regras e de princípios, pois os comandos constitucionais podem revelar-se sob a forma de qualquer um desses dois tipos de normas. Mais adiante, esse mesmo autor leciona que um modelo exclusivo de regras nos conduziria a um sistema jurídico de limitada racionalidade, haja vista que exigiria uma disciplina legislativa exaustiva do mundo e da vida, de modo que até nos garantiria um 132 BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 317. 133 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina. p. 1159. P á g i n a | 129 sistema de segurança, mas não deixaria margem para o livre desenvolvimento do sistema constitucional, o qual é necessariamente um sistema aberto. Um modelo de princípios, por sua vez, diante de sua indeterminação, da inexistência de regras precisas e da coexistência de princípios conflitantes também nos conduziria a um sistema falho, incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema 134. Destarte, um modelo misto de normas-regras e normas-princípios é, sem dúvida, o melhor propósito para um direito justo e compromissado com a garantia efetiva dos direitos humanos e fundamentais. 4. SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 4.1 O Problema Do Fundamento Dos Direitos Fundamentais. Certamente não é fácil a tarefa de encontrar um fundamento absoluto que confira substrato jurídico aos direitos fundamentais ou que permita identificar com irrestrita clareza quando é que se está diante de um direito fundamental. O jurista italiano Norberto Bobbio135 considera ilusória (e impossível) a busca por um fundamento absoluto dos direitos humanos, uma vez que, para cada caso concreto, podem existir vários fundamentos possíveis. Segundo esse autor, o problema fundamental dos direitos humanos não é propriamente fundamentá-los, mas protegê-los de maneira concreta e efetiva. Efetivamente, não há que se falar em qualquer tipo de fundamento absoluto para o reconhecimento de direitos humanos, haja vista que tais direitos não se originam a partir de um ato isolado, mas em razão de um processo histórico de lutas e conquistas, sendo possível apontar diversos fundamentos para os diversos direitos. No entanto, com a mudança paradigmática desencadeada pela promulgação da Constituição Federal de 1988, quando o princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecido como fundamento do Estado e centro normativo primordial de todos os ramos 134 Ibidem, p. 1162. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Traduzido por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 23. 135 P á g i n a | 130 do direito, é possível apontá-lo como a justificativa axiológica que mais se aproxima de um fundamento para os direitos humanos. Assim, embora se tenha consciência de que nem mesmo a dignidade humana pode ser considerada um fundamento absoluto dos direitos fundamentais, não há dúvida de que, devido a sua grande importância para o desenvolvimento do sistema de proteção e garantia de tais direitos, deve-lhe ser atribuída relevância destacada. 4.2 Conceito De Direitos Fundamentais. A dificuldade (ou até mesmo a impossibilidade) de se encontrar um fundamento absoluto que permita o reconhecimento imediato dos direitos fundamentais se estende para a formulação de um conceito teórico, o que justifica as diversas expressões136 utilizadas com o objetivo de conceituar tais direitos. José Afonso da Silva137, reconhecendo que a evolução histórica dos direitos fundamentais dificulta a definição de um conceito preciso e sintético, sustenta que a expressão direitos fundamentais do homem é a que melhor atende ao propósito para o qual se destina. Isso porque designa, no plano do direito positivo, as prerrogativas e instituições que impõem a garantia de uma vida digna, livre e igual entre todas as pessoas. Além disso, o qualitativo fundamentais denota que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, enquanto que a parte final “do homem” indica que todos os seres da espécie humana devem ser titulares de tais direitos138. Firmou-se no tópico anterior a premissa de que o princípio da dignidade humana reflete o valor que melhor se adequa ao fundamento dos direitos fundamentais, de modo que deve (a dignidade) ser inserida no conceito destes direitos. É bem verdade que existem direitos fundamentais, notadamente os que se aplicam às pessoas jurídicas, que não concretizam, pelo menos diretamente, o valor da dignidade humana, mas todos os direitos que o concretizarem serão tidos por fundamentais. 136 Expressões como direitos naturais, direitos humanos (ou direitos do homem), direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem já foram designadas com o objetivo de conceituar os direitos fundamentais. Não constitui objeto deste trabalho a análise das imprecisões terminológicas de cada uma dessas expressões. Para aprofundar-se na matéria, remetemos o leitor ao livro Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion de Perez Luño. 137 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. 138 Ibidem, p. 178. P á g i n a | 131 Assim, podem existir direitos fundamentais que não materializem direta e imediatamente o princípio da dignidade da pessoa humana (a possibilidade de a pessoa jurídica impetrar mandado de segurança, por exemplo), mas todos os direitos que possuam tal princípio como justificativa axiológica serão direitos fundamentais. Portanto, direitos fundamentais são aqueles direitos que contribuem para a realização da vida humana digna. São direitos sem os quais os indivíduos permaneceriam fragilizados e carentes de proteção. São tão essenciais que a sua ausência significa a ausência (ao menos jurídica) do próprio ser humano. Tamanha é a importância dos direitos fundamentais que J. J. Gomes Canotilho139 assinala que o local exato da positivação desses direitos é a constituição, de modo que sem esta positivação os direitos humanos são meras esperanças, aspirações ou idéias, mas não direitos protegidos sob a forma de normas jurídicas. Ainda que se tenha um conceito satisfatório de direitos fundamentais, permanece em aberto a questão acerca do quê deve ser positivado na constituição a título de direitos fundamentais. Ou seja, qual deve ser o conteúdo dos direitos fundamentais? Ora, tendo por objetivo a realização da vida digna, os direitos fundamentais devem refletir os valores que determinada sociedade contempla como essenciais para a concretização da dignidade humana. Sendo assim, cada sociedade, a despeito da tendência universalizante promovida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, terá seu próprio rol de direitos fundamentais, sendo obrigação do direito sempre acompanhar as evoluções das demandas sociais. 4.3 O Objetivo Dos Princípios De Direitos Fundamentais. Há, sem dúvida, uma íntima relação entre princípios e valores e entre valores e direitos fundamentais, o que denota também a relação entre princípios e direitos fundamentais. Já fora demonstrado anteriormente que os princípios possuem conteúdo impreciso e aberto cujo objetivo é permitir a constante adequação do direito com os anseios da sociedade, o que permite concluir que os princípios são comandos jurídicos valorativos. 139 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina. p. 377. P á g i n a | 132 No entanto, o fato de ser um comando jurídico é justamente o que permite diferenciar os princípios dos valores. Enquanto estes estão presos ao campo da axiologia, aqueles migraram para o campo da deontologia. Ou seja, os princípios são valores normatizados. E sendo valores normatizados, o conteúdo principiológico vincula, obriga e rege, não apenas a atuação dos órgãos estatais, como também a própria iniciativa privada, de modo que todos estão obrigados a seguir as imposições principiológicas. Os princípios, portanto, se distinguem dos valores na medida em que impõem a adoção de comportamentos imprescindíveis para a garantia concreta e material do seu conteúdo na maior medida possível. Os princípios são normas jurídicas e os valores até podem fazer parte das normas sociais, mas nunca serão normas jurídicas. Valores como norma jurídica não são valores, são princípios. É exatamente esse o entendimento de Robert Alexy140 quando afirma que a diferença entre princípios e valores pode ser reduzida a um único ponto: aquilo que, no modelo de valores, é prima facie o melhor é, no campo dos princípios, prima facie devido; e aquilo que é prima facie definitivamente o melhor (valores) é prima facie definitivamente devido (princípios). Portanto, princípios e valores se diferenciam somente em razão do caráter deontológico, no primeiro caso, e axiológico, no segundo. Dessa forma, o objetivo das normas-princípios no âmbito dos direitos fundamentais pode ser reduzido à tarefa de importação para o campo jurídico dos valores que determinada sociedade considera indispensável para a fruição de uma vida completa e digna. 4.4 O Objetivo Das Regras De Direitos Fundamentais. Diferentemente da abertura encontrada no conteúdo dos princípios, as normasregras impõe que sejam adotados comportamentos precisos e determinados. Diversamente do que ocorre com os princípios, é possível identificar o quê a regra obriga, qual é a exata conseqüência jurídica prevista pela regra para o caso de sua incidência. Enquanto os princípios exigem a concretização de algo na maior medida possível, as regras pretendem a concretização de algo na exata medida de sua previsão. 140 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 153. P á g i n a | 133 O objetivo das normas-regras no âmbito dos direitos fundamentais, portanto, pode ser reduzido à tarefa de concretização dos valores normativos que são contemplados pelos princípios. Daí decorre a impossibilidade de afirmar ser mais grave contrariar um princípio do que uma regra ou vice-versa. Cada qual tem a sua função específica e não menos (ou mais) importante uma da outra. Humberto Ávila141, invertendo a concepção tradicional de que ferir um princípio seria mais reprovável do que ferir uma regra, chega ao ponto de afirmar ser mais grave descumprir o comando de uma regra do que o comando de um princípio. Para esse autor, seria muito mais grave descumprir aquilo que se sabia exatamente dever cumprir, (caráter descritivo imediato das regras), do que descumprir uma norma cujo conteúdo ainda carece de complementação (caráter imediato dos princípios de realização de determinado estado de coisas). Acredita-se, contudo, não ser possível elaborar esse juízo prévio, haja vista que tanto as regras quanto os princípios são normas jurídicas dotadas dos mesmos atributos, sobretudo no que diz respeito ao caráter vinculante de ambas, de modo que somente diante das circunstâncias concretas de cada caso é que será possível determinar se a violação mais grave foi da regra ou do princípio. No entanto, o que ora importa é o fato de que as regras devem impor comportamentos que garantam no plano concreto a maximização dos valores normatizados pelos princípios. 5. A IMPORTÂNCIA CONTEMPORÂNEA DOS PRINCÍPIOS NA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. Ao longo de todo esse trabalho, a importância dos princípios na garantia concreta e efetiva dos direitos humanos fora sendo desenhada. Nesse momento, devem ser 141 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 104. P á g i n a | 134 registradas duas funções de extrema relevância que os princípios exercem sobre os direitos fundamentais que lhes propiciam maior eficácia social. De um lado, os princípios exercem a função de normatizar os valores que determinada sociedade contempla como essenciais para a realização de uma vida completa e digna, o que permite concluir que os direitos fundamentais ganham existência jurídica através das normas-princípios. Luis Roberto Barroso142 leciona que os princípios fundamentais expressam as decisões políticas mais relevantes do Estado, bem como os valores mais elevados da sociedade. Ora, os valores mais elevados da sociedade são justamente aqueles que precisam migrar do campo axiológico para o campo deontológico (dever ser) de modo a obrigar que tanto o Estado quanto os indivíduos adotem comportamentos concretos que promovam a realização desses valores. E essa tarefa de transformar valores em normas jurídicas, essa migração do campo axiológico para o campo deontológico, é desenvolvida justamente pelos princípios. Daí afirmar-se que os princípios são relevantes para a garantia dos direitos fundamentais na medida em que dão o primeiro passo para normatizar os valores essenciais da sociedade. Antes disso, não há suporte jurídico para a concretização dos direitos fundamentais. Primeiramente, portanto, deve-se consagrar determinado valor (vida, liberdade, igualdade, segurança etc.) como princípio jurídico para posteriormente almejar a sua concretização efetiva e material por meio de regras que imponham comportamentos necessários e precisos. Disso decorre a segunda relevante função exercida pelos princípios na garantia dos direitos fundamentais: os princípios servem de justificação axiológica das regras, o que significa dizer que os princípios impõem limite material ao conteúdo e alcance das normasregras. 142 BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 321. P á g i n a | 135 Pressupõe-se de uma regra de direito fundamental, portanto, que o seu comando ambiciona atingir a realização dos valores proclamados pelos princípios, isto é, as regras concretizam os princípios porque os princípios orientam a sua aplicabilidade. E essa tarefa é extremamente relevante na medida em que atribui um fundamento de legitimidade para a adoção do comportamento exigido pela regra, o que é essencial para a garantia matéria e concreta dos direitos fundamentais. Paulo Bonavides143 leciona que a normatividade dos princípios alcançada em face do constitucionalismo contemporâneo corrobora a tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico. J. J. Gomes Canotilho144 é ainda mais incisivo ao afirmar que o sistema jurídico necessita dos princípios em virtude de sua referência a valores ou em razão da sua proximidade com a justiça. Sustenta, ainda, que os princípios servem como fundamento das regras e possuem uma idoneidade irradiante que lhes permite cimentar objetivamente todo o sistema constitucional. Por fim, deve-se atribuir aos princípios o fenômeno da infinitude da proteção valorativa. Significa dizer que a proteção devida aos valores normatizados pelos princípios é infinita. Ou seja, a garantia dos princípios nunca atinge um grau máximo de satisfação, ao contrário, sempre impõe o reconhecimento de que há ainda mais para proteger. Questiona-se: quando será possível afirmar que valores principiológicos como a liberdade ou a igualdade se encontrarão totalmente protegidos e realizados em uma determinada sociedade? A resposta é simples: nunca. Os princípios nunca se contentam com a proteção jurídica que recebem do ordenamento. Sempre reclamam por novas adaptações e transformações que acompanhem a evolução natural das sociedades modernas. Os princípios, portanto, são essenciais na garantia dos direitos fundamentais. 143 144 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 286. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina. p. 1163. P á g i n a | 136 5.1 A Influência Dos Princípios Na Atuação Do Poder Legislativo. Concluiu-se, acima, que os princípios servem como justificativa axiológica que legitima a prescrição compulsória das regras. Nesse tópico, cumpre observar que os princípios vão ainda mais além e, compromissados com a garantia efetiva dos direitos fundamentais, vinculam a atuação do poder legislativo no exercício de sua função típica, qual seja, a criação do direito. Primeiramente, pode-se afirmar que os princípios impõem ao Poder Legislativo a obrigação de introduzir no ordenamento jurídico, sob a forma justamente de normasprincípios, os valores exigidos pela sociedade para a realização de uma vida digna. Ou seja, quando o legislativo introduz novos princípios de direitos fundamentais na constituição não o faz por mera liberalidade, como se fosse um favor à sociedade, mas, ao reverso, o faz como uma obrigação decorrente da normatividade vinculante do princípio da dignidade da pessoa humana. Isso porque, do fato de a atuação do Poder Legislativo estar legitimada pela participação democrática da sociedade, decorre a constatação de que o princípio democrático, que, frise-se, é um valor extremamente fundamental, vincula a atuação do Poder Legislativo e impõe a necessidade de normatizar todas as necessidades sociais, haja vista que tal princípio determina que as exigências da realidade social estejam necessariamente traduzidas em normas jurídicas. Tal vinculação, entretanto, não se limita a impor o comprometimento de que o Poder Legislativo esteja sempre atualizado com as exigências da realidade social e normatize novos valores essenciais tão logo eles apareçam. Há também a obrigação de que sejam criadas regras que concretizem o conteúdo principiológico, sob pena de sofrer a incidência do controle exercido pelo Poder Judiciário. Ou seja, se os princípios de um lado servem como justificativa axiológica que legitima o comando decisório das regras jurídicas, de outro também se destinam a impor a criação dessas regras como forma de concretizar a abertura e imprecisão de seu conteúdo. A influência dos princípios na atuação legiferante do Estado, portanto, decorre do poder de vinculação que exercem sobre o órgão legislativo. P á g i n a | 137 5.2 A Influência Dos Princípios Na Atuação Do Poder Judiciário. Os princípios também exercem grande influência na atividade jurisdicional do Estado na garantia da realização fática dos direitos humanos e fundamentais, o que é efetivado por meio do ativismo judicial. Nesse sentido, Dirley da Cunha Jr.145 leciona que a expansão do papel exercido pelo juiz é uma exigência da sociedade contemporânea que, inconformada com a mera atuação passiva de apenas pronunciar as palavras da lei, reclama ao judiciário o exercício de uma atividade dinâmica e ativa na efetivação dos preceitos fundamentais. O fenômeno da criação judicial do direito, assim, tende a operar uma verdadeira transformação ou mutação informal do texto constitucional em vistas da realização de direitos fundamentais. Posteriormente, o mesmo autor ressalta que esse ativismo e criatividade dos juízes é um imperativo constitucional em países, como é o caso do Brasil, nos quais os direitos fundamentais são erigidos a categorias de prioridade absoluta, sendo, ademais, uma necessidade decorrente das constantes transformações das sociedades contemporâneas marcadas pelo pluralismo146. Efetivamente, como justificativa axiológica dos direitos fundamentais, os princípios permitem (na verdade, ordenam) que o poder judiciário exerça maior controle sobre a prestação efetiva desses direitos, quando necessário, inclusive, operando mutações no texto da constituição de modo a realizar o compromisso democrático de garantir a todos, sem exceção, a fruição de uma vida completa e digna. A normatividade conquistada pelos princípios, e daí a decorrente vinculação de seu conteúdo a tudo e a todos, determina um ativismo judicial garantidor dos preceitos fundamentais. Paulo Bonavides147 sustenta os direitos fundamentais como a sintaxe da liberdade nas Constituições, o que conduz ao conceito de juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da constituição e, sobretudo, da legitimidade do Estado social e seus postulados de justiça. 145 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. Salvador, JusPodivm, 2010. p. 201. Ibidem, p. 213. 147 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 587. 146 P á g i n a | 138 Há nítida relação entre o que Paulo Bonavides chama de juiz social e o ativismo judicial. Ambas as expressões pretendem vincular a atuação do poder judiciário ao compromisso inafastável de concretização dos valores essenciais para desenvolvimento justo da sociedade. Tal compromisso, entretanto, só se mostra possível diante do caráter aberto e democrático do direito, caráter este que somente existe devido à importância das normas principiológicas. A influência dos princípios na atuação jurisdicional do Estado, portanto, decorre da legitimidade que conferem à atuação criativa do direito no sentido de realizar os preceitos fundamentais. P á g i n a | 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todas as considerações formuladas anteriormente, é possível extrair algumas constatações extremamente relevantes para demonstrar a importância contemporânea dos princípios na garantia concreta e material dos direitos fundamentais. Nesse momento, tais constatações serão ordenadas em uma seqüência lógica. (1) Os princípios, indiscutivelmente, são normas jurídicas. Tal conformidade é fruto da mudança paradigmática promovida pelo neoconstitucionalismo, da relevância do Estado Constitucional de Direito, da necessidade de que o ordenamento jurídico permaneça sempre aberto à inserção de novos valores no sistema, permitindo, com isso, uma constante adequação de seus preceitos com as exigências da sociedade e, sobretudo, do propósito firme almejado pelo direito na concretização efetiva dos direitos humanos e fundamentais. (2) As normas jurídicas se dividem em regras e princípios. No que diz respeito às regras, saliente-se a sua pretensão de decidir todos os conflitos existentes na sociedade, mas registre-se a importância de cada caso para, não apenas precisar o seu conteúdo e alcance, mas, especialmente para escolher a regra a ser aplicável, sem que disso decorra necessariamente a invalidade da regra que era abstratamente cabível, mas que não foi concretamente aplicada. (3) No que tange aos princípios, merece destaque o fato de serem normas imediatamente finalísticas que impõe a promoção de um estado ideal de coisas ou o fato de serem mandamentos de otimização que impõe a determinação de uma coisa na maior medida possível. (4) Um modelo composto por normas-regras e normas-princípios é, sem dúvida, o mais adequado ao propósito jurídico de efetivação da justiça e, por conseguinte, realização dos direitos fundamentais, haja vista que estaria calcado em fundamentos axiológicos que permitiriam maior proteção das demandas exigidas pela sociedade, mas que também determinaria com clareza e precisão a obrigação de se adotar determinados comportamentos imprescindíveis para a concretização de tais valores. (5) Não há que se falar em fundamento absoluto para o reconhecimento de direitos humanos, em que pese se reconhecer na dignidade humana um valor que mais se aproxima de fundamentação para os direitos fundamentais. P á g i n a | 140 (6) Os direitos fundamentais têm por objetivo a realização de uma vida digna, de modo que devem refletir os valores que determinada sociedade contempla como essenciais para a concretização da dignidade humana. (7) Em sendo assim, o objetivo das normas-princípios no âmbito dos direitos fundamentais pode ser reduzido à tarefa de importação para o campo jurídico dos valores que determinada sociedade considera indispensável para a fruição de uma vida completa e digna, enquanto que o objetivo das normas-regras pode ser reduzido à tarefa de concretização dos valores normativos que são contemplados pelos princípios. (8) Os princípios exercem duas funções de extrema relevância na garantia contemporânea dos direitos fundamentais. Por um lado, os princípios exercem a função de normatizar os valores que determinada sociedade contempla como essenciais para a realização de uma vida completa e digna. De outro, os princípios são relevantes para a concretização dos direitos fundamentais na medida em que servem de justificativa axiológica das regras. (9) Sendo assim, deve-se atribuir aos princípios o fenômeno da infinitude da proteção valorativa, o que significa dizer que a os princípios contemplam valores cuja garantia nunca será atingida em um grau máximo de realização. Como mandamentos que determinam a satisfação de algo na maior medida possível, os princípios nunca se contentam com a proteção jurídica que recebem do ordenamento, de modo que sempre há algo mais que possa ser feito. (10) A influência dos princípios na atuação legiferante do Estado decorre do poder de vinculação que exercem sobre o órgão legislativo, impondo não apenas a obrigação de que Poder Legislativo esteja sempre atualizado com as exigências da realidade social, como também a obrigação de que sejam criadas regras que concretizem o conteúdo principiológico dos direitos fundamentais. (11) Como justificativa axiológica dos direitos fundamentais, os princípios permitem (na verdade, ordenam) que o poder judiciário exerça maior controle sobre a prestação efetiva dos direitos fundamentais. A influência dos princípios na atuação jurisdicional do Estado, portanto, decorre da legitimidade que conferem à atuação criativa do direito no sentido de realizar os preceitos fundamentais. P á g i n a | 141 REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. APPIO, Eduardo. Direitos das Minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Traduzido por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. ____________________. Curso de Direito Tributário. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. Salvador, JusPodivm, 2010. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Traduzido por Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: WMF Martins fontes, 2010. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. P á g i n a | 142 Educação: Um Direito Coletivo Validado pelo Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Anilton Quadros¹ Antonio Pereira Rodrigues Neto¹ Ribamar Rodrigues Ferreira¹ Wagner Curse de Souza,148 RESUMO O presente artigo tem como fulcro principal demonstrar que o acesso a educação pública, direcionada à todos os cidadãos, é um dever do Estado, pois, aquela é um direito coletivo validado pela Constituição atual e, este, será garantidor desses direitos coletivos, de forma igualitária, nas diversas modalidades de ensino e, com qualidade. Diante disso, busca-se absorver, analisar e aplicar as sugestões criticas dos teóricos contemporâneos, em relação ao Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e, suas relações com o direito ao acesso à educação, pontuando ações no âmbito educacional. Vale salientar, que as analises e discussões desenvolvidas neste artigo, não têm a intenção de esgotar ou limitar este tema, tão complexo e de fundamental importância para o desenvolvimento de uma sociedade pós-moderna. PALAVRAS CHAVE: educação, direito, princípio, dignidade. ABSTRACT This article has the main fulcrum demonstrate that access to public education, directed to all citizens is the duty of the State, therefore, a collective right that is validated by the current constitution and this will be the guarantor of collective rights, so egalitarian, in various modes of teaching and quality. Therefore, we try to absorb, analyze and apply the suggestions of contemporary theoretical criticism, for the Constitutional Principle of Human Dignity, and its relations with the right to access to education, educational activities in the scoring. It is worth noting that the analysis and discussions undertaken in this article are not intended to exhaust or limit this subject as complex and crucial for the development of a postmodern society. KEY-WORDS: education, law, principle, dignity. 148 Acadêmico de Direito – Faculdade São Salvador P á g i n a | 143 INTRODUÇÃO A Educação numa sociedade pós-moderna é elemento fundamental para o desenvolvimento do ser humano e conseqüentemente o desenvolvimento social, assim, pode-se classificá-la dentro da ordem jurídica/social como um direito coletivo e fundamental. Destarte, o presente artigo tem como princípio fundamental fazer análises das ações do Estado, voltado para o Ente Federativo Município, enquanto ente responsável pela garantia da educação a todos os cidadãos e pelos investimentos realizados para elevar a qualidade do ensino. Estas análises serão de suma importância para que possamos determinar os benefícios e as distorções ocorridas nos investimentos educacionais e, constatar se, a legislação está sendo cumprida no nosso país, pois o que se observa atualmente é o fracasso e o deterioramento do ensino público. Sendo estas garantias são coletivas, por serem indivisíveis, direcionadas a sujeitos indeterminados e que possuem relações jurídicas com o Estado, ou seja, o direito à educação está validado e previsto no artigo 6° da Constituição Federal de 1988; como um direito fundamental de natureza social, vem discorrido no Titulo VIII, Da Ordem Social, especificamente, nos artigos 204 à 214, dispositivos nos quais se encontra explicitada uma série de aspectos que envolvem a concretização destes direitos, tais como os princípios e objetivos que informam, os deveres de cada ente da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para com a garantia destes direitos. Os parâmetros, ora citados, devem pautar a atuação do legislador e do administrador público, bem como servirem de critérios para o judiciário adotar, quando for acionado, para julgar questões que envolva a implementação deste direito. Além da previsão constitucional, há uma série de outros documentos jurídicos que contêm dispositivos relevantes a respeito do direito a educação, tais como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, ratificado pelo Brasil, no livre gozo de sua soberania; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96); o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90); e, o Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172/2001), entre outros. P á g i n a | 144 Diante disto, desenvolvemos este trabalho em três momentos: no primeiro, analisaremos as legislações que fundamentam as responsabilidades dos Municípios, quanto à distribuição e fiscalização das verbas direcionadas à educação; num segundo momento, constataremos como o direito a educação valida o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana num Estado Democrático de Direito; e, por fim, num terceiro momento, de forma específica, relataremos, com um olhar crítico/construtivo, as ações realizadas pela Prefeitura Municipal de São Francisco do Conde em relação à Educação Municipal. 1. A COMPOSIÇÃO DO SISTEMA DE ENSINO PÚBLICO NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS COM BASE NA LEGISLAÇÃO VIGENTE. A Constituição Federal ao garantir o direito à educação para todos, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, as preparando ao exercício da cidadania e qualificando-a para o trabalho, estabeleceu diversos preceitos constitucionais para garantir a sua efetivação. Entre esses preceitos pode-se verificar do art. 212 da Constituição Federal que os municípios têm o dever de aplicar, anualmente, o percentual mínimo de 25% (vinte e cinco por cento) da receita de impostos, incluídas as transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino público. Determina ainda o art. 211 § 2º que os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. Assim, para validar a garantia do pleno funcionamento da educação no País, e com o fim de proporcionar que seus recursos sejam indistintamente aplicados entre etapas e modalidades da educação básica, tomando como base o disposto no art. 60 da ADCT, foi necessário, através da Emenda Constitucional nº 53, de 19/12/06, a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, a ser aplicado na forma do disposto na Lei Federal nº 11.494/07, que tem como premissas à manutenção e o desenvolvimento da educação básica pública, bem como, à valorização dos trabalhadores em educação, dispondo sobre fatos tais como a composição financeira do fundo, suas fontes de receitas, da distribuição de recursos, da gestão e fiscalização dos recursos. Vale ressaltar, também, o dispositivo que versa sobre a matéria a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, de Diretrizes e Bases da Educação, que no tocante aos Municípios, a qual tem como premissa garantir a todos os brasileiros a formação básica para o exercício da cidadania e os meio necessários para o seu desenvolvimento no trabalho. É através desta Lei P á g i n a | 145 que determina que um limite mínimo constitucional seja aplicado diretamente na educação infantil e no ensino fundamental, direcionando assim os investimentos, permitindo a atuação em outros níveis de ensino, apenas e tão somente, após aplicada o mínimo necessário nas suas áreas de competência. As determinações contidas nestes dispositivos legais, não seriam simplesmente suficiente para garantir a eficiência e efetividade da aplicação desses recursos, é nesse contexto que o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal ou Lei Complementar 101/2000, que versa sobre normas de finanças públicas voltadas para a gestão fiscal surge com grande importância, uma vez que a mesma impõe sanções aos gestores que de forma irresponsável e ímproba deixem de efetuar os devidos investimentos exigidos e garantidos constitucionalmente, cabendo aos Tribunais de Contas dos Municípios, que atuam como controle externo desses entes da federação, através de suas análises técnicas, o respectivo controle, investigação e atuação perante os Gestores municipais, cobrar o efetivo cumprimento dos índices constitucional determinado para a educação. 1.1 Características Básicas do Fundeb A instituição do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB veio proporcionar a universalização do ensino básico, buscando promover uma maior equidade, melhor qualificação do docente, bem como proporcionar a municipalização do ensino uma vez que prioriza aos municípios a atuação na educação infantil (creches e pré-escolas), o ensino fundamental e a educação de jovens e adultos. Este fundo caracteriza-se por distribuir os recursos na proporção do número de alunos matriculados nos respectivos âmbitos de atuação prioritária, bem como o repasse automático desses recursos. Assim possibilita uma igualdade de condições no acesso a escola e atendimento gratuito a todos os alunos com o mínimo de qualidade definida pelos órgãos do sistema de ensino. Para atender aos ditames estabelecidos pela Lei do FUNDEB caberá aos municípios aplicar a verba do fundo em ações que proporcionem o aperfeiçoamento dos profissionais, aquisição ou recuperação de equipamentos ou de estabelecimentos destinados para o ensino, o fornecimento de materiais didáticos, transporte escolar e outras que estejam relacionadas diretamente as atividades da educação, ficando assim impossibilitados de aplicar os recursos fora dos preceitos estabelecidos em Lei, uma vez que ocorrendo serão considerados como despesas glosadas. P á g i n a | 146 Visando garantir uma melhoria na remuneração dos profissionais do magistério da educação básica ficou estabelecido que no mínimo 60%(sessenta por cento) dos recursos anuais dos Fundos serão destinados ao pagamento da remuneração desses profissionais que estejam em efetivo exercício na rede pública, sendo considerados como tais os docentes e os profissionais que oferecem suporte pedagógico aos docentes. 2. A EDUCAÇÃO COMO VALIDAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Para que se possa entender a educação como validação deste princípio, necessário se faz, conceber, que tanto a sociedade contemporânea, quanto o nosso atual ordenamento jurídico, passaram por uma reestruturação, a qual, proporcionou mudanças significativas para todos os seres humanos, sociais e autônomos. Esta reestruturação valorativa, só foi possível, na visão de Ricardo Mauricio Soares, devido ao desenvolvimento do neoconstitucionalismo como uma forma de percepção do conhecimento jurídico, inserido numa nova ordem social complexa e exigente, imbricando o Direito e a Moral, num viés justo e equitativo. Dessa forma, inserido no contexto social e validado pela teoria do neoconstitucionalismo, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, surge, para direcionar um novo olhar, em relação à compreensão e aplicação do Direito Constitucional num Estado Democrático de Direito, o qual eleva a Carta Magna ao status de norma jurídica, deixando de ser apenas um manifesto, agregando valores aos anseios do povo e, conseqüentemente, transformando o ordenamento jurídico em unitário e sistemático. Sendo que, para Soares, esta nova forma de pesar/agir os axiológicos jurídicos dos princípios constitucionais, reconhece e tutela a integridade físicamoral dos seres humanos, diferenciando-os de coisas, proporcionando-lhes autonomia, ao ser guiado e respeitado por eles. Ainda para o autor, esta dignidade nasce diante de fontes de valores, ou seja, da experiência axiológica do direito, por conseguinte, nasce de cada cultura, sendo submetida às novas mudanças do tempo e do espaço, proporcionando evoluções das sociedades humanas. Neste sentido, pode-se observar o quão a Norma Suprema é abrangente, pois regula e confere os direitos fundamentais, os direitos sociais, difusos, trabalhistas, políticos e outros. P á g i n a | 147 Com isso, baseado nestas fundamentações, pode-se afirmar que o Brasil se constitui num Estado social de direito de inspiração democrática por imposição constitucional. Isso significa, que os postulados subjacentes ao modelo de Estado social e ao regime político democrático não podem ser deixados de lado para a compreensão e interpretação da ordem jurídica vigente. Tais princípios se fazem presentes já no caput do artigo 1°, que institui o Estado Democrático de Direito, este caráter fica explicito no inciso III do art. 1°, que incorpora a dignidade da pessoa humana como seu fundamento. Já o art. 3° estabelece, como objetivos fundamentais da República, a busca por uma sociedade livre, justa, solidaria e a redução das desigualdades sociais. Por conseguinte, o acolhimento destes princípios valida a concretização deste modelo social, não apenas ao respeito dos direitos individuais (liberdade de expressão, direito de voto, direito de ir e vir), como também a realização dos direitos sociais, dentre os quais, o direito a educação. Neste âmbito, o Estado tem caráter prestacional, positivando juridicamente os valores sociais que passou a servir de base não apenas à interpretação de toda à Constituição, mas à criação, direção e regulação de situações concretas. 3. AÇÕES E PROPOSTAS PARA EDUCAÇÃO APLICADAS PELA PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO FRANCISCO DO CONDE. O município de São Francisco do Conde, situado na região petrolífera da Bahia, é um dos mais antigos municípios brasileiros. Sua existência remonta ao período colonial, teve como primeiro ciclo produtivo a cana-de-açúcar, cultura que constituiu com a pesca e a pecuária a base da economia municipal por mais de 3 séculos. Outro momento que merece destaque em termos econômico é por volta da década de 50 com descoberta do petróleo em terras baianas, e conseqüentemente na região de São Francisco, o que ocasionou a instalação da Refinaria Landulpho Alves no distrito de Mataripe, essa instalação foi de grande impacto tanto nos campos econômicos, sociais, ambientais, culturais ente outros, merece destaque o aumento das receitas municipais. No que tange a educação municipal fizemos um corte histórico, analisando tão somente, o período compreendido entre os meses de janeiro de 2009 a maio de 2010, pois a partir deste período a Secretaria Municipal de Educação, proporcionou ações para elevar a qualidade do P á g i n a | 148 ensino no município, devido ao resultado da avaliação externa, do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) realizada em 2007 pelo Ministério da Educação, quando classificou o município entre os piores do país em qualidade educacional. Partindo deste dado, a equipe gestora capitaneada pelo Secretário, Eliezer de Santana Santos149, que sobre o signo da transformação tem perseguido incansavelmente este objetivo. Com isso, por entender que educação de qualidade não se faz com ações isoladas, foi investido em todos os segmentos desde a infraestrutura dos aparelhos educacionais até os processos de formação de forma planejada e através de políticas públicas educacionais que priorizassem os mais desfavorecidos do município, com o intuito de reduzir as desigualdades e as mazelas da educação (analfabetismo, repetência, evasão escolar, formação inadequada de professores), além disso, estas políticas foram elaboradas para serem aplicadas de forma eficaz e eficiente. Segue abaixo algumas das ações desenvolvidas pela Secretaria: Foi realizado o reordenamento da rede do sistema municipal de educação, cumprindo o que determina a legislação vigente, que estabelece as competências dos entes federados, no caso em tela, compete ao município gerenciar o ensino fundamental e infantil. Assim, com a reordenação, foi definido o perfil dos estudantes, possibilitando intervenções pedagógicas direcionadas a determinado público alvo, além de possibilitar facilidades de acesso entre os docentes e a escolas, pois, nos anos anteriores, muitos estudantes se deslocavam, aproximadamente, em 40 quilômetros para chegar a uma unidade de ensino. Em seqüência, as ações de governo foi realizada a jornada pedagógica 2009, com tema novos caminhos para a educação, visando iniciar uma sensibilização dos professores, coordenadores pedagógicos, diretores e vice – diretores sobre as novas estratégias para a melhoria da qualidade da educação sanfranciscana. De forma inédita houve uma aula direcionada ao país de estudantes com o tema “quero uma vida melhor para meus filhos”, que propôs o desenvolvimento dos programas de prevenção da violência e promoção de uma cultura de paz direcionados a adolescentes, o qual propõe-se o reconhecimento de um novo papel social que adolescentes podem desempenhar frente ao fenômeno das violências, o de agente promotor da paz. “Construir a cultura da paz é promover as transformações necessárias e indispensáveis para que a paz seja o principio governante de todas as relações humanas e sociais”, sendo assim, a educação é um elo que 149 Pedagogo, Secretário de Educação do Município de São Francisco do Conde P á g i n a | 149 possibilita a congruência de todos os ideais para a construção de uma sociedade mais justa. Na oportunidade foram apresentados projetos para o ano letivo de 2009. Paralelo a formação humana várias intervenções foram realizadas na estrutura física das escolas, destacamos a instalação de água potável nas escolas São Roque, Antonio Balbino e CEAS e reformas em outras três escolas, por esse prima foi adquiridos vários móveis, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, ventiladores e carteiras universitária, que superam em qualidade qualquer universidade do nosso Estado, tudo isso para dar sentido a um dos signos da administração da Prefeita, Rilza Valentim, “Cuidar de Pessoas”. Considerando que o município de São Francisco do Conde tenha uma das rendas per capita mais alta do país, sob um olhar ligeiro alimentado pelo senso comum, parece que os recursos disponível “dar para tudo” ledo engano com a qualificação dos gastos e visando reparar as perdas em diversos campos educacionais os recursos começaram a ficar escassos, destacamos alguns investimentos que caracterizam a nova gestão, de forma breve citaremos alguns: as mesas pedagógicas – adquiridas junto a Empresa Positivo Informática as mesas são instrumentos pedagógicos que estão revolucionado a fazer didático, é o uso das novas tecnologias de comunicação e informação como ferramenta no processo de ensino/aprendizagem; distribuição de brinquedos nos dias crianças essa ação não é meramente eleitoreira, se configura em oportunizar e presentear as crianças com brinquedos que ao mesmo tempo visa o lúdico desenvolve também a coordenação motora, noção espacial, desenvolvimento cognitivo, afetivo e social; concessão de licença prêmio a professores ; doação de notebook a professores, visando a inserção ao mundo da informática, criação da lei que garante a doação de computadores para professores e alunos, possibilitando a inclusão digital; formação de professores, interpretes e gestores em LIBRAS- língua brasileira de sinais; Implantação do projeto de integração escola-comunidade, para minimizar os conflitos que tem sido uma marca na adolescência; P á g i n a | 150 Assim, percebe-se que estas ações irão minimizar o grande problema educacional do município, herdado de décadas, onde a sociedade, passivamente aceitava a obstrução de seus direitos. Porém, se houver continuidade no planejamento destas políticas publicas de forma valorativa e que trate os desiguais de forma desigual, haverá uma evolução na qualidade da educação de forma exponencial. P á g i n a | 151 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, pode-se afirmar que os Municípios devem aparelhar-se para fornecer a todos, progressivamente, os serviços educacionais mínimos. Isto significa reconhecer que o direito à educação só se efetiva mediante o planejamento e a implementação de políticas públicas, ou seja, a satisfação do direito não se esgota na realização de seu aspecto meramente individual (garantia de uma vaga na escola, por exemplo), mas abrange a realização de prestações positivas de natureza diversa por parte do poder público, num processo que se sucede no tempo. Contata-se, também, que a educação, como direito fundamental de caráter social, ocupa posição de destaque no nosso ordenamento jurídico, servindo mesmo como razão de ser de toda a ordem jurídica, juntamente com os demais direitos fundamentais; pertence a todos, mas prioriza categorias de pessoas que se encontram numa mesma posição de carência ou vulnerabilidade e, realiza-se por meio de políticas públicas ou programas de ação governamental. Contudo, a concretização das políticas públicas para o acesso a uma educação de qualidade, é uma tarefa complexa, que demanda a intervenção racional do Estado, em um conjunto de ações que envolvem, além da escolha de prioridades, a implementação de medidas legislativa, administrativa e financeiras que corroborem com a elaboração destas políticas, para que o cidadão tenha o seu direito garantido e, com facilidade de acesso. P á g i n a | 152 REFERÊNCIAS BOAVENTURA, E.M. União, estados, municípios e os sistemas de educação. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, v. 31, n. 122, abr./jun. 1994. BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10 ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. BOSI, A. A educação e a cultura nas constituições brasileiras. In: BOSI, A. (Org.). Cultura brasileira: temas e situações. 2 ª ed. São Paulo: Ática, 1992. Constituição da República Federativa do Brasil. Organização Cláudio Brandão de Oliveira. 4 ª ed. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2004. CRUZ, Flavio da. Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada. São Paulo: Atlas, 2000. Revista Estados & Municípios. Ano 24, n° 201. Brasília – DF SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: em busca do direito justo. São Paulo: Saraiva, 2010. P á g i n a | 153 SISTEMAS DE COTAS: FRAUDES NO SISTEMA DE COTAS NO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL Eliel Simões Fernanda Carla Jackelline Lima Raymundo Penna Resumo: Este artigo tem como propósito apresentar um breve estudo sobre o Sistema de Cotas no ensino superior do Brasil e as facilidades encontradas por fraudadores para burlar os pré-requisitos que todo e qualquer estudante deveria se submeter antes de ser enquadrado como beneficiário deste sistema; Tentou-se também exteriorizar de forma positiva as transformações sociais que as políticas afirmativas vêm causando em nossa sociedade buscando aplicar de forma prática o princípio constitucional de igualdade. Palavras chave: Cotas; Fraude; Políticas Afirmativas; Estudantes. Abstract: This article has as intention to present a briefing study on the System of Quotas in the College of Brazil and the easiness found for people who commits barratry to embezzle the prerequisite ones that all and any student would have to be submitted before being fit as beneficiary of this system; It was also tried to exteriorize of positive form the social transformations that the affirmative politics come causing in our society searching to apply of practical form the constitutional principle of equality. Key words: Quotas; Fraud; Affirmative politics; Students INTRODUÇÃO Este artigo tem a finalidade de mostrar a vulnerabilidade do sistema de cotas no ensino superior público no Brasil, onde se farão análises sobre as fraudes e falhas no sistema que vem ocorrendo ultimamente e trazendo grandes discussões que versam sobre a segurança e a credibilidade dessas políticas compensatórias para as minorias, que servem para compensar séculos de discriminações e preconceitos; estas políticas são implementadas e patrocinadas pelo Governo Federal com o propósito de se tentar resgatar ou minimizar as distorções sócio-econômicas profundas que condenam a maioria P á g i n a | 154 à salários baixos, índices de oportunidades reduzidos e a forma de vida deficiente; mas a questão é como encontrar maneiras de se evitar e corrigir as possíveis lacunas que os sistemas oferecem aos fraudadores e como tentar evitar que estas fraudes não prejudiquem pessoas que realmente necessitam, como por exemplo um caso de um estudante que não precisa e ocupa a vaga daquele que precisa, tendo sucesso burlando os mecanismos de controle do sistema. É necessário se ater que o sistema de cotas reflete sua importância no exercício da sua função social, econômica e humanitária. E as fraudes nos sistemas como ENEM, causam grande dano àquela fração da população que deveria ser beneficiada por tais projetos favorecendo assim àqueles que não necessitam do apoio do Estado para cursar o ensino superior. Tentar trazer ao grupo acadêmico um problema real e fático que atinge em cheio essas políticas sócioafirmativas desenvolvidas para minimizar os problemas das fraudes, entender a importância e finalidade do sistema de cotas e conhecer o histórico do sistema de cotas são alguns dos pontos necessários para que se tenha uma visão mais ampla para entender essas políticas compensatórias a luz da Constituição. 1. BREVE HISTÓRICO DO SISTEMA DE COTAS O sistema de cotas não é uma iniciativa brasileira, logo após os “crash” da Bolsa de Valores em 1929, o Presidente americano Franklin Delano Roosevalt implementou um sistema para proteger o emprego e parte de população norte americana, buscando reparar danos causados pela economia capitalista descontrolada. A Constituição Federal de 1988 no artigo 37 (caput), VIII diz: a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão, determinando, neste inciso, a reservas de vagas para deficientes físicos, sendo adotado em diversos concursos públicos, com a ressalva de que o emprego ou cargo não exija plena aptidão física. Isto tornou-se o marco de início das reservas de vagas para grupos específicos no Brasil. Com o tempo, outros grupos sociais passaram a pleitear a reserva de vagas para "garantirem" a participação em vários setores da sociedade, principalmente as universidades públicas. P á g i n a | 155 Nas universidades, a adoção de reserva de vagas começa em 2000, com a aprovação da lei estadual 3.524/00, de 28 de dezembro de 2000. Esta lei garante a reserva de 50% das vagas, nas universidades estaduais do Rio de Janeiro, para estudantes das redes públicas municipais e estaduais de ensino. Esta lei passou a ser aplicada no vestibular de 2004 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). A lei 3.708/01 institui o sistema de cotas para estudantes denominados "negros" ou "pardos", com percentual de 40% das vagas das universidades estaduais do Rio de Janeiro. Esta lei passa a ser aplicada no vestibular de 2002 da UERJ e da UENF. Outras universidades, tais como a Universidade de Brasília (UNB) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) também aderem a tal sistema, tendo como critérios os indicadores sócio-econômicos, ou a cor ou "raça" do indivíduo. O conceito de cotas de vagas aplica-se a populações específicas. Estas populações podem ser grupos étnicos ou "raciais", classes sociais, imigrantes, deficientes físicos, mulheres, idosos, dentre outros. Há uma discussão referente à justificativa para o sistema de cotas. Existe a defesa de que esse sistema é para certos grupos específicos, em razão de algum processo histórico depreciativo, eles teriam maior dificuldade para aproveitar as oportunidades que surgem no mercado de trabalho, bem como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade, surgindo a necessidade de cotas. Complementando essa justificativa, salienta-se que certos grupos específicos, em razão de algum processo histórico depreciativo, teriam maior dificuldade para aproveitarem as oportunidades que surgem no mercado de trabalho, bem como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade. 2. IMPORTÂNCIA E FINALIDADE DO SISTEMA DE COTAS Embasado no Princípio da Igualdade que está explícito na Constituição Federal do Brasil de 1988, igualdade não consiste em tratar a todos da mesma maneira, mas sim em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, assim o sistema de cotas busca reparar um mal causado à comunidade negra que tanto contribuiu para a construção do Brasil e os estudantes que carecem de recursos para estudar em colégios particulares que ofereçam melhores condições de aprendizado e consequentemente encontram maior dificuldade em ingressar, principalmente, nas universidades públicas federais e estaduais. P á g i n a | 156 Apesar de interpretados de forma negativa por muitos, o sistema de cotas é uma maneira de reparar os danos históricos da escravidão e danos econômicos originados do capitalismo desenfreado. A UFPR (Universidade Federal do Paraná), uma das pioneiras na adoção do sistema de cotas no ensino superior, onde o reitor Carlos Augusto Moreira Júnior destaca que a estrutura bem montada da instituição, facilita a inclusão dos cotistas. Destaque para o sistema de bibliotecas, que, segundo o reitor, dá conta da questão pedagógica no acesso aos livros exigidos na formação dos graduandos. Ele cita, também, o restaurante universitário, que oferece comida de qualidade, almoço e jantar, a R$ 1,30, significando democratização de acesso à instituição. "Além disso, temos uma política forte de bolsas de estudos: entregamos anualmente 1.800 bolsas para alunos que realmente precisam do auxílio por questão de fragilidade sócio-econômica. E a gente tem atendido bem toda essa situação", afirma. A UERJ implementou o sistema de cotas há aproximadamente 8 anos e uma das preocupações era o aproveitamento dos alunos cotistas em relação aos alunos não cotistas. Em estudos realizados foi identificado que as médias dos alunos cotistas são, em alguns casos, iguais ou até maiores que as dos alunos não cotistas, outra questão seria a evasão dos alunos cotistas pois estes teriam menores condições de permanecer no curso por conta da sua realidade sócio econômica. 3. FRAUDES NO SISTEMA DE COTAS NO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL No ano de 2005 a Universidade Federal da Bahia (Ufba) cassou as matrículas de três alunas por fraudar o sistema de cotas reservadas para afrodescendentes e respondem criminalmente por falsidade ideológica podendo pegar de um a cinco anos de prisão. As fraudes foram descobertas após o cruzamento dos dados, realizado pela Ufba, entre as matrículas de alunos nas redes pública e particular, onde foi descoberto que as estudantes tinham cursado o ensino particular e ingressaram no sistema de cotas apresentando certificados de cursos supletivos e suprimindo as informações que as desqualificariam do sistema de cotas. NA UFPI, ano de 2009, um aluno do curso de Medicina, para ter condições de entrar na universidade como cotista, por mais que não tenha estudado em escola pública, conseguiu um diploma de conclusão de curso pelo EJA- Educação de Jovens e Adultos- do governo federal. No ano de 2006, os estudantes Marcel Cirne Genaro (Desenho Industrial), Leilane Nascimento (Enfermagem) e Luísa Lima Portela (Pedagogia) se disseram afrodescendentes e apresentaram certificado de conclusão do ensino médio através de exame supletivo, mas na verdade haviam estudado o Segundo Grau em escolas particulares, o Gregor Mendel e o Colégio Versalhes. Já o estudante Bruno Travassos de Brito (Biologia) apresentou na matrícula certificados falsos de ter P á g i n a | 157 estudado no Colégio Estadual Odorico Tavares, quando na verdade é oriundo do particular Colégio Integral. Outro exemplo foi exibido em reportagem do Fantástico, programa da Rede Globo, abordando três alunas do curso de Medicina da Uningá (Universidade de Maringá), em que cada uma custava R$ 3.500,00 mensalmente aos cofres públicos, sendo que todas elas possuem situação sócio econômica que não se enquadra nos requisitos para fazer jus aos benefícios do programa de cotas, ProUni, já que uma das exigências é que a renda familiar não poderá ultrapassar R$ 765,00 por pessoa e nenhuma estava nesta situação. Além disso, foi detectado que as três alunas são parentas de funcionários da faculdade, mostrando assim o favorecimento das mesmas. Desde que iniciaram seus cursos as estudantes já utilizaram aproximadamente R$ 300.000,00 do dinheiro público. 4. ABSURDOS NOS SISTEMAS DE COTAS Uma situação esdrúxula ocorreu no vestibular da Unb em 2004, onde os candidatos deveriam tirar fotos no ato da inscrição para poder concorrer ao sistema de cotas como forma de comprovar a sua afrodescendência, declarando-se negro (a) e optar pelo sistema de cotas para negros. No Brasil tornase muito difícil identificar, pela cor da pele, a descendência africana já que as mais diversas misturas ocorreram e temos bisnetos de negros mais brancos que alguns filhos de pai e mãe brancos. Esta identificação, pela cor da pele, poderia gerar situações no mínimo absurdas já que numa família de pai negro e mãe branca um filho poderá nascer mais “claro” e outro mais “escuro”, assim os dois seriam afrodescententes um com traços na cor da pele, enquanto que outro seria totalmente excluído do sistema, pois teria a cor da pele branca, ficando assim quase impossível gerar uma correlação entre cor e ancestralidade. Em outras palavras, não é possível fazer uma identificação visual confiável do nível de ancestralidade africana de uma pessoa a partir de suas características físicas. Ainda o critério mais admissível para cotas é a autodeclaração. Se a Universidade de Brasília considera esse sistema falho, errou ainda mais ao tentar corrigi-lo utilizando uma metodologia socialmente ofensiva. Com a astúcia o cartunista Angeli retratou a das cores no Brasil: P á g i n a | 158 CONSIDERAÇÕES FINAIS Indo de encontro com alguns autores o professor Carlos de Fonseca Brandão, em seu livro As cotas na universidade pública brasileira: será esse o caminho?, onde questiona se a solução para superar as discriminações raciais é o sistema de cotas e considera: Se for para as universidades adotarem uma seleção inteiramente democrática, que seja por sorteio. Se formos selecionar os candidatos por grupos, seja racial, sócio-econômica ou origem escolar, estaremos, sim, sendo preconceituosos, pois a simples separação já é discriminação. (BRANDÃO, 2005). Ainda de acordo com o professor Brandão, “o Brasil é composto por uma grande mistura de raças e, assim, uma universidade do Sul, onde a região é predominantemente formada por descendentes de alemães, pelo esquema de cotas não poderia ter a mesma seleção de uma universidade da Bahia”, mas é notório que esta consideração se contrapõe à realidade do sistema de cotas raciais que tem como principal objetivo a reparação dos danos causados aos negros que participaram da colonização do Brasil e tiveram seus direitos totalmente negados sem acesso à escola, à propriedade, ao capital e a qualquer outro direito fundamental que as demais raças que participaram do processo de colonização do Brasil gozaram. O sistema de cotas tem sido objeto de criticas, algumas radicais que acham que devam ser extintas tendo em vista as fraudes que tem ocorrido, todavia, muitos outros argumentam que o sistema deve ser melhorado até porque falhas e fraudes existem e ocorrem em qualquer sistema. Cita-se, por exemplo, o sistema Previdenciário em que ocorrem fraudes, mas, ninguém cogita em distingui-los. Da mesma forma, o sistema Policial, o Eleitoral e até mesmo o Político. Portanto, de acordo com os estudos realizados, foi possível perceber a necessidade de mecanismos mais eficazes no acompanhamento dos beneficiados pelo sistema de cotas, tornando-se necessário o desenvolvimento de mecanismos que funcionem de forma objetiva e contínua na avaliação e acompanhamento periódico dos cadastros desses beneficiados para analisar sua condição socioeconômica e verificar se pode ser mantido no sistema ou já não mais se enquadra na realidade dos cotistas, buscando assim minimizar as fraudes no sistema de cotas no ensino superior no Brasil. P á g i n a | 159 REFERÊNCIAS GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. NOGUEIRA Jr., A. Projeto Releituras: Stanislaw Ponte Preta (Sergio Porto). [s.d.]. Disponível em: <http://www.releituras.com/spontepreta_bio.asp>. Acesso em: 2 maio 2005. BRANDÃO, Carlos de Fonseca: As cotas na universidade pública brasileira: será esse o caminho?, Ed. Autores Associados, Campinas – SP, 2005. http://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_de_cotas. Acessado em 20/05/2010. http://www.palmares.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=2162. Acessado em 01/06/2010.