O MONISMO JURÍDICOESTATALISTA
E A SOCIEDADE GLOBAL:
OS ATUAIS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS
NA OBSERVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
THE MONISM STATE LEGAL
AND THE GLOBAL SOCIETY:
The current epistemological obstacles
in the observation of human rights
Luciano Fernandes Motta*
Guilherme de Azevedo**
[...] sempre que procurarmos por fundamentos,
encontraremos paradoxos.
Niklas Luhmann
RESUMO
O presente artigo insere-se no problemático tema da observação do direito no contexto de uma sociedade global. Tendo como foco de análise dois
pontos que, a nosso ver, constituem uma importante tensão operativa na
comunicação jurídica atual: o monismo jurídico de viés estatalista e sua
(in)congruência na forma de sociedade global. Estes dois elementos, monismo jurídico-estatalista e sociedade global, serão, num primeiro momento, trabalhados de forma “isolada”, para atender o escopo de visualizarmos
suas linhas gerais caracterizadoras. Superando-se esses dois tópicos conceituais, em um terceiro momento, dar-se-á a materialização de uma
*
Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Rua Universitária, 1.619, Caixa Postal 701, Jardim Universitário, Reitoria, 85819-110, Cascavel, PR, Brasil. Correspondência para / Correspondence to: Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Direito. Av.
Tarquínio Josli dos Santos Polo Universitário, 85857-970, Foz do Iguacu, PR, Brasil. E-mail:
[email protected].
** Mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950 – B.
Cristo Rei, 93.022-000, São Leopoldo, RS, Brasil. Correspondência para / Correspondence to:
Av. Theodomiro Porto da Fonseca, n. 1251, Bairro Cristo Rei, São Leopoldo/RS – CEP 93020-080.
E-mail: [email protected].
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tensão reflexiva catalisada sobre eixo de sentido dos direitos humanos.
Reobservados como médium (hipótese) social altamente complexo, os
direitos humanos podem ser problematizados como um importante referencial epistemológico de denúncia da insuficiência da matriz estatalista,
atualizando a observação do direito no plano de uma sociedade global. Para
tanto, opta-se, como matriz de observação do tema, a contribuição da
Teoria dos Sisitemas Sociais Autopoiéticos, de Niklas Luhmann.
Palavras-chave: Sociedade global; Direitos humanos; Monismo jurídico.
ABSTRACT
This article is within the problematic issue of observing the law in a global
society. Focusing on two points of analysis that are an important operating
voltage in the current legal notice: the bias of legal monism state and its
(in) congruence in the form of global society. These two elements, monism
state legal and global society, will be in the first moment worked in an
isolated form to attend the scope of view its general characteristic. Overcoming these two conceptual issues, in the third moment, will make the
realization of a reflexive voltage catalyzed upon an axis of direction on
human rights sense. Re-observed as social medium (hypothesis) highly
complex, human rights can be problematized as an important reference
epistemological of allegation of the insufficient state legal, updating the
observation of law in a global society. The theoretical support that we rely
to conduct the observation of the subject is the Theory of Systems Social
Autopoietics of Niklas Luhmann.
218
Keywords: Global society; Human rights; Legal monism.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Experimentamos, hodiernamente, uma sociedade globalizada. Tal assertiva
é tão necessária quanto vazia, pois ao iniciarmos nossa reflexão com essa proposição, sobre o ponto de vista semântico, estamos dizendo absolutamente nada.
Portanto, no presente contexto, ela vale inexoravelmente como proposta provocativa. Não se faz mais pertinente, ou relevante, voltarmos nossa energia argumentativa para a explicitação da existência ou inexistência de uma categoria que
já funciona – ainda que tentemos obnubilar – como uma distinção reflexiva de
base, isto é, como uma condição de possibilidade para qualquer desenvolvimento
teórico contemporâneo com pretensões de universalidade1.
1
É por nós conhecida a distinção defendida por Mireille Delmas-Marty entre globalização e universalização. Esta confere à globalização uma conotação de “difusão espacial”, mais voltada para
o âmbito da economia; enquanto a acepção de universalidade se definiria por um “compartilhar
de sentidos”, ligados ao plano dos direitos do homem. Contudo, para fins do presente texto, e
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O monismo jurídico-estatalista e a sociedade global
O ato de questionar ou perquirir pela forma global da sociedade já se dá
sobre os trilhos epistêmicos da globalização, ou seja, qualquer construção reflexiva que delimite sua problematização no escopo de avaliar se estamos ou não na
globalização – ou numa versão mais ingênua, se a globalização deve ser estimulada ou negada – possui o mesmo sucesso que a imagem de alguém tentando saltar
sobre a própria sombra. Não podemos nos blindar dessa dinâmica para, então,
tentar abarcá-la, numa postura semelhante à de um observador que tenta se isolar
do seu objeto para, posteriormente, compreendê-lo e defini-lo. Inexoravelmente,
observamos a globalização dentro da globalização.
Posta essa distinção observatória inicial, delimitamos o foco de análise do
presente artigo em dois pontos que, a nosso ver – valendo-nos das lentes da Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos, de Niklas Luhmann –, constituem uma
importante tensão operativa na comunicação jurídica hodiernamente: o monismo
jurídico de viés estatalista e sua (in)congruência na forma de sociedade global.
Esses dois elementos, monismo jurídico-estatalista e sociedade global, serão, num
primeiro momento, trabalhados de forma “isolada”, para atender o escopo de
visualizarmos suas linhas gerais caracterizadoras.
Superando-se esses dois tópicos conceituais, em um terceiro momento, dar-se-á
uma materialização – em um processo dialético – de uma tensão reflexiva catalisada sobre eixo de sentido dos direitos humanos. Reobservados como médium
(hipótese) social altamente complexo, os direitos humanos podem ser problematizados como um importante referencial epistemológico – se superados alguns
obstáculos – na composição de formas alternativas à unidade jurídica de matriz
estatalista, atualizando a observação do direito no plano de uma sociedade global,
logo, globalizando o direito na globalização.
219
A UNIDADE DO MONISMO JURÍDICO: O “DIREITO PELO ESTADO”
Pontes de Miranda abre sua obra Democracia, Liberdade, Igualdade com alguns
questionamentos fortemente intuitivos sobre a dinâmica social de sua época, uma
vez que ele indagava: “Vai o resto do século XX viver sobre sobressaltos, guerras
de crescente crueldade, cataclismos sociais insuperáveis? Ou vai encontrar fórmulas que satisfaçam os homens”?2
Não se faz necessário um grande esforço para alcançarmos algumas conclusões possíveis para tais questionamentos. Uma dessas conclusões responde a
2
respeitando certo recorte de problematização, trabalharemos a relação da globalização com a universalidade a partir do campo da pós-modernidade, privilegiando uma aproximação crítico-semântica de matriz sociológica. Mesmo assim, ver: DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para
um direito mundial. Tradução de Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 8-9.
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade (os três caminhos). São Paulo: Saraiva,
1979. p. 3.
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primeira pergunta feita pelo jurista brasileiro com um sonoro “sim”, isto é, experimentamos ao longo do século XX situações de violência e terror em dimensões
e formatos inéditos, a saber: guerras em plano mundial (nazi-fascismo), bipolarização ideológica da guerra fria, produção de governos totalitários de direita e de
esquerda, suspensão de direitos fundamentais, acentuação do fundamentalismo
religioso etc. Contudo, quando enfrentamos o segundo questionamento de Pontes encontramos mais dificuldades, sendo que se apresenta mais efêmera qualquer
assertiva que pretenda trajar-se como a “fórmula que satisfez os homens”.
Mesmo concordando-se com o ainda velamento da almejada fórmula de
harmonização social pontiana, podemos, entretanto, voltar a nossa análise para
uma face importante dessa conjuntura: a produção do direito e sua (in)dependência do Estado.
Sob a égide de um pretendido tratamento científico da ideia de relação, diz-nos
Pontes de Miranda: “Ao fato de haver, entre dois pontos considerados, algo que
sem um deles, não ocorreria, chamamos relação”3. Logo, perguntamos: considerando-se os nomes “direito” e “Estado” nesses dois pólos, que relação se dá?
220
A abstração do raciocínio de Pontes de Miranda4, ao partir de uma premissa
lógico-matemática, leva-o a configurar o Estado como algo designado por diversas
características. Dentre elas, a que mais nos interessa é a concepção de que “o conjunto de todas as relações entre os poderes públicos e os indivíduos, ou daqueles
entre si, é o Estado”5. Dessa forma, escamoteado nesse panteísmo estatalista – talvez limitado a um das dimensões desse grande personagem leviatânico – podemos
encontrar o direito, posicionado como organizador da soberania, no posto de limitador do poder oficial6.
3
4
5
6
Ibid., p. 5.
No que se refere à distinção do pensamento de Pontes de Miranda, temos nossa opinião endossada por Leonel Severo Rocha, para quem “Pontes de Miranda est à l’origine de la premiére dela
premiére tentative de realisation d’une sociologie du droit au Brésil, principalement par la publication de son Sistema de Ciência Positiva do Direito em 1922, et par son Introdução a Sociologia
Geral (1926). Dans cex deus textes, il cherche à elaborer une science du droit, à partir des contributions du néopositivisme logique.” (ROCHA, Leonel Severo. Le destin d’un savoir: une analyse
des origines de la sociologie du Droit au Brésil. Droit et Société, n. 8, 1988. p. 120.)
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade (os três caminhos), p. 6.
Como na doutrina clássica de Carlos Campos: “[...] o Estado é soberano, então seu poder é ilimitado; o Estado é limitado, então não é soberano, há um poder sobre ele, do direito por exemplo; mas a limitação desse Direito é uma limitação voluntária, então permanece o poder soberano
com a possibilidade de extralimitações, e deixa de ser limitado, pois que fica à sua vontade e
critério velar os limites. [...] Na realidade o Estado é limitado porque nasceu e cresceu dentro do
fato da coexistência, como uma técnica de conciliação e realização dos interesses essenciais surgidos da coexistência. Não compreenderíamos perfeitamente as superestruturas teóricas dos sistemas morais, religiosos, políticos, que nos seus elementos visíveis apresentam às vezes uma
grande pobreza de organização, se não fora a supervalorização afetiva do valor em si, místico,
teológico e metafísico com que lhes enchemos as disjunturas e completamos os seus materiais.”
(CAMPOS, Carlos. Sociologia e filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1943. p. 134-135.)
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O monismo jurídico-estatalista e a sociedade global
Fortaleceu-se não apenas a ideia de que direito e Estado relacionam-se, ou
que entre eles há uma forte imbricação. Na verdade, foi-se muito além disso. A
noção de direito foi absorvida totalmente na configuração burocrática do Estado,
tendo, notadamente, sua raiz no projeto político burguês da Modernidade, onde
se identifica uma forte racionalização do poder soberano, ligada à formalização
do direito e culminando no ideário da unidade monista7 estatalista8.
Centrando-se na materialização dos interesses da classe burguesa, que necessitava de uma ferramenta hegemônica de apoio à sua expansão mercantilista, o
direito vai operar junto ao Estado numa ótica de impessoalidade, movimentando
a figura estatal como um poder “despersonalizado”, fundamentado em um procedimento formal-racionalista titular da coação punitiva. Sob o manto da “lei”, o
intitulado “Estado de Direito” manifesta-se como a única ação oficial de apreensão da sociedade, submetendo-se esta à condição de massa passiva, lida apenas
sob o prisma do corpo legal unitário positivado.
O monismo jurídico impõe-se como paradigma, tendo como sentido básico
a referência de que o único direito possível e existente dá-se pelo Estado. Esse direito é montado como uma ordem hierárquica, que pretende conferir segurança,
certeza e previsibilidade – valores tipicamente modernos –, no afã de instrumentalizar o crescimento e a expansão das relações econômicas da burguesia. Desse
modo, na esteira deste raciocínio, merece destaque a organização de uma “nova”
epistemologia que irá consolidar-se no curso edificante do monismo jurídico.
221
Podendo ser definida como o ápice9 da ambição racional da modernidade, a
dogmática jurídica apresenta-se como o arquétipo da “assepsia axiológica”, visando
incorporar no direito o modelo vigente de Ciência. Essa dogmática é montada como
um programa fechado de decisões, orientado por procedimentos hierárquicos
7
8
9
Acompanhamos a inretocável definição de monismo jurídico de Antônio Carlos Wolkmer: “Tal
concepção atribui ao Estado Moderno o monopólio exclusivo da produção das normas jurídicas,
ou seja, o Estado é o único agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas
de relações sociais que vão se impondo. (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa-Omega, 2001. p. 46.)
Como bem sintetiza Luiz Fernando Coelho “[...] o princípio da estatalidade do Direito desenvolveu-se concomitantemente com a doutrina política da soberania, elevada esta à condição de
característica essencial do Estado. Com efeito, o Estado Moderno defini-se em função de sua
competência de produzir o Direito e a ele submeter-se, ao mesmo tempo em que submete as
ordens normativas setoriais da vida social.” (COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito.
Curitiba: HDV, 1986. p. 258.)
A nossa inserção da dogmática jurídica na problematização do monismo acompanha a ressalva
feita por Antonia Carlos Wolkmer: “Ainda que se faça uma diferenciação entre positivação e o
processo de dogmatização, os critérios de validez da positivação que envolvem as formas discursivas do monismo jurídico tendem a se associar nos marcos de uma circunstancialidade privilegiada.” (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no
direito, p. 62.)
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atribuidores de sentido válido, produzindo a ideologia da “segurança” por um
processo de repetição e negação da pluralidade.
Esse saber dogmático, que se organiza no avançar da perspectiva moderna, tem
como sua linha maior de expressão, como demonstra Leonel Severo Rocha, o controle do tempo. Pela relevância desse elemento, impõe-se a sua transcrição integral:
A programação condicional é a dominante no Direito quando se toma
uma decisão e se tem o cuidado de agir sempre como todo mundo age
em situações semelhantes, ou seja, agir dogmaticamente. Se tomarmos
uma decisão tendo o cuidado que os juristas têm, porque são treinados,
vamos anular o tempo, vamos tomar essa decisão repetindo a maneira
como os tribunais e como a jurisprudência, decidem em situações semelhantes. Então, a nossa produção de tempo de diferença é mínima, porque
procuramos repetir, ao máximo, a maneira como se decide no Direito.
Repetimos como tanta ênfase que, ao fazermos isso, negamos a diferença;
assim enfatizamos muito mais a repetição do que a diferença. De alguma
maneira, controlamos o tempo dizendo que aquela produção de decisão
já estava definida no passado. Num primeiro momento, então, o tempo
que é a capacidade de produzir diferença numa decisão, é quase que
anulado pelos juristas, porque tendem a decidir conforme o passado10.
222
O normativismo é a grande versão jurídica do mito da pureza científica11,
especialmente na vertente desenvolvida por Hans Kelsen. O comprometimento
kelseniano com sustentação do monismo jurídico é total, posto que Kelsen desconsiderava qualquer possibilidade de leitura de um dualismo entre direito e
Estado12. Para ele, os dois são fundidos num amálgama normativo-coativo, gerando a ordem oficial.
O tratamento de toda a pluralidade presente na dinâmica social, segundo
essa concepção, deve ser mediado pela moldura – prêt-aporter na expressão waratiana13 – da ordem unitária do direito positivo. Produto este, inexoravelmente,
10
11
12
13
ROCHA Leonel Severo. O direito na forma de sociedade globalizada. In: ROCHA, L. S.; STRECK,
L. L. (Org.). Anuário do programa de pós-graduação em direito. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2001. p. 131-132.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
Em uma passagem lapidar, Kelsen procura desqualificar a argumentação voltada para a dualidade
entre Estado e Direito, ele ironiza: “O exemplo mais frizante, na história do espírito humano, é-nos
dado pelo problema da relação entre Deus e o mundo (a natureza). Foi necessário um trabalho
infinito para convencer o homem de que Deus não é mais do que a personificação da natureza,
concebida como sistema de leis. Este problema da relação entre Deus e o mundo assemelha-se, em
todos os seus traços essenciais, ao problema da relação entre Estado e Direito.” (KELSEN, Hans.
Teoria geral do estado. Tradução de Fernando de Miranda. São Paulo: Saraiva, 1938. p. 33.)
Luis Alberto Warat cunhou essa expressão quando tratou da questão dos estereótipos significativos, segundo ele, “Todo signo da linguagem contém uma instância ideológica da significação.
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O monismo jurídico-estatalista e a sociedade global
da fusão entre direito e Estado e sustentado epistemologicamente pela ideia de
norma jurídica.
Em que pese ser inquestionável o avanço que representou a formulação da
dogmática jurídica, referindo-nos à importante secularização14 do direito e, consequentemente – pensando-se no paradigma monista –, do próprio Estado, não
podemos deixar de concluir que não é a indiferenciação do Estado e do direito a
“forma de satisfação dos homens” buscada no questionamento de Pontes de Miranda. Por quê? Pelo “simples” motivo que a atual forma de sociedade vai fulminar muitas das estruturas semânticas da unidade jurídico-estatalista (territorialidade), e que, portanto, merece uma análise mais pormenorizada.
A SOCIEDADE DA SOCIEDADE: INDETERMINAÇÃO SEMÂNTICA E
GLOBALIZAÇÃO
De toda a polêmica hodiernamente instalada acerca da possibilidade de uma
descrição da identidade do social temos, ironicamente, uma única conclusão insofismável: a sociedade nunca foi tão adjetivada. Inaugurou-se uma caçada por
fórmulas simbólicas que possam abarcar, suficientemente, toda a especificidade e
complexidade do sistema social.
Indiscutivelmente, está sedimentado o discurso de uma sociedade que experimenta a velocidade da globalização15, que desqualifica crescentemente as considerações teóricas que ainda se apoiam em figuras territoriais, em distinções de
14
15
223
A particularidade do estereótipo consiste no fato de haver tornado ausente ou esclerosa a significação de base. O estereótipo funciona nas sociedades modernas como uma espécie de prêt-aporter
significativo, que permite o controle social ao fornecer modelos de estruturas estáveis do mundo,
operando como forma significativa independentemente das relações sociais.” (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Safe, 1995. p. 72.)
Para uma consistente arqueologia da secularização do Estado e do Direito ver: CATROGA,
Fernando. Entre deuses e césares: secularização, laicidade e religião civil. Lisboa: Almedina, 2006.
Independentemente de nos guiarmos ou não pelas conclusões de Bauman sobre a relação velocidade/globalização, faz-se necessário registrar a qualidade com que o autor problematiza a
questão, isto é: “em vez de homogeneizar a condição humana, a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais tende a polarizá-la. Ela emancipa certo seres humanos das restrições
territoriais e torna extraterritoriais certos significados geradores de comunidade – ao mesmo
tempo que desnuda o território, no qual outras pessoas continuam sendo confinadas, do seu
significado e da sua capacidade de doar identidade. Para algumas pessoas ela augura uma liberdade sem precedentes face aos obstáculos físicos e uma capacidade inaudita de se mover e agir a
distância. Para outras, pressagia a impossibilidade de domesticar e se apropriar da localidade da
qual têm pouca chance de se libertar para mudar-se para outro lugar. Com ‘as distâncias não
significam mais nada’, as localidades, separadas por distâncias, também perdem o seu significado. Isso, no entanto, augura para alguns a liberdade face à criação de significado, mas para outros
pressagia a falta de significado. Alguns podem agora mover-se para fora da localidade – qualquer
localidade – quando quiserem. Outros observam, a única localidade que habitam movendo-se
sob seus pés.” (BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de
Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 25.)
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tempo e espaço. Denuncia-se, numa referência buamaniana16, a liquidez da modernidade, isto é, a sociedade pode, inclusive, ser lida por uma percepção de
mundo que descarta a regulação normativa como forma de organização comunitária; que equivale todos os tipos de manifestação de valores, sem aceitar a possibilidade de julgamentos distintivos entre “bons” e “ruins”, radicalizando a negação de qualquer pretensão diferenciadora do “vicioso” e “virtuoso” na ordem
social.
No avançar dessa dinâmica, materializam-se as controvérsias sob o signo da
pós-modernidade e sua capacidade de retratação fidedigna da sociedade, uma vez
que, na própria organização de seus pressupostos teóricos, parecem se escamotear
aporias que acabam por invalidar sua consistência conceitual. Nesse sentido, torna-se
justificável o debate acerca das fórmulas descritivas da sociedade, propondo-se um
breve trânsito pelas teses voltadas ao tema (pós)modernidade, procurando observar as consequências desse debate no modus operandi do direito.
224
Na linha de frente desse verdadeiro colapso semântico17, perfila-se a polêmica ensejadora da compreensão/aceitação do conceito de pós-modernidade18. Para
alguns, como Gilles Lipovetsky, o neologismo “pós-moderno” teria o mérito de
salientar uma alteração de direção, uma espécie de reorganização profunda do
modo de funcionamento social e cultural das sociedades democráticas. A isto, ele
soma a expansão do consumo e da comunicação de massa; enfraquecimento do
normativismo autoritário e disciplinar; disseminação do individualismo; consagração do hedonismo e do psicologismo; descrença num futuro revolucionário;
e descontentamento com as bases políticas e suas militâncias19.
Segundo Lipovetsky, por todas essas questões, faria sentido falarmos de uma
pós-modernidade. Todavia, o próprio autor problematiza ainda mais o uso do
termo ao argumentar que, atualmente, já vivenciamos a superação do pós-moderno, preferindo trabalhar com o conceito de hipermodernidade20, que ele
16
17
18
19
20
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2001.
A pluralidade de enfrentamentos e abordagens sobre o tema pode ser facilmente comprovada:
WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono
do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Boiteaux, 2004; CASULLO, Nicolas
(Org.). El debate modernidad/posmodernidad. 5. ed. Buenos Aires: El Cielo Por Asalto, 1995; TEIXEIRA, Evilázio Borges. Aventura pós-moderna e sua sombra. São Paulo: Paulus, 2005; COELHO,
Teixeira. Moderno pós-moderno: modos e versões. 5. ed. São Paulo, Iluminuras, 2005; CONNOR,
Steven. Postmodernism. Cambridge: Cambridge University, 2004.
LYOTARD, Jean-Françóis. The post-modern condition. Minneapolis: University of Minnesota, 1985.
LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mário Viela. São Paulo: Barcarolla,
2004. p. 52.
A seguinte passagem apresenta a argumentação de Lipovetsky: “[...] há vinte anos, o conceito de
pós-moderno dava oxigênio, sugeria o novo, uma bifurcação maior; hoje, entretanto, está um
tanto desusado. O ciclo pós-moderno se deu sob o signo da descompressão cool do social; agora,
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O monismo jurídico-estatalista e a sociedade global
próprio desenvolveu. Nessa distinção, Lipovetsky vai localizar sua tese de que as
sociedades ocidentais entraram em um processo de mutação a partir de 1950, não
privilegiando o comum marco de 1989. Com efeito, é, em meados do século XX,
que teria começado a operar o germe da hipermodernidade, representado por
Lipovetsky como a segunda revolução individualista, isto é, um processo de autonomização dos indivíduos em relação às ordens da família, da moral, da política
e das normas sexuais21.
A pós-modernidade também recebe outro tratamento na obra de Scott Lash.
Para ele, o pós-modernismo não seria uma condição, e nem um tipo de sociedade – no sentido que conferimos ao termo quando mencionamos sociedade industrial, sociedade capitalista etc. –, isto é, para ele, o pós-modernismo estaria restrito ao campo cultural22.
Entretanto, independentemente da filiação ou não à existência de uma pós-modernidade – ou da maneira que essa é descrita –, é inegável a crescente adoção
da expressão como forma de diagnóstico da sociedade, mesmo sem possuir um
assento pacificado sobre o seu sentido23.
21
22
23
porém, temos a sensação de que os tempos voltam a endurecer-se, cobertos que estão de nuvens
escuras. Tendo-se vivido um breve momento de redução das pressões e imposições sociais, eis
que elas reaparecem em primeiro plano, nem que seja com novos traços. No momento em que
triunfam a tecnologia genética, a globalização liberal e os direitos humanos, o rótulo pós-moderno já ganhou rugas, tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que anuncia. [...] A
modernidade do segundo tipo é aquela que, reconciliada com seus princípios de base (democracia, os direitos humanos, o mercado), não mais tem contramodelo crível e não pára de reciclar em
sua ordem os elementos pré-modernos que outrora eram algo a erradicar. A modernidade da
qual estamos saindo era negadora; a supermodernidade é integradora. Não mais a destruição do
passado, e sim a sua reintegração, sua reformulação no quadro das lógicas modernas do mercado,
do consumo e da individualidade. Quando até o não moderno revela a primazia do eu e funciona
segundo um processo pós-tradicional, quando a cultura do passado não é mais obstáculo à modernização individualista e mercantil, surge uma fase nova da modernidade. Do pós ao hiper: a
pós-modernidade não terá sido mais que um estágio de transição, um momento de curta duração. E este já não mais o nosso.” (LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos, p. 52 e ss.)
FORBES, Jorge; REALE Jr., Miguel; FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. A invenção do futuro: um debate sobre a pós-modernidade e a hipermodernidade. Barueri: Manole, 2005. p. 68.
Seguno Lash: “[...] en mi criterio, el posmodernismo es estrictamente cultural. Es sin duda una
especie de ‘paradigma’ cultural. Los paradigmas culturales, como los paradigmas científicos, son
configuraciones espacio-temporales. En el plano ‘espacial’ comprenden una estructura simbólica
más o menos flexible que, cuando es sometida a una tensión excesiva, pierde su forma e pasa a
constituir otro paradigma cultural diferente. En el plano temporal – como ocurre con los paradigmas científicos de Kuhn o los discursos de Michel Foucault – toman forma, perduran un
tiempo y luego se desintegran. [...] Mas específicamente, el posmodernismo y otros paradigmas
culturales son lo que yo llamo regímenes de significación [...] El posmodernismo es un régimen
de significación sumamente idiosincrásico. Se trata de un régimen de significación cuyo rasgo
estructurante fundamental es la ‘des-diferenciación’.” (LASH, Scott. Sociología del posmodernismo. Tradução de Martha Eguía. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1997. p. 20 e ss.)
Como bem comenta Eduardo C. B. Bittar: “Apesar de toda problemática que envolve a afirmação
desta expressão, “pós-modernidade” parece ter ganho maior alento nos vocabulários filosófico (Lyotard, Habermas, Beck) e sociológico (Bauman, Boaventura de Souza Santos) contemporâneos,
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A reflexão constituinte do “pós-moderno” possui uma litigiosidade teórica
ímpar, a saber, por uma característica imanente à sua própria materialização como
conceito: afirmar o pós-moderno é, ao mesmo tempo, afirmar o moderno. Está
ocultada na compressão da pós-modernidade a própria ideia de modernidade, mais
precisamente, entender/reconhecer o pós-do-moderno implica construir, necessariamente, uma noção de modernidade, para, então, julgarmos se esta pode ser
compreendida, realmente, como uma realidade que não experimentamos mais.
Notadamente, é nessa premissa supracitada que se posiciona a obra de Anthony Giddens, denunciando mais as consequências de uma modernidade, do que
necessariamente o emergir de uma ruptura inédita rotulada por pós-modernidade. Para Giddens, a desorientação que se existencializa na impossibilidade de
aquisição de um conhecimento sistemático sobre a organização social resultaria,
prioritariamente, da sensação de que muitos de nós fomos apanhados por um
universo de eventos que não compreendemos plenamente, e que parecem, em
grande parte, estar fora de qualquer controle24.
Nesse mesmo sentido, na esteira dessas provocações e polemizando acerca
do conceito de moderno, desenvolve-se a “modernidade singular”, de Frederic
Jameson25. Seguindo na inexorável necessidade de clarificação de uma forma para
226
24
25
e ter entrado definitivamente para a linguagem corrente. O curioso é perceber que é esta já a
primeira característica da pós-modernidade: a incapacidade de gerar consensos.” (BITTAR,
Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 97.)
Assim, Giddens afirma que: “Para analisar como isto veio a ocorrer, não basta meramente inventar novos termos, como a pós-modernidade e o resto. Ao invés disso, temos que olhar novamente para a natureza da própria modernidade a qual, por certas razões bem específicas, tem sido
insuficientemente abrangida, até agora, pelas ciências sociais. Em vez de estarmos entrando num
período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é
‘pós-moderna’; mas isto é bem diferente do que é atualmente chamado por muitos de ‘pós-modernidade’.” (GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São
Paulo: Unesp, 1991. p. 12-13.)
Ao refletir sobre a relação moderno e pós-moderno, pondera Jameson: “Como então os ideólogos
da ‘modernidade’ (em seu sentido atual) conseguem distinguir o seu produto – a revolução da informação e a modernidade globalizada do livre-mercado – do detestável tipo mais antigo, sem se
verem envolvidos nas respostas a graves questões políticas e econômicas, questões sistemáticas, que
o conceito de pós-modernidade torna inevitáveis? A resposta é simples: falamos de modernidades
‘alternadas’ ou ‘alternativas’. Agora todo o mundo conhece a fórmula: isso quer dizer que pode
existir uma modernidade para todos, diferente do modelo padrão anglo-saxão, hegemônico. O que
quer que nos desagrade a respeito desse último, inclusive a posição subalterna que nos condena,
pode apagar-se pela ideia tranquilizadora e ‘cultural’ de que podemos confeccionar a nossa própria
modernidade de maneira diversa, dando margem, pois, a existir o tipo latino-americano, o indiano,
o africano, e assim por diante. Ou podemos seguir o exemplo e de Samuel Huntington, catalogando
tudo isso como variedades religiosas da cultura: uma modernidade grega, ou russo-ortodoxa, outra
confucionista, e por aí vai, até chegarmos a um número toybeeano.” (JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Tradução de Roberto Franco Valente. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 21-22.)
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a modernidade, a polissemia na configuração do “moderno” é analisada por Jameson com a estruturação de quatro máximas: (i) a impossibilidade de não periodização; (ii) a negação da modernidade como conceito filosófico, e sim como
categoria narrativa; (iii) a impossibilidade de organização da narrativa da modernidade sob categorias de subjetividade; e, finalmente, (iv) a afirmação de que
nenhuma teoria da modernidade tem sentido hoje, se não for capaz de chegar a
bons termos com a hipótese de uma ruptura pós-moderna com o moderno26.
O que interessa registrar da contribuição de Jameson para o conceito de pós-modernidade – ou para a dependência deste de uma visão de modernidade –
apresenta-se como uma denúncia da sintomática insistência em se manter velhas
concepções da modernidade diante da situação da pós-modernidade, com suas
múltiplas transformações. Para ele, as máximas anteriormente citadas demonstram
uma alteração de situação, que exige uma resposta teórica diferente, mas sem a
imposição de um “conceito” particular de pós-modernidade ou, também, da mera
conclusão de que não houve nenhuma transformação, que estamos experimentando, ainda, uma realidade social que pode ser rotulada por moderna. Portanto,
poderíamos identificar, na quarta máxima, uma espécie de conclusão acerca do
debate conceitual constituinte do pós-moderno, melhor dizendo, da teoria da
modernidade hodierna depende a construção da forma pós-moderna, bem como
a delimitação de suas rupturas.
Com efeito, independentemente do quadro teórico com o qual nos filiamos,
a dificuldade de manutenção da unidade jurídico-estatalista estará pontuada, uma
vez demonstrada a consistência da desconstrução operada pela(s) atual(is) forma(s)
da sociedade contemporânea. Logo, como podemos insistir na formatação epistemológica do direito da modernidade? Paradigma que pressupõe a dependência
gnosiológica do direito num Estado soberano territorializado, numa operacionalização de decisões por validade hierárquica, na incindibilidade de direito e sanção
etc. Portanto, a inadequação da relação desta anacrônica unidade jurídica com a
atual sociedade não se dá pela dificuldade de responder aos novos problemas, mas,
principalmente, pela sua total incompetência em construí-los coerentemente com
a complexidade social que os produz, como a questão dos direitos humanos,
exemplo privilegiado dessa tensão e que passamos a comentar.
227
A SEMÂNTICA DOS DIREITOS HUMANOS NA GLOBALIZAÇÃO: VALORES
FUNDAMENTAIS OU PARADOXOS?
É inobjetável a relevância dos denominados direitos fundamentais na pauta
da sociedade mundial. Basta apreciarmos sua institucionalização em diversos
níveis, notadamente, em ordenamentos jurídicos e programações do sistema
26
JAMESON, op. cit., p. 112-113.
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político, demonstrando a constante utilização desse meio como forma de observação (valorativa). Portanto, antes mesmo de qualquer movimento crítico direcionado à suspensão da consistência prática desses direitos, é relevante fixarmos
a sua condição de elemento noético da sociedade.
Com a fragmentação valorativa gerada pela falência dos grandes projetos de
sistemas ético-filosóficos, e com a dificuldade de manutenção do projeto da modernidade – principalmente no que se refere ao ideal do Estado totalizante –
produz-se uma espécie de vácuo de significação, uma crise na construção de
universalidades, manifestada muitas vezes pelo retrocesso na secularização e na
retomada de teocracias em versões fundamentalistas, em pleno alvorecer do século XXI. Cabe, com isso, indagarmos pela atual condição de possibilidade de uma
fundamentação de superconceitos, como os direitos humanos. Entre uma noção
de Estado em desconstrução e uma sociedade global pulverizadora de grandes
pautas éticas, qual o trilho de sentido no qual se desenvolve a narrativa atual dos
direitos humanos?
228
Para uma coerente colocação da questão, merece destaque o fato de que o
problema da fundamentação dos direitos humanos é uma herança que a decadência do antigo direito natural nos legou27. Em outros termos, a reflexão sobre os
direitos humanos se complexifica com o esgotamento de leituras cosmológicas,
teológicas ou racionalistas (subjetivista) da fundamentação da ordem jurídica. Os
problemas de validade, de apresentação de critérios justificadores do caráter impositivo dos direitos humanos, passam, inexoravelmente, por um gerenciamento
de paradoxos, tendo sempre como polo de tensão a unidade da diferença entre
indivíduo e sociedade28.
Para observarmos a linha evolutiva de ocultação da paradoxal fundamentação dos direitos humanos, pode corroborar o desenvolvimento de uma breve
arqueologia conceitual. Partindo-se do contratualismo, entendendo como aceita
a estreita relação dessas ideias filosófico-sociais e jurídicas com o surgimento do
conceito de direitos humanos, pode ser observada a coimplicação epistemológica
27
28
LUHMANN, Niklas. O paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento.
Fortaleza: Themis, v. 3, n. 1, p. 153-161, 2000.
No sentido que expressa Giancarlo Corsi; “Los valores envían también a contingencias futuras:
no pueden ofrecer indicaciones concretas sobre cómo realizarse a si mismos, pero crean la ilusión
de que sea posible controlar aquello que sucederá, confrontando continuamente la novedad y lo
imprevisto con esto que se supone adquirido, normal e indiscutible – el valor, a propósito, y la
memoria que se ha sedimentado en referimento a ello. Que se trata de uma ilusión lo demuestra
la realidad y el derecho que los valores no dan indicaciones sobre cómo poder reconocer la realización o la existencia. En este sentido, ellos limitan a simbolizar diferencias futuras que por lo
mismo son aún desconocidas. El caso particular de los valores chamados ‘derechos humanos’,
consciente do abordar un ponto delicado y por cierto central en la discusión actual sobre el complejo temático valores-derechos fundamentales-individuales-humanos: la relación entre individuo y sociedad.” (CORSI, Giancarlo. Valores e derechos fundamentales en perspectiva sociológica.
Metapolítica. México, v. 5, p. 159-169, out./dez. 2001.)
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contrato social/direitos humanos. Acompanha-se a construção da tese contratualista, mas invertendo-se a relação de fundamentação, isto é, não são os indivíduos
que fundamentam o contrato social, mas o contrato social que fundamenta os
indivíduos. Portanto, nessa perspectiva, os direitos humanos seriam os direitos
que podem se passar do estado de natureza para o estado civil – justamente
quando o contrato não pode ser denunciado29. A paradoxalidade da fundamentação dá-se pelo fato de o contrato ser vinculante graças somente a si próprio.
Contudo, posteriormente, a estruturação semântica erigida a partir da ideia
de contrato social começa a ser vista como insuficiente, pois passa a ser observada
a sua circularidade argumentativa como uma ideologia da burguesia. Com isso,
põe-se em prática um processo de positivação, procurando-se escamotear o paradoxo emergido da circularidade do contratualismo.
Nessa crescente linha de positivação, que não aprofundaremos mais devido
ao limite de espaço do presente trabalho, logo chegamos à constitucionalização
dos direitos humanos, isto é, torna-se comum/necessário incluir textos sobre esses direitos nas constituições, de forma sistematizada. Dentro dessa nova busca
por fundamentação dos direitos humanos, somente a estruturação sistemática
dentro de textos constitucionais pode conferir a estabilidade dos direitos humanos
que, agora, passam a ter como nova tentativa de estruturação/fundamentação o
argumento constitucional. A curiosidade dessa perspectiva se manifesta no fato
de que direitos anteriores (direitos humanos como “pré-positivos”) ao fenômeno
constitucional procuram alcançar a sua fundamentação (eficácia) por uma premissa de reconhecimento, baseada no silogismo do pertencimento a uma estrutura
positiva hierarquicamente superior. Logo, experimentamos a latência do desenvolvimento de um novo paradoxo no discurso de fundamentação dos direitos
humanos: a necessidade de positivação de um direito pré-positivo.
229
Em que pese a razoabilidade da desconstrução e reconstrução histórico-social
da fundamentação dos direitos humanos, simbolizada pelo jogo semântico de ocultação e revelação de paradoxos, a atual conjuntura mundial ainda está a espera de
uma nova reconstrução epistemológica dos direitos humanos, isto é, como operar
com os direitos humanos de forma eficaz se ainda temos como base uma noção de
hierarquia vertical montada a partir de um Estado Constitucional (Moderno) de
limitação territorial, inserido em uma sociedade horizontal (pós-moderna) de dimensões globalizantes?30
29
30
LUHMANN, op. cit., p. 157.
É o que de forma precisa aponta Niklas Luhmann: “E acima de tudo, essa necessidade de positivação torna o gerenciamento do paradoxo dependente da instituição do Estado Territorial. Isto
deixa a base de validade dos direitos humanos obscura para a sociedade global – um problema
crescentemente urgente nos dias de hoje, que ninguém poderá resolver simplesmente mediante a
negação do direito da sociedade global.” (LUHMANN, op. cit., p. 153-161.)
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Com a inadequação do modelo estatalista, uma importante pista nós é dada
pela ordem internacional:
Já se observou, porém, que a ordem jurídica do direito mundial parece-se
antes com formas organizatórias de sociedades tribais, ou seja, que precisa abdicar de força sancionatória organizada e da possibilidade de definir delitos jurídicos à luz de regras conhecidas. De qualquer modo, a
atenção para problemas do tipo descrito parece sempre aumentar juntamente com a observância sobre o assoberbamento e inadequabilidade de
garantias estatais de tutela. Justamente isto leva à pergunta se não serão
necessárias formas novas de “desdobramento” desse paradoxo mediante
distinções que a elas se refiram31.
230
Na contramão das já tradicionais críticas feitas ao campo internacionalista
do direito – como ausência de objeto, inexistência de sanção, dependência da
esfera política etc. –, a operacionalização dos direitos humanos se fortalece justamente nesse seguimento. Ora, aquilo que ordinariamente é apontado como
fraqueza do direito internacional é justamente o que está, atualmente, alçando-o
à condição de esfera privilegiada da comunicação/efetivação dos direitos humanos.
Justamente por não possuir uma comprometida estrutura formalizante, o campo
jurídico internacional tem mais condições de dialogar com novos atores sociais e,
com isso, harmonizar a dinamicidade da(s) nova(s) forma(s) da sociedade com o
imperativo de vinculação do direito.
Tal demanda é inexorável, basta voltar a nossa atenção para os importantes
jogos de poder que envolvem a produção de relatórios e comunicações internacionais sobre a violação de direitos humanos, e focarmo-nos nas consequências
diretas e indiretas que esses mecanismos geram a um país que, porventura, seja
negativamente apontado32.
Como irretocavelmente sintetiza a doutrina de Deisy Ventura, “quem critica a
insustentável leveza do direito internacional, ignora que o direito interno padece, também
ele, de um imenso déficit de efetividade”33. No que tange à observação de novos direitos
– direito ambiental, direito penal econômico, contratos eletrônicos –, notabilizados por
uma ontologia do risco e por uma inédita e forte transposição espaço-temporal, a manutenção de uma metodologia jurídica territorializante é, no mínimo, insuficiente34.
31
32
33
34
LUHMANN, op. cit., p. 159.
O crescimento da pressão comunicativa dos direitos humanos deve, em boa parte, ao trabalho realizado por ONG’s. Ver, por exemplo, o trabalho de grande repercussão do Human
Rights Watch disponível em: <http://www.hrw.org>, e do grupo Conectas disponível em;
<http://www.conectas.org>.
VENTURA, Deisy. Hiatos da transnacionalização na nova gramática do direito em rede: um esboço de conjugação entre estatalismo e cosmopolitismo. In: BOLZAN, J. L.; STRECK, L. L. (Org.).
Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007. p. 99.
O que de forma direta é duramente atacado por Ventura: “O credo da pirâmide monista, nostalgia patética de quem ignora as entranhas do processo legislativo ou é pouco assíduo nos folguedos
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Contudo, com a mesma clareza e precisão que pode ser constatado o término do projeto teórico representado pelo monismo-jurídico estatalista – ao
consideramos este no contexto da sociedade global – não podemos apontar a nova
assimetria desparadoxizadora do direito. Por meio do exemplo dos direitos humanos, observamos as constantes tentativas de (re)fundamentação do conhecimento jurídico (vide direito natural, contratualismo, positivação constitucional
etc.). Entretanto, mesmo reconhecendo-se o seu caráter não uníssono, algumas
linhas do que será o primeiro passo pós-desconstrução do monismo jurídico-estatal já estão sendo feitas. Seja pela poligamia de Têmis, na linha de Marcelo
Neves35, seja na recuperação de um cosmopolitismo kantiano, na trilha de Deisy
Ventura. A formatação de opções nesta zona de reflexão do conhecimento jurídico possui, “obrigatoriamente”, a tônica da superação dos “obstacles
épistémologiques”36: observar um direito além do Estado e observar a sociedade na
sociedade.
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35
36
jurisdicionais, foi a pique, já faz tempo, e graças às mais variadas sortes de pensamento e ação. No
entanto, as continuidades mentais dogmáticas, embora desmentidas pela teoria e pela prática,
mantêm-se como prismas ativos no molde que dá forma a numerosos enfoques jurídicos. Incontáveis pendências metodológicas corroem, assim, a relevância política e social da cultura jurídica.”
(VENTURA, Deisy. Hiatos da transnacionalização na nova gramática do direito em rede: um esboço de conjugação entre estatalismo e cosmopolitismo. In: BOLZAN, J. L.; STRECK, L. L. (Org.).
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