ASSUNTO em pauta Midiamorfose: como resgatar um papel de vanguarda? Necessitada de uma vacina contra a pressão dos anunciantes e dos interesses privados dos proprietários dos meios, cabe à mídia estar na dianteira, com a imprensa um passo à frente. Será que a crise é um condutor da regeneração? Sandrine Lage S e a crise na mídia é uma onda, a crise da imprensa é um tsunami: condenou 120 publicações norte-americanas à pena capital e nem mesmo os jornais de referência (o Le Monde na França, The Times e The Independent no Reino Unido ou o El País na Espanha) ficaram a salvo, resultado da acumulação de fortes perdas econômicas e da baixa da difusão e da queda da 64 R E V I S T A D A E S P M – setembro / outubro de 2010 publicidade. Marcado por uma redução drástica de trabalhadores e de demissões em massa, diversas estratégias para reduzir os custos foram postas em prática face a esse cenário, como explica o sociólogo galego e diretor do diário francês Le Monde Diplomatique, Ignácio Ramonet: se suplementos (The Washington Post, prestigiado suplemento literário Bookworld); suprimiramse edições em papel (The Christian Science Monitor) e criaram-se as semanas de 3 dias de trabalho para redatores (Financial Times). Desde janeiro de 2008, perderam-se 21.000 empregos em jornais norte-americanos. ~ ( Digital Vision ( }Reduziu-se o número de páginas; encerraram- Inviabilidade econômica, mau funcionamento do setor industrial e recurso inútil à construção de grandes grupos multimídia internacionais (como aconteceu nos anos 1980 e 1990), pesam cada vez mais num contexto de proliferação dos novos meios de difusão da informação e do lazer, pela Internet ou pelos telemóveis. Contudo, a mídia – como é definida em geral – ameaça tornar-se no setor dominante do século XXI. Mesmo se servir setembro / outubro de 2010 – R E V I S T A D A E S P M 65 leitores de outros jornais diários: 26% dos quais declaram não saber2. como os olhos e, sempre que possível, como a consciência da Nação, pertença especialmente à imprensa de referência. Se é assim, qual é a razão do combate pela imortalidade da imprensa diária (dita “séria”)? Jornais: os embriões da democracia Divulgação Insubstituível. É como, aparentemente, o papel da imprensa na construção da democracia e na garantia da liberdade de expressão é considerado. Menos informação conduz a um maior desinteresse da população sobre a vida cotidiana e a forma como é governada. A descida de participação eleitoral, a diminuição do número de candidatos aos vários sufrágios e o aumento de políticos reeleitos encontram-se entre as consequências do encerramento de jornais na comunidade em geral. O trabalho “Os Jornais interessam?” (2008), da Universidade de Princeton1, confirmao. Já o estudo do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e da Universidade de Estocolmo conclui que em áreas cujos representantes não cativam a atenção dos jornais – congressistas com cobertura midiática inferior – estes registram menor disponibilidade para a comunidade e um investimento inferior do Estado. Pelo papel que a imprensa teve na construção da democracia norte-americana (como em outros países), e na garantia da liberdade de expressão, um valor caro nos EUA (que, habitualmente, marca tendências), a agonia de inúmeros jornais assume destaque especial. Afinal, quase todos os leitores de diários de qualidade têm uma opinião formada sobre a temática mais importante enfrentada pelo país de cada um. Ao contrário de 66 R E V I S T A D A E S P M – setembro / outubro de 2010 Não pode haver democracia sem informar os cidadãos. Nem cidadãos informados sem qualidade de notícias na mídia (BERTRAND3, 2009). O que deixa supor que a imprensa diária desempenha um papel determinante ao apoiar uma democracia efetiva, atualmente posta em causa pelo domínio do setor por grandes grupos privados. Há quem defenda que a solução passa pela transformação dos jornais em organizações sem fins lucrativos, libertas do pagamento de impostos. Será? Imprensa diária lucrativa: uma missão impossível? Como obter lucro num prazo de cinco anos? Atualmente, não há nenhuma empresa e mídia no mundo que saiba ao certo responder a esta questão: 2008 deixou isso bem claro na imprensa. Dois mil e nove não trouxe melhoras: instituições como o The Miami Herald ou o Boston Globe chegaram a perder US$ 1 milhão por semana, agravando diariamente a sua condição. O News Corp, o poderoso grupo multimídia de Rupert Murdoch (publica o The Wall Street Journal), apresentou perdas anuais de 2.500 milhões de euros; a empresa editora de The Chicago Tribune e de Los Angeles Times, assim como a Hearst Corporation, dona do San Francisco Chronicle, caíram na bancarrota e até o The New York Times solicitou ajuda ao milionário mexicano Carlos Slim (RAMONET, 2009). Por que razão inúmeros analistas consideram a imprensa diária condenada? Enquanto uns procuram desesperadamente por fórmulas de sobrevivência, outros pronunciam a sentença em voz alta: a imprensa diária é um modo de informação obsoleto. É economicamente inviável, registra um mau funcionamento no setor e recorre, inutilmente, à construção de grandes grupos multimídia internacionais. Como se não bastasse, a articulação com Michael Wolf, da Newser, prevê o desaparecimento de 80% dos diários norte-americanos. Rupert Murdoch acredita no desaparecimento de todos os diários já na próxima década. Se piorar, melhora? Ao fator conjuntural da crise econômica global que provocou a redução da publicidade e a redução de crédito adicionaram-se os males estruturais do setor: a mercantilização da informação; o apego à publicidade; a perda de credibilidade; a queda de subscritores; a competência da imprensa gratuita e o envelhecimento dos leitores… (RAMONET, 2009). Entre esses “erros”, a perda da credibilidade é considerada a mais relevante, quer por parte de Elisabeth Ribbans (The Guardian), quer por Ignacio Ramonet (Le Monde Diplomatique). A este somamse a obsessão atual pelo imediatismo (que propicia a multiplicação de erros) e o apelo demagógico ao “leitor jornalista” para que coloque, na web do seu jornal, o seu blog, as suas fotos ou os seus vídeos (o que também contribui para o aumento do risco da difusão de erros). Mais grave, ainda, é a adoção da defesa da estratégia da empresa como linha editorial (prática atual dos diários dominantes), que conduz à imposição de uma leitura subjetiva, arbitrária e partidária da informação. Para que servem mesmo os jornalistas? Efetivamente, as fontes de informação abundam... O ritmo e a escala da mudança variam por país, mas os motores da mudança permanecem similares: menos pessoas compram jornais numa © Amazon.com a Rede continua a falhar: a publicidade da versão web não compensa, por ser muito mais barata que na versão de papel. É, por isso, injusto obrigar o leitor do quiosque, que compra o diário, a subsidiar o leitor da tela que lê gratuitamente a edição digital (RAMONET, 2009). base diária, há mais acessos online às notícias, e aumenta a constatação de que os jornais gratuitos são “suficientemente bons” para completar o tempo de viagem. Encontrar informação fidedigna no infinito mar de informação – sobretudo na Internet – não é evidente, como observa o sociólogo Roberto Cox: “Não imagino um mundo sem bom jornalismo. Seria um mundo muito mais pobre. O mundo não pode ser dado diretamente, tem de ser mediado. E o papel do jornalista não acaba aí. Na era da Internet, é importante que o jornalista funcione como uma espécie de mapa, de GPS, para encontrar a informação fiável no meio de todo o resto. Há muito trabalho bom, mas também há muita informação política e ideológica. É um campo minado onde quase nunca há editores”. Veja-se o desencadeamento da campanha de calúnias contra governos e presidentes, difundidas pelos meios de comunicação dominantes e cúmplices habituais em sequência de reformas democráticas (necessárias), empreendidas por alguns governos Sem a confiança (Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela) dos leitores, as mídias contra “latifúndios midiáticos” de grupos não têm produto. É o elemento mais imporprivados em situação de monopólio. A tante da estratégia do América Latina não foi exceção, pois jornal , segundo Elia história repetiu-se na Europa. E, no sabeth Ribbans, editora entanto, nunca os diários tiveram tanta do The Guardian. audiência, nem jamais se registrou um } ~ setembro / outubro de 2010 – R E V I S T A D A E S P M 67 crescimento tão exponencial do número de leitores devido à Internet. Onde procurar soluções? O público fragmenta-se – mesmo ao tornar-se mais global –, e a Internet está lançando um novo canal para conteúdo e publicidade, com modelos de negócio a serem testados. Em alguns casos, verificam-se pedidos de micropagamentos aos leitores para deixá-los aceder em exclusivo às informações online (com base no exemplo do iTunes) (RAMONET, 2009). Já em janeiro deste ano, Rupert Murdoch optou por exigir pagamentos por qualquer consulta do The Wall Street Journal, independentemente da tecnologia (telefones Blackberry ou iPhone, Twitter ou o leitor eletrônico Kindle). A própria Google está a “cozinhar” uma receita que lhe permita cobrar por toda leitura de qualquer diário digital e reverter uma parte à empresa editora... Títulos como o The Wall Street Journal, o The New York Times ou o The Washington Post irão sobreviver graças aos recursos para continuar a apostar em matérias exclusivas, frisam inúmeros especialistas. Rentabilizar esses trabalhos que requerem um investimento significativo – em deslocamentos, compra ou aluguel de material etc. – permanece, contudo, o desafio final. Richard Stengel, da Time, defende que “trabalhos exclusivos e visões alternativas são produtos valiosos, tendo de ser pagos”. Marshall Yngwerson, do The Christian Science Monitor, sublinha que “o primeiro a adotar esta solução tornar-se-á irrelevante (no mercado da Internet), porque os consumidores irão imediatamente à procura do conteúdo grátis. Todavia os títulos online não estão preparados para substituir os irmãos mais velhos em papel. Em fonte de receita, ainda que os jovens se tenham habituado a não pagar o que consomem, a Internet perde para a imprensa: “o mercado de jornais ainda é de onde provém a maioria das receitas” (GARRIDO, 2009). Ainda que a expansão do online permaneça crítica para o futuro de grupos editoriais, visto os anunciantes redistribuírem os investimentos de acordo com a mudança de comportamento do público. Apostaram, pela primeira vez, mais no online do que em jornais nacionais em 2006 (no Reino Unido). A mídia “antiga” sente-se, portanto, ameaçada. Contudo resta-lhe um trunfo: a confiança/credibilidade. Onde procurar a verdade? “Sem a confiança dos leitores, as mídias não têm produto. É o elemento mais importante da estratégia do jornal”, segundo Elisabeth Ribbans, editora do The Guardian. Especialmente num setor cujo maior serviço público é desvendar e denunciar más práticas e corrupção a todos os níveis da sociedade e manter os governos e os negócios debaixo do olho. Capturar a mente dos leitores pede, por isso, uma cobertura editorial independente: mais de um terço (35%), de aproximadamente 300 jornalistas americanos declararam que notícias que ferissem interesses financeiros de organizações de notícias, frequentemente ou algumas vezes, deixariam de ser noticiadas (SUSTAINABILITY, 2004). O nível de transparência depende de uma gestão da organização alinhada com os valores, em paralelo com a propriedade dos grupos/ empresas de mídia. Após “beliscar” incessan- 68 R E V I S T A D A E S P M – setembro / outubro de 2010 temente a credibilidade da audiência em geral, será o fim da ditadura dos anunciantes e da primazia dos interesses privados dos acionistas, gasta que está a fórmula da concessão do lado editorial aos mesmos? A questão repete-se: “Como equilibrar a lógica comercial com os valores?” À semelhança da maioria dos jornais, ronda a ameaça das ações não lucrativas. O que, por si só, constitui um fator de maior vulnerabilidade da mídia (não apenas a imprensa diária), face à manutenção da independência do jornalismo praticado. “Num mundo a encolher”, todos – sem exceção – têm de justificar a sua existência (no mercado). Manter simultaneamente a presença da imprensa com investimento – que implica a ausência de recursos extra – é uma das apostas do The Guardian que não abdica de ingredientes-chave: reputação de inovação; qualidade; confiança; integridade e recursos para apostar em matérias exclusivas. Na prática – incluindo os proprietários da publicação e os diretores – o investimento do The Guardian para atingir os níveis mais elevados de accountability é proporcional à enorme influência que tem na opinião pública, no interesse público e, por fim, no comportamento desse público. Uma alternativa ao adiamento da mudança e da fuga à prática de um exercício de desformatação. Eis o lado positivo da crise a abrir portas à regeneração. Tratar-se-á do início de uma nova caminhada para o setor? Através do conceito liderado e mantido vivo pela Scott Trust4, bem como pelos seus leitores (e anunciantes), algumas sementes estão lançadas. E a liberdade do grupo, decorrente da ausência de pressões por lucro a curto prazo, garante um jornalismo independente que sustenta, por sua vez, uma democracia efetiva. Ao contrário de outros negócios, o preço de uma possível perda da imprensa/extinção paga-se com o declínio da democracia. Daí a urgência de resgatar um papel de vanguarda que permita à mídia – em particular, a imprensa – encontrar-se entre o papel informativo – que acaba por ser educacional – e a sua ESPM natureza empresarial. Ou repensá-la... NOTAS 1. Professores Miguel Garrido e Sam Scchuflerwhol. 2. Entrevistas realizadas com mais de 10 mil pessoas no Reino Unido. 3. Claude-Jean Bertrand, professor emérito no Instituto Francês de Imprensa. 4. A organização-mãe do Guardian Media Group. BIBLIOGRAFIA EVANS, Richard. THE GUARDIAN, THE OBSERVER, GUARDIAN UNLIMITED, Living our Values: sustainability report 2008, p.8; p.34. LAGE, Sandrine. Entrevista a Nicolas Hulot, ecologista: A crise das crises é uma chamada à ordem. Anuário de Sustentabilidade, Junho de 2009, p.26; Jornal Público. LAGE, Sandrine. Sustentabilidade na mídia: o poder de (in)formar. Envolverde, 2009. LOURENÇO, Ricardo. A crise em letra de imprensa. Jornal Expresso, 23/05/2009, p. 33. MACHADO, Ana. Entrevista a Roberto Cox, sociólogo: As pessoas não querem ouvir falar de ambiente, mas isso vai passar. Jornal Público, 03/04/2009; consulta às 09h03. MORI (2005). You are what You read? RAMONET, Ignácio. A imprensa diária está morrendo? Envolverde, 06/10/2009. SUSTAINABILITY, UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAM AND KETCHUM (2001). Good News and Bad: the media, corporate social responsibility, Executive Summary. SUSTAINABILITY AND WWF-UK (2004). Through the looking glass: corporate responsibility in the media and entretainment sector, estudo de lideres de opinião; PP.1-23. SANDRINE LAGE Mestre em Sustentabilidade pela Universidade de Cranfield (Reino Unido), é autora do livro “Sustentabilidade na mídia: o poder de (in)formar” (Envolverde, 2009), editorialista e palestrante. e-mail: [email protected] setembro / outubro de 2010 – R E V I S T A D A E S P M 69