ASSUNTO
em pauta
Midiamorfose: como
resgatar um papel de
vanguarda?
Necessitada de uma vacina contra a pressão
dos anunciantes e dos interesses privados dos
proprietários dos meios, cabe à mídia estar na
dianteira, com a imprensa um passo à frente.
Será que a crise é um condutor da regeneração?
Sandrine Lage
S
e a crise na mídia é uma onda, a crise da
imprensa é um tsunami: condenou 120
publicações norte-americanas à pena
capital e nem mesmo os jornais de referência (o
Le Monde na França, The Times e The Independent
no Reino Unido ou o El País na Espanha) ficaram
a salvo, resultado da acumulação de fortes perdas
econômicas e da baixa da difusão e da queda da
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publicidade. Marcado por uma redução drástica de
trabalhadores e de demissões em massa, diversas
estratégias para reduzir os custos foram postas em
prática face a esse cenário, como explica o sociólogo galego e diretor do diário francês Le Monde
Diplomatique, Ignácio Ramonet:
se suplementos (The Washington Post, prestigiado suplemento literário Bookworld); suprimiramse edições em papel (The Christian Science
Monitor) e criaram-se as semanas de 3 dias de
trabalho para redatores (Financial Times). Desde
janeiro de 2008, perderam-se 21.000 empregos
em jornais norte-americanos.
~
(
Digital Vision
(
}Reduziu-se o número de páginas; encerraram-
Inviabilidade econômica, mau funcionamento do
setor industrial e recurso inútil à construção de
grandes grupos multimídia internacionais (como
aconteceu nos anos 1980 e 1990), pesam cada vez
mais num contexto de proliferação dos novos
meios de difusão da informação e do lazer, pela
Internet ou pelos telemóveis. Contudo, a mídia –
como é definida em geral – ameaça tornar-se no
setor dominante do século XXI. Mesmo se servir
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leitores de outros jornais diários: 26% dos quais
declaram não saber2.
como os olhos e, sempre que possível,
como a consciência da Nação, pertença
especialmente à imprensa de referência.
Se é assim, qual é a razão do combate
pela imortalidade da imprensa diária
(dita “séria”)?
Jornais: os embriões
da democracia
Divulgação
Insubstituível. É como, aparentemente,
o papel da imprensa na construção da
democracia e na garantia da liberdade de
expressão é considerado. Menos informação conduz a um maior desinteresse da
população sobre a vida cotidiana e a forma
como é governada. A descida de participação eleitoral, a diminuição do número
de candidatos aos vários sufrágios e o aumento de políticos reeleitos encontram-se
entre as consequências do encerramento
de jornais na comunidade em geral. O
trabalho “Os Jornais interessam?” (2008),
da Universidade de Princeton1, confirmao. Já o estudo do Massachusetts Institute
of Technology (MIT) e da Universidade
de Estocolmo conclui que em áreas cujos
representantes não cativam a atenção dos
jornais – congressistas com cobertura
midiática inferior – estes registram menor
disponibilidade para a comunidade e um
investimento inferior do Estado.
Pelo papel que a imprensa teve na construção da democracia norte-americana (como
em outros países), e na garantia da liberdade de
expressão, um valor caro nos EUA (que, habitualmente, marca tendências), a agonia de inúmeros
jornais assume destaque especial. Afinal, quase
todos os leitores de diários de qualidade têm uma
opinião formada sobre a temática mais importante
enfrentada pelo país de cada um. Ao contrário de
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Não pode haver democracia sem informar os cidadãos. Nem cidadãos informados sem qualidade
de notícias na mídia (BERTRAND3, 2009). O que
deixa supor que a imprensa diária desempenha
um papel determinante ao apoiar uma democracia
efetiva, atualmente posta em causa pelo domínio
do setor por grandes grupos privados. Há quem
defenda que a solução passa pela transformação
dos jornais em organizações sem fins lucrativos,
libertas do pagamento de impostos. Será?
Imprensa diária lucrativa:
uma missão impossível?
Como obter lucro num prazo de cinco anos? Atualmente, não há nenhuma empresa e mídia no
mundo que saiba ao certo responder a esta questão:
2008 deixou isso bem claro na imprensa. Dois mil
e nove não trouxe melhoras: instituições como o
The Miami Herald ou o Boston Globe chegaram a
perder US$ 1 milhão por semana, agravando diariamente a sua condição. O News Corp, o poderoso
grupo multimídia de Rupert Murdoch (publica o
The Wall Street Journal), apresentou perdas anuais
de 2.500 milhões de euros; a empresa editora de
The Chicago Tribune e de Los Angeles Times, assim
como a Hearst Corporation, dona do San Francisco
Chronicle, caíram na bancarrota e até o The New
York Times solicitou ajuda ao milionário mexicano
Carlos Slim (RAMONET, 2009).
Por que razão inúmeros analistas consideram a imprensa diária condenada? Enquanto uns procuram
desesperadamente por fórmulas de sobrevivência,
outros pronunciam a sentença em voz alta: a imprensa diária é um modo de informação obsoleto.
É economicamente inviável, registra um mau
funcionamento no setor e recorre, inutilmente, à
construção de grandes grupos multimídia internacionais. Como se não bastasse, a articulação com
Michael Wolf, da Newser, prevê o desaparecimento
de 80% dos diários norte-americanos. Rupert
Murdoch acredita no desaparecimento de todos
os diários já na próxima década.
Se piorar, melhora?
Ao fator conjuntural da crise econômica global que
provocou a redução da publicidade e a redução de
crédito adicionaram-se os males estruturais do
setor: a mercantilização da informação; o apego à
publicidade; a perda de credibilidade; a queda de
subscritores; a competência da imprensa gratuita
e o envelhecimento dos leitores… (RAMONET,
2009). Entre esses “erros”, a perda da credibilidade
é considerada a mais relevante, quer por parte de
Elisabeth Ribbans (The Guardian), quer por Ignacio
Ramonet (Le Monde Diplomatique). A este somamse a obsessão atual pelo imediatismo (que propicia
a multiplicação de erros) e o apelo demagógico ao
“leitor jornalista” para que coloque, na web do seu
jornal, o seu blog, as suas fotos ou os seus vídeos
(o que também contribui para o aumento do risco
da difusão de erros). Mais grave, ainda, é a adoção
da defesa da estratégia da empresa como linha
editorial (prática atual dos diários dominantes),
que conduz à imposição de uma leitura subjetiva,
arbitrária e partidária da informação.
Para que servem mesmo
os jornalistas?
Efetivamente, as fontes de informação abundam...
O ritmo e a escala da mudança variam por país,
mas os motores da mudança permanecem similares: menos pessoas compram jornais numa
© Amazon.com
a Rede continua a falhar: a publicidade da versão
web não compensa, por ser muito mais barata que
na versão de papel. É, por isso, injusto obrigar o
leitor do quiosque, que compra o diário, a subsidiar
o leitor da tela que lê gratuitamente a edição digital
(RAMONET, 2009).
base diária, há mais acessos online às notícias, e
aumenta a constatação de que os jornais gratuitos
são “suficientemente bons” para completar o
tempo de viagem.
Encontrar informação fidedigna no infinito mar
de informação – sobretudo na Internet – não é
evidente, como observa o sociólogo Roberto Cox:
“Não imagino um mundo sem bom jornalismo.
Seria um mundo muito mais pobre. O mundo não
pode ser dado diretamente, tem de ser mediado.
E o papel do jornalista não acaba aí. Na era da
Internet, é importante que o jornalista funcione
como uma espécie de mapa, de GPS, para encontrar a informação fiável no meio de todo o resto.
Há muito trabalho bom, mas também há muita
informação política e ideológica. É um campo
minado onde quase nunca há editores”.
Veja-se o desencadeamento da campanha de
calúnias contra governos e presidentes, difundidas pelos meios de comunicação dominantes
e cúmplices habituais em sequência de
reformas democráticas (necessárias),
empreendidas por alguns governos
Sem a confiança
(Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela)
dos leitores, as mídias
contra “latifúndios midiáticos” de grupos
não têm produto. É o
elemento mais imporprivados em situação de monopólio. A
tante da estratégia do
América Latina não foi exceção, pois
jornal , segundo Elia história repetiu-se na Europa. E, no
sabeth Rib­bans, editora
entanto, nunca os diários tiveram tanta
do The Guardian.
audiência, nem jamais se registrou um
}
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crescimento tão exponencial do número de leitores devido à Internet.
Onde procurar soluções?
O público fragmenta-se – mesmo ao tornar-se
mais global –, e a Internet está lançando um novo
canal para conteúdo e publicidade, com modelos
de negócio a serem testados.
Em alguns casos, verificam-se pedidos de micropagamentos aos leitores para deixá-los aceder
em exclusivo às informações online (com base
no exemplo do iTunes) (RAMONET, 2009). Já
em janeiro deste ano, Rupert Murdoch optou por
exigir pagamentos por qualquer consulta do The
Wall Street Journal, independentemente da tecnologia (telefones Blackberry ou iPhone, Twitter ou
o leitor eletrônico Kindle). A própria Google está
a “cozinhar” uma receita que lhe permita cobrar
por toda leitura de qualquer diário digital e reverter
uma parte à empresa editora...
Títulos como o The Wall Street Journal, o The New
York Times ou o The Washington Post irão sobreviver
graças aos recursos para continuar a apostar em
matérias exclusivas, frisam inúmeros especialistas.
Rentabilizar esses trabalhos que requerem um
investimento significativo – em deslocamentos,
compra ou aluguel de material etc. – permanece,
contudo, o desafio final.
Richard Stengel, da Time, defende que “trabalhos
exclusivos e visões alternativas são produtos valiosos, tendo de ser pagos”. Marshall Yngwerson, do
The Christian Science Monitor, sublinha que “o primeiro a adotar esta solução tornar-se-á irrelevante
(no mercado da Internet), porque os consumidores
irão imediatamente à procura do conteúdo grátis.
Todavia os títulos online não estão preparados
para substituir os irmãos mais velhos em papel.
Em fonte de receita, ainda que os jovens se tenham
habituado a não pagar o que consomem, a Internet perde para a imprensa: “o mercado de jornais
ainda é de onde provém a maioria das receitas”
(GARRIDO, 2009). Ainda que a expansão do
online permaneça crítica para o futuro de grupos
editoriais, visto os anunciantes redistribuírem os
investimentos de acordo com a mudança de comportamento do público. Apostaram, pela primeira
vez, mais no online do que em jornais nacionais em
2006 (no Reino Unido). A mídia “antiga” sente-se,
portanto, ameaçada. Contudo resta-lhe um trunfo:
a confiança/credibilidade.
Onde procurar a verdade?
“Sem a confiança dos leitores, as mídias não têm
produto. É o elemento mais importante da estratégia do jornal”, segundo Elisabeth Ribbans, editora
do The Guardian. Especialmente num setor cujo
maior serviço público é desvendar e denunciar más
práticas e corrupção a todos os níveis da sociedade
e manter os governos e os negócios debaixo do
olho. Capturar a mente dos leitores pede, por isso,
uma cobertura editorial independente: mais de um
terço (35%), de aproximadamente 300 jornalistas
americanos declararam que notícias que ferissem
interesses financeiros de organizações de notícias,
frequentemente ou algumas vezes, deixariam de
ser noticiadas (SUSTAINABILITY, 2004).
O nível de transparência depende de uma gestão da organização alinhada com os valores,
em paralelo com a propriedade dos grupos/
empresas de mídia. Após “beliscar” incessan-
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temente a credibilidade da audiência em geral,
será o fim da ditadura dos anunciantes e da
primazia dos interesses privados dos acionistas,
gasta que está a fórmula da concessão do lado
editorial aos mesmos?
A questão repete-se: “Como equilibrar a lógica comercial com os valores?” À semelhança da maioria
dos jornais, ronda a ameaça das ações não lucrativas. O que, por si só, constitui um fator de maior
vulnerabilidade da mídia (não apenas a imprensa
diária), face à manutenção da independência do
jornalismo praticado.
“Num mundo a encolher”, todos – sem exceção – têm de justificar a sua existência (no
mercado). Manter simultaneamente a presença
da imprensa com investimento – que implica a
ausência de recursos extra – é uma das apostas
do The Guardian que não abdica de ingredientes-chave: reputação de inovação; qualidade;
confiança; integridade e recursos para apostar
em matérias exclusivas. Na prática – incluindo
os proprietários da publicação e os diretores – o
investimento do The Guardian para atingir os
níveis mais elevados de accountability é proporcional à enorme influência que tem na opinião
pública, no interesse público e, por fim, no
comportamento desse público. Uma alternativa
ao adiamento da mudança e da fuga à prática
de um exercício de desformatação. Eis o lado
positivo da crise a abrir portas à regeneração.
Tratar-se-á do início de uma nova caminhada
para o setor? Através do conceito liderado e mantido vivo pela Scott Trust4, bem como pelos seus
leitores (e anunciantes), algumas sementes estão
lançadas. E a liberdade do grupo, decorrente da
ausência de pressões por lucro a curto prazo, garante um jornalismo independente que sustenta,
por sua vez, uma democracia efetiva. Ao contrário
de outros negócios, o preço de uma possível perda
da imprensa/extinção paga-se com o declínio da
democracia. Daí a urgência de resgatar um papel
de vanguarda que permita à mídia – em particular,
a imprensa – encontrar-se entre o papel informativo – que acaba por ser educacional – e a sua
ESPM
natureza empresarial. Ou repensá-la...
NOTAS
1. Professores Miguel Garrido e Sam Scchuflerwhol.
2. Entrevistas realizadas com mais de 10 mil pessoas no
Reino Unido.
3. Claude-Jean Bertrand, professor emérito no Instituto
Francês de Imprensa.
4. A organização-mãe do Guardian Media Group.
BIBLIOGRAFIA
EVANS, Richard. THE GUARDIAN, THE OBSERVER, GUARDIAN
UN­­LIMITED, Living our Values: sustainability report 2008, p.8; p.34.
LAGE, Sandrine. Entrevista a Nicolas Hulot, ecologista: A crise
das crises é uma chamada à ordem. Anuário de Sustentabilidade,
Junho de 2009, p.26; Jornal Público.
LAGE, Sandrine. Sustentabilidade na mídia: o poder de (in)formar.
Envolverde, 2009.
LOURENÇO, Ricardo. A crise em letra de imprensa. Jornal Expresso, 23/05/2009, p. 33.
MACHADO, Ana. Entrevista a Roberto Cox, sociólogo: As pessoas
não querem ouvir falar de ambiente, mas isso vai passar. Jornal
Público, 03/04/2009; consulta às 09h03.
MORI (2005). You are what You read?
RAMONET, Ignácio. A imprensa diária está morrendo? Envolverde,
06/10/2009.
SUSTAINABILITY, UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAM
AND KETCHUM (2001). Good News and Bad: the media, corporate
social responsibility, Executive Summary.
SUSTAINABILITY AND WWF-UK (2004). Through the looking glass:
corporate responsibility in the media and entretainment sector,
estudo de lideres de opinião; PP.1-23.
SANDRINE LAGE
Mestre em Sustentabilidade pela Universidade de
Cranfield (Reino Unido), é autora do livro “Sustentabilidade na mídia: o poder de (in)formar” (Envolverde, 2009), editorialista e palestrante.
e-mail: [email protected]
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