Coleção HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PARA PROFESSORES ARTICULAÇÃO DE ENTES MATEMÁTICOS NA CONSTRUÇÃO E UTILIZAÇÃO DE INSTRUMENTO DE MEDIDA DO SÉCULO XVI Fumikazu Saito Marisa da Silva Dias Sociedade Brasileira de História da Matemática 2011 COLEÇÃO HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PARA PROFESSORES Organizadores: Carlos Henrique Barbosa Gonçalves e Eva Maria Siqueira Alves Sociedade Brasileira de História da Matemática Gestão 2009-2011 Caixa postal 1631 CEP 59.078-970 Campus Universitário Natal RN Endereço eletrônico: [email protected] Presidente: Sergio Nobre (UNESP) Vice-Presidente: Clóvis Pereira da Silva (UFPR) Secretário Geral: John Fossa (UFRN) Tesoureiro: Iran Mendes (UFRN) 1° Secretário: Lígia Arantes Sad (UFES) Membros Conselheiros: Antonio Carlos Brolezzi (USP) e Edilson Roberto Pacheco (UNICENTRO) Conselho fiscal: Fernando Raul de Assis Neto (UFPE), Marcos Vieira Teixeira (UNESP) e Maria Terezinha de Jesus Gaspar (UnB) Catalogação na Publicação Biblioteca Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Notas: o conteúdo dos textos publicados é de responsabilidade de seus autores e foram impressos como recebidos pelos organizadores. Colaboraram nesta edição Karen Massae Nashiro, Luciana Vieira Souza da Silva, Verônica Bispo e Zaqueu Vieira Oliveira. Apresentação Como é costume por ocasião dos Seminários Nacionais de História da Matemática (SNHM), organizados pela Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMat), lançamos neste momento mais uma coletânea de volumes da Coleção História da Matemática para Professores. Ocorre neste ano o IX SNHM, realizado pela Universidade Federal de Sergipe e sediado na cidade de Aracaju. Os novos volumes desta coleção correspondem aos minicursos oferecidos durante o evento. Um dos principais motivadores dos minicursos é levar aos professores de matemática de todos os níveis os resultados mais recentes da pesquisa na área em nosso país. Com essa iniciativa, estamos contribuindo para enriquecer nosso corpo docente e, consequentemente, o ensino da matemática. Muito se pode dizer sobre o papel da história da matemática na sala de aula. Para esta breve Apresentação, é suficiente mencionar os ganhos que o ensino – aliás, em todas as áreas, não só em matemática – obtém a partir de uma visão historicizada de seu conteúdo: a matemática que ensinamos não é um dado absoluto, mas um resultado de processos sociais e culturais complexos, frequentemente ausentes das exposições didáticas. Ganhar consciência disso é aprender mais, tanto sobre a matemática, como sobre o mundo que a produziu. Desejamos a todos uma boa leitura. Carlos Henrique Barbosa Gonçalves Eva Maria Siqueira Alves Organizadores Índice Introdução..................................................................................................................7 Instrumentos matemáticos.........................................................................................9 Construção e uso de instrumentos para medir distâncias........................................14 Estrutura do minicurso.............................................................................................23 Atividade didática e tratamento didático do documento.........................................25 Considerações finais................................................................................................56 Referências bibliográficas.......................................................................................58 Articulação de entes matemáticos na construção e utilização de instrumento de medida do século XVI Fumikazu Saito Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Marisa da Silva Dias Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 7 Introdução Este minicurso tem por objetivo trabalhar entes matemáticos que estão incorporados em um dos muitos instrumentos, utilizados no século XVI, para se medir distância. A sua elaboração partiu do pressuposto de que a história da matemática pode contribuir para um processo de construção de conceitos pelo sujeito, promovendo a apropriação de significados dos entes matemáticos (Dias, Saito, 2009). Mais do que recensear as propriedades matemáticas mobilizadas na sua construção e uso, buscamos apresentar o instrumento não como resultado, mas como processo, articulando ações que promovam um diálogo com a produção e transmissão de conhecimento no século XVI. Esta proposta é resultado de uma das atividades realizadas pelo grupo HEEMa (grupo de estudo e pesquisa em História e Epistemologia na Educação Matemática) que tem promovido discussões sobre a possibilidade da construção de interfaces entre história e ensino de matemática (Dias, Saito, 2010). O grupo tem direcionado suas reflexões e discussões sobre as potencialidades da história da matemática no ensino para dois aspectos que se articulam: o contexto histórico no qual conceitos matemáticos são desenvolvidos e o movimento do pensamento em que tais conceitos foram concebidos ou articulados. Nesta proposta, esses dois aspectos são articulados tendo-se em vista uma história da matemática, pautada numa proposta historiográfica mais atualizada, contextualizada com propósito da educação matemática, e abordagens metodológicas que medeiam o ensino e a aprendizagem da matemática (Dias, Saito, 2009). Os educadores matemáticos têm já há algum tempo voltado sua atenção para as possíveis relações entre história e ensino da matemática. Assim, várias propostas têm sido apresentadas e apreciadas por educadores não só no Brasil, mas também no exterior. Da mesma forma, historiadores da matemática parecem estar convencidos de que a história tem um papel importante no ensino. Buscando transpor os limites acadêmicos em que desenvolve suas pesquisas, os historiadores 8 da matemática têm voltado sua atenção não só para o papel da história na formação do matemático, mas também do professor de matemática (D’Abrosio, 1996; Miguel, 1997; Miguel, Miorim, 2005; Mendes, 2006; Belhoste, 2002). Desse modo, buscando estreitar o diálogo entre historiadores e educadores matemáticos a fim de contribuir para a elaboração de novas estratégias de ensino, o grupo HEEMa vem se discutindo a construção de interfaces entre história e ensino de matemática por meio da perspectiva lógico-histórica (Dias, M. S., 2007; Moura, Souza, 2005) associada às atuais tendências historiográficas da história da ciência e da matemática (Bromberg, Saito, 2010; Alfonso-Goldfarb, Beltran, 2004; Dias, A. L. M., 2002). A perspectiva lógico-histórica tem por pressuposto a possibilidade do estudo do movimento do pensamento, no sentido de apreensão do objeto de estudo, isto é, do desenvolvimento do conceito. O lógico do histórico é considerado como lógica dialética que estuda, sobretudo, o conteúdo mental, dando especial atenção à relação desse conteúdo com a realidade objetiva no próprio processo de pensamento, ou seja, no próprio processo de aquisição do conhecimento. Assim, na formação do conceito, o histórico do objeto refletido no pensamento constitui o conteúdo do pensamento e o lógico, reflexo desse conteúdo, reproduz, segundo P. V. Kopnin (1978, p. 183), “a essência do objeto e da história do seu desenvolvimento no sistema de representações”. Desse modo, ao articular elementos de história da matemática com ensino, não procuramos fazer da história um direcionamento ao pensamento de tal modo a impor ou sobrepor um processo histórico, mas permitir um diálogo no processo formativo das ideias, na lógica do movimento do pensamento. Admitimos, assim, que a inter-relação entre o lógico e o histórico não se limita à inter-relação entre teoria e história de um objeto, mas também e, sobretudo, a história do seu conhecimento. Dessa forma, ao aproximarmos a história e o ensino, não buscamos afirmar que a pesquisa historiográfica seja a do professor. E sim, ressaltar que ao levar para a sala de aula histórias que estão nos livros didáticos, atualmente 9 representativas de uma vertente historiográfica tradicional, o educador tende a reforçar a concepção linear do desenvolvimento do conhecimento. Dessa maneira, o conhecimento matemático é visto como uma sucessão de fatos, organizados formal e cronologicamente, omitindo debates e outras questões “extramatemáticas” que, direta ou indiretamente, estiveram ligadas no momento de sua formulação. Além disso, essa perspectiva historiográfica apresenta a matemática isolada e apartada de outras áreas do conhecimento, das quais recebeu e também deu contribuições. Assim, como sugere A. M. Alfonso-Goldfarb (1994), um “matemático” do século XVI, por exemplo, é anacronicamente comparado a um matemático do século XX, como se ambos estivessem envolvidos com as mesmas preocupações e necessidades matemáticas. Tendo isso em vista, a atividade aqui proposta busca, no processo histórico do desenvolvimento da matemática, notadamente no século XVI, elementos que podem propiciar a construção de conceitos matemáticos a serem ensinados, por uma via que conduza a sua apropriação pelo indivíduo. Neste minicurso, buscamos discutir potencialidades pedagógicas que podem ser abordadas por meio da construção e da utilização de um instrumento de medida do século XVI. Instrumentos matemáticos Entre as diversas iniciativas que procuram aproximar a história da matemática do ensino, o uso de documentos originais tem sido muito promissor (Jahnke, 2000; Furinghetti, 2007). Seguindo de perto essa tendência, utilizaremos neste minicurso dois excertos em que as instruções para a construção e o uso do “quadrante num quarto de círculo” são apresentadas. Estes excertos foram retirados de uma obra, publicada por Cosimo Bartoli (1503-1572) no século XVI, intitulada Del modo di misurare le distantie, le superficie, i corpi, le piante, le province, le prospettive, & tutte le altre cose terrene, che possono occorrere agli homini, Secondo le vere regole d’Euclide, & 11 em uso para facilitar a resolução de problemas matemáticos, observacionais e experimentais (Daumas, 1989; Hackmann, 1989; Turner, 1998). No que diz respeito aos instrumentos matemáticos, podemos dizer que o seu número aumentou significativamente a partir do século XVI. Isso, provavelmente, deveu-se ao reconhecimento de que a matemática era essencial não só para resolver problemas de ordem prática, mas também para investigar os vários aspectos da natureza (Saito, 2008a; Bennett, 1998). Convém observar que, naquela época, os aspectos práticos da geometria tornaram-se importantes para os príncipes e governantes. Além do interesse renovado pela especulação matemática, devido à recuperação de textos da antiguidade tardia, a expansão do horizonte físico, proporcionada pelas descobertas de novas terras além-mar, e as mudanças que tiveram lugar nos métodos da arte militar, as aplicações da geometria passaram a chamar a atenção dos governantes naquela época (Debus, 1996; Taylor, 1954; Bennett, 1998). Estudos sobre a relação entre os ângulos de elevação de canhões e o seu alcance, por exemplo, tiveram grande desenvolvimento no século XVI. Além disso, muitos instrumentos foram desenvolvidos para medir alturas e distâncias e novas técnicas foram propostas para mapear e planificar as cidades e para localizar-se no mar. Assim, cartógrafos, cosmógrafos, geógrafos, agrimensores, navegadores, astrônomos, entre muitos outros artesãos e praticantes de matemáticas, dedicaram-se ao estudo da geometria e a fabricação de novos instrumentos matemáticos. É nesse contexto que vemos florescer muitas oficinas dedicadas à fabricação de instrumentos matemáticos e filosóficos em várias regiões da Europa, notadamente, Louvain, Nuremberg, Florença, Londres entre outras (Conner, 2005, p. 257). O crescente aumento da procura por instrução em geometria e astronomia, áreas necessárias para o desenvolvimento de novas técnicas para a navegação, agrimensura, horografia, cartografia, artilharia e fortificação, conduziu estes praticantes de matemáticas a se autodenominarem “professores” (no sentido daquele que professa uma arte, “profissional”) de matemáticas. A maioria deles, 13 Diferentemente de um manual prático do tipo “faça você mesmo”, esses dois aspectos não podem ser dissociados em Del modo de misurare. Com efeito, analisando a obra, podemos notar que ela estava destinada a um público que tinha conhecimentos não só da geometria incorporada no instrumento, mas também prático de seu ofício. Isso pode ser constatado em certas passagens da obra. Bartoli, por exemplo, não fornece informações sobre os procedimentos que deveriam ser adotados para a construção de escalas no instrumento. As ações para a construção são apenas apresentadas em forma de instrução, solicitando ao leitor que ele apenas “divida um segmento em doze partes iguais”, “trace três linhas paralelas de tal modo a formar três intervalos proporcionais entre si” e assim por diante. Além disso, o conhecimento geométrico encontra-se implícito na construção do instrumento, isto é, na sua concepção, bem como no seu uso. Em outros termos, o conhecimento matemático mobilizado na construção do instrumento está intimamente relacionado ao seu uso, o que aponta para indissociabilidade entre o saber e o fazer. A obra foi dividida por Bartoli em seis livros, cada um deles dedicado, direta ou indiretamente, aos modos de medir: distâncias (largura, comprimento, altura e profundidade); superfícies; corpos (regulares e irregulares), isto é, volumes. Além disso, fornece instruções de como mapear uma província de 400 ou 500 milhas de comprimento e largura “de tal modo a poder desenhá-la sobre um plano com sua capital, terras, castelo, portos, rios, e outras coisas notáveis” (Bartoli, 1564, p. 1r). O primeiro livro trata, “seguindo a sequência proposta por Orôncio”, da medida da distância, isto é, comprimento, largura e profundidade. O segundo livro trata da medida da superfície e, o terceiro, dos corpos, isto é, do volume. O quarto livro, “seguindo, agora, a ordem dada por Gemma Frisio e outros autores”, Bartoli explica e ensina como mapear uma província sobre um plano. A esses quatro livros seguem dois outros, um quinto, dedicado às demonstrações geométricas de Euclides e, um sexto, que ensina a obter raízes 14 quadradas e cúbicas. No quinto livro, Bartoli procura fornecer não só as questões, os conceitos e as proposições, apresentadas nos livros anteriores como demonstrações, mas também as proposições das quais derivavam aquelas demonstrações. Aqui Bartoli esclarece que decidiu acrescentar as demonstrações constantes em Elementos de Euclides por duas razões. Primeira por sugestão de Francesco de Medici e, segunda, por comodidade, ou seja, para deixar o leitor satisfeito e poupá-lo de se reportar ao livro de Euclides (Bartoli, 1546, p. 1v). Mas cabe observar que os Elementos de Euclides não são aqui apresentados na íntegra. Bartoli apenas selecionou aqueles axiomas, postulados, definições e proposições que estariam diretamente ligados à medida da distância, área e volume. No sexto livro, Bartoli apresenta regras para obter raízes quadradas e cúbicas. O autor observa que lhe pareceu interessante juntar este livro porque, em muitos casos pareceram necessárias encontrar as raízes quadradas e cúbicas, ou ainda obter algumas medidas tratadas nos primeiros três primeiros livros (Bartoli, 1546, p. 2r). Por último, ainda neste sexto livro, Bartoli fornece a regra de três. Construção e uso de instrumentos para medir distâncias Dos excertos extraídos da obra Del modo di misurare de Cosimo Bartoli, escolhemos três instrumentos: (1) o quadrante geométrico, (2) o quadrante num quarto de círculo e (3) o báculo. Cada um dos excertos acompanha figura, tal como consta na obra original. Apresentamos a seguir uma tradução de cada um desses excertos que apresenta a construção do instrumento e como utilizá-lo num processo de medição. 1 Quadrante geométrico: 1.1 “Como construir um quadrante, instrumento muito cômodo para medir distâncias (cap. II): Tome quatro filetes feitos de madeira bem dura. Una-os sem torcê-los de tal modo que a largura e o comprimento deles, trabalhados diligentemente, formem ângulos retos sobre um mesmo plano. Seria desejável que 15 estes filetes tivessem, cada um deles, pelo menos uma braça de comprimento para que possamos operar de modo bem justo. Assim, depois de unidos justamente os quatro filetes, de tal modo a formarem um quadrado perfeito, escolha a face mais polida e nela trace linhas retas em todas as quatro faces, não muito distantes dos cantos externos. Sobre os ângulos onde estas linhas retas se encontram, escreva A, B, C e D, lembrando que estas linhas devem estar afastadas igualmente de todos os cantos do quadrado. Feito isto, coloque uma régua do ponto A ao ponto C e trace uma linha oblíqua CE a qualquer um dos lados AB ou CD. Agora, trace três linhas paralelas que se encontrarão com a já traçada oblíqua CE e que, juntamente com BC e CD, formam três intervalos de tal maneira proporcionais entre si, que um seja sempre por seu dobro mais largo do que o outro. Depois, divida cada um destes lados de acordo com seu comprimento em doze partes iguais. Em seguida, tendo a ponta de uma régua sempre firme no ponto A, mova a outra (ponta da régua) para todos os pontos da divisão e trace, a partir destes pontos, algumas linhas abaixo dos três intervalos de tal modo que todas elas sejam oblíquas e paralelas a CE. Isso deve ser feito de modo que elas não transpassem as linhas BC e CD. Em seguida, divida cada uma destas doze partes em cinco partes iguais e, a partir destas cinco, divida novamente em duas partes iguais, do mesmo modo como foram traçadas anteriormente. E, desse modo, o lado BC e CD estará dividido em 60 partes porque 5 vezes 12 ou 12 vezes 5 faz 60. Pode-se ainda dividir o último intervalo, isto é, o mais externo, que é o mais estreito, em duas partes iguais, e cada uma destas partes terá 30 minutos de um grau, ou seja, se cada uma das 60 for divida em 3 partes iguais, cada uma destas terá 20 minutos: ou em 4, cada uma terá 15 minutos1. E assim ela pode ser dividida sucessivamente em quantas partes desejarmos (...). Abaixo do primeiro intervalo, de um e de outro lado, isto é, do intervalo mais 1 Cabe observar que os termos “grau” e “minuto” não se referem aqui à unidade de medida de ângulo a que estamos acostumados a utilizar. “Grau” deve ser entendido no sentido de quantidade e “minuto” como a menor parte desta quantidade (nota do tradutor). 16 largo, escreva os números começando por B até D desta maneira: 5, 15, 20, 25, 30, 35, 40, 45, 50, 55, 60, de modo que 60 seja o ponto C que serve a ambos os lados. Feito isto, construa um apontador que seja reto, igual e plano, que chamaremos AF. Este apontador deverá ter pelo menos o tanto de comprimento quanto tem a oblíqua AC. No seu comprimento fixe duas pínulas2, G e H, com furos no meio e que correspondem, juntamente com o apontador, à oblíqua AC, como mostra o desenho. Finalmente, este apontador deve estar cravado em A de modo que ele possa mover-se livremente de lado a lado sobre a face do instrumento. Além disso, a linha AF deve coincidir com as pínulas G e H (...)” (BARTOLI, 1546, p. 2v-3v). Figura 3: Quadrante geométrico (BARTOLI, 1546, p. 3r) 2 Uma pínula é uma peça laminar, com uma fenda ou furo no meio, que serve para fazer alinhamento. O observador deve olhar através de uma pínula de tal modo que a “mirada” pelas duas pínulas coincida. Quando isto ocorrer, o observador terá o correto alinhamento para obter-se a medida (nota do tradutor). 17 1.2 “Como, encontrando-se em um lugar no alto, medir uma linha reta colocada no plano (cap. IIII): Se, encontrando-se em cima de alguma torre ou em uma janela de qualquer edifício, que está numa grande praça ou em campo aberto, desejar medir uma linha reta colocada no mesmo plano sobre o qual está a parede do edifício, ou de uma torre que se eleva em ângulo reto com ela, procederemos deste modo: Digamos que a altura da torre seja BE; e a linha estendida EF, ou EH, ou mesmo EK (...) Acomode o lado AB do quadrante geométrico ao longo de seu comprimento de modo que AB e BE fiquem sobre uma única linha, AE, perpendicular a EHFK. Em seguida, com olho no ponto A, levante ou abaixe o apontador até que a mirada atinja a extremidade da linha estendida. Feito isto, confira o ponto no qual o apontador cairá. É certo que o apontador cairá, ou o ponto C (...), ou no lado BC, ou no lado CD (...) Quando o apontador cai no ponto C, a linha estendida EF que se quer medir é igual à altura da torre EB. E para saber a altura da torre basta estender de cima para baixo uma fio de prumo e, depois, medir o fio (...). Mas se o apontador cair no lado BC, por exemplo, no ponto G, e a linha estendida que se quer medir for EH, é coisa certíssima que esta linha EH estendida é mais curta do que aquela AE obtida com fio de prumo. Também é certo que AE estará em proporção com EH que é o lado do quadrante AB na parte interceptada BG. É preciso, portanto, conhecer as divisões dos lados do quadrante que são 60. Vamos dizer que BG seja 40. Sabemos que todo o lado AB é igual a BC que é 60. Verificamos que 60 corresponde a 40 (...). Em seguida, meça com o fio de prumo a altura da torre AE e calcule a terça parte do comprimento AE, e em seguida calcula-se EH. Por exemplo, se a linha de prumo AE medir 24 braças, a linha EH será 16 (...) Mas se a linha cair no lado CD, por exemplo, em I, e que a linha que se quer medir for EK, é claro que esta EK será maior do que aquela linha AE medida com o fio de prumo, na mesma proporção que o lado AD é maior o que a interseção DI do lado CD. Por exemplo, se DI for 40 partes do lado do quadrante que é 60, a linha EK terá como medida uma vez mais meia linha da altura da torre AE. Assim, por exemplo, se AE for 24 braças, EK terá proporcionalmente 36 18 braças (...)” (Bartoli, 1546, p. 5r). Figura 4: Ilustração de como usar o quadrante geométrico (Bartoli, 1546, p. 5r) 2 Quadrante num quarto de círculo: 2.1 “Como construir um quadrante dentro da quarta parte de um círculo (cap. V): Tome uma peça de madeira firme e bem polida. Desenhe nela a quarta parte de um círculo de tal modo que as duas linhas, que partem do centro A do círculo, formem entre si um ângulo reto, tal como mostra a figura ABCD abaixo (Figura 5). Em seguida, divida esta quarta parte de círculo com uma linha reta que parte do centro A e chega em C, ponto que está situado no meio do arco. Depois, com uma régua colocada no ponto C, trace duas linhas CB e CD de modo a obter um quadrado ABCD dividido no meio pelo diâmetro AC. Em seguida, trace duas outras duas linhas paralelas a BC e CD na parte interna do quadrado, isto é, na parte que vai em direção ao centro A. Estas linhas paralelas deverão ser traçadas de tal modo que o intervalo que está mais próximo do centro A seja duas vezes mais largo do que aquele outro que está fora do quadrado. Depois, divida cada um dos lados BC e CD em quatro partes iguais. Em seguida, utilizando a régua, colocada 19 no centro A, mova-a na direção em que se queira para as divisões, ou pontos que foram feitos, traçando linhas abaixo dos ditos intervalos a partir da primeira e da segunda linha em direção ao centro A. Novamente, divida cada uma dessas quatro partes em outras três igualmente, traçando outras linhas, tal como fizemos anteriormente, isto é, partindo de BC e CD, indo em direção ao centro A sem, entretanto, atravessar o intervalo menor. Assim, as partes do lado BC estarão divididas em 12 partes e, também, 12 serão as divisões do lado CD. Em seguida, escreva números nos espaços dos intervalos maiores, começando pelo ponto B e D até chegar à extremidade C, distribuindo-os na seguinte ordem: 3, 6, 9, 12, de tal modo que 12 de um lado e de outro lado seja o ponto C (...). Construa depois duas pínulas, furadas como normalmente se usa e fixe-as no instrumento, uma colocada próxima a A e outra a D, igualmente distantes. Em seguida, fixe um fio de seda no centro A com um pequeno peso na outra ponta de comprimento3 conveniente, isto é, em relação ao tamanho da circunferência, tal como pode-se ver no desenho” (Bartoli, 1546, p. 8r). Figura 5: Quadrante num quarto de círculo (Bartoli, 1546, p. 8r) 3 Este fio será doravante chamado fio de prumo (nota do tradutor). 20 2.2 “Como medir alturas com o mesmo quadrante, sem utilizar-se da sombra, mas somente com os raios vistos (cap. X): (...) Volte a pínula da esquerda do quadrante, A, em direção ao ponto da altura que se quer medir e coloque o olho na outra pínula, D. Levante ou abaixe o quadrante (deixando o fio de prumo livre) até que a mirada pelas duas pínulas coincida. Feito isto, veja onde o fio de prumo cai. Ele, necessariamente, cairá, ou no lado BC, ou no ângulo C, ou no lado CD, dependendo do lugar onde você estiver em relação à base da torre que se quer medir. Digamos que o fio caia no lado CD, no ponto E, e que a altura estendida da torre a ser medida seja GF. E aqui é necessário deixar suspenso um fio de prumo cujo comprimento DH é a distância do olho até o chão. Feito isto, deve-se encontrar a que distância estamos da torre por meio de DH, que é tomada na mesma proporção que tem as partes DE com 12, isto é, com todo o lado do quadrante. Por exemplo, se DE for 6 partes, ele será metade de 12. Assim, agregase a metade desta DH, ou seja, HI, ao longo de GH em linha reta (...). Pode-se notar que a linha reta GI é menor do que a altura GF naquela proporção que é encontrada entre as partes DE e o lado AD. Por exemplo, se GI fosse 9 passos, multiplicando 9 por 12, ter-se-ia 108, o qual dividido por 6, isto é, DE, restaria 18 passos (...). Mas quando o fio de prumo cai no ponto C, isto é no ângulo do ponto do quadrante, deixando o fio de prumo cair do olho até o chão, que será DK (...), em tal caso, GL será igual a GF. Assim, se medirmos GL teremos a altura GF (...). Mas quando o fio cair no lado BC, como no exemplo, no ponto E, tomando outro fio com comprimento que vai do olho ao chão DM, é preciso que se opere de maneira contrária ao primeiro modo. Assim, como fizemos anteriormente, o lado AB corresponde ao lado BE e MN à linha de prumo MD.. Se BE for 6 de todo o lado do quadrante que é 12, diremos que MN deverá ser duas vezes MD (...) Desse modo, se GN tiver 36 passos, multiplicando-se 36 por 6, que são as partes de BE, encontrar-se-á 216. Este número dividido por 12 dará 18, que será a altura GF (...)” (Bartoli, 1546, p. 19v-20v). 21 Figura 6: Ilustração de como usar o quadrante num quarto de círculo (Bartoli, 1546, p. 20r) 3 Báculo 3.1 “Como é possível construir outro instrumento para poder medir as distâncias, tal como de uma linha reta, da qual não é possível se aproximar (cap. VII): Para construir um báculo, que assim os latinos nomeiam este instrumento, prepare uma haste de espessura quadrada de madeira bem dura (...) de comprimento e espessura que se quiser, mas pedirei que tenha, pelo menos, duas braças de comprimento e de grossura moderada, como mostra o desenho. Depois, divida esta haste em algumas partes iguais, dez, oito ou seis, conforme a comodidade e chame esta haste AB. Construa, em seguida, outra haste, semelhante a esta, mas de comprimento igual a uma das partes da haste maior AB, de largura tal que possa ser feito um orifício quadrado nele de modo que ele possa se mover, convenientemente, ao longo da haste AB pelo ponto E, formando com E sempre um ângulo reto. Chame esta haste menor CD, como pode-se ver no desenho” (Bartoli, 1546, p. 5r). 22 Figura 7: Báculo (Bartoli, 1546, p. 5r) 3.2 “[Como medir utilizando o báculo]: (...) Pode-se chamar esta haste maior, AB, de bastão e a haste menor, CD, de transversal. Se nós queremos medir uma linha colocada sobre um plano transversalmente, e da qual não podemos nos aproximar, procederemos deste modo com este instrumento: seja FG a linha estendida transversalmente sobre o plano. Nós moveremos a transversal CD e a fixaremos numa das divisões do bastão AB arbitrariamente, como, por exemplo, diremos de tê-la fixada na segunda divisão, considerando-se que movemos de A em direção a B. Colocamos, em seguida, o olho em A e abaixaremos o bastão em direção à linha reta FG que se quer medir, aplicando a extremidade da transversal à extremidade desta linha que se deseja medir, isto é, o lado direito D à direita da linha (ponto G) e o lado esquerdo C à esquerda da linha (ponto F). Depois, nos aproximamos ou nos afastamos da linha a ser medida de tal modo que a mirada do olho, colocado no ponto A, passando pela extremidade CD da transversal, forme com a transversal e as extremidades da linha ser medida dois raios de visão: ACF e ADG. Feito isto, marque o lugar onde está fazendo a operação com a letra H. Depois, afastando-se deste local, mova a transversal para outra divisão do bastão em direção a B, isto é, até a terceira divisão a partir de A de modo que, estando fixa a transversal CD na terceira divisão, colocando o olho novamente em A, veja-se novamente por CD os extremos FG da linha, tal como na primeira operação e, feito isto, marque o ponto onde tu estás com a letra I. Meça depois o espaço (spacio) que está abaixo, HI, que terá a mesma medida de FG. Para maior clareza apresentamos o desenho abaixo” (Bartoli, 1546, p. 11r). 23 Figura 8: Ilustração de como utilizar o báculo (Bartoli, 1546, p. 11r) Estrutura do minicurso Como já discorremos brevemente acima, a proposta aqui delineada parte da ideia de que a história é um potencial recurso para elaboração de propostas didáticas que contemplam a formação do conceito matemático, buscando no processo histórico o movimento do pensamento no contexto da formação deste conceito. Para tanto, buscamos neste minicurso discutir os conhecimentos matemáticos mobilizados, bem como refletir sobre seu uso e produção na história, na construção e na utilização de um dos instrumentos, o quadrante de um quarto de círculo. No primeiro encontro, será feita uma introdução, contextualizando historicamente o documento que será utilizado na proposta. Em seguida, serão 24 fornecidas uma cópia do texto original, contendo dois excertos relativos ao quadrante num quarto de círculo (vide tópicos 2.1 e 2.2 acima). Estes dois excertos, que trazem orientações para construção e uso do instrumento, foram traduzidos do toscano do século XVI para a língua portuguesa. Além destas instruções, serão também fornecidas duas imagens, tal como consta na obra original, que podem contribuir tanto para a compreensão do instrumento, suas partes e seu uso, quanto para a maneira pela qual o autor se expressa. Aos participantes do minicurso serão fornecidos materiais (papel cartão, barbante, fita adesiva, tesoura, clips, compasso etc.) para que possam projetar e construir o instrumento. Régua e esquadro poderão ser também construídos como instrumentos auxiliares. Entretanto, não será permitido o uso de réguas graduadas, transferidores e outros recursos modernos, visto que no século XVI, os padrões de medida e as escalas tais como compreendemos hodiernamente ainda não se encontravam estabelecidos. No segundo encontro do minicurso, os participantes poderão finalizar a construção do instrumento e realizar medições. Propomos ao final uma discussão sobre os conhecimentos matemáticos envolvidos tanto na construção, quanto na utilização do instrumento, bem como sobre a articulação entre a sua construção e seu uso. A hipótese que norteia esta atividade está assentada na ideia de que a mobilização de conhecimentos matemáticos e extra-matemáticos articulados na proposta permitirá ao indivíduo refletir sobre a produção do conhecimento sintetizado no próprio instrumento, podendo compor uma abordagem para o ensino que vai além do saber usar o instrumento. A exploração pode ocorrer em diversos níveis do ensino conforme o aprofundamento das relações matemáticas e históricas. Por esse motivo, o minicurso é destinado tanto aos licenciandos em matemática ou áreas afins, como aos professores do ensino fundamental, médio e superior. 25 Atividade didática e tratamento didático do documento Com objetivo geral de construir uma abordagem didática, capaz de oferecer uma aprendizagem interdisciplinar, a partir de documentos históricos que envolvem também conceitos matemáticos, selecionamos o tratado Del modo di misurare, de Cosimo Bartoli. Tal escolha já foi intencional, pois o grupo HEEMa buscou selecionar um documento que: • envolvesse conhecimento matemático; • permitisse o desenvolvimento de conceitos com estudantes da Escola Básica; e • permitisse a apreensão da produção de conhecimento, enquanto processo, que é sintetizado nos instrumentos de medida. O primeiro tratamento didático dado ao documento foi de caráter estrutural com o objetivo de elaborar um material que compusesse uma proposta a ser desenvolvida com os estudantes. Esse tratamento levou em conta o objetivo, o público-alvo e o tempo disponibilizado para desenvolvimento. 1 Recorte, tradução e organização geral do texto Para tornar o conteúdo do documento acessível, realizamos uma tradução para língua portuguesa, do toscano do século XVI, das instruções de construção dos instrumentos selecionados, bem como das orientações de cálculos a serem realizados para finalizar a medida. Escolhemos da obra algumas imagens em que os instrumentos aparecem. Selecionamos, além da imagem que acompanha as instruções para a construção de cada instrumento, outra que ilustra o processo de medida utilizando o instrumento, por exemplo, para medir a altura de um castelo, a distância entre dois pontos em um terreno montanhoso, etc. Dos aspectos internos do texto, o primeiro tratamento referiu-se aos termos, às expressões ou mesmo aos nomes de objetos que podem impedir o leitor 26 de compreender minimamente o documento. Citamos o caso da pínula. Sem alterar o texto, acrescentamos em uma nota de rodapé uma breve explicação sobre ela, bem como seu uso. Porém, se essa atividade for desenvolvida com alunos da escola básica, ou mesmo em cursos de formação de professores, cuja disponibilidade permita a consulta aos termos, talvez essa nota de rodapé não seja necessária. O que salientamos nesse momento é que devemos tratar o texto de acordo com os propósitos didáticos sem invadir o texto. Assim, o estudante pode, minimamente, apreender que as formas de expressão não são fixas. A língua e as formas de expressão de um conhecimento variam e mostram aspectos do caráter histórico da produção de conhecimento. Além disso, a organização das ideias no que se refere aos conceitos matemáticos não é propriamente didática, como em livros didáticos. Ela reflete um contexto histórico, social e cultural que permite ao estudante identificar a necessidade do conhecimento matemático, bem como sua relação com outros conhecimentos, como das artes, da Física, da Química, da linguagem, etc., como, por exemplo, os refletidos nas imagens, no material para confecção do instrumento, nos elementos discursivos, etc. 2 A intencionalidade O segundo tratamento refere-se às intencionalidades possíveis na construção de uma proposta didática. Salientamos que a primeira delas foi a potencialidade que o documento possui na interação entre diferentes conceitos matemáticos (como divisão de segmentos, triangularização, proporcionalidade, quadrilátero, medida, semelhança de triângulos, mediatriz, bissetriz, precisão, distâncias, etc). A segunda se refere à forma de expressão dos conceitos. Por não ser um livro didático, não há explicitação da palavra-termo (Davýdov, 1988) como atualmente nos referimos a um conceito. Por exemplo, ao invés de dizer trace a 27 mediatriz do segmento AB , o documento apresenta “divida novamente [o comprimento] em duas partes iguais”. Isso permite ao aluno utilizar seus conhecimentos, pelo significado do conceito, ou seja, que ele pode utilizar ou não a mediatriz. Um estudante que não souber dividir um segmento ao meio por meio da mediatriz, poderá utilizar outros meios. Podemos dizer que essa é uma das intencionalidades do uso desse documento. O professor pode colocar como uma situação-problema questões do tipo “como dividir segmentos em partes iguais?”, visto que o documento apresenta divisões em doze partes, em três partes e em duas partes. A partir daí, o próprio contexto vai justificar a necessidade de precisão nessas divisões, pois, caso contrário, as medidas das distâncias com o instrumento não refletirão a realidade. Desse modo, no documento escolhido, não é necessário que os estudantes tenham conhecimento matemático prévio, mas caso o tenham, o documento oferece uma oportunidade de mobilizá-lo pelo seu conteúdo e não pela indicação do professor, como se ele pedisse: “trace a mediatriz”. Com isso, o professor pode avaliar se o estudante se apropriou, de fato, do conceito e não somente do “modo didático de uso de um objeto matemático”. A outra intencionalidade refere-se aos conceitos matemáticos historicamente constituídos. Hoje a maioria dos conceitos matemáticos é abordada no sistema de ensino a partir de uma definição. Por exemplo, primeiramente define-se mediatriz, depois se ensina a traçá-la (gerá-la) e pronto. Ora, o fato de a mediatriz dividir o segmento em duas partes iguais pode até ser esquecido pelo ensino baseado na formalização dos conceitos matemáticos. Isso quer dizer que o texto escolhido não visa uma abordagem da matemática como objeto, mas como ferramenta, embora a abordagem didática possa ir além desse aspecto. O leitor, professor, pode estar pensando que o conhecimento de mediatriz nem está presente atualmente no ensino, pois a disciplina desenho geométrico, responsável para abordar esses entes matemáticos nem existe mais na maioria das 28 escolas públicas nacionais. Além disso, poderíamos até concluir que o aluno dividiria o segmento usando régua graduada. Eis aqui um dos pontos principais da nossa escolha deste documento, ele oferece a oportunidade de desenvolver o conceito de unidade de medida. Como já mencionamos anteriormente, no século XVI, os padrões de medida e as escalas, tais como compreendemos atualmente, ainda não se encontravam estabelecidos. Desse modo, por meio deste documento, busca-se colocar o estudante numa relação com seu antepassado, compreendendo-o como sujeito histórico, permitindo que ele se desenvolva não só como herdeiro do conhecimento produzido, mas também como capaz de reproduzir no pensamento os aspectos históricos de produção do conhecimento humano. O termo reprodução aqui não significa cópia idêntica, mas a capacidade humana, como sintetiza Rubinstein (1976) “Tal como a retenção não é apenas uma conservação passiva, muito menos a reprodução é uma reprodução mecânica do que foi inculcado ou aprendido. No processo de reprodução, aquilo que se deve reproduzir não se reproduz apenas, mas forma-se de certo modo. Até o próprio conteúdo significativo se forma através da formulação lingüística. O pensar está contido na reprodução, capta o conteúdo de uma forma mais exata, generaliza-o, sistematiza-o, aperfeiçoa-o e reconstrói-o. Por isso a reprodução do reproduzido é a essência da própria reprodução como resultado da sua elaboração ideológica, como aspecto essencial da reprodução.” (p.47) A elaboração, no pensamento, da unidade de medida é substancial para a compreensão do controle que o homem busca na relação com o meio. Embora a abordagem aqui seja a da distância, podemos discutir “unidade de medida” de diferentes grandezas. 29 Além disso, atentamos para o documento que traz uma unidade medida, não usual no nosso contexto escolar atual, a braça (braccia), por exemplo. Embora o documento faça a indicação “pelo menos uma braça”, isso não quer dizer que, necessariamente, a medida seja uma braça e nem que tenhamos uma medida conhecida e padronizada, pois a unidade de medida, bem como o resultado da medição dependerá do tamanho do material inicialmente escolhido. Caso a escolha didática seja que todos os estudantes tenham o mesmo tamanho de material para construção do instrumento, como também a mesma distância para medir, pode-se comparar os resultados e discutir a precisão. Caso contrário, pode-se abordar a conversão de unidades de medida para a comparação de resultados, como também discutir a necessidade de padronização quando se trata da comunicação. 3. Desenvolvimento: “quadrante num quarto de círculo” A atividade que propomos neste minicurso será a construção e o uso do quadrante num quarto de círculo. Para desenvolver esta atividade utilizaremos material alternativo para a confecção do instrumento. Estes materiais são simples, tais como papel cartão, barbante, tesoura, compasso, clips, canudo de festa, cola, uma ripa de madeira para traçar linhas retas. Inicialmente é preciso escolher os materiais adequados e esboçar um projeto e/ou um protótipo antes de iniciar a confecção. Em ambos os casos os estudantes podem mobilizar a relação do material com as ações de medição. Os estudantes devem elaborar um roteiro de ações tendo por base a tradução das instruções para a construção e o uso do instrumento “quadrante num quarto de círculo”. Este roteiro deve ter por base o texto traduzido e as duas imagens que o acompanham, considerando-se, primeiro, a construção do instrumento, depois a medição de uma distância previamente determinada (como a altura de um prédio) e, em seguida, a obtenção numérica da medida. 30 3.1 A construção do instrumento É na construção que surgem as primeiras dúvidas, tanto no que diz respeito à compreensão do texto, seus termos e formas de expressão, quanto aos conceitos matemáticos mobilizados. Os conceitos matemáticos mobilizados na construção dos instrumentos nas ocasiões em que a atividade foi aplicada foram: mediatriz, bissetriz, teorema de Tales, paralelismo e perpendicularismo entre retas, propriedades de quadrado e circunferência, propriedades do triângulo retângulo. Isso não quer dizer que todos os estudantes e professores mobilizarão os conceitos matemáticos. Alguns deles poderão utilizar outros artifícios, como dobrar o fio de barbante para obter partes iguais por exemplo. Para traçar paralelas pode ser confeccionado instrumentos auxiliares “tipo esquadro” de papel ou outro material. Para esta construção não é necessário que o esquadro tenha os ângulos, 45º, 30º, 60º ou 90º, ou mesmo seja um triângulo, como são conhecidos os esquadros comerciais. O uso para os traçados é um dos aspectos do esquadro, usado no desenho geométrico. Relatamos a seguir algumas ações observadas na relação da leitura do documento pelos indivíduos e a confecção do instrumento para que sirvam de guia para a aplicação da atividade. Um primeiro comportamento indica a separação do texto com traços para definir etapas da construção e compreender melhor o documento. Um segundo, refere-se a ler o documento e reelaborar uma sequência de ações para a construção. Uma terceira é ir fazendo as ações indicadas no documento no momento da leitura. Alguns estudantes podem manifestar que, ao reelaborar as ações, a confecção torna-se mais fácil. Além disso, um rascunho parece auxiliar muito a confecção do instrumento. Outros estudantes podem relatar que chegaram a construir mais do que um instrumento, devido à dificuldade de compreensão de certos trechos do documento. Encaminharemos, assim, o leitor a uma possível sequência de ações para a construção do quadrante num quarto de círculo, acompanhando o documento. Para tanto, reproduziremos partes do texto, 31 comentaremos como as ações podem ser desenvolvidas pelos indivíduos que construíram o instrumento. Indicaremos possíveis caminhos e evidenciaremos o conhecimento matemático que pode ser mobilizado. Tome uma peça de madeira firme e bem polida... A escolha do material é relevante quando levamos em conta o uso do instrumento. Por esse motivo, não basta mudarmos de madeira para outro material simplesmente. É importante termos em conta a que se destina o instrumento. Lembremos que para os artesãos do século XVI o instrumento tinha finalidade prática. Embora ele fosse ocasionalmente utilizado para ensinar matemática, não era, entretanto, um artefato ou instrumento didático. Desse modo, era necessário considerar a durabilidade, maleabilidade e leveza do material a ser utilizado na sua construção. Assim, os adjetivos “firme” e “bem polida” indicam qualidades necessárias para que o instrumento cumpra seu papel de forma eficaz. A dureza do material tem que permitir à pessoa que realizará a medição, segurar o instrumento de uma determinada maneira, de modo que ele se mantenha firme com a “mirada” alinhada e não se deforme. O polimento é indicativo de dois aspectos, primeiro para que os traços sejam precisos e, segundo, para que o fio que segura o peso não se curve ou se distancie do instrumento dificultando a precisão da medida. Observe que a princípio não se define tamanho e forma da madeira. Alguns estudantes podem usar madeira para construir o instrumento, com base no texto e na figura, fazendo o corte na forma do setor circular reto. Ou ainda, podem trabalhar com papelão, seguindo os traçados orientados pelo texto. … Desenhe nela a quarta parte de um círculo de tal modo que as duas linhas, que partem do centro A do círculo, formem entre si um ângulo reto, tal como mostra a figura ABCD abaixo... Uma possível ação é mobilizar conhecimentos sobre construção 32 geométrica de um ângulo reto com compasso e depois desenhar o arco correspondente, que, se feito com compasso, é delimitado pela abertura deste. Outras possibilidades são: a) levantar uma perpendicular a partir do centro de uma circunferência; b) traçar a mediatriz a partir das extremidades de um diâmetro (como o diâmetro traçado DE ); ou c) traçar a bissetriz do ângulo raso ( ). Com isso, pode-se escolher qualquer um dos quatro setores para prosseguir a construção. Observemos que, embora os objetos matemáticos mediatriz e bissetriz sejam distintos, nesse caso eles produzem o mesmo efeito, ou seja, tanto a mediatriz como a bissetriz permitem obter o setor circular reto. Acima apresentamos construções mobilizando conceitos matemáticos e usando compasso. Isso não quer dizer que essas sejam as únicas possibilidades. Pode-se usar o barbante para traçar circunferências e arcos, dobraduras em um papel fino para obtenção dos setores com posterior colagem ou transferência por sobreposição no papelão (ou na madeira) seguido de marcação de quatro pontos 33 que definem as retas perpendiculares. … Em seguida, divida esta quarta parte de círculo com uma linha reta que parte do centro A e chega em C, ponto que está situado no meio do arco... Para obtenção do ponto C, pode-se: a) traçar a mediatriz de HJ ; ^ b) traçar a bissetriz de HAJ ; ou c) levantar duas perpendiculares, uma pelo ponto J em relação ao segmento AJ e outra por H em relação ao segmento AH no semi-espaço formado por H, A e J que contém o arco HJ , ou seja, formar um quadrado cuja intersecção de sua diagonal com o arco é o ponto C. Observemos mais uma vez a diversidade de construções e maneiras (acrescentando ainda a possibilidade do uso de dobraduras) que permite encontrar o ponto C que divide o arco HJ ao meio. … Depois, com uma régua colocada no ponto C, trace duas linhas CB e CD de modo a obter um quadrado ABCD dividido no meio pelo diâmetro AC... Essa instrução não diz diretamente que CB deva ser paralelo à AD e CD paralelo à AB . Porém, se o aprendiz conhecer as propriedades do quadrado saberá dessa necessidade. Além disso, não é comum no sistema de ensino construir um quadrado dada sua diagonal. Para traçar as paralelas, pode-se então usar um esquadro (que pode ser 34 fabricado pelos próprios estudantes), que, sobreposto ao segmento AJ forme um ângulo reto com uma régua sobreposta ao segmento AH , de modo a poder deslizar até o ponto C. Com isso, traça-se a reta paralela ao segmento AJ passando por C. De forma análoga, traçase a reta paralela ao AH que passa por C. Ou transporta-se, com o compasso, o comprimento do lado do quadrado traçado primeiramente (por exemplo, o lado DC ) para obter o outro, a partir do ponto A. Outra construção possível é por meio de traçados sem o uso de esquadro. O objetivo é traçar perpendiculares em relação aos segmentos AH e AJ que passem por C. Por meio de uma circunferência de centro C é possível localizar os pontos M e K na reta AH e P e Q em AJ de modo que MK e PQ sejam suas cordas. Toda perpendicular que passa pelo ponto médio da corda passa necessariamente circunferência. pelo centro da 35 Tal propriedade relaciona-se, nesse aspecto, com a da mediatriz, que, no nosso caso, CM é congruente ao CK , ao CP e ao CQ , visto que é raio da circunferência. Estudantes de mais tenra idade podem usar dobraduras. Por sobreposição de AJ no ponto C, de modo a manter a sobreposição de AH sobe ela mesma, é possível encontrar o ponto D. Analogamente o ponto B. … Em seguida, trace duas outras duas linhas paralelas a BC e CD na parte interna do quadrado, isto é, na parte que vai em direção ao centro A. Estas linhas paralelas deverão ser traçadas de tal modo que o intervalo que está mais próximo do centro A seja duas vezes mais largo do que aquele outro que está fora do quadrado... Para traçar essas linhas que servirão para o desenho das escalas, pode-se, 36 com o compasso, transferir o comprimento BJ , para a semi-reta AJ , a partir de A, obtendo assim o ponto I. A partir deste, é possível fazer novamente a mesma transferência do mesmo comprimento de modo que o comprimento AR seja o dobro de BJ . Não é necessário fazer o mesmo com a semi-reta AH , pois pode-se transferir o comprimento AR com o compasso para obter o ponto S. O compasso é um instrumento utilizado em geometria que serve para marcar um segmento numa reta com comprimento igual a outro segmento dado. Podemos dizer que, além de servir para desenhar arcos e circunferências, o compasso sempre foi utilizado para transferir tamanhos de segmentos. Isso é notório inclusive em Elementos de Euclides (ca. 300 aC). Se atentarmos para a organização e a sequência das proposições (isto é, teoremas) do Livro I de Elementos, notaremos que as primeiras três estão relacionadas ao “transporte” de segmentos (Euclides, 2009). Podemos dizer que a geometria de Euclides foi construída tendo como elementos segmentos e ângulos. O círculo, cujo traçado é garantido pelo terceiro postulado, isto é, que “é possível traçar um círculo com cada centro e qualquer distância” (no sentido geral de distanciamento), vincula-se diretamente ao segmento de reta e não ao ângulo4. Desse modo, por meio do traçado do círculo, os tamanhos dos segmentos são transportados de uma reta à outra, dispensando-se assim a régua graduada. É nesse sentido que devemos entender o significado de congruência, ou seja, dois segmentos são congruentes quando “coincidem-se”, isto é, quando um tamanho de segmento é transportado com a abertura do compasso Não aprofundaremos aqui sobre o transporte do ângulo, cujo papel cabe ao triângulo, por exceder os objetivos deste minicurso. 4 37 sobre outro segmento coincidindo-se com ele, em outros termos, quando “sobrepõe-se” um sobre o outro. Cabe observar que, a partir do século XVI, surgiram muitas traduções de Elementos em vernáculo. Além disso, foram publicadas edições comentadas, glosadas e resumos. E, muitas vezes, parte da obra foi incorporada a outros tratados, tais como no quinto livro de Del modo di misurare de Cosimo Bartoli. Como já mencionamos anteriormente, Bartoli procurou fornecer demonstrações para fundamentar a medição utilizando os instrumentos. Essas demonstrações têm por base os axiomas, os postulados, as definições e as proposições do Livro I de Elementos (Bartoli, 1564, p. 108v-125v). Já comentamos procedimentos para o traçado de retas paralelas. Nesse momento traçam-se as duas paralelas à AD e à AB passando pelos pontos R e S respectivamente. No texto não consta o tamanho certo para o traçado da paralela que fica entre o lado BC do quadrado e a paralela, que acabamos de traçar, que passa pelo ponto R. … Depois, divida cada um dos lados BC e CD em quatro partes iguais... 38 Para fazer as divisões no lado CD do quadrado, pode-se traçar a mediatriz do segmento DC , obtendo o ponto O, nesse segmento, e, posteriormente, traçar duas outras mediatrizes. Uma para o segmento DO e outra para OC , obtendo, respectivamente, os pontos N e P. Para fazermos divisões em 2, 4, 16..., 2n partes iguais de um segmento podemos usar mediatrizes, embora a operação se torne cansativa a partir de certo número de divisões. Comentaremos adiante algo mais sobre divisão de segmentos em partes iguais. … Em seguida, utilizando a régua, colocada no centro A, mova-a na direção em que se queira para as divisões, ou pontos que foram feitos, traçando linhas abaixo dos ditos intervalos a partir da primeira e da segunda linha em direção ao centro A... Esse passo da construção refere-se à construção da escala do instrumento. Note que após ter destacado os pontos N, O e P o traçado para a escala não é perpendicular às três paralelas horizontais, mas alinhadas com o ponto A. Destacamos aqui essa observação em virtude da possibilidade de ocorrência desse tipo de erro pode ocorrer. Por sua vez, seria interessante discutir a influência que esse erro teria no que diz respeito à medida. 39 Observa-se então que os segmentos NQ , OT e PU não são perpendiculares às três paralelas mencionadas anteriormente. O mesmo processo deve ser feito em relação ao lado BC do quadrado ABCD. Lembremos, entretanto, que o comprimento do segmento DN pode ser reproduzido no lado BC do quadrado sem a necessidade de traçar as mediatrizes do segmento para dividi-lo em quatro partes iguais. Para tanto, basta utilizar o compasso para transferir o tamanho dos segmentos encontrados anteriormente no lado CD . … Novamente, divida cada uma dessas quatro partes em outras três igualmente, traçando outras linhas, tal como fizemos anteriormente, isto é, partindo de BC e CD, indo em direção ao centro A sem, entretanto, atravessar o intervalo menor... Observe que para as divisões em 3 partes iguais necessita-se de outro processo, ou seja, não é possível utilizarmos a mediatriz, pela sua própria caracterização. Mobilizamos, nesse momento, o conceito desenvolvido do nomeado Teorema de Tales. Lembremos que se trata das partes proporcionais formadas por duas transversais em um conjunto de retas paralelas. Consideramos, evitando poluir o desenho, a reta que contém o lado AD 40 do quadrado. Usando um comprimento qualquer, ou seja, qualquer abertura do compasso, a partir de D marcamos E, F e G, de modo a manter a congruência e dos segmentos DE , EF e FG e sua contiguidade. Traçamos uma reta que passa pelos pontos G e N. A partir dessa reta, com auxílio de esquadro e régua, é possível traçar duas retas paralelas à GN passando por F e E respectivamente. Essas retas interceptam o lado DC do quadrado nos pontos F1 e E1, dividindo, portanto, o segmento DN em três partes iguais. A fim de não poluir nossa imagem, apagamos as paralelas que serviram para dividir o segmento DN em três partes, para prosseguirmos a construção. Em seguida, alinha-se com a régua os pontos A e E1, posteriormente A e F1, traçando um segmento de reta transversal às paralelas, que constituirão a organização da segunda escala do instrumento. O texto orienta para que não atravessemos o intervalo menor (intervalo este que, na nossa ilustração, tem a mesma dimensão). Em figura posterior o leitor poderá visualizar os traçados das escalas em as retas suportes da construção. 41 Após realizar todo esse processo em uma das quatro divisões do lado DC do quadrado, não será necessário repeti-lo para o lado BC , bastando transferir com o compasso o tamanho DE1 , formando segmentos contíguos nos lados BC DC e . Ilustramos o resultado da construção da escala, para que o leitor observe que tanto os segmentos maiores quanto os menores que compõem a escala não são paralelos entre si. O fato de não atravessar o intervalo menor não tem implicações que possam conduzir a algum erro seja na construção do instrumento, seja no seu uso. Entretanto, na prática, auxilia a visualização no momento de captar o dado no instrumento durante o processo de medição. 42 ...Assim, as partes do lado BC estarão divididas em 12 partes e, também, 12 serão as divisões do lado CD... Note que dividimos, primeiramente, o lado BC do quadrado em quatro partes iguais e depois cada uma dessas partes foi dividida em três partes iguais. Qual motivo levou o autor a fazer essa opção ao invés de dividir de uma só vez o lado BC em 12 partes iguais? Uma hipótese pode estar na operacionalidade dos tamanhos escolhidos, ou mesmo um modo de fazer. Outra possibilidade provavelmente está relacionada com a Astronomia, Cartografia e a Geografia. No século XVI, a Astronomia afigurava-se como conhecimento observacional, porém, essencialmente matemático. Assim, os instrumentos de medida faziam parte de seu corpo de conhecimentos e grande parte deles era utilizada não só para registrar as posições dos corpos celestes, mas também para finalidades mais práticas em diversos campos de atividade, tais como na arquitetura, agrimensura, navegação, cartografia, artilharia etc. (Camerota, 1998; Bennett, 1998). Para observar os céus, prática adotada também por navegadores e cartógrafos, os astrônomos tradicionalmente utilizavam-se do sistema sexagesimal de numeração. O que faz do número 60 um número muito especial. Se levarmos em consideração que este número tem muito divisores (1, 2, 3, 4, 5, 6, 10, 12, 15, 20, 30, 60) de modo que pode ser decomposto num produto de fatores, facilitando assim os cálculos, a divisão em doze partes iguais, em que cada parte é subdividida em 5 partes, faz bastante sentido. Note que as escalas dos instrumentos, principalmente, as do quadrante geométrico e do quadrante num quarto de círculo possuem, respectivamente, 60 e 36 divisões. Seria interessante se o estudante percebesse o que significam esses números de divisões, interagindo com o documento de modo a criar novas construções, como também hipóteses. Não nos referimos somente hipóteses na construção, mas também hipóteses para pesquisas. Temos acompanhado com 43 professores e estudantes que construíram esse instrumento alguns questionamentos, como: por que dividir em 12 partes? Poderia ser 13? 15? 24? 60? Figura 9: Frontispício da Geographia de Petrus Apianus: o báculo era utilizado para registrar as posições dos corpos celestes e para finalidades mais práticas, tais como medir distâncias e alturas de construções (Apianus, 1533) … Em seguida, escreva números nos espaços dos intervalos maiores, começando pelo ponto B e D até chegar à extremidade C, distribuindo-os na seguinte ordem: 3, 6, 9, 12, de tal modo que 12 de um lado e de outro lado seja o ponto C... Talvez nesse momento poderá surgir algumas questões que antecipam a próxima atividade. Questões mais específicas, tais como: por que ter duas escalas? Como medir distância com esse instrumento? Ou mesmo questões de caráter mais geral, voltadas à produção do conhecimento, à estrutura do instrumento, ao seu contexto histórico, etc. Para a aprendizagem, questões como essas são 44 propiciadoras de gerar motivos (Leontiev, 1983) capazes de mobilizar o sujeito a ações cognitivas, que possibilitam a apropriação dos conceitos imbricados e sintetizados no instrumento. … Construa depois duas pínulas, furadas como normalmente se usa e fixe-as no instrumento, uma colocada próxima a A e outra a D, igualmente distantes... Percebe-se pelo texto que o uso de pínulas é tácito para o interlocutor a que se dirige o texto, o praticante de matemática do século XVI. Compreende-se que a distância da fixação delas em relação aos pontos é mencionada no texto. As pínulas devem ficar alinhadas na “mirada” daquilo que se desejava medir (altura, comprimento, largura). A ideia básica por trás do alinhamento das pínulas não era apenas geométrica, ou seja, que dois pontos (as duas pínulas) determinam uma reta. Ela estava fundamentada nos estudos de óptica, ou de perspectiva, como era conhecida no século XVI (Saito, 2008b). Essa seria uma boa oportunidade para apresentar aos estudantes que o que, de fato, o quadrante num quarto de círculo “mede” é a sombra projetada pelo objeto que se quer medir, como abordaremos mais adiante na atividade de medição. 45 … Em seguida, fixe um fio de seda no centro A com um pequeno peso na outra ponta de comprimento conveniente, isto é, em relação ao tamanho da circunferência, tal como pode-se ver no desenho... A relação do comprimento do fio é determinada pelo instrumento, ou seja, o comprimento tem que ultrapassar o instrumento de modo que se sobreponha às linhas da escala. Uma primeira ideia da adequação do material do fio refere-se à resistência ao peso colocado numa das extremidades, outra, à capacidade de manter-se esticado, sem formar ondulações que prejudicariam a precisão da medida e, ainda outra, relacionada à espessura, de modo que, ao sobrepor-se aos riscos formadores da escala, facilite a leitura. 3.2. A medição … Como medir alturas com o mesmo quadrante, sem utilizar-se da sombra, mas somente com os raios vistos (cap. X):... A indicação da expressão “sem utilizar-se da sombra” para iniciar os procedimentos para a medição mostra-nos qual é o princípio de funcionamento do quadrante num quarto de círculo. Como Bartoli observa, o quadrante num quarto de círculo é um instrumento muito útil para se medir a altura de um prédio em dias nublados. Isso porque o seu princípio de funcionamento é a sombra projetada pelo prédio em dias ensolarados. É na relação entre o tamanho da sombra e a posição do instrumento e, portanto, a sua medida, que nos fornece, por meio de um simples cálculo, a medida da altura do prédio. A figura abaixo ilustra bem esse ponto. Em dias ensolarados, os raios do Sol penetram através das pínulas marcando no solo um ponto luminoso. Se o Sol estiver a uma altura de 45º, o ponto luminoso cairá no ponto L e o fio de prumo do instrumento, em C. É fácil constatar que LG será exatamente a altura do GF . 46 A partir daí, podemos inferir que quanto mais alto o Sol, mais próximo da base do prédio cairá o ponto luminoso e, quanto mais baixo, mais distante. Em dias nublados, os raios do Sol são substituídos pelos “raios de visão”. Daí a necessidade do alinhamento da mirada através das pínulas. Figura 10: O quadrante num quarto de círculo e a posição relativa do Sol (Bartoli, 1543, 15v) Podemos inferir que um instrumento baseado na sombra, como o gnomon, poderia dificultar o processo de medição quando, por exemplo, a sombra do pico da torre estivesse sobre uma pedra. Além disso, não seria possível medir, por exemplo, a altura de uma janela, ou de um desenho da torre em relação ao solo sem incluir outros artifícios. … Volte a pínula da esquerda do quadrante, A, em direção ao ponto da altura que se quer medir e coloque o olho na outra pínula, D. Levante ou abaixe o quadrante (deixando o fio de prumo livre) até que a mirada pelas duas pínulas coincida... 47 Essa parte do texto relaciona a forma que o indivíduo tem que se posicionar. Algumas dificuldades podem surgir em relação ao posicionamento do instrumento. Posicionar-se não é uma tarefa tão simples, pois a ilustração na obra não traz a figura do olho ou do observador, mas somente o instrumento. O olho deve estar posicionado de tal forma que permita, por meio dos orifícios das pínulas, “ver” o topo do objeto cuja altura que se quer medir. Observando atentamente a ilustração da medição da torre com o uso do quadrante de um quarto de círculo, interpretamos a necessidade de colocar o olho encostado no instrumento, para que forme uma linha reta, perpendicular ao chão, indicativa da altura do indivíduo que mede. Tal altura refere-se à distância do olho ao solo. 48 … Feito isto, veja onde o fio de prumo cai. Ele, necessariamente, cairá, ou no lado BC, ou no ângulo C, ou no lado CD, dependendo do lugar onde você estiver em relação à base da torre que se quer medir... Nota-se, a partir dessa observação do autor, que, dependendo do quadrante em que o fio de prumo estiver localizado, o processo de obtenção da medida terá alguma modificação, observaremos esse fato no decorrer do texto. … Digamos que o fio caia no lado CD, no ponto E, e que a altura estendida da torre a ser medida seja GF. E aqui é necessário deixar suspenso um fio de prumo cujo comprimento DH é a distância do olho até o chão. Feito isto, deve-se encontrar a que distância estamos da torre por meio de DH, que é tomada na mesma proporção que tem as partes DE com 12, isto é, com todo o lado do quadrante... O posicionamento do instrumento como indicado no texto e na ilustração, baseado no alinhamento feito por meio das pínulas, mostrará na escala, por meio do fio de seda, uma das marcações. O observador deve segurar o fio encostado no instrumento antes de tirar o olho do alinhamento para que o fio não se mova em relação ao instrumento e, com isso, corra o risco de perder a marcação na escala, pela movimentação do fio. 49 Por meio do texto e da figura, mobilizamos o conhecimento de triângulos semelhantes. O objetivo é determinar a altura da torre, na figura dada pela medida do segmento FG . O estudante então deve encontrar os triângulos semelhantes de modo a relacionar a altura da torre com o apontamento na escala. O triângulo ∆FGI é semelhante ao ^ ^ ∆ADE, pois os ângulos FGI e ADE são congruentes, pois ambos são retos, ^ ^ e o ângulo IFG é congruente ao EAD . Por quê? Esses dois ângulos são congruentes porque as retas suportes de FG e de AE são paralelas cortadas pela mesma reta transversal, que passa por FI , formando ângulos correspondentes. A partir da semelhança desses triângulos, têm-se seus lados correspondentes proporcionais: FG AD GI ≡ DE FI ≡ AE Observamos que para obter a medida do segmento GI é necessário fazer outro cálculo, baseado também na semelhança de triângulos que esclareceremos 50 adiante. O texto indica também a necessidade de saber a distância do observador à torre (a medida do segmento GH ) que pode ser mensurada por meio de um pedaço de barbante esticado ao chão, como os estiradores de corda. … Por exemplo, se DE for 6 partes, ele será metade de 12. Assim, agrega-se a metade desta DH, ou seja, HI, ao longo de GH em linha reta (...).Pode-se notar que a linha reta GI é menor do que a altura GF naquela proporção que é encontrada entre as partes DE e o lado AD... O autor nos fornece um exemplo para esclarecer a relação proporcional, entre os lados FG , GI , AD e DE em que GI é a união “em linha reta” dos segmentos GH e HI . Ou seja, se a razão entre DE/AD é 1/2, então a razão HI/DH também é 1/2. Por isso dizer que o comprimento do segmento HI é metade ao do DH . Com isso, são conhecidas as medidas dos segmentos GI , AD e DE , podendo ser calculado o tamanho do segmento FG . … Por exemplo, se GI fosse 9 passos, multiplicando 9 por 12, ter-se-ia 108, o qual dividido por 6, isto é, DE, restaria 18 passos ... Continuando o exemplo, o autor supõe que GI seja 9 passos que multiplicado por 12 unidades, que é o comprimento do segmento AD , obtém-se 108 (unidades x passos). Dividindo esse número por 6 unidades, que é a medida do segmento DE , tem-se 18 passos, a altura da torre. Esquematicamente temos que: FG 9 passos = 12 unidades 6 unidades 51 … Mas quando o fio de prumo cai no ponto C, isto é no ângulo do ponto do quadrante, deixando o fio de prumo cair do olho até o chão, que será DK (...), em tal caso, GL será igual a GF. Assim, se medirmos GL teremos a altura GF... O autor divide a medição em três possibilidades, considerando os dois lados em relação à diagonal AC , em que o fio de prumo pode se posicionar, e quando ele se encontrar exatamente sobre o segmento AC . Considerando que os triângulos ∆FGK e ∆ADC são semelhantes (analogamente ao que foi visto anteriormente em relação aos triângulos ∆FGI e ∆ADE), tem-se a proporcionalidade entre seus lados: FG AD ≡ GL DC Como as medidas dos segmentos AD e DC são iguais, resulta que: 52 FG ≡ GL ...Mas quando o fio cair no lado BC, como no exemplo, no ponto E, tomando outro fio com comprimento que vai do olho ao chão DM, é preciso que se opere de maneira contrária ao primeiro modo. Assim, como fizemos anteriormente, o lado AB corresponde ao lado BE e MN à linha de prumo MD. Se BE for 6 de todo o lado do quadrante que é 12, diremos que MN deverá ser duas vezes MD... O texto indica a semelhança dos triângulos ∆ABE e ∆NMD por meio da proporcionalidade entre as razões AB/BE e MN/MD. Vejamos por que: ^ ^ - os ângulos ABE e NMD são retos ^ ^ - o ângulo ABE é complementar ao ângulo DAE que, por sua vez, é ^ ^ correspondente ao ângulo MDN . Portanto, o ângulo DNM é congruente ao ângulo ^ EAB . Assim, para encontrarmos a altura da torre FG vamos considerar a semelhança entre os triângulos ∆NGF, ∆NMD e ∆ABE. Considerando o exemplo dado pelo autor, se BE for 6 e AB, 12, MD será metade de MN: AB BE 12 6 = ⇒ = MN MD MN MD Há, também, outro modo de olhar os triângulos semelhantes que leva ao mesmo resultado. Vejamos: Como o triângulo a ser considerado está na parte ABC do instrumento, os triângulos ∆FGN e ∆EBA são semelhantes. Vejamos por que: ^ ^ - os ângulos FGN e EBA são retos; ^ ^ - os ângulos GFN e EAD são correspondentes, pois as retas 53 suportes dos segmentos FG e AE são paralelas e, a reta suporte do segmento FN , é transversal em relação a elas; ^ ^ - o ângulo BAE é complementar ao EAD ; ^ ^ - também o ângulo FNG é complementar a GFN ; ^ ^ - com isso, como os ângulos GFN e EAD são congruentes, ^ ^ assim comoos os ângulos FNG e EAB . Com isso, os triângulos ∆FGN e ∆EBA são semelhantes e seus respectivos lados, proporcionais, isto é: FG EB = GN BA … Desse modo, se GN tiver 36 passos, multiplicando-se 36 por 6, que são as partes de BE, encontrar-se-á 216. Este número dividido por 12 dará 18, que será a altura GF... Assim, partindo da proporcionalidade acima, com os dados do exemplo dado pelo autor, teremos o seguinte resultado: FG 6 unidades = 36 passos 12 unidades Enfim, chegando à medida da altura de GF = 18 passos 3.3 A medida Quantificar significa atribuir uma forma numérica a alguns aspectos de um objeto. Tal atribuição requer não só a realização de medidas, mas também o uso de técnicas de mensuração e padrões de medidas. O que significa “medir” no século XVI? É importante termos em conta que a ideia de uma natureza matematizada, 54 tal como concebemos nos dias de hoje, era estranha aos estudiosos da natureza e aos praticantes de matemáticas. A atribuição de um número a um comprimento não era óbvia e evidente para muitas pessoas naquela época. Sabemos que a geometria e a aritmética, duas áreas de conhecimento matemático por excelência, eram campos de conhecimentos distintos com objetos e objetivos definidos. A geometria tradicionalmente era definida como a ciência (scientia) das quantidades ou das magnitudes e, aritmética, do número (Malet, 2006). Esses dois campos de conhecimento estavam em estreita relação com a Astronomia e a Música, e juntos compunham o que era conhecido como quadrivium. Assim, associados com a Gramática, Retórica e Dialética (Lógica), isto é, o trivium, essas áreas faziam parte do que eram conhecidas como “setes artes liberais” nas universidades no século XVI (Mongelli, 1999; Grant, 1996; Rose, 1975). Ao lado das “artes liberais” encontramos também naquela época um conjunto de práticas que comumente foram classificadas como “artes servis”, ou “mecânicas”. Convém observar que as “artes liberais” abrangiam conhecimentos mais relacionados à especulação teórica, ao contrário das “artes mecânicas” que abarcavam conhecimentos práticos. Isso não significa, entretanto, que essas duas concepções de conhecimento, teórico e prático, não se relacionavam. As “artes mecânicas” e “as liberais” relacionavam-se mutuamente, porém, essa relação não era de dependência. A ideia de que o teórico determina o prático, no sentido de que há uma ciência pura e outra aplicada, não existia ainda naquela época. Na verdade, essas duas instâncias de conhecimento, teórico e prático, eram diferentes tipos de saber que buscaram se relacionar de múltiplas maneiras, como pudemos observar na atividade aqui apresentada (Smith, 2004; Smith, Findlen, 2002; Beltran, 1993; Rossi, 1989; Bennett, 1986). No que diz respeito à medida, quem costumava atribuir um número à magnitude (ou tamanho) era o praticante de matemática. A associação de um número a um tamanho não era óbvia e evidente naquela época. Medir significava estabelecer relações de proporção em seu sentido mais geral. Não sabemos ao certo 55 no que se fundamentaram os praticantes de matemática ao associar número à magnitude. De qualquer maneira essa associação era comum nas escolas de ábaco (Ciocci, 2009). Uma das razões, provavelmente, estava relacionada à própria prática em lidar com questões do cotidiano. Como já mencionamos anteriormente, a realização de medida requer uso de técnicas de mensuração e de padrões de medidas. No que se refere ao primeiro, os praticantes de matemática possuíam conhecimentos não só de matemática, mas também de técnicas que constituíam seu segredo de ofício. Estes segredos abrangiam conhecimentos que iam além da matemática, como, por exemplo, o manuseio do instrumento e a operação de medida. Cabe notar que, sem um treino ou conhecimento prévio, não é muito fácil utilizar um desses instrumentos para realizar as medidas. Imaginem o caso de um navegador em uma embarcação em movimento, querendo medir a posição entre duas estrelas no céu. Técnicas, numa situação como essa, são raramente explicitadas em obras como esta que aqui utilizamos para desenvolver a atividade didática. Essas e outras questões podem ser levantadas pelos professores e estudantes, tal como era comum, apenas para fazer uma simples analogia, entre mestre e aprendiz naquela época. No que diz respeito aos padrões de medida, devemos ter em conta que, no século XVI, inexistia ainda uma unidade de medida que fosse padrão. O uso de braças (braccia), pés, passos, entre outros, dependia de outros fatores que eram extramatemáticos, razão pela qual a medida de um pé na Inglaterra, por exemplo, não era o mesmo que na França na mesma época. Assim, na atividade didática aqui proposta procuramos ser fiel aos termos utilizados pelo autor. No desenvolvimento da medição podemos utilizar como unidade de medida o “passo” ou o “pé” de um estudante, por exemplo, para medir uma determinada distância. Mas é importante deixar claro aos estudantes que as passadas e o tamanho do pé não são iguais para todos. O que significa que, mesmo que cheguemos a um “número de passos” ou “número de pés” que representariam 56 o “tamanho” da distância medida, os “números” não serão iguais, embora o tamanho (ou distância) seja o mesmo. Como a unidade de medida padrão não é dada a priori para a construção do instrumento, o estudante ao desenvolver a medição passará dar significado à unidade de medida. Essa é uma das potencialidades do documento que pode ser explorada por meio da construção e uso destes instrumentos. Os estudantes perceberão que, ao realizar a medição da altura de uma coluna, por exemplo, atribuir-lhe-ão um número que passará a ser a medida dela. Logo, notarão que outros estudantes poderão atribuir diferentes números, não porque chegarão a diferentes medidas, mas porque tomarão por base diferentes unidades de medida, inferindo a partir daí que a unidade de medida depende do tamanho do instrumento construído. Considerações finais Os instrumentos matemáticos são mais do que simples artefatos. Eles incorporam conhecimentos que revelam a articulação entre o saber e o fazer e, desse modo, sintetizam a produção de conhecimento de uma época. Conhecimento este que pode receber diferentes interpretações e, consequentemente, significados. Contextualizados historicamente em sua época, estes instrumentos revelam mais do que conhecimento matemático. Assim, a atividade didática aqui apresentada teve a proposta interdisciplinar de mostrar o conhecimento matemático integrado e inserido num contexto de produção de conhecimento. Ou seja, procuramos elaborar a atividade tendo por foco a matemática sem, contudo, subtraí-la de seu contexto histórico. Compreendemos que a produção destes instrumentos revitalizou as matemáticas, dando-lhes mais visibilidade. Um dos fatores que levou os praticantes de matemáticas, artesãos e estudiosos da natureza, geralmente patrocinados por príncipes, comerciantes, banqueiros e outros, a investirem na produção destes instrumentos está relacionada ao próprio contexto de época. As 57 transações comerciais, a pequena indústria em pleno desenvolvimento, as operações bancárias, as questões militares, o aumento dos valores das terras, entre outros aspectos, impulsionaram o desenvolvimento de novas ferramentas para lidar com a nova ordem econômica e social. Isso, entretanto, é uma das facetas que dão significado ao instrumento que devemos considerar juntamente com outra, ou seja, com as interfaces que o conhecimento matemático estabelece com outros ramos do conhecimento para compreendermos de que maneira a matemática se apropriou destes conhecimentos. Como já mencionamos, a matemática nem sempre foi um corpo unificado de conhecimentos, tal como hoje a concebemos. No século XVI, ela era uma área complexa que incluía vários domínios de conhecimento que, muitas vezes, são irreconhecíveis atualmente como matemáticos. É nessa relação multifacetada que podemos divisar como a matemática se apropriou da produção do conhecimento de uma época, considerando-se o amplo espectro de possibilidades que o contexto histórico pode fornecer. Desse modo, na organização da atividade didática, consideramos a apreensão que pode ser feita pelo sujeito da cultura humana que, de alguma maneira, está sintetizada no instrumento. A atividade teve por propósito articular história e ensino de modo a estabelecer um diálogo com o passado e não reproduzir o momento histórico. Não saberíamos dizer ao certo quais foram realmente os conhecimentos mobilizados, tanto na construção, quanto no uso dos instrumentos naquela época. Assim, outros conhecimentos, além desses que propomos na atividade, poderão ser mobilizados para sua construção e uso. A potencialidade pedagógica e didática do documento repousa justamente na possibilidade de estabelecermos um profícuo diálogo com o passado. Diálogo este que depende da interação entre os agentes, que participam do processo de construção e uso, e as questões históricas de produção de conhecimento, dando assim outros encaminhamentos. Mas essa interação deve levar em intencionalidade do professor que organiza a atividade didática. consideração a 58 Referências bibliográficas Alfonso-Goldfarb, A. M. O que é História da Ciência. São Paulo: Brasiliense, 1994. Alfonso-Goldfarb, A. M.; Beltran, M. H. R. (Orgs.). Escrevendo a História da Ciência: tendências, propostas e discussões. São Paulo: Educ/Ed. Livraria da Física/FAPESP, 2004. Apianus, P. Introdvctio geographica Petri Apiani in doctissimas verneri Annotationes, cõtinens plenum intellectum & iudicium omnis operationis, quae persinus & chordas in Geographia confici potest, adiuncto Radio astronomico cum quadrante nouo Meteoroscopii loco longe vtilissimo... Ingolstadt: [s.ed.], 1533. Bartoli, C. Cosimo Bartoli Gentil’huomo, et accademico Fiorentino, Del modo di misurare le distantie, le superficie, i corpi, le piante, le province, le prospettive, & tutte le altre cose terrene, che possono occorrere agli homini, Secondo le vere regole d’Euclide, & de gli altri piu lodati scrittori. Venetia: Francesco Franceschi Sanese, 1564. Belhoste, B. Pour une réévaluation du rôle de l’enseignement dans l’histoire des mathématiques. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 4, n. 1, 2002, p. 11-27. Beltran, M. H. R. Matemática, magia e técnica: algumas concepções de John Dee. In: GOLDFARB, J. L. (Org.). SBHC 10 anos: Anais do IV Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: FAPEMIG/Anna Blume/Nova Stella, 1999. Bennett, J. A. The Mechanics’ Philosophy and the Mechanical Philosophy. History of Science, Cambridge, v. 24, 1986, p. 1-28. _____. Practical Geometry and Operative Knowledge. Configurations, Baltimore, v. 6, 1998, p. 195-222. _____. Knowing and doing in the sixteenth century: what were instruments for?. British Journal for the History of Science, Cambridge, v. 36, n. 2, 2003, p. 129- 59 150. Biagioli, M. The Social Status of Italian Mathematicians. History of Science, Cambridge, v. 27, 1989, p. 41-95. Bromberg, C.; Saito, F. A História da Matemática e a História da Ciência. In: Beltran, M. H. R.; Saito, F.; Trindade, L. dos S. P. (Orgs.). História da Ciência: Tópicos atuais. São Paulo: CAPES, Ed. Livraria da Física, 2010. p. 47-72. Burke, P. O Renascimento Italiano: cultura e sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria, 2010. Camerota, F. Misurare ‘per perspectiva’: Geometria pratica e Prospectiva Pingendi. In: SINISGALLI, R. (Ed.) La prospettiva: Fondamenti teorici ed esperienze figurative dall’antichità al mondo moderno. Firenze: Edizioni Cadmo, 1998. p. 293-308. Ciocci, A. Luca Pacioli tra Piero della Francesca e Leonardo. Sansepolcro: Aboca Museum Edizioni, 2009. Conner, C. D. A people’s History of Science: Miners, Midwives, and “Low Mechanicks”. Nova Iorque: Nation Books, 2005. Cormack, L. B. The Commerce of Utility: Teaching Mathematical Geography in Early Modern England. Science & Education, Dordrecht, v. 15, 2006, p. 305322. D’Ambrosio, U. Educação Matemática: da teoria à prática. 14ª ed. Campinas: Papirus, 1996. Daumas, M. Scientific Instruments of the Seventeenth and Eighteenth Centuries. Londres: Portman Books, 1989. Davídov, V. La enseñanza escolar y el desarrollo psiquico. Havana: Editorial Progresso, 1988. Debus, A. G. El hombre y la naturaleza en el Renacimiento. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. 60 Dias, A. L. M. Matemática no Brasil: Um estudo da trajetória da historiografia. RBHM, Rio Claro, v. 2, n. 4, 2002, p.169-195. Dias, M. S. Formação da imagem conceitual da reta real: um estudo do desenvolvimento do conceito na perspectiva lógico-histórica. 2007. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2007. Dias, M. S.; Saito, F. Interface entre história da matemática e ensino: uma aproximação entre historiografia e perspectiva lógico-histórica. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 4., 2009, Brasília. Anais do IV Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática. Brasília: SBEM, 2009. p. G05. _____. A resolução de situações-problema a partir da construção e uso de instrumentos de medida segundo o tratado Del modo di misurare (1564) de Cosimo Bartoli. In: International Conference-Problem-Based Learning and Active Learning Methodologies, 6, 2010, São Paulo. Anais Congresso Internacional - PBL 2010: Aprendizagem baseada em Problemas e Metodologias Ativas de Aprendizagem - Conectando pessoas, idéias e comunidades (8 a 11 de fevereiro de 2010, São Paulo, Brasil). São Paulo: Pan American Network of Problem Based Learning/USP, 2010. p. R0518-1. Euclides. Os elementos. Trad. e introd. de I. Bicudo. São Paulo: Ed. UNESP, 2009. Furinghetti, F. Teacher education through the history of mathematics. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 66, 2007, p. 131-143. Grant, E. The Foundations of Modern Science in the Middle Ages: Their Religious, Institutional, and Intellectual Contexts. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. Hackmann, W. D. Scientific Instruments: Models of Brass and Aids to Discovery. In: Gooding, D.; Pinchi, T.; Schaffer, S. (eds.). The Uses of Experiment: Studies in the Natural Sciences. Cambridge, Nova Iorque, Sidney: Cambridge University Press, 1989. p. 31-65. 61 Kopnin, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Jahnke, H. N. The Use of Original Sources in the Mathematics Classroom. In: Fauvel, J.; van Maanem, J. (eds.). History in Mathematics Education: An ICMI Study. Dordrecht, Boston, Londres: Kluwer Academic Publishers, 2000. p. 291328. Kuhn, T. S. Tradição matemática versus tradição experimental no desenvolvimento da ciência física. In: Kuhn, T. S. A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 63-100. Leontiev, A. Atividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo y Educación, 1983. Malet, A. Renaissance notions of number and magnitude. Historia Mathematica, v. 33, 2006, p. 63-81. Mendes, I. A. Matemática e investigação na sala de aula: tecendo redes cognitivas na aprendizagem. Natal: Flecha do Tempo, 2006. Miguel, A. As Potencialidades da História da Matemática em Questão: Argumentos Reforçadores e Questionadores. Zetekiké, Campinas, v. 5, n. 8, 1997, p. 73-105. Miguel, A.; Brito. A. J. A História da Matemática na Formação do Professor de Matemática. Caderno Cedes, Campinas, n. 40, 1996, p. 47-61. Miguel, A.; Miorim, M. A. História na Educação Matemática: Propostas e desafios. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Mongelli, L. M. (Coord.). Trivium & Quadrivium: as artes liberais na Idade Média. Cotia: Íbis, 1999. Moura, A. R. L.; Sousa, M. C. O lógico-histórico da álgebra não simbólica e da álgebra simbólica: dois olhares diferentes. Zetetiké, Campinas, v. 13, n. 24, 2005, p. 11-45. Rossi, P. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Rose, P. L. The Italian Renaissance of Mathematics: Studies on Humanists and 62 Mathematicians from Petrarch to Galileo. Genebra: Librarie Droz, 1975. Rubinstein, S. L. Princípios de psicologia geral. Lisboa: Estampa Ltda, 1976. Saito, F. Instrumentos de magia e de ciência: a observação mediada em De telescópio segundo a perspectiva de Giambattista della Porta. 2008. Tese (Doutorado em História da Ciência), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008a. _____. Geometria e óptica no século XVI: a percepção do espaço na perspectiva euclidiana. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 10, n. 2, 2008b, p. 386416. Saito, F; Dias, M. S. História e Ensino de Matemática: construção e uso de instrumentos de medida do século XVI. História da Ciência e Ensino: construindo interfaces, São Paulo, v. 2, 2010, p. 75-87. Smith, P. H. The Body of the Artisan: Art and Experience in the Scientific Revolution. Chicago, London: The University of Chicago Press, 2004. Smith, P. H.; Findlen, P (Eds.). Merchants & Marvels: Commerce, Science, and Art in Early Modern Europe. New York: Routledge, 2002. Taylor, E. G. R. The Mathematical Practitioners of Tudor & Stuart England. Cambridge: Institute of Navigation, Cambridge University Press, 1954. Turner, G. L’E. Scientific Instruments, 1500-1900: an introduction. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press, 1998. van Helden, A. The Birth of the Modern Scientific Instrument, 1550-1770. In: Burke, J. G. (Ed.). The Uses of Science in the Age of Newton. Berkley, Los Angeles, Londres: University of California Press, 1983. p. 49-84. Warner, D. J. Terresterial Magnetism: For the Glory of God and the Benefit of Mankind. Osiris, Philadelphia, v. 9, p. 67-84, 1994. 63 Prof. Dr. Fumikazu Saito, Engenheiro Elétrico, Bacharel em Filosofia, Mestre e Doutor em História da Ciência. Atualmente é professor do PEPG em Educação Matemática da PUC/SP e do PEPG em História da Ciência da PUC/SP. Desenvolve pesquisas área de Filosofia e História da Ciência e da Matemática, História da Ciência e Ensino de Ciência e História da Ciência da Técnica e da Tecnologia. Profa. Dra. Marisa da Silva Dias Marisa da Silva Dias, licenciada em Matemática, mestre em Educação Matemática e doutora em Educação. Atualmente é assistente doutora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) na qual leciona na formação inicial de professores de matemática e de pedagogia e pesquisa na área de formação inicial e continuada de professores que ensinam matemática. Ambos os autores são coordenadores do grupo HEEMa.