Curso Online A Escola no Combate ao Trabalho Infantil
Professor Miguel Arroyo1
Vídeo Aula 52
Por uma escola Educadora de Direitos Humanos
Vamos passar agora a perguntas que todos nós nos fazemos, cotidianamente:
Como a escola pode ser educadora de direitos humanos? Como a escola pode respeitar a
infância e a adolescência como sujeitos de direitos humanos? Como a docência pode
avançar para se reconhecer como profissional de direitos humanos? Eu vou colocar alguns
pontos que podem servir para cada um de nós, em grupo, ou como escola, tentarmos
pensar sobre esta questão tão séria: A escola pode ser um espaço de garantia, de
aprendizado dos direitos humanos?
1 - A escola tem que entrar na disputa por um imaginário da infância.
Escutamos a cada dia, na mídia, nos jornais, notícias que colocam a infância e a
adolescência, populares é claro, nos morros, nas favelas, na rua, ‘lá embaixo’, como se
fossem a escória da sociedade. Nós estamos num momento em que se paramos o carro no
sinal, fechamos o vidro. Se vamos pela rua e vemos uns garotos, negros é claro, de
chinelos, seguramos a bolsa. Estamos num momento em que o imaginário da infância
popular está ‘quebrado’. Nunca tivemos um imaginário tão negativo sobre a infância e a
adolescência populares. Eu diria que ‘ai teríamos que entrar’. Se alguém tem que ser
advogado, não do diabo, mas advogado mesmo dessa infância e adolescência popular,
temos que ser nós. Tem que ser a própria escola popular e a docência popular.
Nós temos que mostrar que essa infância e adolescência não têm um protagonismo
tão negativo como a mídia e a sociedade proclamam. Nós temos que defender, porque
convivemos com esta infância que tem valores; que sobrevive; que se vê obrigada a
trabalhar, para colaborar em casa; que cuida de seus irmãozinhos, que tem dignidade.
Temos que mostrar o rosto de uma infância digna, de sujeitos de direitos, e este é o
primeiro direito: ter uma imagem digna de um ser humano. Este é um ponto fundamental.
Muitas vezes a escola se deixa enganar e contaminar por esse imaginário tão negativo
sobre a infância popular. Às vezes dentro da própria escola, falamos mal dos alunos.
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Miguel Arroyo é mestre em Ciência Política e doutor em Educação. Atualmente é professor titular emérito
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Foram feitas apenas as adaptações necessárias à transposição do texto falado para o texto escrito.
Estamos chegando a um momento em que os próprios professores e a própria escola
pública (vamos falar isso baixinho), tem medo de nossa própria infância. Isso é muito sério.
Eu acho que temos que reagir. Temos que se colocar esta pergunta: O que está
acontecendo com a gente para que nos deixemos contaminar por este vírus, por estas
febres que vêm da mídia, que vem, sobretudo, de um conservadorismo terrível que há em
nossa sociedade, contra todo um povo, inclusive infância, popular. Este é um ponto
fundamental, que deveríamos trabalhar.
2 - Temos que reafirmar o ECA, para que não fique distante, como um eco
distante. ‘O ECA não é um eco distante’. Que se reconheça a infância e a adolescência
como sujeitos de direitos. Temos que voltar a colocar o ECA com toda a força e com mais
urgência hoje do que em 1990, porque se a infância é tratada desta maneira tão negativa,
nós temos que dizer: “Não senhor! Esta infância é sujeito de direitos, e precisa ser tratada
como sujeitos de direitos”.
Mas para isso teríamos também que rever a quantidade de rituais que ainda existem
dentro da escola, que não respeitam esta infância e esta adolescência como sujeitos de
direitos. Uma das coisas que me parece mais importante no ECA, não é que ele nos diz: a
infância tem direito a comer, a saúde, à proteção, mas que a infância tem direito a ser
infância! A adolescência tem direito a viver com plenitude o tempo da adolescência! Esta é
uma questão muito séria para a nossa escola. Quando entro numa escola e vejo crianças
de seis, sete, oito anos, nas primeiras filas, na segunda, terceira, quarta, quinta filas, já com
oito, nove, dez anos, e lá no fundo da sala, às vezes, onze, doze, treze, quatorze anos.
Este é um crime que se comete contra o direito da adolescência a ser adolescente.
A escola com seus rituais de reprovação, retenção, repetência e multirepetência,
está negando o direito primeiro da adolescência: a ser adolescência. Porque não pensar
em acabar com estes rituais? Porque não colocarmos assim, com toda a seriedade: a
infância não tem direito a ser respeitada como infância? “Mas não sabe ler!” (dirão alguns).
Mas é adolescente. Tem direito a ser respeitado como adolescente, e não conviver como
criança, aprender como criança, porque sua mente não é mais de criança, é de
adolescente. Sua cultura é de adolescente. Este é um dos rituais mais perversos na escola,
que mais nega direitos da infância e da adolescência. O direito a uma vivência digna,
respeitosa, de cada tempo humano. O direito a um percurso digno, justo, de formação
humana em cada tempo humano. Este é um dos pontos, insisto, que teríamos que mexer
com toda a seriedade.
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3 - Teríamos que rever os conteúdos e o material didático, mas não apenas para
colocar nestes conteúdos pesados, cientificistas, pragmatistas ou utilitaristas, e agora se
fala em currículos por competência, não basta colocar ai uma pitadinha de luminosidade
sobre os direitos humanos. Isso não funciona. Podemos ter uma aula semanal sobre
direitos humanos e depois termos conteúdos diários que não tem uma visão de
reconhecimento de direitos humanos.
A questão que se coloca é como o currículo tem que estar pensado, reorganizado na
lógica do respeito aos direitos humanos, e não na lógica de preparar para o mercado com
saberes pragmáticos, utilitaristas, positivistas, que servem para o vestibular, agora para o
Enem, ou pode ser para a provinha Brasil, com sete anos, ou para o Provão com 14 ou
com 18... Estamos no momento, insisto em que se fala muito em respeitar os direitos da
infância, mas ao mesmo tempo colocamos esta infância e esta adolescência no crivo de
provas, provinhas e provões, para dizer depois: “Esta vendo? A infância popular, a
adolescência popular, se saiu pior do que a infância das camadas médias, que esta na
escola privada”.
Estamos em um momento em que estes mecanismos de avaliação terminam sendo
uma forma de pichação da infância e adolescência popular como menos capazes, menos
dedicados, perseverantes ou inteligentes. É o que sempre tivemos: a visão de que o povo é
inferior e nem sequer oferecendo a ele a escola ele consegue ‘sair deste atoleiro’.
Estas são questões muito sérias. Hoje o que mais colabora para diferenciar infâncias
e adolescências são as políticas de avaliação. O dia em que sai o resultado, logo a mídia
diz “a escola do centro saiu melhor do que a da favela, a escola da cidade, melhor do que a
do campo, a escola da classe média, melhor do que a escola popular”. Em definitivo, mais
uma vez a infância e a adolescência popular, colocadas lá embaixo, classificadas sempre,
no lugar “onde sempre teria que ter ficado e eu não sei para que veio à escola”. Esta é uma
questão muito séria. Insisto, quem tem que “tomar juízo” são estas políticas de avaliação
que entregam dados que deveriam ficar só para mudar a realidade, nas mãos de uma
imprensa que parece que está esperando para dizer: “está vendo? Os jovens, os
adolescentes, das favelas, populares são isso mesmo. Não sei pra que vão às escola.
Estamos perdendo dinheiro e tempo, porque não têm solução”. Esta é uma questão muito
séria. Se alguém tem que ser contra isso somos nós educadoras e educadores que
convivemos diariamente com esta infância e adolescência populares.
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4 - Temos que pensar em outras funções sociais e educativas da escola. A
função da escola não é apenas ensinar conhecimentos que supostamente vão servir para a
próxima série, que vão servir para o vestibular, para o Enem, ou para o futuro. A função da
escola é garantir um presente mais humano, mais digno para a infância e a adolescência
sujeitos de direitos. Esta infância e adolescência não serão sujeitos de direitos no futuro, se
estudarem, se passarem, se aprenderem, se não forem reprovados. Esta infância é sujeito
de direitos no presente. A escola vai ter que se repensar para dar conta de uma infância
desprotegida, de uma infância faminta, de uma adolescência insegura, de uma juventude
sem futuro.
Como fazer isso? Temos que repensar radicalmente a escola e a nossa docência.
Porque a escola e a nossa docência não foram pensadas para dar conta de direitos
humanos, foram pensadas para dar conta do mercado. Ou fazemos esta guinada, ou
continuaremos fazendo o jogo da negação dos direitos da infância e da adolescência.
A escola tem que ser mais humana. A escola é muito dura com a nossa infância e
adolescência populares. Vocês sabem quem são os reprovados? Vinte, trinta, quarenta por
cento. Quem são os defasados? Sessenta, setenta, oitenta por cento... São as crianças e
adolescentes que com muito custo, roubando tempo de sobrevivência, conseguem chegar
à escola. Crianças e adolescente cujos direitos são negados pela sociedade. E a escola
lhes nega o direito mais elementar: serem respeitados e reconhecidos como humanos. A
escola tem que ser mais humana, menos segregadora, mais digna de uma infância e
adolescência humanas.
5 - Finalmente, a escola sozinha não poderá fazer isso tudo. A empreitada de
dar conta dos direitos humanos da infância e adolescência, sobretudo as populares, que
são as que não têm direito a ter direitos, não pode ser só da escola. Esta empreitada tem
que ser da sociedade como um todo. Estamos num momento em que a sociedade diz:
“olhe esta infância e adolescência: mata, rouba, drogada, se prostitui, o que a escola faz?”
A pergunta nossa é “o que a sociedade faz com esta infância e adolescência quebrada?”
Que nos entrega os cacos para nós colarmos. Colar cacos humanos não é fácil. Eu tenho
uma profunda admiração e respeito por tantas educadoras e educadores que tentam colar
cacos humanos de infâncias e adolescências quebradas.
Temos que apelar para o Estado. O Estado tem que dar mais condições para que
estes educadores e educadoras garantam os direitos humanos plenos dessa infância e
adolescência. Antes era mais fácil ser professor. Podia haver 30 ou 40 alunos na sala de
aula que se dava conta. Hoje não damos conta nem de dez, nem de quinze, porque estão
tão quebrados pela sociedade... O Estado tem que reconhecer que hoje ser professor é
muito mais complicado do que antes.
Mas o que estamos vendo? Estados, governadores, secretários de educação e
secretárias que estão apelando contra o professor. “porque não dá conta”, porque os
alunos saíram mal, com baixo desempenho, consequentemente castigam o professor,
porque não deu conta dos bons desempenhos dos seus alunos.
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Estamos num momento em que todos os direitos dos trabalhadores da educação
estão indo por água abaixo. Temos políticas, hoje, que vem de cima, dos governantes,
querendo destruir os trabalhadores da educação. Dizendo que não ensinam, que fingem
ensinar, que não tem compromisso, que não tem seriedade, que tem que ser punidos, que
tem que ser avaliados, e que tem que ser jogados fora, como se fossem lixo. Estamos num
momento muito sério.
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Se quando o ECA chegou havia já consciência dos direitos dos trabalhadores da
educação, e isso contribuiu para reconhecer os alunos como sujeitos de direitos da
educação, na medida em que se quebram o reconhecimento dos trabalhadores da
educação como sujeitos de direitos, estamos quebrando a possibilidade de reconhecer a
infância e a adolescência como sujeito de direitos.
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