Capítulo 5 – Ler para sentir... ler para saber para construir a sua obra. Não há artista totalmen te indiferente à realidade. Há, isso sim, diferentes focos e objetivos. A criação de uma obra literária é resultado das relações entre o escritor, seu público e a sociedade em que vivem. Texto literário e texto não literário Embora tenhamos, rapidamente, abordado o que é um texto literário, seria possíve ficar, num primeiro momento, com a errônea impressão de que este tipo de texto se caracteriza pela existên cia de versos, rimas e palavras diferentes das que usamos cotidianamente. Ou ainda que o texto literário só pode tratar de assuntos relacionados à arte, grandes aconteci mentos históricos ou fatos sociais relevantes. No entanto, não são esses elementos que dife renciam o texto literário do não-literário. Veja bem: eles podem até existir, mas não são eles que deter minam qual é o tipo do texto. O que realmente diferencia um texto literário de um não-literário é o uso de uma linguagem lite rária, ou seja, a utilização de recursos expressivos como as figuras de linguagem. Desejando retirar mais das palavras do que normalmente podem oferecer no uso comum (de notação), o escritor faz cominbações a fim de atin gir valores, significados diversos e mais precisos, ou seja, a conotação. Ficou difícil? Não se preocupe, leia o texto a seguir: Explicação da poesia sem ninguém pedir Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, Mas atravessar a noite, a madrugada, o dia Atravessou minha vida, Virou só sentimento. - Adélia Prado - Você deve ter reparado que, no primeiro verso, a expressão “trem-de-ferro” é conceituada como “uma coisa mecânica”. Isso não é novidade, pois conhecemos como “trem” o meio de transporte de pessoas ou cargas que se locomove sobre trilhos, o qual pode ser fei to de ferro. Esse é, aliás, o principal significado desta palavra no dicionário. Quando a palavra é empregada no seu sentido comum, que aparece no dicionário, dizemos que há denotação, ou que ela foi utilizada denotativamente. Por outro lado, os versos seguintes dizem que esse mesmo trem “atravessa a noite, a madrugada, o dia”, e ainda que “atravessou minha vida, virou sentimento”. Nesses casos, percebemos que os verbos atravessar e virar, assim como as construções a eles relacionadas, são utilizados em sentido figurado, isto é, seus significados não são aqueles encontra dos normalmente no dicionário. Afinal, como um trem pode atravessar uma vida e tornar-se sentimento? No plano da realidade esses fatos são impossíveis. Repare, portanto, que colocadas em determi nados contextos, as palavras podem ter sentidos novos, diferentes, conforme o objetivo do autor. Quando a palavra é empregada fora do seu sentido comum, que aparece no dicionário, dize mos que há conotação, ou que ela foi utilizada co notativamente. Esse é o caso dos últimos versos da poesia que analisamos. O autor utilizou essas expressões para dizer que o “trem-de-ferro” tornou-se uma lembrança ou emoção permanente na memória do poeta, e por isso ele “atravessa a vida” e “virou só sentimento”. Por isso, dizemos que a linguagem literária é caracterizada pela sua plurissignificação, isto é, pelos diferentes significados que as palavras po dem admitir. Observe os sentidos que envolvem a palavra flor nestes versos de Carlos Drummond de Andrade: Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde E lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o astalfo, o tédio, o nojo e o ódio. “A flor e a náusea”. Reunião. 10ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1980, p.78 No poema de Drummond, a palavra flor, se compreendida apenas no sentido denotativo, torna o texto sem lógica, sem sentido. No entanto, o autor procurou utilizá-la figurati vamente, em sentido conotativo. A flor, neste poema publicado durante a ditadu ra de Getúlio Vargas, na época da Segunda Guerra Mundial, representa um elemento que transgride a 62