Imagem em movimento IMAGEM EM MOVIMENTO: A EXPRESSÃO DA GESTUALIDADE DOS ENFERMEIROS NO CUIDADO MOVING IMAGES: THE EXPRESSION OF NURSES’ GESTURES DURING THEIR CARE ACTIVITIES Lina Márcia M. Berardinelli* Maria José Coelho** Nébia Maria Almeida de Figueiredo*** RESUMO: O presente artigo tem como propósito discutir a expressão da gestualidade dos enfermeiros no cuidado a partir da imagem em movimento. O fundamento teórico provém da Antropologia Visual e dos Estudos Cinematográficos. O delineamento do estudo caracteriza-se como interdisciplinar, de abordagem qualitativa, que, do ponto de vista instrumental, captou informações através de imagens audiovisuais do cuidado e de entrevista com cinco enfermeiros. Foi realizado em um hospital público universitário, situado no município do Rio de Janeiro, em 2002. A partir da análise da própria imagem, os participantes revelaram sensações de descoberta, encantamento, espanto e sentimento de preocupação. Palavras-Chave: Cuidado de enfermagem; gesto; imagem. ABSTRACT ABSTRACT:: The purpose of this article is to discuss the expression of nurses’ gestures during their care activities from the standpoint of moving images. The theoretical basis comes from Visual Anthropology and from Cinematographic studies. The study’s outline is characterized as interdisciplinary, of a qualitative approach; from the instrumental point of view, it has caught information by audiovisual images of the care activities and by interviewing five nurses. The study has been accomplished in a university public hospital at the city of Rio de Janeiro, in 2002. Analyzing their own images, the participants have disclosed sensations of discovering, enchantment, astonishment and concern. Keywords: Nursing care; gestures; image. INTRODUÇÃO A prática profissional de cuidar e os cui- dados realizados em diversos horários do dia, em ritmo intenso, numa repetição do fazer, exigem dos enfermeiros grande movimento corporal, esforço físico e mental, conhecimento, habilidade, sensibilidade e solicitude. Contudo, muitas vezes não percebemos de que é através desses sucessivos movimentos corporais, caracterizados pela ação do cuidar, que origina o gesto, que é a expressão do sujeito que cuida. Também não damos conta de que a expressão do sujeito que cuida imprime na prática o seu modo de ser, a sua cultura e suas histórias. Muito menos percebemos que esses gestos, os mais banais e corriqueiros são os mais importantes1 por que retratam a estética de uma profissão ao mesmo tempo em que atendem às necessidades e desejos p.68 • R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. daqueles que necessitam de cuidados, principalmente com o seu corpo. Às vezes, esses mesmos gestos, por serem tão discretos, passam despercebidos, no entanto, sempre enviam um sinal visual, comunicam mensagens e produzem significados2. Por outro lado, não conseguimos mensurar e trazer para a realidade o que existe de fato embutido nas relações de cuidar que implica na duração e no fluxo do tempo necessário para cuidar de um cliente dependente da enfermagem. As ações são diluídas na multiplicidade dos afazeres dos enfermeiros e de suas equipes, o que paradoxalmente, torna todos esses gestos pouco visíveis no espaço institucional e no imaginário social das pessoas que estão distantes da vida cotidiana hospitalar. Berardinelli LMM,Coelho MJ, Figueiredo NMA Assim, não conseguimos compreender os significados das imagens gestuais que demandam das ações diárias, seja quando o enfermeiro está prevenindo o corpo do cliente, de novas lesões ou criando alternativas e possibilidades terapêuticas. Em outras palavras: entendemos que o cuidado pressupõe gestualidade, duração e ritmo. Por esse motivo, propomos examinar e analisar os gestos por meio das imagens em movimento, porque só elas são capazes de registrar a gestualidade na sua duração e ritmo, na relação com o espaço, na sua interação com a fala, permitindo-nos ver, rever, constatar e reter o que acontece de fato durante o momento de cuidado. Nessa perspectiva analítica, encontramos a posição teórica de Bazin ao afirmar o poder da imagem de preservar a autenticidade da duração, de trazer para imagem a espessura de um instante vivido3. Do mesmo modo, mostramos o instante vivido no cuidado, no sentido de descrição e compreensão do fenômeno. Diante da problemática em foco, traçamos como objeto de estudo **** a expressão da gestualidade dos enfermeiros no cuidado a partir da imagem em movimento e, para direcionar o estudo, estabelecemos como objetivos: identificar por meio da imagem audiovisual as sensações e os sentimentos dos enfermeiros e analisar os significados provocados pelas imagens nos enfermeiros. Como ressaltamos, a análise da expressão da gestualidade dos enfermeiros no cuidado a partir da imagem em movimento é relevante para a prática de enfermagem, transformando as ações dos enfermeiros em significados. A imagem em movimento serve de instrumento de mediação, que leva a realidade até o espectador, desperta vestígios de experiências anteriores, mobilizando sentimentos e emoções, gerando idéias e pensamentos4. Cada gesto ou estímulo mímico adquire muito mais impacto do que se fossem meros acompanhamentos da fala. A expressão fisionômica confere ritmo à multiplicidade de sensações que os enfermeiros imprimem na tela, com a sua prática, proporcionando condições para focalizar o cuidado partir de sua realidade mais concreta e visível. Os movimentos corporais, o agir e o reagir estruturam nova dinâmica de trabalho. Desse modo, o estudo contribui, por um lado, para discutir a relação entre enfermeiros e clientes envolvidos no cuidado e, por outro, a condição desses sujeitos como protagonistas da pesquisa e espectadores de si mesmos. Permite também aos sujeitos filmados lançarem um olhar sobre si mesmo, refletindo sobre o cuidar e a profissão. ARTICULAÇÃO TEÓRICA Quanto aos conceitos teóricos e elemen- tos instrumentais básicos deste estudo, como se trata de uma investigação interdisciplinar, buscou-se instrumentos teórico-práticos de áreas de conhecimentos convergentes, para dar sustentação à abordagem e análise do objeto em questão. Apreender a prática de cuidar e produzir significados para esses movimentos, que envolvem gestos, linguagem verbais e não verbais, mímicas faciais e gestuais durante o cuidado, significa dar visibilidade ao trabalho dos enfermeiros. Nessa perspectiva, pensamos na imagem em movimento e num referencial teórico cujo enfoque possibilite a compreensão, captação, descrição e interpretação da expressão da gestualidade dos enfermeiros no cuidado. Com esse fundamento, recorremos ao apoio de Aumont na compreensão de que “as imagens são feitas para serem vistas e que o órgão da visão constitui o ponto de encontro do cérebro com o mundo” 5:77. A função primeira da imagem é “garantir, reforçar, reafirmar e explicar nossa relação com o mundo visual”5:81. O cérebro interpreta a imagem, gerando “reconhecimento e rememoração” 5:82. Por isso, o processo de observação e análise de uma imagem não constitui operação simples: ele demanda saber como se estrutura sua relação com o espectador5. Entre as relações que se referem à capacidade perceptiva, destacam-se os afetos, crenças, desejos, manifestações vinculadas à classe social, à história e à cultura dos sujeitos envolvidos 5. Outra noção relevante para a presente reflexão é o tempo, uma vez que a dimensão temporal é marcante em nossa vida e nas construções de toda ordem que estabelecemos ao longo da existência. As imagens também existem no tempo, segundo características bastante variadas. Aprendemos que o tempo é, “antes de tudo, a duração experimentada; é o pleno; quer dizer, a forma inalterável preenchida pela mudança. O tempo é a reserva visual dos acontecimentos em sua justeza” 6:28. Traduzindo esse conceito para nosso objeto de estudo, podemos verificar que, na Enfermagem, cada ação, seja da escuta sensível à organização das atividades, ou ainda a realização de um R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. • p.69 Imagem em movimento curativo, tem uma duração; lutamos sempre com (ou contra) o tempo, principalmente quando buscamos preservar vidas, no caso de emergências ou outros momentos de nosso cotidiano. Seguindo esse raciocínio, Deleuze afirma o que a imagem revela é a exatidão, a precisão de determinada realidade6. Na enfermagem, podemos dizer que a forma do tempo relaciona-se não somente com o lugar, o espaço dos objetos, dos mobiliários, das pessoas que cuidam e daquelas que recebem o cuidado, mas implica em mudanças históricas da profissão desde a sua origem até os momentos atuais. Nesse sentido, buscamos apoio no pensamento deleuziano quando ele ressalta que, no tempo, há devir, mudança, passagem e a imagem-tempo é aquela, que dá ao que muda a forma imutável na qual se produz a mudança e acrescenta: tudo que muda está no tempo, mas o próprio tempo não muda, não poderia mudar, senão num outro tempo, ao infinito6:28. Um outro referencial em que nos apoiamos foi a teoria de Munsterberg que reuniu, no livro The film: a psychological study, estudos que conjugavam de reflexões sobre a estética do cinema à investigação psicológica. O cinema possui a “mobilidade das idéias, que não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos externos, mas às leis psicológicas da associação de idéias”7:38. Dentro da mente do espectador, “o passado e o futuro se entrelaçam com o presente”7:38. Segundo ele, “o cinema ao invés de obedecer às leis do mundo exterior, obedece as da mente“7:38, além disso, ajusta os eventos às formas de nosso mundo interior – atenção, memória, imaginação e emoção7. Embora Munsterberg aborde a relação do espectador com o cinema, ele contribui para nossa reflexão sobre os depoimentos dos participantes da pesquisa a respeito da repercussão das imagens em movimento, em termos de manifestações mentais e de mobilização psicológico-emocional. Ao mesmo tempo, examinamos as relações entre a esfera do visível – o que se observa através do vídeo e a esfera do invisível – as sensações provocadas pelos processos mentais traduzidos pela memória, sentimentos e emoções. ABORDAGEM METODOLÓGICA Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem qualitativa, que, do ponto de vista instrumental, captou informações em imagens p.70 • R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. audiovisuais do cuidado registrado em um hospital público universitário. O audiovisual foi o método escolhido, pois permitiu captar, descrever, interpretar a gestualidade dos enfermeiros no cuidado a partir da imagem em movimento e analisar os significados provocados pelas imagens no cotidiano da prática, permitindo acompanhar integralmente todo o processo de elaboração dos enfermeiros no momento exato do cuidar. Considerando a natureza da pesquisa, o cenário escolhido foi o de clínica médica de um Hospital Universitário do Estado do Rio de Janeiro. A escolha do cenário justifica-se por apresentar clientes portadores de enfermidades agudas e crônicas, com tempo médio de internação de 10 dias, em sua maioria dependentes de cuidados integrais de enfermagem. E, portanto, pela possibilidade de apreender o fenômeno do estudo em toda a sua amplitude e complexidade. Fizeram parte do estudo cinco enfermeiros que atuam nas enfermarias de clínica médica do referido Hospital. Nos horários da manhã, da tarde, inclusive os plantonistas, exceto o do período noturno, em função deste ser apenas um para a supervisão de todas as enfermarias de clínica do andar. Após a seleção do cenário e dos sujeitos participantes, procuramos abordá-los pessoalmente nas enfermarias. Na ocasião, expusemos a temática do estudo, os objetivos e a respectiva metodologia, com ênfase na forma de apreensão das imagens. O período de registro de imagens e de coleta das informações mediante entrevistas semiestruturadas desenvolveu-se nos meses de abril a junho no ano de 2002. A presente investigação desde o início seguiu os preceitos éticos que envolvem a Pesquisa com Seres Humanos, segundo a Resolução 196/ 96, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). A entrada em campo somente aconteceu após todos os procedimentos éticos serem legalizados e liberados pelo Comitê de Ética da Instituição, assim como as cartas de informação e de autorização dos participantes da pesquisa e da Instituição terem sido devidamente autorizadas e assinadas. O método de registro audiovisual seguiu as bases da Antropologia Visual que tenta trazer para o real “o homem tal como ele é apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das maneiras como coloca em cena suas ações, seus pensamentos e seu meio ambiente”9:17. Berardinelli LMM,Coelho MJ, Figueiredo NMA Os dados da pesquisa foram coletados em duas etapas. A primeira etapa da captura das imagens seguiu o registro audiovisual realizado com uma câmera filmadora de vídeo digital, formato 8mm, a qual possui a vantagem de ser de fácil uso e manuseio, devido ao seu peso de 250 gramas. Optamos pela filmagem mais artesanal, pois não estávamos interessadas na tecnologia que envolve o registro de imagens. Esse modo de filmagem artesanal é compatível com a apreensão do cuidar de forma compartilhada, mas próxima dos sujeitos participantes, podendo consultá-los a todo instante ou mostrar as imagens captadas no final de uma seqüência de imagens, propiciando a troca de idéias. O momento de registro das imagens seguiu ritmo e cadência adequados ao ambiente que estava sendo filmado, guiado pelas atividades que estavam sendo documentadas, compartilhando o cuidado com as enfermeiras, sem alterar o ambiente e os sujeitos envolvidos. A decisão de fazer parte do grupo deve emergir naturalmente, da própria atitude com a câmera, sem impor as idéias do pesquisador ou ceder ao desejo de dar aparência ou apresentação nova ao material e até mesmo ao próprio local. As imagens foram captadas sem cortes, numa única tomada (plano seqüência*****), filmando o que acontecia de real. As exceções de pequenos cortes somente existiram para troca de bateria ou da fita. Essa escolha técnica de filmar o real na continuidade ampliou a eficácia de apreensão do fenômeno. Na segunda etapa da coleta de dados, as informações foram colhidas seguindo um roteiro de entrevista semi-estruturada. A entrevista foi aplicada aos participantes da pesquisa e o procedimento adotado foi mostrar as imagens gravadas no vídeo Gestos de Cuidar, produzido por Berardinelli 10 , para que eles discutissem e complementassem as informações. O vídeo foi observado inúmeras vezes individualmente pelas pesquisadoras e em seguida em conjunto com os sujeitos envolvidos. Após a visionagem das imagens, realizamos a entrevista individualmente, garantindo-se o sigilo e o anonimato dos entrevistados, como exige a Resolução 196/96, do CNS8, que dispõe sobre Pesquisa em Seres Humanos. Nesse sentido, foi dado nome fictício aos depoentes do estudo. O procedimento foi mostrar as imagens para que eles discutissem e complementassem as in- formações com as seguintes perguntas: como foi a experiência de ter sido filmado? Como foi ter visto a sua própria imagem através do vídeo? O que espanta quando vê as imagens? E o que encanta? Os participantes demonstraram interesse, foram receptivos e se dispuseram a conceder a entrevista. Os depoimentos foram gravados em fitas magnéticas e tivemos o cuidado de fazer pessoalmente a transcrição do conteúdo das gravações. O tempo médio das entrevistas foi de 50 minutos. APRESENTAÇÃO RESULTADOS E ANÁLISE DOS Os entrevistados analisaram as imagens e expressaram opiniões, sentimentos a respeito de suas próprias imagens. Os dados foram organizados, analisados em sucessivas e exaustivas leituras até encontrarmos o eixo norteador, foco do objeto em análise. Em seguida, fizemos mais uma vez a leitura e seleção criteriosa do material colhido observando conjuntamente com as imagens audiovisuais, o que originou dados fundamentais para a representação deste estudo. Para esse momento, contamos com as orientações de Vanoye e Goliot-Lété11 no sentido de estabelecer uma rede de observações, aprender a anotar e deixar de ser um espectador comum. Em seguida, organizados os eixos de análise privilegiados, iniciou-se a análise propriamente dita. Os depoimentos analisados deixam pistas por meio dos discursos e da experiência compartilhada com os participantes. Nesse sentido, apresentamos o dado mais significativo denominando- o: a expressão da gestualidade dos enfermeiros no cuidado. A Expressão da Gestualidade dos Enfermeiros no Cuidado A expressão da gestualidade se apresenta como uma manifestação de comportamentos, significados e produção de conhecimento que se origina a partir do contato do espectador com dada forma da realidade, a qual revela processos de produção de subjetividades por meio da imagem em movimento e da multiplicidade de interpretação que ela proporciona. Portanto, essa categoria traz à tona as primeiras manifestações e significados do que espanta e encanta quando vêem as imagens. R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. • p.71 Imagem em movimento O que me espanta é a pouca comunicação e interação da equipe com o cliente, e até mesmo minha. Eu deveria me comunicar mais com o cliente durante o curativo, parece que ele foi realizado de maneira mecânica. Todos da equipe conversavam entre si sobre o processo de cicatrização, sobre os medicamentos usados na ferida, no entanto a meu ver, esquecemos do cliente. O cuidar foi um ato mecânico. (Dep.Armando) A câmera, como instrumento de coleta de registros, possui a qualidade de provocar nos sujeitos filmados um olhar sobre si mesmos, transportando-os à pessoa filmada, à (re)visitação de uma situação que pode não ter sido ainda observada. A imagem do vídeo permitiu ao espectador observar que o seu cuidado originou um gesto mecânico. A pouca interação com o cliente durante o procedimento realizado despertou-lhe interesse, criou-lhe impacto, preocupação e conduziu a sua atenção para um elemento importante da ação de cuidar. A atenção no vídeo fez com que ele registrasse a sua própria imagem e selecionasse algo de mais significativo dessa experiência do mundo exterior para o interior de sua mente. Com efeito, parece pertinente que Munsterberg refere à atenção, como “de todas as funções internas que criam o significado do mundo exterior a mais fundamental”7:28. Na medida em que “selecionando o que é significativo e relevante, fazemos com que o caos das impressões que nos cercam se organize em um verdadeiro cosmo de experiências”7:28. Na tentativa de “unir as coisas dispersas pelo espaço diante dos nossos olhos”7:28. Esse ponto foi objeto de reflexão do enfermeiro, ao perceber algo relevante na própria imagem e adotou posição crítica à sua maneira de cuidar. A imagem emana reflexões, esclarece pontos de vista, sentimentos e descobertas. Como ressaltou Aumont, o espectador é um sujeito importante: ele constrói a imagem, da mesma forma que a imagem contribui para a construção do sujeito espectador. A maneira de mostrar a imagem ao espectador, perguntar-lhe sobre seus sentimentos é “tratá-lo como parceiro ativo da imagem, emocional e cognitivamente (e também como organismo psíquico sobre o qual age a imagem por sua vez)”5:81. Nessa linha de pensamento, a análise da imagem constitui oportunidade para recuperar valores que se encontram escondidos e pouco visíveis no cotidiano das ações de cuidar e que fundamentam o saber/fazer do enfermeiro. Compartilhar as imagens em movimento, em que os sujeitos da pesquisa analisam suas próprias p.72 • R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. imagens, é uma forma de levá-los à análise do processo de trabalho. Com esse recurso, por meio do exame cuidadoso de seus movimentos corporais e da comunicação não verbal revelaram-se os significados desses gestos, o que propiciou a emergência de um discurso concreto e singular. No momento seguinte, fazendo um balanço das suas imagens, ele afirmou: O que me encantou foi o ato de cuidar, porque a gente faz isso tão corriqueiramente no dia-a-dia que a gente nem percebe o que você pode fazer para o paciente melhorar as condições que ele se encontra. É fascinante cuidar do paciente e nesse momento eu estou revendo o que eu fiz. Foi ótimo. (Dep. Armando) A imagem que o encantou foi justamente a observação do ato de cuidar oferecido ao cliente, pois teve oportunidade de pensar na mudança de suas próprias ações e favorecer melhores condições para o cliente. O encanto se originou da observação dos gestos do cuidado que não se processam por meio de um ato mecânico e sim “mediante uma forma diferente de entender e de realizar o trabalho”12:99. Mas para isso “o ser humano precisa voltar-se sobre si mesmo e descobrir seu modo-de-ser-cuidado” 12::99. Sem esse olhar reflexivo sobre o cuidado praticado inúmeras vezes num mesmo dia, e, não raro, com o mesmo cliente, alguns detalhes passam despercebidos. Não é redundante recordar que o gesto mecânico é compatível com a filosofia que orienta a linha de produção do trabalho fabril e, desse modo, deixa de ser concebido como arte de cuidar, que envolve emoção, sensibilidade e escuta do outro. Por isso, as imagens dos gestos de cuidado estão impregnadas de símbolos e significado, propiciando inúmeras reflexões ao observador. Outro impacto da imagem sobre o espectador pode ser observado diante do seguinte comentário: O que me choca, é quando me sinto impossibilitado muitas vezes de resolver o problema do paciente[...]Eu vivo um pouco essa angústia que o paciente está passando e do que ele está sentindo e também de não ver o paciente evoluir para a cura e sim regredir.(Dep. Adalton) A imagem desperta o olhar do espectador, revelando o invisível, o que está oculto na ação do cuidar e mostrando o sensível e as demandas emocionais do envolvimento e do compartilhar a dor do outro. Nesse patamar, ela choca, faz com que o espectador tome consciência dos limites de Berardinelli LMM,Coelho MJ, Figueiredo NMA seu trabalho, de suas próprias fragilidades e da sua impotência, como ser humano e profissional. O que perturba esse espectador é o sentimento de insegurança pela possibilidade de descobrir que o cuidado oferecido ao cliente foi ineficiente, não alcançou o efeito desejado e não leva à cura. Decorre do exposto a inferência de que a natureza do trabalho em Enfermagem implica a certeza de que cuidar do outro nem sempre é agradável, às vezes, é frustrante, raramente é fácil e, independente de nossa dedicação, conhecimento e empenho, há casos em que a cura pode ser impossível. Quando alguém cuida de outra pessoa, ele a liga à sua fonte de energia e de vida; portanto, se não puder garantir sua cura, pelo menos poderá minimizar seu sofrimento, conforme afirma Figueiredo13. Provavelmente neste ponto resida o significado mais profundo para a ação de cuidar. A recepção do vídeo também levou outra espectadora a relatar sobre a experiência de se ver cuidando, através da imagem em movimento e declara. A imagem, ela te possibilita você ter uma visão melhor daquilo que está sendo feito, o que no dia-a-dia passa despercebido. Quando eu vi as imagens do colega cuidando, fiquei encantada, porque apesar de trabalharmos na mesma instituição, eu ainda não tinha visto ele cuidar.(Dep.Vitória) A imagem originou o gesto de encanto quando a espectadora viu o seu próprio colega cuidando do mesmo cliente e mobilizou sentimentos que revigoraram seu discurso sobre o entusiasmo pela Enfermagem. Assim, “a tela pode refletir não apenas o produto das nossas lembranças ou da nossa imaginação, mas a própria mente dos personagens” 7:38 . Outra depoente, observando suas imagens no vídeo, comentou: Eu acho que essas imagens são importantes para nós. Todos que estavam cuidando precisam vê-las [...] O que me preocupa é como eu estou passando algo de bom para o paciente, o que eu estou favorecendo a ele com minhas energias, como está sendo o meu cuidar. Aí você passa a refletir, a imagem ensina. (Dep. Débora) A interpretação das imagens pela espectadora traz à tona o desafio de cuidar, com ênfase na dimensão humana, proporcionando às pessoas energias positivas, que garantam bem-estar aos clientes. Ela afirmou que a imagem ensina porque demonstra que o essencial é o cuidado ao ser humano, apontando igualmente para que vislumbremos possibilidades de mudança. Em seguida, atento às mudanças no vídeo, um outro espectador tece seus comentários: A imagem não me espantou, mas me preocupou, me deixou pensativo foi o corpo magro, a pele toda afetada por marcas, a magreza do paciente, aquela pele muito sofrida, me deixou impressionado. É aquilo que o paciente disse: Pareço um morto vivo. (Dep.Arthur) A imagem em movimento, a ação repetida e inesperada levou à constatação originando o sentimento de preocupação. Descobrindo nas imagens a realidade do corpo do cliente, tomou consciência da situação real da extensão da doença e as conseqüências, da impotência, da fragilidade e do corpo modificado pela enfermidade. Essa fala nos leva a refletir sobre o alcance da imagem e os efeitos que ela pode causar no espectador, pois mostra as mais diversas facetas de um ser humano diante do adoecimento. Ao se referir sobre o comentário do paciente, recorremos a Aumont quando assinala que as imagens produzem sensações subjetivas, que afetam os nossos órgãos dos sentidos e incitam os processos mentais5. Partindo dessa observação, percebemos que as imagens em movimento provocam a sensação de devir, porque originam emoções inconscientes/conscientes exteriorizadas pelo cliente através da comunicação verbal e da expressão facial. No caso em tela, revelaram a metamorfose do corpo morto vivo, ou seja, o corpo, como matéria, parece morto, em função das inúmeras conseqüências geradas pela enfermidade, mas o seu espírito está vivo. O participante ao qual nos referimos anteriormente retoma a perspectiva avaliativa, ressaltando o componente de feedback, subjacente à imagem representativa dos gestos de cuidado, afirmando: O que mais me encantou foram às mãos daquela enfermeira, confortando a pele, fazendo o curativo do tórax e mexendo no dreno lentamente para o doente não sentir dor. Então, eu acho que o filme nos mostra um momento muito importante desse cuidado. (Dep. Arthur) A imagem emana reflexões, revela sentimentos e descobertas. O movimento das mãos cuidando produziu o sentimento de encanto, adornado pela delicadeza das mãos da enfermeira, que protege a pele em volta do dreno de tórax com o curativo. O que ele percebeu no gesto de cuidado foi o conforto e a delicadeza da colega prestando cuidados ao cliente. A expressão da gestualidade apreendida pela imagem e referida na fala do espectador sobre o que as mãos da enfermeira revelam serve para interligar o conceito de arte no cuidado, bem R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. • p.73 Imagem em movimento como manter e reforçar a estética das imagens. Por outro lado, o conceito de expressão serviu para designar a relação entre as manifestações corpóreas das emoções e as próprias emoções advindas da imagem em movimento, conforme aponta o relato do espectador. Quanto mais o espectador olhar as imagens, mais ele se vê, mais o seu pensamento aguça, contempla a prática profissional e se sente contemplado por elas. A maneira de abordar os gestos de cuidado na prática cotidiana da enfermagem suscitou o seguinte discurso avaliativo: A imagem é muito importante, ela mostra a nossa realidade, o nosso caminhar [...] E é um momento de fazer muita reflexão desse nosso cuidar [...] Eu acho que esse filme faz você refletir sobre esse caminhar do cuidado. Você dá uma olhada como você está cuidando [...] é um grande momento para a enfermagem. E eu acho que só a fotografia e só filme, eles têm esse poder de mostrar. (Dep. Arthur) Como ele asseverou, a interpretação da imagem dos gestos do cuidado e de sua repercussão no cliente gera reflexão, autocrítica, sugestões e reformulações. Segundo o depoente, trata-se de um recurso para que a enfermagem reflita sobre o trajeto do cuidado e seus resultados. Ele vislumbrou igualmente a possibilidade de abertura de vários ângulos e de reformulação do trabalho, através da reflexão sobre a expressão da gestualidade dos enfermeiros no cuidado. Origina-se também o gesto de encanto, a possibilidade de entrever o futuro, ou os primeiros clarões de uma realidade, o gosto de desfrutar uma idéia, de um sentimento de descoberta, de fazer aquilo de que gosta, em que se sente realizada. Descobrir é aprender... Essa identificação, a partir das imagens visuais, é classificada da seguinte maneira: “o espectador como um sujeito desejante” 5:114 , frente a uma nova descoberta. Da imagem, originam-se idéias, possibilidades e desejos, levando ao espectador a possibilidade de se satisfazer. CONSIDERAÇÕES FINAIS A expressão da gestualidade dos enfermei- ros no cuidado aparece nas falas dos depoentes e nas imagens observada por eles, percebe-se que a imagem em movimento não é de identidade, nem de oposição, mas de complementaridade. A recepção das imagens, segundo os sujeitos participantes da pesquisa, permitiu construir uma imagem análoga às projeções. Neste estudo, foi possível captar os múltiplos olhares de cada p.74 • R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. espectador, ao contemplar as próprias imagens na posição enfermeiros como provedores de cuidado e espectadores de suas próprias imagens. Após os registros audiovisuais, os espectadores teceram comentários sobre as imagens, explicaram e discutiram sobre as mesmas. Esse procedimento proporcionou oportunidade de encontro e confronto dos sujeitos participantes com as imagens visualizadas, provocando idéias, sensações agradáveis e desagradáveis, recordações, lembranças de fatos passados, despertando sentimentos e emoções e identificação de oportunidades de aprimoramento dos gestos de cuidado em enfermagem. Como vimos ao longo das descrições, os múltiplos olhares originaram gestos de silêncio, de preocupação, de medo, de encanto e de espanto, do mesmo modo que incitaram à fala e à reflexão. O estudo revelou a interdisciplinaridade na sua concepção, execução e análise, inclusive os conceitos teóricos puderam ser utilizados, sistematizados e registrados no âmbito das disciplinas que contribuíram para o seu desenvolvimento. Além disso, o paradigma da interdisciplinaridade fica mais claro quando conseguimos olhar o mesmo objeto sob perspectivas diferentes. Sob este ponto de vista, o audiovisual mostrou-se muito fecundo, pois permitiu estudar, esclarecer e atualizar aspectos do cotidiano profissional, revelando riqueza de detalhes que ainda não haviam sido suficientemente observados. Da mesma forma, contribuiu para que identificássemos e compreendêssemos o significado da expressão da gestualidade dos enfermeiros, de acordo com o contexto e o tipo de ação de cuidar, na medida em que tomavam posse de seu território, onde exerciam diferentes atividades. Ademais, favoreceu a análise da expressão da gestualidade dos enfermeiros em diferentes contextos, segundo enfoque social, cultural, político, de representação e da atualidade, fundamentando-os com os teóricos da antropologia, do cinema e da enfermagem. REFERÊNCIAS 1. Rouch J. Le filme ethnographique. In: Rouch J. Ethnologie Génerale. 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Boff L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis(RJ): Vozes;1999. 13. Figueiredo NMA. O corpo da enfermeira: instrumento do cuidado de enfermagem - um estudo sobre representações de enfermeiras [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1994. IMAGEN EN MOVIMIENTO: LA EXPRESIÓN DE LA GESTUALIDAD DE LOS ENFERMEROS EN EL CUIDADO RESUMEN: Este artículo tiene como intento discutir la gestualidad de los enfermeros en el cuidado a partir de la imagen en movimiento. Su fundamento teórico proviene la Antropología Visual y de los Estudios Cinematográficos. El delineamiento del estudio se caracteriza como interdisciplinar de abordaje cualitativo que, del punto de vista instrumental, captó informaciones a través de imágenes audiovisuales del cuidado registrado y de entrevista con cinco enfermeros. Él fue cumplido en un hospital público universitario sito en el municipio de Río de Janeiro – Brasil, en 2002. La organización y el análisis de las imágenes revelaron gestos de asombro, de preocupación, de descubrimiento y de encantamiento. Palabras clave: Cuidado de enfermería; gesto; imagen. Recebido em: 23.08.2004 Aprovado em: 03.03.2005 Notas Enfermeira, Professora Adjunto do Deptº de Enfermagem Médico-Cirúrgica da FENF/UERJ. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Membro do grupo de ensino, pesquisa, assistência ao cuidado humano em saúde (GEPACHS). DEMC/FENF/UERJ. ** Enfermeira, Professora Adjunto da EEAN/UERJ. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do grupo de pesquisa Cuidar/Cuidado em Enfermagem. DEMC/EEAN/UFRJ. *** Enfermeira, Professora Titular da EEAP/UNIRIO. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Pesquisadora do CNPq. Líder do grupo de pesquisa de Cuidados de Enfermagem. EEAP/UNIRIO. **** O artigo é um recorte da tese intitulada: Gestos de Cuidado em Enfermagem - Estudo Interdisciplinar através de imagens de Lina Márcia Miguéis Berardinelli. EEAN/UFRJ, 2003. ***** Plano seqüência – é a filmagem de uma seqüência em um único plano. Plano longo o suficiente para conter o equivalente de um encadeamento, de uma série ou de vários acontecimentos. * R Enferm UERJ 2005; 13:68-75. • p.75