Sobre Joana Bastos A$T, 2010 Por Miguel Amado Abril 2010 A actividade de Joana Bastos inscreve-se no movimento modernista de questionamento da autonomia da esfera artística. Bastos rompe com a visão burguesa da arte, associada à produção de objectos para consumo no âmbito do sistema capitalista, e explora as circunstâncias do quotidiano como matéria-prima de uma acção politicamente comprometida. A artista contrapõe à natureza ilusória da representação do mundo, característica das práticas artísticas tradicionais, a apropriação da realidade segundo uma lógica de desconstrução da sociedade do espectáculo. Daí que as suas obras assumam, privilegiadamente, a forma da performance (ou a respectiva documentação), a disciplina que, historicamente, mais contribuiu para a diluição da fronteira entre o público e privado e, assim, para fusão do estético e do sociológico. Enquanto estudante em Londres, entre 2006 e 2008, a forte instabilidade financeira de Bastos atenuou-se com empregos temporários tão corriqueiros como ama de crianças ou, mais inusitadamente, consultora comercial numa agência imobiliária. Inspirada por estas experiências, a artista encetou um processo de investigação acerca do universo laboral – especialmente o do sector dos serviços, maioritariamente composto por mulheres em lugares subalternos – como microcosmos das relações humanas. Para si, os padrões de comportamento estabelecidos neste contexto ecoam as vivências no campo social, reificadas pela ordem simbólica imposta pelo capital. Resultarou desta reflexão um conjunto de obras, agora reunido pela primeira vez, que aborda a intersecção da economia com o inconsciente colectivo. Tal comprova-se, aliás, com A$T (2010), a obra que intitula a exposição, nada mais do que o tracejado, nas costas de um cartão de visita, da expressão “A$T”, um jogo visual entre a palavra “Art” e o cifrão que simboliza moedas como o dólar norte-americano. Next Money Income? (2007) é a obra mais exemplar deste núcleo. Trata-se de uma sequência de retratos de Bastos enquanto funcionária da empresa Kalmas Residential, membro da equipa de frente de casa da National Gallery e auxiliar doméstica, acompanhada por uma fotografia branca que indicia futuros postos. Como o seu título sugere, esta obra revela a ansiedade causada pela busca de um rendimento mínimo na era da precariedade ocupacional, exprimindo as múltiplas estratégias de sobrevivência implementadas para quebrar um potencial ciclo de pobreza. Próxima desta proposta encontra-se outra do mesmo ano, Kalmas Residential, Joana Speaking. Esta obra consiste na réplica de um anúncio da Kalmas Residential cujo motivo central é o respectivo escritório, no qual Bastos aparece, em primeiro plano, sentada à secretária e a falar ao telefone com um cliente. Apesar do carácter encenado das imagens, ambas as obras traduzem situações verídicas, assim reflectindo os duplos papéis desempenhados por Bastos. Na obra I Rather Be a Cleaner (2008), Bastos retrata-se empunhando o cabo de um aspirador. Este objecto, a par da farda que a artista veste, enuncia mais uma ocupação tipicamente feminina, a de empregada de limpeza. Porém, pormenores da indumentária, como as calças de ganga e as sapatilhas de marca, curto-circuitam esta representação de género, demonstrando a crescentemente comum contradição entre a posição de classe e o perfil profissional. Esta obra reveste-se da radicalidade patente em Pescadinhas de Rabo na Boca (2008), um painel electrónico cuja mensagem, com cariz burocrático, equaciona a condição de emigrante, distinguida pelo desenraizamento identitário face ao Estado. Esta postura crítica manifesta-se, ainda, em obras como Non-commercial Artist (2008), na qual a artista solicita ao espectador um donativo através da apresentação dos adereços de um mendigo, ou Magazine Distributor (2009), um vídeo protagonizado por Bastos, no qual distribui revistas em Londres, que alude à indiferença dos transeuntes perante os vendedores de rua. Realizadas entre 2007 e 2010, outras obras remetem, igualmente, para assuntos económicos, em geral, e para o terreno do trabalho, em particular. No vídeo One Shift Smile (After Line Manager Instructions) (2008), Bastos sorri ininterruptamente durante 45 minutos, o período de um turno de frente de casa de um museu, assim sujeitando-se às instruções respeitantes à linguagem corporal dos manuais de comportamento de profissões como estas. Em Carta de Recomendação, uma série iniciada em 2006, agregam-se diferentes tipologias destes documentos, dos mais institucionais aos mais informais. Em Kitchen Notes (2007-10), juntam-se 62 recados de cozinha deixados à artista por uma patroa, que balançam entre o tom confessional e a atitude de chefia. Em qualquer uma destas obras, manifesta-se a despersonalização subjacente à ideologia corporativa que define a actualidade, sinónimo do império do dinheiro na época moderna. On Joana Bastos A$T, 2010 By Miguel Amado April 2010 Joana Bastos’s activity can be seen in the light of the modernist movement that questions the autonomy of the artistic sphere. Bastos breaks with the bourgeois vision of art, which is associated with the production of objects for consumption within the framework of the capitalist system, and explores the circumstances of the everyday as the raw material for a politically engaged action. The artist contrasts the illusory nature of the world’s representation– typical of traditional artistic practices – with the appropriation of reality according to a logic by which the society of the spectacle is deconstructed. Therefore, her works primarily take on the form of performance (or its documentation), the discipline that, historically, has contributed most to the dilution of the boundary between public and private, and thus to the merging of the aesthetic and the sociological. While she was studying in London, between 2006 and 2008, Bastos mitigated her financial instability by taking temporary jobs as humdrum as nanny, or more unusually commercial consultant for a real estate agency. Inspired by these experiences, the artist began a research into the field of labour – especially the service sector, which is mostly occupied by women in low-level positions – as a microcosm of human relations. For her, the behavioural patterns that arise in this context reflect occurrences in the social fabric, reified by the symbolic order imposed by capital. From this investigation there resulted a group of works – presented together now for the first time – which deals with the intersection of the economy and the collective unconscious. A$T (2010), the work that lends its title to the exhibition, offers confirmation of this, as it is simply a drawing of the expression “A$T” on the back of a business card, which creates a visual play between the word “Art” and the sign that symbolizes currencies such as the American dollar. Next Money Income? (2007) is the most emblematic work in this group. It shows a series of portraits of Bastos as an employee of the company Kalmas Residential, a hostess at the National Gallery, and as an au pair, together with a blank photograph that indicates future professions. As suggested by the title, this work expresses the anxiety created by the search for a minimum income in an era of occupational precariousness, expressing the multiple survival strategies that are implemented in order to break with a potential poverty cycle. In close proximity to this work, there is another from the same year: Kalmas Residential, Joana Speaking. This work is a replica of an advertisement for Kalmas Residential which shows the company’s office, and in which Bastos appears in the foreground sitting at her desk and speaking on the phone to a customer. In spite of the staged nature of the images, both works translate real situations, thus reflecting the dual roles played by Bastos. In I Rather Be a Cleaner (2008), Bastos portrays herself holding the tube of a vacuum cleaner. This object, together with the uniform that she is wearing, is an expression of another typically female occupation: the cleaning lady. Nevertheless, details of her clothing, such as her jeans and designer trainers, short-circuit this gender representation, showing the increasingly common contradiction between class position and professional profile. This work is imbued with the radicalism that is also present in Pescadinhas de Rabo na Boca (2008), an electronic panel whose bureaucratic message reflects on the condition of the immigrant, who is defined by the uprooted nature of his identity with respect to the state. This critical stance is also evident in works such as Non-commercial Artist (2008), in which Bastos asks viewers for a donation by presenting them with the props of a beggar, or Magazine Distributor (2009), a video featuring her as a magazine distributor in London, which alludes to the indifference of passers-by to street vendors. Made between 2007 and 2010, other works also suggest economic topics in general and employment issues in particular. In the video One Shift Smile (After Line Manager Instructions) (2008), Bastos smiles continuously for 45 minutes, the duration of one shift as a museum’s hostess, thereby submitting to the instructions regarding body language included in code-of-conduct manuals for this sort of job. Carta de Recomendação, a series started in 2006, brings together different typologies of recommendation letters, from the most institutional to the most informal. In Kitchen Notes (2007-10), Bastos collects sixty-two kitchen notes left to her by one of her employers. In all of these works, one can find the depersonalization underlying the corporate ideology that shapes the present, synonymous with the power of money in modern times.