PATRICIA MARQUES GAZOLA
A CLASSIFICAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA PARA
VIABILIZAÇÃO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
VITÓRIA
2004
2
PATRICIA MARQUES GAZOLA
A CLASSIFICAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA PARA
VIABILIZAÇÃO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu
em Direito
Constitucional Fundamental da Faculdades de
Vitória - FDV, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Direito, tendo
como orientador o Prof. Dr. Daury Cezar Fabriz
VITÓRIA
2004
3
PATRICIA MARQUES GAZOLA
A CLASSIFICAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA PARA
VIABILIZAÇÃO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
BANCA EXAMINADORA:
Vitória,
de
de 2004
4
A todas as pessoas que sonham com a construção de uma
sociedade democrática, justa e includente.
5
Em um Estado Democrático de Direito, o Estado
somente está legitimado a ser sujeito de interesses
públicos. Atribuir ao Estado a titularidade de
interesse privado seria infringir o princípio da
República.
Marçal Justen Filho
6
RESUMO
Analisa a literatura sobre os terrenos de marinha, que há mais de dois séculos são objeto de
insatisfação política e social, sendo escassos os estudos sobre essa propriedade da União.
Verifica a necessidade de construir uma solução jurídica para o problema, tendo por hipótese
que somente a partir da classificação dos terrenos de marinha, de conformidade com sua real e
plúrima destinação fática e jurídica, é que será possível a identificação, no caso concreto, da
função social dessa área geográfica, de propriedade da União. A pesquisa na Internet, nos
primeiros 300 sites indicados pelo site http://www.google.com.br, em 02/03/2004, com as
palavras “terrenos de marinha”, identifica em notícias e reportagens, artigos científicos (sobre
interesses ambientais, sobre localização da linha de preamar média de 1831) em atas,
discursos, legislações, informes sobre projetos de leis, seminários e ações políticas diversas, a
presença conflito de interesses entre o interesse arrecadatório da União e interesses relativos
a: segurança da moradia familiar, preservação ambiental de áreas de preservação permanente
(mangues e restingas), planejamento urbano, autonomia municipal, segurança jurídica dos
registros públicos etc. Identifica, mediante pesquisa realizada nos sites da Câmara dos
Deputados (http://camara.gov.br) e do Senado Federal (http://senado.gov.br) com as palavraschave “terrenos de marinha”, “taxas, ocupação, aforamento”, como os interesses em conflitos
estão sendo considerados pelos representantes do povo no Congresso Nacional. Colaciona
projetos de lei sintonizados com os interesses identificados na primeira pesquisa. Avalia que,
embora os problemas relativos aos terrenos de marinha estejam na pauta do Congresso
Nacional, estes estão longe da solução. Estuda a evolução da propriedade pública, percebendo
um processo de sacralização da propriedade estatal, em sentido inverso ao da publicização da
propriedade privada. Aponta a inexistência na doutrina de instrumentos que obriguem a
propriedade privada do Estado ao exercício de sua função social. Afirma que a propriedade do
Estado deve submeter-se aos ditames da função social da propriedade, que deve ser
identificada de forma sistemática e em consonância com os princípios axiológicos do Estado
Democrático de Direito Brasileiro. Propõe, para viabilizar a identificação da função social
destas áreas e compelir a União ao exercício da sua propriedade de conformidade com a
função social, um novo entendimento sobre a natureza jurídica destas áreas. Ao contrário do
que a grande maioria da doutrina afirma, os terrenos de marinha não são bens dominicais. Os
terrenos de marinha consistem em uma área geográfica onde estão contidos diversos tipos de
bens públicos. Terrenos de marinha de uso comum do povo (ruas, praças, parques, áreas
ambientais etc.), terrenos de marinha de uso especial (portos, aeroportos, fortificações
militares assim como todos os destinados ao serviço público); terrenos de marinha dominicais
(áreas de ocupação consolidada, não afetadas a qualquer função pública), assim como terrenos
de marinha ocupados por remanescentes de quilombos e populações indígenas. Assim,
classificando adequadamente os terrenos de marinha e identificando os valores
constitucionalmente tutelados e as necessidades e interesses públicos predominantes em cada
um deles, viabiliza a identificação de sua função social, submetendo-os ao projeto
constitucional da Carta que instituiu o Estado Democrático de Direito Brasileiro.
7
ABSTRACT
This paper analyzes the literature on “terrenos de marinha” that have being a question of
political and social dissatisfaction for more than two centuries; the studies about this kind of
Union property are rare. It verifies the need to create a legal solution to the problem,
assuming that only by classifying the “terrenos de marinha” in accordance with their real and
varied destination, i.e. factual and legal, it will be possible the identification, in an actual case,
of the social function of this geographic area that belongs to the Union. In the first 300 sites
researched on www.google.com on March 2nd 2004, using the words “terrenos de marinha”, it
was found in news, reports, scientific articles (about environmental interests, location of the
average high tide line in 1831), in minutes, speeches, legislations, notes on law projects,
seminars and varied political actions, the presence of conflict of interests between the
tributary interest of the Union and interests related to: safety of the family residence,
environmental preservation of permanent preservation areas (mangroves and sandbanks), city
planning, municipal autonomy, legal safety of public records etc. Researching on the House
of Representatives (camara.gov.br) and Congress sites (senado.gov.br), using the words
“terrenos de marinha”, “fees, occupation, Emphyteusis contracts”, it identifies how the
conflicting interests are being considered by the people’s representatives in the Congress. It
gathers law-projects related to the interests identified in the first research. It evaluates that,
although the problems related to “terrenos de marinha” are in discussion in the Congress, they
are far from a solution. It studies the evolution of the public property, perceiving a process of
making sacred the state property, on a contrary direction of making public the private
property. It indicates the inexistence of instruments in the doctrine that obligate the State
private property to exercise its social function. It states that the State property should submit
itself to the impositions of the social function of the property, which should be systematically
identified and consonant with the ethic principles of the Brazilian Democratic State. In order
to make feasible the identification of the social function of these areas and compel the Union
to exercise its property in accordance to its social function, it proposes a new understanding of
the legal nature of these areas. Contrary to what most of the doctrine state, the “terrenos de
marinha” are not State private assets. The “terrenos de marinha” consist on a geographic area
which comprises many kinds of public assets. “Terrenos de marinha” of people’s common use
(streets, squares, parks, environmental areas, etc.); “terrenos de marinha” of special usage
(harbours, airports, military fortifications, as well as all properties destined to civil service);
”terrenos de marinha” of private property (areas of consolidated occupation, not related to any
public function), as well as the “terrenos de marinha” occupied by slaves descendants e Indian
populations. Thus, by adequately classifying the “terrenos de marinha” and identifying the
constitutionally tutored values and the needs and public interests predominant in each of
them, it makes viable the identification of their social function submitting them to the
constitutional project of the Letter that instituted the Brazilian Democratic State.
8
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
2
A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO NO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO ................................................................................................................ 15
2.1 A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ........................... 21
2.2 DA NECESSIDADE DE REANÁLISE DAS NORMAS RELATIVAS AOS
TERRENOS
DE
MARINHA
À
LUZ
DO
NOVO
ORDENAMENTO
CONSTITUCIONAL ................................................................................................... 27
3
DOS INTERESSES METAINDIVIDUAIS INSERIDOS NOS TERRENOS DE
MARINHA .................................................................................................................. 31
3.1 INTERESES ECONÔMICOS ..................................................................................... 34
3.1.1 Instrumentos de Arrecadação ................................................................................. 37
3.1.2 Ineficácia na gestão dos terrenos de marinha ....................................................... 60
3.2 INTERESSES AMBIENTAIS ..................................................................................... 62
3.2.1 Da progressiva consciência ambiental ................................................................... 62
3.2.2 A Zona Costeira e a gestão dos terrenos de marinha ........................................... 67
3.2.3 Danos ambientais em terrenos de marinha .......................................................... 72
3.3 INTERESES URBANÍSTICOS ................................................................................... 74
3.3.1 Prejuízos ao planejamento urbano e autonomia municipal ................................ 75
3.4 INTERESSES SOCIAIS ............................................................................................. 82
3.4.1 Direitos Fundamentais ............................................................................................ 82
3.4.1.1 Direitos fundamentais nos terrenos de marinha .................................................... 91
9
3.4.2 Inexatidão da linha de preamar média de 1831 .................................................... 94
3.4.3 Insegurança jurídica e social .................................................................................. 98
3.4.4 Interesses sociais específicos de remanescentes de quilombos e povos
indígenas ................................................................................................................... 104
3.4.4.1 Interesses dos remanescentes de comunidades de quilombos ................................. 107
4 AÇÕES POLÍTICAS ................................................................................................... 113
4.1 AÇÕES POLÍTICAS MUNICIPAIS ........................................................................... 113
4.3 AÇÕES POLÍTICAS NO CONGRESSO NACIONAL ............................................. 115
5
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA ........................................... 126
5.1 EVOLUÇÃO JURÍDICA DA PROPRIEDADE PRIVADA ....................................... 126
5.1.1
Críticas à propriedade liberal ............................................................................ 127
5.1.2
Função social da propriedade ............................................................................ 129
5.2 EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE PÚBLICA........................................................... 134
5.2.1 O patrimônio privado do estado no direito comparado ....................................... 137
5.2.2 Regime jurídico do patrimônio privado do estado no Brasil .............................. 139
5.2.2.1 A alienabilidade e prescritibilidade dos bens dominicais no anteprojeto do
código civil ............................................................................................................ 139
5.2.2.2 A imprescritibilidade decorrente do Decreto 22.785 de 31 de maio de 1933 ....... 141
5.3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA ................................................. 142
5.3.1 Função social constitucional ................................................................................... 143
6
NATUREZA JURÍDICA DOS TERRENOS DE MARINHA .............................. 147
6.1 AFETAÇÃO ORIGINÁRIA ....................................................................................... 147
10
6.2 NATUREZA JURÍDICA DOS TERRENOS DE MARINHA NA DOUTRINA
NACIONAL ................................................................................................................ 155
7
CONCLUSÃO - PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO DOS TERRENOS DE
MARINHA PARA FINS DE VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DE SUA
FUNÇÃO
SOCIAL
NO
ESTADO
DEMOCRÁTICO
DE
DIREITO
BRASILEIRO ............................................................................................................. 159
7.1 CLASSIFICAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA.............................................. 162
7.1.1 Terrenos de marinha de uso comum do povo ........................................................ 163
7.1.2 Terrenos de marinha de uso especial ...................................................................... 163
7.1.3 Terrenos de marinha dominicais............................................................................ 164
7.2 INTERESSES QUE DEVEM SER CONSIDERADOS NA IDENTIFICAÇÃO DA
FUNÇÃO SOCIAL DOS TERRENOS DE MARINHA ............................................. 165
7.2.1 Identificação do interesse público ........................................................................... 166
7.3 INAUGURAÇÃO DOS DEBATES SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DOS
TERRENOS DE MARINHA ....................................................................................... 168
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 173
10
1 INTRODUÇÃO
Os terrenos de marinha, embora pouco estudados pela doutrina pátria, são objeto de histórica
insatisfação política e popular. Estes bens públicos, propriedade da União, também devem
submeter-se ao princípio constitucional da função social da propriedade. Originariamente
destinados a se manterem desobstruídos para os serviços de defesa da costa, foram objeto de
ocupações e contratos de aforamento, em que a União admite a utilização privativa destes
bens públicos, mediante pagamento de foros, taxas e laudêmios.
A importância deste tema decorre da necessidade de um estudo sistemático e compatível com
o atual ordenamento constitucional e infraconstitucional desses bens da união; da necessidade
de identificação da função social da propriedade pública dos terrenos de marinha; da
necessidade de enfrentamento do problema da irregularidade fundiária em terrenos de
marinha; assim como da carência de estudos jurídicos que viabilizem a tutela de interesses
públicos relevantes como acesso aos bens de uso comum do povo; autonomia municipal;
segurança jurídica;e paz social preservação ambiental. Os terrenos de marinha, inseridos na
Zona Costeira, por força do Art. 125 § 4º da Constituição Federal1, são considerados
Patrimônio Ambiental Nacional.
A relevância que a constituição cidadã atribui à concretização da função social da
propriedade, incluindo-a no rol dos direitos fundamentais arrolados no Art. 5º, assim como a
existência da necessidade social de uma solução para os problemas sociais, ignorados pelo
direito infraconstitucional vigente, impõem o estudo destes bens públicos sob a ótica
constitucional.2
Este trabalho tem por base a seguinte hipótese: somente a partir da classificação dos terrenos
de marinha de conformidade com sua real e plúrima destinação fática e jurídica é que será
possível a identificação no caso concreto da função social desta área geográfica, de
propriedade da União.
Este estudo utiliza o método dialético e busca, a partir da análise da realidade, identificar o
problema e propor formas de superação, a proposição de uma nova forma de compreensão da
1
2
BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. 31. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003b.
BRASIL, 2003b.
11
natureza jurídica dos terrenos de marinha, a fim de viabilizar a elaboração de um programa de
regularização dos usos e ocupações dessas áreas.
Colocam-se como objetivos secundários deste trabalho: identificar de forma crítica os
interesses; privados difusos, coletivos e individuais homogêneos, relacionados à área
geográfica, objeto deste estudo; analisar as principais normas relacionadas aos interesses
envolvidos; identificar na Constituição, os principais princípios que devem ser ponderados e
normas que devem ser consideradas na identificação concreta da função social dos terrenos de
marinha, para finalmente efetuar a proposição de uma classificação dos terrenos de marinha
de conformidade com sua destinação fática e jurídica.
Além da pesquisa bibliográfica em obras atuais e em artigos históricos sobre a matéria, por
meio de pesquisa na Internet (mediante busca efetuada no site http://www.google.com.br, com
as palavras “terrenos de marinha”, em 02/03/2004, entre os primeiros 300 sites mencionados)
foi possível identifica a presença de diversos interesses relacionados ao objeto de estudo em:
notícias e reportagens; artigos científicos (sobre interesses ambientais, a identificação dos
terrenos de marinha mediante fixação da linha de preamar média de 1831); atas, discursos,
legislações; informes sobre projetos de leis; seminários e ações políticas.
Objetivando a realização de pesquisa empírica em fontes primárias foram remetidos por email questionários a todos os deputados federais, nos endereços eletrônicos colhidos no site
http://camara.gov.br, pesquisa a que apenas um deputado respondeu (desculpando-se por não
poder responder, por desconhecer a matéria). Em face ao malogro desta pesquisa, em
10/06/2004 foi efetuada nova busca nos sites da Câmara (http://camara.gov.br) e do Senado
(http://senado.gov.br) objetivando identificar atividades legislativas relacionadas com os
terrenos de marinha, por meio de busca eletrônica com as palavras-chaves “terrenos de
marinha” e “taxas, ocupação, aforamento”. A grande maioria dos projetos de leis identificados
são posteriores a 1999, com sensíveis ausências como dos inúmeros projetos de emenda de
reforma que tramitaram objetivando a modificação do Art. 49 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.3 Desta forma, esta pesquisa será utilizada apenas para a
identificação dos interesses que estão sendo considerados relevantes por alguns parlamentares
em suas atuações, assim como as justificativas que eles apresentam aos projetos.
3
BRASIL, 2003b.
12
Considerando a falta de tradição de interpretação da norma segundo princípios axiológicos, no
capítulo primeiro é efetuada uma crítica ao positivismo extremado por ter se dissociado dos
valores sociais, destacando a importância destes princípios no Estado Democrático de Direito
e a importância da observância do princípio da supremacia do interesse público sobre o
privado na gestão do patrimônio público.
No capítulo segundo, a partir de informações colhidas na pesquisa, são identificados diversos
interesses (individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos), classificados em quatro
categorias básicas, mas não estanques: interesses econômicos, ambientais, urbanísticos e
sociais. Neste capítulo é demonstrada a existência de inúmeros conflitos entre os interesses
metaindividuais com as normas que tutelam os interesses fiscais da União.
No capítulo terceiro, considerando que os representantes do povo no parlamento nacional
devem expressar os anseios populares, foram identificados nos sites da Câmara e do Senado,
inúmeros projetos sintonizados com os interesses metaindividuais identificados.
No capítulo quarto, destinado à função social da propriedade pública, é identificado que,
embora juridicamente em nosso país tenha havido uma evolução da propriedade privada
mediante um processo de publicização, na contramão deste processo identifica-se a
“absolutização” da propriedade privada do Estado (bem dominical). Esse processo se inicia
com o Decreto n.° 22.7854, de 31 de maio de 1933, do então ditador Getúlio Vargas (que
declarou os bens dominicais imprescritíveis) e culmina na constitucionalização da
intangibilidade da propriedade privada do Estado, em flagrante colidência com os ditames da
função social da propriedade e a própria concepção de Estado Democrático de Direito.
No capítulo quinto é efetuada uma análise crítica da natureza jurídica dos terrenos de marinha,
mediante estudo de sua afetação originária à segurança nacional e à servidão pública (que
determinavam a manutenção deles desobstruídos) com a colidente autorização legal de
apropriação privada, mediante pagamento de foro anual. Apropriação privada mediante
pagamento de valores ao fisco, gerou o entendimento de grande parte da doutrina pátria de
que os terrenos de marinha são bens dominicais, quando, na realidade, este bem não pode ser
classificado de forma tão reducionista.
4
BRASIL. Decreto n.º 22.785, de 31 de maio de 1933. Veda o resgaste dos aforamentos de terrenos
pertencentes ao domínio da união, e dá outras providências. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 2, p. 469.
Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 23 maio 2004e.
13
No capítulo sexto, os terrenos de marinha são considerados de forma global apenas para
designar uma área geográfica, uma faixa de terra ao longo da costa brasileira, uma vez que,
em face de sua pluralidade de destinações e usos não podem ser classificados como inseridos
em uma única espécie de bens públicos. Dentro desta área geográfica denominada terrenos de
marinha há: bens de uso comum do povo; bens de uso especial e bens dominicais5. Somente a
partir desta premissa é que será possível identificar as diferentes funções sociais que devem
ser atendidas pela União no exercício de sua função de gestão do patrimônio público, em
consonância com os princípios axiológicos do Estado Democrático de Direito.
Este estudo, embora possa parecer diferente do usualmente encontrado na Ciência Jurídica,
estriba-se na concepção de que o Direito não se limita à norma escrita. O Direito é
considerado como ciência pluridimensional e transdisciplinar.
O Direito não pode ser visto pelos destinatários como norma esquecida nos livros; o Direito é
vida. O estudioso do Direito não deve ficar apenas restrito ao seu casulo dogmático,
encastelado em seu dialeto hermético e inacessível aos destinatários da norma.
A crise da democracia, decorrente da apatia dos cidadãos enredados no individualismo e
descrença da capacidade de as instituições concretizarem as promessas do Estado Social, tem
o Direito como um fator relevante. O Direito além de, historicamente, ter servido à
manutenção da ordem econômica vigente, excludente e discriminadora para grande maioria
dos brasileiros, serve apenas para punir, não para assegurar a efetivação dos direitos
fundamentais.
Embora nossa Carta constitucional assegure inúmeros direitos individuais, sociais e difusos,
na realidade grande parte da população é desprovida de direitos fundamentais básicos. Para
muitos a carta constitucional é uma mera declaração dissociada da vida real. O grande desafio
da era dos direitos é a concretização das garantias fundamentais, direitos assegurados
constitucionalmente. Muitas vezes o que a constituição assegura, a norma infraconstitucional
5
Esta idéia me ocorreu a partir da participação na II Jornada de Discussões que teve por tema “Terrenos de
Marinha” (ocorrida no dia 15 de outubro de 2003 no auditório do Bloco C da esplanada dos Ministérios às
9h, em Brasília, evento realizado pelo Ministério das Cidades, Secretaria de Programas Urbanos, onde após
ouvir diversos posicionamentos: dos moradores de áreas urbanas insatisfeitos com a insegurança jurídica; de
representante do Ministério do Meio Ambiente defendendo a preservação das áreas costeiras; de defensores
do direito à manutenção de atividades artesanais em áreas de marinha (pesca e outras atividades extrativas
marinhas); a necessidade de reserva de áreas para a defesa nacional etc., pôde-se perceber que todos estavam
certos, pois defendiam interesses legítimos e que a questão da regularização do uso e ocupação dos terrenos
de marinha somente seria possível mediante a classificação dos seus diferentes usos.
14
nega. Como não temos uma tradição jurídica em hermenêutica constitucional, muitas vezes os
dispositivos constitucionais são interpretados a partir das normas infraconstitucionais, quando
estas é que deveriam se submeter aos ditames axiológicos da Carta Magna.
Não só a constituição, mas o Direito em geral, de difícil acesso, tanto sob o ponto de vista de
conhecimento dos direitos conferidos pela multitude de normas, quanto sob o ponto de vista
do acesso à justiça, encontra-se muito distante do povo.
O distanciamento existente entre o povo e seus representantes, a crença na legitimidade da
norma a partir da legalidade, somada à alienação e manipulação das massas e à possibilidade
de direcionamento da atividade legislativa em prol da preponderância dos interesses privados
em detrimento do interesse social são fatores que devem ser considerados na atividade
interpretativa dos operadores do Direito. Diante destas normas que privilegiam interesses
menores, contrários ao interesse público superior, temos, em favor do intérprete, os valores
basilares do Estado Democrático de Direito, brilhando como um farol, guiando os juristas
comprometidos com a construção de um país mais justo e democrático, impedindo-os de
naufragar nos restolhos jurídicos esculpidos pelo individualismo exacerbado.
Na busca de instrumentos que viabilizem a identificação concreta da função social da
propriedade é imperioso o rompimento das muralhas do legalismo restrito, considerando a
existência e a relevância dos fatos sociais como forma de expressão dos interesses
metaindividuais. A visão pluridimensional e axiológica do Direito é fundamental para a
identificação da verdadeira função social da propriedade, principalmente, na identificação da
função social dos bens públicos.
Com a classificação proposta pretende-se inaugurar o debate sobre a necessidade da
submissão dos terrenos de marinha aos ditames da função social da propriedade.
15
2 A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Dentro do positivismo extremado, em que o Estado e o Direito se confundem, temos como
obrigatória toda a norma emanada do Estado, seja justa ou injusta, seja adequada ou não às
necessidades dos destinatários. Sendo o Direito uma norma emanada e imposta pelo Estado,
pergunta o Professor Reale6: “Por que o Direito obriga? Basear-se-á o Direito na força? Podese explicar o Direito segundo critérios de utilidade? Fundar-se-á o Direito na liberdade ou terá
a sua razão de ser na igualdade?”. A respostas a estas indagações somente serão encontradas
mediante a análise dos valores do Direito.
Como responder a tais questões no sistema positivista restrito?
Kelsen7, coerente com o pensamento científico da época, objetivando a independência do
Direito como ciência e sua emancipação da sociologia, explica-o através de um sistema
fechado em que todas as normas decorrem de uma norma fundamental, pela aplicação do
método lógico dedutivo. A norma inferior deve adequar-se aos comandos da norma
hierarquicamente superior. Este pensamento é levado ao extremo pela escola da exegese onde
se afirma que uma norma, para ser jurídica, não precisa ser justa, basta ter sido emanada do
Estado.
O positivismo extremado gerou uma equivocada cisão entre Direito e Justiça. A ciência
moderna comprova que nem mesmo nas ciências naturais a regra da “lei científica” pode ser
sempre considerada absoluta. A teoria da relatividade demonstra que a ciência natural possui
questões relativas e que os conceitos da geometria euclidiana não são absolutos. Hoje, sabe-se
que os conceitos de tempo e espaço são relativos.
Estamos vivendo uma fase de questionamento dos paradigmas tradicionais da ciência. Nada é
absoluto, tudo é relativo. Sendo assim, uma regra absoluta não pode mais sobreviver na
ciência pós-moderna.
6
7
REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 26. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002. p.16.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
16
Nas ciências naturais, a dissociação do conhecimento científico dos valores humanos
possibilitou o desenvolvimento de inúmeras tecnologias voltadas para destruição em massa:
armas nucleares, biológicas etc. O progresso moral humano encontra-se inversamente
proporcional ao progresso científico. Em um mundo onde as máquinas estão servindo à
produção de bens de consumo não se concebe a existência de pessoas morrendo de fome,
muito menos se admite a manutenção do colonialismo econômico que impõe
subdesenvolvimento e pobreza em dimensões globais jamais vistas.
O Direito não pode ser dissociado da vida nem dos valores humanos sob pena de se
transformar em instrumento de dominação, arbítrio e degradação do ser humano. A norma
legal infraconstitucional, embora seja uma norma emanada do Estado não pode colidir com os
valores expressos em nossa constituição.
Tepedino8 destaca a importância da realidade fática para o Direito:
Se é verdade que a certeza do direito não se obtém desconsiderando o dado
normativo, este por sua vez não há que ser tomado pelo intérprete como elemento
estatístico, devendo ser reconstruído continuamente, na dinâmica própria da tensão
dialética fato-norma. Ambos os elementos são indispensáveis ao processo
interpretativo e o predomínio de um em detrimento do outro representaria a perda
de contato com a chamada norma viva.
O Estado Democrático de Direito está subsumido às normas e princípios constitucionais que
devem imantar todo o ordenamento. Nas constituições democráticas a grande maioria dos
valores sociais estão contidos em seus princípios e objetivos, de sorte que o conceito de justo
e injusto, sob o enfoque constitucional, decorre da recepção destes valores na norma
fundamental e seu desrespeito por outra norma infraconstitucional.
O Positivismo Jurídico criou raízes muito profundas em nosso país. Para muitos a lei escrita é
tida como inatingível, sagrada, mesmo que injusta. Diante de anos de limitação ao espírito
crítico, diante de anos de subserviência ao Estado Ditatorial, ainda se vivencia um Direito que
pretende converter os julgadores em meros autômatos, sem vida e sem possibilidade de
adequar as normas abstratas às situações peculiares da vida que clamam por justiça.
8
TEPEDINO, Gustavo.Contornos constitucionais da propriedade privada. Revista de Direito Comparado,
Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 252-253, mar. 1998.
17
Os malefícios do positivismo exarcebado são tamanhos que em 1992, a Comissão de Ciência
e Ensino Jurídico da OAB, no seu relatório final apresentado durante a XIV Conferência
Nacional (Vitória, 1992), condenou o puro exegetismo e o positivismo jurídicos, definidos
neste documentos, como “pragas universitárias nacionais”.9
Mas, afinal o que é Direito? Esta palavra é polissêmica, possui diversos significados, pode
significar: correto, justo, prerrogativa, faculdade, dever, norma, lei, ordenamento jurídico etc.
O Direito em exame deve ser entendido como um ordenamento jurídico, apto a viabilizar a
vida comunitária de forma harmônica includente e sustentável. Para Reale10 “[...] direito é a
concretização da idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa
como fonte de todos os valores”.
Não há como justificar a legitimidade da norma sem aferir a sua valoração social; o Direito
não pode ficar alheio ao sentimento de justiça dos destinatários. A teoria pura se equivoca ao
pretender “amarrar” o Direito a postulados destinados a ciências naturais. Alf Ross, no mesmo
sentido, efetua graves críticas ao positivismo que transformou a atuação do juiz em mero
autômato, obrigando-o a cumprir uma norma abstrata que muitas vezes não possui qualquer
relação com a realidade.
A antiga teoria positivista mecanicista da função da administração da justiça oferecia
um quadro muito simples desses componentes. [...] Segundo esse quadro da
administração da justiça, o juiz não valora nem determina sua postura ante a
11
possibilidade de interpretações diferentes. O juiz é um autômato.
A norma fundamental, ápice do sistema jurídico fechado concebido pelo positivismo, sistema
que almejava ser imune a qualquer influência metafísica, é suficiente para demolir a
cientificidade da premissa de que o Direito não se contamina com valores. A própria norma
fundamental é um valor. A norma fundamental expressa uma série de valores socialmente
aceitos, espelhando o conceito de justiça da comunidade regida pelo ordenamento jurídico.
9
10
11
SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de et al. Ensino jurídico. OAB: diagnóstico, perspectiva e propostas.
Brasília: Conselho Federal da OAB, 1992.
REALE, 2002, p. 67.
ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p.166.
18
Silva12 reconhece que a concepção de Kelsen de que o Direito e o Estado são a mesma coisa,
e que a “[...] concepção de que ‘só é Direito o Direito positivo, como norma pura,
desvinculada de qualquer conteúdo’ conduz muito facilmente a ‘uma idéia formalista do
Estado de Direito ou Estado Formal de Direito’, que serve também a interesses ditatoriais”.
Este autor reconhece que um mero enunciado formal, uma mera norma destituída “[...] de
qualquer compromisso com a realidade política, social, econômica, ideológica enfim (o que
no fundo esconde uma ideologia reacionária)”13 acaba criando um estado de Direito ditatorial
convertendo o Estado de Direito em mero Estado Legal, destruindo a própria concepção de
Estado de Direito. Neste modelo legalista encontram-se inúmeras normas legais que atendem
apenas aos interesses da administração em detrimento dos interesses sociais. Nesta ótica, onde
os pensamentos jurídicos são cristalizados e o senso crítico sufocado, a vontade do Estado
sempre se confunde com a vontade do governante. O Direito como instrumento de
manutenção da ordem vigente, dissociado das necessidades do verdadeiro soberano (que é o
povo), não pode ser chamado Direito. É uma mera norma legal gerada e imposta pelo arbítrio,
é uma expressão de interesses secundários dissociada dos interesses públicos superiores.
Bonavides14, estudando a evolução do Estado Feudal e a criação do Estado Nação, destaca
que o direito natural foi utilizado como um “[...] poderoso instrumento de combate em prol
das novas instituições para desarmar a tradição, sepultar o direito divino dos reis, romper o
privilégio feudal das aristocracias e cancelar, por via da ratio os usos e abusos do passado”. A
legitimidade constitucional originariamente decorria da aceitação dos valores proclamados
pela filosofia do contrato social. Nesta medida, atingido o objetivo de derrubar o ancien
régime, a legalidade é retirada do direito natural e entregue ao direito positivo “[...] que se
exprime pelas regras dos códigos e das Constituições, das leis ordinárias e das leis
constitucionais”15, numa clara intenção de utilização do Direito como forma de manutenção
da ordem no sistema vigente.
No Estado Democrático de Direito, que tem por fundamento a soberania popular, a restrita
concepção formalista da norma legal não se sustenta mais.
12
13
14
15
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros,
2000a. p. 123.
SILVA, 2000a, p. 123.
BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade. Revista Trimestral de Direito Público, n. 3, p. 3031, 1993.
BONAVIDES, 1993, p. 31.
19
A expressão democrático
[...] qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os
elementos constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica. O Direito,
então, imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá que ajustarse ao interesse coletivo. 16
O Estado Democrático de Direito se legitima a partir da “crença” de que o Poder Estatal
emana do povo, “[...] é uma satisfação poder pensar que nós mesmos estamos nos governando
e ditando regras a que devemos obedecer”17, mas, muitas vezes, a teoria na prática é outra.
Reale18 identifica que:
Nem sempre, contudo, existe essa aquiescência, porque posso estar contra a lei, em
espírito, mas ser obrigado a obedecê-la. A lei pode ser injusta e iníqua, mas
enquanto não for revogada, ou não cair em manifesto desuso, obriga e se impõe
contra a nossa vontade, o que não impede que se deva procurar neutralizar ou
atenuar os efeitos do ‘direito injusto’, graças a processos de interpretação e
aplicação.
A crença na legitimidade da norma simplesmente por ter sido emanada do Estado nos conduz
a um pensamento desconectado do princípio democrático de que o poder emana do povo e em
seu nome deve ser exercido. “Depois de Weber, com o formalismo de Kelsen, o decisionismo
de Schmitt e o funcionalismo procedimental de Luhmann, a legitimidade já não se define
como uma crença na legalidade, senão como uma legalidade sem crença”. 19
Com propriedade adverte Paulo Bonavides: quando a legitimidade é conferida pela pura
legalidade “[...] o arbítrio se faz instituição numa questão central da convivência humana.”20
A imposição da vontade particular da União, imposição de norma injusta e inadequada aos
interesses públicos difusos e coletivos, não é um ato compatível com o exercício de uma
função pública. O Estado existe para servir ao povo e não para servir-se dele. A população de
um país não pode ser considerada como “[...] rebanhos de gado, cada qual com o seu chefe a
guardá-la, a fim de a devorar”.21
16
17
18
19
20
21
SILVA, 2000a, p. 123.
REALE, 2002, p. 49.
REALE, 2002, p. 49.
BONAVIDES, 1993, p. 31.
BONAVIDES, 1993, p. 30.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social e outros escritos. Introdução e Tradução de Ronando Roque
da Silva. São Paulo: Cultrix, 1987. p. 23.
20
O Direito é muito mais que a simples norma positivada, este, para cumprir seu papel de
organização social, que visa à manutenção do bem comum deve ser considerado justo pelos
destinatários.
Para Reale22 o Direito não se confunde com a Lei, emanada do Estado:
[...] os legisladores podem promulgar leis que violentam a consciência coletiva,
provocando reações por parte da sociedade. Há leis que entram em choque com a
tradição de um povo e que não correspondem aos seus valores primordiais. Isto não
obstante, vale, isto é vigem (sic). [...]
O verdadeiro direito é reconhecido pela sociedade, deve se identificar com seus
valores e ‘incorporado a maneira de ser e de agir da coletividade’.
Sendo uma norma injusta, ou inadequada aos interesses sociais, como deverá o jurista
proceder?
O Estado Liberal funda-se nos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade, e defende a
não intervenção estatal na Economia sob o argumento de que os homens, sendo livres e
iguais, não necessitariam da tutela do Estado em suas relações, bastando que lhes sejam
garantidos os direitos fundamentais (direitos civis e políticos, considerados direitos
constitucionais de primeira dimensão).
Com a revolução industrial e o êxodo rural se agigantaram as diferenças existentes entre os
detentores dos meios de produção (os capitalistas) e os detentores da força de trabalho (os
operários). O princípio da igualdade, na prática, se mostrou inexistente. Muitos foram os
filósofos que se puseram a combater o liberalismo, ficando célebre a frase de Lacordaire23 –
“Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e a lei liberta”. A intervenção do Estado se
tornou imperiosa para buscar diminuir as desigualdades mediante leis protetivas.
O Estado Social, sucessor do Estado Liberal, é marcado pela intervenção na economia
objetivando a tutela dos interesses sociais (direitos fundamentais de segunda dimensão).
Segundo Rodrigues24, esta mudança decorreu de concessões do capitalismo objetivando
manter o sistema econômico vigente. O Estado Social passou a intervir na economia e o
22
23
24
REALE, 2002, p. 112.
LACORDAIRE apud HERKENHOFF, João Batista. Justiça, direito do povo. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex,
2002. p. 71.
Cf. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de direito ambiental: parte geral. São Paulo: Max
Limonad. 2002. v. 1, p. 26.
21
direito se converteu em importante instrumento assecuratório dos direitos humanos. Esta
evolução deu causa, como bem destaca Bobbio25, a uma proliferação dos direitos:
[...] a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela;
b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos
do homem;
c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem
em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas
maneiras de ser em sociedade, como criança, como velho, doente, etc.
Estes inúmeros direitos, que foram sendo reconhecidos, ainda carecem de efetivação. Como
efetivar estes direitos fundamentais se as normas legais infraconstitucionais acabam negando
na prática a concretização da Constituição?
Como agir diante de normas que, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal, podem acabar
negando a concretização do interesse público tutelado constitucionalmente nos direitos
fundamentais? Muitas vezes o acesso a estes direitos é negado por força de impedimentos
decorrentes da referida lei de controle fiscal. Qual a validade da norma, votada pelo
parlamento, ou elaborada e editada por meio de Medida Provisória do poder executivo,
quando privilegia interesses privados em detrimentos de princípios fundamentais?
As normas elaboradas em flagrante desvio de finalidade são intocáveis? É possível conceber a
legalidade de uma norma infraconstitucional que negue direta ou indiretamente os princípios
constitucionais?
2.1 A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado Democrático de Direito “[...] não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o
que imperou no Estado de Direito Clássico”.26 No Estado de Direito Clássico, bastava a
existência de uma norma, mesmo que injusta, mesmo que expressasse os interesses das
minorias, para ser norma de direito obrigatória. Nestes moldes o mundo viu florescer regimes
políticos ditatoriais, ignorando que o poder emana do povo, onde a observância cega à
legalidade deu causa a abomináveis atentados aos direitos fundamentais. Grandes atrocidades
25
26
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992. p. 68.
SILVA, 2000a, p. 125.
22
foram cometidas em Estados regidos por cartas constitucionais, como se viu no caso da
Alemanha nazista.27 Diante da constatação de que o positivismo fracassou em seu ideal de
construção de um Estado pautado pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, e que a
norma jurídica não pode ser dissociada dos valores socialmente aceitos, Barcellos28 destaca
que “[...] voltou-se a reconhecer, humildemente, que o direito não surge no mundo por si só,
mas relaciona-se de forma indissociável com valores que lhe são prévios, ideais de justiça e
de humanidade que se colhem na consciência humana e na experiência civilizatória dos
povos”.
No Estado Democrático de Direito temos a constituição como norma fundamental, expressão
da síntese de diversos pensamentos e tendências existentes no seio da sociedade brasileira. Na
Carta Política estão inseridos princípios constitucionais que cumprem importante “[...] função
de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do texto constitucional, dando unidade ao
sistema normativo”29 e expressando valores aceitos como fundamentais a nossa nação.
Nossa carta constitucional claramente acolheu o retorno à idéia de valores ao instituir um
Estado Democrático de Direito
[...] destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias.30
A fim de espancar qualquer dúvida de seu comprometimento com os valores sociais, uma vez
que muitos não reconhecem o preâmbulo constitucional como norma dotada de
obrigatoriedade, iniciou seu texto com um título unicamente voltado para a fixação dos
“Princípios Fundamentais”.
No Artigo 1º, cujo parágrafo único declara que “[...] todo o poder emana do povo”31, temos
por fundamentos do nosso Estado: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo democrático; no artigo 3º temos
27
28
29
30
31
Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 24.
BARCELLOS, 2002, p. 24.
BARROSO, Luís Roberto. Princípios constitucionais brasileiros. Revista Trimestral de Direito Público, n.
1, p. 174, 1993.
Preâmbulo da CF de 1988 (BRASIL, 2003b).
Art. 1º, § 1º da CF (BRASIL, 2003b).
23
consignados os objetivos, que exprimem o compromisso de construir uma sociedade livre,
justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade quaisquer outras formas discriminação.
Mello32 define princípio como sendo “[...] por definição, mandamento nuclear de um
sistema”, base e origem de todo o ordenamento constitucional, uma “[...] disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de
critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo”.33 Parte da doutrina, hoje minoritária, ainda entende que
os princípios são meras declarações de intenção do Estado, normas programáticas não
vinculantes que não geram qualquer direito.
Alexy34, capitaneando o pensamento doutrinário dominante, defende a obrigatoriedade dos
princípios porque “[...] tanto as regras como princípios são normas, porque ambos dizem o
que deve ser [...] os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade, ao passo que
as regras, sendo também normas, têm, contudo, grau relativamente baixo de generalidade.”
Embora os princípios possuam natureza genérica sendo passíveis de processos de integração
em casos de conflitos normativos35, “[...] violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma”36, conforme afirma Mello37, porque
[...] a desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma
de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido,
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais.
Dentre os inúmeros princípios que regem o Estado Democrático de Direito destaca-se o
princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Os interesses privados são
interesses concebidos de forma isolada com objeto e titulares identificados e estes enquanto
32
33
34
35
36
37
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. rev. atual. ampl. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 747.
MELLO, 2000, p.747-748.
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1993. p. 83 e seguintes.
ALEXY, 1993, p. 83.
MELLO, 2000, p.748.
MELLO, 2000, p.748.
24
interesses individuais devem se submeter aos “interesses públicos supremos”. O Estado, no
exercício de sua “função administrativa”, “[...] está adstrito a satisfazer interesses públicos”.38
Quais são esses interesses públicos? Justen Filho39 critica o pensamento jurídico circular “[...]
o interesse é público porque atribuído ao Estado e é atribuído ao Estado porque é público”. O
conceito de interesse público desdobra-se em interesse público primário e interesse público
secundário. O primeiro consiste no bem comum enquanto o segundo é como a Administração
considera este interesse.40
Todo interesse da administração possui o atributo da supremacia? Toda vontade da
administração deve ser considerada como expressão do interesse público? Claro que não. “O
interesse público não consiste no interesse do aparato estatal”41, a atividade executiva do
Estado repousa sobre dois princípios fundamentais: a supremacia do interesse público sobre o
privado e a indisponibilidade, pela administração, dos interesses públicos. Bastos42 entende
que somente os interesses públicos autênticos possuem este atributo, quando o “[...] Poder
Público atua em nome de interesses que tem como qualquer pessoa de direito, sem revelar
propriamente interesses da coletividade, mas um interesse que possui enquanto mera pessoa
jurídica”, não há que se falar em supremacia do interesse público.
Bastos43 destaca que a supremacia do interesse público somente tem cabimento quando a
administração está atuando na persecução de objetivos “[...] que dizem respeito à coletividade
e não especificamente a este ou àquele indivíduo”. O interesse secundário, quando colidente
com o interesse primário, não possui o atributo de supremacia. Mello44 explicita que:
[...] o Estado [...] poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao
pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bemfundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por
valores exagerados.
38
39
40
41
42
43
44
MELLO, 2000, p. 32.
JUSTEN FILHO, Marçal. O conceito de interesse público e a “personalização”do direito administrativo.
Revista Trimestral de Direito Público, n. 26, p. 115-136, 1999.
Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e
outros interesses difusos e coletivos. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva. 1996. p. 4.
JUSTEN FILHO, 1999, p. 118.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994. p.30-31.
BASTOS, 1994, p. 31.
MELLO, 2000, p. 33.
25
Gasparini45 no mesmo sentido assevera:
Não é interesse público o relativo à Administração Pública enquanto tal como ocorre
no adiamento, por alguns dias, do pagamento dos vencimentos de seus servidores
para, mantendo os valores correspondentes aplicados no mercado financeiro, auferir
renda.
Sendo assim, a norma legal, formalmente válida, que privilegia interesse privado do Estado
em detrimento dos interesses sociais, deve ser ou não admitida como válida por nossos
tribunais?
Reale46 apenas aponta a existência do problema, sem, contudo, arriscar-se a uma posição:
“[...] não se sabe qual o maior dano, se das leis más, suscetíveis de revogação, ou o poder
conferido ao juiz para julgar contra legem, a pretexto de não se harmonizarem com o que lhe
parece ser uma exigência ética”.
Muitas são as objeções à possibilidade de o juiz negar a validade de uma norma com base em
um valor não-determinável de plano, seja por gerar insegurança jurídica em face à
impossibilidade de previsibilidade das decisões judiciais, seja por usurpação de competência
privativa do legislativo.
O julgador não pode aplicar a norma infraconstitucional de forma desconectada dos valores
expressos na norma maior. O afastamento de norma infraconstitucional, em atendimento a
valores éticos, que devem imantar todo o sistema jurídico nacional, longe de ser um dano, é
um benefício, um benefício ao povo; um benefício à democracia, porque o Judiciário como
poder, que também deve ser exercido em nome do povo, não pode estar dissociado da missão
de promoção do bem comum na distribuição da justiça.
A norma que privilegia interesses privados em detrimento de interesses públicos é
inconstitucional por ofensa ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
Esse princípio implícito nas constituições atuais, porque decorrem da própria premissa do
Estado Democrático de Direito, chegou a ser expresso na primeira constituição do nosso país.
45
46
GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 15.
REALE, 2002, p. 113.
26
A Constituição Imperial, de 25 de março de1824, em seu artigo 179, III consignava como
garantia individual que “[...] nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública.”47
Mello48 adverte que a “[...] administração não pode prevalecer com a mesma desenvoltura e
liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob
pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir”.
Os interesse secundários, privados do Estado, não prevalecem quando colidentes com o
interesse público primário. Esta colidência é matéria passível de ser examinada pelo poder
judiciário, “[...] pois aferir e qualificar um interesse público como determinante de uma ação
administrativa representa, afinal, um juízo de legalidade”.49 Aduzimos que essas observações
também se aplicam aos legisladores. “O parlamentar, como se sabe, não é obrigado por lei
nenhuma a prestar contas a seu eleitorado, nem é responsabilizável por seus atos”50, porém
não devem se conduzir no exercício de função pública como se fossem titulares autônomos do
poder de fazer leis editando normas contrárias ao interesse do povo.
Telles Júnior51 defende que:
[...] ao governo legítimo, deve repugnar a promulgação do Direito artificial, isto é, a
promulgação de mandamentos em conflito com a normalidade ambiente; de
mandamentos que sejam a contrafação do Direito, embora levem, muitas vezes, o
rótulo de Direito. Aos olhos do Governo legítimo, não pode ser tido como Direito o
que não é Direito, mas o Torto.
Rousseau52, o pai do contratualismo, já defendia que “[...] no caso de ser má a ordem
estabelecida, por que se há de tomar por fundamental as leis que impedem de ser bom?”
Considerando que nosso sistema jurídico se sustenta sobre pilares éticos expressos nos valores
constitucionais, há que se admitir a utilização de valores éticos na atuação dos juízes. A
decisão fundada em valores, decorrentes de fundamentos ou princípios constitucionalmente
47
48
49
50
51
52
BRASIL. (Constituição 1824). Constituição política do Império do Brasil. Coleção de Leis do Brasil.
Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jul. 2004a.
MELLO, 2000, p. 33.
BORGES, Alice Gonzales. Interesses públicos: um conceito a determinar. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, n. 205, p. 115, jul./set. 1996.
TELLES JÚNIOR, Goffedo. O povo e o poder. O conselho do planejamento nacional. São Paulo: Malheiros,
2003. p. 76.
TELLES JÚNIOR, 2003, p.66.
ROUSSEAU, 1987.
27
assegurados, consiste em um devido controle da legalidade da norma e aplicação da devida
justiça no caso concreto.
Sem qualquer sombra de dúvidas pode-se afirmar que a lei injusta causa maior dano que
permitir aos magistrados decidir de conformidade com os valores éticos expressos em nossa
Carta Magna.
O devido processo legal possui inúmeros recursos capazes de conferir à decisão ética o devido
controle. Se o judiciário não puder se manifestar sobre a adequação das normas aos valores
constitucionais, pilares de todo ordenamento, estaríamos diante de uma constituição de fazde-conta, que existe somente para enganar o povo com a esperança vã de um Estado
Democrático de Direito onde impere a justiça social.
A norma injusta, incompatível com os valores constitucionais, é, e deve ser vista, no Estado
Democrático de Direito, como um câncer que corrói as consciências, as esperanças e a crença
na capacidade estatal de realização do bem comum.
A sobrevivência de normas, formalmente válidas, colidentes com valores sociais expressos na
Carta Magna, é um fator de neutralização, desidratação, despolitização, esvaziamento e
dissolução do sentido de legalidade53, e fere de morte a própria concepção do Estado
Democrático de Direito que, embora esteja previsto na carta constitucional, depende ainda da
ação consciente da sociedade civil, para ser implementado.
2.2 DA NECESSIDADE DE REANÁLISE DAS NORMAS
RELATIVAS AOS TERRENOS DE MARINHA À LUZ DO
NOVO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL
No caso dos terrenos de marinha, objeto de nosso estudo, bens de propriedade da União
Federal, localizados em uma porção geográfica de terra que se estende ao longo de toda a
costa brasileira, encontram-se inúmeros conflitos gerados pela visão fiscalista do Estado.
53
Cf. BONAVIDES, 1993, p. 17-32.
28
Os terrenos de marinha são: “[...] todos os que banhados pelas águas do mar ou dos rios
navegáveis vão até a distância de 15 braças craveiras (33 metros) para a parte da terra,
contadas desde o ponto a que chega o preamar médio.54 Este ponto refere-se ao estado do
lugar no tempo da execução da Lei de 15 de novembro de 1831, artigo 51 §14 (Instruções de
14 de novembro de 1832, artigo 4.°)”.55 Os acrescidos de marinha, são acréscimos naturais
ou artificiais aos terrenos de marinha ocorridos após 1831. Estes, juntamente com os terrenos
reservados56 receberam ao longo dos anos o mesmo tratamento jurídico dados aos terrenos de
marinha.
A grande maioria dos posicionamentos jurídicos cristalizados sobre os terrenos de marinha,
repousa na visão positivista restrita (em que o Direito facilmente se converte em instrumento
de dominação e validação de todas as ações do Estado), que convenientemente privilegia a
legalidade em detrimento do respeito aos interesses coletivos dos destinatários da norma.
Embora muitas normas sobre os terrenos de marinha sejam “legais”, são inadequadas às
necessidades sociais. Estas posições unilaterais das normas jurídicas, editadas em favor
exclusivo dos interesses privados da União Federal, são nocivas à própria democracia.
Nesta ótica, onde os pensamentos são cristalizados, e o senso crítico sufocado, o discurso da
defesa da segurança nacional prepondera de forma monolítica, impedindo qualquer legislação
que possa modificar a forma de utilização destes bens da União ou que reconheça a
necessidade de conferir segurança jurídica aos ocupantes em áreas urbanas consolidadas.
O discurso monolítico de que os terrenos de marinha são bens dominicais57, a serviço da
produção de receitas patrimoniais da União, não mais se sustenta. O esquecimento dos
diversos interesses sociais inseridos nestas áreas atenta contra inúmeros princípios
constitucionais. Esta visão estreita impede a identificação dos verdadeiros interesses públicos
que clamam por tutela.
54
55
56
57
Preamar é a linha onde a maré atinge seu limite.
Artigo 1.º, § 1.° do Decreto n.° 4.105, de 22 de fevereiro de 1868 (BRASIL. Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão. Secretaria do Patrimônio da União. Legislação imobiliária da União: anotações e
comentários à leis básicas. Brasília, 2002d).
Os terrenos reservados para a servidão pública nas margens dos rios navegáveis e que se fazem navegáveis,
todos os que, banhados pelas águas dos ditos rios, fora do alcance das marés, vão até a distância de 7 braças
craveiras (15, 4 metros) para a parte da terra, contadas desde o ponto médio das enchentes ordinárias
(BRASIL. Decreto nº. 1.507, de 26 de setembro de 1867. Fixa a despeza e orça a receita geral do império
para os exercícios de 1867 - 1868 e 1868 - 1869, e dá outras providencias. Coleção de Leis do Brasil, v.1, n.
1867, p. 139. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 25 maio 2004b).
Bens públicos não afetados a qualquer destinação ou serviço público, sendo considerados bens privados do
Estado.
29
A supremacia do interesse público sobre o privado deve ser analisada inclusive sob enfoque
atualizado, já que o interesse público verdadeiro pode estar sendo defendido pelo povo contra
o próprio Estado.
O que é o povo? Indaga Müller58. Povo, palavra gasta e mal empregada, muitas vezes
utilizada para legitimar situações antidemocráticas, em que os verdadeiros interesses
populares são olvidados em favor dos interesses privados de grandes grupos econômicos.
Porém, o povo, ente abstrato, multifacetado e plural, encontrou um novo espaço de
identificação e expressão, que são as organizações coletivas, como as associações (de
moradores, culturais, esportivas, acadêmicas, filantrópicas), sindicatos, ONGs59 etc., e está
aprendendo a exercitar as garantias constitucionais conferidas pela jurisdição coletiva.
A divisão clássica entre interesse público e interesse privado não condiz com a realidade da
nossa sociedades de massas. Entre estas duas áreas há um ponto de interseção onde
encontramos os direitos e interesses metaindividuais. Na sociedade de massas tem-se uma
realidade que supera a visão individual, uma realidade “[...] que transcende a noção egoística
e repousa na esfera transindividual ou metaindividual”.60 Os interesses são muitas vezes
indivisíveis e com titulares indetermináveis, “[...] não pertencem ao indivíduo egoisticamente
considerado, mas sim como integrante de um corpo, de uma categoria, ou até mesmo como
membro da sociedade coletivamente considerada (cidadão)”.61
Segundo Mazzilli62
[...] o interesse público primário (bem geral) pode ser identificado com o interesse
social, o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo, e mesmo com os
mais autênticos e abrangentes interesses difusos (o exemplo, por excelência, do meio
ambiente).
Estes direitos e interesses metaindividuais, muitas vezes, são desconsiderados pelo Estado, no
exercício de suas atividades arrecadatórias (interesse público secundário).
58
59
60
61
62
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann.
São Paulo: Max Limonad, 1998. 115p.
Organizações não governamentais.
RODRIGUES, 2002, p. 23.
RODRIGUES, 2002, p. 23.
MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o ministério público. 3. ed. rev. ampl. atual. São Paulo:
Saraiva, 1998. p. 4.
30
A padronização dos terrenos de marinha em uma única natureza jurídica é extremamente
nociva à compreensão e tutela dos diversos interesses metaindividuais aí contidos já que, ao
limitar a discussão em uma única solução possível para o problema, tem-se o acirramento do
mesmo em decorrência do surgimento de conflitos entre os direitos difusos contidos nesta
área, dificultando ainda mais a identificação de solução plúrima, democrática e adequada aos
ditames da função social da propriedade.
A questão que envolve a regularização dos usos e ocupações dos terrenos de marinha se torna
mais complexa dia a dia. Dentro desta área geográfica têm-se inúmeros interesses legítimos
que necessitam ser considerados de forma diferenciada. O respeito às diferenças e
peculiaridades é imposto, inclusive, pelo princípio do pluralismo democrático.
Sendo os terrenos de marinha uma grande faixa geográfica onde se encontram aglomerados
urbanos, áreas turísticas, terras indígenas, terras de remanescentes de quilombos, fortificações
militares, sítios, fazendas, reservas ambientais, propriedades rurais, portos, aeroportos etc... é
possível deduzir que a imposição da vontade particular da União, enquanto titular da
propriedade privada do Estado, é um fator de conflito e desestabilização social. Neles se vê a
concretização dos receios de Bonavides, já que, quando a legitimidade é conferida pela pura
legalidade “[...] o arbítrio se faz instituição numa questão central da convivência humana”. 63
As necessidades públicas devem ser respeitadas. Mas não é o Estado o único titular do direito
de identificar e solicitar a tutela jurisdicional dos interesses públicos. O poder da
administração pública está longe de ser um poder absoluto. Desconsiderar a importância da
voz do povo equivale a tentar agir de forma absolutista em pleno Estado Democrático de
Direito. Somente sob a ótica de um estado ditatorial se pode conceber a existência de normas
jurídicas que defendam interesses privados do Estado, colidentes com interesses públicos
difusos e coletivos.
63
BONAVIDES, 1993, p. 30.
31
3 DOS INTERESSES METAINDIVIDUAIS INSERIDOS NOS
TERRENOS DE MARINHA
O Estado Democrático de Direito tem por princípio estruturante a democracia pluralista,
aberta à participação social de diversos representantes da sociedade civil, respeitadora dos
direitos das minorias. O adjetivo democrático, que qualifica o Estado “[...] irradia os valores
da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem
jurídica”.64
O Estado Democrático de Direito, considera a importância da opinião pública, reconhece o
poder da sociedade civil, tem consciência de que a norma jurídica não pode ficar
desconectada dos anseios de justiça de seus destinatários. Os interesses coletivos e difusos são
extremamente relevantes no Estado Democrático de Direito, já que expressam uma parcela da
pluralidade das necessidades e anseios do povo.
A palavra interesse diz respeito a uma relação entre o sujeito e o bem capaz de satisfazer uma
necessidade humana. O interesse individual ampliou-se na sociedade de massa onde as
relações se tornaram cada vez mais impessoais, onde se tem a produção em série, onde
surgiram as lesões de massa aos direitos e interesses metaindividuais.
Os diversos valores sociais defendidos pelos interesses metaindividuais devem ser
identificados. O respeito aos diversos interesses públicos contidos nos interesses
metaindividuais, existentes na sociedade marcada pela pluralidade, é um dos compromissos
do Estado Democrático de Direito.
Nos terrenos de marinha encontram-se diversos interesses, interesses individuais e interesses
metaindividuais. O interesse público já não é mais explicitado pelo interesse da
administração, muitas vezes o interesse da coletividade é encontrado nos interesses
metaindividuais.
Os direitos e interesses metaindividuais que conferem ao povo, enquanto sujeito destes
direitos, o direito subjetivo de tutela judicial, se caracterizam fundamentalmente pela
64
BASTOS, Celso Ribeiro; MARINS, Yves Gandra. Comentários à constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva, 1988. v. 1, p. 421.
32
possibilidade de tutela coletiva de direitos e interesses de massas. Na área geográfica
denominada terrenos de marinha é possível a identificação de interesses individuais e
metaindividuais.
O interesse individual – compreendido como interesse específico de um indivíduo, tomado de
forma isolada é expressado nestas áreas pelo interesse da união em “explorar” os terrenos de
marinha, a fim de maximizar a arrecadação deste bem dominical destinado à geração de
receitas para o Estado.
Os interesses metaindividuais, presentes nos terrenos de marinha, são diversos.
De
conformidade com a classificação efetuada no Art. 81 do Código do Consumidor, e adotada
pela esmagadora maioria da doutrina, os direitos e interesses metaindividuais são um gênero
em que estão contidas as espécies: interesses ou direitos difusos, interesses ou direitos
coletivos e interesses ou direitos individuais homogêneos.
Dentre os interesses difusos, interesses “[...] transindividuais de natureza indivisível, de que
sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato”65 presentes nos
terrenos de marinha, que estão em conflito com os atuais interesses fiscais têm-se: o interesse
na concretização da autonomia municipal das áreas urbanas sob propriedade da União; o
interesse de preservação ambiental dos terrenos de marinha (totalmente inseridos na Zona
Costeira, Patrimônio Nacional); o interesse da segurança nacional das áreas costeiras; o
interesse na concretização da função social da propriedade urbana (mediante eficaz
planejamento e gestão urbana de forma a viabilizar o atingimento da função social da cidade);
do interesse à segurança jurídica da moradia e da paz social (evitando que grande número de
famílias sejam desalojadas); o interesse de todos os moradores de áreas costeiras de que as
demarcações dos terrenos de marinha sejam efetuadas de conformidade com critérios
científicos precisos, evitando usurpação de propriedade privada e insegurança jurídica, e o
interesse difuso na validade do Registro de Imóveis.
Os interesses difusos se caracterizam fundamentalmente pela sua indivisibilidade,
indeterminação do sujeito, assim como pela sua grande litigiosidade interna. São indivisíveis
porquanto não há como mensurar de forma individualizada o dano; possuem sujeitos
indeterminados, uma vez que pertencem a todos e ao mesmo tempo a ninguém
65
BRASIL. Código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002a.
33
especificamente, e possuem uma grande litigiosidade interna porque podemos ter inúmeros
interesses coletivos que conflitam entre si. Conforme se verifica na análise dos interesses
difusos acima arrolados, o interesse ambiental da recuperação de todas as áreas ambientais
degradadas pela ocupação humana, pode colidir com o interesse social da segurança da
moradia. Os conflitos internos somente podem ser resolvidos caso a caso mediante processo
de ponderação de valores constitucionais expressos nos princípios, a fim de se obter o
máximo de efetividade possível no caso concreto.
No elenco dos interesses coletivos, interesses “[...] transindividuais de natureza indivisível de
que seja titular um grupo, categoria, ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária, por uma relação jurídica-base”66, encontram-se: os interesses de comunidades
(índios e remanescentes de quilombos) que historicamente ocuparam os terrenos de marinha;
o interesse de comunidades que subsistem mediante atividades artesanais extrativistas
marinhas, ao acesso à terra de marinha para a instalação de equipamentos necessários às
atividades; e o interesse de comunidades carentes na realização de programas de regularização
fundiária nas áreas de marinha ocupadas espontaneamente, sem planejamento urbano. Estes
interesses coletivos são assim considerados quando se têm pessoas reunidas por um vínculo
jurídico; sem este vínculo, estes interesses são considerados interesses difusos.
Na espécie interesses individuais homogêneos, que exprimem interesses decorrentes de
origem comum, encontram-se: interesses dos ocupantes e foreiros na extinção dos terrenos de
marinha; interesses dos ocupantes e foreiros de terrenos de marinha em adquirir a propriedade
plena dos imóveis, mediante pagamento de valor justo e compatível com sua capacidade
financeira; interesse na estabilidade dos valores cobrados de forma a se evitar aumentos
excessivos de um ano para o outro; interesses no reconhecimento da validade das escrituras
particulares lavradas há muitos anos, que em virtude da demarcação dos terrenos de marinha
passaram a ser questionadas; interesses dos foreiros de marinha em adquirir a propriedade
plena mediante a remição do aforamento e interesses dos ocupantes regularmente inscritos na
Secretaria do Patrimônio da União (SPU) de se converterem em foreiros da União.
Sendo assim, percebe-se que são vários os interesses em conflito e que a solução para o
emaranhado de problemas, em que se converteram os terrenos de marinha, não poderá ser
efetuada de forma simplista nem padronizada.
66
Art. 181, II. (BRASIL, 2002a).
34
A gestão dos terrenos de marinha deve levar em consideração os diversos interesses tutelados
de forma dispersa pelo ordenamento jurídico e valorados nos princípios constitucionais. Não
se concebe o exercício da propriedade pública dissociado do atendimento das necessidades
sociais.
Como são diversos os interesses presentes nos terrenos de marinha, a sistematização deste
estudo os distribui em quatro grupos de interesses67: econômicos, sociais, urbanos e
ambientais.
3.1 INTERESSES ECONÔMICOS
As normas relativas aos terrenos de marinha, que cuidam precipuamente da
regulamentação da utilização onerosa do patrimônio disponível da União, foram
elaboradas visando à conversão deste bem em fonte de receitas para o Estado. Para o
atingimento deste fim, foram editadas diversas normas que, ao longo dos anos, foram
parcialmente modificadas e completadas por outras, gerando uma pluralidade normativa
que dificulta o estudo da matéria pelos operadores do Direito, assim como o conhecimento
completo delas pelos destinatários.
A destinação dos terrenos de marinha ao atendimento dos interesses fiscais é a única
finalidade identificada por muitos autores nacionais. Gasparini 68, embora admita que
os terrenos de marinha possuam uma destinação pública “[...] visando à defesa do
território nacional” também se rende ao fiscalismo ao afirmar que “[...] a importância
dos terrenos de marinha transcende esse aspecto na medida em que se prestam para
auferir rendas.” 69
A União, historicamente, sempre visou ao aumento da receita patrimonial auferida
nestes imóveis. Embora a norma legal (Art. 105 e 215 do Decreto Lei n.º 9.760 de 1946,
c/c Art. 5º do Decreto-Lei n.º 2.398, de 1987 c/c Art. 12 da Lei n.°9.636 de 15 de maio
67
68
69
Não estanques já que se inter-relacionam.
GASPARINI, 2003, p. 737.
GASPARINI, 2003, p. 737.
35
de 1998)70 confira a muitos ocupantes o direito de preferência ao aforamento este é
considerado faculdade da União. O aforamento além de cobrar um valor anual mais
acessível 71 garante a segurança jurídica da perpetuidade. Por força da burocracia
existente na Secretaria do Patrimônio da União inúmeros pedidos de aforamento ficam
inconclusos durante muitos anos.
Mas, em verdade, verifica-se a partir dos relatos de Silva72, que a burocracia acabou servindo
a objetivos “estratégicos”:
Considerando a pouca rentabilidade financeira do instituto da enfiteuse ou
aforamento, o Governo da União faz muito tempo deixou de aplicá-lo como forma
de utilização dos terrenos de marinha, bem como dos demais bens pertencentes ao
seu patrimônio. Em substituição ao aforamento surgiu a ‘ocupação’ que possibilita a
cobrança de uma taxa, bem mais rentável aos cofres da União.
A grande maioria das ocupações nas áreas de marinha é efetuada mediante inscrição de
ocupação, que possui como característica principal a precariedade e a onerosidade. A União
cobra anualmente a taxa de ocupação de 5% sobre o valor do imóvel e laudêmio de 5% em
caso de transferência da ocupação.
A modificação no critério visou apenas ao atendimento dos interesses fiscais, porque a “[...]
taxa de ocupação pode ser atualizada periodicamente, sendo, por esta razão, bem mais
interessante financeiramente, do que o foro que é, de natureza, fixo”.73 Os interesses sociais
de segurança jurídica da posse e do planejamento urbano foram relegados a segundo plano.
A instituição da ocupação por parte da União decorreu de uma construção jurídica nacional,
conforme se verifica da continuação dos estudos acima citados:
Pelo exposto, pode-se facilmente constatar que a ocupação tem muito de semelhante
ao aforamento. Isto, considerando-se a ocupação ‘estado de fato, juridicamente
70
71
72
73
BRASIL. Decreto-Lei 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sobre os bens imóveis da união e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 12.500, col. 4, 6 set. 1946;
BRASIL. Decreto-Lei 2.398, de 21 de dezembro de 1987. Dispõe sobre foros, laudêmios e taxas de ocupação
relativas a imóveis de propriedade da União e da outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, p. 22.231, col. 2, 22 dez. 198770; BRASIL. Lei 9.636, 15 de maio de 1998.
Dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio dá união,
altera dispositivos dos Decretos-Leis n.º 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de
1987, regulamenta o parágrafo 2 do artigo 49 do ato das disposições constitucionais transitórias, e da outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 2, col. 2, 18 maio 1998a.
A taxa de 0,6% do valor de avaliação do terreno da União pagos anualmente e laudêmio no valor de 5%
sobre o valor da venda do domínio útil.
SILVA, João Alfredo Raymundo. Terrenos de marinha, seus acrescidos e a administração municipal. Revista
de Direito Público, São Paulo, ano VII, n. 37-38, p. 323, 1976.
SILVA, 1976, p. 323.
36
relevante’. Pode ser transferida. O ocupante, a exemplo do foreiro, paga uma quantia
anual, a taxa de ocupação. Em caso de transmissão onerosa é devido o laudêmio.74
A União Federal, dessa forma, institucionaliza a “legalização” da ocupação das áreas de
marinha e valida a transferência onerosa de “direito de ocupação” (precário e passível de
revogação a qualquer tempo), mediante a cobrança de laudêmio. O laudêmio, valor
originariamente cobrado em virtude da transferência do aforamento, passou a ser cobrado
também em virtude da transferência de ocupação.
Nesta mudança tem-se a origem da insegurança jurídica da moradia familiar nas áreas de
marinha. Havendo uma preferência “estratégica” na inscrição de ocupações, para cobrança de
taxas de ocupação e laudêmios (na ocasião da transferência destes imóveis têm-se os
“direitos” de ocupação inseridos no mercado imobiliário com a anuência da União). Mas, ao
contrário do que o pagamento do laudêmio faz crer, esta inscrição não gera qualquer
segurança jurídica ao particular. Somente terá direito de utilizar o imóvel, enquanto a União
não o solicitar, já que este possui o caráter de precariedade.
Como o principal interesse sempre foi a arrecadação, as áreas da União tornaram-se bastante
disponíveis para ocupações desordenadas e posterior “legalização”, mediante a inscrição na
SPU.
Lima75 destaca que a União ao instituir a cobrança da ocupação inspirou “[...] seus
componentes econômicos na imagem da enfiteuse”: Porém Silva76 destaca que na ocupação
“[...] não ocorre o desmembramento da propriedade, mantendo a União o domínio pleno sobre
os imóveis ocupados”.
Esta criativa medida arrecadatória estimulou a ocupação desordenada das cidades costeiras
brasileiras, onde foram inscritos ocupantes para fins de pagamento de taxa, em detrimento do
planejamento urbano.
Além de estimular a ocupação desordenada do solo, impede o controle ou ordenamento por
parte da administração municipal, já que, para a inscrição de ocupação é dispensada a oitiva
74
75
76
SILVA, 1976, p. 323.
LIMA apud SILVA, 1976, p. 323.
SILVA, 1976, p. 323.
37
prévia dos órgãos públicos, nem é exigida qualquer aprovação de loteamento para o
parcelamento do solo urbano.
Os terrenos de marinha, bens que por sua destinação original deveriam ser bens de uso
comum do povo, ainda estão sendo utilizados em pleno século XXI como fonte de
arrecadação (não de impostos) de “receitas patrimoniais”. Esta postura fez com que a Frente
Nacional de Prefeitos denunciasse a União como sendo a maior especuladora imobiliária do
Brasil.77
3.1.1 Instrumentos de Arrecadação
Inseridos na categoria dos interesses econômicos, temos diversos interesses passíveis de
análise a partir de situações fáticas e jurídicas regulamentadas em lei. As principais receitas
arrecadadas pela União nos terrenos de marinha são: foro, laudêmio, taxa de ocupação, multas
e juros, remições de foros, vendas de domínio útil e pleno e contratos de cessão onerosa.
A enfiteuse, ou aforamento78 foi muito utilizada na regulamentação dos usos dos terrenos de
marinha. O foro, também denominado cânon, que é a contrapartida financeira anual imposta
ao enfiteuta (morador) em favor do senhorio (União), detentor do domínio direto, possui um
valor fixo de 0,6% (seis décimos por cento) do valor de avaliação do terreno da União.
O aforamento, embora considerado pela doutrina como um contrato que já deveria ter sido
extinto (por inadequado à modernidade), no caso dos terrenos de marinha é menos nocivo que
a total informalidade das ocupações, ao menos, confere alguma segurança jurídica ao foreiro.
Este originariamente objetivava o povoamento da costa brasileira. Os ocupantes, mediante
processos de regularização, firmavam contratos com a União, assegurando o direito ao
domínio útil do terreno, de forma perpétua, desde que cumprissem com as condições do
contrato.
77
78
Prefeito Paulo Vellozo Lucas, Coordenador-geral da Frente Nacional de Prefeitos (LUCAS, Paulo Vellozo
Lucas. Agenda das cidades. Disponível em: <http://www.vitoria.es.gov.br/fnp/agenda.doc>. Acesso em: 2
mar. 2004.
A enfiteuse é um contrato de direito privado em que o proprietário do imóvel, denominado senhorio,
transfere de forma perpétua, o domínio útil (direito de uso, gozo e fruição) ao foreiro, mantendo em seu
poder o domínio direto (titularidade do domínio, a propriedade do imóvel), mediante pagamento anual certo
do foro.
38
Com o objetivo de viabilizar a segurança jurídica das ocupações consolidadas têm-se as
normas contidas nos artigos 105 e 125 do Decreto Lei n.º 9.76079, de 1946, as quais conferiam
“preferência ao aforamento” aos ocupantes que se inserissem no rol previsto na norma legal.
Este direito à segurança jurídica, validação das situações consolidadas pelo tempo, hoje é
ignorado pela Fazenda Nacional. Esta, coerente com os objetivos fiscalistas, nocivos à
segurança jurídica e à paz social, entende que o direito ao aforamento gratuito, assegurado nos
artigos Art. 105 e 215 do Decreto Lei n.º 9.760 de 194680, c/c Art. 5º do Decreto-Lei n.º
2.39881, de 1987 c/c Art. 12 da Lei n.º 9.63682, de 15 de maio de 1998, não é um direito do
ocupante e sim uma mera possibilidade, dependente da conveniência e oportunidade da
administração pública. O entendimento da SPU é que “[...] preferência não se confunde com
direito. Por isto, apenas quando o Poder Público considerar conveniente e oportuno
estabelecer o regime enfitêutico é que se apresenta oponível a terceiros o direito de
preferência previsto na lei.”.83
79
80
81
82
83
BRASIL, 1946.
Cf. Art. 105 e 215 do Decreto Lei nº 9.760.” Art. 105 - Têm preferência ao aforamento: 1º) os que tiverem
título de propriedade devidamente transcrito no Registro de Imóveis; 2º) os que estejam na posse dos terrenos
com fundamento em título outorgado pelos Estados ou Municípios; 3) os que, necessariamente, utilizam os
terrenos para acesso às suas propriedades; 4) os ocupantes inscritos até o ano de 1940, e que estejam quites
com o pagamento das devidas taxas, quanto aos terrenos de marinha e seus acrescidos, 5º) os que, possuindo
benfeitorias, estiverem cultivando, por si e regularmente, terras da União, quanto às reservadas para a
exploração agrícola na forma do art. 65.(revogada pelo Art. 53 da Lei 9.636 de 15 de maio de 1998); 6º) os
concessionários de terrenos de marinha, quanto aos seus acrescidos, desde que estes não possam constituir
unidades autônomas; 7º) os que no terrenos possuam benfeitorias, anteriores ao ano de 1940, de valor
apreciável em relação ao daquele; 8º) os concessionários de serviços públicos, quanto aos terrenos julgados
necessários a esses serviços, a critério do Governo (revogado pelo Art. 53 da Lei 9.636 de 1998); 9º) os
pescadores ou colônia de pescadores, que se obrigarem a manter estabelecimentos de pesca correlata, ou
indústria correlata quanto aos terrenos julgados apropriados (revogado pelo Art. 53 da lei 9.636 de 1998); 10)
os ocupantes de que trata o art. 133, quanto às terras devolutas situadas nos Territórios Federais.(revogado
pelo Art. 53 da lei. 9.636 de 1998.”; Art. 215 – Os direitos peremptos por força do disposto nos artigos 20, 28
e 35 do Decreto Lei nº 3.438, de 17 de julho de 1943 e 7º do Decreto-lei nº 5.666 de 15 de julho de 1943,
ficam revigorados correndo os prazos para o seu exercício da data da notificação de que trata o art. 104 desse
Decreto–Lei.”(Dispõe o Decreto- Lei nº 5.666 de 15 de julho de 1943- Art. 7º - “Ficam confirmadas as
concessões havidas, até a data da vigência do presente Decreto-Lei, dos terrenos que os Estados ou
Municípios tenham aforado por supô-los de sua propriedade, desde que os foreiros, dentro de seis meses,
regularizem a situação perante o Domínio da União”) (BRASIL, 1946).
Art. 5° Ressalvados os terrenos da União que, a critério do Poder Executivo, venham a ser necessários ao
Serviço Público, conceder-se-á o aforamento: I - independentemente do pagamento do preço correspondente
ao valor do domínio útil, nos casos previstos nos arts. 105 e 215 do Decreto-lei n° 9.760, de 5 de setembro de
1946; II - mediante o pagamento do preço referido no item anterior, nos casos previstos no art. 4° do
Decreto-lei n° 1.561, de 13 de julho de 1977; e III - mediante leilão público, nas hipóteses do art. 99 do
Decreto-lei n° 9.760, de 5 de setembro de 1946 (BRASIL, 1946).
Art 12. Observadas as condições previstas no § 1º do art. 23 e resguardadas as situações previstas no inciso I
do art. 5º do Decreto-Lei nº 2.398, de 1987, os imóveis dominiais da União, situados em zonas sujeitas ao
regime enfitêutico, poderão ser aforados, mediante leilão ou concorrência pública, respeitado, como preço
mínimo, o valor de mercado do respectivo domínio útil, estabelecido em avaliação de precisão, realizada,
especificamente para esse fim, pela SPU ou, sempre que necessário, pela Caixa Econômica Federal, com
validade de seis meses a contar da data de sua publicação.” (BRASIL, 1946).
Nota 171 ao Art. 105. (BRASIL, 2002d, p. 85).
39
O direito ao aforamento perpétuo (contrato que, ao menos, confere aos moradores destas áreas
o direito à segurança jurídica da moradia), é obstado pela União, com base em pareceres que
são contraditórios em sua essência, conforme se depreende da transcrição abaixo:
[...] constitui-se o aforamento quando coexistem a conveniência de radicar-se o
indivíduo ao solo e a manter-se o vínculo da propriedade pública (art. 64, § 2º, do
Decreto Lei n.º 9.760, de 5 de setembro de 1946).
A aplicação do regime enfitêutico configura faculdade da Administração, que, em
conseqüência, não está obrigada a adotá-lo apenas porque solicitado por quem
detenha tão-só direito de preferência a eventual aforamento.84
Este parecer é absolutamente contraditório já que se inicia fixando um parâmetro fundado no
interesse público de cunho social, que é a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e a
manter-se o vínculo da propriedade pública, para concluir que é uma faculdade da
administração. Será mesmo faculdade da administração a negação ao aforamento para
ocupações consolidadas em núcleos urbanos? Como caracterizar a falta de conveniência de
radicar-se o indivíduo ao solo? Será que a discricionariedade confere à União o poder de gerar
insegurança social somente porque busca uma forma mais rentável de administração de seu
enorme latifúndio?
Como as receitas do foro, com base de cálculo fixa em contrato, passível apenas de correção
monetária, exprimiam um valor irrisório, a União privilegia o cadastramento de ocupantes à
efetiva regularização destes.
Ao se analisarem os aforamentos, encontram-se interesses individuais da União colidindo
com interesses individuais homogêneos de ampla repercussão social. O aumento dos valores
cobrados contratualmente é uma destas questões. A União, objetivando tornar os contratos de
aforamento mais rentáveis, alterou a norma legal. O Art. 101 do Decreto-Lei n.º 9.76085, de
1946, foi alterado pela Lei n.º 7.45086, de 23/12/85, de forma a permitir a atualização anual da
base de cálculo do aforamento. Esta possibilidade é objeto de decisões judiciais
contraditórias.
84
85
86
Parecer PGFN/CPA/nº 806/98, citado na nota 171 supramencionada.
BRASIL, 1946.
A redação original do artigo 101 do Decreto-Lei n.º 9.760, de 1946, dispunha que “[...] os terrenos aforados
pela União ficam sujeitos ao foro de 0, 6% (seis décimos por cento), do valor do respectivo domínio pleno
[...] ”, mas com a alteração efetuada pela Lei 7.450, de 23 de dezembro de 1985, acresceu a expressão “[...]
que será anualmente atualizado” (BRASIL. Decreto-Lei 7.450, 23 de dezembro de 1985. Altera a legislação
tributária federal e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p.
18.937, col. 1, 24 dez. 1985).
40
O Superior Tribunal Federal87 considera a atualização anual adequada sob o fundamento de
que:
A retribuição da enfiteuse (foro), uma vez atrelada ao valor do domínio pleno do
imóvel, esteve sempre sujeita a variação, quem em decorrência do processo
inflacionarão, quer por fatores outros que alteram seu valor patrimonial (do imóvel)
estando a União autorizada, independentemente da promulgação da Lei n.º 7.450/85
a alterar a percentualização do foro sempre que modificado o valor do domínio
pleno do terreno emprazado.
O Supremo Tribunal Federal88 entende que se deve respeitar o ato jurídico perfeito decorrente
dos contratos em vigor. In verbis
Aforamento de imóvel da União, Atualização prevista pela Lei n.º 7.450-85,
superveniente á constituição do aforamento, ao dar nova redação ao art. 101 do
Decreto-Lei n.º 9.760-46. Providência legítima, na medida em que se ativer aos
índices da correção monetária, mas inconciliável com a garantia do ato jurídico
perfeito (art. 5º, XXXVI, da Carta de 1988 e art. 153, § 3º, da pretérita) quando
venha a refletir a valorização do domínio pleno, resultante de outros fatores que não
a simples desvalorização da moeda. Recurso extraordinário parcialmente provido, a
fim de ser julgada, em parte procedente a ação, para excluir, das importâncias
exigidas ao enfiteuta, a parcela porventura excedente do foro inicial,
monetariamente corrigido, conforme se vier a apurar, em liquidação.
O primeiro entende possível a atualização em contratos assinados antes da edição da norma,
enquanto o segundo determina o respeito ao ato jurídico perfeito, admitindo-a apenas em
contrato posteriores.
Outro conflito de interesses e desencontro na doutrina pátria é identificado na interpretação e
aplicação do Art. 49 do ADCT.89
87
88
89
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.° 68.342/RJ, de 1 de julho de 1996.
Administrativo. Contrato de enfiteuse envolvendo bens da união. Atualização do foro. Possibilidade.
Decreto-Lei n. 9.760/46 e Lei n. 7.450/85. Relator: Min. Demócrito Reinaldo. Diário da Justiça, Brasília,
DF, p. 23.992, 1 jul. 1996. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em> 2 maio 2004o.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 143856-8/ Pernambuco. Aforamento de
imóvel da União. Herano José de Andrade do Nascimento e União Federal. Relator: Min. Octavio Gallotti.
Disponível em: <http://www.stj.gov.br/jurisprudencia>. Acesso em: 27 jul. 2004p.
“Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no
caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do
que dispuserem os respectivos contratos. § 1º Quando não existir cláusula contratual, serão adotados os
critérios e bases hoje vigentes na legislação especial dos imóveis da União; § 2º Os direitos dos atuais
ocupantes inscritos ficam assegurados pela aplicação de outra modalidade de contrato; § 3º A enfiteuse
continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir
da orla marítima; § 4º Remido o foro, o antigo titular do domínio direto deverá, no prazo de noventa dias, sob
pena de responsabilidade, confiar à guarda do registro de imóveis competente toda a documentação a ele
relativa” (BRASIL,2003b).
41
Enquanto Medauar90 entende que “[...] quanto à enfiteuse dos terrenos de marinha e
acrescidos, o art. 49 do ADCT, já determinava sua continuidade”, Gasparini91 destaca que
“[...] embora pareça ser desejo da Constituição Federal (art. 49 e parágrafos do ADCT) a
extinção do aforamento [...] sua utilização ainda ocorrerá em relação aos terrenos de marinha
e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima”. Este autor
entende que a lei que “[...] disporá sobre o instituto da enfiteuse” já existe, na medida em que
facultou aos foreiros, no caso de extinção, a remição dos emprazamentos existentes mediante
aquisição do domínio direto, consoante disposto nos respectivos contratos:
O resgate dos terrenos da União, dados em aforamento segundo o regime prescrito
pelo Decreto-Lei n. 9.760/46, ao contrário de ser defeso, é permitido expressamente
nos arts. 103 e 122, sob a denominação de remição, embora erroneamente grafada. A
expressão (remição), escrita com ‘ss’, sobre significar perdoar, dá-nos uma idéia
incompatível com o sentido lógico e literal do texto.92
De fato o Ato das Disposições Transitórias Constitucionais (ADCT) prevê a continuação da
enfiteuse “na faixa de segurança” (§ 3º do Art. 49). Pergunta-se: qual a utilidade de se aforar
perpetuamente área necessária aos serviços de segurança nacional? Este parágrafo do ADCT
exprime a constitucionalização: de uma contradição jurídica que é a concessão perpétua, a
particular, de bem público afetado pelos interesses superiores da segurança nacional; e de uma
impossibilidade fática, já que inexistem formas da União exercitar sua função de defesa da
costa em áreas densamente urbanizadas. As áreas necessárias à segurança nacional devem ser
ocupadas por fortes e estabelecimentos geridos pelas forças armadas, nunca poderiam estar
contidas em áreas ocupadas por moradias, prédios, indústrias etc. Sendo bens destinados a um
serviço público de segurança nacional, estes locais nunca devem ser aforados, sob pena de
ofensa ao interesse público superior da segurança nacional. Devem ser considerados bens de
uso especial, nunca bens dominicais passíveis de aforamento.
O interesse individual à propriedade plena pode ser alcançado pela remição do foro, ou
resgate do aforamento. O interesse à aquisição da propriedade plena é individual, porém, face
ao grande número de pessoas que se encontram na mesma situação jurídica de foreiras da
União, este interesse se converte em interesse individual homogêneo.
90
91
92
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.
273.
GASPARINI, 2003, p. 744.
GASPARINI, 2003, p. 745.
42
Este direito à remição ou resgate, que sempre foi assegurado na lei civil93, consiste na
aquisição da propriedade plena mediante pagamento de valor fixado em lei.
No caso dos terrenos de marinha, considerados pela doutrina como bens privados do Estado,
esta possibilidade de remição ou resgate94 do aforamento é pouco utilizada, embora seja o
instrumento jurídico que melhor se adeque à função social da propriedade dominical urbana
da União.
A previsão do resgate de aforamento remonta a Lei n.º 74195, de 26 de dezembro de 1900, que
em seu artigo 3°, alínea f, autorizava o governo a conceder a remição dos foros dos terrenos
de marinha e acrescidos, mediante pagamento do valor previsto para a fixação do foro, mais
1/40 (um quarenta avos) do valor do mesmo terreno e benfeitorias nele existentes na data do
pedido de remição.
Esta norma foi revogada por meio do Decreto n.º 22.78596, de 31 de maio de 1933, editado em
período ditatorial, cujo art. 1º determinou que “É expressamente vedado o resgate dos
aforamentos dos terrenos pertencentes ao domínio da União”, inaugurando a visão
concentradora da União na gestão dos bens públicos, impedindo a segurança jurídica da
propriedade plena.
O Decreto Lei n.º 9.76097, de 5 de setembro de 1946, voltou a permitir o resgate, no artigo
103 e 123. O Art. 103 dispunha sobre a extinção do aforamento por inadimplemento, por
acordo, ou “[...] a critério do Governo, pela remição do foro [...]”.
Esta remição do foro, dizia o § 2º deste artigo, “[...] será facultada, a critério do Presidente da
República e por proposta do Ministro da Fazenda, nas zonas onde não mais subsistam os
motivos determinantes para a aplicação do regime enfitêutico”.
93
94
95
96
97
Cf. Art. 693 do Código Civil de 1916 (BRASIL. Código civil. São Paulo: Saraiva, 1999a).
Os dois termos são utilizados como equivalentes no Decreto Lei 9.760, de 5 de setembro de 1946. A
remissão é utilizada nos artigos 103, 122, 123 e 124 e o termo resgate é utilizado no art. 124 (BRASIL,
1946).
BRASIL. Lei 741, de 26 de dezembro de 1900. Orça a receita geral da República dos Estados Unidos do
Brasil para o exercício de 1901, e dá outras providências. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 1, p. 49.
Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 23 maio 2004g.
O mesmo decreto que tornou os bens dominicais imprescritíveis, conforme será demonstrado item 5.2.4.2
(BRASIL, 2004e).
BRASIL, 1946.
43
O art. 123 fixava o resgate em “[...] 20 foros e 1 ½ (um e meio laudêmio, calculado este sobre
o valor do domínio pleno do terreno e benfeitorias existentes na data da remissão”. Sendo o
foro, valor contratual fixo, cabendo somente correção monetária, verifica-se que o resgate,
previsto até a edição da Lei n.° 9.636/98 era bem mais acessível que os atuais 17% do valor
do domínio pleno. Esta norma era muito mais coerente com a busca da segurança jurídica da
posse consolidada pelo tempo e, além de prever o resgate em valores mais acessíveis que
hoje, estimulava esta remição, mediante concessão de descontos, nos termos do § 1° do
referido artigo:
Art. 123. § 1º A remissão98(sic) se fará com redução de 20%(vinte por cento), 15%
(quinze por cento), 10% (dez por cento) e 5% (cinco por cento), se requerida,
respectivamente, no primeiro, segundo, terceiro ou quarto semestre da data da
notificação.99
Estes artigos foram modificados pela Lei n.° 9.636/98100, em que a remição do aforamento
passou a constar no caput do Art. 103 com a seguinte redação:
O aforamento se extinguirá por inadimplemento de cláusula contratual, por acordo
entre as partes, ou, a critério do Presidente da República, por proposta do Ministério
da Fazenda, pela remição do foro nas zonas onde não mais subsistam os motivos
determinantes da aplicação do regime enfitêutico.
O enfoque dado pela norma legal de que o direito ao resgate é uma faculdade do poder
público expressa uma visão distorcida do instituto assim como da função da propriedade
pública. O Estado tem privilégios por defender o interesse público, mas no exercício deste
privilégio não pode se portar como ente privado. Os motivos para extinção ou manutenção,
devem ser públicos.
O valor da remição ou resgate é fixado no Art. 123 em 17%, sem fixação de prazo mínimo
para a aquisição do direito.
Mesmo diante da inclusão dos terrenos de marinha no programa de desestatização, o enfoque
principal da Lei n.º 9.636/98 é dado à venda do domínio útil e pleno, em detrimento do
resgate da enfiteuse que foi limitado a poucos artigos.
98
99
100
Note que a palavra está grafada de forma errada: remissão significa perdão, a norma em exame dispõe sobre
remição que significa resgate.
BRASIL, 1998a.
BRASIL, 1998a.
44
O único avanço legislativo, no que tange à burocracia para a concessão do resgate é
encontrado no Decreto n.º 3.125101, de 29 de julho de 1999, que confere ao Ministro de Estado
e Planejamento, Orçamento e Gestão o poder de “[...] decidir a remição de foro nas zonas
onde não subsistam os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico”.
O atendimento ao interesse individual homogêneo ao resgate do aforamento também acolhe o
interesse coletivo difuso de simplificação dos procedimentos jurídicos nos casos de alienação
dos imóveis para terceiros subtraindo-os da cobrança do laudêmio e da tramitação lenta e
dificultosa da transferência na burocracia estatal, tanto que os corretores de imóveis
brasileiros, na Carta de Porto Alegre102, elaborada no XIX Congresso Nacional de Corretores
de Imóveis (XIX Conacil), reivindicam o fim da enfiteuse, justamente por força das
dificuldades geradas pela transferência de imóveis aforados pela União:
[...] 7) Deixe de existir o instituto da enfiteuse nos ‘Terrenos de Marinha’ para os
ocupantes legais destas áreas e seus acrescidos, das capitais e cidades do litoral
brasileiro, nelas incluídas as ilhas de São Luís (Maranhão), Vitória (Espírito Santo) e
Florianópolis (Santa Catarina) e todas as outras ilhas com as mesmas características
[...].
A taxa de ocupação, principal fonte de arrecadação da União em terrenos de marinha, é
cobrada dos ocupantes dos terrenos de marinha que não tenham celebrado contrato de
enfiteuse, ou aforamento.
Nos termos da Lei “[...] para a cobrança da taxa, a SPU fará a inscrição dos ocupantes, ex
officio, ou à vista da declaração destes, notificando-os para requererem, dentro do prazo de
cento e oitenta dias, o seu cadastramento”.103
Este cadastramento para fins de cobrança espelha o ápice do interesse arrecadatório da União
nos terrenos de marinha, ou seja, a inscrição que possibilita a cobrança da receita pela União,
não a visa qualquer outra finalidade social, nem depende de qualquer anuência do Município.
Desta forma a União, a despeito do planejamento urbano, cadastra e cobra contribuição por
ocupação de solo municipal estimulando o loteamento clandestino, o que nos termos da Lei
101
102
103
BRASIL. Decreto n.° 3.125, de 29 de julho de 1999. Delega competência ao ministro de estado do
planejamento, orçamento e gestão para a prática dos atos que menciona, e dá outras providências. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 25, col. 1, 30 jul. 1999b. (Art. 1º III).
CARTA de Porto Alegre. In: CONGRESSO NACIONAL DE CORRETORES DE IMÓVEIS, 19., 2002.
Disponível em: <http://www.fenaci.org.br/conaci/xixconaci.htm>. Acesso em: 15 fev. 2004.
Art. 128 (BRASIL, 1946).
45
n.° 6.766/79104 é crime, além de nocivo ao planejamento urbano da cidade, à autonomia
municipal na gestão de seu território e à segurança jurídica da moradia familiar.
Nos termos da lei “[...] a inscrição e o pagamento da taxa de ocupação não importam, em
absoluto, no reconhecimento, pela União, de qualquer direito de propriedade do ocupante
sobre o terreno ou ao seu aforamento”.105
A alíquota da cobrança da taxa de ocupação tem variado ao longo dos anos. Essa cobrança
remonta ao Decreto n.º 14.595106, de 31 de dezembro de 1920 (que, pretendendo regularizar o
uso da propriedade pública conclamava os ocupantes de terrenos de marinha a declararem sua
ocupação, asseverando que “[...] a falta de lançamento no cadastro não isenta o contribuinte
da obrigação de taxas e multas, que começa da vigência deste Regulamento”), que estabeleceu
as taxas eram no valor de 6% do valor do terreno em área urbana e 4% em terrenos de zona
rural. Esta tentativa de regularização das ocupações não logrou êxito.107 Estes valores foram
reduzidos no Decreto-Lei n.º 9.760/46, que no artigo 127, § 1º determinava a cobrança de taxa
de ocupação correspondente a “[...] 1% (um por cento) sobre o valor do domínio pleno do
terreno”. Com a modificação imposta pelo Decreto n.º 2.398108 de 1987 esta taxa passou a ser
cobrada com base no valor atual do imóvel incidente sobre 2% do valor do imóvel, para as
ocupações já inscritas ou requeridas a inscrição até 30 de setembro de 1988; ou no valor de
5% do sobre o imóvel, para as ocupações inscritas ou requeridas após 1988.109
Ou seja, desde que a União elegeu a taxa de ocupação como principal fonte de arrecadação
nos terrenos de marinha, os valores não deixam de subir.
104
105
106
107
108
109
Cf. art. 50 e 51 da Lei. 6.766/79 (BRASIL. Lei n.º 6.766, de 19 dez. 1979. Dispõe sobre o parcelamento do
solo urbano e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p.
19.457, col. 1, 20 dez. 1979).
Art. 131 do Decreto-Lei 9.760/46 (BRASIL, 1946).
BRASIL. Decreto n.° 14.595, de 31 de dezembro de 1920. Regulamento, cobrança, taxa de ocupação, terreno
de marinha. Isenção, pagamento, taxa de ocupação, terreno, arrendamento, União Federal, cobrança,
cadastramento, transferência, ocupação. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 3, p. 1.441. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 23 maio 2004d.
Nesta época ainda prosperava o entendimento de que os bens dominicais eram passíveis de usucapião
conforme se demonstra no capítulo 5, no item 5.2
BRASIL, 1987.
Decreto-Lei 2.398 de 21 de dezembro de 1987 modificado pela Lei 9.636 de 1998. “Art. 1º A taxa de
ocupação de terrenos da União, calculada sobre o valor do domínio pleno do terreno, anualmente atualizado
pelo serviço do patrimônio da União (SPU) será, a partir do exercício de 1988, de: I – 2% (dois por cento)
para as ocupações já inscritas e para aquelas cuja inscrição seja requerida, a SPU, até 30 de setembro de
1988; e 5% (cinco porcento) para as ocupações cuja inscrição seja requerida ou promovida ex officio, a partir
de 1º de outubro de 1988.” (BRASIL, 1987).
46
A primeira medida foi o aumento da alíquota, que em 1946 era de 1% sobre o domínio pleno
do terreno e passou em 1987 para 2%, para as ocupações antigas e 5%, para as inscritas ou
requeridas após 1988, aumentando o valor da alíquota em 500%.
A outra forma de aumento da receita passou a ser o cálculo do valor de mercado do domínio
pleno. Esta flutuação no valor anual devido à União é também uma fonte de insegurança
social. Os valores são fixados de forma, no mínimo, “estranha”, pois que, conforme informa
matéria veiculada no Jornal A Gazeta, do dia 26 de maio de 2004, da lavra de Kenia
Amaral110, é noticiado aumento real de até 60% no valor das cobranças das taxas de ocupação.
Isto porque o gerente regional da SPU no Estado, Edimar Fraga, reviu seus cálculos111 que
apontavam para um “aumento de até 141%”. Este valor, informa a matéria, pode ser parcelado
em até 7 vezes, desde que a prestação seja de, no mínimo, R$ 100,00 (cem reais).
Outro conflito com interesse difuso é gerado a partir do disposto no Art. 128, § 1º, do
Decreto-Lei n.º 9760/46 que determina que “[...] a falta de inscrição não isenta o ocupante da
obrigação do pagamento da taxa devida desde o início da ocupação”. Ou seja, um imóvel
litorâneo, devidamente registrado no RGI112 como privado há muitos anos, pode não estar
isento de dívidas. Na medição de linha de preamar, utilizando critérios técnicos duvidosos113,
caso a União o inscreva no rol dos terrenos de marinha, passará a dever automaticamente todo
o período ocupado?
A análise isolada deste artigo levaria a um entendimento equivocado de que a partir da
inscrição como ocupante, o proprietário de plano passaria a dever tantas taxas quanto os anos
ocupados. Esta norma deve ser compreendida em consonância com os artigos 127 e 128 do
mesmo Decreto-Lei, combinados com o Art. 47 da Lei n.º 9.636 de 1998. Este último fixa um
prazo decadencial para a inscrição do débito em cinco anos contados da ciência da União e
prazo prescricional de 5 anos contados da inscrição do débito. Sendo assim, a partir do
cadastramento de imóvel escriturado há anos, mediante inscrição da União, o proprietário, que
se descobre “ocupante” passa a dever aos cofres da União 30% do valor do terreno, 5%
relativo ao ano do exercício e mais 5% para cada um dos cinco anos não atingidos pela
decadência.
110
111
112
113
AMARAL, Kenia. Taxa de marinha deve subir até 60%. Jornal A Gazeta, 26 maio 2004. Caderno de
Economia, p. 7.
Que critério técnico é este que possui margem de erro de mais de 100%?
Registro Geral de Imóveis.
Vide comentários sobre a linha de preamar no item 3.4.2.
47
Ou seja, nesta norma temos a prevalência do interesse patrimonial da União em detrimento da
segurança jurídica e da paz social. A norma jurídica premia a inércia da SPU e penaliza a
sociedade, mantendo-a em constante insegurança.
Compete à SPU de forma privativa a delimitação dos terrenos de marinha. Esta atribuição lhe
foi conferida desde a Lei n° 601114, de 18 de setembro de 1850. Se até a presente data não
cumpriu sua função como pode pretender penalizar o proprietário de imóvel urbano que
possui título de propriedade devidamente registrado há anos?
A Lei n.°9.636/98115, no artigo 9º, defende interesses metaindividuais ao vedar a inscrição de
ocupações que ocorrerem após 15 de fevereiro de 1997, ou que
[...] estejam concorrendo ou tenham concorrido para comprometer a integridade das
áreas de uso comum do povo, de segurança nacional, de preservação ambiental, das
necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, das reservas indígenas, das
ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, das vias federais de
comunicação, das reservas para construção de hidrelétricas, ou congêneres,
ressalvados os casos especiais autorizados na forma da lei.
Estas ocupações estão sujeitas ao pagamento a título de indenização
[...] até a efetiva desocupação de valor correspondente a 10% (dez por cento) do
valor atualizado do domínio pleno do terreno por ano ou fração de ano em que a
União tenha ficado privada da posse ou ocupação do imóvel, sem prejuízo das
demais sanções cabíveis.116
A lei veda a inscrição de ocupações, mas não determina sua destinação adequada. Não
prescreve a transferência dos terrenos de marinha aos remanescentes de quilombos, nem
determina a demarcação das terras indígenas. Não prescreve a transferência das áreas urbanas,
de uso comum do povo, aos municípios (responsáveis pela gestão local), nem determina a
criação de reservas biológicas nas áreas de uso comum ambientais.
114
BRASIL. Lei n.° 601, de 17 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas no império, e acerca das
que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples
título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a
título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias de nacionais, e de
estrangeiros, autorizado o governo a promover a colonização estrangeira na forma que se declara. Coleção de
Leis do Brasil, Brasília, v. 1, p. 307. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 23 maio
2004f.
115
Art 9, II (BRASIL, 1998a).
116
Art.10, parágrafo único (BRASIL, 1998a).
48
Impede a ocupação, mas não determina a manutenção destas áreas desocupadas. Na prática,
por falta de fiscalização, assim como, por falta de previsão de sanção legal à inércia da SPU,
estas áreas serão invadidas e a União receberá a taxa de ocupação em dobro, como prêmio
pela sua desídia na gestão e manutenção do patrimônio público.
O laudêmio117, em via de regra, é uma obrigação decorrente do contrato de enfiteuse ou
aforamento. Embora a enfiteuse sempre tenha sido considerada um instituto injusto, em que o
dono da terra se enriquece à custa do “suor alheio”, esta foi adotada em ordenamentos
jurídicos do tipo germânico, mas tende a desaparecer, a exemplo do ocorrido no novo Código
Civil Brasileiro. O laudêmio, porém não foi recepcionado em inúmeros ordenamentos
nacionais, conforme informa Mello118:
Assim, a Itália o adotou [...] mas estabeleceu o direito do foreiro, ao contrário da
fonte romana, de remir o terreno aforado. Demais, aboliu o direito ao laudêmio do
senhorio para novos aforamentos, e o novo código manteve a exclusão. [...] O Cód.
Civil português, no art. 1.593, excluiu o laudêmio em as novas enfiteuses,
mantendo-o nas antigas, se ajustando.
A cobrança do laudêmio é tão nociva aos interesses coletivos estrito senso (individuais
homogêneos) que a Câmara Comum Metropolitana da Baixada Santista119 (formada pela
união dos vereadores das nove cidades da Baixada Santista em busca de soluções para os
problemas comuns da região) há anos luta pela sua extinção, não reconhecendo a legitimidade
da cobrança do laudêmio sob o argumento de que estão pagando duas vezes pela mesma
coisa. Pagam duas vezes pela utilização do imóvel (IPTU e Taxas de Marinha) e pela
transferência do Imóvel (ITBI120 e laudêmio).
117
118
119
120
O laudêmio, pagamento efetuado pelo enfiteuta ao senhorio (quando este transfere seu direito real a outra
pessoa)117, é o valor devido à União toda a vez que o imóvel é alienado, seja aforado ou ocupado. Este é
calculado com a mesma base de cálculo do ITBI e na mesma alíquota - no valor de 5% do valor de avaliação
do terreno e das benfeitorias existentes. Ou seja, para fixar o valor devido soma-se ao valor do terreno o valor
da benfeitoria integralmente custeada pelo particular, de forma que, se o particular, mediante esforço
individual, edificou em área da União um prédio de 20 andares, este pagará à União além dos 5% relativos ao
terreno, 5% sobre o valor de mercado da integralidade do prédio, incidindo a União em claro locupletamento
ilícito, fundado em norma legal.
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Enfiteuse. Revista Forense, São Paulo, Ano 60, v. 204, p. 52,
1963.
CÂMARA COMUM METROPOLITANA DA BAIXADA SANTISTA.
O que é laudêmio?
<http://www.unisantos.br/~metropms/camara/cametro.htm#Laudêmio,%20taxa%20de%20fôro%20e%20
ocupação>. Acesso em: 20 jul. 2003.
Imposto sobre a Transmisão de Bens Imóveis.
49
[...] Com o decorrer do tempo, vários outros impostos foram instituídos entre os
Municipais, Estaduais e Federais. Alguns, de certa forma, acabaram revertendo em
benefício dos contribuintes.
A exceção da regra é justamente o laudêmio, taxa de foro e ocupação, pois não há
conhecimento de onde é empregado o dinheiro arrecadado. Uma bitributação injusta
e arbitrária.
Uma vez que os contribuintes já são extremamente onerados pelos tributos e considerando
que os pagamentos decorrem de uma única fonte sejam estes impostos, sejam receitas
patrimoniais, o sentimento popular é de injustiça, de indevida exploração.
A prova de que a cobrança do Laudêmio é injusta, é que o proprietário, mesmo com
a escritura definitiva de seu terreno, obtém apenas o direito de ocupar o solo, porque
seu dono real continua sendo o Governo. Tanto assim que, por toda a vida, o
proprietário vai pagar a taxa de ocupação. Quer dizer, o proprietário investiu,
melhorou, construiu, valorizou aquele terreno de Marinha, mas seus benefícios
inexistem. 121
Embora a enfiteuse utilize a mesma base de cálculo do IPTU e do ITBI (por meio de artifícios
legais) não há como se alegar, com chances de sucesso, a existência de bitributação, porque as
receitas oriundas dos terrenos de marinha possuem natureza jurídica de receita patrimonial.
Embora historicamente, na origem, esta “receita patrimonial” tenha sido implantada para fazer
as vezes do imposto municipal.
A Lei n.º 3.348122, de 20 de outubro de 1887, no item 3º, do artigo 8º, concedeu às Câmaras
Municipais de todos os municípios o direito de aforar os terrenos de marinha e acrescidos,
pertencendo a estes “a renda que dali provier”, correndo por conta da municipalidade as
despesas necessárias para medição e avaliação dos mesmos terrenos assim como ao
Município Neutro, o direito de aforar os acrescidos de marinha. Com esta lei a corte estendeu
a todos os demais municípios o direito de aforar e receber o foro de terrenos de marinha, e o
artigo 79 do Decreto n.º 1.318123, de 30 de janeiro de 1854, claramente identifica a função da
cobrança que tinha por objetivo “[...] o custeio das despesas administrativas dos municípios
costeiros”.
121
122
123
CÂMARA COMUM METROPOLITANA DA BAIXADA SANTISTA, 2003.
BRASIL. Decreto n.° 3.348, de 20 de outubro de 1887. Orça a receita geral do império para o exercício de
1888 e dá outras providências. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 1, p. 33. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 23 maio 2004c.
BRASIL. Decreto n.° 1.318, 30 de janeiro 1854. Manda executar a lei número 601, de 18 de setembro de
1850. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 1, p. 10. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso
em: 23 mar. 2000a.
50
Os terrenos de marinha foram incluídos no Programa Nacional de Desestatização.124 Este
programa foi implantado sob a bandeira neoliberal de retirada do Estado de áreas não
essenciais. Sob este enfoque não há como se justificar a presença da União nos municípios
como “especuladora imobiliária”, nem com direitos feudais que geram insegurança jurídica e
impedem a gestão e planejamento urbano municipal.
A União, sucessora dos portugueses que usurparam a terra brasileira dos índios, a despeito de
todas as teorias que legitimam a propriedade com base no trabalho humano, objetivando
unicamente a arrecadação de receitas, modificou o Decreto-Lei n.º 9.760 de 1946, para auferir
maiores receitas com a venda dos terrenos de marinha.
O Decreto-Lei n.º 9.760125, de 1946, destinava um título inteiro à “[...] alienação dos bens
imóveis da União”, que “[...] ocorrerá quando não houver interesse econômico em manter o
imóvel no domínio da União, nem inconveniente, quanto à defesa nacional, no
desaparecimento do vínculo da propriedade”.
Esta alienação previa concorrência pública (art. 135) mediante caução de 3% para
participação (art. 135 §3º),
Os imóveis utilizáveis para fins residenciais (capítulo II) eram destinados a servidores da
União não-proprietários de imóveis (Art. 141), admitindo-se porém a participação de
quaisquer interessados na aquisição quando na primeira concorrência não houvesse licitantes.
O pagamento poderia ser efetuado em até 240 prestações mensais (art. 144), com taxa de juros
de 6%a.a., quando adquirido por servidor e 8%a.a. quando por particulares (art. 144 § 1º).
Os imóveis utilizáveis para fins comerciais ou industriais (capítulo III), poderiam ser pagos
em até 125 prestações mensais (art. 147), com juros de 10% aa (Art. 147 § 1º).
124
Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, com redação conferida pela MP. 2.161-35, de 23 de agosto de 2001,
que alterou procedimentos relativos ao Programa Nacional de Desestatização, inclui entre os bens passíveis
de desestatização os bens móveis e imóveis da União (PND). Esta norma prevê em seu Art. 4º, que “as
desestatizações serão executadas mediante as seguintes modalidades: VIII – aforamento, remição de foro,
permuta, cesão, concessão de direito real de uso resolúvel e alienação mediante venda de bens e imóveis de
domínio da União (BRASIL. Lei Ordinária n.° 9.491, de 9 de setembro de 1997. Altera procedimentos
relativos ao programa nacional de desestatização, revoga a Lei 8.031, de 12 de abril de 1990, e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 19.941, col. 1, 10 jul. 1997).
125
BRASIL, 1946.
51
Quanto aos terrenos ocupados, a norma legal, de 1946, sintonizada com a busca da segurança
jurídica e paz social, em seu capítulo V, permitia ao presidente da república, por proposta do
ministro da fazenda, autorizar a alienação de terrenos que se encontrassem ocupados por
terceiros, mediante as condições previstas no Decreto-Lei. Nos termos do Art. 160 a União
conferiria, o direito de adquirir a terra mediante pagamento de 20 taxas de ocupação e 1 ½
laudêmio aos ocupantes abaixo arrolados:
[...] 1º) os tiverem título de propriedade devidamente transcrito no Registro de
Imóveis; 2°) os que estejam na posse dos terrenos, com fundamento em título
outorgado pelos Estados ou Municípios; 3º) os que, necessariamente, utilizam os
terrenos para acesso às suas propriedades; 4º) os ocupantes inscritos até o ano de
1940, e que estejam quites com o pagamento das devidas taxas, quanto aos terrenos
de marinha e seus acrescidos; 5º) os que, possuindo benfeitorias, estiverem
cultivando, por si e regularmente, terras da união, quanto ás reservadas para
exploração agrícola na forma do Art. 65.126
Caso não requerida a aquisição nos termos fixados pelo art. 160, o ocupante seria onerado
com o pagamento em dobro da taxa de ocupação, sem prejuízo do direito de, em qualquer
tempo, adquirir o terreno, por importância correspondente as 20 taxas simples e 1 ½
laudêmio.
A venda do domínio pleno aos ocupantes nestas condições é uma medida assaz inteligente,
pois que todos os beneficiários eram ocupantes com direito de preferência ao aforamento
(conferido pelo art. 105), sendo o aforamento passível de resgate, não havendo interesse na
manutenção da propriedade sob o domínio da União, a venda mediante metodologia similar
ao resgate de aforamento abrevia a burocracia encurtando o caminho para a constituição da
propriedade plena nas mãos do beneficiário, mediante pagamento de 20 taxas e 1 e ½
laudêmios.
Sendo a taxa de ocupação da época de 1%, havia a hipótese legal de aquisição da propriedade
plena, por parte do ocupante com direito a preferência ao aforamento, mediante pagamento de
27, 5% do valor do imóvel (20% + 5%+ 2, 5%). Atualmente com a taxa de ocupação em 5%,
esta norma se mostraria ineficaz, salvo se modificado o percentual devido.
126
Art. 160 (BRASIL, 1946).
52
As normas citadas acima foram revogadas expressamente pelo art. 9º do Decreto-Lei n.º
2.398127, de 21 de dezembro de 1987, objetivando impedir esta medida viável de
regularização fundiária.
Sob a influência da ótica fiscalista editou-se a Lei n.° 9.636128, de 15 de maio de 1998 que,
olvidando a necessidade da segurança jurídica e buscando a arrecadação e manutenção da
dominação territorial, privilegia a alienação do domínio útil dos terrenos de marinha, em
flagrante contradição com o Programa de Desestatização (porque a União continua
proprietária dos ativos que pretendia alienar originariamente). A alienação do domínio útil em
nada afasta o Estado dos negócios privados, ao contrário o mantém, como um incômodo
sanguessuga, lento, burocrático, faminto por mais e mais recursos
As normas sobre alienação de bens imóveis vigentes até dezembro de 1987, se aplicadas hoje,
seriam um importante instrumento de pacificação social, ao contrário das propostas de
alienação destas áreas pelo valor de mercado, mediante leilão, que somente agravam a
insegurança da população urbana inseridas em terrenos de marinha e seus acrescidos.
Os ocupantes sem acesso à regularização por meio do aforamento, nem por aquisição nos
termos previstos no art. 160 do Decreto-Lei n.º 9.760/46, encontram-se sob sério risco de
perda de suas moradias. Neste caso em apenas uma situação ocorreu três interesses, o
interesse individual da União colidindo com o interesse coletivo difuso que visa à segurança
da moradia familiar e o interesse individual homogêneo dos ocupantes ameaçados com a
venda de suas casas.
Nos termos da Lei n.º 9.636/98, a União venderá pelo valor de mercado os terrenos
historicamente ocupados por pessoas que pagam taxa de ocupação há muitos anos e que
adquiriram estas áreas de particulares, mediante compra e venda chanceladas pela SPU (que
mediante cobrança de 5% sobre o valor da venda do terreno ocupado e a benfeitoria nele
edificada, autorizava a transferência da ocupação para o terceiro de boa-fé).
Na orla marítima existem inúmeros condomínios verticais erigidos sobre terrenos onde se
paga taxa de ocupação e laudêmio, na venda das unidades. A União, proprietária do terreno,
arrecada 5% sobre o valor de cada apartamento vendido, seja pela construtora, seja pelo
127
128
BRASIL, 1987.
BRASIL, 1998a.
53
adquirente, convertendo o laudêmio referente às transferências em prédios residenciais, em
um flagrante locupletamento ilícito, uma vez que a cobrança do laudêmio sobre as
benfeitorias edificadas não possui uma causa jurídica válida. Cobrar pela transferência de sua
própria propriedade pode-se até compreender como uma indenização pelo não exercício do
direito de preferência do senhorio, mas a cobrança fundada em patrimônio construído com os
frutos do trabalho alheio revela-se, no mínimo, imoral.129
Lamentavelmente a legislação sobre o patrimônio da União segue direção contrária aos
ditames da função social da propriedade. Esta, com normas cada vez mais dissociadas da
realidade social e dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, está
fomentando insegurança jurídica e social.
A norma legal sobre os terrenos de marinha, ao longo do tempo tem sido revogada e
modificada sempre em favor dos interesses privados da União que, representada pela SPU na
sua função pública de gestão do patrimônio coletivo, tem se portado como se fosse pessoa
jurídica de direito privado, com o poder de editar leis, abusando de suas prerrogativas em face
do cidadão.
Um exemplo flagrante deste abuso se verifica na base da cálculo sobre a qual se efetuará todo
o processo de alienação, seja do domínio pleno (no valor de 100% do terreno) seja do domínio
útil (no valor de 83% do terreno). O Decreto-Lei n.º 2.490130, de 16 de agosto de 1940, em seu
artigo 18, fixa a forma de cálculo do valor do terreno, em que devem ser levados em conta
“[...] todos os elementos que possam contribuir para mais segura apreciação, tais como,
características próprias, situação local, preço de venda dos terrenos vizinhos, pela área ou por
metro de frente” e, corretamente, em atendimento ao princípio jurídico que veda o
enriquecimento sem causa, determina a dedução “[...] do valor encontrado o preço de aterros e
outras obras com que o pretendente haja beneficiado o terreno”.131 Nas atuais formas de
cálculo o parágrafo do artigo 18 permanece desconsiderado em favor do erário.
Quanto vale o metro quadrado do terreno de marinha que originariamente foi ocupado ou
aforado por particular? Quanto vale areia submersa pela praia, antes de se constituir acrescido
129
130
131
O art. 37 da CF 88 impõe a observância do princípio da moralidade (BRASIL, 2003b).
BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.490, de 16 ago. 1940. Estabelece novas normas para o aforamento dos terrenos
de marinha e dá outras providências. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 5, p. 71. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 16 ago. 1999c).
Parágrafo único do Art. 18 (BRASIL, 1999c).
54
de marinha, legitimamente autorizado pela União? Quanto vale o metro quadrado de área de
mangue alagada132? Quanto vale o metro quadrado de área desocupada sem infra-estrutura
urbana? Quanto valem 200 ou 300 anos de desenvolvimento urbano, custeado pelo morador,
mediante pagamento do IPTU?
Onde estão os descontos relativos aos milhares de metros cúbicos de areia lançadas no mar
para a criação dos acrescidos de marinha, aterros devidamente autorizados pela União,
loteados e vendidos pelos empreendedores aos atuais moradores, com valor que incluiu todos
os custos do aterro e implantação dos equipamentos públicos obrigatórios? Onde estão os
descontos relativos aos equipamentos públicos que foram colocados no local mediante custeio
de anos e anos de pagamento de IPTU? Onde estão os descontos efetuados por conta da
própria valorização efetuada na área pela ação dos moradores com a construção de suas
moradias e instituição da cultura local? Os atuais valores de mercado dos terrenos de marinha
de forma alguma podem ser reputados a ação da União Federal, ao contrário, esta como um
voraz especulador entrega suas terras ao labor alheio na tentativa ilegal de colher frutos que
não plantou. Esta forma de cobrança atenta contra o interesse social de uma ordem jurídica
justa, da moralidade administrativa, da proibição do confisco e da vedação ao enriquecimento
sem causa.
O interesse fiscal arrecadatório é atendido também na determinação legal de venda do
domínio útil. Esta medida, que tem tirado o sono dos moradores, é denominada direito.
Este direito é uma verdadeira obrigação de compra do domínio útil ou pleno, nas condições
fixadas pela União, sob pena de perda de todo o qualquer direito sobre as benfeitorias efetuadas
durante anos, e comprometimento financeiro equivalente a 10% do valor de mercado do terreno
por ano que permaneça no imóvel onde reside com sua família.133 Como bem diz Djavan134,
“[...] duro é não ter e ter que ter para dar”. Se o morador não tiver condições de adquirir o
terreno sobre o qual edificou sua moradia, corre o risco de ficar sem ela.
Este direito é conferido a quem
132
133
134
O valor questionado é em relação ao mercado imobiliário, não em relação ao valor do bem ambiental que
atualmente é tutelado pela Lei.
Art. 15, § 7° da Lei n.º 9.636/98 (BRASIL, 1998a).
DJAVAN. Esquinas. In: Djavan. Djavan ao vivo. São Paulo: Sony, 1999. v. 2, Faixa 8. CD-ROM.
55
[...] comprovadamente, em 15 de fevereiro de 1997, já ocupava imóvel há mais de
um ano e esteja, na data da formalização do contrato de alienação do domínio útil,
regularmente inscrito como ocupante e em dia com suas obrigações junto ao SPU.135
O ocupante será notificado para manifestar seu interesse na aquisição do imóvel pelo valor de
mercado fixado por avaliação. Em caso afirmativo, deverá assinar seu contrato dentro do
prazo de seis meses, podendo ser prorrogado por igual período, mediante pagamento de
entrada mínima de 10% e o saldo parcelado em até 120 prestações mensais e consecutivas
devidamente atualizadas, desde que o parcelamento termine antes do adquirente completar 80
anos de idade.136
A aquisição do domínio útil nos termos da lei pode ser efetuado de conformidade com o Art.
12137, pelo valor da avaliação ou, de conformidade com o Art. 13, mediante leilão quando é
assegurado ao ocupante preferência na aquisição pelo valor da melhor oferta.
Os ocupantes que não exercerem os seus “direitos” de compra nem firmarem contrato de
cessão de uso onerosa,
[...] terão o prazo de 60 dias para desocupar o imóvel, findo o qual ficarão sujeitos
ao pagamento de indenização pela ocupação ilícita, correspondente a 10% (dez por
cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, por ano ou fração de ano até
que a União seja reintegrada na posse do imóvel.138
Nem nos estados mais ditatoriais se imaginaria a edição de norma que pudesse atingir a
tranqüilidade familiar desta forma. Os moradores das áreas de marinha, tendo ou não
condições de comprar os terrenos de marinha (muitos já compraram este direito no mercado e
pagaram laudêmio de 5% à União); ou já tendo pagado ao longo dos anos à União valor
equivalente ou superior ao valor dos terrenos; têm o “direito” de comprar os terrenos sobre os
quais edificaram suas moradias sob pena de sumário despejo. Esta ameaça legal está tirando o
sono de milhares de famílias. Conduta que fere frontalmente o direito à moradia familiar,
porque compete ao Estado viabilizar o acesso aos direitos fundamentais e não fomentar sua
destituição.
135
136
137
138
Art. 13 da Lei 9.636/98 (BRASIL, 1998a).
cf. Art. 14, II da Lei 9.636/98. Esta norma exprime uma discriminação contra o idoso e pode inclusive
inviabilizar que este possa adquirir a moradia onde reside (na hipótese de ter condições financeiras para pagar
o que a União quer) (BRASIL, 1998a).
Exercício de direito de preferência ao aforamento oneroso pelo preço de avaliação, mediante contratação
direta sem alienação.
Art.15 §7º da Lei 9.636/98 (BRASIL, 1998a).
56
A ocupação da costa brasileira por particulares foi estimulada pelo Estado como uma medida
de consolidação do domínio português e, posteriormente, como medida que objetivava o
desenvolvimento regional mediante criação de núcleos urbanos. O Estado brasileiro, detentor
da maior parte das terras do país, objetivando a utilização do solo, permitia o aforamento de
terrenos de marinha, inclusive para loteamento urbano. O instrumento jurídico utilizado,
enfiteuse, impede o acesso à propriedade plena, porém é menos danoso que a inscrição de
ocupação, já que esta impede tanto o planejamento urbano quanto a segurança da posse.
Os terrenos de União historicamente entregues aos particulares com fins desenvolvimentistas
hoje configuram um entrave ao desenvolvimento local, prejudicando a gestão da cidade, além
de gerar insegurança para os ocupantes, ferindo o compromisso de buscar a efetivação da
segurança da moradia, expresso no Parágrafo 39 da Agenda Habitat II.139
O direito de propriedade, concepção jusnaturalista de necessidade inerente ao ser humano,
porque o homem necessita de abrigo para viver com dignidade, foi guindado ao patamar de
direito fundamental. Este direito fundamental é muito mais o direito à propriedade, que o
direito de propriedade. Ou seja, é inerente a necessidade humana o direito à propriedade. O
direito de propriedade não é absoluto, não pode se sobrepor ao direito à propriedade enquanto
requisito fundamental de uma vida digna. A União, sendo desestabiliza a sociedade ao
ameaçar tirar as moradias das famílias, mediante exigências de pagamentos inexeqüíveis não
está agindo de forma democrática, nem em atendimento ao interesse público, mas como
particular em busca do máximo de vantagens que a lei escrita, interpretada de forma
assistemática e sob a ótica individualista, lhe pode conferir.
Na hipótese de inércia do ocupante (não adquirindo o terreno sobre o qual edificou sua
moradia pelo valor da avaliação, nas condições anteriormente descritas), a União, nos termos
do Art. 15, promoverá o leilão do imóvel, incluindo na avaliação o valor das benfeitorias
efetuadas pelo particular, vendendo-a conjuntamente e repassando-lhe, na mesma proporção
que receber, o valor percentual equivalente, conforme se depreende da transcrição abaixo:
Art. 15. A SPU promoverá, mediante licitação, o aforamento dos terrenos de
domínio da União, situados em zonas sujeitas ao regime enfitêutico, que estiverem
vagos ou ocupados há até um ano em 15 de fevereiro de 1997, bem assim daqueles
cujos ocupantes não tenham exercido a preferência ou a poção de que tratam os arts.
139
CENTRO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS ASENTAMIENTOS HUMANOS. Declaración de
Estambul sobre los Asentamientos Humanos y Programa de Hábitat. Estambul, 1996. Disponível:
<http://www.undp.org/un/habitat/agenda/espagnol/ph-wfw.zip >. Acesso em: 2 jun. 2002.
57
13 e 17 desta Lei e o inciso I do art. 5º do Decreto-Lei nº 2.398, de 19987. § 1º o
domínio pleno das benfeitorias incorporadas ao imóvel independentemente de quem
as tenha realizado, será também objeto de alienação;
§ 2º [...]
§ 3º Ocorrendo a venda, na forma deste artigo, do domínio útil do imóvel a terceiros,
será repassado ao ocupante, exclusivamente neste caso, o valor correspondente
às benfeitorias por ele realizadas calculado com base no percentual apurado na
forma do parágrafo anterior, sendo vedada a extensão deste benefício a outros
casos, mesmo que semelhantes; §4º O repasse de que trata o parágrafo anterior
será realizado nas mesmas condições de pagamento, pelo adquirente, do peço
do domínio útil.140 (Grifo nosso).
Ainda que absurdamente se pudesse admitir o despejo de inúmeras família pela ação do poder
público, ainda assim esta norma não poderia prevalecer, já que as benfeitorias são de
propriedade dos ocupantes e devem ser indenizadas, nos mesmos moldes das desapropriações,
de forma prévia e justa, não conforme reza a lei mediante pagamento de 10% de sinal e o
restante nas mesmas proporções que a União receber.
Esta norma trata o direito à indenização pelas benfeitorias como um “benefício”, e determina
que, caso o imóvel não seja “vendido no primeiro certame”, a União, “[...] após a reintegração
sumária” realizará outro certame, no qual “[...] não dará nenhuma preferência ao ocupante”,
omitindo-se propositadamente sobre o direito à indenização (que, embora induza à
compreensão da extinção do benefício nesta hipótese, o direito a ser indenizado permanece).
O direito à indenização dos ocupantes por meio da desapropriação das benfeitorias já era
reconhecido nos idos de 1963, conforme se depreende da ementa do acórdão proferido pelo
Tribunal Federal de Recursos na Apelação Cível no. 9.724- União Federal versus Ayoub &
Jorge Limitada: “Somente pela via da desapropriação podem os ocupantes de terrenos de
marinha ser despojados de seus direitos, inclusive benfeitorias”141, esta decisão fundamentouse basicamente nos seguintes argumentos:
É certo que, nos termos do artigo 131 do Decreto-Lei n.° 9.760, [...] a inscrição e o
pagamento da taxa de ocupação não importam no reconhecimento pela União de
qualquer direito de propriedade do ocupante, podendo ela, nos termos do artigo 132
do citado diploma, em qualquer tempo que necessitar do terreno imitir-se na sua
posse, promovendo a sua desocupação. Mas nos termos dos §§ 1º, 2º e 3º daquela
disposição, estará obrigada a indenizar as benfeitorias feitas de boa fé, cujo
preço será depositado em juízo, quando a parte se recusar a recebê-los.142
140
BRASIL, 1998a.
DESAPROPRIAÇÃO – Terrenos de marinha. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 79, p.
212-215, jan./mar. 1965.
142
DESAPROPRIAÇÃO..., 1965, p. 214.
141
58
O Art. 24 dispõe sobre venda em Leilão do domínio útil dos terrenos da União, exigindo
caução de participação no valor de 10% da avaliação (art. 24, III); e assegurando a preferência
ao “[...] cessionário de direito real ou pessoa, o locatário ou arrendatário que esteja em dia
com suas obrigações junto à SPU, bem como o expropriado”(art.24 § 3º) na aquisição do
domínio útil ocupante, “em condições de igualdade com o vencedor da licitação”.
Quando o leilão for realizado por servidor especialmente designado, o comprador fica isento
do pagamento da comissão de 5% do valor da arrematação, que é devido nos termos do Art.
24, VI, ao leiloeiro oficial, comissão esta que “[...] será paga pelo arrematante juntamente
com o sinal”.143 Pela redação, além do valor da arrematação, o comprador também é
responsável pelo pagamento da comissão do leiloeiro, e a lei não prevê seu desconto do sinal.
Ou seja, os moradores devem “torcer” para que este leilão seja efetuado por um funcionário
público, caso contrário, além do valor devido pagarão, absurdamente, um acréscimo de 5% a
título de honorários do leiloeiro (Art.24, VI).
A venda dos terrenos de marinha será efetuada mediante leilão ou concorrência pública, as
condições de pagamento são diferenciadas em virtude das características dos assentamentos.
Em via de regra, será exigida garantia hipotecária e juros de 10%a.a. e atualização do saldo
devedor com base no coeficiente de atualização da poupança. A aquisição será efetuada
mediante pagamento de, no mínimo, 10% do valor de avaliação e o restante em até 48
(quarenta e oito) prestações mensais e consecutivas.
No que tange à população carente, a norma da União totalmente dissociada da realidade da
exclusão urbana de nossas cidades, prevê a venda do domínio pleno ou útil em áreas inseridas
em projetos de caráter social para fins de assentamento de famílias carentes e de baixa renda
como se vivêssemos em um país onde o salário mínimo cumprisse sua missão constitucional.
Embora a Lei. n.º 9.636/98144 preveja no Art. 31 a doação, inclusive para implantação de
projeto de assentamento de famílias carentes, a norma ressalva (Art. 31, § 3º) que esta doação
é possível, “[...] desde que o produto da venda seja destinado à instalação de infra-estrutura,
equipamentos básicos ou de outras melhorias necessárias ao desenvolvimento do projeto”.
143
144
BRASIL, 1998a.
BRASIL, 1998a.
59
A norma legal em nenhuma hipótese fala em doação, desconto ou subsídio em favor do
beneficiário. Friamente cuida do pagamento integral do valor de mercado do patrimônio
privado da União, ocupado145 pelos necessitados sob a complacência das autoridades.
Desta forma, a letra da lei determina que a venda das áreas de marinha a famílias de baixa
renda146, será efetuada mediante pagamento de um sinal, no mínimo, de 5%147 do valor da
avaliação, “[...] permitindo o seu parcelamento em até duas vezes, e do saldo em até 300
(trezentas) prestações mensais e consecutivas, observando-se, como mínimo, a quantia
correspondente a 30% (trinta por cento) do valor do salário mínimo vigente.”148
Em se tratando de assentamentos de famílias carentes 149 será dispensado o sinal; a prestação
não poderá ser superior a 30% do salário mínimo vigente; as parcelas poderão ser feitas em
até 300 prestações e o valor da prestação não poderá ser superior a 30% da renda familiar do
beneficiário.
Nas vendas em assentamentos ou projetos de caráter social, além da garantia hipotecária,
serão cobrados juros de 7%aa. A Lei de 1946 previa 6% de juros quando a alienação fosse
para servidor público e a lei atual, cobra de pessoas carentes, credoras de inúmeros direitos
fundamentais que o Estado Brasileiro nega, juros superiores aos exigidos de servidores na lei
anterior. A cobrança de juros de famílias com renda que nem sequer conseguem suprir suas
necessidades básicas é um absurdo. Assegurar à CEF o recebimento de juros, como
retribuição pelos serviços prestados à União (art. 34 da Lei n.° 9.636/98), sem qualquer
distinção socio-econômica, em flagrante inadequação aos deveres do Estado Democrático
Brasileiro, gera indevida exploração de pessoas desprovidas de direitos fundamentais básicos
em favor de Instituição Financeira.
145
“Um filho não invade sua pátria – ocupa seu berço!” frase da autoria de Maria Clara da Silva, Coordenadora
Nacional do Movimento de Luta pela Moradia do Espírito Santo, proferida no VII Congresso do Movimento
nacional de Luta pela moradia do Espírito Santo realizado nos dias 21, 22 e 23 de maio no Calir em Viana –
ES (Informação verbal).
146
Com renda familiar de 3 a 8 salários mínimos art. 17 §2o, inciso I, do Decreto 3.725, de 10/01/2001
(BRASIL. Decreto n.° 3.725, 10 de janeiro de 2001. Regulamenta a Lei 9.636, de 15 de maio de 1998, que
dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da união, e
dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 4, col. 2, 11 jan.
2001b).
147
No Art. 135 § 1º e 2§, a caução para a participação da concorrência pública de 3% é considerada como arras
penitenciais, e os demais artigos não faziam qualquer menção a pagamento de sinal diverso da caução, que se
convertia neste (BRASIL, 1998a).
148
Art. 26 da Lei 9.636/98 (BRASIL, 1998a).
149
Com renda familiar de 0 a 3 salários mínimos Art. 17, §2º, inciso II, do Decreto 3.725 de 10/01/2001
(BRASIL, 2001b).
60
As normas relativas aos terrenos de marinha, podem ser afastadas, por meio da aplicação da
Medida Provisória nº. 2.220150, de 4 de setembro de 2001, caso a ocupação de área pública
urbana, para fim de moradia do possuidor ou de sua família, tenha ocorrido (de forma
ininterrupta e sem a oposição da União) cinco anos antes de 30 de junho de 2001, e o
possuidor não seja proprietário de nenhum outro imóvel, urbano ou rural. As pessoas carentes
que preencherem estas condições possuem o direito à concessão de uso especial para moradia,
gratuitamente.
Caso o ocupante não queira ou não tenha condições financeiras para adquirir o imóvel, a lei
lhe faculta requerer a cessão de uso onerosa, por prazo indeterminado, desde que este o
requeira no mesmo prazo assinalado para a compra, sob pena de decadência. Nesta conversão
da “ocupação” em contrato de cessão de uso onerosa a situação do ocupante fica ainda pior,
já que a ocupação, embora precária, lhe assegurava o direito a ser indenizado pelas
benfeitorias quando o seu imóvel fosse a leilão. No caso da ocupação, a precariedade é a
mesma, mas quando a União resolver exercitar o seu direito a “[...] se reintegrar na posse do
imóvel, após o decurso do prazo de 90 dias da notificação administrativa para esse fim
[...]”151, o Artigo 17, § 2º, da referida norma, declara que não serão “[...] reconhecidos ao
cessionário quaisquer direitos sobre o terreno ou a indenização por benfeitorias
realizadas[...]”152, em flagrante ofensa ao princípio da moralidade administrativa e ao que
veda o enriquecimento sem causa.
3.1.2 Ineficácia na gestão dos terrenos de marinha
Embora seja da competência da SPU o gerenciamentos dos terrenos da União, verifica-se que
ao longo dos anos este patrimônio gerido apenas para fins arrecadatórios, não foi eficazmente
administrado, conforme se verifica em notícia veiculada no Jornal do Brasil, na época da
edição da medida provisória que se converteu na Lei n.º 9.636/98153, que informa que esta se
150
151
152
153
BRASIL. Medida Provisória n.º 2.220, 4 de setembro de 2001. Dispõe sobre a concessão de uso especial de
que trata o parágrafo 1 do artigo 183 da constituição, cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano CNDU e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 12, col. 1,
4 set. 2001d. Seção Extra.
Art. 17 §2º da lei 9.636/98 (BRASIL, 1998a).
BRASIL, 1998a.
AGÊNCIA BRASIL RADIOBRÁS. Sinopse. Jornal do Brasil, p. 1 e 4, 18 fev. 1997. Disponível em:
<http://www.radiobras.gov.br/anteriores/1997/sinopses_1802.htm>. Acesso em: 20 jul. 2003.
61
destinava a regularizar “[...] 3 milhões de ocupações irregulares em áreas de domínio da
União, entre elas os terrenos de marinha, situados na orla marítima”, com o fim de aumentar a
arrecadação e pagar dívidas públicas.
A união não consegue impedir a ocupação desordenada dos terrenos sob sua responsabilidade.
Quanto à arrecadação, a situação não é melhor já que a inadimplência é alta. Conforme afirma
Lucas154:
[...] o próprio ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, Guido Mantega,
admitiu que a União arrecada R$ 80 milhões/ano com arrecadação dos impostos
referentes aos terrenos de marinha e emite 260 milhões de carnês/ano, apontando
como o processo está pulverizado e desorganizado.
O interesse meramente fiscalista em arrecadar receitas patrimoniais, mais causa danos que
vantagens.155 Mesmo que se considere o interesse fiscal como um tipo de interesse público,
temos as lições de Bastos156 com propriedade destacando que “[...] não é um miúdo interesse
ainda que coletivo, mas hierarquicamente bastante subalterno diante dos fins administrativos,
que podem justificar a imposição de sacrifícios de direitos substanciais da pessoa, tais como a
liberdade, a propriedade e a própria vida”.
Os terrenos de marinha, compreendidos como bens do estado que devem objetivar o
atingimento das finalidades coletivas, não podem mais ser considerados como sendo de
titularidade única da Administração.
Bastos157 critica os “[...] excessos da época da Revolução Francesa” que considerou o “[...] povo
como titular de direitos que outrora pertenciam ao monarca, o que o levou a transformar aquele no
titular do domínio público”, argumentando que “[...] o povo não é ente personalizado para poder
titularizar direito subjetivo”.158 Hoje, o povo, titular de direito subjetivo de defesa dos interesses
coletivos é perfeitamente legitimado para defender em juízo seu patrimônio comum.
154
155
156
157
158
Prefeito Paulo Vellozo Lucas, Coordenador-geral da Frente Nacional de Prefeitos (LUCAS, 2004).
Nosso Estado Brasileiro já impõe uma pesada carga de impostos, não carece de onerar ainda mais seus
contribuintes.
BASTOS, 1994, p. 31.
BASTOS, 1994, p. 305.
BASTOS, 1994, p. 306-307.
62
No caso dos terrenos de marinha a avidez fiscal ao longo do tempo tem sacrificado interesses
coletivos superiores: a função social da propriedade urbana, a função ambiental destas áreas
inseridas em zona costeira, o direito social de segurança da moradia, a autonomia municipal
na gestão de seu território, e à própria concepção do direito que objetiva a pacificação social,
mediante sua correspondência aos valores e necessidades sociais.
Formatado
3.2 INTERESSES AMBIENTAIS
O progresso humano trouxe prejuízos para a ecologia de forma e dimensão jamais vistas. A
exploração destrutiva da natureza está trazendo sérias modificações no clima, no solo, na água
e no ar, assim muitas espécies vivas estão sendo extintas. As modificações são tão expressivas
que a própria linha de preamar de 1831 não mais se encontra na linha de preamar atual (nos
lugares onde não houve aterro), já que estudos geodésicos comprovam que os oceanos
subiram em torno de 50cm desde 1831 em face ao aquecimento global e ao derretimento das
geleiras e calotas polares.159
3.2.1 Da progressiva de consciência ambiental
No que tange aos danos causados ao meio ambiente pela histórica cessão de áreas ambientais
à utilização particular, ao menos na origem, não há como imputar qualquer responsabilidade
ao Estado, já que o desenvolvimento das cidades costeiras brasileiras, por meio de aterros160
de mangues, estava em consonância com as teorias científicas da época.
As teorias higienistas legitimavam, no plano das idéias, o aterro dos mangues.
Acreditava-se que neles viviam os miasmas das doenças, espécies de fantasmas,
cheios de podridão e transmissores de enfermidades. Era preciso, então, aterrá-los.161
159
Cf. item 3.5.1.2
“[...] grande parte da cidade de Aracaju foi edificada, há várias décadas, sobre manguezais aterrados, sendo
localizada em terrenos de marinha” (MENDONÇA, Cristina. A palavra do leitor: Dazibao. Disponível em:
<http://www.terravista.pt/enseada/1428/pl_dazibao.html>. Acesso em: 20 mar. 2004). e “Recife ‘verbi
gratia’ teve 2/3 (dois terços de sua área atual obtidos à custa de aterros com a supressão de enormes áreas
que continham aquela vegetação” (manguezais) (SIQUEIRA FILHO, Élio Wanderley de. Manguesimportância e proteção jurídica. Disponível em: < http://www.infojus.com.br/area17/elio_siqueira11.htm >.
Acesso em: 2 mar. 2004.
161
VASCONCELLOS, João Gualberto et al. (Org.).Vitória: trajetórias de uma cidade. Vitória: Artgraf, 1993. p.
33.
63
Inexistia uma consciência da importância da preservação da natureza, que era considerada
pela civilização “cristã ocidental” como uma dádiva de Deus, destinada a servir ao homem e
viabilizar o seu “progresso”. Muitos povos, ditos selvagens, possuíam uma avançada
consciência da importância do meio ambiente e da propriedade imóvel. Em documento
remetido ao presidente dos EUA por uma tribo indígena verifica-se a sabedoria destes povos:
Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção de
terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que
vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua
inimiga e quando ele a conquista, prossegue seu caminho [...] Rapta da terra aquilo
que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus
filhos são esquecidos, Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu como coisas que
possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos.
Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.162
A União, em sua ótica arrecadatória, efetuou inúmeros aforamentos de áreas de manguezais,
áreas ambientais extremamente relevantes. Esta conduta é notada no Decreto-Lei n.º 2.490163,
de 16 de agosto de 1940, que “[...] estabelece novas normas para o aforamento dos terrenos
de marinha”, o que é uma demonstração desta prática, ao dispor sobre a concessão de
aforamentos de “[...] terrenos de mangues na costa”.
Por meio deste Decreto também fica demonstrado que a União em tempos passados aforou
grandes parcelas de manguezais, para fim de autorização de aterros e criação de acrescidos de
marinha. (vide art. 2º e 10 do referido Decreto-Lei). No artigo 2º que faz um rol dos terrenos
que se subordinam ao regime de aforamento, tem-se no inciso II “- os terrenos de mangue
na costa”.
O aforamento dos mangues é defendido por Barbosa164, em que diferencia terreno subaquático
de mangue. Para ele “[...] terreno subaquático é o que está debaixo d’água e, por conseguinte,
não pode constituir objeto de contrato, pela impossibilidade de uso”, mas, diversamente, o
“[...] mangue é terreno pantanoso, onde viceja, isso mesmo, a plantação que lhe é
característica – o ‘mangue’, daí seu nome. Pertence à União (D.L. n.º 6.871/44), e a
162
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 11-12.
BRASIL, 2002d.
164
BRASIL, 2002d, p. 26.
163
64
possibilidade de seu uso torna-o suscetível de comércio, de transação, de ser objeto de
contrato”.165
Com a evolução da compreensão humana acerca dos direitos fundamentais, têm-se os direitos
sociais aprimorando a concepção dos direitos civis e individuais assim como os direitos de
terceira geração passaram a tutelar interesses difusos como o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Embora a emancipação do direito ambiental como ciência seja recente (1981), nos idos de
1934, já havia normas determinando a proteção das áreas de preservação permanente.
O Decreto n.° 23.793166, de 23 de janeiro de 1934 em seu artigo 3º, classificava as florestas
em quatro tipos, dentre os quais destacam-se as florestas protetoras e as florestas
remanescentes.
As florestas protetoras eram definidas na lei como
[...] aquelas que, por sua localização, servirem conjuncta ou separadamente para: a)
conservar o regimen das águas; b) evitar a erosão das terras pela acção dos agentes
naturaes; c) fixar dunas; d) auxiliar a defesa das fronteiras, de modo julgado
necessário pelas autoridades militares; e) assegurar condições de salubridade
publica; f) proteger sítios que por sua belleza mereçam ser conservados; g) asilar
especimens raros de fauna indígena (Art. 4º).167
As florestas remanescentes eram entendidas como
[...] a) as que formarem os parques nacionaes, estaduaes ou municipais; b) as em que
abundarem ou se cultivarem especimens preciosos, cuja conservação se considerar
necessária por motivo de interesse biológico ou estético; c) as que o poder público
reservar para pequenos parques ou bosques, de gozo público (Art. 5º).168
Embora as florestas protetoras e florestas remanescentes tenham sido consideradas, em via de
regra, inalienáveis por força do art. 8º169, na mesma época houve a edição do código das águas
165
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria do Patrimônio da União. Legislação
imobiliária da União: anotações e comentários as leis básicas. Brasília, 2002c. p. 26.
BRASIL, 2003c.
167
Art. 4.° (BRASIL, 2003c).
168
Art. 5.° (BRASIL, 2003c).
169
Art. 8º Consideram-se de conservação perene, e são inalienáveis, salvo se o adquirente se obrigar, por si, seus
herdeiros e successores, a mantê-las sob o regime legal respectivo, as florestas protectoras e as remanescentes
(Decreto 23.793 de 23.01.1934) (BRASIL, 2003c).
166
65
(Decreto n.° 24.643170, de 10 de julho de 1934), que se olvidando da necessidade de proteção
das vegetações das margens dos rios, “[...] para conservar o regime das águas” e “[...] evitar a
erosão das terras pela acção dos agentes naturaes”171, considera, os terrenos de marinha e as
margens dos rios navegáveis, bens públicos dominicais, “[...] se não estiverem destinados ao
uso comum”172 permitindo a ocupação privada destas áreas mediante regime de aforamento
perpétuo, desvirtuando completamente as normas protetivas das margens dos rios e áreas
costeiras.
O Código Florestal, instituído pela Lei n.° 4.771173, de 1965, no Art. 2°, expressamente
considera, dentre outras, como vegetação de preservação permanente a situada nas margens
de qualquer rio ou curso d'água174 nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras
de mangues175. Sendo de preservação permanente, a vegetação desta áreas não poderão ser
suprimidas, salvo mediante “[...] prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for
necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou
interesse social” (art. 3º§1º). Ou seja, como poderia a União aforar margens de rios e
manguezais quando estas áreas eram consideradas de preservação permanente, sem qualquer
interesse público superior? O aforamento estimula a devastação da vegetação protegida sem
qualquer fundamento público que a justifique.
Com a Lei n.º 9.605176, de 12 de fevereiro de 1998, tornou-se crime, com circunstâncias
agravantes (Art. 15, alíneas “e” e “l”), modificar, danificar ou destruir ninho, abrigo ou
criadouro natural (art. 29, II), como é o caso dos mangues; “[...] provocar, pela emissão de
170
BRASIL. Decreto n.º 24.643, de 10 de julho de 1934. Decreta o código de águas. Coleção de Leis do Brasil,
Brasília, v. 4, p. 679. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 16 ago 2003d.
171
(Art 4º a e b, do Decreto 23.793/34 (BRASIL. Decreto n.° 23.793, de 23 de janeiro de 1934. Aprova o
código florestal. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 4, p. 679. Disponível em: <http://www.senado.gov.
br>. Acesso em: 16 ago. 2003c).
172
Art. 11. São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo
não pertencerem ao domínio particular; 1º, os terrenos de marinha; 2º, os terrenos reservados nas margens das
correntes públicas de uso comum, bem como dos canais, lagos e lagoas da mesma espécie. Salvo quanto as
correntes que, não sendo navegáveis nem flutuáveis, concorrem apenas para formar outras simplesmente
flutuáveis, e não-navegáveis.
§ 1º Os terrenos que estão em causa serão concedidos na forma da legislação especial sobre a matéria. § 2º
Será tolerado o uso desses terrenos pelos ribeirinhos, principalmente os pequenos proprietários, que os
cultivem, sempre que o mesmo não colidir por qualquer forma com o interesse público” (BRASIL, 2003d).
173
BRASIL. Lei n.º 4.771, de 15 de setembro de 1965. Institui o novo código florestal. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, p. 9.529, col. 2, 16 set. 2001.
174
Lei 4.771, de 1965, no Art. 2° alínea a (BRASIL, 2001c).
175
Lei 4.771, de 1965, no Art. 2° alínea f (BRASIL, 2001c).
176
BRASIL. Lei Ordinária n.° 9.605, 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas
derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, p. 1, col. 1, 13 fev. 1998c.
66
efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática
existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras” (Art. 33),
crime causado por aterros de mangues.; assim como “[...] destruir ou danificar floresta
considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com
infringência das normas de proteção” (Art. 38).
Nos termos do artigo 3º da Resolução CONAMA177 n.º 303178, de 20 de março de 2002, que
revogou a Resolução CONAMA 004 de 18/09/1985179, são áreas de Preservação Permanente:
restingas [em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar
máxima, e em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por vegetação com função
fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues (ART. 3º, IX, “a” e “b”)]; X - manguezal,
[em toda a sua extensão (Art. 30. X)] em duna (Art. 3º XI).
A legislação da União se preocupou com a questão ambiental somente a partir de 1987, com a
edição do Decreto-Lei n.° 2.398, que passou a vedar, no Parágrafo Único do artigo 5º, o
aforamento de imóveis de interesse do serviço público, definindo-o
[...] todo imóvel necessário ao desenvolvimento de projetos públicos, sociais ou
econômicos de interesse nacional, à preservação ambiental, à proteção dos
ecossistemas naturais e à defesa nacional, independentemente de se encontrar
situado em zona declarada de interesse do serviço público, mediante portaria do
Secretário do Patrimônio da União.180
Embora seja um importante avanço, verifica-se claramente uma confusão na identificação da
natureza jurídica destes imóveis, denominando imóveis necessários à preservação ambiental –
bens de uso comum do povo, como sendo de ‘interesse do serviço público’, quando se
submete a interesse muito maior que o interesse da administração, interessa a toda a
coletividade indistintamente.
Ocorre que esta norma ainda está em conflito com as normas ambientais, já que a resolução
CONAMA considera restinga uma “[...] faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da
177
Conselho Nacional de Meio Ambiente.
BRASIL. Conselho Nacional de Meio Ambiente. Resolução n.° 304, 11 de junho de 2002. Dispõe sobre a
data 66ª Reunião Ordinária do CONAMA. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 19 jun.
2002. Disponível em: < http://www.mma.gov.br/port/conama/index.cfm >. Acesso em: 2 maio de 2002b.
179
BRASIL. Conselho Nacional de Meio Ambiente. Resolução n.° 004, 18 de setembro de 1985. Dispõe sobre a
data 66ª Reunião Ordinária do CONAMA. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 20 jan.
1986. Esta Resolução considerava estas áreas como Reservas Ecológicas, no art. 3º, incisos VII a IX .
180
BRASIL, 2002d, p. 132.
178
67
linha de preamar máxima, e em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por
vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues”181, têm-se todas as
áreas de marinha ocupadas por vegetação de restinga como bens de uso comum do povo, não
passíveis de destruição, sem que se configure crime ambiental.
3.2.2 A Zona Costeira e a gestão dos terrenos de marinha
A zona costeira brasileira é uma região de contrastes, um desafio para a gestão sustentável dos
recursos ambientais. Com base na ocupação humana pode-se dividir a região costeira em
áreas de intensa e baixa ocupação humana, as primeiras são aquelas possuidoras de “[...]
intensa urbanização, atividades portuária e industrial relevantes e exploração turística em
larga escala”182, onde temos metrópoles e centros urbanos regionais litorâneos que se
desenvolveram em áreas naturais abrigadas como estuários e baías.
Nas cidades costeiras estão instalados usos conflitantes. A gestão ambiental de tais áreas deve
ser efetuada no sentido de mediar estes interesses de forma a mitigar ao máximo os impactos
ambientais destas áreas adensadas.
Compete à Administração Pública a gestão tanto dos espaços urbanos quanto dos bens
públicos. No caso dos terrenos de marinha esta necessidade de gestão patrimonial se
intensifica.
Nesses locais, definem-se, em geral, quadros problemáticos do ponto de vista da
gestão ambiental, demandando ações de caráter corretivo, com a mediação dos
‘múltiplos conflitos de uso’ dos espaços e recursos comuns e de controle do impacto
sobre o ambiente marinho, decorrente de poluição e contaminação por diferentes
tipos e fontes.183
Nas áreas de baixa densidade de ocupação, faz-se necessária uma eficaz administração destes
recursos ambientais assim como a implantação de um plano de gerenciamento de recursos
costeiros a fim de que estas áreas de grande significado ambiental possam ser preservadas.
181
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. da Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos
Projeto de Gestão Integrada dos Ambientes Costeiro e Marinho - GERCOM. Disponível em: <http:
www.mma.gov.br/port/sqa/projeto/gerco/capa/inex.html>. Acesso em: 2 mar. 2004h.
182
BRASIL, 2004h.
183
BRASIL, 2004h.
68
[...] áreas de baixa densidade de ocupação e ocorrência de ecossistemas que, no
entanto, vêm sendo objeto de acelerado processo de ocupação, demandando ações
preventivas, de direcionamento das tendências associadas à dinâmica econômica
emergente (a exemplo do turismo e da segunda residência) e o reflexo desse
processo na utilização dos espaços e no aproveitamento dos respectivos recursos.184
Dentro desta zona costeira estão inseridas áreas de terras e de águas marinhas.185
E
justamente nesta área de transição entre os ambientes terrestres e marinhos estão inseridos os
terrenos de marinha.
Sob este aspecto seria forçoso concluir que, a partir da Constituição de 1988, os terrenos de
marinha se converteram em bens de uso comum do povo? Os terrenos de marinha,
obviamente, estão inseridos na porção maior que é a Zona Costeira, mas este fato não é capaz
de convertê-los automaticamente em bens de uso comum do povo ou bens difusos como
entende Rodrigues e Fiorillo186. Mas uma coisa é certa, sendo a Zona Costeira um patrimônio
Nacional os terrenos de marinha não podem ser considerados em sua totalidade como bens
dominicais destinados a geração de rendas para a União.
A ocupação da costa brasileira é conseqüência histórica de nossa colonização que gerou
inúmeros núcleos urbanos costeiros, que hoje constituem um grave risco à ecologia dessas
áreas.
Essa faixa stricto sensu concentra quase um quarto da população do País, em torno
de 36, 5 milhões de pessoas (segundo a Contagem da População de 1996) abrigadas
em cerca de 400 municípios, com uma densidade média de 87hab/km², cinco vezes
superior à média nacional (17 hab./km²).187
A Lei n.° 9.636188, de 15 de maio de 1998, sem considerar as normas ambientais possibilita a
venda dos terrenos de marinha, destacando, porém, que “[...] não serão objeto de aforamento
os imóveis que, por sua natureza e em razão de norma especial, são ou venham a ser
considerados indisponíveis ou inalienáveis” (Art. 12 § 3º). Se a restinga, vegetação de
preservação, é compreendida como “[...] faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir
da linha de preamar máxima, e em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por
184
185
186
187
188
BRASIL, 2004h.
A parte terrestre é composta por um conjunto de municípios selecionados segundo critérios ambientais
específicos. A parte aquática corresponde ao mar territorial brasileiro, com largura de 12 milhas náuticas a
partir da linha de costa (BRASIL, 2004h).
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e
legislação aplicável. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Max Limonad, 1999
BRASIL, 2004h.
BRASIL, 1998a.
69
vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues”189, deve-se
forçosamente concluir que os terrenos de marinha desocupados, inseridos nesta faixa mínima
de 300 (trezentos metros)190 não são passíveis de alienação, por indisponíveis e inalienáveis.
Sendo a Zona Costeira área que “[...] abriga um mosaico de ecossistemas de alta relevância
ambiental, cuja diversidade é marcada pela transição de ambientes terrestres e marinhos, com
interações que lhe conferem um caráter de fragilidade”191, como permitir novas ocupações ou
aforamentos nestas áreas?
Os próprios programas de regularização fundiária, que forem implantados em áreas
ambientais invadidas, deverão privilegiar a desocupação destas áreas mediante programas de
reassentamentos das famílias, e a programas de recuperação ambiental, geração de renda e
educação ambiental.192
A lei prevê que, para o cadastramento das ocupações, não basta a comprovação do efetivo
aproveitamento para que seja inscrito como ocupante (Art. 6º), faz-se necessário que esta
ocupação tenha ocorrido até 17 de fevereiro de 1997 e que não
[...] estejam concorrendo ou tenham concorrido para comprometer a integridade das
áreas de uso comum do povo, de segurança nacional, de preservação ambiental, das
necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, das reservas indígenas, das
ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, das vias federais de
comunicação, das reservadas para construção de hidrelétricas, ou congêneres,
ressalvados os casos especiais autorizados na forma da lei (art. 9º, incisos I e II).193
A Lei n.° 9.636/98194 deve se submeter ao Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro
(PNGC), instituído pela Lei n.° 7.661195, de 16/05/1988 e, conseqüentemente, o bom senso
recomenda que o gerenciamento dos terrenos de marinha desocupados seja efetuado pelo
Ministério do Meio Ambiente e não pelo Ministério do Planejamento. Esta transferência de
atribuições viabilizaria maior efetividade ao PNGC.
A Lei n.° 7.661/98 determina o
zoneamento de usos e atividades na Zona Costeira e dá prioridade à conservação e proteção
189
190
191
192
193
194
195
BRASIL, 2002b.
Uma vez que estão inseridos nos primeiros 33 metros da faixa de preservação permanente de vegetação de
restinga.
BRASIL, 2004h.
Sem desconsiderar os demais programas necessários à promoção humana e urbana.
BRASIL, 1998a.
BRASIL, 1988a.
BRASIL. Lei n.° 7.661, de 16 de maio de 1988. Institui o plano nacional de gerenciamento costeiro e dá
outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 8.633, col. 1, 18 maio
1988.
70
de recursos naturais, renováveis e não-renováveis; recifes, parcéis e bancos de algas; ilhas
costeiras e oceânicas; sistemas fluviais, estuarinos e lagunares, baías e enseadas; praias;
promontórios, costões e grutas marinhas; restingas e dunas; florestas litorâneas, manguezais e
pradarias submersas; sítios ecológicos de relevância cultural e demais unidades naturais de
preservação permanente e monumentos que integrem o patrimônio natural, histórico,
paleontológico, espeleológico, arqueológico, étnico, cultural e paisagístico (art. 3).
Este zoneamento de usos e atividades, fixado mediante atividade multidisciplinar196, leva em
consideração tanto os aspectos do ambiente natural, quanto o meio ambiente construído,
como urbanização ocupação e uso do solo, do subsolo e das águas; parcelamento e
remembramento do solo; sistema viário e de transporte; sistema de produção, transmissão e
distribuição de energia; habitação e saneamento básico; turismo, recreação e lazer;
patrimônio natural, histórico, étnico, cultural e paisagístico (Art. 5º).
No Art. 10 desta norma está assegurado o acesso às praias e ao mar “[...] em qualquer
direção e sentido” salvo nas áreas “[...] de interesse de segurança nacional ou incluídos em
áreas protegidas por legislação específica”, impedindo “[...] a urbanização ou qualquer
forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso”.197
O plano nacional já foi elaborado e atualmente os planos estaduais e municipais estão em
elaboração.
No Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro - PNGC198 estão fixados diversos princípios a
serem observados pelos demais entes da federação dentre os quais se destacam: a utilização
sustentável dos recursos costeiros (item 2.4); “A gestão integrada dos ambientes terrestres e
marinhos da Zona Costeira, com a construção e manutenção de mecanismos transparentes e
participativos de tomada de decisões, baseada na melhor informação e tecnologia disponível e
na convergência e compatibilização das políticas públicas, em todos os níveis da
administração” (2,5); “A não-fragmentação, na faixa terrestre, da unidade natural dos
ecossistemas costeiros, de forma a permitir a regulamentação da utilização de seus recursos,
196
Em face de determinação legal de que este seja elaborado e alterado (quando necessário) por um grupo de
coordenação dirigido pela Secretaria da Comissão interministerial para os Recursos do Mar – SECIRM com
a participação da União, Estados e Municípios, através de órgãos e entidades integradas ao Sistema Nacional
do Meio Ambiente – SISNAMA (art. 4º), assim como sua aprovação pelo Conselho Nacional do Meio
Ambiente – CONAMA
197
§ 1º do art, 10 da referida norma.
198
BRASIL, 2004i.
71
respeitando sua integridade” (2.7). A preservação, conservação e controle de áreas que sejam
representativas dos ecossistemas da Zona Costeira, com recuperação e reabilitação das áreas
degradadas ou descaracterizadas” (2.10); o Princípio de Precaução “[...] para impedir ou
minimizar a degradação do meio ambiente, sempre que houver perigo de dano grave ou
irreversível, mesmo na falta de dados científicos completos e atualizados” (2.11); o Princípio
da Descentralização, “[...] assegurando o comprometimento e a cooperação entre os níveis de
governo, e desses com a sociedade, no estabelecimento de políticas, planos e programas
estaduais e municipais” (2.12); etc.
O Ministério do Meio Ambiente está na vanguarda das ações públicas, reconhecendo a
necessidade da multidisciplinariedade e da realização de parcerias com os municípios
costeiros para a elaboração dos planos de gerenciamento costeiro locais, com participação da
comunidade.
As pessoas não moram na União nem nos Estados, moram nas cidades, nos Municípios, tanto
que os nomes: cidadão e cidadania decorrem do vocábulo cidade. São os municípios que
possuem o contato direto com a população são estes os agentes administrativos que possuem
melhores condições de implantação das políticas públicas eficazes, é neles que as discussões
democráticas devem ocorrer.
Os problemas urbanos e ambientais vividos por cerca de 400 municípios inseridos na Zona
Costeira199; a necessidade premente da regulação dos usos e ocupações dos terrenos de
marinha ainda desocupados somados à histórica incapacidade da União em gerenciar estas
áreas, apontam para uma reformulação completa na forma de gerenciamento e regularização
dos usos e ocupações dos terrenos de marinha. Estas áreas não podem mais ficar servindo
apenas a interesses fiscais secundários. Os interesses públicos primários possuem supremacia
sobre os interesses privados da União.
As ações ambientais já têm sido objeto de notícias na mídia, conforme se infere abaixo:
Os municípios pernambucanos localizados nos 187 quilômetros de orla marítima
passam a contar a partir desta terça-feira (18/3) com um programa ambiental de uso
sustentável. Trata-se do projeto orla, que será viabilizado por meio de parceria entre
199
A lista dos 400 Municípios integrantes da Zona Costeira contidos em 15 estados da federação está disponível
no site: BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Gerco: Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro.
Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/sqa/projeto/gerco/capa/index.html>. Acesso em: 2 mar. 2004i.
72
o MMA - Ministério do Meio Ambiente, o governo estadual e as secretarias
municipais de Meio Ambiente200.
O Ministério do Meio Ambiente em respeito ao princípio da descentralização administrativa e
à competência municipal na elaboração e execução de políticas públicas locais, corretamente
busca a cooperação administrativa com os municípios.
3.2.3 Danos ambientais em terrenos de marinha
Embora o Ministério do Meio Ambiente esteja envidando esforços para implantação de um
plano de gestão da Zona Costeira, a Secretaria do Patrimônio da União, órgão responsável
pela gestão dos terrenos de marinha, é um órgão incapaz de impedir a ocupação indevida das
áreas ambientais, conforme se depreende de artigos e notícias colhidas na Internet.
A invasão de área de manguezais urbanos é denunciada em Aracaju por uma ONG
denominada Viva a Vida. Nesta denúncia verifica-se na prática o que o PNCG intitula usos
conflitantes. Há a necessidade da preservação ambiental de um ecossistema costeiro relevante
que são os manguezais urbanos, e tem-se a pressão social de seres humanos desprovidos de
uma eficaz ação de inclusão social urbana. No meio deste conflito de interesses coletivos
difusos fica o Ministério Público, acusado de inerte, “[...] não obstante os esforços até aqui
empreendidos, tanto na área cível como na criminal”.201
Nesta matéria, que permite vislumbrar um pouco do princípio do contraditório, o Ministério
Público Estadual de Aracaju pôde se manifestar, afirmando que
[...] o problema da invasão dos manguezais urbanos em Aracaju é causa de
permanente angústia para os integrantes do MPE de Sergipe, que tem adotado todas
as providências possíveis dentro de suas atribuições legais. Entretanto, grande parte
da cidade de Aracaju foi edificada, há várias décadas, sobre manguezais aterrados,
sendo localizada em terrenos de marinha. Acredito até que todas as áreas de mangue
que estão sendo atualmente invadidas são terrenos de marinha.202
200
CONHECER para conservar. Disponível em <http://www.conhecerparaconservar.org/opini%C3%A3o/
not%C3%ADcias/descricao.asp?NewsID=740>. Acesso em: 20 fev. 2004.
201
MENDONÇA, 2004.
202
MENDONÇA, 2004.
73
Estas questões dependem de programas locais de educação ambiental, dependem do
atendimento das necessidades habitacionais da população municipal assim como de
fiscalização efetiva, medidas de competência municipal que não conseguem ser eficazmente
efetuadas pela União sem a cooperação do ente local.
Outra deficiência na gestão ambiental destas áreas é encontrado em site que denuncia203 uma
“Avalanche de Irregularidades”204 no projeto de construção de um complexo turístico em área
ambiental.
Denuncia as seguintes irregularidades:
a) ausência de Relatório de Impacto Ambiental Prévio (contrariando a lei Ambiental
Estadual n.º 5.793/80 e o art. 225 da CF);
b) ocupação e construção em promontório (contrariando a letra g da resolução 004 do
Código Nacional do Meio Ambiente de 18/09/85);
c) dano a patrimônio histórico nacional, em decorrência de construção em área que possui
“[...] inscrições rupestres dos habitantes primitivos da praia”205 e que não poderia ser
objeto de construção;
d) ausência de demarcação de área de marinha.
Mesmo não tendo sido efetuada a demarcação dos terrenos de marinha, eles foram vendidos
pela União ao empreendimento, demonstrando a falta de critério técnico na fixação da
propriedade pública.
A Delegacia do Patrimônio da União em Florianópolis garante não ter demarcado os
limites das áreas nas praias do Norte da Ilha. ‘A área de marinha é presumida nesses
locais a partir do início da vegetação. No caso do Costão não sei como que ela foi
demarcada’, garante Ruth De Lucca, assessora da DPU. ‘É comum acontecer
desrespeitos ao Patrimônio da União’, admite o delegado da DPU, Antônio Carlos
Zimmermann.206
203
Segundo informações colhidas em 13/06/2004, “A Procuradoria da República de Santa Catarina está
preparando ação civil pública para impedir que empreendimento turístico avance sobre a vegetação de
restinga e ocupe boa parte de um promontório” (REPORTAGENS. Latinidad on-line. Disponível em:
<http://www.ufsc.br/latinidad/já_online/santo.html>. Acesso em: 13 jun. 2004.
204
AVALANCHE de irregularidades. Latinidad on-line. Disponível em: <http://www.ufsc.br/latinidad/já_
online/santo.html>. Acesso em: 13 jun. 2004.
205
AVALANCHE..., 2004.
206
AVALANCHE..., 2004.
74
Nos dois casos temos a patente falta de capacidade da União em gerenciar um patrimônio
nacional onde estão inseridos diferentes interesses públicos difusos e colidentes: a
necessidade da preservação ambiental em conflito com interesses sociais (acesso à moradia) e
interesses econômicos de desenvolvimento do turismo. Estas questões ultrapassam o
gerenciamento puro e simples da propriedade, como um direito privado da União.
Embora a lei mais recente impeça as inscrições de ocupação que
[...] estejam concorrendo ou tenham concorrido para comprometer a integridade das
áreas de uso comum do povo, de segurança nacional, de preservação ambiental, das
necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, das reservas indígenas, das
ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, das vias federais de
comunicação, das reservas para construção de hidrelétricas, ou congêneres (Art. 9º,
II da Lei 6.963/98),207
esta norma ainda deverá ser efetivada mediante a aplicação do Art. 10 que determina que “[...]
constatada a existência de posses ou ocupações em desacordo com o disposto nesta lei, a
União deverá imitir-se sumariamente208 na posse do imóvel, cancelando-se as inscrições
eventualmente realizadas.”
Conforme se verifica, somente a partir de 1998 a União começou a preocupar-se com a
existência de outros interesses públicos nesta faixa geográfica denominada terrenos de
marinha, mas os problemas causados pela ocupação desordenada desta faixa costeira são
muito mais complexos e provavelmente não conseguirão ser sanados com o disposto nos
artigos citados.
3.3 INTERESSES URBANÍSTICOS
Silva209, em seu estudo “Terrenos de marinha, seus acrescidos e a administração municipal”
destaca que os terrenos de marinha historicamente causam problemas “Passados mais de dois
207
208
209
BRASIL, 1998.
Somente mediante o devido processo legal, poderá a União imitir-se sumariamente na posse.
SILVA, 1976, p. 325.
75
séculos da criação do instituto, continuam as administrações municipais às voltas com
problemas oriundos dos terrenos de marinha e seus acrescidos”.
Estes problemas estão na maioria das vezes imbricados com a necessidade de gestão e
planejamento urbanos.
3.3.1 Prejuízos ao Planejamento urbano e autonomia municipal
Dentre estes problemas há a dificuldade na aprovação de loteamentos e projetos de
edificações, já que inexiste a separação entre o domínio público e privado. Esta imprecisão é
causada pela falta de demarcação da linha de preamar média de 1831:
Sucede que, em pouquíssimos pontos do litoral brasileiro este marco inicial – linha
do preamar médio de 1831 – foi fixado. Como saber, então, onde começam e
terminam os terrenos de marinha e seus acrescidos.210
Outro problema causado ao planejamento urbano decorre do abandono do critério de se
permitir a utilização privativa dos terrenos de marinha, mediante contrato administrativo de
aforamento. A adoção da inscrição de ocupação, que não se submete às regras do aforamento,
uma vez que não consulta previamente os entes públicos sobre seus interesses públicos
legítimos na área objeto da solicitação, também causa inúmeros problemas na gestão da
cidade.
Não havendo audiência prévia, não têm as prefeituras conhecimento de quais áreas
estão sendo pretendidas por particulares, assim como a União não toma
conhecimento, deixando de considerar os seus projetos urbanísticos, pelo simples
fato de que sobre eles não lhe foi dado manifestar-se como ocorreria no processo de
aforamento.211
Diante das normas ditadas pela União sobre os terrenos de marinha, representantes de
Municípios, perguntaram a Mello212: O Município tem alguma possibilidade ou meio de se
opor aos aforamentos de marinha? Este responde que a única coisa que o Município pode
210
211
212
SILVA, 1976, p.326.
SILVA, 1976, p. 326.
NOTAS taquigráficas de aulas e debates do XII Curso de Direito e Administração Municipal, realizado
conjuntamente com o XVI Congresso Estadual de Municípios, em Itanhaém, referente ao 4º dia. Revista de
Direito Público, n. 21, p. 281-282, jul./set. 1972.
76
exigir é ser consultado previamente ao efetuar aforamento em áreas que possuem
Planejamento Urbanístico Municipal ou loteamentos. “Afora isso, qual o outro meio de
defesa?”, perguntam: – “É o Município procurar, ele mesmo aforar esse terreno”.
Embora a questão seja relevante para os municípios litorâneos o professor não pôde
apresentar qualquer solução jurídica para a questão, já que a lei positivada é clara. Pela
resposta, parece que muito pouco pode ser feito pelos municípios em face dos terrenos de
marinha, a não ser ficar como um “pedinte” das áreas urbanas dependente da vontade política
da União e da burocracia da SPU.
Outro óbice ao planejamento e gestão urbana eficaz diz respeito à inaplicabilidade da Lei n.º
6.766/79213 sem sua plenitude nos loteamentos implantados em áreas de marinha. Reza esta
norma nacional sobre parcelamento do solo urbano. Determina, em seu art. 22, que desde o
registro do loteamento as áreas destinadas aos equipamentos públicos de uso especial assim
como aos bens de uso comum do povo passam a pertencer automaticamente ao patrimônio
municipal.
Se o loteador possui apenas o domínio útil pode transferir aos municípios somente o domínio
útil de tais áreas. Os municípios costeiros nunca adquirem a propriedade plena das áreas
públicas em terrenos de marinha e acrescidos, mesmo que estes estejam em áreas urbanas
onde é fundamental a gestão da ocupação do espaço, como é o caso de restaurantes e
barraquinhas que atendem ao interesse de fomento ao turismo das áreas costeiras, nestes casos
esta gestão é muitas vezes impedida ou dificultada.
Os terrenos de marinha geram uma desigualdade inconstitucional entre os municípios
costeiros e os municípios interioranos. Os municípios interioranos podem gerir livremente os
bens públicos conferidos pela Lei n.° 6.766/79, os costeiros não. Caso o município queira
desafetar um bem especial para aliená-lo para aquisição de outro imóvel para implantação de
serviço público, estará impedido, uma vez que não possui direito real em decorrência da
averbação do loteamento.
Com as restrições constitucionais e na forma da legislação específica significa que os bens de
uso comum do povo e de uso especial não são de propriedade dos municípios, sendo
213
BRASIL, 1979.
77
permitida a utilização enquanto não houver modificação em sua destinação. Ou seja, está
longe de ser um direito real assemelhando-se mais a um “favor real”.
Os terrenos de marinha ferem de morte o espírito da Lei n.° 6.766/79 que determina no seu
art. 22 que “[...] desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do
Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros
equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo”.214 Esta norma é
aplicada no resto do país para conferir aos municípios o domínio pleno e a União, ferindo a
autonomia municipal e o princípio da isonomia, pretende transferir apenas o domínio útil,
reservando para si o domínio direto, mantendo o verdadeiro domínio nas mãos de um ente da
federação que nada tem a ganhar com esta dificultação na gestão da cidade. Além do mais,
como conferir domínio útil a municípios sem a assinatura de contrato e seu conseqüente
registro no RGI.215 A letra da lei é clara, o registro do loteamento basta para a transferência
da propriedade para os municípios
Nas áreas costeiras os municípios estão sempre dependendo da “anuência” do proprietário
para gerir seus bens de uso comum do povo, a exemplo das praias. A gestão municipal é
obstada em grandes áreas litorâneos. Os terrenos de marinha subtraem da gestão urbana os
bens de uso comum do povo que são as praias e as áreas litorâneas.
Nas cidades litorâneas a gestão da utilização das praias e faixas a estas limítrofes é
fundamental para a implantação da função social da cidade, essencial à construção de uma
cidade mais bela, acessível e turisticamente mais atraente.
Sendo os terrenos de marinha de propriedade da União, nos termos da aplicação da lei editada
para atender aos interesses proprietários da União, o município somente poderá definir os
usos compatíveis, não podendo gerenciar o uso de áreas216 mediante contratos
administrativos.
214
215
216
BRASIL, 1979.
Registro Geral de Imóveis.
Que inclusive podem ter sido aterradas e urbanizadas pelos próprios municípios que se vêem com
dificuldades na administração dos equipamentos públicos de lazer e interesse social que eventualmente
construam.
78
Nossa Carta Magna determina que compete ao município a feitura e implantação de um
planejamento urbano que propicie o desenvolvimento econômico e social sustentável da
cidade.
Não possuindo o Município a propriedade plena dos bens de uso comum do povo e dos bens
de uso especial por este utilizado na prestação dos serviços necessários aos munícipes, tem-se
um claro atentado à autonomia municipal. Embora a Lei n.° 6.766/79 afirme que as áreas
destinadas aos equipamentos públicos, ao lazer e à circulação, pertençam ao município, nas
áreas de marinha esta norma não pode ser aplicada.
Em pleno século XXI não se concebe uma centralização desta natureza, ferindo frontalmente
atribuições constitucionais privativas do município que é o planejamento urbano, a fim de
implantar a função social da cidade, administrando os interesses e necessidades locais. Como
pode o município cumprir seu papel constitucional quando possui parte importante de seu
território sob domínio da União? Nogueira217, já nos ensinava nos idos de 1968 que:
A centralização política, qualquer que ela seja, importa a centralização e a tirania
burocrática, o desconhecimento das liberdades dos vários grupos, entre as quais as
liberdades locais. O estado não dá vida ao município; daí sua ingerência nele ser
contra a comunidade dos vizinhos.
Como pode a União completamente distante das diferentes peculiaridades municipais erigir
uma única norma regulamentando áreas vitais ao desenvolvimento urbano? Se tais áreas são
bens públicos, se todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, porque até a presente
data os clamores da população costeira não são ouvidos? O Professor Ataliba218 destaca que:
As necessidades que afetam o grupo ligado pela vizinhança só podem encontrar
satisfação apropriada na cooperação social dos membros deste grupo. Seguem-se daí
que a vizinhança é o fundamento das funções sociais do município.
As funções sociais assim reclamadas constituem o fundamento do direito do
município à autopolítica e auto-administração, ou seja, à autonomia na realização de
suas próprias competências.
Como pode o município efetuar um eficaz planejamento urbano quando a grande maioria de
seu território pertence a outro ente da Federação e todas as ações administrativas ficam
dependendo da lenta tramitação dos processos no Patrimônio da União?
217
218
NOGUEIRA, Ataliba. Teoria do município. Revista do Direito Público, n. 6, p. 7-21, out./dez. 1968.
NOGUEIRA, 2003, p. 15.
79
Muitas áreas urbanizadas pelos municípios ficam impossibilitadas de serem por eles geridas,
salvo se a União celebrar convênio com eles para este fim. Ou seja, para que o município
costeiro possa gerir sua orla, cumprir com seu dever constitucional, é obrigado a se “despir”
de sua autonomia e pedir autorização para tal gestão, ficando dependente da resposta da
proprietária do imóvel e do tempo de demora desta resposta, que pode ser positiva ou
negativa. Se a União concordar com a solicitação do município esta gestão fica mais fácil.
Quando o interesse privado da União colide com o interesse público municipal o problema
assume contornos mais graves. Na pesquisa realizada na Internet, dentro dos critérios já
apontados também foi encontrada notícia sobre a “queda de braço” que houve entre o
Município de Vitória e o Patrimônio da União, conforme destacado a seguir.
O Município de Vitória-ES, visando à implantação de um empreendimento econômico
previsto no programa de revitalização do centro da cidade, entrou em briga direta com a
Secretaria do Patrimônio da União -SPU, que é o responsável pela gestão da área de acrescido
de marinha necessária à construção de um Shopping Center no centro da cidade. Esta área
vazia foi negada ao município sob a alegação de que a União pretendia utilizar o terreno para
fim de estacionamento ou para construção de nova repartição pública.
O Prefeito Luiz Paulo Vellozo Lucas denunciou a ‘especulação’ da União contra a
cidade de Vitória, [...] os últimos grandes terrenos vagos da Ilha são de propriedade
da União: a área da INFRAERO, em Camburi; os Galpões do IBC, em Jardim da
Penha; terrenos ao longo da Reta da Penha; na área da ‘Cruz do Papa’, na Enseada
do Suá; na área ao lado do INSS, na Beira-Mar; além do estacionamento atrás da
Mesbla, para citar os principais. Projetos importantes, para tornar Vitória melhor e
capaz de competir nacional e internacionalmente por investimentos e turismo
dependem destes locais.219
Os argumentos em favor da construção do Shopping aduzem que o Centro da Cidade já possui
inúmeras salas comerciais vazias que poderiam muito bem ser aproveitadas pela repartição
pública indicada pela SPU. “Segundo o presidente da ADEMI, José Luiz Kfuri, a quantidade
de salas desocupadas no Centro equivale a 17 edifícios totalmente vazios!”220
A construção de um Shopping no centro da cidade, segundo a matéria veiculada na Internet,
melhor atenderia ao interesse público:
219
REZENDE, Luciano. Discurso. Vitória: Câmara de Vereadores de Vitória. Disponível em: <http://www.cmv.
org.br/artigos/luciano1.htm>. Acesso em: 2 de mar. 2004.
220
REZENDE, 2004.
80
A construção de um shopping com 180 lojas, restaurantes panorâmicos com vista
para o Porto, 8 novas salas de cinema e a geração de mais de 1500 empregos é mais
importante para o Centro do que uma repartição pública.221
Diante na negativa da União em disponibilizar o vazio urbano para a implantação de
empreendimento de fomento à ocupação do centro da cidade, o Município alterou o Plano
Diretor Urbano especificamente para impedir construção pretendida pela União:
Apresentei um projeto que altera o Plano Diretor Urbano (PDU) de Vitória,
impedindo a construção de Repartição Pública em Zonas de Revitalização da
Cidade. Os técnicos da PMV e o Conselho Municipal do PDU encaminharam,
através de mensagem enviada pelo Prefeito Interino Hugo Borges Júnior, uma
alteração da Lei Municipal, aprovada por unanimidade dos vereadores.222
Ou seja, embora a União tivesse seus planos particulares para a reserva de terra urbana que
possuía em área central da cidade, o Município no exercício de sua competência privativa de
planejamento urbano, impediu a destinação particular pretendida gerando com isso um
impasse, que somente pôde ser resolvido, posteriormente, mediante influência política.
A Constituição Federal, regulamentada pelo Estatuto da Cidade determinou o cumprimento da
função social dos terrenos urbanos, penalizando os particulares que não atendessem à
utilização, parcelamento ou edificações compulsórias determinadas no PDU, com uma sanção
inicial de pagamento de IPTU progressivo no tempo e se, ao final de cinco anos ainda se
mantivessem inertes, seriam sancionados com desapropriação, mediante pagamento em títulos
da dívida pública municipal.
Nos casos das grandes áreas de terras urbanas reservadas pela União inexiste previsão legal de
mecanismos que obriguem a função social da propriedade pública. Esta é tributariamente
imune e não-passível de desapropriação pelo município. Será que quando o Município
determinar a utilização compulsória de bem dominical público ocioso em decorrência do
Plano Diretor Urbano, e este descumprir com sua função social nada pode ser feito? Entendese que nestes casos, considerando que a função social da propriedade atinge toda e qualquer
propriedade, será possível a desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida
pública municipal.
221
222
REZENDE, 2004.
REZENDE, 2004.
81
A questão do respeito ao pacto federativo deve ser reconsiderada inclusive no que diz respeito
à impossibilidade de os municípios desapropriarem imóveis dos estados e da União. O
princípio da preponderância do interesse não decorre da simples titularidade da propriedade.
Se a União ou o Estado estão agindo em atendimento a seus interesses privados, contrariando
a função social da propriedade urbana, devem ser ao menos passíveis de desapropriação, em
processo em que prevalecerá o interesse público preponderante. A propriedade pública hoje
encontra-se contraditoriamente imune aos instrumentos úteis à implantação da função social.
A imunidade tributária e a impossibilidade de desapropriação de áreas dos Estados e da União
pelos Municípios para viabilização de seus programas e projetos de desenvolvimento urbano
pode ser, conforme demonstrado no exemplo trazido, um grande óbice ao pleno exercício da
autonomia municipal e planejamento urbano.
Conforme já explicitado o foro destinava-se, originalmente, ao custeio do desenvolvimento
dos municípios costeiros. Com o retorno deste para a União, os municípios instituíram o
IPTU, imposto sobre a propriedade territorial urbana e a cobrança do foro e taxa de ocupação
se mantiveram em favor da União.
Considerando que o IPTU é um importante instrumento de manutenção dos serviços públicos
e desenvolvimento urbano, a dupla incidência de duas cobranças com base em uma mesma
base de cálculo (valor de mercado do imóvel urbano inserido nos terrenos de marinha) é
considerada injusta pelos destinatários da norma.
Em Água Branca (CE), os moradores de toda uma cidade ameaçam deixar de pagar o
IPTU para poderem pagar a Taxa de Ocupação. Em que pese a cobrança da União não
trazer qualquer retribuição para a comunidade, como estão ameaçados de perderem suas
casas, por medo preferem pagar a União (que se encontra fria e distante dos interesses da
população urbana), apostam na inadimplência local, já que, por causa de sua proximidade
política com o poder local, estes moradores têm consciência de que a prefeitura não lhes
tirará a moradia, certeza que não possuem em face da poderosa e distante União Federal.
82
A cobrança de dois tributos tem gerado muitas reclamações do balcão da Secretaria
de Finanças. ‘As pessoas reclamam muito, algumas dizem que vão deixar de pagar o
IPTU para pagar o DPU’, alega Francisco José. [...] Isso aqui é um verdadeiro muro
das lamentações’, complementa o fiscal de tributos, Felinto Azevêdo Júnior, um dos
mais antigos funcionários da Secretaria de Finanças de Areia Branca.223
Além desta questão em relação aos particulares, há uma distorção em relação aos demais
entes públicos.
A União, por força da imunidade tributária está isenta do pagamento de impostos municipais,
enquanto os municípios e estados, por força desta normatização arcaica, devem à União foro e
ocupação dos imóveis utilizados no exercício de suas funções.
3.4 INTERESSES SOCIAIS
Os interesses sociais presentes nos terrenos de marinha são diversos, para melhor
compreensão de sua importância é efetuado um breve histórico da evolução dos direitos
fundamentais a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
3.4.1 Direitos Fundamentais
Para análise dos interesses sociais é fundamental o resgate da importância da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Resolução nº 217 A (III) da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 e assinada pelo Brasil em
10 de dezembro de 1948, onde está assegurado que:
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua
família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao
alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e
tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na
velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias
independentes da sua vontade.
223
PROCÓPIO, Paulo. Areia Branca tem um único dono: a União. Tribuna do Norte. [on-line]. Disponível
em: <http://www.tribunadonorte.com.br/anteriores/990926/cid1.html>. Acesso em: 2 mar. 2004.
83
A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as
crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social
(Artigo 25).224
Pelo texto se verifica a inter-relação existente dos diversos direitos fundamentais. A
declaração dos Direitos do Homem, enquanto instrumento de defesa da dignidade humana
continuou com pouca eficácia e efetividade. Visando buscar maior efetividade esta foi
desdobrada em dois pactos: pacto internacional dos direitos civis e políticos, e pacto
internacional dos direitos econômicos sociais.
Como o mundo encontrava-se polarizado entre o comunismo e o capitalismo, houve uma
maior adesão ao pacto internacional dos direitos civis por parte dos estados capitalistas e
pacto internacional de direitos econômicos sociais por países menos afetos ao respeito das
liberdades individuais que privilegiavam ideais socialistas. No Brasil estes dois pactos
somente foram ratificados em 24 de janeiro de 1992, a partir da abertura democrática.
O Artigo 11 do pacto internacional dos direitos econômicos e sociais declara e determina:
Artigo 11 – 1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda
pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à
alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua
de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medida apropriadas para
assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância
essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.225
Com o Pacto de San José da Costa Rica, nome pelo qual é conhecida a Convenção Americana
sobre os Direitos Humanos226, a propriedade privada pode ser subordinada ao uso e gozo de
interesse social e a determinação de que “[...] tanto a usura como qualquer forma de
exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas pela lei”.227 Ou seja, o exercício do
direito de propriedade se submete a uma finalidade pública. A União como grande detentora
de áreas de terras em nosso país deve buscar a real função social dos terrenos de marinha.
224
DECLARAÇÃO Universal dos Direitos do Homem.
Disponível em: <http://www.lexilogos.com/
declaration/portugais.htm>. Acesso em: 15 maio 2004.
225
PACTO internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais: Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992.
Disponível em: < http://www.consulado.org.br/DH/ddh_bib_inter_pactosocial.htm>. Acesso em: 15 maio de
2004.
226
Foi adotado e aberto à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em
San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992
(CONSULADO DA CIDADANIA. Convenção americana sobre os direitos humanos. Disponível em:
<http://www.consulado.org.br/DH/inter_dirhumanos.htm> Acesso em: 15 maio 2004).
227
CONSULADO DA CIDADANIA, 2004.
84
Dentre uma de suas funções está a de viabilizar o acesso à moradia digna pela população
carente.
Embora já tivesse sido assegurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito à
moradia nunca foi respeitado. O direito de propriedade individual suplanta o interesse coletivo
e causa a falta de acesso à garantia fundamental.
Visando criar limites à propriedade individual, assim como estimular a intervenção do Estado
na questão fundiária, a Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, fixou
na Declaração de Vancouver, de 1976, diversos princípios dentre os quais destaca-se;
Princípio Geral n° 10: A terra é um dos elementos fundamentais dos assentamentos
humanos. Todo o Estado tem direito de tomar as medidas necessárias para manter
sob fiscalização pública o uso, a propriedade, a disposição e a reserva de terras.
Todo Estado tem direito a planejar e administrar a utilização do solo que é um dos
seus recursos mais importantes, de maneira que o crescimento dos centros
populacionais, tanto urbanos como rurais, se baseiem num plano amplo de utilização
do solo. Essas medidas devem assegurar a realização dos objetivos básicos da
reforma social e econômica para cada Nação, de conformidade com o seu sistema e
suas leis de propriedade da terra.228
Em 1992, na Agenda 21 adotada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em seu capítulo 7, “[...] estima que
pelo menos um bilhão de pessoas não têm acesso a uma habitação sadia e segura”229 e dispõe:
[...] item 6: o acesso a uma habitação sadia e segura é essencial para o bem-estar
econômico, social, psicológico e físico da pessoa humana e deve ser parte
fundamental das ações nacional e internacional [...] o direito à moradia é um direito
humano básico que está inserido na Declaração Universal de Direitos Humanos e no
Pacto Internacional de Direito Econômicos, Sociais e Culturais.230
Na Conferência de Istambul, também chamada de “cúpula das cidades” ou Habitat II231, em
1996, mais uma vez este compromisso foi ressaltado:
[...] 39. Reafirmamos nuestra determinación de garantizar progresivamente el
ejercicio pleno del derecho a una vivienda adecuada, según lo previsto en los
instrumentos internacionales. A ese respecto, reconocemos que los gobiernos tienen
la obligación de lograr que la población pueda conseguir una vivienda y de proteger
y mejorar las viviendas y los vecindarios. Nos comprometemos a alcanzar el
objetivo de mejorar las condiciones de vida y de trabajo de forma equitativa y
sostenible, de manera que todos tengan una vivienda adecuada que sea salubre,
228
229
230
231
LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 312.
SAULE JR., Nelson (Coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito das cidades sustentáveis. São
Paulo: Instituto Polis ed. Max Limonad, 1999. p. 53.
SAULE JR, 1999, p. 53.
CENTRO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS ASENTAMIENTOS HUMANOS, 2002.
85
segura, accesible y asequible y que comprenda servicios, instalaciones y
comodidades básicos, que nadie sea objeto de discriminación en materia de vivienda
y seguridad jurídica de la tenencia. Cumpliremos y promoveremos ese objetivo de
modo plenamente acorde con las normas de derechos humanos.232
Sendo o dever do Estado233 “[...] proteger e melhorar as moradias e vizinhanças”, assim como
“[...] melhorar as condições de vida e de trabalho numa base sustentável e eqüitativa” de
forma que todos possam ter acesso a uma moradia digna, nos terrenos de marinha ocupados,
caso houvesse vontade política, esta ação pública seria facilitada já que a titularidade da
propriedade é da União, bastaria a implementação de programas de regularização fundiária
sustentáveis, que concretizassem o acesso ao direito a habitações adequadas.
O conceito de “adequada habitação” foi mais bem explicitado no Parágrafo 60 da Agenda
Habitat II234, conforme transcrição abaixo:
[...] 60. Una vivienda adecuada significa algo más que tener un techo bajo el
que guarecerse. Significa también disponer de un lugar privado, espacio suficiente,
accesibilidad física, seguridad adecuada, seguridad de tenencia, estabilidad y
durabilidad estructurales, iluminación, calefacción y ventilación suficientes, una
infraestructura básica adecuada que incluya servicios de abastecimiento de agua,
saneamiento y eliminación de desechos, factores apropiados de calidad del medio
ambiente y relacionados con la salud, y un emplazamiento adecuado y con acceso al
trabajo y a los servicios básicos, todo ello a un costo razonable.235
A questão da moradia não cabe nos estreitos limites dos aspectos físicos, urbanísticos e
jurídicos. A moradia digna é muito mais que uma construção de um espaço físico de abrigo. A
moradia digna implica a construção de um espaço psicológico e humano.
Tais questões não costumam ser bem resolvidas porque há falta de uniformização de
conceitos. Por exemplo, a regularização fundiária, que é o nome dado aos programas de
232
“Reafirmamos nossa determinação de garantir progressivamente o exercício pleno ao direito a uma adequada
habitação. Reconhecemos que os governos têm a obrigação de viabilizar o acesso à moradia digna, assim
como à realização de melhorias habitacionais. Comprometemo-nos a alcançar o objetivo de melhorar as
condições de vida e de trabalho de forma equitativa e sustentável, de maneira que todos tenham uma
adequada habitação que seja salubre, segura, acessível e disponível, que possua serviços, instalações e
comodidades básicos e que ninguém seja discriminado no direito à moradia e à segurança jurídica da posse.
Cumpriremos e promoveremos esse objetivo de pleno acordo com as normas de direitos humanos” (Tradução
nossa). (CONFERÊNCIA DE ASSENTAMENTOS HUMANOS - HABITAT II, 2., 1993.
233
CONFERÊNCIA DE ASSENTAMENTOS HUMANOS - HABITAT II, 2., 1993.
234
CENTRO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS ASENTAMIENTOS HUMANOS, 2002.
235
Adequada habitação significa algo mais que ter um teto para se abrigar, significa também dispor de um local
privado, com espaço suficiente, acessível, seguro tanto no que tange à estabilidade e durabilidade estrutural,
quanto à segurança da posse, espaço este que tenha iluminação, aquecimento e ventilação suficientes;
adequada infra-estrutura básica que inclua o fornecimento de serviços básicos como água, luz e saneamento
ambiental adequado; que seja adequadamente localizada para viabilizar o acesso ao trabalho e serviços
básicos e tenha um custo acessível (Tradução nossa). (CONFERÊNCIA DE ASSENTAMENTOS
HUMANOS - HABITAT II, 2., 1993.
86
intervenção pública em áreas de assentamento subumanos, comumente encontrados nos
grandes centros urbanos, é um termo que possui uma compreensão diversa.
O que é regularização fundiária? A simples regularização jurídica é regularização fundiária?
A regularização jurídica associada à regularização urbanística é regularização fundiária?
Muitos pensam que regularização fundiária consiste em conferir o título de propriedade
registrado no RGI aos moradores de favelas, porém o usucapião coletivo permite que toda a
favela se converta em um enorme condomínio de pobreza. Neste caso ocorre uma propriedade
juridicamente regularizada, sem que se tenha qualquer benefício concreto em favor da
dignidade humana.
Outros mais preocupados com as ações físicas defendem que a regularização fundiária é um
processo que engloba ações de urbanização, de conformidade com as normas ambientais, e
ações de regularização jurídica. Será que regularização fundiária é apenas isto?
Fernandes236, em artigo intitulado “A regularização de favelas no Brasil: problemas e
perspectivas”, detecta que, embora
[...] algum progresso já tenha sido alcançado no sentido da legalização das áreas
invadidas, ainda há muito a ser feito antes de que tais experiências de legalização
possam ser consideradas bem sucedidas tanto em termos numéricos quanto
qualitativos, já que muitos tem sido os obstáculos existentes à plena aplicação das
leis, políticas e programas existentes. Quanto à questão fundamental de se tais
políticas e programas podem – ou não levar a condições efetivas de integração da
população favelada na cidade oficial, tal questão continua sem resposta.
Diante do verdadeiro objetivo da regularização fundiária que é proporcionar uma moradia
digna, Alfonsin237, precursora do entendimento da interdisciplinaridade da regularização
fundiária, conceitua que:
Regularização fundiária é o processo de intervenção pública, sob os aspectos
jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações
moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de
habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do
assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população
beneficiária.
236
237
SAULE JR., 1999, p. 137.
ALFONSIN, Betânia de Moraes (Coord.). Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização
fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas; IPPUR; FASE, 1997.
282p.
87
Este conceito precisa apenas de alguns ajustes no que tange à consideração da acessoriedade
do resgate da cidadania, quando este é o principal motivo, desta forma propõe-se um mais
abrangente: regularização fundiária é um conjunto de projetos e ações integradas que
objetivam a promoção da regularização jurídica, urbanística, ambiental e social, visando ao
desenvolvimento urbano e humano, em assentamentos irregulares, de forma includente e
sustentável,
Neste conceito o desenvolvimento humano sustentável é concebido como:
[...] o processo de desenvolvimento de pessoa humana buscando o aumento de suas
capacidades, potencialidades, oportunidades e direitos de escolha, de forma
eqüitativa, mediante participação popular e igualdade de acesso às oportunidades da
cidade para as presentes e futuras gerações.238
Desenvolvimento urbano sustentável se entende como um:
[...] processo de desenvolvimento do espaço urbano que objetiva por meio do
ordenamento e do controle assegurar harmônica distribuição espacial da população e
das atividades econômicas do Município e do território sob sua influência,
garantindo a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços
públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características
locais, garantindo assim a qualidade da vida urbana para as presentes e futuras
gerações.239
Para se proporcionar uma moradia digna é necessário muito mais que a execução de obras
físicas de urbanização, melhorias habitacionais ou a entrega pura a simples de títulos de
propriedade. A causa de todos os problemas habitacionais está na falta de acesso à renda, está
na pobreza que não viabiliza o acesso à moradia. A pobreza não se resolve apenas com ações
visíveis, pois visível é a exteriorização da pobreza, a verdadeira causa da pobreza não se vê.
Não olvidando que a segurança do direito à moradia é garantia fundamental, entende-se que
sem combate às causas da pobreza não há como se falar em direito à moradia digna
assegurado. Como se pode presumir assegurado um “direito” que traz para o beneficiário os
encargos financeiros da legalidade, como são as contas de água, luz, esgoto e IPTU, sem que
tenha viabilizado a melhoria das condições de renda da população? Que direito é este que se
concede sem que se promovam condições mínimas de sua manutenção?
238
239
Art. 4.°, VI. Projeto de Lei que estabelece a política habitacional do Município da Serra e dá outras
providências (LOUREIRO, José Carlos Neves; GAZOLA, Patrícia Marques; PÁDUA, Rogério Pedrinha et
al. Política Habitacional do Município da Serra e Programa de Regularização Fundiária. Subprograma
Desenvolvimento Institucional. [Serra, 2003]. p. 6.
LOUREIRO, [2003].
88
Assim, embora a grande maioria das pessoas pense que programas habitacionais dizem
respeito basicamente a questões de engenharia, de tijolos cimento e telhas, os programas
habitacionais verdadeiramente adequados às necessidades sociais entendem que, quando se
cuida do acesso ao direito à moradia digna, deve-se sempre levar em consideração as
variáveis econômicas, sociais e culturais dos beneficiários, para atendê-las de forma
equilibrada e sustentável.
Desta forma o conceito de regularização fundiária que engloba ações de promoção humana e
urbana é o mais adequado, porque somente por meio da primeira se viabilizará a promoção de
regularização fundiária urbana sustentável.
As ações sociais, em que pese tenham menos “visibilidade física” são fundamentais para o
enfrentamento da questão da moradia digna. Ou os programas que visam assegurar o direito à
moradia à população de baixa renda consegue construir na comunidade um sentimento de
apropriação de seus espaços e direitos (mediante projetos sociais estruturantes com eficazes
mecanismos de participação popular) ou estarão fadados a ver a reprodução das práticas
relatadas por Rolnik240, em que os beneficiários “vendem” seu “direito” e invadem novo local.
Muitos alegariam que tais práticas seriam contidas mediante vedação legal e efetivo controle
do cadastro de beneficiários. Pergunta-se: a pessoa carente em vários sentidos, que “vendeu”
sua casinha por um punhado de dinheiro e foi efetuar nova invasão, deixou de ter direito a
uma vida digna? Como auxiliar tais pessoas? Sem programas de promoção humana e
mobilização social, tem-se a própria pobreza e as ações assistencialistas do Estado como
indutoras de tal comportamento. A “expulsão branca” beneficia apenas o mercado formal de
terras, prejudica a população excluída e o próprio Estado. O movimento social é mais forte
que fórmulas jurídicas autoritárias, por mais “bem intencionadas” que sejam.
Não basta a reconstrução do visível, faz-se necessária a reconstrução do invisível, a
reconstrução da auto-estima, do sentimento de pertencimento à comunidade, da consciência
política. É necessário que a comunidade efetivamente se aproprie conscientemente de direitos
inerentes à cidadania.
240
ROLNIK, Raquel. Regulação urbanística e exclusão territorial. Revista Pólis, n. 32. Disponível em:
<http://www.polis.org.br/publicacoes/revistapolis.html>. Acesso em: 24 abr. 2004.
89
É necessária a construção de cidades mais justas e includentes, cidades que cumpram com sua
função social. O Estatuto da Cidade, trazendo instrumentos para a esta missão, fixa de forma
inequívoca as diretrizes axiológicas que devem ser observadas na elaboração e implantação
das políticas públicas. Dentre as diretrizes fixadas pelo Art. 2º do Estatuto da Cidade241
destacam-se:
a) planejamento urbano, atendendo às necessidades da população, deve visar à garantia do
direito à cidade sustentável, direito este entendido como “[...] direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.”242 Disto decorrem
as seguintes diretrizes que deverão nortear a elaboração de cada projeto setorial do plano
de intervenção integrado;
b) direito à terra urbana, onde se insere o direito à simplificação da legislação de
parcelamento, uso do solo e das normas edilícias com fim a permitir a redução dos custos
e aumento de oferta dos lotes e unidades habitacionais; à regularização urbanística de
áreas ocupadas por população de baixa renda (mediante o restabelecimento de normas
especiais de urbanização, uso e ocupação de solo e edificação e consideradas a situação
socioeconômica da população e normas ambientais); à promoção da regularização das
ocupações e viabilização da titulação dos lotes;
c) direito à moradia por meio da promoção de ações que viabilizem o acesso à moradia
segura com realização de obras físicas de melhorias habitacionais; intervenção em áreas
de risco; remoção de áreas não passíveis de eliminação do risco para áreas no entorno,
utilização de instrumento de utilização compulsória de imóvel urbano, buscando a
promoção humana a partir da moradia digna e segura;
d) direito ao meio ambiente equilibrado que implica direito ao saneamento ambiental243;
proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio
cultural, histórico, artístico, paisagístico; promoção de melhorias nas condições de
salubridade e habitabilidade; implantação de projetos de educação ambiental que
241
242
243
BRASIL. Poder Legislativo. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 11 jul. 2001e.
Art. 2°, 1. (BRASIL, 2001e).
Art. 2º, I. 2º (BRASIL, 2001e).
90
possibilitem a transformação da comunidade em agentes de preservação e recuperação de
áreas ambientais e o direito de reassentamento às famílias residentes em áreas de interesse
ambiental para áreas próximas;
e) direito à infra-estrutura urbana, que inclui o direito à oferta e acesso aos equipamentos
urbanos e comunitários, transportes e serviços públicos e que estes sejam adequados aos
interesses e necessidades da população e às características locais, de forma a proporcionar,
por meio de melhorias das condições de circulação viária, a implantação de serviços de
transporte coletivo, coleta de lixo assim como o acesso a ambulâncias e veículos da
polícia;
f) direito ao trabalho por meio da promoção da melhoria das condições socioeconômicas da
população, por meio de mecanismos integrados que permitam a capacitação profissional
visando qualificação e a absorção da mão de obra pelo mercado de trabalho formal e
acesso a financiamentos e treinamentos que possibilitem a geração de empreendedores
individuais ou coletivos;
g) direito ao lazer pela preservação e criação de áreas públicas de convivência e lazer, assim
como pelo estímulo e promoção de projetos culturais e esportivos;
h) garantia dos direitos acima às futuras gerações mediante compromisso com o atingimento
dos objetivos ao longo do tempo com a criação de novas perspectivas e hábitos que
contribuam para a melhoria e manutenção de bons índices sociais e de segurança pública;
i) integração e interdisciplinaridade no planejamento e execução das políticas públicas
necessárias à inclusão social.
Assim, a partir do Estatuto da Cidade, tem-se, como diretrizes legais, o enfrentamento
integrado e sustentável dos problemas urbanos, por meio de políticas públicas participativas,
multidisciplinares e integradas.
Este pensamento se coaduna com a moderna doutrina dos direitos humanos. Não há que se
falar em direitos de primeira, segunda, terceira ou quarta geração, nem que separá-los em
categorias. Os direitos humanos são inter-relacionados e interdependentes, um não subsiste
91
sem o outro. Conforme bem ressalta Trindade ao prefaciar o livro “Os Direitos Humanos e
Econômicos, Sociais e Culturais” de Lima Jr244:
Com efeito, de que vale o direito à vida sem o provimento de condições mínimas de
uma existência digna, se não de sobrevivência (alimentação, moradia, vestuário)? De
que vale o direito à liberdade de locomoção sem o direito à moradia adequada? De
que vale o direito à liberdade de expressão sem o acesso à instrução e educação
básica? De que valem os direitos políticos sem o direito ao trabalho? De que vale o
direito ao trabalho sem um salário justo, capaz de atender às necessidades humanas
básicas? De que vale o direito à liberdade de associação sem o direito à saúde? De
que vale o direito à igualdade perante a lei sem as garantias do devido processo
legal? E os exemplos se multiplicam. Daí a importância da visão holística ou
integral dos direitos humanos, tomados todos conjuntamente.
Considerando que a União não possui mecanismos eficazes de fiscalização controle e coerção
das ocupações das áreas de marinha, assim como, que o crescimento das cidades brasileiras se
deu de forma absurdamente rápida, “[...] em 50 anos nos transformamos de um país rural em
um país eminentemente urbano, onde 82% da população mora em cidades”245, diante da falta
de acesso à terra urbana regular por parte de inúmeros migrantes (pela falta de acesso a renda
digna) foram ocupadas inúmeras áreas periféricas assim como as áreas impróprias à ocupação
humana que são as áreas de risco e áreas ambientais.
3.4.1.1 Direitos fundamentais nos terrenos de marinha
As ocupações ocorridas em terrenos de marinha, na sua grande maioria são em áreas
ambientais. Antes da edição da Lei n.º 9.636/98, a União cedia gratuitamente estas áreas aos
estados e municípios para fins de urbanização. Muitos programas e projetos de regularização
fundiária iniciaram-se a partir destas doações. Embora adequadas sempre deixavam os
municípios na condição de pedintes do “favor real”, para que pudessem cumprir com seu
dever institucional.
244
245
TRINDADE, Antônio Cançado, Prefácio. In: LIMA JR., Jaime Benvenuto. Os direitos humanos
econômicos sociais e culturais.
Disponível em: <http://www.consulado.org.br/A_indivisibilidade_
Exigibilidade_prefacio.htm>. Acesso em: 30 jun. 2004.
OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras. Estatuto da cidade: para compreender... Rio de Janeiro: IBAM/Duma,
2001. p. 1.
92
A lei atual, Lei n.º 9.636/98246, abre um leque de possibilidades para as ações de regularização
fundiária em áreas da União: a realização de convênios (para fins de regularização fundiária Art. 1º- e fiscalização e conservação dos terrenos de marinha - art. 11) e doação (Art. 31§3º c/c
Art. 26).
No artigo 1º está prevista a possibilidade de convênio com estados e municípios para “[...]
identificar, demarcar, cadastrar, registrar, fiscalizar e regularizar as ocupações e promover a
utilização ordenada dos bens imóveis de Domínio da União”, mas no artigo 4º que está
inserido da seção específica sobre a celebração de convênios e contratos já existe um novo
legitimado não previsto no Art. 1º - a iniciativa privada. Esta nos termos da lei poderá ser
contratada para a elaboração e execução de projetos urbanísticos e “[...] quando os serviços
contratados envolverem, também, a cobrança e o recebimento das receitas deles decorrentes,
poderá ser admitida a dedução prévia, pela contratada, da participação acordada”. Ou seja a
possibilidade de convênios com municípios para a realização de projetos de regularização
fundiária poderá ser estendida à iniciativa privada, que será remunerada a partir das receitas
geradas com a alienação destes imóveis aos ocupantes.
A celebração de convênios com particulares, tratando a regularização fundiária (em áreas de
baixa renda, inclusive) como oportunidade de ganhos econômicos é um contra-senso. A
urbanização das áreas ocupadas por seres humanos é um direito inerente a condição de
cidadania e deve ser subsidiado pelo Estado.
Todos têm direito a uma moradia digna, segura e salubre, que possua vias de acesso que
permitam a circulação de viaturas policiais, ambulâncias, carros de gás e de lixo, que possua
água tratada, luz e esgoto. Sob este enfoque, a União transfere ao particular o encargo da
implantação de todos estes equipamentos públicos prometendo-lhe, como contrapartida, o
recebimento de valores decorrentes da venda dos imóveis regularizados.
Ainda que seja assegurado aos moradores a preferência na aquisição em igualdades de
condições com o vencedor, como assegurar que o morador terá renda suficiente para
“adquirir” a moradia? Como assegurar a venda prioritária na modalidade de leilão onde a lei
não fixa nenhum critério excludente de candidatos que possam possuir uma renda superior aos
“beneficiários” do projeto de caráter social? Como realizar estes leilões de modo a evitar que
246
BRASIL, 1998b.
93
o mercado imobiliário os “invada” inflacionando os preços das moradias populares (em face à
localização privilegiada destes terrenos), arrebatando estas áreas da cidade, inviabilizando o
atendimento das necessidades sociais e de planejamento urbano?
Mesmo sendo dever do Estado a concretização dos direitos fundamentais de forma integrada,
na pesquisa realizada na Internet foi identificada negativa de direitos fundamentais tendo por
fundamento ocupação de terrenos de marinha.247
Por estarem historicamente residindo em terrenos de marinha, a comunidade de Barra do Rio
Grande foi abandonada pelo Estado, privilegiando o interesse econômico e fiscal em
detrimento do interesse social e de promoção da dignidade humana que consiste em um dos
fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito.
O local onde o Estado nega os mais comezinhos direitos de cidadania se chama - Barra de Rio
Grande. Esta cidade se localiza onde a lagoa dos Patos se liga ao oceano, e foi ocupada pelos
portugueses, desde 1737. Com uma população de cerca de 3.000 moradores, esta comunidade
possui graves problemas de habitação, saneamento, saúde, educação, emprego e renda.248
O projeto social protagonismo juvenil, aponta a causa principal do desamparo desta
comunidade costeira histórica, a discriminação dos moradores em decorrência de residirem
em terrenos de marinha, in verbis:
A atual comunidade que habita a região não é constituída, portanto, por ‘invasores’
dos terrenos de marinha, mas por remanescentes do processo de colonização. Nos
levantamentos que recuperaram a história oral da comunidade, constata-se que os
atuais moradores descendem de sucessivas gerações vivendo na Barra. A
comunidade pode, assim, ser classificada como uma população tradicional, que vive
basicamente da pesca. Entretanto, a comunidade da Barra, por habitar um terreno da
União, vem, ao longo do tempo, sofrendo com a falta de investimentos de infraestrutura, o que tem resultado na deterioração dos índices de condições de vida da
população.249
As precárias condições de vida da população se expressam: na tipologia das casas (53% são
de madeira) na falta de infra-estrutura (falta de calçamento, inexistência de tratamento do
esgoto lançado diretamente das fossas sépticas no canal) e principalmente na faixa de renda
247
248
249
FALEIRO JR., Clóvis. (Coord.). Projeto conhecendo a Barra, Rio Grande. Disponível em:
<www.protagonismojuvenil.org.br/Projetos/Barra>. Acesso em: 4 mar. 2003.
FALEIRO JR., 2003.
FALEIRO JR., 2003.
94
(“69% recebem até dois salários mínimos”) e na omissão dolosa da União no cumprimento de
seu dever constitucional se expressa no dado coletado pelo projeto de que “[...] 93% não
recebem Bolsa-Escola, Renda Mínima, Seguro Desemprego ou outro Benefício Social”.250
3.4.2 Inexatidão da linha de premar média de 1831
Nas áreas de marinha o principal interesse coletivo difuso que está sendo ameaçado é a
segurança jurídica das moradias, que tem atingido toda a zona costeira sob domínio da União,
a exemplo da reportagem publicada no Jornal Tribuna do Norte – CE, onde se verifica, dentre
outros problemas causados a falta de reconhecimento da propriedade registrada no RGI:
Ninguém é proprietário dos terrenos onde os imóveis estão construídos (tendo
direito apenas as benfeitorias, podendo a União retomar as áreas quando do seu
interesse) e estes estão impedidos de obter escritura pública dos imóveis que
habitam e até mesmo transferir a propriedade para terceiros.251
Sendo a totalidade da cidade de propriedade da União, não tendo a União conferido nenhum
aforamento, temos uma cidade inteira sem segurança jurídica da moradia.
Outro fator de insegurança jurídica decorre do recadastramento dos terrenos de marinha e da
fixação da linha de preamar média de 1831. Gasparini252 destaca que, embora seja da
competência exclusiva da União a delimitação da linha de preamar médio de 1831 e mesmo a
Lei n.º 9.760/46 ter mais de 50 anos de vigência, “[...] a Secretaria do Patrimônio da União –
SPU não demarcou, como lhe cabia, em razão do disposto no art. 9º desse diploma legal,
todos os terrenos de marinha”.
O Decreto-Lei n.º 9.760253, de 5 de setembro de 1946, determinou à SPU a discriminação das
terras da União “[...] a fim de descrevê-las, medi-las e estremá-las do domínio particular”. Os
trabalhos serão realizados por “engenheiro ou agrimensor”.254
250
FALEIRO JR., 2003.
PROCÓPIO, Paulo. Areia Branca tem um único dono: a União. Tribuna do Norte [on-line]. Disponível em:
<http://www.tribunadonorte.com.br/anteriores/990926/cid1.html>. Acesso em: 2 mar. 2004.
252
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 740.
253
BRASIL, 2002d, p.39.
254
BRASIL, 2002d, p. 42.
251
95
Este processo seria efetuado em duas fases, uma administrativa ou amigável e outra judicial.
Na discriminação administrativa os interessados deveriam ser convocados para apresentarem
“[...] seus títulos, documentos e informações que lhes possam interessar de conformidade com
o Art. 23 do Decreto-Lei n.° 9.760/46.” Nesta demarcação, o agrimensor
[...] acompanhado de tantos auxiliares quanto necessários, procederá aos trabalhos
geodésicos e topográficos de levantamento da planta geral das terras, sua situação
quanto à divisão administrativa e judiciária do Estado, Distrito ou Território, sua
discriminação, medição e demarcação, separando-as da Fazenda Nacional das dos
particulares (Art. 26).255
Em caso de discordância da instância administrativa, nos termos deste decreto lei, em parte
que foi revogada pela Lei n.º 6.383, de 7 de dezembro de 1976, o particular teria direito à
“[...] discriminação perante o Juízo competente, de acordo com a organização judiciária” (art.
32 e 33). E se “[...] nenhum interessado contestar o pedido, o juiz julgará de plano procedente
a ação” (art. 45) do Decreto-Lei n.º 9.760/46.
Desde que esta linha passou a ser marco necessário para a fixação dos limites dos terrenos de
marinha, distinguindo a propriedade pública da propriedade privada, existem discussões sobre
sua verdadeira localização.
Gasparini256 denuncia a imprecisão técnica na delimitação da linha de preamar média de
1981, quase dois séculos depois;
[...] para determinar a linha que separa as marinhas das terras particulares.
Substituem os peritos a linha de preamar média de 1831, pela linha do jundú [sic],
caracterizada pelo início de uma vegetação (jundú), sempre existente além das praias
e para o interior das terras que com elas confinam.
Este autor entende que este critério não é válido, porquanto não atende às exigências da
norma.
O critério, ao nosso ver, embora resolva na prática os problemas de demarcação da
faixa de trinta e três metros, ressente-se de legalidade. A aceitação pelo judiciário e
pela SPU, não o torna legal. Por ele, não se atende ao prescrito no art. 2º do DecretoLei n.º 9.760, de 1946, que exige sejam os trinta e três metros contados da linha da
preamar média de 1831, e desconhece-se, por conseguinte, que os requisitos legais
para a sua determinação são os registrados no art. 10. Estes são os únicos válidos.257
255
BRASIL, 1946.
GASPARINI, 2003, p. 740.
257
GASPARINI, 2003, p. 740.
256
96
A utilização indevida deste critério também é denunciada na Internet sobre a construção de
grande empreendimento no Santinho258, em área costeira onde inexistiam levantamentos
técnicos mensurando os terrenos de marinha. Nesta situação informa a reportagem que se
considerou o início da linha de preamar como a linha do início da vegetação.
Mesmo se tivesse a União mapas precisos da costa datados de 1831, ainda sim não seria
possível apenas com base em tais mapas fixar corretamente a linha de preamar média.
Somente com o desenvolvimento da tecnologia da computação e dos conhecimentos
geodésicos foi possível delimitar com segurança científica a linha de preamar média de 1831.
O site do Instituto dos Registradores de Imóveis do Brasil (IRIB) noticia a demarcação da
linha de preamar média de 1831 segundo rigorosos padrões científicos.
Neste estudo científico foi denunciada dificuldade histórica de se fixar cientificamente a
verdadeira linha de preamar médio de 1831:
A última tentativa para aferição deu-se no ano 1907, quando no Clube de
Engenheiros do Rio de Janeiro, se reuniu um grupo de profissionais de diversas
áreas para discutir o tema – mas o evento terminou com a conclusão que a exata
definição da LPM1831 não tem solução.259
Neste estudo, pesquisa de doutorado orientada pelo Prof. Dr. Ing. Jürgen Philips elaborada
pelo Professor Lima260 restou demonstrado que a linha de preamar média fixada pelo
Patrimônio da União está há muitos metros de distância da verdadeira linha de preamar
média, aferida segundos critérios que levam em consideração o clima, os ventos, as estações
do ano, o movimento dos planetas, da terra, da lua, a modificação do eixo da terra, assim
como o aumento dos níveis dos oceanos.
No site da Universidade Federal de Santa Catarina, encontra-se o resumo da tese de
doutorado, onde é possível identificar que este estudo foi efetuado na:
258
REPORTAGENS..., 2004.
PHILIPS, Jürgen. Terrenos de marinha – o problema da linha de preamar média de 1831. IRIB Boletim
Eletrônico, n. 832, 9 set. 2003. Disponível em: <http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel822b.asp>.
Acesso em: 2 mar. 2004.
260
PHILIPS, 2004.
259
97
Praia da Enseada, em São Francisco do Sul, no Estado de Santa Catarina, onde foi
constatada uma diferença da ordem de 100 metros a mais para o lado da terra
na localização da LPM/1831 pelos critérios estabelecidos pela SPU, atingindo toda
a avenida Beira Mar e mais a metade de todas as quadras.261(grifo nosso)
Neste estudo claramente é identificada a imprecisão técnica das demarcações efetuadas pela SPU:
Os critérios adotados pelo órgão gestor na demarcação destes bens dominicais ao
longo de toda a sua história, baseados em conceitos que levam a uma LPM/1831
presumida, pela falta de adoção de procedimentos técnicos científicos que
possibilitam suas demarcações com exatidão e precisão, ferem frontalmente a
definição contida na legislação em vigor há quase dois séculos, ocasionando invasão
nas propriedades alodiais com as quais se limitam.262
O aumento no nível dos oceanos, além de ser matéria amplamente divulgada nos órgãos de
comunicação, como conseqüência do efeito estufa263, é identificado tecnicamente no estudo
efetuado pelo Professor Mesquita sobre “Marés, Circulação e Nível do Mar na Costa Sudeste
do Brasil”.264 Este estudo científico aponta que as terras do continente estão submergindo
cerca de 50 cm por século, uma média de 4mm por ano.265
Mesquita, Blizkow, França, Trabanco, Corrêa e Quandt, em estudo similar intitulado “Nível
relativo do Mar de 1831 em Barra do Una declara que:
[...] o aumento da temperatura do ar [...] aqueceu os pólos, produzindo o degelo
polar e consequentemente aumento do Nível Relativo do Mar [...] é bastante
provável que o nível Relativo do Mar, não só da Cananéia, mas ao longo de toda a
costa brasileira esteja aumentando à razão de 0, 41cm/ano, ou 40cm/século.266
E conclui que o marco legal para a fixação dos terrenos de marinha tido como imóvel é
móvel, in verbis:
O legislador de 1946 ao se basear no nível médio de 1831, como marco geodésico
para definição e determinação dos Terrenos de Marinha, não levou em conta o
conjunto de conhecimentos que foi incorporado pela ciência desde 1822 a 1831 a
1946 até os dias presentes de 2001, que vão desde o fenômeno das glaciações, ao
aquecimento global, entre outros, os quais tornam móveis os antes tidos como
imóveis da União, de que trata a Lei n 9760.267
261
LIMA, 2004.
LIMA, 2004.
263
Aumento da temperatura da terra.
264
MESQUITA, Afrânio Rubem de. Marés, circulação e nível do mar na costa sudeste do Brasil, IOUSP,
dez. 1997. Documento preparado para a FUNDESPA (Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas).
Disponível em: <http://www.mares.io.usp.br/sudeste/sudeste.html>. Acesso em: 2 mar. 2004.
265
Um percentual de 5% para cada um dos 5 anos, somados ao 5% relativo ao ano do exercício.
266
MESQUITA, Afrânio Rubem de. et al. Nível relativo do mar em 1831 em Barra do Una. Instituto
Oceanográfico da USP – São Paulo. Disponível em: < http://www.mares.io.usp.br/aagn/51/una/una.htm>.
Acesso em: 24 maio 2004.
267
MESQUITA et al., 2004.
262
98
O patrimônio da União não utiliza estes parâmetros e desconsidera o aumento dos níveis dos
oceanos. Ou seja, com o aumento no nível dos oceanos somando-se ao fato da união utilizar
mapas ou “linha da vegetação” para fixar a linha de preamar média, temos por certo que a linha de
preamar de 1831 certamente não é a que está sendo demarcada pela União e que no estudo
realizado por Lima268, esta foi encontrada há 100 metros de distância da verdadeira linha de 1831.
Além da fixação imprecisa cientificamente, ocorre ainda o problema financeiro para os
moradores que são atingidos por esta medição. Com a demarcação eles são considerados
ocupantes de terrenos de marinha, e como a ocupação é devida mesmo antes de se saber onde
estão os terrenos de marinha os cadastrados de plano passam a dever de plano 30% do valor
de seu imóvel para a União e a partir desta data sempre deverão pagar, além de todos os
encargos que todos os cidadãos pagam ao governo, taxa de ocupação, anual, no valor de 5%,
caso queiram transferir seus “direitos”269 de ocupante para terceiros, também deverão recolher
5% de laudêmio.
Em caso de não-pagamento, os moradores estarão sujeito à cobrança judicial, inclusão no
Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (CADIN), execução
fiscal e retomada do imóvel pela União.
A fixação da linha de preamar média em áreas urbanizadas, onde esta nunca tinha sido
efetuada, tem o condão de gerar sérios impactos sociais, que devem ser considerados de forma
diferenciada dos impactos que a fixação dos terrenos de marinha causa em áreas desocupadas
de interesses ambientais.
3.4.3 Insegurança jurídica e social
Outros problemas sociais também são causados em casos de recadastramento, conforme
noticiado no jornal catarinense “A notícia” em reportagem intitulada “[...] a União começa a
cobrar por áreas de marinha”
268
269
LIMA, 2002.
Embora a União não reconheça qualquer direito dos ocupantes, que ocupam imóvel da União a título
precário, cobra os mesmos 5% de laudêmio pagos pelos foreiros que possuem perpetuidade.
99
A Secretaria do Patrimônio da União estima que existam cerca de três milhões de
imóveis, incluindo desde os prédios utilizados pelo governo federal até os milhares
de terrenos de marinha, ao longo da costa atlântica brasileira. A secretaria está
realizando um recadastramento dos imóveis. Pela legislação, quando esses imóveis
estão sendo ocupados por particulares, exige-se que sejam pagos preços fixados em
5% do valor da avaliação de imóveis. Sem o comprovante desses pagamentos, o
ocupante do imóvel está sujeito à cobrança judicial, com a inclusão do nome na lista
de pessoas física-jurídicas devedoras ao Poder Público. ‘A estimativa é de que sejam
três milhões de imóveis, dos quais apenas 500 mil cadastrados. Desses, não se tem
certeza se o cadastro está perfeito em cerca de cem mil’, explicou a secretária da
Administração e Reforma do Estado, Cláudia Costin.270
Com base nas declarações efetuadas na reportagem acima verifica-se o abuso de direito, no
artigo 198 da Lei n.º 9.760/46271 que pretende conferir às imprecisas e desorganizadas
inscrições de ocupações da União, efeito de desconstituir a validade dos registros de imóveis.
A União sequer sabe com exatidão a localização de sua propriedade imóvel (que, sendo
direito real, deveria ser certa e identificável). Se o marco jurídico para a determinação destes
terrenos encontra-se submerso (já que o nível dos oceanos aumentou em cerca de 40 cm por
século), como pretender gerar tanta insegurança jurídica com tão pouca certeza científica?
Na reportagem acima e na publicada no Jornal do Brasil, de 13 de dezembro de 2002, o ônus
de comprovação do pagamento é do contribuinte, já que quando a União perde seus
comprovantes, transfere o ônus de sua ineficiência (que em verdade configura crime de
improbidade por ofensa do Art. 37 da CF) ao cidadão, conforme se notícia na coluna de
Boechat:
A Secretaria do Patrimônio da União perdeu parte de seus arquivos no Rio, do
período 1989 a 1992 – O sumiço dá dor de cabeça para muitos. É que em vez de
pedir aos ocupantes de terrenos de Marinha e outros da União que apresentem
comprovantes dos pagamentos feitos, o órgão está intimando as pessoas a fazer novo
pagamento.272
Além da insegurança causada pela errônea fixação da linha de preamar média de 1831,
incluindo áreas privadas que nunca estiveram inseridas nos limites dos terrenos de marinha, o
interesse público da segurança jurídica do Registro de Imóveis é atingido também em
decorrência de problemas históricos ocorridos entre a União, Estados e Municípios.
O artigo 198 do Decreto-Lei n.º 9.760/46 declara que “A união tem por insubsistentes e nulas
quaisquer pretensões sobre o domínio pleno de terrenos de marinha e seus acrescidos, salvo
270
ASSUNÇÃO, Luis Fernando. União começa a cobrar por áreas de marinha. A notícia, 7 jun. 1999.
Disponível em: <http://an.uol.com.br/1999/jun/07/0ger.htm>. Acesso em: 24 maio 2004.
BRASIL, 1946.
272
AGÊNCIA BRASIL RADIOBRÁS, 2003.
271
100
quando originados em títulos por ele outorgados, na forma do presente Decreto-Lei.” ou seja,
caso a cadeia dominial não se inicie com a alimentação efetuada pela União ou pelo Império
ou pela Coroa portuguesa a União não considera válido o título de registro de imóveis, mesmo
que registrado no RGI. Desta forma tem-se os terrenos de marinha também gerando
insegurança jurídica em face dos registros públicos.
Para compreensão da gravidade do problema faz-se necessário voltar ao início do século
retrasado, época em que competia aos municípios os aforamentos dos terrenos de marinha.
Com o fim do Império as coisas mudaram. Dias após a proclamação da República273, foi
editada a Lei n.º 25, de 30 de dezembro de 1891, que, de forma polêmica, revogou de plano
todos os direitos conferidos aos municípios pela Lei n.º 3.348, de 20 de outubro de 1887, e
incluiu como receita da União os “[...] foros de terrenos de marinhas, exceto do Distrito
Federal, e o produto da renda de posses ou domínios úteis dos terrenos de marinha, nos
termos da legislação em vigor, e os laudêmios não compreendidos os das vendas de terrenos
de marinha no Distrito Federal.” Estas medidas desagradaram tanto os municípios quanto os
estados da Federação.
A titularidade dos terrenos de marinha sempre foi uma questão problemática, nem os estados,
nem os municípios concordavam com o fato de a União ser a titular do domínio dos terrenos
de marinha. A reação histórica dos municípios resta no relato abaixo:
O Município de Santos, todavia, persistia no seu velho propósito de se apoderar das
marinhas. O editorial do Commercio de Santos de 08 de outubro de 1921, disse logo
de início:A questão dos terrenos de marinha continuava a interessar vivamente a
população desta cidade. È sabido que a Prefeitura de Santos vem se empenhado,
fortemente junto ao Sra. Ministra da Fazenda no sentido de ser cedida à Câmara
Municipal daqui a totalidade dos terrenos situados nas praias de José Menino,
Gonzaga e Boqueirão, impedindo, assim, os aforamentos requeridos por muitos
particulares à Delegacia Fiscal.274
Os Estados da Federação não concordaram com a pretensão da União em se manter
proprietária dos terrenos de marinha e acrescidos. Estes embasavam-se na Lei n.º 813275, de
23 de dezembro de 1901, que transferiu aos Estados os próprios nacionais que no regime
anterior eram destinados a serviços que passaram a ser competência dos Estados, assim como
273
274
275
Proclamada em 15 de novembro de 1891.
SANTOS, Rosita de Sousa. Terras de marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 40.
Art. 64. BRASIL. Lei ordinária 813, de 23 de dezembro de 1901. Fixa a receita geral da República dos
estados unidos do Brasil para o exercício de 1902, e dá outras providências. Coleção de Leis do Brasil,
Brasília, v. 1, p. 34. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 16 ago. 2003f.
101
os que anteriormente eram destinados a serviços de competência das antigas províncias, e,
principalmente com base na carta constitucional de 1891, que transferiu aos estados (antigas
províncias) todas as terras devolutas (que, por qualquer outro título não pertencessem a
particulares), reservando à União apenas na “[...] porção de território que for indispensável
para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro
federais”.276
Esta pretensão deu causa à ação Originária n.º 8, conforme nos demonstra o minucioso estudo
de Santos277:
[...] os ânimos estavam, a esta altura, muito acirrados, e as questões propostas - os
terrenos de marinha pertenceriam à União ou aos Estados- ou se ainda, as
terras de marinha seriam, ou não seriam devolutas – ocupavam atenção dos
presidentes dos Estados, dos legisladores do Senado e na Câmara, de toda a
imprensa dos Estados, e de doutrinadores respeitáveis que se dividiram na exegese
do art. 64, da Constituição de 1981.
Esta autora cita como defensor apaixonado da tese em favor dos Estados o Dr. Ferrer:
Esse estudo, intitulado Domínio dos Estados sobre os Terrenos de Marinha, tem
frases candentes e emocionais, como estas – Quando foi insidiosamente aumentando
o patrimônio da Nação em detrimento do público! (pontuação do autor) [...] Bem
sabemos que hoje procura-se sophisticar a Constituição, tirando insidiosamente para
a União tudo o quanto impensadamente, foi dado aos Estados; mas semelhante traça
somente vai prevalecendo, porque elles têm apenas autonomia apparente e não real.
Se fossem verdadeiramente autônomos, já estariam pleiteando seus direitos ante o
poder judiciário [...] A União continua, abusivamente a considerar como seus os
terrenos de marinha para aforá-los.278
Até esta questão ser pacificada muitos estados venderam terrenos de marinha, da mesma
forma que terras devolutas, mediante escrituras públicas que datam do início do século XX.
O Supremo Tribunal Federal decidiu em favor da União em 31 de janeiro de 1905.
Em decorrência destes problemas tivemos entes da federação vendendo a terceiros de boa-fé
terrenos de marinha. Escrituras com quase 100 anos, que embora sejam atos jurídicos válidos
não tem seus efeitos reconhecidos pela União (embora a lei lhes assegure direito de
preferência ao aforamento, desde que o requeresse no prazo assinalado).279
276
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em:
<http://www.ipolitico.com/Constituicao.asp>. Acesso em: 10 jan. 2002c.
277
SANTOS, 1985, p. 23.
278
FERRER, 1902 apud SANTOS, 1985, p. 24.
279
Cf. Art. 105, 1º da Lei 9.760/46 (BRASIL, 1946).
102
Desta forma, caso um imóvel esteja inserido na área considerada pela SPU como sendo área
de marinha, mesmo que tenha uma escritura pública devidamente registrada no RGI, está
sujeito à cobrança da taxa de ocupação e à perda do direito à propriedade, decorrente de posse
de boa-fé titulada há quase um século.
Visando evitar a insegurança social e prejuízo a terceiros de boa-fé foi editado o Decreto-Lei
n.º 5.666280, de 15 de julho de 1943, que, em seu artigo 7º, confirma “[...] as concessões
havidas, até a data da vigência do presente Decreto-Lei, dos terrenos que os Estados ou
Municípios tenham aforado por supô-los de sua propriedade, desde que os efeitos, dentro de
seis meses, regularizem a situação perante o Domínio da União”.281 No caso de “[...] títulos
de propriedade devidamente transcrito no Registro de Imóveis”, o art. 105, 1º) do Decreto Lei
n.° 9.760/46 lhes confere “preferência ao aforamento”. É certo que poucas pessoas
possuidoras de escritura transcrita no RGI, não desconstituída por ação judicial,
voluntariamente procurariam piorar sua situação. Voluntariamente não renunciariam a
condição de proprietários para se converterem em foreiros e ficarem sujeitos a
obrigatoriedade de pagamento de foro anual e laudêmio por ocasião de eventual venda de seu
patrimônio. Atualmente, com mais motivos não o fariam, inclusive porque estudos científicos
apontam no sentido de que a linha fixada pela União está errada.
Os efeitos do registro perduraram até que seja declarada sua nulidade é regra de direito,
porém a união, com base no art. 198 do Decreto-Lei n.° 9.760, ignora esta norma que tutela
interesse público em favor da norma que tutela seu interesse privado. A jurisprudência
também é vacilante, há decisões determinando a validade dos efeitos do registro até sua
eventual desconstituição e outras validando a cobrança de taxa de ocupação em áreas
registradas, como sendo privadas no RGI, com registros não desconstituídos.282
280
BRASIL. Decreto-Lei n.° 5.666, de 15 de julho de 1943. Esclarece e amplia o decreto-lei 4.120, de 21 de
fevereiro de 1942, e dá outras providências. Coleção de Leis do Brasil, Brasília, v. 5, p. 71. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 23 ago. 2003f.
281
Estes direitos “peremptos” foram revigorados por força do Art. 215 do Decreto Lei n.° 9.760/46, “correndo os
prazos para o seu exercício da data da notificação de que trata o art. 104 deste Decreto-Lei” (BRASIL, 1946).
282
BRASIL. Tribunal Regional Federal. 2.ª Região. Agravo de instrumento 96.02.22442-8 – ES – 4ª T.
Relator: Des. Federal Clélio Erthal. Terreno Acrescido de Marinha – Taxa de Ocupação. Tratando-se de
decisão interlocutória, a liminar concedida em mandado de segurança pode ser impugnada através de Agravo
de Instrumento. Os terrenos de marinha e seus acrescidos, em princípio integram o patrimônio da União
Federal (CF, art. 20, VIII), estando a sua utilização sujeita ao pagamento de foro (se aforados) ou taxa de
ocupação (se deles ainda não estiver desdobrado do domínio útil). Diário de Justiça da União, Brasília, 16
abr. 1998. JURIS Síntese Millennium: legislação, jurisprudência, doutrina e prática Processual. São Paulo:
Síntese, n. 26, nov. 2000. CD ROM.
103
Em reportagem na Tribuna do Norte, sobre a cidade de Areia Branca no Ceará, já
mencionada, vê-se uma cidade inteira com registros particulares não reconhecidos como
válidos pela União.283
Embora as normas relativas à alienação do domínio útil ou pleno não se aplique no interior de
ilhas costeiras onde existam sede de municípios por força do Art. 46 da Lei n.° 9.636/98, sua
aplicação nos terrenos de marinha está causando muita insegurança social. A Lei n.º 9.636/98
buscando auferir receitas determinou a venda do domínio útil aos ocupantes dos terrenos de
marinha, preferencialmente, caso não exercitem este direito, o imóvel será vendido a quem
der o melhor preço.284 Esta determinação está deixando milhares de famílias em pânico.
Conforme relata José Sebastião Marcati, em entrevista, a Associação dos Proprietários e
Ocupantes de Terrenos da União em Santa Catarina declara que “[...] a compra será inviável
para mais de 60% dos atuais donos ou moradores dos terrenos da Marinha. Eles estão
avaliando o imóvel partindo de valores atuais de mercado, que são muito altos”.285
O temor dos moradores de áreas costeiras urbanas é real e fundado conforme se verifica na
reportagem de Assunção286 no Jornal a notícia de Santa Catarina: “[...] muitas dessas áreas
estão ocupadas, viraram cidade ou mesmo aterros. ‘A pessoa que não tiver respaldo
jurídico poderá até perder o imóvel’, avisou o procurador da República Cláudio Valentim
Cristani”.
Em reportagem veiculada no jornal A notícia, de Santa Catarina, em 7 de junho de 1999, se
percebe o mesmo sentimento de exploração e impotência:
Muitos proprietários próximos ao rio Cachoeira, em Joinville, já começaram a
receber carnes para pagamento. É o caso do psicólogo Osvaldo Antônio de Souza,
47 anos. Ele terá que pagar R$ 32 mil para continuar no imóvel que comprou com
escritura em 1988. ‘Vou ter que comprar novamente meu terreno. A área vale em
torno de R$ 30 mil’, reclamou. É a mesma situação da maioria dos que vivem
próximos de rios ou oceanos no Brasil.287
283
PROCÓPIO, 2004.
O valor das benfeitorias será descontado e entregue ao ocupante.
SANTHYANNA, Mônica. Ocupantes tiram as dúvidas DPU garante que moradores da área não precisam se
preocupar. Jornal Diário Catarinense, 25 set. 2001.
286
ASSUNÇÃO, 2004.
287
ASSUNÇÃO, 2004.
284
285
104
Este sentimento de injustiça gerou várias mobilizações288 a exemplo da reportagem de
Cristiano Vogel289 na matéria intitulada “Moradores de áreas de Marinha pedem apoio.
Donos de imóveis em Palhoça, uma das cidades mais atingidas por lei federal, iniciam
mobilização”:
Os cerca de 50 mil proprietários de imóveis localizados em terrenos de Marinha de
Santa Catarina esperam ajuda de governantes e políticos do Estado para mudar lei
federal que os obriga a comprar seus terrenos da União. A Associação dos
Proprietários em Áreas de Marinha vai debater o assunto em reunião especial da
Assembléia Legislativa no dia 11 do próximo mês.290
Esta associação destaca o problema do município de Palhoça:
‘A maioria do pessoal que vive em áreas de marinha é pescador que não possui
condições nem de pagar nem a taxa de ocupação’, diz. Os proprietários de imóveis
em Marinha do município de Palhoça também começarão a se mobilizar a partir do
início de junho. O município é um dos que possuem maior extensão territorial em
áreas de Marinha. Como a resolução de 1988 deve atingir milhares de moradores, no
dia 2 do próximo mês a Câmara de Vereadores de Palhoça realiza sessão especial
para discutir o assunto.291
3.4.4 Interesses sociais específicos de remanescentes de quilombos
e povos indígenas
Embora não tivessem sido identificados na pesquisa realizada na Internet, temos direitos de
coletividades, historicamente espoliadas, tutelados na Carta Magna. O direito à terra
conferidos aos índios e aos remanescentes de quilombos também deve ser considerado neste
estudo.
Em todos os livros sobre a colonização brasileira, constatam-se, em destaque, os combates
travados entre os índios e os “colonizadores” em áreas costeiras de nosso país, demonstrando
de plano a existência de inúmeras nações indígenas ocupando áreas costeiras brasileiras.
288
“Acontece hoje, às 17h30, no plenarinho da Assembléia Legislativa, reunião dos foreiros, ocupantes e
proprietários de terrenos de marinha de Florianópolis. Por iniciativa da Associação de Defesa dos
Possuidores de Terrenos da União, será debatida a Lei Federal 9.636/98, que autorizou o governo da União e
vender esses imóveis aforados ou ocupados.” (PEREIRA, Moacir. No fio da navalha. A notícia, 19 abr.
1999. Disponível em: <http://www.an.com.br/1999/abr/19/0moa.htm>. Acesso em: 2 mar. 2004).
289
VOGEL, Cristiano. Moradores de áreas de Marinha pedem apoio. A notícia, 22 maio 2001. Disponível em:
<http://an.uol.com.br/ancapital/2001/mai/22/>. Acesso em: 22 maio 2004.
290
VOGEL, 2004.
291
VOGEL, 2004.
105
A disparidade entre a força das armas, o nível organizacional e outras circunstâncias
levaram os povos nativos à derrota entre o colonizador. Convém acentuar contudo,
que: Nos limites de suas possibilidades, foram inimigos duros e terríveis, que
lutaram ardorosamente pelas terras, pela segurança e pela liberdade que lhes
eram arrebatadas conjuntamente 2.292
A colonização, sob a desculpa de catequização – “Porque a principal cousa que me moveu a
mandar povoar as ditas terras do Brasil, foi para que a gente delas se convertesse à nossa
Santa Fé Católica”293, se deu de forma brutal e sanguinária, conforme se verifica no exame
das determinações contidas no Regimento do Governador Geral Tomé de Souza:
[...] a maneira que tereis para poder castigar os culpados, a mais avosso salvo, e com
menos risco da gente que puder ser, e como assim tiverdes praticado, o poreis em
ordem, destruindo-lhes suas aldeias e povoações, e matando e cativando aquela parte
deles, que vos parecer que basta para seu castigo e exemplo de todos, e daí em
diante, pedindo-vos a paz, lha concedais, dando-lhes perdão e isso, porém, será com
eles ficarem reconhecendo sujeição e vassalagem, e com encargo de darem em cada
ano alguns mantimentos para a gente da povoação; e no tempo que voz pedirem paz,
trabalhareis por haver a vosso poder alguns dos principais que foram no dito
levantamento, e estes mandareis, por justiça enforcar na aldeia donde eram
principais.294
Na verdade a catequização não passava de um mecanismo de dominação ideológica. “A
guerra travada contra os índios possuía dois fronts bastante claros e definidos: o ataque físico
às populações indígenas e o ataque cultural.”295 Pelo primeiro destruía-se a resistência física e
pelo segundo, a psicológica.
Os nativos brasileiros foram espoliados de seus direitos (à terra, à cultura, à dignidade, etc.);
foram explorados enquanto força de trabalho; foram dizimados e hoje vivem à margem da
sociedade brasileira, sem qualquer chance de inclusão social que preserve sua cultura, suas
raízes e sua dignidade enquanto pessoa.
O Código Civil, de 1916, equiparava os povos indígenas aos incapazes, demonstrando uma
clara visão preconceituosa de seus valores culturais, já o Código Civil atual – Lei n.° 10.406 –
não preconcebe os índios como incapazes, remete à legislação especial a atribuição de
regulamentar a capacidade civil dos povos indígenas.
292
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira: a época Colonial (Do
descobrimento à expansão territorial). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. v. 1, p. 72.
293
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE,
1972. Tomo I, p. 37.
294
MENDONÇA, 1972, Tomo I, p. 46.
295
MENDONÇA, 1972, Tomo I, p. 37.
106
O índio brasileiro na Lei n.° 6.001296, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), é
considerado inferior ao colonizador branco. Neste se verifica claramente o “[...] paradigma da
integração” (art. 4.º), onde há uma classificação dos índios em: isolados; em vias de
integração e integrados, como se houvesse estágios evolutivos.
Nesta perspectiva, portanto, o índio é visto como um ser inferior que deve e precisa
ser integrado à comunhão nacional. Completada a integração, não mais será
considerado inferior, mas também não será mais considerado índio e, portanto, não
merecerá mais qualquer forma de tutela especial.297
Esta concepção de evolucionismo linear remonta ao século XIX, quando a evolução se
completaria com a aculturação dos povos indígenas nos padrões do povo dominante,
expressando um genocídio cultural.
Na atualidade esta concepção não mais se sustenta, segundo Junqueira298, “[...] não existem
sociedades na infância”. Existem “[...] formas diferentes de sociedades, cada uma com seu
valor próprio e cada uma com projetos próprios de futuro.”
O Estado Democrático de Direito que tem por princípio o pluralismo e o reconhecimento dos
direitos das minorias, tem o dever de assegurar ao índio o direito de ser índio. Na nossa Carta
constitucional vigente é assegurado aos índios: sua organização social; costumes; línguas;
crenças e tradições, assim como o direito imprescritível à posse das terras (inalienáveis,
indisponíveis) que tradicionalmente ocupam, com usufruto exclusivo das riquezas dos solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes. Ao direito à posse da terra é acrescentado o direito a
inamovibilidade, salvo em casos de catástrofes ou epidemia que ponha em risco a população
indígena, ou de relevante interesse público da União, referendado pelo Congresso Nacional.299
As terras asseguradas são aquelas
[...] terras tradicionalmente ocupadas [...], as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.300
O direito à posse das terras ocupadas em caráter permanente foi assegurado aos índios desde a
Constituição de 1934 (Art. 129), direito que foi repetido na Constituição de 1937 (Art. 154) e
296
BARRETO, Helder Girão. Direitos indígenas: vetores constitucionais. Curitiba: Juruá, 2004.
BARRETO, 2004. p. 34.
298
JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia indígena: uma introdução. São Paulo: EDUC, 1991. p. 17.
299
Art. 231 e §§ CF (BRASIL, 2003b).
300
Art. 231, §1º, da CF (BRASIL, 2003b).
297
107
de 1946 (art. 216). A constituição de 1967, embora assegurasse aos silvícolas a posse
permanente das terras que habitam(Art. 186), as transferiu para o domínio da União. Em 1969
manteve-se o mesmo regime jurídico à posse das terras ocupadas pelos índios, e no Art. 198,
§ 1º, declara nulos e extintos os “[...] efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por
objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas” e no § 2º nega
aos prejudicados qualquer direito de indenização contra a União ou Fundação Nacional do
Índio. Este § 2º foi retificado no § 6º, do Art. 231 da Carta de 1988, que declara nulos e
extintos quaisquer direitos sobre terras indígenas, mas assegura o direito a indenização quanto
a benfeitorias derivadas de ocupações de boa-fé.301
Muitas nações indígenas ainda habitam a costa brasileira, tendo pleno direito à posse de
áreas de marinha. No art. 67 do ADCT302 é assegurada a conclusão da demarcação das
terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. Assim,
as áreas de marinha de posse dos indígenas, devem ser demarcadas e transferidas à gestão
da FUNAI303, sendo incompatível com sua destinação a gestão sob o aspecto patrimonial
efetuado pela SPU.
3.4.4.1 Interesses dos remanescentes de comunidades de quilombos
O direito dos remanescentes de comunidades de quilombos, no que tange ao acesso à terra
da qual extraem sua subsistência, é assegurado no Art. 68 do ADCT da CF 88 in verbis:
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.304
A Lei n.° 9.649/98305 fixa os critérios a serem observados na identificação, reconhecimento,
delimitação, titulação e registro, mediante processo administrativo regulamentado por meio
301
231 §6º CF 88 (BRASIL, 2003b).
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2003b).
303
Fundação Nacional do Índio.
304
Art. 68 do ADCT da CF 88 (BRASIL, 2003b).
305
BRASIL. Lei Ordinária n.° 9.649, de 27 de maio de 1998. Dispõe sobre a organização da presidência da
república e dos ministérios, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, p. 5, col. 1, 28 maio 1998b.
302
108
do Decreto n.° 3.912/01.306 Por meio da Medida Provisória n.° 1.911/99307, a atribuição da
emissão dos títulos de propriedade foi delegada ao Ministério da Cultura, que por sua vez a
transferiu à Fundação Cultural Palmares.
Embora exista farta legislação, este direito está longe de ser efetivado. Tanto pela falta de
condições orçamentárias e humanas da Fundação Cultural Palmares, quanto pelos entraves
ardilosos da norma infraconstitucional.
A falta de estrutura da Fundação Cultural Palmares é denunciada no Relatório da Missão da
Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada e à Terra Urbana:
Não há previsão orçamentária adequada de recursos para a realização de atividades
de demarcação e titulação, além do fato da Fundação Cultural Palmares não contar
com um quadro técnico próprio dotado de historiadores e antropólogos, o que lhe
torna dependente da realização de convênios com universidades e instituições de
pesquisa.308
Os principais entraves normativos decorrem dos critérios de identificação dos remanescentes
de quilombos fixados no Decreto n.° 3.912/2001 (art. 1º § único, I e II). Esse exige a
ocupação das terras desde 1888 pelos quilombos e pelos remanescentes em outubro de 1988.
Ou seja, os remanescentes de quilombos, que tivessem sido espoliados antes de 1988, ou que
decorressem de quilombos formados após 1888 não estariam sob abrigo da norma
constitucional. Saule Jr.309 denuncia:
Estes critérios artificiais, que vinculam termos em desuso a datas sem qualquer tipo
de correlação justificada, têm contribuído para desqualificar os critérios
antropológicos e sociológicos aplicáveis à identificação destas comunidades e seus
territórios.
Pedrosa310, advogado do Maranhão, no mesmo sentido denuncia a inadequação:
306
BRASIL. Decreto n.° 3.912, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta as disposições relativas ao processo
administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o
reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles
ocupadas. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 1, col. 1, 11 jul. 2001a.
307
BRASIL. Medida Provisória n.° 1.911, de 25 de novembro de 1999. Altera dispositivos da Lei 9.649, de 27
de maio de 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos ministérios, e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 17, col. 2, 26 nov. 1999.
308
SAULE JR. Nelson (Org.). A situação dos direitos humanos das comunidades negras e tradicionais de
Alcântara. O direito à terra e à moradia dos remanescentes de quilombos de Alcântara, MA - Brasil.
Relatório da missão da relatoria nacional do direito à moradia adequada e à terra urbana. São Paulo:
Instituto Pólis, 2003b. p. 41.
309
SAULE JR., 2003b, p. 42.
310
PEDROSA, Luis Antônio Câmara. Quilombo e o autoritarismo do Governo Federal de FHC. Disponível
em: <http://www.revistatippiti.com.br/quilombo1.htm>. Acesso em: 20 abr. 2004.
109
Tal como no período colonial, o legislador pretende autoritariamente ditar os limites
interpretativos do conceito de quilombo (até para datar o período de sua existência
no espaço –antes de 1999 ou depois de 1988 não há quilombos, como quer o
Decreto 3.912/2001), para restringir o raio de aplicabilidade do dispositivo
constitucional.
Este também denuncia a “[...] perigosa distinção entre remanescentes das comunidades de
quilombos e comunidades remanescentes de quilombos”311 uma vez que na primeira
expressão temos um direito individual enquanto que na segunda, um direito coletivo. Onde
entende que o governo “[...] pretendeu afastar a intervenção agrária estatal (principalmente as
desapropriações) e o potencial mobilizador das comunidades [...] ainda afasta a intervenção
do Ministério Público”.312 Esta distinção claramente pode se converter em mais um entrave
psicológico (mobilização social) e jurídico necessidade de demonstração do relevante
interesse social para assegurar a legitimidade ativa do Ministério Público da defesa destes
direitos que, se deixarem de ser um direito coletivo se converteria em direitos individuais
homogêneos.
Segundo Saule Jr.313, a primeira definição de quilombo decorreu de resposta ao rei de
Portugal efetuada pelo Conselho Ultramarino em dezembro de 1740, em que quilombo era
“[...] toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que
não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. Segundo este autor, o conceito de
quilombo deve ser atualizado para abarcar as diversas situações vivenciadas pelos negros.
[...] é importante lembrar que houve escravo que não fugiu, que permaneceu
autônomo dentro da grande propriedade e com atribuições diversas, houve aquele
que sonhou fugir e não pode ou não conseguiu fazê-lo, houve aquele que fugiu e foi
capturado e houve aquele que não fugiu porque ajudou os outros a fugirem e seu
papel era ficar. Assim a interpretação do conceito de quilombo, contido da
Constituição Federal de 1988, deve abranger todos os casos acima apresentados,
garantindo-se o direito à terra e os direitos daí decorrentes não só apenas ao
quilombo formado por escravos fugitivos. 314
A titulação das terras dos remanescentes de quilombos é considerada mais fácil em
propriedade pública, mas no caso das áreas de marinha localizadas em Alcântara, antes da
Constituição de 1988, o reconhecimento deste direito tem sido conflituoso.
311
PEDROSA, 2004.
PEDROSA, 2004.
SAULE JR., 2003b, p. 8.
314
SAULE JR., 2003b, p. 8.
312
313
110
A base de lançamento de Foguetes de Alcântara foi implantada mediante ações
governamentais desconectadas das características e necessidades sociais dos remanescentes de
quilombos existentes no local destinado a instalação da base militar. Estes foram reassentados
em áreas inadequadas às suas raízes culturais e em desrespeito ao módulo rural mínimo fixado
pelo estatuto da terra315 (recebendo 15 hectares quando deveriam receber 30). E foram
reassentados em agrovilas.316
Após a garantia da propriedade assegurada na Constituição de 1988 aos remanescentes de
quilombos, em 1991 foi editado decreto presidencial declarando de utilidade pública mais
uma área de dez mil hectares, passando a ocupar, segundo o estudo do Instituto Polis, 50% do
Município de Alcântara.
Nestas áreas existem inúmeros interesses em conflitos, há o interesse do desenvolvimento de
tecnologia aeroespacial colidindo com o interesse dos moradores em permanecer em suas
terras, mantendo seus meios de produção e reprodução do povo e sua cultura.
Em estudo efetuado para identificar a violação dos direitos destas comunidades há alguns
relatos que demostram a inadequação da ação de remoção efetuada na área, assim como a
insatisfação dos moradores:
A base veio com a finalidade de desmanchar o que achou. A base descontrolou o
local. Nós não somos acostumados com esse negócio de foguete. O local é pequeno
para colocar gente aqui. Só saio daqui se for morto. Meus filhos vão fazer casa aqui,
nossa lavoura é aqui, a igreja fomos nós que fizemos. Nas agrovilas nenhum tem
casa. A casa é da Base, eles não tem documento de nada. O coronel da Base faz o
seguinte: tem que pedir para pescar, eles dão uma carteirinha que pode pescar
de 8 em 8 dias. O igarapé é nossa feira, mas a ostra já falta depois que o pessoal
das agrovilas chegou.317 (Grifo nosso).
Neste relato verifica-se o desequilíbrio causado nas localidades que receberam os
reassentados, sobrecarregando o meio ambiente e gerando a escassez de alimentos e
degradação ambiental.
Além de prejuízos sociais para o meio ambiente e as comunidades próximas, nas agrovilas a
situação não é melhor, denuncia o relatório que, embora tenham acesso à educação, “[...] as
315
SAULE JR., 2003b, p. 14-17.
“As casas da agrovila são de alvenaria, exceto uma ou outra autoconstruída de taipa. A água utilizada é de
poço artesiano, não há coleta de lixo e há energia elétrica nas casas” (SAULE JR., 2003, p. 25).
317
Relato do morador Simão Reis do Araújo, de 60 anos e 17 filhos pertencente a comunidade de Samucangaua
(SAULE JR., 2003b, p. 13 ).
316
111
famílias vivem em extrema pobreza”, sem acesso à propriedade de suas terras, vivem sob
tutela dos militares, que entendem ser “[...] de sua competência a gestão do uso e ocupação do
solo nas agrovilas e não do plano diretor municipal, constitucionalmente obrigatório para
cidades com mais de vinte mil habitantes e de interesse turístico, como é o caso de
Alcântara”318.
Nestas áreas urbanas, fora dos limites físicos da base militar está a Direção Militar do CLA319
como autoridade única:
[...] é quem decide e autoriza, ou não, a reforma e a construção de casas, a abertura e
funcionamento de pequenos comércios, a demarcação e subdivisão de terrenos bem
como impede a entrada de novas pessoas para fins de moradia, subtraindo de forma
gravíssima o poder civil local [...]. Os filhos das pessoas realocadas não tem garantia
de permanência na área ou de recebimento futuro de terras a título de herança. Além
disso, o CLA não lhes permite edificar novas casas junto às existentes de seus pais,
nem ao menos ampliar as existentes. O morador Sr. Moraes, a esse respeito, afirma
haver um caso de mendigação neste povoado.320
Neste relatório efetuado pelo Instituto Pólis, verifica-se claramente um abuso de direito, se há
um interesse público preponderante que justifique a ampliação da base de lançamento de
Alcântara, como esta ampliação deve ser efetuada deve necessariamente submeter-se ao
princípio da proporcionalidade que impõe que a ação pública deve interferir o mínimo
possível na esfera dos demais direitos.
No caso em tela, a desapropriação de quase toda a área costeira do Município de Alcântara,
impede o desenvolvimento municipal, será que há interesse público preponderante que
impeça que a faixa de terreno ao longo da praia possa se manter excluída dos limites da base
viabilizando o desenvolvimento do turismo municipal, e a manutenção da atividade
extrativista local, essencial para a subsistência dos moradores? Qual o interesse público
preponderante que impede a concessão do direito de propriedade plena aos reassentados?
Qual o interesse público preponderante que justifica a supressão da gestão municipal sobre o
parcelamento, edificação e utilização das áreas de agrovilas, área fora dos limites da base
militar?
318
SAULE JR., 2003b, p. 23.
Centro de Lançamento de Alcântara.
320
SAULE JR., 2003b, p. 23-24.
319
112
As terras públicas brasileiras estão sendo administradas como feudos inexpugnáveis, sob
falaciosos argumentos de defesa de interesse público. Desnecessariamente vêem-se inúmeras
violações a direitos coletivos e difusos constitucionalmente garantidos.
113
4 AÇÕES POLÍTICAS
4.1 AÇÕES POLÍTICAS MUNCIPAIS
A resistência aos terrenos de marinha também gerou ações políticas; uma das primeiras é
noticiada por Silva321: “Face aos veementes protestos dos ocupantes de terrenos de marinha
situados na área da cidade do Rio Grande [...] originados do trabalho de levantamento
cadastral de terrenos de marinha”, informa o autor que o prefeito chegou a remeter memorial
pedindo providências ao presidente da República, defendendo a permanência deles na
titularidade dos municípios.
Atualmente com o aprimoramento das instâncias democráticas assim como a evolução da
organização social civil, os particulares passaram a exigir uma ação política em defesa de seus
interesses. E sob este novo enfoque temos notícias de diversas mobilizações em diversos
municípios costeiros322:
Santos, cidade que historicamente se opõe aos terrenos de marinha, está mobilizada desde 12
de fevereiro de 1987323, com a instalação da Comissão Especial de Vereadores CEV,
comissão esta que “[...] reaberta a cada ano, vem realizando intensa campanha para mobilizar
as autoridades e esclarecer a população”. A comissão Especial de Vereadores possui um
histórico de mobilização conforme se depreende abaixo:
Promoveu mais de 200 reuniões, grande parte delas em Câmaras de outras cidades
do Litoral Paulista. Fez mais de 20 viagens à Brasília, onde foram feitos contatos
com diversas autoridades envolvidas, enviou milhares de correspondência,
apresentou cerca de 16 Emendas à Constituinte e ao Congresso Revisor, instalou um
escritório do SPU em Santos para atender e esclarecer a população, realizou
audiências públicas, trouxe diversas autoridades à cidade para discutir o assunto.324
Em Santa Catarina foi formada uma comissão liderada pelo Deputado Edson Andrino,
Deputado João Henrique Blasi e pela Associação de Defesa dos Consumidores de Terreno de
Marinha ou da União em Santa Catarina, especialmente da cidade de Florianópolis325 onde com
321
SILVA, João Alfredo Raymundo e. Terrenos de marinha, seus acrescidos e a administração municipal.
Revista de Direito Público, São Paulo, v. 37/38, p. 316, jan./jun. 1976.
Os municípios citados decorrem de uma pesquisa temática efetuada na Internet em 02/03/2004 nos 300
primeiros sites indicados.
323
CÂMARA COMUM METROPOLITANA DA BAIXADA SANTISTA, 2004.
324
CÂMARA COMUM METROPOLITANA DA BAIXADA SANTISTA, 2004.
325
PEREIRA, 2004.
322
114
clara revolta denunciam a “[...] volúpia desenfreada do Governo da União de arrecadar, talvez
não de arrecadar mais, mas sim de tomar o dinheiro do contribuinte, do cidadão brasileiro”,
exigindo medidas contra ameaça de venda dos terrenos urbanos ocupados por moradias
Todo litoral catarinense e brasileiro de outras cidades como Vitória do Espírito
Santo, São Vicente, Capital ou não, estão apavorados porque o Governo Federal
exige, agora, daqueles que tiveram a ocupação por direito de requisição junto ao
patrimônio da União. Pagaram suas taxas, fizeram as melhorias que deveriam ser
feitas nessas propriedades e agora, são incitados a ter que comprar da União essa
propriedade que já ocupavam e que valorizaram com seus próprios recursos. Temos
que fazer esse registro e a Prefeitura da Capital tem que tomar uma posição. Não
podemos deixar que o município aceite essa exploração contra os munícipes.326
Considerando a inferioridade jurídica dos moradores em face da União, vemos vereadores
criando associações visando viabilizar o acesso à justiça por parte destes moradores mediante
ações coletivas.
O vereador Ari Leonel Filho, que participa da Associação dos Proprietários em
Áreas de Marinha, conta que a intenção é envolver mais os moradores de área de
marinha do município na luta. ‘Muitos até desconhecem o problema. O objetivo
nosso é criar uma associação local para, caso for preciso, futuras ações coletivas na
Justiça’, explica.327
Em Vitória-ES, o presidente da Associação de Ocupantes e Foreiros de Terrenos
Considerados de Marinha no Estado do Espírito Santo, José Carlos Lyrio Rocha, tem
participado ativamente das ações políticas nacionais efetuadas pela frente parlamentar em
defesa da regularização dos usos e ocupações dos terrenos de marinha.
Os Municípios através da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP) – movimento organizado que
congrega os prefeitos das Capitais e outros municípios do Brasil - apresentaram ao Governo
Federal na VI Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios uma pauta de reivindicações
denominada Agenda das Cidades, objetivando propor uma reflexão sobre o pacto federativo e
abrir um espaço de diálogo para a superação dos problemas nacionais.
Com a Agenda das Cidades, a FNP suscitou os encaminhamentos de três grandes questões de
interesse dos municípios, e dentre essas se encontra o problema dos terrenos de marinha e a
326
327
PEREIRA, 2004.
VOGEL, 2004.
115
regularização fundiária. Como fundamento da inclusão desta questão na Agenda das Cidades temse:
A maioria dos municípios está na Costa e mais da metade da população urbana
reside em áreas reguladas pela legislação de terreno de marinha ou acrescidas de
marinha. Por sua vez, a legislação de terreno de marinha é extremamente superada e
conservadora. E a discussão em torno da questão da regularização fundiária – uma
das prioridades da Agenda das Cidades – só será possível se houver uma profunda
revisão do que se chama hoje Patrimônio da União.328
Ou seja a questão dos terrenos de marinha afeta diretamente a autonomia municipal, neste
enfoque a agenda das cidades questiona a função do patrimônio da União, destacando que
deveria cuidar de territórios de interesse nacional, como fronteiras, Amazônia etc., aduz que
“[...] não tem lógica a União tomar conta das praias de Santa Catarina ou de Fortaleza”329, e
denuncia a incapacidade gerencial da União na gestão destes terrenos:
Não tem cabimento algum a União administrar as terras do Brasil que foram
urbanizadas, cobrando aforamento numa legislação que remonta o tempo do
Império. A União, historicamente, não teve capacidade de realizar políticas de uso e
ocupação das terras e essa deficiência gerou um processo de ocupação
desordenada.330
A Agenda das Cidades, além de denunciar a má gestão dos terrenos de marinha, como
causadora da irregularidade fundiária nas cidades costeiras, também denuncia o desvio de
finalidade da propriedade pública onde a União se converteu no maior especulador
imobiliário urbano do Brasil:
No município de Vitória, por exemplo, menos de 50% das terras são regulares. [...]
Na verdade, a União hoje é o maior especulador imobiliário urbano do Brasil. Não
paga IPTU, não paga taxa de limpeza e não dá uma destinação a essas terras de
acordo com um Plano Diretor Urbano e com o Estatuto das Cidades. 331
4.3 AÇÕES POLÍTICAS NO CONGRESSO NACIONAL
Os diversos interesses em conflito com as normas sempre procuraram tutela através dos seus
representantes no parlamento. Embora a nova norma (Lei. 9636/98) tenha aumentado a reação
328
329
330
331
LUCAS, 2004.
LUCAS, 2004.
LUCAS, 2004.
LUCAS, 2004.
116
popular conforme bem informa Cretela Júnior.332 “[...] os problemas remontam a mais de um
século”.
A primeira ação legislativa de que se tem notícias contra os terrenos de marinha, segundo
informa Manoel Madruga, “[...] surgiu em 1892, quando da apresentação ao Senado Federal
de um projeto de lei transferindo aos Estados os terrenos de marinha e acrescidos, ‘sob o
fundamento de que estes compreendiam na expressão terras devolutas, que se encontra
no art. 64 da Constituição’”.333 Mas esta ação não logrou êxito.
Este mesmo autor informa que em 1893334 foi apresentado novo projeto na Câmara Federal,
com os mesmos fundamentos do anterior, este projeto quase teve sucesso, tendo sido
emendado no Senado para incluir nas terras devolutas os terrenos de marinha. Foi aprovado
no Congresso e vetado pelo Presidente da República, Prudente de Moraes, em 21 de julho de
1896, com base nos seguintes motivos:
Por altos interesses nacionais, que se prendem à navegação, à higiene e a saúde dos
portos, à polícia aduaneira e á defesa nacional, tais terrenos formam uma divisão do
domínio público que nunca se confundiu com a outra divisão que é formada de
terras devolutas, únicas transferidas aos Estados).335
Em 1894, o Deputado Figueiredo336, “[...] apresentou indicação para que a Comissão de
Legislação e Justiça emitisse parecer a respeito do domínio a que estão sujeitos os terrenos de
marinha e margens dos rios”. Esta ação parlamentar decorreu dos interesses econômicos
surgidos a partir da descoberta de jazidas de “monazite” na Bahia, Espírito Santo e Rio de
Janeiro, que acabaram culminando da “questão dos Estados”.337
Em pesquisa efetuada nos sites dos Senado e da Câmara dos Deputados, através de busca com
as palavras: terrenos de marinha, laudêmio, foro, taxa de ocupação, foi possível identificar um
expressivo número de projetos legislativos sobre a matéria. Os apontados na busca
demonstram um grande volume a partir de 1999, ano seguinte à publicação da Lei n.°
332
CRETELA JÚNIOR, José. Tratado do domínio público. Rio de janeiro: Forense, 1984. p. 358.
MADRUGA apud SILVA, 1976, p. 317.
334
Embora no artigo esteja grafada a data 1883, pela lógica do texto conclui-se que se trata de data posterior a
1892, consideramos, portanto um erro material e presumimos que a data do novo projeto é 1983.
335
MADRUGA apud SILVA, 1976, p. 317-318.
336
SILVA, 1976, p. 318.
337
Como é denominada a Ação Originária nº 8 (SOUZA, 1985).
333
117
9.636/98338, embora não haja como precisar o número de processos mais antigos, para o fim
objetivado na busca, identificar os interesses presentes nos terrenos de marinha, os dados
colhidos foram bastante esclarecedores.
A linha de preamar média de 1831, parâmetro legal para a fixação dos 33 metros dos terrenos
de marinha, foi objeto de pelo menos oito projetos de Lei.
Dentre os oito projetos identificados, sete foram efetuados a partir de 1999, época em que a
SPU passou a demarcar e cadastrar de ex officio os ocupantes de terrenos de marinha (nos
termos da Lei n.º 9.636/98), incluindo muitas áreas tidas como privadas, causando os
problemas e inquietudes já destacadas.
Os projetos de leis idenficados são: PL 5.388/1990 de autoria do Dep. Victor Faccioni339; PL
3.814/2000 de autoria do Dep. Max Rosenmann340; PLS 617/1999 de autoria do Sen. Paulo
Hartung341; PL 3.593/2000 de autoria do Dep. Ricardo Ferraço342; PL 4.316/2001 (de autoria
do Senado Federal343 – tramitação conjunta com a PL 3.515/2000, PL 3.814/2000, PL
3.593/2000) e a PL 2.296/2003 de autoria do Dep. Eliseu Padilha344. Nestes projetos o marco
legal para a fixação dos terrenos de marinha varia de preamar médio de 1999 a preamar
máxima atual.
338
A pesquisa decorre dos arquivos disponibilizados nos sites.www.camara.gov.br e www.senado.gov.br,
provavelmente somente os projetos mais recentes se encontram disponíveis na Internet enquanto os
anteriores não devem estar contidos na íntegra (dedução efetuada por força de destaque efetuado pelo site do
senado quando da realização de pesquisa sobre o assunto “terrenos de marinha” em 9/06/2004 no
http://legis.senado.gov.br/pls/prodasen/PRODASEN.RPT_MATE_BAS.show. que informa “atenção as
informações provenientes da Câmara dos Deputados encontram-se temporariamente desatualizadas devido a
problemas na origem. Considerando a omissão de diversos projetos mencionados em outros trabalhos, os
resultados desta pesquisa não podem ser considerados de forma absoluta, devem ser analisados como
pesquisa por amostragem, exemplos de ações parlamentares atuais sobre esta matéria”.
339
FACCIONI, Victor. Projeto de Lei n.° 5.388, de 1990. Dispõe sobre a linha de preamar na fixação dos
terrenos de marinha. Disponível em: <http://www. senado.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
340
ROSENMANN, Max. Projeto de Lei n.º 3.814, de 28 de novembro de 2000. Dispõe sobre a determinação da
linha de preamar para o fim de demarcação de terrenos de marinha. Disponível em: <http://www.
senado.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
341
HARTUNG, Paulo. Projeto de Lei n.º 617, de 9 de novembro de 1999. Altera o caput do artigo 2º do
Decreto-lei nº 9760, de 5 de setembro de 1946, atualizando o conceito de terrenos de marinha. Disponível
em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004b.
342
FERRAÇO, Ricardo. Projeto de Lei n.º 3.593, de 3 de outubro de 2000. Altera o caput do art. 2º do DecretoLei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
343
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n.° 4.316, de 19 de março de 2001. Altera o caput do art. 2º do
Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, atualizando o conceito de terrenos de marinha. Disponível
em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004n.
344
PADILHA, Eliseu. Projeto de Lei n.° 2.296, de 2003. Altera o Decreto-lei n.° 9.760, de 5 de setembro de
1946, que “dispõe sobre os bens imóveis da União e dá outras providências”, e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
118
Como a identificação da linha de preamar de 1831 é extremamente difícil e imprecisa a
proposta de atualização da linha de preamar é excelente. A modificação da linha de preamar
em decorrência da modificação da conformação atual da linha da costa é uma medida que
encontramos similar na legislação estrangeira.345
No caso brasileiro, considerando que o marco legal remonta a 1831 e que o nível dos oceanos
aumentou, conclui-se que, salvo nas áreas onde houve aterro, a norma proposta346 poderá ser
prejudicial aos seus interesses, uma vez que a linha da preamar média de 1831 provavelmente
já se encontra submersa. A fixação da nova linha poderá ferir direitos adquiridos à linha de
preamar média de 1831.
De qualquer sorte a iniciativa de determinação de um critério técnico mais acessível para a
fixação da linha de preamar é uma iniciativa legislativa extremamente louvável, que
adequadamente busca atender às necessidades de segurança jurídica dos moradores das áreas
costeiras. A identificação precisa dos limites entre os bens públicos e privados deve ser
tecnicamente acessível a todos.
Outras iniciativas buscam transferir os terrenos de marinha e acrescidos aos Municípios.
Algumas tentativas de transferências foram pontuais como: PL 814/1999 e PL 815/1999 de
autoria do Dep. Heráclito Fortes347, em favor dos municípios de Parnaíba e Luís Corrêa – PI;
PL 4523/2001 de autoria do Dep. Roberto Rocha348, em favor de São Luís, São José do
Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa – MA, todas já arquivadas. Destas iniciativas isoladas
345
346
347
348
Na lei Mexicana Ley General de Bienes Nacionales, caso os limites do mar se modifiquem seja na hipótese
do mar inunde terrenos secos (artigo 51)345 seja por meio de aterros naturais ou artificiais a linha da zona
federal marítima também se modificará. (art. 54) “Artículo 54 Cuando por causas naturales o artificiales, se
ganem terrenos al mar, los limites de la zona federal marítimo terrestre se estalecerán de acuerdo com la
nueva configuración fisica del terreno, de tal manera que se entenderá ganada al mar la superfície de tierra
que quede entre el limite de la nueva zona federal marítimo terrestre y el límite de la zona federal marítimo
terrestre original” Ley General de Bienes Nacionales, disponível em 13 de abril de 2004
http://cameitram.org.mx/ley%20general%20de%bienes%20nacionales.htm
Pode ser mais benéfica pela facilidade de sua demarcação e segurança jurídica que esta facilidade confere,
porém para quem possui condições de efetuar uma delimitação com base em estudos geodésicos,
FORTES, Heráclito. Projeto de Lei n.° 814, de 4 de maio de 1999. Autoriza o Poder Executivo a transferir
para o domínio do Município de Parnaíba, Estado do Piauí, os terrenos de marinha e seus acrescidos
localizados naquele Município. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004a;
FORTES, Heráclito. Projeto de Lei n.° 815, de 4 de maio de 1999. Autoriza o Poder Executivo a transferir
para o domínio do Município de Luís Corrêa, Estado do Piauí, os terrenos de marinha e seus acrescidos
localizados naquele Município. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004b.
ROCHA, Roberto. Projeto de Lei n.° 4.523, de 19 de abril de 2001. Autoriza o Poder Executivo a
transferir para o domínio dos Municípios de São Luis, São José de Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa,
Estado do Maranhão, os terrenos de marinha e seus acrescidos localizados naqueles Municípios. Disponível
em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
119
temos ainda tramitando os PLS 294 e 295 de autoria do Sen. Gerson Camata349 em favor dos
Municípios de Vila Velha e Vitória.
A busca da transferência dos terrenos de marinha e acrescidos para todos os municípios
costeiros temos a PEC 81/99 de autoria do Dep. João Coser350 (arquivada no fim da
legislatura) a PEC 040/1999 e o PL 617 /1999 de autoria do Sen. Paulo Hartung.351
O interesse público tutelado nestas iniciativas são diversos. Buscam a tutela da autonomia
municipal e da competência privativa do planejamento urbano municipal. Sendo o Município
titular dos terrenos sob seu território poderá sem dúvida gerir de forma mais eficaz seus
interesses locais e implantar com muito mais facilidade as funções sociais da cidade. Mas
também se vislumbra a busca de aumento de receita municipal mediante manutenção do
mesmo modelo já implantado pela União.
Em parte a transferência aos municípios atende ao interesse público, mas dependendo dos
tipos de terrenos localizados nos diferentes municípios esta premissa pode ser nociva aos
interesses nacionais. Muitas áreas ainda estão desocupadas e as normas ambientais
determinam que assim permaneçam ou que tenham uma utilização ambientalmente adequada
à preservação dos ecossistemas costeiros. A transferência da totalidade dos terrenos de
marinha a municípios costeiros que não tenham desenvolvimento institucional capaz de
efetuar a tutela destas áreas ambientais importantes pode ser nocivo aos interesses ambientais,
já que também podem não conseguir impedir a degradação na ocupação desses terrenos.
Se em sua origem os terrenos de marinha destinavam-se a servidão de trânsito e atualmente
estão inseridos na Zona Costeira, patrimônio nacional, que permaneçam as áreas desocupadas
como bens de uso comum do povo, não passíveis de apropriação individual.
349
CAMATA, Gerson. Projeto de Lei n.° 294, 23 de janeiro de 2004. Autoriza o Poder Executivo a transferir
para o domínio do Município de Vila Velha, Estado do Espírito Santo, os terrenos de marinha e seus
acrescidos localizados naquele Município. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan.
2004. Disponível em: <http://www. senado.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004; CAMATA, Gerson. Projeto
de Lei n.° 295, 4 de maio de 1999. Autoriza o Poder Executivo a transferir para o domínio do Município de
Vitória, capital do Estado do Espírito Santo, os terrenos de marinha e seus acrescidos localizados naquele
município. Disponível em: <http://www. senado.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
350
COSER, João. Projeto de Emenda Constitucional n.° 81, de 12 de agosto de 1999. Acrescenta parágrafo ao
art. 20 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004a.
351
HARTUNG, Paulo. Projeto de Emenda Constitucional n.º 40, de 5 de maio de 1999. Revoga o Inciso VII do
Artigo 20 da Constituição Federal e o § 3º do Artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
extinguindo os terrenos de marinha e seus acrescidos e dispondo sobre a sua destinação. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
120
Outra medida parlamentar importante, embora não diga respeito diretamente aos terrenos de
marinha é a PEC n.° 575 de 1998 do Dep. Edson Andrino352, que exclui dos bens da União os
interiores de ilhas costeiras que integrem territórios de municípios cuja tramitação se encontra
bastante adiantada. A aprovação desta PEC viabiliza a efetivação da proposta da preamar
atual, já que as áreas remanescentes seriam entregues aos Municípios. Os Municípios
costeiros inseridos em ilhas como: Vitória, São Luís, Florianópolis veriam as áreas
remanescentes retornarem para a União, proprietária por força de norma constitucional do
interior das ilhas costeiras, se a PEC 575 retira da União estas áreas é possível a aplicação dos
efeitos da linha de preamar atual nestas ilhas. Sendo assim, as normas se completam.
Embora as questões relativas a pagamentos de taxas e multas sejam interesses individuais, em
face ao grande número de pessoas atingidas, há inúmeros projetos de lei buscando a tutela
destes direitos individuais homogêneos. Um projeto de Lei que não foi aprovado defendia a
anistia aos devedores da taxa de ocupação (PLS 1.954, de 30 de março de 1945 de autoria do
Sen. Ezechias da Rocha).
Na defesa dos ocupantes em busca de isenções de foros e laudêmios encontramos: o PL
5.374/2001 de autoria do Dep. Marcelo Teixeira353, em favor de templos e igrejas; o PL
4.189/2001 de autoria da Dep. Socorro Gomes354 em favor de quem tiver um imóvel aforado
no Estado.
Na defesa do interesse social de viabilizar o acesso à moradia, temos o PL 4.569/1989
(Senado Federal355) que propõe a redução do laudêmio em terrenos de marinha que se
destinarem a programas habitacionais excluindo da cobrança o valor das benfeitorias.
352
ANDRINO, Edison e outros. Proposta de emenda à Constituição n.° 575, de 1998. Altera os incisivos IV, do
art. 20 e II e IV, do art. 26 da Constituição Federal.
353
TEIXEIRA, Marcelo. Projeto de Lei n.° 5.374, 2001. Dá nova redação ao art. 1°, do Decreto_lei, de 15 de
julho dispensa do pagamento de foros e laudêmios os titulares do domínio útil. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
354
SOCORRO GOMES. Projeto de Lei n.° 4.189, 2001. Isenta do pagamento de foro à União quem somente
tiver um imóvel no Estado. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
355
Este projeto embora conste como aguardando resposta da mesa, com despacho inicial a CCJR, parece
ultrapassado diante do Decreto Lei 1850 de 15 de janeiro de 1981 (aprovado pelo Decreto Legislativo 35 de
12 de agosto de 1981), que isenta de laudêmio as transferências do domínio útil de terrenos de marinha
destinados a construção de conjuntos habitacionais de interesse social (BRASIL. Senado Federal. DecretoLegislativo n.° 35, de 1981. Aprova o texto do Decreto-Lei n.° 1.850, de 15 de janeiro de 1981, que “isenta
de laudêmio as transferências do domínio útil de terrenos de marinha, destinados à construção de conjuntos
habitacionais de interesse social”. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 15 mar. 2004m.
121
A diminuição dos valores de foro e laudêmio é defendida no PL 7.507/2002 (Senado
Federal356) e no PL 7195/2002 (Sen. Ricardo Santos357)
O laudêmio e a enfiteuse são objeto de inúmeros e diversificados projetos.
Com a extinção da enfiteuse no código civil, há inúmeros projetos de leis alterando o Art.
2.038 do atual código civil: o PL 7.061/2002 do Dep João Almeida358 objetiva a manutenção
da cobrança do laudêmio nos contratos de aforamento em vigor; o PL 907/2003, de autoria de
Nelson Pellegrino359 defende que esta possibilidade seja conferida apenas a entidades
assistenciais e religiosas sem fins lucrativos.
Pelo fim do laudêmio360 temos: o Dep. Max Rosenmann361 (PL 2692/2003) e o Dep. Ricardo
Fiúza362, este último em seu PL 6.960/2002363 (que propõe alterações em inúmeros artigos do
356
SANTOS, Ricardo. Projeto de Lei n.° 7.507, de 23 de dezembro de 2002. Altera dispositivos dos DecretosLeis nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987, para reduzir os valores de
foro, laudêmio e taxas de ocupação de imóveis da União, que especifica. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004b.
357
SANTOS, Ricardo. Projeto de Lei n.° 7.195, de 5 de setembro de 2002. Altera a Lei nº 9.636, de 15 de
maio de 1998, a fim de dispor sobre a situação de escrituras públicas antigas, outorgadas a adquirentes de
imóveis conceituados como terrenos de marinha e seus acrescidos, bem ainda de imóveis construídos sobre
acrescidos de marinha, nas condições que especifica. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso
em: 10 jan. 2004a.
358
ALMEIDA, João. Projeto de Lei n.° 7.061, de 26 de junho de 2002. Permite a cobrança de laudêmio, ou
prestação análoga nas transmissões de bem aforado, sobre o valor das construções ou plantações, alterando o
§ 1º do artigo 2.038 da Lei n.o. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que dispõe sobre o novo Código Civil
Brasileiro. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
359
PELLEGRINO, Nelson. Projeto de Lei n.° 907, de 6 de maio de 2003. Modifica a redação da Lei nº 10.406,
de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil." Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso
em: 10 jan. 2004.
360
Uma das principais bandeiras da Câmara Comum Metropolitana da Baixada Santista é a extinção da cobrança
do laudêmio conforme Ata da 9ª Reunião Ordinária de 02 de junho de 2000 da Câmara Comum
Metropolitana da Baixada Santista (CÂMARA COMUM METROPOLITANA DA BAIXADA SANTISTA,
2004).
361
ROSENMANN, Max. Projeto de Lei n.° 2.692, de 9 de dezembro de 2003. Altera a redação do inciso I do
§ 1º do art. 2.038, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Disponível em:
<http://www. senado.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
362
FIUZA, Ricardo. Projeto de Lei n.° 6.960, 12 de junho de 2002. Dá nova redação aos artigos 2º, 11, 12, 43,
66, 151, 224, 243, 244,246, 262, 273, 281, 283, 286, 294, 299, 300, 302, 306, 309, 328, 338, 369, 421, 422,
423, 425, 429, 450, 456, 471, 472, 473, 474, 475, 478, 479, 480, 482, 496, 502, 506, 533, 549, 557, 558, 559,
563, 574, 576, 596, 599, 602, 603, 607, 623, 624, 625, 633, 637, 642, 655, 765, 788, 790, 872, 927, 928, 931,
944, 947, 949, 950, 953, 954, 966, 977, 999, 1053, 1060, 1086, 1094, 1099, 1158, 1160, 1163, 1165, 1166,
1168, 1196, 1197, 1204, 1210, 1228, 1273, 1274, 1276, 1316, 1341, 1347, 1352, 1354, 1361, 1362, 1365,
1369, 1371, 1374, 1378, 1379, 1434, 1436, 1456, 1457, 1473, 1479, 1481, 1512, 1515, 1516, 1521, 1526,
1561, 1563, 1573, 1574, 1575, 1576, 1581, 1583, 1586, 1589, 1597, 1601, 1605, 1606, 1609, 1614, 1615,
1618, 1623, 1625, 1626, 1628, 1629, 1641, 1642, 1660, 1665, 1668, 1694, 1700, 1701, 1707, 1709, 1717,
1719, 1721, 1722, 1723, 1725, 1726, 1727, 1729, 1731, 1736, 1768, 1788, 1790, 1800, 1801, 1815, 1829,
1831, 1834, 1835, 1848, 1859, 1860, 1864, 1881, 1909, 1963, 1965, 2002, 2038 e 2045 da Lei nº. 10.406 de
10 de janeiro de 2002, que "Institui o Código Civil", acrescenta dispositivos e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan. 2004.
363
FIUZA, 2004.
122
atual código civil) defende que nos § 2º e 3º do Art. 2.038 conste a proibição da "[...]
constituição de enfiteuse e subenfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos” e define o
prazo de 10 anos para a declaração da extinção das enfiteuses regularmente inscritas em dias
com suas obrigações.
Embora este trabalho esteja defendendo a efetivação da função social da propriedade urbana,
principalmente em áreas de marinha consolidadas, entende-se que este artigo proposto deveria
ser aprimorado. Na exposição de motivos do Art. 2.038 nota 160 do Projeto de Lei n.°
6.960/2002364 do Dep. Fiúza365, o Prof. Joel Dias Figueira Júnior justifica a extinção dos
aforamentos nos terrenos de marinha sem perceber que mais grave que o aforamento é a
cobrança das taxas de ocupação. A extinção do aforamento sem a prévia solução dos
ocupantes pode não ser útil.
Neste projeto é assegurada aos foreiros a aquisição do domínio pleno pagando apenas 17% do
valor, mas os ocupantes restarão desprotegidos. A grande maioria das áreas de marinha
identificada pela demarcação gera a inscrição de ocupantes e não de foreiros. E muitos destes
possuem escrituras particulares registradas no RGI.
No PL 6.960/2002 o Deputado Fiúza366 defende a seguinte redação para o Art. 2.038 do
Código Civil:
Art. 2038 – [...]
§ 1º [...]
§ 2º Igualmente proíbe-se a constituição de enfiteuse e subenfiteuse dos terrenos de
marinha e acrescidos, subordinando-se as existentes às disposições contidas na
legislação específica;
§ 3º Fica definido o prazo peremptório de dez anos para a regularização das
enfiteuses existentes e pagamento dos foros em atraso, junto à repartição pública
competente. Decorrido esse período, todas as enfiteuses que se encontram
regularmente inscritas e em dia com suas obrigações, serão declaradas extintas,
tornando-se propriedade plena privada. As demais reverterão de pleno direito para o
patrimônio da União.
A norma proposta que visa impedir novos aforamentos em terrenos de marinha pode ser
aprimorada, já que a verdadeira intenção é conferir aos moradores das cidades costeiras o
acesso à propriedade plena. O maior problema é encontrado entre os ocupantes. São estes os
ameaçados de perder a moradia. Os foreiros, ao menos possuem um direito real, enquanto os
364
FIUZA, 2004.
FIUZA, 2004.
366
FIUZA, 2004.
365
123
ocupantes não possuem direito algum. Se o parágrafo segundo determinasse a constituição da
enfiteuse para todos os ocupantes até 1988 e assegurasse o direito de resgate do domínio
pleno (no valor de 17%) após o pagamento de 10 anos de foro, teríamos uma norma que
viabilizaria em muito a regularização deste problema.
A segurança jurídica dos registros públicos é defendida no PLS 139 de 2002 do Sen. Ricardo
Santos367 que na câmara tomou o n.º 7.195. Neste é reconhecido o direito de propriedade de
escrituras lavradas por Estados e Municípios a terceiros de boa-fé.
O direito de comunidades artesanais que vivem do extrativismo marinho é muito pouco
reconhecido. Atualmente temos tramitando o Estatuto das Colônias dos Pescadores368, cujo no
Art. 3º, III, pretende assegurar o direito de preferência ao aforamento para a instalações e
fixação de núcleos de pescadores (direito que já tiveram, mas que foi revogado por leis
posteriores). Os pescadores, como comunidades que historicamente vivem do extrativismo
marinho, por serem humildes foram sendo desconsiderados pela União, que vive muito
distante deles. Mas dentro do plano de zoneamento costeiro, que visa inclusive à
implementação e desenvolvimento de atividades extrativas sustentáveis nesta área, estas
comunidades são identificadas e devidamente valorizadas como importantes parceiros na
exploração sustentável com preservação dos recursos ambientais. Além do enfoque da gestão
ambiental, tem-se a questão social de acesso ao trabalho e à moradia por populações carentes
que vivem da pesca.
A defesa do direito de acesso ao bem de uso comum do povo é identificado nos PLS 6/1990
e 53/1991 de autoria do então senador Maurício Corrêa369, projetos que foram arquivados.
Embora estes projetos não tenham tido êxito, já que foram arquivados ao final da legislatura,
367
SANTOS, Ricardo. Projeto de Lei n.º 139, de 22 de maio de 2002. Altera a Lei nº 9636, de 15 de maio de
1998, a fim de dispor sobre a situação de escrituras públicas antigas, outorgadas a adquirentes de imóveis
conceituados como terrenos de marinha e seus acrescidos, bem ainda de imóveis construídos sobre acrescidos
de marinha, nas condições que especifica. Disponível em: <http://www. senado.gov.br>. Acesso em: 10
jan. 2004c.
368
THAME, Antoniocarlos Mendes. Projeto de Lei n.° 3.051, 1989. Dispõe sobre o estatuto das colônias,
federações e confederações dos pescadores. Diário do Congresso Nacional, Seção 1, p. 6.273, 1 jul. 1989.
369
CORRÊA, Maurício. Projeto de Lei n.º 53, 5 de abril de 1991. Dispõe sobre o livre acesso as praias de
terrenos de marinha e seu uso publico. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 10 jan.
2004; CORRÊA, Maurício. Projeto de Lei n.º 6, de 20 de fevereiro de 1990. Dispõe sobre o livre acesso as
praias de terrenos de marinha e seu uso público. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em:
10 jan. 2004.
124
esta defesa explícita da garantia do acesso às praias é encontrada no artigo 10 da Lei n.°
7.661370, de 16/05/1988 - Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.
Considerando que muitos projetos acabam sendo arquivados no fim das legislaturas, caso seus
autores não sejam reeleitos ou não tenham sido apensados a outro projeto que esteja
tramitando sob autoria de um parlamentar com mandato, considerando ainda que os terrenos
de marinha são pouco conhecidos por parlamentares que não residem em áreas costeiras, há
um pequeno número de projetos que têm condições efetivas de serem convertidos em normas
legais.
Outro óbice à tramitação dos projetos de leis relativos aos terrenos de marinha diz respeito às
objeções que sempre são efetuadas em defesa da “segurança nacional” e da preservação
ambiental, além do fato de os parlamentares agirem de forma isolada na defesa dos interesses
relativos aos terrenos de marinha.
Todos estas reações populares e políticas não passam despercebidas pelos doutrinadores mais
atentos como Gasparini371 que destaca que:
[...] não são desconhecidas vozes e manifestações contrárias à existência das
marinhas. Veja por exemplo. Paulo Barros de Araújo Lima (A reforma
administrativa e os terrenos de marinha. Revista da Procuradoria-Geral do Estado
da Guanabara, v.25) e João Alfredo Raymundo e Silva (Terrenos de Marinha e seus
acrescidos e administração municipal, RDP v.37-8).
Reconhece também este autor a realização de eventos jurídicos para discutir esta questão
como o “Seminário sobre Ilhas e Terrenos de Marinha, realizado em Ilhabela, em 1977, pela
Fundação Prefeito Faria Lima – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal e
Prefeitura Municipal de Ilhabela372”, porém reconhece que ainda nada foi feito de concreto
para solução destas questões.
As ações parlamentares em curso somente reforçam o entendimento de que a norma é
inadequada, tanto que em reunião realizada na Câmara dos vereadores de Joinville em 26 de
abril de 2001:
[...] ‘os dirigentes do SPU procuraram tranqüilizar as pessoas presentes. Até
admitiram que os dispositivos legais precisam de reparo.’ [...] o gerente Dinarde
Antônio Vaz sustentou que não vai levar a lei ‘a ferro e fogo’. Os levantamentos
370
BRASIL, 1988.
GASPARINI, 2003, p. 737.
372
GASPARINI, 2003, p. 737.
371
125
ainda estão sendo feitos e o momento pode ser positivo para aqueles que pretendem
regularizar sua propriedade. Mas também admitiu que há erros na lei.373
Embora sejam diversas as tentativas, a grande maioria não consegue sucesso por dois fatores.
O primeiro diz respeito à tentativa de regularizar um bem com características complexas
como os terrenos de marinha sob um único enfoque, tutelando um único interesse público e a
segunda diz respeito à regra da maioria vigente na democracia. Sendo os terrenos de marinha
um problema que não afeta a todos os estados da federação, como o assunto não lhes
interessa, ficam os estados costeiros com menos condições de defender suas idéias contra os
objetivos fiscais da União.
Objetivando resolver de uma vez por todos estes problemas foi formada uma "Frente
Parlamentar em Defesa da Regularização do Uso e Ocupação dos Terrenos de Marinha".374
A concepção de enfrentamento global da questão dos terrenos de marinha, unanimemente
acolhida, consolida o entendimento entre os participantes de que os problemas causados pelos
terrenos de marinha devem ser sanados mediante uma proposta que atenda de forma integral
todos os interesses envolvidos. A frente parlamentar remeteu ao governo federal uma minuta
de projeto de lei, baseada na classificação proposta por esta autora e está aguardando375 do
governo federal o relatório do Comitê Interministerial sobre a questão dos terrenos de marinha
e da Secretaria do Patrimônio da União: uma definição para que seja estabelecido um prazo
para se chegar a um acordo legislativo, uma proposta de agenda para a escuta da sociedade; a
realização de um seminário internacional para se buscar uma legislação mais moderna.376
373
ANACLETO, Antonio. Lei das terras de marinha preocupa população local: Câmara fez encontro para
esclarecer
a
situação.
A
Notícia,
Joinville,
28
abr.
2001.
Disponível
em:
<www.an.com.br/2001/abr/28/0cid.htm>. Acesso em: 23 abr. 2004.
374
A frente parlamentar foi instalada a partir de reunião ocorrida na Câmara dia 16 às 9h, cujo nome
inicialmente concebido era “Frente Parlamentar em defesa dos ocupantes dos terrenos de marinha” esta
reunião, presidida pelo Dep. Renato Casagrande(ES), contou com a participação: do Dep. Edson Andrino
(SC); do Dep. Pedro Fernandes (MA); do Dep. Neucimar Fraga (ES); da Dep. Laura Carneiro (RJ)dentre
outros assim como do Vereador de Vitória - ES, José Carlos Lyrio Rocha e desta subscritora.
375
Segundo informações remetidas pela chefe de gabinete do Dep. Renato Casagrande por meio de FAX no.61 215.2662 remetido dia 14 de julho de 2004 para o fax (27)3382 6049
376
Fax supramencionado.
126
5 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA
Por todo o demonstrado verifica-se que os terrenos de marinha consistem em um tipo de bem
público bastante complexo e como este bem público se insere diante dos comandos
constitucionais. Neste capítulo será demonstrada de forma breve a evolução da concepção da
propriedade antiga à propriedade liberal santa sacra e absoluta, até a atual concepção da
propriedade relativizada pela exigência de cumprimento de sua função social, será
demonstrado que a propriedade pública não se exclui desta determinação, e que os terrenos de
marinha também devem ser utilizados de conformidade com sua função social, mas para esta
conclusão faz-se necessária uma análise da evolução da concepção da propriedade.
5.1 EVOLUÇÃO JURÍDICA DA PROPRIEDADE PRIVADA
O direito de propriedade ao longo dos séculos, de conformidade com a organização social e
política dos povos, foi se modificando até assumir a atual feição jurídica.
A propriedade antiga377 nos grupos sociais fechados, como tribos, era coletiva. Não existia a
concepção da propriedade privada. O início da concepção da propriedade privada veio através
do sentimento de propriedade das vestimentas, utensílios e ferramentas pessoais. Com a
organização social em cidades, onde o homem abria parte de sua liberdade para melhor se
defender das forças da natureza em favor da proteção do Estado, há o aparecimento de um
poder central, normalmente ligado ao poder divino.
O rei, como representante máximo de Deus na terra era o proprietário de todas as terras sob
seu domínio. A forma como esta terra foi sendo dividida deu causa a diferentes concepções
sobre a propriedade.
377
Fustel de Coulanges, em seu clássico “A Cidade Antiga”relata que os tártaros admitiam o direito de
propriedade quanto aos rebanhos, mas não o concebiam quanto ao solo.Entre os antigos germanos, segundo
alguns autores, a terra não pertencia a ninguém: todo ano, a tribo indicava para cada um de seus membros o
lote a cultivar, e o trocava no ano seguinte. O germano era proprietário da colheita, mas não da terra [...]. Ao
contrário, as populações da Grécia e as da Itália desde a mais remota antigüidade sempre conheceram e
praticaram a propriedade privada(COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, tradução Jean Melville. Editora
Martin Claret: São Paulo, 2002 p. 65).
127
Os reinos eram ampliados mediante guerras de conquistas, quando os bens eram apropriados
em favor do rei, que concedia parte deles à classe dos sacerdotes e guerreiros, além de
instituir sobre as demais propriedades impostos (dos quais os guerreiros e sacerdotes estavam
isentos). As dívidas causadas pelos impostos ainda mais contribuíram para a acumulação de
propriedade nas mãos de poucos.
Na Idade Média surgiam duas teorias sobre a titularidade dos bens de domínio público uma
defendia que os bens de domínio público pertenciam ao príncipe e outra que os bens de uso
comum pertenciam “[...] ao povo, que poderia usá-las sem privilégios, em condições de
igualdade, cabendo ao monarca o exercício do poder de polícia, fiscalizando o uso, para
impedir o abuso”.378
Com a expansão marítima, o desenvolvimento do comércio nas cidades, o desenvolvimento
das corporações de ofícios assim como a ascensão da burguesia – classe de comerciantes que
moravam nas cidades (burgos) há uma grande modificação na estrutura econômica e fundiária
da idade média. Desenvolveram-se fatores que culminaram na derrocada do regime feudal
com o aparecimento do Estado-Nação, sob os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, da
Revolução Francesa.
5.1.1 Críticas à Propriedade liberal
Com o Estado Liberal, fundado nos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, há o direito
de propriedade, decorrente do princípio da liberdade individual, que é elevado à condição de
direito fundamental, sagrado, inviolável e absoluto. Este liberalismo defendido principalmente
por Adam Smith, defendia a livre concorrência e a não-intervenção do Estado na Economia.
O liberalismo é uma ideologia bastante interessante para a Inglaterra que já possuía indústrias
manufatureiras e era capaz de vender o produtos melhores e mais baratos que os outros países.
O liberalismo somente beneficia as economias industriais desenvolvidas em detrimento das
economias em desenvolvimento.
378
CRETELA JÚNIOR, José. Bens públicos. 2. ed.
Universitária de Direito, 1975a. 486p.
rev. aum. atual.
São Paulo: Livraria e Editora
128
O liberalismo, fundado na liberdade e igualdade, demonstrou-se profundamente desigual e
injusto, a igualdade formal, não assegurava a igualdade substancial. O liberalismo pregava
que todos eram livres para contratar, mas em face à desigualdade econômica esta “liberdade”
era causa de exploração do homem, seja pela fixação de salário ínfimo, seja pelas jornadas de
trabalho desumanas.
Esta ampla liberdade aumentou379 a concentração dos bens nas mãos de poucos, gerando
enormes abismos sociais, distorções que o trabalhismo inglês aponta como injustiça social. No
momento da mudança do paradigma do Estado Feudal para o Estado Moderno, já existia a
concentração de rendas nas mãos de poucos, e não houve qualquer medida que buscasse
efetivar qualquer igualdade econômica. O pressuposto da igualdade era um discurso que
ignorava a realidade da desigualdade econômica, social e cultural.
Em oposição ao liberalismo surge o protecionismo que prega a intervenção do estado
protegendo os trabalhadores do poder econômico dos industriais. As reações aos abusos
cometidos sob os auspícios do estado liberal deram causa ao surgimento de diversas teorias
sociológicas e jurídicas380 que imprimiram nova função ao Estado. Da mesma forma que a
função do Estado foi se modificando ao longo do tempo, pelas mesmas razões a propriedade
foi deixando de ser um direito absoluto.
Grau381 aponta que “[...] as imperfeições do liberalismo, [...] associadas à incapacidade de
auto-regulação dos mercados, conduziram à atribuição de nova função ao Estado. À
idealização de liberdade, igualdade e fraternidade se contrapôs a realidade do poder
econômico.”
Ihering382 critica a visão da propriedade como um direito absoluto do proprietário, que a
submete ao seu interesse privado.
[...] o legítimo sentimento de propriedade [...] serve-me como meio de sustento, de
trabalho, de gozo. Mas como não tenho nenhum dever moral de correr atrás do
dinheiro, tampouco qualquer dever moral me impõe a obrigação de, por qualquer
bagatela, iniciar um processo que custa dinheiro, tempo e incômodos. O motivo que
me deve conduzir, na defesa legal do meu patrimônio, é exclusivamente o que me
380
JOSSERAND defendia que todo o direito tem sua função social e se o direito for exercido de modo
antifuncional ocorre um “abuso de direito”.
381
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 6. ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2001. p. 15.
382
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p. 79.
129
guia na aquisição e na utilização do mesmo: o meu interesse. Um processo relativo
aos meus bens é uma pura questão de interesse.
Este pensamento acima explicitado para o autor é uma “[...] deturpação do genuíno
sentimento de propriedade, e só consigo ver a causa da mesma numa deformação das
condições naturais da propriedade”.383 Segundo ele, esta deformação decorre da “[...] forma
imoral de aquisição da propriedade” como a responsável por esta deturpação, porque:
A fonte histórica e a justificação moral da propriedade residem no trabalho. Não me
refiro apenas ao trabalho das mãos e dos braços, mas também ao trabalho do espírito
e do talento. [...] Só a ligação constante com o trabalho mantém a propriedade
vigorosa e sadia, só junto a essa fonte que constantemente a gera e renova é que a
mesma se revela até o âmago de toda a clareza e transparência, com todas as
potencialidades que encerra para o homem.384
Para este autor, a propriedade adquirida de forma fácil e gratuita perde os seus atributos
primitivos e sua essência moral:
À medida que a torrente se afasta da fonte, atingido as regiões mais baixas da
aquisição fácil ou até gratuita ela vai se turvando, até perder os últimos vestígios dos
seus atributos primitivos no lamaçal do jogo da Bolsa e das manipulações
fraudulentas de ações. È claro que ali onde se desvaneceu o que ainda restava da
essência moral da propriedade não se pode falar num dever moral de defesa da
mesma. Já não existe a menor parcela daquele tipo de compreensão para o
sentimento de propriedade que vive no coração de qualquer homem que deve comer
seu pão no suor e seu rosto.385
5.1.2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Duguit386, considerado o pai da concepção da função social da propriedade, foi quem
inaugurou o debate propondo a revisão da concepção individualista que coloca a propriedade
como direito absoluto:
A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a
função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária. A propriedade implica
para todo o detentor da riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da
riqueza social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a
propriedade não é de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito
383
IHERING, 1998, p. 79.
IHERING, 1998, p. 79-80.
385
IHERING, 1998, p. 79-80.
386
DUGUIT apud GOMES, Orlando. Direitos reais. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 108-109.
384
130
em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais
deve responder.
Sendo assim, verifica-se que a partir da evolução do pensamento jurídico, a propriedade
compreendida como direito fundamental sagrado e absoluto, entrou em crise. Tepedino
identifica a crise do direito de propriedade, “[...] quando graças a um Estado intervencionista,
multiplicavam-se as disciplinas concernentes ao domínio e, principalmente, impunha-se a
necessidade de mitigar o egoísmo (inteiramente legítimo) do proprietário com os limites [...]
do interesse social”.387
Roos388, juspositivista da chamada “Escola de Copenhague”, destaca que, embora o direito de
propriedade sempre tenha sido considerado como eminentemente privado,
[...] todos se dão conta, hoje em dia, que o direito de propriedade não é conferido ao
indivíduo meramente para a satisfação de seus interesses individuais, mas que está
submetido em grande medida a condições e restrições impostas com propósitos
sociais.
Estas idéias floresceram inicialmente na carta constitucional do México em 1917 e na
Alemanha em 1919. Em nosso país a carta de 1934, no Art. 113, assegurava no item 17 que
“[...] é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse
social ou collectivo, na forma que a lei determinar”.389 Na Constituição de 1946390, o Art. 147
determinava que “[...] o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social” enquanto
na Constituição de 1967, a função social da propriedade era mencionada no Art. 160, III. Na
Carta de 1988, a função social da propriedade foi inserida expressamente no rol dos direitos
fundamentais (art. 5º, XXIII), dentre os princípios que regem atividade econômica e financeira
(art. 170, III), assim como foi prevista nos Artigos 182 a 186 no que tange à forma de
identificação da função social da propriedade urbana e rural, sendo que a função social da
propriedade rural restou expressa no Art. 186, enquanto a identificação da função social da
propriedade urbana restou pendente de regulamentação, que foi efetuada pelo Estatuto da
387
388
389
390
TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da propriedade privada Revista de Direito Comparado,
Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 251-252, mar. 1998.
ROSS, 2000, p. 250.
BRASIL. Presidência da República. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho
de 1934). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao>. Acesso em: 4 maio 2004.
BRASIL, 2004.f
131
Cidade que, por sua vez, remeteu ao Plano Diretor Urbano a função de determinar a função
social da propriedade urbana.
Se a função social da propriedade sempre esteve prevista como princípio em outras cartas
constitucionais por que, então, tantas e novas discussões? O motivo é a possibilidade de
desapropriação, sanção pelo descumprimento da função social da propriedade e sua inclusão
no rol dos direitos fundamentais.
Para a compreensão do significado da inclusão da função social da propriedade no rol dos
direitos fundamentais, faz-se necessário identificar os efeitos do direito de propriedade,
assegurado como direito individual fundamental. Neste prisma o direito de propriedade,
convertido em salvaguarda individual contra os abusos do Estado, poderia ser considerado
absoluto. Com a inclusão do inciso XXIII, no Art. 5.º da CF submetendo o exercício da
propriedade à sua função social, temos a relativização deste direito de propriedade em favor
do direito à propriedade. O direito à propriedade é que consiste em direito fundamental, um
verdadeiro direito inerente ao ser humano, necessário ao abrigo e subsistência humana (o Art.
5º; XXII deveria ser direito à propriedade e não direito de propriedade, já que muitas vezes o
direito ao último impede o acesso ao primeiro).
O direito de propriedade é encontrado em seu devido sentido no Art. 170 II. Ambos os
direitos submetem sua utilização à função social da propriedade. Mesmo o direito à
propriedade necessária ao sustento e manutenção familiar deve ser exercitado de
conformidade com sua função, seja ambiental (de forma que não degrade o meio ambiente),
urbana (de conformidade com as destinações fixadas no planejamento urbano) ou até mesmo
social (local de abrigo da família, núcleo originário da sociedade de relevante interesse
social).
Grande parte da doutrina defende que “A função social da propriedade não se confunde com
os sistemas de limitação da propriedade”391, sob a alegação de que a primeira diz respeito à
própria estrutura do direito à propriedade, enquanto as limitações administrativas dizem
respeito ao exercício deste direito pelo proprietário. A função social da propriedade, também
se distingue por ser uma obrigação positiva392 enquanto as limitações urbanísticas por serem
391
392
SILVA, 2000a, p. 284-285.
Cf. GRAU, 2001.
132
negativas. Porém Sundfeld393, reconhecendo a possibilidade de obrigação positiva nas
limitações administrativa justifica: “[...] percebe-se que o fazer, nas duas hipóteses, tem um
caráter distinto. No primeiro caso, o das limitações, trata-se de condição para o exercício de
Direito. No segundo (função social), trata-se do dever de exercitar o mesmo direito”.
Embora não seja objeto deste trabalho solucionar a questão das limitações administrativas
integrarem ou não a estrutura do direito de propriedade, nos parece que os posicionamentos
acima merecem alguma reflexão crítica. A função social ambiental da propriedade muitas
vezes é exercitada mediante o cumprimento de uma obrigação negativa, a exemplo de
proprietários de áreas de preservação permanente, e em outros casos para o exercício do
direito de usar a propriedade é necessário o cumprimento de obrigações positivas como as
decorrentes dos relatórios de impacto ambiental.
Tanto a concepção de função social quanto as limitações administrativas buscam o
atendimento da mesma finalidade – o bem comum.
A justiça social, a sustentabilidade econômica e ambiental e a qualidade de vida são objetivos
abrangentes, porém, menos genéricos que o bem comum, mas certamente encontram-se
abrangidos por este último. A atual concepção da função social da propriedade certamente foi
construída a partir das fendas abertas na propriedade individual pelas limitações
administrativas.
Não se concebe sob o primado do planejamento urbano o adensamento populacional; os usos
impactantes; os fatores que viabilizam ou impedem a ventilação e insolação, a taxa de
permeabilidade do solo etc... sejam determinados a partir da ótica utilitarista individual do
titular da propriedade. O planejamento urbano impõe justamente o contrário. A partir da
identificação da função social da cidade é que se determinam os limites urbanísticos e os usos
conformes ou necessários à propriedade.
Pretender identificar a função social da propriedade a partir de um, de apenas um de seus
instrumentos (parcelamento, edificação e utilização compulsórios), parece um pouco
restritivo, quando o Estatuto das Cidades enumera outros instrumentos passíveis de utilização
para a construção de uma cidade que possua desenvolvimento humano e urbano justo e
393
SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adílson Abareu; FIGUEIREDO,
Lúcia Valle. (Coord.). Temas de direito urbanístico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 11.
133
ambientalmente sustentável, título de exemplo, citam-se as zonas de especial interesse social
(ZEIS), importante instrumento de implantação da função social da cidade e, por
conseqüência, da viabilização da função social da propriedade. Tanto pode viabilizar que a
propriedade informal seja regularizada e inserida na cidade formal, mediante projetos de
regularização: urbanística; ambiental; jurídicos e sociais (nestes casos o possuidor é titular do
direito subjetivo de exigir do estado uma prestação positiva), quanto pode destinar áreas à
preservação ambiental (exigindo a prestação negativa de não devastar ou prestação positiva de
recuperação de área degradada em face do proprietário) ou ao parcelamento compulsório
evitando a especulação imobiliária (hipótese de prestação positiva).
Grau394 distingue a propriedade dotada de função individual da propriedade dotada de função
social. A primeira destina-se a garantia da subsistência do indivíduo e de sua família,
enquanto a segunda seria justificada pelos seus fins, seus serviços, sua função. Esta distinção
por via de conseqüência, leva à conclusão de que há propriedade que não está submetida ao
princípio da função social por consistir em legítima garantia individual fundamental. Esta
visão partida da dimensão dos direitos fundamentais faz um corte desnecessário e impede a
integração entre os princípios constitucionais.
Toda a propriedade se submete à função social. A função social não é identificável mediante a
análise de uma única norma constitucional, mas deve ser identificada mediante análise
conjunta de diversos princípios e normas constitucionais aplicáveis ao caso concreto. Por
exemplo, a propriedade dotada de função individual de subsistência já cumpre com sua
função social pela própria destinação, que é assegurar o direito essencial à sobrevivência
humana, enquanto abrigo e, ou fonte de subsistência do homem e sua família, mas pode não
cumprir com sua função social ambiental, caso esteja situada em área de preservação
ambiental não passível de ocupação humana (nestes casos o ocupante pode ser removido para
outra área que lhe assegure a subsistência e abrigo sem que cause danos ambientais
relevantes.
Independentemente das discussões doutrinárias, o mais importante a ser destacado é que a
propriedade não pode ser considerada como um direito absoluto e intangível, passível de
acumulação e inércia, em atendimento ao interesse privado do titular do domínio, é um direito
relativizado, submetido à função social, que, no caso da propriedade rural, possui critérios
394
GRAU, 2001.
134
fixados no Art. 186 da CF e, no caso da propriedade urbana, terá seu exercício determinado
no Plano Diretor Urbano, elaborado mediante ampla discussão com toda a cidade.
Silva395 destaca que a grande maioria dos juristas brasileiros, “[...] concebem o regime
jurídico da propriedade como subordinado ao Direito Civil”e que estes confundem o princípio
da função social com as limitações de polícia. Tepedino396, também destaca a dificuldade de
compreensão dos civilistas diante das “[...] profundas transformações na disciplina da
propriedade no âmbito de uma ampla reforma de ordem econômica e social, de tendência
nitidamente intervencionista e solidarista”.
Se a propriedade privada se submete ao princípio da função social, o que dizer da propriedade
pública?
5.2 EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE PÚBLICA
Para continuar no caminho da busca científica faz-se imperiosa a análise da evolução da
concepção jurídica dos bens públicos assim como a fixação de conceitos básicos sobre o
domínio e seus efeitos sobre os bens públicos e particulares.
O domínio público é um conceito que não se confunde com o conceito de domínio
eminente397, este último, segundo Carvalho Filho398 é um poder geral do Estado sobre tudo
quanto esteja em suas linhas territoriais, “[...] um poder decorrente da própria soberania
estatal”. O domínio público, de conformidade com as lições de Bastos399 “[...] pode ser
entendido como um conjunto de bens possuídos pelo Estado e afetado ao atingimento de
finalidades coletivas e regido por um direito próprio, o direito administrativo”.
395
SILVA, 2000a, p. 274.
TEPEDINO, 1998, p. 239.
397
Embora muitas vezes sejam utilizados de forma correlacionadas “O domínio eminente não tem propriamente
um regime jurídico como ocorre com o domínio público. Ele traduz simplesmente, uma situação de
preeminência que vai justificar a edição pelo Estado de uma série de normas de grande abrangência e
profundidade, no caso se regulação do seu próprio domínio” (BASTOS, 1994, p. 304).
398
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual dedireito administrativo, 10. ed. rev. ampl. atual. Rio de
Janeiro: Lumen Juis, 2003. p. 870.
399
BASTOS, 1994, p. 305.
396
135
Com o desenvolvimento das sociedades de massas, a própria concepção do estado evoluiu,
com os direitos fundamentais de terceira geração, temos o surgimento de novas categorias de
interesses, que necessariamente estão vinculados e determinados bens, que acabaram
rompendo com concepção dualista existente entre o público e o privado, que são os interesses
coletivos e difusos. Inseridos no conceito de domínio eminente, há, segundo a classificação
proposta por Rodrigues e Fiorillo400, bens públicos, privados e difusos. Esses autores
defendem que a partir do Código do Consumidor não se pode mais falar em simples distinção
entre bens públicos e privados.
Os bens atualmente designados bens difusos estão incluídos no conceito de bens públicos
dominicais. Com a Constituição Federal de 1988 houve um reconhecimento da existência de
bens difusos em seu Art. 5º, inciso LXXIII, que confere a qualquer cidadão a legitimidade
“[...] para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade
que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, e ao patrimônio
histórico e cultural”. Este autor entende que a “[...] titularidade do bem público é diferente da
titularidade do bem difuso”401 e que “[...] não há como coadunar o conceito de bem público
com bem difuso”. Em verdade este é mais um dos desafios que a modernidade impõe aos
doutrinadores. Os bens se dividem então em públicos, privados ou difusos ou “[...] então se
admite uma transformação no sistema, de forma que os bens de domínio público sejam
espécies de um gênero ‘bens da coletividade’ no qual se incluiriam os bens difusos”.402 Na
verdade esta nova classificação deverá levar em conta apenas a qualidade dos interesses
tutelados, não mais a titularidade destes bens, porque teremos direitos difusos pertencentes
tanto a particulares quanto ao poder público. Bens de uso comum do povo poderão ser objeto
de interesse difuso da mesma forma que florestas particulares.
Diante de todas estas novidades uma certeza é inegável, os interesse difusos e coletivos
devem ser considerados na gestão e destinação dos bens públicos.
Os terrenos de marinha, faixa de terra que se encontra totalmente inserida na Zona Costeira,
declarada pelo Art. 225 da CF, patrimônio nacional, é um exemplo vivo de um bem sobre o
qual temos diversos interesses difusos.
400
FIORILLO; RODRIGUES, 1999. p. 96.
FIORILLO; RODRIGUES, 1999. p. 96.
402
FIORILLO; RODRIGUES, 1999, p. 97 e 98.
401
136
Os bens públicos podem ser classificados de diversas formas, o critério adotado pelo código
Civil (Art. 99) é o critério da destinação ou da afetação do bem. Sob este critério temos: bens
de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais. Os bens de uso comum do
povo são aqueles que, por sua natureza, são destinados a fruição coletiva, não sendo passível,
em via de regra, de apropriação privada, de que são exemplos rios, mares, praias, praças, ruas,
parques, etc, isto é, bens públicos destinados à utilização por parte do povo. Os bens de uso
especial são aqueles destinados aos serviços públicos enquanto os bens dominicais são os
bens privados do Estado, não afetados ao atendimento de qualquer interesse público, estes são
considerados como propriedade privada do Estado. Pergunta-se: esta propriedade sem
destinação pública deve obediência ao ditame constitucional que exige o exercício da
propriedade de conformidade com sua função social?
Será que um bem público dominical, abandonado há vários anos, ocupado por pessoas que
erigiram suas moradias e o tornaram produtivo por força de seu trabalho, cumpre com sua
função social ao ser considerado inatingível? Será que um bem público dominical ocioso, da
União, necessário ao desenvolvimento urbano deve ser inatingível aos instrumentos de
parcelamento, edificação e utilização compulsórios? Para responder a estas questões impõe-se
um estudo histórico e comparado destes bens.
A concepção dos bens públicos origina-se em Roma e consolida-se com a revolução francesa.
A partir desta as coisas públicas antes pertencentes ao povo passaram ao domínio do Estado,
desaparecendo a concepção de bens de uso comum do povo como sendo res nullius. Com esta
mudança “[...] as grandes codificações do direito civil em fins do século XVII e princípios do
século XIX, regulam a matéria declarando-se as coisas públicas como propriedade geral do
estado, o domínio público, o bem público, a propriedade inquestionável do Estado.”403
Como a concepção da propriedade pública floresceu em berço positivista, era
contraditoriamente aceitável na época que o Estado editasse normas que atendesse aos seus
interesses fiscais, mesmo que colidentes com o interesse coletivo. Os terrenos de marinha
foram um exemplo vindo do entendimento de que o interesse do Estado se confundia com o
próprio interesse da coletividade, desta forma não causava nenhum espanto que um bem
destinado à defesa da costa e segurança nacional fosse apropriado de forma perpétua por
particulares, mediante pagamento de valores em favor do Tesouro Nacional.
403
CRETELA JÚNIOR, 1975a, p. 25.
137
Com o advento do Estado Nação há o desenvolvimento da teoria do domínio público a partir
da concepção francesa que identifica o Estado como uma pessoa jurídica passível de ser
titular de dois tipos de bens: de domínio público e de domínio privado.404 A primeira
categoria diz respeito aos bens destinados ao uso público, a segunda aos demais bens
considerados bens de domínio do Estado. Nesta concepção os bens privados, de domínio do
estado, por serem privados, em via de regra, não se sujeitam às regras de direito público e sim
às de direito privado.405
5.2.1 O patrimônio privado do estado no direito comparado
No direito comparado, segundo se depreendem de estudo de Viana406, há tratamento jurídico
privilegiado aos bens afetados a uma destinação pública, enquanto os bens privados do estado
não gozavam de proteção jurídica especial.
Na Itália, o patrimônio privado do Estado rege-se por normas de Direito Civil. Os bens do
Estado, na Itália, compreendem os bens de domínio público e bens patrimoniais do Estado. O
domínio público é formado pelos bens de uso comum, enquanto os bens patrimoniais do
Estado se subdividem em bens do patrimônio disponível e do patrimônio indisponível.
Os bens do patrimônio indisponível são aqueles destinados aos serviços públicos,
que embora não sejam considerados bens do domínio público possuem uma relativa
limitação na faculdade de alienar, mas ‘se sujeitam às regras do direito civil,
inclusive quanto à posse usucapião e prescrição’.407
No Direito uruguaio, segundo o autor, os bens nacionais se subdividem em bens públicos e
bens fiscais. Os bens públicos são aqueles cujo uso pertence a todos os habitantes do Estado, e
aqueles cujo uso não pertence geralmente aos habitantes se dizem bens privados do Estado ou
bens fiscais. As terras públicas que nunca saíram do domínio do Estado são consideradas bens
públicos do Estado, porém as terras que já foram alienadas pelo Estado e que tenham
retornado ao seu patrimônio são considerados terrenos fiscais, sujeitos à prescrição
404
“Hoje se adotam no Direito francês: os bens de domínio público e os bens de domínio privado do Estado.
(DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 528).
“A menos que se insiram no contrato cláusulas exorbitantes (como a da precariedade. A não sujeição ao
direito civil, a da competência do contencioso administrativo para dirimir os litígios, etc.) os contratos
relativos ao domínio privado do Estado regulamenta-se pelo direito commum.” (MOTTA, Eduardo Vianna.
Regime jurídico dos bens públicos. Revista de Direito Público, v. 5, p. 79, jul./set. 1968).
406
MOTTA, 1968.
407
MOTTA, 1968, p. 81.
405
138
Os bens fiscais, no direito uruguaio, são alienáveis e prescritíveis, mas
impenhoráveis. As terras públicas, todavia quanto a prescrição, sujeitam-se a regime
especial. [...] os bens fiscais, no direito uruguaio, são alienáveis e prescritíveis, mas
impenhoráveis.408
No México, o patrimônio nacional é composto por bens de domínio público e bens de
domínio privado da federação, os primeiros “[...] son inalienables e imprescritibles y no
estarán sujetos, mientras no varíe su situación jurídica, a acción reivindicatoria o de
posesión definitiva o provisional”409 os segundos, nos termos do “[...] articulo 60, son
inembargables e imprescritibles” e “[...] puedem ser objeto de todos los contratos que regula
el derecho común com excepción de da donación y del comodato, salvo em los casos que
estos contratos estén autorizados expressamente em esta ley”.410
Na Argentina, que adotou o projeto de Código Civil de Teixeira de Freitas, os bens do Estado
são divididos em Bens de domínio público e bens de domínio privado – “[...] el Código Civil
prevé la distinción entre dominio público y dominio privado del Estado (arts. 2329, 2340 y
2342. Código Civil)”.411 Os bens de domínio público do Estado são aqueles afetados pelo
interesse público, contendo em seu interior os bens de uso comum e os bens de uso especial,
são impenhoráveis e não podem ser adquiridos por usucapião. Os bens de domínio privado do
Estado, ou bens patrimoniais que equivalem ao nosso bem dominical podem ser adquiridos
por prescrição
Na Espanha, a exemplo da esmagadora maioria os bens públicos são classificados como bens
de domínio público e bens de domínio privado do Estado, também chamados de patrimônio
fiscal do Estado. Os bens do patrimônio fiscal do Estado, além de não possuírem “[...] as
características da inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade”, também não
“[...] gozam de favor de regras especiais em matéria de retomada de posse. Sujeitam-se eles,
por uma forma muito mais intensa que no nosso direito, às disposições do direito civil
usual”.412
408
MOTTA, 1968, p. 58.
CAMARA MEXICANA DE LA INDUSTRIA DEL TRANSPORTE MARÍTIMO, 2004.
410
CAMARA MEXICANA DE LA INDUSTRIA DEL TRANSPORTE MARÍTIMO, 2004. Art. 71.
411
DROMI, José Roberto. Manual de derecho administrativo. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo Y
Ricardo Depalma, 1987. Tomo, p. 17.
412
MOTTA, 1968, p. 66.
409
139
Em Portugal temos uma clara distinção entre a res quae sunt in usum público a propriedade fiscal –
in patrimonio fisei – bens do domínio público do Estado e os bens do domínio privado do Estado.
As coisas públicas são inalienáveis, impenhoráveis, e imprescritíveis – mas apenas
enquanto perdura a afetação. Os bens do domínio privado do Estado e dos corpos
administrativos são alienáveis e prescritíveis; mas, a alienação está sujeita a
formalidades especiais reguladas pelo direito administrativo e até pelo direito
constitucional.413
Assim, há nestes países os bens privados do Estado sujeitando-se às normas de direito
comum, dentro de algumas especificidades. Dentre os países citados pode-se enumerar os que
admitem a usucapião do patrimônio privado do Estado: Argentina, Portugal, Espanha,
Uruguai, Itália e França, demonstrando que somente os bens destinados a uma função pública
possuem maior proteção jurídica, enquanto os demais bens, privados, aqueles que o Estado
não utiliza para finalidades públicas, recebem tratamento jurídico que em muito se assemelha
aos conferidos aos bens privados.
5.2.2 Regime jurídico do patrimônio privado do Estado no Brasil
No Brasil, antes do advento do código civil era admitido o usucapião dos bens dominicais,
tradição jurídica que foi quebrada a partir da modificação efetuada na tramitação do código
civil e na redação defeituosa imposta ao artigo 67.
5.2.2.1 A alienabilidade e prescritibilidade dos bens dominicais no
anteprojeto do código civil
Cretela Jr.
414
, comentando esta questão, destaca que Beviláqua nunca pretendeu conferir a
inalienabilidade aos bens dominicais, ao contrário, inicialmente em seu projeto propunha a
exemplo de Santos, que somente os bens comuns seriam inalienáveis e imprescritíveis,
conforme se depreende da transcrição abaixo do artigo 81 do projeto de Código Civil:
413
414
MOTTA, 1968, p. 70.
CRETELA JÚNIOR, José. Tratado do domínio público. Rio de janeiro: Forense, 1984. p. 404.
140
Os bens comuns, enquanto conservarem esse caráter, não são alienáveis, nem
sujeitos a usucapião; os de uso especial e os patrimoniais podem ser alienados, de
conformidade com as leis, que os regulam.
Aduz o autor que Beviláqua415, convencido de que os bens de uso especial também deveriam
ser inalienáveis, estendeu esta característica a estes. Porém a Câmara dos Deputados em
redação infeliz, “[...] pretendeu dar um passo além, considerando inalienáveis todos os bens
públicos, regra incompreensível e errônea que se consubstanciou no referido artigo de nosso
código civil (art. 67)”.
O art. 67416 normatizava que “[...] os bens de que trata o artigo antecedente só perderão a
inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e formas que a lei prescrever”. A grande
discussão era sobre o significado jurídico da expressão “inalienabilidade que lhes é peculiar”.
Este artigo de redação confusa alterou a concepção sobre a prescrição dos bens do patrimônio
privado do Estado.
Na época Santos se batia com Clóvis, defendendo que apenas os bens de uso comum do povo
seriam imprescritíveis, enquanto os demais seriam passíveis de usucapião.
Santos417 não concebia a inexistência de prescrição aquisitiva contra o Estado e afirmava que:
[...] o Estado não pode ser privilegiado no tratamento, no que diz respeito às
questões patrimoniaes, para que se fechasse olhos à sua negligência e à sua renuncia,
ou ao seu descaso, que, afinal de contas, é uma das causas do usucapião, maxime si
se tiver em vista que o Estado leva até vantagens sobre os particulares em tudo que o
respeita aos meios mais efficientes de defesa e prevenção de que pode dispor.
Conforme ressalta Themistocles Cavalcanti, boa parte da doutrina da época interpretava o Art.
67 de forma coerente com a afetação do bem, ou seja os bens dominicais seriam prescritíveis.
Era esta a opinião dos autores mais antigos, como Coelho da Rocha (Instituições de Direito
Civil Português, § 464), Almeida Oliveira (Da prescrição) Lacerda de Almeida (Direito das
Coisas) Carlos de Carvalho(Nova Consolidação das Lei Civis) e antes destes, Teixeira de
Freitas (Consolidação das Leis Civis e Correia Teles.(Doutrina das Ações.32). 418
415
CRETELA JÚNIOR, 1984, p. 405.
BRASIL, 1999.
417
SANTOS, João Manuel Carvalho. Código civil brasileiro: interpretado. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1938. v. 2, p. 148.
418
Cf. CAVALCANTI, 1977, p. 315.
416
141
5.2.2.2 A imprescritibilidade decorrente do Decreto n.º 22.785, de 31
de maio de 1933
Até a edição do Decreto 22.785419, de 31 de maio de1933, os tribunais eram vacilantes e havia
muitos julgados que distinguiam os bens públicos dos bens privados do Estado, admitindo a
prescrição aquisitiva dos bens dominicais, por serem alienáveis. A interpretação imposta ao
Art. 67 por um governo ditatorial foi que tornou todos os bens públicos inalienáveis e
imprescritíveis, impenhoráveis420, mesmo os que integravam o patrimônio privado do Estado,
conforme se verifica no relato de Cavalcanti
Embora seja ensinado que os bens dominicais são aqueles que podem ser alienados
porque não estão afetados por um interesse público direto, temos interpretações do
antigo art. 67 que afirmam que no Brasil temos expresso no art. 67, o princípio geral
da inalienabilidade de todos os bens públicos.
Esta visão distorcida do regime jurídico devido ao patrimônio privado do Estado, imposta
originalmente por meio de Decreto, em 1988 assumiu status constitucional por força do Art.
183 § 3º da CF que expressamente veda o usucapião de bens públicos.
Por este motivo ainda encontramos na doutrina nacional afirmações que mais se coadunam
com a doutrina estrangeira. Di Pietro421 verifica um ponto em comum com a doutrina
estrangeira, que é a destinação pública e defende que sob o “[...] aspecto jurídico pode-se
dizer que há duas modalidades de bens públicos: 1. os do domínio público do Estado,
abrangendo os de uso comum do povo e os de uso especial; 2. os do domínio privado do
Estado, abrangendo os bens dominicais; Cretela Júnior422 fazendo remissão a D’Alessio,
assim nos ensinava nos idos de 1975:
São bens patrimoniais disponíveis os que pertencem aos entes públicos, os quais
não são destinados nem ao uso público, imediato, gratuito, dos particulares, nem são
419
“As divergências doutrinárias, que tiveram reflexo imediato sobre as jurisprudências dos Tribunais, tomaram
um sentido tão alarmante na falta de uma determinação legal que declarasse expressamente a
imprescritibilidade dos bens públicos, que o Governo Provisório, em 1932, resolveu baixar um decreto
declarando que não poderia correr a prescrição aquisitiva contra os bens públicos, qualquer que fosse a sua
natureza (25) É que uma larga corrente doutrinária e segundos acórdãos de nossos tribunais declaravam que
os bens públicos simplesmente patrimoniais poderiam ser adquiridos por usucapião, quando satisfeitas as
exigências de nossa lei civil” (CAVALCANTI, 1977, p. 315).
420
CAVALCANTI, 1977, p. 312.;
421
DI PIETRO, 2001, p. 528.
422
D´ALESSIO apud CRETELLA JÚNIOR, 1975, p. 45.
142
destinados à execução de um serviço público especial. Tais bens estão sujeitos às
normas do direito privado comum.
Gasparini423, afinado com o espírito do Decreto de Getúlio Vargas, é taxativo ao afirmar que
“[...] todos os bens públicos guardam genericamente o mesmo regime jurídico. São
impenhoráveis, imprescritíveis e inalienáveis”.
Enquanto a propriedade privada se publicizou, a propriedade privada pública, os bens
dominicais se tornam cada vez mais absolutos e intocáveis.
Assim, os bens públicos dominicais, propriedade privada do Estado, se tornaram
intangíveis, ainda que ociosos ou abandonados pelos proprietários, numa clara contradição
com o princípio da função social da propriedade. O bem público, mesmo que seja
dominical, por ser público necessariamente deve destinar-se à consecução do bem comum.
Os bens dominicais possuem muito mais motivos que os particulares, para servir ao
interesse público de viabilizar o acesso à terra rural e urbana, assim como ao
desenvolvimento das funções sociais da cidade.
Desta forma, na contramão da evolução jurídica da propriedade privada particular,
propriedade privada do estado se torna cada vez mais privada e absoluta, ferindo
frontalmente o próprio Estado Democrático de Direito. Se o Estado detém um patrimônio,
este patrimônio, obrigatoriamente, deve servir a uma função coletiva, deve destinar-se ao
bem comum. A destinação privada de bem público em detrimento do bem comum,
conforme já ressaltado anteriormente, expressa a negativa da supremacia do interesse
público.
5.3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA
Os terrenos de marinha, como propriedade da União também se submetem às normas
constitucionais relativas à função social? Certamente que sim, pela própria essência do Estado
Democrático que pugna pelo bem comum; ademais, toda e qualquer propriedade deve ser
423
GASPARINI, 2003, p. 735.
143
utilizada de conformidade com sua função social, mais motivos tem ainda a propriedade
pública, já que estão afetados pelo atingimento de finalidades coletivas.
O texto constitucional que garante o direito de propriedade e o subordina nos termos do Art.
5°, XXIII, ao atendimento de sua função social, não discrimina a propriedade pública da
propriedade privada, cuida do gênero, não da espécie, diz respeito a todo o tipo de
propriedade.
No caso da propriedade pública, que deve ser gerida de conformidade com o verdadeiro
interesse público, a identificação de sua função social em cada caso concreto torna a questão
ainda mais tormentosa, já que o princípio da legalidade exige previsão normativa para os atos
da administração e as normas relativas aos bens públicos são elaboradas pelo Executivo,
muitas vezes em defesa de seus interesses fiscais que, na grande maioria das vezes, colidem
com interesses públicos diversos.
Como interpretar a estrutura jurídica atual de forma que se viabilize a efetivação da função
social dos terrenos de marinha? Como identificar a função social de um bem público que está
classificado equivocadamente pela esmagadora maioria da doutrina?
5.3.1 Função Social Constitucional
Silva424 destaca a multidisciplinariedade da função social da propriedade, “[...] o regime
jurídico da propriedade não é uma função do Direito Civil, mas de um complexo de normas
administrativas, urbanísticas, empresariais e civis (certamente) sob fundamento das normas
constitucionais.
Os principais artigos constitucionais que fixam parâmetros de identificação da função social
da propriedade são os Arts. 182, § 2º, e 186. O primeiro diz respeito à função social da
propriedade urbana (“[...] quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade
expressas no plano diretor”) e o segundo à função social da propriedade rural (quando atende
simultaneamente425,
424
425
SILVA, 2000a, p. 277.
Segundo critérios e graus de exigências estabelecidos em lei.
144
[...] aos seguintes requisitos: I aproveitamento racional e adequado; II utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III
observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O não-exercício da propriedade privada de conformidade com as funções sociais
constitucionais implicará sanções, também constitucionalmente previstas.
Para se aferir de forma adequada o significado da relativização da propriedade, faz-se
necessário um estudo sistemático, integrado da norma jurídica. Não se pode compreender a
função social da propriedade apenas sob a visão civilista, nem sob uma visão partida do
direito constitucional. A especialização efetuada pelo desenvolvimento das ciências foi
bastante importante para o desenvolvimento do conhecimento específico, mas é extremamente
danoso para a visão sistêmica, seja na medicina, onde um ortopedista acaba sendo incapaz de
identificar dificuldades de locomoção fundadas em problemas neurológico seja em qualquer
ciência, a exemplo do Direito. O Direito não pode ser estudado de forma
compartimentalizada, o Direito pátrio é uno, é um sistema que decorre de uma norma única, a
carta magna. O Direito Administrativo não pode compreender um mesmo fenômeno jurídico
de forma diversa do Direito Civil ou do direito ambiental ou urbanístico. Todas estas
disciplinas devem ser estudadas de forma integrada em consonância com as normas e
princípios constitucionais.
Para entender a função social da propriedade deve-se levar em conta: o fundamento
constitucional da dignidade do ser humano, o direito à moradia familiar; os valores sociais do
trabalho; o direito ao desenvolvimento sustentável; o direito ao planejamento e
desenvolvimento urbano municipal de forma includente que assegure as funções sociais da
cidade, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim como o direito à terra
constitucionalmente assegurado aos negros426, índios, etc.
Tepedino427 com propriedade destaca que a constituição de 1988 criou uma propriedade
constitucional. Propriedade esta que possui características e limites determinados pelas
situações concretas, mediante processo interpretativo embasado em princípios constitucionais.
Desta forma, destaca o autor que em nosso país, não há que se falar em crise no ordenamento
jurídico da propriedade, porque a Carta Constitucional submete esta ao exercício da função
426
427
Remanescentes de quilombos.
TEPEDINO, 1998, p. 252-253.
145
social, mas que esta ocorrerá quando o intérprete não conseguir se despir dos conceitos
antigos.
Disto deriva, consequentemente, a necessidade de abandonar a idéia de uma
propriedade que, falsamente reconstruída, sofreria um tipo de ‘corrosão’, provocada
pelos princípios constitucionais, de sorte que se poderia conferir uma espécie de
salvo-conduto (jus plenum domini) ao proprietário no interior do território (meum
esse) que lhe restou, ainda não corroído. A propriedade constitucional, ao contrário,
não se traduz numa redução quantitativa dos poderes do proprietário, que a transformasse em uma ‘mini propriedade’, como -alguém, com fina ironia, a cunhou,
mas, ao reverso, revela uma determinação conceitual qualitativamente -diversa, na
medida em que a relação jurídica da propriedade, compreendendo interesses nãoproprietários (igualmente ou predominantemente) merecedores de tutela, não pode
ser examinada ‘se non construendo in uma endiadi le situazione del proprietário e
dei terzi’. Assim considerada, a propriedade (deixa de ser uma ameaça e)
transforma-se em instrumento para a realização do projeto constitucional.
A realização do projeto constitucional, a partir do exercício da função social da propriedade,
somente será possível mediante uma análise conjunta dos valores e princípios expressos em
nossa Carta Magna. A função social da propriedade não se limita à possibilidade de
desapropriação (sanção) da propriedade exercitada em desconformidade com sua função
social, esta hipótese explicita apenas um único dentre diversos instrumentos colocados pelo
Estatuto da Cidade à disposição do projeto constitucional.
Tepedino428 destaca que:
[...] a disciplina da propriedade, como se viu, expressa através de longo elenco de
artigos, é concebida no âmbito da mais ampla política fundiária, levando-se em
consideração a programação e o planejamento da utilização do solo urbano e
rural, razão pela qual parece oportuno identificar os princípios fundamentais
que definem os deveres do Estado e dos particulares na ordem econômica,
trazendo a lume os valores que informam o direito de propriedade. (Grifo nosso).
Dentre as normas constitucionais relevantes para a compreensão da verdadeira dimensão da
função social da propriedade destacam-se:
a) Art. 1º - fundamento do Estado Democrático de Direito Brasileiro - dignidade do ser
humano; valores sociais do trabalho;
b) Art. 3º - objetivo fundamental - desenvolvimento nacional; promoção do bem de todos;
construção de uma sociedade livre justa e solidária;
428
TEPEDINO, 1998, p. 242.
146
c) Art. 182 - direito ao planejamento e desenvolvimento urbano municipal para assegurar as
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes;
d) Art. 6º - direito à moradia429 e ao lazer;
e) Art. 226 – direito de proteção à família, base da sociedade; pelo Estado;
f) Art.225 - direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado;
g) Art. 225 § 4º - direito à utilização da Zona Costeira - patrimônio nacional - “[...] dentro de
condições que asseguram a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos
recursos naturais”;
h) Art. 231 - direito dos índios sobre as terras “[...] que tradicionalmente ocupam [...]”, que
são nos termos do § 4º do mesmo artigo inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis;
i) Art. 68 do ADCT direito aos remanescentes de quilombos á propriedade das terras
historicamente ocupadas;
j) Art.5º, inciso XXII - direito à propriedade;
k) Art. 5º, inciso XXIII - função social da propriedade;
l) Art. 170 - propriedade privada;
m) Art. 170 III - função social da propriedade
Todos estes comandos constitucionais devem ser analisados pelo intérprete na identificação
da função social da propriedade, seja ela pública, seja privada.
Assim, verifica-se que a função social da propriedade, seja ela pública seja privada, não pode
ser aferida de forma abstrata nem uniformizada, faz-se necessário, sob o enfoque dos valores
e direitos já arrolados, identificar quais interesses públicos tutelados constitucionalmente
encontram-se presentes no caso concreto, para que o intérprete por meio de atividade
hermenêutica possa identificar a função social da propriedade em exame.
429
Incluído pela Emenda Constitucional n.º 26, de 14 de fevereiro de 2000 (BRASIL, 2003b).
147
6 A NATUREZA JURÍDICA DOS TERRENOS DE MARINHA
Diante da pluridiversidade de interesses individuais e metaindividuais existentes de forma
conflituosa nestas áreas costeiras, é imperiosa a identificação de critérios mais adequados à
realidade e às necessidades sociais. Assim, será efetuada uma análise da afetação originária
dos terrenos de marinha, o desvio de finalidade ocorrido para fins fiscais, a afetação destas
áreas geográficas no Direito Comparado, o entendimento da doutrina nacional sobre sua
natureza jurídica, para que se possa, de forma crítica, propor uma nova classificação destes
bens públicos.
6.1 AFETAÇÃO ORIGINÁRIA
Os terrenos de marinha, desde sua origem consistem em uma faixa geográfica de terra ao
longo da costa brasileira de propriedade do Estado. Esta propriedade pública sempre esteve
inserida em área ocupada por núcleos urbanos.
A ocupação da costa brasileira teve sua origem do período colonial. Embora o Tratado de
Tordesilhas assegurasse o direito de Portugal, muitos países não reconheciam a validade deste
tratado, a exemplo do Rei de França430 , e tentavam implantar colônias nas terras descobertas.
Diante da dificuldade diplomática de reconhecimento por parte dos outros países da repartição
do mundo americano apenas entre duas nações e em face da dificuldade na manutenção de
uma força de defesa da costa brasileira, em decorrência da distância e de sua extensão
territorial, a metrópole, objetivando o povoamento desta “costa desprotegida”, conferiu
grandes parcelas de terras a donatários que recebiam plenos direitos para povoar e defender a
terra em nome do rei de Portugal. Estes donatários possuíam, dentre outros poderes, o de
distribuir terras para fins de colonização.
430
O rei de França não reconhecia esta repartição do mundo entre Espanha e Portugal: “Le soleil luit pour moi
comme pour les autres; je voudrais bien voir la clause du testament d’Adam qui m’exclut du partage du
monde” (LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 315).
148
O regime colonial, visava a exploração do território descoberto em favor da riqueza da
Metrópole, nesta época temos como política dominante o “[...] fiscalismo – subordinação da
autoridade pública aos interesses ficais ou privados do Estado”.431
A ocupação do território se deu mediante doações, concessões de sesmarias e de ocupações
não-tituladas. As sesmarias eram glebas de terras cedidas a particulares com a condição de
que este se estabelecesse na terra, e a colonizasse, sob pena de retornarem à coroa. Tais
sesmarias eram outorgadas sob ressalvas de colonização, mas constituíam títulos de domínio
pleno, suscetíveis apenas de revogação pelo não implemento dos encargos assumidos. Esta
ocupação do território brasileiro foi bastante custosa e foram muitos os beneficiários de terras
que desistiram de seus propósitos de colonização da terra brasileira. Com o não cumprimento
das condições insertas nas cartas de sesmarias, as terras eram “devolvidas” à Coroa
Portuguesa passando a serem denominadas terras devolutas. Este insucesso é tido por Lira432
como “[...] o embrião da grande questão fundiária agrária que no futuro viria a constituir-se
no latifúndio improdutivo. Ainda conforme este autor433, ao contrário das sesmarias que se
revelaram um retumbante fracasso tivemos o desenvolvimento de “ocupações desapoiadas em
qualquer dispositivo legal, apresentando, contudo, largo alcance sócio-econômico”. 434 Estas
ocupações produtivas do solo que decorreram da ação de “[...] povoadores que passaram a
assentar em tratos de terra da Coroa que, embora concedidos, não haviam sido ocupados,
muito menos delimitados e confirmados”
435
se mostraram exitosas, tanto que foram
reconhecidas pelo Alvará de 05 de outubro de 1795, que objetivava a regularização destas
posses.
A primeira norma legal que dispõe sobre os terrenos de marinha que os afetou ao “[...] serviço
de defesa da terra [...]”, foi a Ordem Régia de 21 de outubro de 1710; estas áreas foram
excluídas das sesmarias porque não deveriam ser apropriadas de forma privativa.
Assim, foi a segurança nacional o primeiro motivo da não-concessão das áreas de marinha
para particulares e sua reserva ao domínio público: “[...] que as sesmarias nunca deveriam
431
LIMA, 1964, .p. 30.
LIRA, 1997, p. 317.
LIRA, 1997, p. 317-318.
434
LIRA, 1997, p. 317.
435
LIRA, 1997, p. 317.
432
433
149
compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu
serviço de defesa da terra”.436
Como inexistia uma identificação precisa dos limites desta área excluída das sesmarias,
muitas construções estavam avançando sobre estas áreas; em decorrência de informações
vindas da colônia, o Rei de Portugal, por meio da Ordem Régia de 10 de dezembro de 1726,
proibiu: “[...] edificar nas praias ou avançar sequer um palmo para o mar, por assim exigir o
bem público”.437
A Ordem Régia de 10 de janeiro de 1732438, outra norma que objetiva a tutela de interesse
coletivo, assegurou aos pescadores o direito de lançar redes nas praias e no mar, proibindo os
proprietários dos terrenos de testadas de impedir a pesca, iniciando a afetação das marinhas
como bem garantidor do acesso ao mar.
No Brasil Colônia houve uma clara preocupação com o interesse público na destinação e
proteção dos terrenos de marinha, que somente em via de exceção houve a ordem de aforar os
terrenos das praias da Gamboa e Sacos dos Aferes, para construção de armazéns e
trapiches.439
A destinação pública dos terrenos de marinha fica ainda mais evidente a partir do Aviso de 18
de novembro de 1818, que, além de declarar os terrenos de marinha “reservados à servidão
pública”, fixa pela primeira vez sua medida: “[...] 15 braças da linha d’água do mar, e pela sua
borda são reservados para servidão pública; e que tudo o que toca a água do mar e que acresce
sobre ela é da Nação”.440
Analisando a primeira norma que efetivamente identifica os terrenos de marinha, verifica-se
claramente que este foi reservado para servidão pública. Mello441 destaca a intenção originária
de destinação coletiva de tais bens:
Já nos tempos do Brasil-Colônia se cogitava do domínio público sobre os terrenos
de marinha e terrenos reservados, consoante a tradição provinda do direito
português, destinados a fins específicos de interesses coletivos.
436
CRETELA JÚNIOR, 1975a, p. 296.
MADRUGA apud SILVA, 1976, p. 318.
438
SANTOS, 1985, p. 5.
439
Decreto de 21 de janeiro de 1809 que foi suspenso pelo aviso de 15 de maio de 1819 (SANTOS, 1985, p. 5).
440
MADRUGA apud SILVA, 1976, p. 318.
441
MELLO, 1945.
437
150
Assim, verifica-se que durante o Brasil-Colônia inexistia, em via de regra, qualquer desvio de
finalidade no uso dos terrenos de marinha, pois que destinavam-se a servidão pública de bem
de propriedade da nação.442 Como bem ressaltado por Mello443 estes eram “[...] destinados a
fins específicos de interesses coletivos”.
Seis meses depois da destinação destes terrenos à servidão pública, através do aviso de 18 de
novembro de 1818444, foi editado o aviso de 15/05/1819 suspendendo o Decreto de 21 de
janeiro de 1809445, que mandava aforar terrenos para construção de armazéns e trapiches. Esta
revogação (cuja real motivação não pode ser aferida), encontra-se em plena consonância com
a doutrina atual, uma vez que “[...] o uso privativo pelo particular não pode contrariar o
interesse público, pois se assim fosse não poderia ocorrer.”446
Os bens públicos de uso comum do povo eram conhecidos desde os romanos, não pertenciam
ao Estado e sim ao populus romanus estando “[...] franqueados ao uso de todos, como os
portos, os rios, os caminhos públicos”.447
No Direito romano, há disposições jurídicas bastante claras sobre a propriedade. Na
classificação dos bens (Institutas) as coisas poderiam estar no patrimônio (in patrimonium) ou
fora do patrimônio (extra patrimonium). Somente as coisas (res) que estão no patrimônio que
poderiam ser objeto de apropriação privada. A res extra patrimonium (coisa fora do
patrimônio) se subdividem em res nullius divini juris e res nullius humani juris. A primeira
corresponde as coisas destinadas aos Deuses, sendo sagradas, enquanto as segundas são coisas
não passíveis de apropriação privada por força do direito humano. A res nullius humani juris
compreende três tipos distintos: a)a res communes, que são coisas comuns a todos por força
de sua própria natureza, que não são passíveis de pertencer de forma a ninguém, como é o
caso dos mares, rios, portos etc; b)a res publicae, eram as coisas pertencentes aos Estado,
tidas como propriedade de todos e subtraídas ao comércio, “[...] compreendem o domínio
terrestre, marítimo, lagos rios, estradas públicas, as terras e escravos públicos; c) a res
universitatum ou universitates, que são o fórum, as ruas, as praças públicas etc”.448
442
Bem de uso comum do povo, como nos demais países do mundo.
MELLO, 1945.
444
SANTOS, 1985, p. 5.
445
SANTOS, 1985, p. 5.
446
MEDAUAR, 2003, p. 269.
447
CRETELA JÚNIOR,1975a, p. 23. e MASAGÃO apud CRETELA JÚNIOR, 1975a, p. 23.
448
CAVALCANTI, 1977, p. 43.
443
151
Com a declaração da independência, o Brasil passou a ser um Estado governado por um
imperador absolutista, que nos outorgou a primeira constituição, a Constituição de 1824, e os
bens anteriormente pertencentes a Portugal, passaram a pertencer ao Império, repartindo-se
em: bens de domínio do Estado, Bens de Domínio da Coroa e Bens de Domínio Público.449
Até 1831 a destinação pública dos terrenos de marinha era respeitada. Porém como a concepção
da propriedade pública liberal floresceu em berço legalista extremado, não causava qualquer
incômodo na doutrina pátria que o Estado pudesse editar normas que prejudicassem o interesse
público primário a fim de atender aos seus interesses fiscais, interesse público secundário. Desta
forma, objetivando auferir receitas para o “Thesouro”, foi editada a Lei orçamentária de 15 de
novembro de 1831450, que, contrariando a destinação pública dos terrenos de marinha, no artigo
51, os tornou concessíveis por título perpétuo, incomutável, e irrevogável.
Art. 51. O governo fica autorizado a arrecadar no ano financeiro de 1ª de julho de
1832 ao último junho de 1833, as rendas que foram decretadas para o ano de 18311832, com a as seguintes alterações: [...]
14ª. Serão postos à disposição das Câmaras Municipais, os terrenos de Marinha, que
estas reclamarem do ministro da Fazenda ou dos Presidentes das Províncias, para
logradouros públicos e o mesmo Ministro da Corte, e nas províncias os presidentes
em conselhos, poderão aforar a particulares aqueles tais terrenos, que julgarem
convenientes, e segundo o maior interesse da Fazenda, estipulando, também,
segundo for justo, o foro daqueles que dos mesmos terrenos, onde já se tenha
edificado sem concessão, ou que, tendo já sido concedidos condicionalmente, são
obrigados a eles desde a época da concessão, e no que se procederá a arrecadação.451
Segundo informa Silva, foi esta lei que instituiu a terminologia terrenos de marinha em
substituição a marinhas assim como a fixação do preamar médio como marco inicial da
fixação destes terrenos .452
Embora estes terrenos tenham sido destinados à servidão pública, a norma orçamentária
permitiu sua apropriação privada. Estes terrenos (bens públicos que foram mantidos
desobstruídos para os serviços de defesa da costa e que posteriormente foram declarados
como destinados à servidão pública), se inseriam na classificação de bens públicos
indisponíveis, bens que, por força de coerência científica e doutrinária, não poderiam ter sido
destinados à apropriação privada para fins de arrecadação fiscal.
449
A exemplo da França onde tínhamos o domínio da coroa, que era a propriedade privada do soberano, o
domínio público, que são os bens de uso comum e o domínio do Estado.
450
Época da regência trina, e o imperador do Brasil ainda era menino.
451
BRASIL, 2002d, p. 201.
452
SILVA, 1976, p. 319.
152
Nos primórdios do Direito Administrativo pode-se encontrar doutrinadores que explicam a
natureza jurídica dos bens de uso comum do povo como um direito real de uso de servidão,
alguns fundamentam o direito à utilização destes bens como uma expressão da “[...] liberdade
individual” direito de livre circulação “[...] sobre as vias ou sobre os anexos das vias
públicas”.453
Os bens de uso comum do povo, “[...] aqueles que se destinam à utilização geral pelos
indivíduos, podendo ser federais, estaduais ou municipais”454; não “[...] suscetíveis de
apropriação individual, mas podem ser usadas por todos, segundo a própria natureza delas”455,
como: mares; praias; rios; estradas; ruas; praças e os logradouros públicos, considerados pela
doutrina como bens fora do comércio, não podendo ser utilizados privativamente, salvo de
maneira precária, mediante autorização administrativa, dão deveriam ter sido aforados porque
a utilização privativa perpétua é absolutamente incompatível com a natureza destes bens.
Com base na teoria que privilegia a lei como única fonte da destinação pública dos bens, ao
menos em hipótese, sob o míope enfoque positivista extremado, teríamos a legalidade dos
aforamentos efetuados nos terrenos de marinha destinados ao uso coletivo, embora
contrariando a natureza jurídica de servidão publica conferidas a eles, também por força de
lei.
Com o aforamento dos terrenos de marinha, cria-se um paradoxo jurídico. Os terrenos de
marinha afetados tanto ao serviço de defesa da costa quanto à servidão pública (afetação esta
a uma destinação coletiva que lhes conferia a característica de inalienabilidade) contrariando
sua característica essencial, são aforados de forma permanente a particulares. Este paradoxo,
contrariando a destinação pública destas áreas, permitiu a ocupação privada assim como a
obstrução de grandes áreas costeiras com edificações de casas e benfeitorias. Além da
ocupação em flagrante desvio de finalidade da função de segurança nacional, houve a
incompatibilidade desta perpetuidade com sua verdadeira natureza jurídica.456
453
CRETELA JÚNIOR, 1975a, p. 81.
CARVALHO FILHO, 2003b, p. 875.
455
CRETELA JÚNIOR, 1975a, p. 54.
456
“[...] o uso privativo de qualquer tipo de bem público jamais pode ser perpétuo” (CRETELA JÚNIOR, 1984,
p. 65).
454
153
Mello457 em “[...] domínio público sobre os terrenos reservados”, claramente reconhece a
destinação pública dos terrenos de marinha. Este estudo, citado em vários outros trabalhos
sobre os terrenos de marinha, destaca que “[...] no império, os terrenos de marinha e os
terrenos reservados à margem dos rios públicos sempre foram classificados como de domínio
geral”.
Este mesmo autor, em estudo sobre a enfiteuse, destaca que “[...] legalmente foram
assemelhados os terrenos reservados aos terrenos de marinha, obedecendo à legislação
especial destes”.458 Este, embora reconheça que foram classificados como de domínio geral,
justifica o aforamento desde que “[...] observada uma série de providências, de forma que o
emprazamento não prejudique os seu interesses específicos” ressaltando que podiam ser
objeto de contrato de enfiteuse “[...] sem prejuízo, entretanto, de futuro, dos serviços que
constituem a sua razão de ser.”459 Como uma área ocupada por moradias cedida de forma
perpétua poderá não prejudicar os serviços de defesa da costa brasileira?
A “[...] concessão dos terrenos de marinha, dos reservados nas margens dos rios e dos
acrescidos natural ou artificialmente” com base no “[...] art.51, §14 da Lei de 15 de novembro
de 1831; 3º da de 12 de Outubro de 1833; 37 § 2º da de 3 de Outubro de 1834; 11, §7º da de
27 de setembro de 1867460”, foi regulamentada através do Decreto n.º 4.105 de 22 de fevereiro
de 1868.461
Dentre os fundamentos deste decreto encontra-se a base do pensamento da época, ao aforar as
áreas de marinha, no texto de sua justificativa:
[...] quanto é importante semelhante concessão, a qual, além de conferir direitos de
propriedade aos concessionários, torna os ditos terrenos produtivos, e favorece, com
o aumento das povoações, o das rendas públicas.462
457
MELLO, 1945.
MELLO, 1945, p. 51.
459
MELLO, 1945, p. 51.
460
BRASIL, 2002d, p. 234.
461
Embora conste na obra já citada como sendo o Decreto no.4.105, de 22 de fevereiro de 1868, Cretela Júnior
(1984) em sua obra Tratado de Domínio Público à folha 356 menciona o Decreto nº 4.405 de 22 de fevereiro
de 1868. Parece que o erro material ocorreu na obra de Cretela Júnior (1984) já que Silva (1976), e
Cavalcanti (1977), p. 330, também referem-se ao Decreto n. 4.105 de 22.2.1868.
462
BRASIL, 2002, p. 234.
458
154
Esqueceu apenas o legislador que ao instituir a enfiteuse nos terrenos de marinha, acrescidos e
reservados não estaria conferindo direito de propriedade a ninguém, porque a propriedade se
mantém com a União, quando esta propriedade e suas cobranças fonte de históricos
descontentamentos e problemas identificados neste estudo.
Com a proclamação da República foi instalada a polêmica sobre a quem a constituição teria
destinado os terrenos de marinha. Seriam dos estados ou dos municípios. Nesta famosa
polêmica destes terrenos, doutrinadores importantes como Santos463 e Mendonça defenderam
veementemente as razões de interesse nacional para a permanência destes na titularidade da
União, sem atentarem para a contradição intrínseca dos aforamentos perpétuos, com os
fundamentos de segurança nacional.
Si em nosso systema de governo compete à União a defesa das fronteiras interiores,
pertencendo-lhes o terreno para isso necessário, ainda que encravado em terreno dos
Estados, pela mesma razão a defesa das fronteiras não podia ser aos Estados
atribuída, precisando que à União seja reservada a faixa de terreno a isso
imprescindível, ou sejam precisamente os terrenos de marinha.
Esta questão histórica, já mencionada anteriormente, foi dirimida por meio de decisão do
Supremo Tribunal Federal em acórdão proferido em 31 de janeiro de 1905, na Ação
Originária n.° 8464, em que três teorias estavam em discussão, uma defendia o domínio dos
estados, outra o da União e a minoritária defendia que os terrenos de marinha pertenciam ao
povo. Os ministros Oliveira Ribeiro e Godofredo Cunha em voto vencido defendiam que a
União não teria domínio (entendido como direito de propriedade) sobre os bens de domínio
nacional (de uso comum do povo) e que sobre estes bens, o poder público exerceria um direito
de soberania ou jurisdição territorial. Sendo considerados bens inapropriáveis em virtude de
sua natureza, competindo ao Estado o exercício do poder eminente, dispondo leis sobre sua
utilização e conservação e visando à preservação do interesse publico.
De accôrdo com o dispositivo do accordão, porquanto não conheço em lei pátria do
antigo regimen, vigente no actual, nem encontro na Constituição da República, um
só texto que confira aos Estados direito de propriedade sobre os terrenos de marinha,
direito sobre o qual unicamente poderia apoiar a reivindicação, proposta pelos AA.,
dos terrenos de marinha em questão e jazidas nelles situadas; divergindo dos
fundamentos da decisão, em que também não reconheço na União o mesmo
direito sobre taes terrenos. Domínio tem a União sobre os próprio nacionaes,
não sobre os bens do domínio nacional, quaes terrenos de marinha, sendo
distinctas as duas espécies em nossa nomenclatura jurídica, consoante nisto
com a doutrina do direito federal. Sobre os últimos a União, como os Estados,
exercem, conforme as espécies e os casos, um direito de soberania ou jurisdição
463
464
SANTOS, 1938, p. 148.
SANTOS, 1985.
155
territorial, impropriamente chamado também por extensão, domínio eminente.
É este direito que designa a palavra – pertencem – do art. 65 da Constituição, em
relação ao poder dos Estados sobre as terras devolutas, bem diferenciado no
parágrapho do mesmo artigo do direito sobre os próprios nacionais – Oliveira
465
Ribeiro – Godofredo Cunha – Fui Presente, Epitácio Pessôa.
Infelizmente, a tese vencedora no Superior Tribunal Federal foi a que defendia a titularidade
da União, ou seja, que os terrenos de marinha seriam bens patrimoniais disponíveis, passíveis
de alienação e apropriação privada. A apropriação deste bem originariamente de uso comum
deu causa a inúmeros problemas, assim como confundiu a doutrina pátria.
6.2 NATUREZA JURÍDICA DOS TERRENOS DE MARINHA NA
DOUTRINA NACIONAL
A quase unanimidade da doutrina nacional considera os terrenos de marinha bens dominicais:
Gomes466, em Direitos Reais, “Os terrenos-de-marinha são bens públicos dominicais
pertencentes à União. Constituídos pela faixa de terra que vai até certa distância, a partir da
preamar máxima”467; Cavalcanti468 no rol dos bens dominicais inclui tanto os terrenos de
marinha quando as margens dos rios navegáveis destinadas ao uso público”469; Bastos470
entende que os terrenos de marinha “[...] são bens dominicais, podendo ser explorados pelo
Poder Público para obtenção de renda”; Gasparini471 entende que os terrenos de marinha são
bens dominicais ou disponíveis que integram o patrimônio da União, também rejeita a
possibilidade de classificação destes como bens de uso comum do povo ou de uso especial,
afirmando que o bem não é dominical porque suas “[...] características472 não se coadunam
com aquelas dos bens de uso comum do povo”, e destaca que o código das águas “[...]
465
Ação Originária n.º 8 – Acórdão de 31 de janeiro de 1905, publicado na revista “o Direito” transcrita como
anexo na obra de Santos, 1985. p. 5.
GOMES, 2001, p. 279.
467
Este autor, além de ter a dificuldade de todos no que tange à natureza jurídica desta faixa geográfica, também
equivoca-se com a preamar. A preamar máxima foi instituída em 1942, a preamar média de 1831 é a que é
exigida na lei vigente.
468
CAVALCANTI, 1977, p. 324.
469
Não percebe a contradição, se as margens são destinadas ao uso público, como podem ser bens dominicais?
470
BASTOS, 1994, p. 315.
471
GASPARINI, 2003, p. 738.
472
O autor não se refere às características decorrentes da afetação à servidão pública, de via de circulação
pública, e sim os efeitos decorrentes da autorização legislativa de aforamento.
466
156
expressamente lhes outorga a natureza de bens dominicais473” este mesmo autor em estudo
efetuado em conjunto com Adiles Ladeira reitera que os terrenos de marinha “[...] integram a
categoria dos chamados dominicais. Portando, sua utilização por terceiros não poderá ser
indiscriminada, como o é nos casos de bens de uso comum do povo”.474 Medauar475 insere os
terrenos de marinha no rol dos bens dominicais476; Pietro477 afirma que os terrenos de marinha
“Têm a natureza de bens dominicais, uma vez que podem ser objeto de exploração pelo poder
público, para obtenção de renda”478; Cretela Júnior479, em chave sinóptica insere os terreno de
marinha como bens do patrimônio privado do Estado (bens dominicais); Figueiredo480, ao
exemplificar os bens dominicais, cita expressamente ao lado das terras devolutas os terrenos
de marinha. Faria481 no mesmo sentido os enquadra entre os bens públicos dominiais, embora
reconheça que estes “[...] têm por finalidade a segurança nacional”.
Silva482 destaca que dentre os bens públicos existem categorias que são
[...] destinadas à apropriação pública (vias de circulação, mar territorial, terrenos de
marinha, terrenos marginais, praias, rios, lagos, águas de modo geral etc.) por que
são bens predispostos a atender ao interesse público, não cabendo sua apropriação
privada. (Grifo nosso).
Os terrenos de marinha embora não se confundam conceitualmente com os terrenos
reservados sempre tiveram o mesmo regime jurídico. A origem desta semelhança decorreu do
disposto no Art. 39 da Lei n.° 1.507483, de 26, de setembro de 1867, que dispôs que as
margens dos rios navegáveis fora dos alcances das marés, ficam reservadas à servidão pública
473
474
475
476
477
478
479
480
481
482
483
Cf. GASPARINI, 2003, p. 739.
GASPARINI, Diógenes; LADEIRA, Aquiles Lorza. Terrenos de marinha: terras devolutas e processo
discriminatório – tombamento – considerações. Revista de Direito Público, ano XIX, n. 80, p. 174-178,
1986.
Cf. MEDAUAR, 2003, p. 262-264.
Embora tenha inserido a zona costeira nos bens de uso comum do povo, citando inclusive a Lei 7.661/88,
sem se aperceber que a totalidade dos terrenos de marinha se encontra inserida nesta área, os classificou
como bens dominicais.
Esta autora confunde a natureza jurídica dos bens dominicais na tentativa de justificar a propriedade privada
do estado “Hoje já se entende que a natureza desses bens não é exclusivamente patrimonial; a sua
administração pode visar, paralelamente, a objetivos de interesse geral. Com efeito, os bens do domínio
privado são freqüentemente utilizados como sede de obras públicas e também cedidos a particulares para fins
de urbanização.. e mesmo quando esses bens não são utilizados por terceiros ou diretamente pela
administração, podem ser administrados no benefício de todos, como as terras públicas onde se situem
florestas, mananciais ou recursos naturais de preservação permanente” (DI PIETRO, 2001).
DI PIETRO, 2001, p. 570.
CRETELA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo: de acordo com a Constituição de 1988. 10. Rio
de Janeiro: Forense, 1989. p. 561.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 550.
FARIA, Edmur Ferreira. Curso de direito administrativo positivo. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000. p. 414.
SILVA, 2000a,. p. 278.
BRASIL, 2004b.
157
(a exemplo do Aviso de 18 de novembro de 1818 que declarou os terrenos de marinha
reservados à servidão pública”), e autorizou o Governo a “[...] concedê-la em lotes razoáveis
na forma das disposições sobre os terrenos de marinha”.484 Estes também são considerados
pela doutrina como bens dominiais, embora Faria485 destaque que os terrenos reservados
sejam considerados
[...] bens públicos dominiais nos termos do art. 11 do Código de Águas. Parece que
melhor seria enquadrá-los entre os de uso especial. Na realidade, esses bens
destinam-se a um fim próprio. Não têm, pois, a característica de bens patrimoniais
que podem ser alienados de acordo com a conveniência e oportunidade.
Os terrenos reservados são as margens dos rios. Estas margens são áreas de preservação
ambiental, não-passíveis de edificação desde 1965.
O Código Florestal486, Lei n.° 4.771/65, declara área de preservação permanente as margens
dos rios. Esta área varia de conformidade com a largura do rio, de 30 metros a 500 metros. Os
terrenos reservados não medem mais do que 15 metros, do que se conclui que os terrenos
reservados estão inseridos integralmente na área de preservação permanente, cuja destruição
ainda que parcial, configura contravenção penal nos termos do art. 26 do referido código.
Embora por sua afetação originária seja servidão pública, já se pode vislumbrar o interesse
público contido nos terrenos de marinha e acrescidos. Há fatos que deveriam ter sido levados
em consideração pela doutrina pátria. Desde 1965, os terrenos reservados são áreas de
preservação permanente e desde 1988 os terrenos de marinha estão inseridos na Zona Costeira
que é patrimônio nacional. Certamente repetir que estas áreas são bens dominicais é, concessa
vênia, uma impropriedade.
Os terrenos de marinha estão inseridos integralmente na faixa terrestre da Zona Costeira da
mesma forma que os terrenos reservados são áreas de preservação permanente. Os terrenos de
marinha, que hoje estão inseridos em área consideradas de grande relevância ambiental, em
face de sua ocupação por núcleos urbanos, consistem numa fonte de problemas urbanos,
ambientais, sociais e administrativos.
484
Art. 39: “[...] fica reservada a servidão pública nas margens dos rios navegáveis e de que se fazem os
navegáveis, fora do alcance das marés, salvas as concessões legítimas feitas até a data da publicação da
presente lei, a zona de sete braças contadas do ponto médio das enchentes ordinárias para o interior, e o
Governo autorizado para concedê-la em lotes razoáveis na forma das disposições sobre os terrenos de
marinha” (MELLO, 1945, p. 12).
485
FARIA, 2000, p. 414.
486
Cf. Art. 2º da Lei. 4.771/65 (BRASIL, 2001c).
158
Essa forma de utilização de área costeira virou do avesso todos os conceitos existentes sobre
os bens de uso comum do povo e foi o embrião do maior desvio de finalidade de um uso
comum do povo de que se tem notícia, tanto pela abrangência territorial de seus danos, quanto
pela resistência e durabilidade da apropriação privada de um bem comum.
O instituto dos terrenos de marinha legalizou a ocupação de: margens dos rios ecossistemas
litorâneos como: mangues487, restingas e matas ciliares, além de negar o livre acesso aos bens
de uso comum do povo, permitindo a existência de praias e ilhas particulares, para uns poucos
privilegiados, em detrimento de toda a coletividade.
487
Se bem que o processo de aterros dos mangues não fosse ser imputado apenas ao insitituto terrenos de
marinha, uma vez que na mentalidade da época os mangues eram áreas insalubres, infestadas de doenças, e a
política higienista do início do século passado prescrevia esse procedimento.
159
7 CONCLUSÃO – PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO DOS
TERRENOS DE MARINHA PARA VIABILIZAÇÃO DE SUA
FUNÇÃO SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO BRASILEIRO
Por todo o estudo efetuado restaram consolidadas as seguintes premissas:
a) A utilização privativa dos terrenos de marinha decorreu de um erro histórico de
deturpação de sua função pública, impedindo o direito à fruição da servidão pública e de
bem que deveria se manter desobstruído para o serviço de defesa da costa nacional.
b) O aforamento e a permissão de ocupação privada das áreas de marinha causaram e ainda
causam, inúmeros prejuízos, diversos direitos e interesses metaindividuais.
c) A atual legislação sobre o uso, ocupação e regularização dos terrenos de marinha é nociva
e totalmente inadequada ao exercício das funções sociais desses terrenos.
d) Nestes terrenos há inúmeros interesses sociais difusos que necessitam ser considerados
para o atingimento das suas funções sociais.
e) Os terrenos de marinha, ao contrário do que afirma a grande maioria da doutrina, não são
bens exclusivamente dominicais.
f) A função social da propriedade deve ser aferida mediante uma atividade hermenêutica
sintonizada com os princípios constitucionais à luz dos quais todas as normas
infraconstitucionais devem ser reavaliadas.
Assim, embora não se tenha norma escrita que impeça as inúmeras arbitrariedades efetuadas
pela União na gestão deste patrimônio público, a hermenêutica constitucional dos princípios
positivados em nosso Estado Democrático de Direito pode ser um importante instrumento de
adequação da norma aos ditames da justiça.
160
Os terrenos de marinha que foram ao longo do tempo recebendo diversas utilizações, não
podem mais se inserir numa única classificação, sob pena de inviabilizar a identificação e a
efetivação de sua função social.
Nesta porção geográfica temos diversos tipos de usos e interesses públicos primários que
necessitam de tutela. Em face aos diferentes usos atuais desta faixa geográfica, denominada
terrenos de marinha, não se pode considerá-la como possuindo uma única natureza jurídica.
Os terrenos de marinha não possuem apenas a natureza jurídica de bens dominicais. Desta
feita, nenhum dos autores está rigorosamente certo nem rigorosamente errado. As áreas
ambientalmente relevantes certamente são bens de uso comum do povo. As áreas utilizadas
por fortificações, portos e prédios públicos são bens de uso especial e as áreas urbanas
tradicionalmente ocupadas, são bens dominicais, de uso comum do povo, e bens de uso
especial.
A identificação da função social dos terrenos de marinha deve ser construída a partir de uma
classificação básica que distingue quais áreas estão afetadas a uma função pública e quais
áreas por não estarem ainda afetadas ao atendimento do interesse público, devem se submeter
ao atendimento da função social.
A partir desta diferenciação, mediante um processo interpretativo sistemático e axiológico
com a utilização da ponderação defendida por Alexy488 é que se poderá viabilizar a
identificação e o exercício da função social da propriedade pública denominada - terreno de
marinha.
Embora os Art. 182 e 186 tragam parâmetros expressos para a fixação da função social da
propriedade, há outros valores que devem ser considerados de forma conjunta, que estão
expressos nos Art. 1.º, 3.º, 6.º, 182, 225, 226 e 231 da Carta Constitucional Brasileira. Para a
fixação destes parâmetros devem ser considerados aos valores sociais do trabalho e da
dignidade da pessoa; ao direito à promoção ao bem de todos; ao direito ao desenvolvimento
nacional e à construção de uma sociedade justa e solidária; ao direito à moradia; ao direito ao
lazer; ao direito ao planejamento e desenvolvimento urbano municipal de forma a assegurar o
exercício das funções sociais da cidade; ao direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado e à utilização da zona costeira dentro de condições que assegurem a preservação
488
ALEXY, 1993.
161
do meio ambiente; assim como o direito à demarcação das terras indígenas e dos
remanescentes de quilombolas.
Os terrenos de marinha não podem ser tratados como se fossem um único bem público
possuidor de características homogêneas, uma vez que a heterogeneidade é uma de suas
características marcantes. E é justamente desta sua diversidade que decorrem os diversos
interesses metaindividuais a serem atendidos. Estes interesses coletivos devem ser levados em
consideração de forma específica, porque cada um deles se direciona para um parte dos
terrenos de marinha, não sendo adequados a todas as áreas. Existindo colidência de interesses
[...] é preciso reconhecer-se que dentre os interesses coletivos há uma hierarquia.
Existem interesses coletivos mais importantes do que outros, da mesma maneira que
dentre os interesses particulares tanto há interesses de pouca monta quanto há
interesses protegidos até pelos próprios direitos e garantias constitucionais de
extração inclusive internacional.489
Os terrenos de marinha não estão isentos do cumprimento de sua função social. A nossa Carta
Magna tem por princípio a função social da propriedade, não declara a função social apenas
da propriedade privada, declara que “[...] a propriedade atenderá sua função social”. Como a
propriedade privada sempre foi tida como sagrada e absoluta, fez-se mister fixar formas de
compelir o particular a cumprir com a função social de sua propriedade, tais normas não
foram editadas em face do poder público por desnecessárias, uma vez que toda a atividade
pública deve e tem por obrigação a busca do bem comum - o interesse público primário.
Em termos práticos como poderá uma comunidade exigir que a propriedade pública cumpra
com sua função social? Como impedir que entes federativos façam “estoques de terras” em
áreas urbanas necessárias ao pleno desenvolvimento das funções da cidade? Como impedir
que o poder público se transforme em “senhorio” de grande parte dos moradores das áreas
costeiras e que exerça seu direito, baseado num instituto feudal, com objetivos fiscalistas, em
detrimento da segurança jurídica da moradia familiar e da paz social?
Dentro da faixa geográfica denominada terrenos de marinha, agora basicamente identificada
segundo sua afetação pública, há inúmeros interesses públicos que necessitam ser observados
e até mesmo compatibilizados como é o caso de:
489
BASTOS, 1994, p. 31.
162
a) interesses ambientais relevantes, ameaçados por grande pressão social em áreas urbanas
(onde a União historicamente não consegue evitar a ocupação), assim como pela pressão
econômica de hotéis e resorts que, além de ocuparem áreas ambientais, impedem o acesso
do povo às praias que são bens de uso comum do povo;
b) interesses de comunidades tradicionais que vivem de atividades extrativistas marinhas e
encontram dificuldades de acesso a áreas para exercerem suas atividades, assim como dos
remanescentes de quilombos e populações indígenas residentes em tais áreas;
c) interesse social de insegurança jurídica da moradia, quando grande parte dos moradores de
municípios urbanos possuem um direito precário sobre o solo, sobre o qual edificaram seus
lares;
d) interesse público do eficaz planejamento e gestão urbana pelos municípios costeiros onde
nem as ruas, praças e áreas públicas podem ser consideradas de sua propriedade.
Esta área geográfica não pode mais ser gerenciada sob o míope enfoque fiscal. A União não
deve olhar estes bens como fonte de recursos e sim como áreas necessárias ao
desenvolvimento econômico, social, urbano e ao equilíbrio ambiental.
7.1 CLASSIFICAÇÃO DOS TERRENOS DE MARINHA
Se os terrenos de marinha são considerados bens dominicais por uns autores e de uso comum
do povo por outros, como se pode exigir destas áreas o exercício de conformidade com sua
função social? Para viabilizar a efetivação da função social dos terrenos de marinha é
proposta a classificação deles a partir dos diferentes usos atuais (pela afetação à finalidade
pública e por situações fáticas consolidadas pelo tempo). Assim faz-se imperioso que a
natureza jurídica destes bens seja revista de conformidade com suas características e
necessidades públicas.
163
7.1.1 Terrenos de marinha de uso comum do povo
Os terrenos de marinha de uso comum do povo490 são aqueles que, por sua característica
intrínseca, se destinam ao uso coletivo, pertencendo a todos indistintamente; nestas áreas
inexiste, em via de regra, qualquer interesse público na permissão de apropriação privada. Os
institutos de ocupação e aforamento são absolutamente incompatíveis com tais áreas. Estas
áreas de marinha de uso comum do povo (ou terrenos de marinha com interesses difusos) são
encontradas em locais onde há:
a) importantes ecossistemas costeiros (restingas, manguezais, vegetação fixadora de dunas
etc). Esses bens de uso comum do povo, inseridos na zona costeira, “[...] patrimônio
nacional”- possuem uma função ambiental e devem ser utilizados de forma adequada a sua
destinação, sob pena de infração ambiental;
b) áreas urbanas utilizadas por toda uma coletividade, como sistema viário, áreas de
convivência pública e áreas verdes que, por força do Art. 182, c/c Art. 30 da CF assim
como o Art. 22 da Lei n.° 6.766/79, deveriam ser de propriedade dos municípios.
c) patrimônios paisagísticos e arqueológicos.
7.1.2 Terrenos de marinha de uso especial
Os terrenos de marinha de uso especial são aqueles que, destinados à execução de serviços
públicos, podem ser identificados em áreas:
a) onde se encontram edificados prédios públicos ou destinados à prestação de serviços
públicos (necessários à implantação de portos, aeroportos e outros serviços públicos ou
necessários a empreendimentos econômicos relevantes, desde que compatibilizado o
interesse ambiental);
b) destinadas a fortificações militares ou utilizadas por elas, objetivando a defesa nacional.
490
Não passíveis, em via de regra, de apropriação privada. Portanto - não passíveis de cessão, aforamento ou
transferência para utilização privativa.
164
7.1.3 Terrenos de marinha dominicais
Os terrenos de marinha dominicais491, são aqueles que possuem a característica de bem
“privado” do Estado492, onde se verifica a ausência de interesse público primário que
justifique a manutenção destas áreas sob o domínio da União. Devem ser transferidos para os
particulares que nele residem e trabalham, sem que, com isso, seja quebrada a paz social. 493
O entendimento de que estes bens devem, primeiro, servir à pacificação social e ao interesse
da segurança jurídica das moradias, pode viabilizar a construção de solução jurídica justa
mediante a adoção do resgate do aforamento e a alienação direta aos detentores da preferência
ao aforamento em termos similares ao resgate.494
Nestas áreas dominicais de propriedade da União existem:
a) vazios urbanos ocupados por terrenos de marinha;
b) terrenos privados, com registro lavrado no RGI, em áreas onde a União, atualmente, alega
ser de domínio público;
c) terrenos de marinha aforados a particulares;
d) terrenos cuja ocupação confere o direito de preferência a aforamento;
e) áreas de marinha historicamente ocupadas por áreas urbanas, que não possuem nenhuma
destinação que os afete ao uso público (interesse ambiental ou de segurança nacional a ser
tutelado), que não foram objeto de registro no RGI como bens privados, nem foram
compradas mediante pagamento de laudêmio à União;
f) áreas de marinha ocupadas por assentamentos irregulares de população de baixa renda
consolidados.
491
Bens não afetados a uma destinação pública, passíveis de alienação a particulares, mediante cumprimento de
prescrições legais.
492
Não é o que temos atualmente. A despeito das normas ambientais, e do disposto no Art. 225, § 4º da CF,
grandes áreas ambientais são passíveis de inscrição no Patrimônio da União, para fins de pagamento da
“cobiçada taxa de ocupação” (BRASIL, 2003b).
493
Segundo Cretela Júnior, Forsthoff sustenta que “[...] o patrimônio fiscal deve ser banido do campo do direito
administrativo” (Nota 20, CRETELA JÚNIOR, 1975a, p..108).
494
Cf. art. 160 da Lei 9.760/46 (revogado) (BRASIL, 1946).
165
Quando os terrenos de marinha são simplesmente considerados bens dominicais, esta
definição fecha toda e qualquer possibilidade de sua adequação às normas constitucionais que
devem ser levadas em consideração para a identificação da verdadeira função social dos
terrenos de marinha.
7.2 INTERESSES QUE DEVEM SER CONSIDERADOS PARA A
IDENTIFICAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS TERRENOS
DE MARINHA
Nos terrenos de marinha há muitos interesses públicos a serem considerados. Estes interesses
têm sido reconhecidos por alguns deputados federais, e no Congresso Nacional tramitam
inúmeras proposições legislativas, como: modificação no marco temporal de fixação da linha
de preamar; extinção da enfiteuse nos terrenos de marinha, viabilizando a aquisição da
propriedade plena mediante a remição (pagamento de 17% do valor do domínio pleno do
terreno); reconhecimento da validade de escrituras particulares com cadeia de domínio
originária de escrituras emitidas por estados e municípios; diminuição no valor das cobranças;
anistia fiscal, isenções; transferência aos municípios e garantia de áreas para a instalação de
moradia e colônia de pescadores. Embora os terrenos de marinha sempre sejam ponto de
pauta em todas as legislaturas, os avanços são pouco expressivos, em face às tentativas de
enfrentamento destas questões sob enfoques isolados, somadas à falta de compreensão do
significado do interesse público no Estado Democrático de Direito.
O principal problema para se encontrar uma solução consensual no Parlamento deriva da falta
de compreensão da característica e relevância dos interesses públicos envolvidos em tal área
geográfica. Há uma prática equivocada em identificar o interesse público como sendo oriundo
da vontade do Estado.
166
7.2.1 Identificação do interesse público
Segundo Justen Filho495 existem quatro abordagens sobre o interesse público, que é verificado
a partir da soma quantitativa de interesses privados (quaisquer que sejam, desde que
numerosos, mesmo que defendam interesses egoísticos); a soma qualitativa de interesses
privados (apenas os que transcendessem à individualidade de forma a originar um interesse
público em face à homogeneidade coletiva); a síntese (não mais a soma) dos interesses
individuais reunidos, compreendido como o interesse social, desvinculado do interesse
particular concreto do indivíduo; nenhuma das opções acima, já que esta última desconsidera
a própria compreensão do interesse público como sendo interesse da maioria. Esta é a que
mais expressa a pluralidade da nossa época.
Nesse contexto, a utilização do conceito de interesse público tem que fazer-se com
cautela, diante da pluralidade e contraditoriedade entre os interesses dos diferentes
integrantes da sociedade [...] daí deriva, em primeiro lugar, a imprestabilidade da
concepção que identifica interesse público com interesse da maioria. Na verdade, um
Estado Democrático caracteriza-se não pela prevalência do interesse da maioria [...]
consiste na vontade da maioria eventual e também na garantia dos interesses da
minoria, tudo segundo parâmetros constitucionalmente fixados.496
Assim, na atualidade não há mais como se falar num único interesse público, há interesses
públicos no plural, mas o problema de sua identificação persiste. Justen Filho497, enfrentando
esta questão, assevera que a identificação deste interesse não pode limitar-se a enfoques
técnicos “[...] a transmutação do interesse privado em público não deriva de um imperativo
meramente técnico, mas de imposições éticas”.
Este enfoque ético proposto encontra-se em plena consonância com os princípios axiológicos
do Estado Democrático de Direito. É na constituição que encontramos os parâmetros éticos
para a identificação do interesse público presente nos interesses metaindividuais. Embora
nosso país não possua tradição constitucional, por força de anos de repressão ao pensamento
crítico, o Direito Constitucional “[...] existe para realizar-se. Vale dizer: ele almeja à
efetividade [...] a atuação prática da norma, fazendo prevalecer, no mundo dos fatos, os
valores por ela tutelados.”498
495
JUSTEN FILHO, 1999.
JUSTEN FILHO, 1999, p. 115-136.
JUSTEN FILHO, 1999, p. 124.
498
BARROSO, 1993.
496
497
167
O Estado Democrático de Direito, destinado a
[...] assegurar o exercício dos direitos individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida com a ordem interna,499
certamente não recepciona afrontas a interesses públicos. Mas, como identificar o interesse
público? Estará ele à disposição do juízo discricionário do administrador ou até mesmo do
legislador, sem qualquer limite? Ou este limite, ou melhor balizamento, é fixado pelas normas
e princípios constitucionais? “O legislador não pode atuar arbitrariamente, e a presença do
interesse público como suporte para restrições a importantes direitos individuais pode ser
controlada jurisdicionalmente”.500 Sem sombra de dúvida, a discricionariedade administrativa
e legislativa sempre estará limitada pela Carta Magna, e passível de análise por parte do Poder
Judiciário. Nesta análise deve-se aferir a existência ou não do interesse público, ou até decidir
entre dois ou mais interesses públicos qual deve prevalecer, uma vez que pode “[...] ocorrer
que a Administração persiga um interesse público real mas conflitante com outro, que lhe é
superior, por ser a legítima e real expressão das aspirações da sociedade brasileira e de seus
cidadãos”.501 Esta preponderância somente poderá ser aferida mediante análise sistemática
dos princípios e valores constitucionalmente tutelados em processo hermenêutico que utilize a
ponderação de valores.
No caso em exame, existe uma norma escrita que está causando inúmeras inquietações
sociais, colidindo com inúmeros interesses públicos e valores constitucionalmente tutelados.
Que fazer quando uma norma legal colide com o interesse público? Osório502 sustenta que
uma norma legal, editada para gerar vantagens para a administração, pode ser inquinada como
inconstitucional, se inexistir interesse público que a fundamente.
Descabe, ao meu ver, dizer que o interesse público justificatório de leis de Direito
Público, de regras jurídicas que instituem vantagens à Administração Pública, é
objeto, tão somente da Ciência Política, como se ao Judiciário fosse vedado
investigar a causa real dessas vantagens, [...] a inexistência do interesse público pode
inquinar de inconstitucionalidade uma determinada norma legal instituidora de
vantagem à Administração Pública.
499
500
501
502
Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 2003b).
OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito
administrativo brasileiro? Revista Trimestral de Direito Público, n. 28, p. 61, 1999.
OSÓRIO, 1999, p. 53.
OSÓRIO, 1999, p. 53.
168
Os interesses ambientais foram historicamente desconsiderados, em face à existência de
pretéritas autorizações de aforamentos de manguezais, somados à inércia na proteção destas
áreas de preservação do patrimônio nacional; os interesses urbanísticos e políticos ignorados
dizem respeito às dificuldades no exercício da autonomia municipal e gestão do solo urbano
em áreas imunes ao controle urbano como as áreas da União; os interesses sociais em conflito
são diversos, destacando-se, dentre os principais, os problemas gerados a partir de aumentos
exorbitantes nas cobranças, negativa da União em conferir à propriedade plena nestas áreas,
insegurança jurídica sobre a real localização dos terrenos de marinha, insegurança jurídica em
face de escrituras particulares registradas no RGI, desconsideradas pela União, medo de
perderem suas moradias caso não as comprem de novo etc.
A partir da identificação da função social dos terrenos de marinha, demonstrando qual o
interesse que deve prevalecer, será possível a declaração da inconstitucionalidade da norma
que defende interesses privados da União em detrimento do interesse público explicitado em
sua função social.
Sem dúvida, é certo que a função social dos terrenos de marinha não consiste em servir à
arrecadação de receitas patrimoniais, convertendo a União na maior especuladora de terras do
país, e sim em viabilizar a efetivação do maior número possível de interesses públicos
direcionados a este bem público.
7.3 INAUGURAÇÃO DOS DEBATES SOBRE A FUNÇÃO
SOCIAL DOS TERRENOS DE MARINHA
Este estudo, longe de trazer a solução, visa inaugurar o debate da construção das funções dos
terrenos de marinha de uso comum do povo, de uso especial e dominical. Esta classificação
visa impedir desnecessários conflitos entre interesses difusos. Como nestas áreas se
encontram inúmeros interesses difusos que se caracterizam pela grande litigiosidade interna,
tem-se utilizado interesses ambientais como argumento para negação de interesses sociais ou
argumentos de interesses de segurança nacional, afastando interesses de autonomia municipal.
Somente com a classificação proposta estes improdutivos e desnecessários confrontos
deixarão de prejudicar as discussões parlamentares e jurídicas sobre a questão. Agora,
169
mediante a separação metodológica, estes subterfúgios não mais poderão ser utilizados em
detrimento dos verdadeiros interesses públicos.
A partir da classificação defendida será possível iniciar a construção de propostas de ações
administrativas, legislativas e indicações para decisões judiciais que privilegiem o
atendimento aos diversos interesses públicos contidos nestas áreas.
A título exemplificativo da utilidade da classificação, pode-se propor, em tese, que:
a) Os terrenos de marinha de uso comum do povo, com interesses ambientais (meio
ambiente e patrimônio histórico, paisagístico e arqueológico), a serem tutelados, tenham
efetuada sua identificação e demarcação física para eficaz gerenciamento ambiental, de
conformidade com as diretrizes fixadas pelo PNGC, em parceria com estados e
municípios, de forma a viabilizar a preservação ambiental eficaz, assim como a contenção
da ocupação desse patrimônio nacional. Esta conclusão jurídica decorre da integração das
normas ambientais com a natureza jurídica de uso comum do povo. Neste sentido, todo e
qualquer aforamento efetuado nas áreas de marinha será inconstitucional por ofensivo à
função
ambiental
dos
terrenos
de
marinha,
e
colisão
com
outras
normas
infraconstitucionais de igual hierarquia (Código Florestal, Lei de Zoneamento Costeiro
etc), mas que tutelem valores garantidos constitucionalmente, salvo se comprovadamente
não houver prejuízo ambiental.
b) Os terrenos de marinha de uso comum do povo, existentes em áreas urbanas sejam
transferidos de forma definitiva para os municípios, em atendimento ao princípio
federativo, autonomia municipal, respeito à competência privativa de planejamento e
gerenciamento urbanos para que possam, os municípios, efetivamente possuir “domínio”
sobre os espaços públicos e melhor desempenhar suas competências constitucionais. A
total ausência de interesse na manutenção do domínio de tais áreas (uma vez que não há
como alegar interesse ambiental ou de defesa nacional em terrenos utilizados por toda
uma cidade), impõe a medida recomendada.
c) Os terrenos de marinha de uso especial, ocupados por outros entes da federação, em
atendimento ao princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado da
União e em atendimento à própria missão da União (que é fomentar o desenvolvimento
institucional dos demais entes da federação, para que, mediante a descentralização
170
administrativa,
as
políticas
públicas
sejam
mais
eficazes)
sejam
doados
incondicionalmente a esses entes federativos, para que possam desempenhar sua função
estatal e melhor gerir os interesses públicos locais ou regionais. A cessão condicionada do
uso implica restrições à autonomia municipal, caso o município modifique a destinação do
bem público este reverte para a União, ou seja, caso necessite ampliar um posto de saúde e
o terreno do posto atual é insuficiente, não pode vendê-lo para fins de auferir recurso para
a compra de outro maior, já que, nestes casos, o terreno de marinha reverte para a União.
d) Os terrenos de marinha de uso especial, destinados a fortificações militares ou que
possuam localização estratégica necessária aos serviços de defesa nacional, que não têm
necessidade de qualquer modificação no que tange a sua titularidade, sejam mantidos sob
a titularidade da União, na qualidade de bem público afetado ao serviço de defesa do país.
e) Os terrenos de marinha de uso especial, utilizados ou necessários a portos, aeroportos e
implantação de serviços públicos ou atividades econômicas relevantes, em face à
preponderância dos interesses regionais e nacionais sobre os interesses locais,
mantenham-se sob o domínio da União, mas sua utilização deve submeter-se aos ditames
fixados pelas normas urbanísticas e ambientais locais.
f) Os terrenos de marinha dominicais, considerados vazios urbanos sejam submetidos às
necessidades da cidade, atendendo às determinações do plano diretor, sob pena de
transferência para os municípios, mediante desapropriação (de bem privado da União
ocioso e atentatório à função social da propriedade urbana).
g) Os terrenos “ditos” de marinha, com escritura registrada no RGI, originária de alienações
pretéritas efetuadas por estados e municípios, tenham canceladas as inscrições efetuadas
com base nos levantamentos da linha de preamar, por força da necessária observância à
segurança jurídica, preservação da paz social, em decorrência da comprovação científica
do aumento do nível dos oceanos, que tornou móvel a linha da costa que se pensava
imóvel.
h) Os terrenos de marinha dominicais aforados a particulares, tenham permissão de aquisição
mediante remição do aforamento nas condições já previstas em lei.
171
i) Os terrenos de marinha dominicais ocupados com direito de preferência ao aforamento de
tenham reconhecido e efetivado este direito, para que se possa posteriormente exercitar o
direito de remição.
j) Os terrenos de marinha dominicais e urbanos, ocupados por inúmeras pessoas, como é o
caso de bairros inteiros nas cidades brasileiras, devem ser reconhecidos como não
passíveis de venda a terceiros não-ocupantes. O direito de propriedade não pode ser
exercido de forma abusiva, deve subordinar-se à segurança jurídica, à paz social, assim
como às normas protetivas à segurança familiar. O ideal para o atendimento dos interesses
individuais homogêneos destes ocupantes é uma norma que lhes confira o direito, previsto
no Art. 160 da Lei n.º 9.760/46, e que o cálculo do valor devido seja efetuado,
considerando-se descontos relativos às melhorias urbanas efetuadas com base em
impostos pagos pelos adquirentes, para atendimento ao princípio da moralidade
administrativa e da vedação ao locupletamento ilícito.
k) Os terrenos de marinha dominicais, com ocupações consolidadas, efetuadas de forma
desordenada por população de baixa renda, sejam doados aos municípios para
regularização fundiária (como adequadamente, a União muitas vezes já fez); e a União
viabilize a captação de recursos para a implantação de plano de intervenção urbana,
contendo projetos integrados (de regularização urbana, ambiental, jurídica e social) já que
sem a concretização de forma integrada dos direitos fundamentais (acesso à infra-estrutura
urbana, moradia, renda, saúde, educação, cultura, lazer etc) todos os programas de
regularização acabarão expulsando os moradores originários justamente por força da
legalidade que lhes exigirá o pagamento de contas de água, luz, IPTU, taxa de iluminação,
foro etc., encargos financeiros incompatíveis com a renda familiar. Estes ocupantes mais
que o “direito” a comprar o terreno onde edificaram seus casebres, necessitam da presença
do Estado para lhes assegurar a concretização de seus direitos fundamentais, como
adquirir a moradia, seja mediante a compra, seja mediante concessão de uso especial,
quando esta população ainda se encontra à margem das oportunidades da cidade? Nestas
áreas a União não deve ser considerada como proprietária credora, sim como obrigada
devedora, devedora em mora, mora na concretização dos mais comezinhos direitos de
cidadania.
172
l) Os terrenos de marinha, ocupados historicamente por índios ou remanescentes de
quilombos, devem ter inicialmente verificada a sua utilização. Se inseridas em áreas
ambientais, devem ser assegurados mediante a consecução e implantação de um programa
de gestão ambiental sustentável, tornando os ocupantes parceiros nas ações
preservacionistas. Se inseridas em áreas parcialmente aforadas, vendidas, cedidas ou
ocupadas por particulares mediante anuência tácita503, por força do Art. 231, §6º, estes
atos sejam considerados “[...] nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos”, e
deverão ser desocupadas mediante pagamento por parte da União do valor das “[...]
benfeitorias derivadas das ocupações de boa-fé”. Esta desocupação pode ser pleiteada em
ação coletiva com base na legitimidade conferida às comunidades indígenas no Art. 232
da CF.
Siqueira Castro504, em sua obra “A constituição aberta e os direitos fundamentais” ressalta
que o caráter precipuamente principiológico da Constituição Federal impõe “[...] ao jurista o
dever de desconfiar de leituras herdadas, e mesmo de se inquietar com elas, se já não se
afinam com o sentimento de justiça, ou não mais traduzem a expectativa contemporânea da
sociedade.”
As propostas exemplificativas, que não abarcam todos os interesses envolvidos e suas outras
hipóteses, devem ser tomadas como ponto de partida para a atividade hermenêutica
constitucional, já que somente mediante a ponderação racional no caso concreto,
considerando todos os princípios axiológicos de forma sistêmica505 é que será possível aferir a
real função social de cada situação levada aos tribunais, na hipótese de manutenção dos
problemas causados pela omissão administrativa e legislativa.
Com a classificação proposta este estudo pretende inaugurar o debate sobre a função social
dos terrenos de marinha, rompendo com a interpretação que serve somente ao Estado,
legalista, em detrimento do verdadeiro soberano que é o povo.
503
504
505
A anuência tácita se expressa pela cobrança de taxa de ocupação, sem qualquer oposição da União.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 52.
“É inevitável, assim, que a abertura temática e sistêmica que caracteriza o pós-modernismo constitucional
recoloque na ordem do dia a questão da unidade da Constituição, ou seja, da integração sistêmica de suas
várias colônias de regras tanto preceituais quanto principiológicas.” (CASTRO, 2003, p. 52).
173
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medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas
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autorizado o governo a promover a colonização estrangeira na forma que se declara. Coleção
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309, 328, 338, 369, 421, 422, 423, 425, 429, 450, 456, 471, 472, 473, 474, 475, 478, 479, 480,
482, 496, 502, 506, 533, 549, 557, 558, 559, 563, 574, 576, 596, 599, 602, 603, 607, 623, 624,
625, 633, 637, 642, 655, 765, 788, 790, 872, 927, 928, 931, 944, 947, 949, 950, 953, 954, 966,
977, 999, 1053, 1060, 1086, 1094, 1099, 1158, 1160, 1163, 1165, 1166, 1168, 1196, 1197,
1204, 1210, 1228, 1273, 1274, 1276, 1316, 1341, 1347, 1352, 1354, 1361, 1362, 1365, 1369,
1371, 1374, 1378, 1379, 1434, 1436, 1456, 1457, 1473, 1479, 1481, 1512, 1515, 1516, 1521,
1526, 1561, 1563, 1573, 1574, 1575, 1576, 1581, 1583, 1586, 1589, 1597, 1601, 1605, 1606,
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1609, 1614, 1615, 1618, 1623, 1625, 1626, 1628, 1629, 1641, 1642, 1660, 1665, 1668, 1694,
1700, 1701, 1707, 1709, 1717, 1719, 1721, 1722, 1723, 1725, 1726, 1727, 1729, 1731, 1736,
1768, 1788, 1790, 1800, 1801, 1815, 1829, 1831, 1834, 1835, 1848, 1859, 1860, 1864, 1881,
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PATRICIA MARQUES GAZOLA