As travessas na forma urbana de Uberlândia - MG
Glauco de Paula Cocozza (1); João Paulo Alcântara Vera (2)
(1) Professor do PPGAU - FAUeD, UFU, Brasil, E-mail: [email protected]
(2) Discente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da FAUeD, UFU, Brasil, E-mail:
[email protected]
Resumo: Este trabalho apresenta um estudo sobre as travessas da cidade de Uberlândia, Minas Gerais,
Brasil, analisando suas características morfológicas, inserção no tecido urbano, características
espaciais, tipologias das edificações e a apropriação pública pelos moradores e pedestres. O trabalho é
resultado de uma pesquisa que analisou o papel das travessas na forma urbana da cidade, desde a sua
formação até as suas características físicas atuais, através de levantamentos in loco, medição das ruas e
calçadas, levantamento fotográfico e análise das edificações, sistematizando e analisando essas
informações. A compreensão do papel da travessa na forma urbana permeou grande parte do trabalho,
devido a forte diferenciação entre as características dessa tipologia de via e o contexto urbano em que se
localiza, com características próprias e com forte presença na paisagem urbana, sendo uma importante
geradora de diversidade urbana, importante para a história da cidade, e de uma intensa apropriação
pública das vias em função da forte relação entre o espaço livre e os espaços construídos que configuram
essa tipologia de rua.
Palavras-chave: travessas, morfologia urbana, espaço público.
Abstract: This paper presents a study about the lanes of the city of Uberlândia, Minas Gerais, Brazil,
analyzing their morphological characteristics, insertion into the urban fabric, spatial characteristics,
types of buildings and public appropriation by residents and pedestrians. The work is the result of a
research that examined the role of the lanes in the urban form of the city, from its formation to their
current physical features through on-site surveys, measuring the streets and sidewalks, photographic and
analysis of buildings, systematizing and analyzing this information. Understanding the role of the lane in
the urban form has permeated the work, due to strong differentiation between the characteristics of this
street typology and the urban context in which it is located, with its own characteristics and with a strong
presence in the urban landscape, with a generating important urban diversity, important for the history of
the city, and an intense road public sphere due to the strong relationship between the open space and the
built spaces that configure this street typology.
Key-words: lanes, urban morphology, public space.
1. INTRODUÇÃO
A cidade de Uberlândia é um exemplo de cidade média que teve um alto grau de crescimento a partir dos
anos 80, com uma população atual de 650 mil habitantes segundo os últimos dados do IBGE. Esse rápido
crescimento transformou a paisagem da cidade, com crescente verticalização na área central e expansão
da mancha urbana, porém em meio a toda essa transformação e desenvolvimento, as travessas ainda
preservam alguns aspectos urbanos dessa história, com edifícios no alinhamento da calçada, caixas viárias
estreitas, alta taxa de ocupação no lote e outras características que as distinguem na paisagem urbana. A
compreensão sobre essas características espaciais e a sua importância na estrutura urbana atual da cidade
suscitou algumas questões que se tornaram objeto dessa pesquisa.
2. OBJETIVOS
O objetivo central da pesquisa é compreender as características morfológicas das travessas e o seu papel
na forma urbana em Uberlândia, através do estudo dos seus elementos estruturantes, e verificá-los como
representantes do processo de urbanização da cidade. O objetivo da pesquisa é compreender como a
dimensão da caixa viária, as diferentes tipologias arquitetônicas, a dimensão dos lotes, dentre outros
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elementos físicos, propiciam uma ambiência urbana capaz promover uma maior esfera pública do espaço
urbano. O estudo das travessas volta o foco para a rua como um importante espaço livre público e a sua
importância para a paisagem urbana.
A pesquisa tem como objetivo estabelecer alguns parâmetros conceituais sobre as travessas em
Uberlândia: origens, evolução histórica, apropriação pública, aspectos da legislação urbana, relevância
para o desenho e para paisagem urbana; quanto a parâmetros ligados a sua característica espacial:
tamanho, desenho, tipologia das edificações, transformação e possíveis propostas de intervenção.
3. JUSTIFICATIVA
As travessas são uma herança do urbanismo português e são estruturas viárias criadas na trama urbana
para conectar, ou atravessar, duas ruas principais. Elas estão presentes em diversas cidades brasileiras,
mas principalmente naquelas onde o desenho incorporou esse elemento como parte da sua estrutura, com
uma função específica no desenho urbano, e capaz de criar uma paisagem peculiar de acordo com sua
configuração. Geralmente as travessas são ruas de pouca largura, com pequenas calçadas e com um
parcelamento urbano que permite a construção no limite do lote, fazendo com que a ambiência dessas
ruas seja diferente das outras ruas da mesma cidade.
Em Uberlândia, as travessas apresentam um papel secundário no sistema viário, sendo que apenas vinte e
sete estão presentes na grande trama urbana da cidade. Como comparação, em Lisboa, são mais de 300
travessas que completam o sistema viário da capital portuguesa. Esse papel secundário se dá por
diferentes motivos fazendo com que as travessas não sejam mais incorporadas nos desenhos dos novos
parcelamentos. O trabalho tem como principal justificativa que a compreensão dos elementos que
configuram as travessas na cidade de Uberlândia possibilita uma importante discussão sobre as interfaces
entre desenho urbano, tecido urbano, ambiência, arquitetura e apropriação dos espaços livres urbanos.
4. METODOLOGIA
A pesquisa se estruturou na avaliação morfológica das calçadas com análises de plantas históricas, análise
de fotos e reportagens, análise de mapas atuais e levantamento in loco dos elementos de estruturaram as
categorias de análise. Durante a coleta de dados foram levantadas informações que serviram de base para
catalogar e caracterizar as travessas de Uberlândia, tais como: caixa viária (que inclui a faixa de
rolamento ou leito carroçável e as calçadas), usos predominantes, a presença ou não de estacionamentos
na rua, as tipologias das edificações, o contexto ou implantação das travessas bem como sua morfologia, e
por fim a medida aproximada dos lotes predominantes nas mesmas. Os parágrafos seguintes buscam
explanar sobre os itens coletados e sua devida importância para a presente pesquisa, apresentando a
sistematização e os mapas temáticos que foram produzidos.
5. CARACTERIZAÇÃO DAS TRAVESSAS
O primeiro aspecto discutido na pesquisa foi sobre a sua conceituação. As travessas são espaços livres
destinados a circulação de pessoas e veículos cuja função urbana é de conectar duas outras ruas
principais, ou seja, se atravessar uma quadra, e isso foi o primeiro parâmetro para o entendimento do
papel da travessa na estrutura urbana. Após essa breve conceituação, o primeiro passo foi mapear as
travessas existentes em Uberlândia. Tomou-se como base o programa de endereços da prefeitura,
UBERLÂNDIA DIGITAL, na qual existem vinte e sete vias denominadas de travessas, entretanto, apenas
vinte foram catalogadas e trabalhadas detalhadamente, devido as suas peculiaridades e relevância para
este estudo.
De acordo com a figura 1 é possível verificar um primeiro aspecto, a visível concentração das travessas
na região central e na zona norte da cidade, em destaque, nas regiões onde o traçado ortogonal foi
implantado seguindo um eixo de expansão que saía do centro até a região norte da cidade. O traçado, que
já apresentava uma relevância no desenvolvimento da pesquisa, toma um destaque maior a partir da
relação da presença das travessas em traçados mais ortogonais, com exceção de casos específicos como o
bairro Roosevelt, de traçado radial.
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FIGURA 1 - Mapa da cidade de Uberlândia com a localização das travessas. Fonte: Base Planialtimétrica de
Uberlândia. Adaptação: João Paulo Alcântara Vera (2014)
5.1. Caixa viária
O primeiro item analisado é a largura da caixa viária, que foi coletada in loco, buscando medir a largura
do leito carroçável e logo em seguida as calçadas de ambos os lados da travessa. A caixa viária é um
elemento bastante importante para a caracterização das travessas, já que as mesmas apresentam uma
medida inferior se comparada à média de outras ruas, entretanto foram encontradas muitas travessas com
dimensões maiores, e por outro lado existem na cidade de Uberlândia muitas ruas com dimensões
similares a das travessas porém não são classificadas como travessas. Tal fato evidencia que há uma
definição mais complexa para o termo, que vai além da sua largura e que se complementa com os outros
itens analisados no decorrer da pesquisa.
FIGURA 2 – Comparativo entre as larguras das caixas viárias, onde o tamanho da fonte do texto é proporcional à
medida da rua. Fonte: João Paulo Alcântara Vera (2014)
A figura 2 ilustra as larguras das travessas, onde o tamanho da fonte do texto está proporcional à sua
medida. Os números foram colocados em ordem crescente variando de 2,6 m até 7,1 m. Os valores com
fonte menor, abaixo das medidas das ruas, são as médias das calçadas das travessas, e a cor amarela
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indica as travessas que apresentam estacionamentos em algum lado da calçada. No final é feita uma
média simples com o somatório de todas as medidas divididas pela quantidade de travessas analisadas,
gerando um valor médio final de 5,4 metros de largura, enquanto que uma média de vias classificadas
como ruas apresentam valores superiores.
FIGURA 3 - Fotografias que comparam as diferentes ambiências geradas pelas distintas larguras das travessas.
Fonte: João Paulo Alcântara Vera (2014)
A figura 3 evidencia as ambiências que cada dimensão de via cria, sendo que as duas primeiras
apresentam fachadas mais próximas, uma angulação menor para a vista do céu, consequentemente uma
insolação mais reduzida. As duas imagens inferiores são travessas com caixas mais largas, que ao
contrário das primeiras estão com as fachadas descoladas umas das outras, mais adaptadas à escala dos
carros, e com uma angulação do céu maior e uma insolação maior durante o dia.
A presença de estacionamentos ou não está associada a largura, ou seja, quanto menor a caixa de rua,
menores as chances de haver estacionamentos, e quanto maior a mesma, maiores as chances, fato este
confirmado pela Figura 3. Em muitos casos, mesmo não sendo regulamentados os estacionamentos,
muitos carros param sobre as calçadas, sobrando um espaço muito pequeno para a circulação de outros
veículos e pedestres, porém nestes casos o fluxo de carros é muito pequeno. A presença de
estacionamentos está relacionada ao fluxo de veículos, e como este elemento contribui para a apropriação
ou não da rua pelos moradores e a comodidade para os pedestres.
5.2. Lotes e sua distribuição na quadra
Outro fator que caracteriza uma travessa em Uberlândia é a dimensão dos lotes. Foram analisados as
dimensões dos lotes e o modo como se distribuem ao longo das travessas, bem como sua ocupação no
interior das quadras, questionamento fundamental para a compreensão da origem das travessas. Para
compreender a tipologias edilícias, que será abordada logo em seguida, os tamanho lotes são
imprescindíveis, pois dependendo de suas dimensões e formato, as edificações se moldam de diferentes
formas, tendo uma grande interferência na arquitetura e na sua implantação, principalmente no caso das
travessas em que os lotes apresentam áreas menores.
A figura 4 apresenta a forma como os lotes se organizam nas quadras e como a ocupação do miolo ocorre,
podendo ser de uma forma mais regular e ou mais irregular. No fundo amarelo, estão os lotes que ocupam
a quadra de forma mais irregular, onde se percebe que há um preenchimento de vazios com novos lotes
que vão sendo englobados, o que neste caso gera lotes com dimensões muito variadas. O fundo salmão
contém os lotes que ocupam as quadras de forma mais regular, e consequentemente os lotes individuais
apresentam dimensões mais semelhantes.
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FIGURA 4 – Formato e distribuição dos lotes nas travessas. Fonte: Base Planialtimétrica Uberlândia. Adaptação:
João Paulo Alcântara Vera (2014)
A grande variação dos tamanhos dos lotes é uma característica, porém há uma predominância de lotes
pequenos variando de 250m², como na Travessa Iturama, e 80m², como na Travessa Frutal. Enfim, em
média as travessas apresentam lotes menores, e tal afirmação é validada quando se compara o lote da
travessa com lotes do mesmo quarteirão, porém estes últimos estão implantados em avenidas e ruas.
5.3. Tipologias das edificações
Sobre as tipologias das edificações, foram observadas o gabarito, as fachadas, a presença ou não de
garagem, recuos frontais, laterais, taxa de ocupação e adaptação do edifício ao lote. As tipologias
predominantes foram registradas em fotografias. A objetivo da observação da tipologia é compreender a
relação entre o espaço construído e o espaço livre público, a configuração dessas arquiteturas para a
cidade, assim como as marcas da evolução histórica presente na edificação.
FIGURA 5 - Fotografias que retratam as tipologias das edificações que ocupam quase que a totalidade do lote.
Fonte: fotos de Evelyn Penna. Adaptação: João Paulo Alcântara Vera (2014)
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Um elemento associado à tipologia e que merece destaque é a relação da fachada principal que, em
muitos casos, faceia a rua e se torna um elemento bastante característico das travessas mais preservadas.
Na maioria dos casos em que as tipologias apresentam testadas faceando a rua, é consequência de um lote
muito pequeno e que foram construídas em períodos que não havia legislação relacionada à taxa de
ocupação.
Alguns padrões tipológicos faceando a rua, em sua maioria com janelas e portas voltadas para o espaço
público, sem recuos frontais ou laterais marcam a paisagem das travessas. São menos recorrentes os casos
que apresentam garagem e como dito anteriormente a taxa de ocupação do lote é elevada, não sendo mais
possível a construção de tais tipologias atualmente. A figura 5 destaca a frase “olhos para a rua”,
expressão utilizada pela autora Jane Jacobs, onde a mesma aborda sobre os geradores de diversidade
urbana e a segurança que é proporcionada pelos moradores quando existe essa relação maior com o
espaço público.
Outras tipologias definem as paisagens das travessas, com recuos frontais e laterais, onde não há mais a
testada faceando a rua, em que a mesma encontra-se recuada e separada por um muro ou outros elementos
de isolamento da casa com o espaço público. Em alguns casos é observada a utilização de grades, em que
ainda se permite uma maior relação entre o espaço da rua e a arquitetura, contudo, é constante a
construção de muros que isolam o edifício do espaço público rua.
5.4. Usos predominantes
Os usos predominantes foram constatados durante as visitas às travessas. Há uma predominância do uso
residencial nas vias, entretanto foram elencados outros usos que exercem grande influência sobre as
travessas. A figura 6 apresenta o quadro de usos das travessas. Em amarelo destaca o forte caráter
residencial, com serviços e comércios pontuais em alguns casos, geralmente nas esquinas de vias
comerciais. O quadro de cor laranja destaca a influência de comércios e serviços, alguns pulverizados ao
longo da via e outros mais concentrados nas esquinas como no primeiro caso; a concentração de
comércios e serviços nessas travessas se justifica devido à sua localização na zona central da cidade.
FIGURA 6 - Imagem gráfica com os usos predominantes separados por categoria. Fonte: Base Planialtimétrica de
Uberlândia. Adaptação: João Paulo Alcântara Vera (2014)
E por fim o quadro azul representa a influência do uso institucional nas travessas, sendo que a quadra
esquerda contém uma universidade e a direita a sede do departamento de água e esgoto da cidade de
Uberlândia (DMAE). As travessas com influência institucional se encontram em descaracterização, pois
muito do que havia ali foi transformado e desocupado para a implantação dos equipamentos, logo a região
ganhou outra dinâmica.
Nos levantamentos in loco, foi observada uma dinâmica peculiar relacionada ao comércios, serviços e
residências, pois muitas casas utilizam alguns cômodos adaptados ao uso para cabeleireiros, copiadoras,
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lanchonetes, confecção, formando uma mistura de usos que ocorre muitas vezes através do improviso e
que geralmente acontece nas travessas predominantemente residenciais. O que ocorre nesse sentido pode
ser um fator gerador de urbanidade para a travessa quando aliado a outros elementos, visto que a
diversidade de usos está latente nesses casos.
5.5. A travessa no tecido urbano
Outro item abordado e que contribui para a conceituação e caracterização das travessas é a condição
morfologia das mesmas. A análise foi feita através de alguns mapas figura fundo onde se destaca a
travessa no tecido urbano. O entendimento deste aspecto é fundamental, pois travessas muito diferentes
dos padrões daquelas mais características, podem ser classificadas como tal devido a sua morfologia e o
modo como atravessam e recortam uma quadra.
Os modelos de travessas na figura 7 destacam, na primeira coluna, aquelas que cortam duas quadras
consecutivas, fato que as torna mais extensas, e na segunda coluna as travessas que terminam como rua
sem saída. É importante uma observação neste último caso, pois a função de travessia na malha urbana
não ocorre, e tal rompimento pode ter ocorrido devido às transformações históricas que o traçado sofreu.
FIGURA 7 - Mapas dos raios das travessas, em destaque o traçado imediato. Fonte: Base Planialtimétrica de
Uberlândia. Adaptação: Vera (2014)
As travessas que cortam as quadras de forma assimétrica, normalmente os quarteirões são maiores e com
baixa conectividade com a malha urbana limítrofe. Neste caso, é notória a concepção da travessa como
travessia, e sua irregularidade ou assimetria ao recortar a quadra pode inferir a uma lógica de ocupação
estratégica no interior da mesma.
A definição do conceito Travessa se faz abarcando todos os itens listados até o momento, resultando
numa conceituação complexa e passível de outras análises. Como a cidade está em constante
transformação, seja ela em seu traçado urbano ou em suas tipologias arquitetônicas, os conceitos estão
sempre se modificando, e não se tem ao certo os parâmetros que a prefeitura utiliza para classificar as
travessas. Uma via classificada como travessa pela prefeitura pode estar atualmente descaracterizada, ou
seja, não se enquadra claramente nos aspectos citados no texto, contudo sua condição histórica anterior
faz com que a mesma cumpra uma função na forma urbana enquanto travessia, e portanto esse
entendimento das transformações urbanas é fundamental para a caracterização.
6. SÍNTESE DOS LEVANTAMENTOS
Para ilustrar a sistematização e caracterização das travessas será apresentada a síntese da pesquisa através
da travessa Cascalho Rico, uma das mais emblemáticas da cidade. A Travessa Cascalho Rico está
escondida na vista aérea de sua quadra, mas também passa despercebida aos olhos do vai e vem de
veículos e fluxos naquela região central e movimentada da cidade, entretanto, aos olhos de um pedestre
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curioso e “desocupado” pode chamar a atenção, e isso se intensifica quando ele adentra por essa viela e
sente a transição de um lugar dinâmico e complexo, para outro que parece ter parado no tempo ou
congelado, no bom sentido é claro, pois ali há um outro contexto urbano.
Os vizinhos ainda se conhecem, as crianças ainda brincam nas ruas; a cadeira, aquela mesma usada dentro
de casa, repousa sobre o asfalto toda sexta-feira no final da tarde. Dona Lenir, ao notar a presença do
visitante curioso já abre um sorriso também curioso, mas não compreende o que o traz ali naquele
ambiente pacato em que o sentimento de pertencimento com o lugar é tão grande a ponto de constranger o
estranho, e com a troca das primeiras palavras o constrangimento se transforma em contação de histórias
e uma fonte muito rica para a pesquisa sobre as Travessas.
FIGURA 8 - Prancha com as informações sistematizadas, exemplo da Travessa Cascalho Rico. Fonte: João Paulo
Alcântara Vera (2014)
Na Travessa é difícil passar despercebido, as janelinhas voltadas para a rua conseguem flagrar qualquer
um que esteja perambulando por ali sem rumo, e não é difícil notar olhares desconfiados através das
mesmas. A interação é certa neste caso, podendo ficar apenas na troca de olhares bem como numa
conversa que se estende, pois o morador dessa travessa parece ter uma pré-disposição pra interagir com os
fatos que ocorrem na rua, mas não é difícil imaginar outro atributo já que a sala de tevê parece uma
extensão das calçadas estreitas.
Com a devida licença poética, a descrição acima se ateve em destacar alguns pontos importantes
associados à apropriação do espaço público e da relação de vizinhança que existe naquela travessa. A
identidade com o lugar, o encontro casual com os vizinhos na porta de casa, as crianças que brincam na
rua, a cadeira no asfalto, os olhos para a rua, enfim, são elementos geradores de urbanidade que estão
presentes na Cascalho Rico, e mesmo sem ter consciência disso, os moradores estão cumprindo um papel
muito significativo e que gera qualidade para vida nas cidades.
Depois de caracterizadas as travessas, o olhar para a Travessa Cascalho Rico vem no sentido de associálas aos itens analisados e compreender o fato da mesma ser enquadrada enquanto travessa. A caixa de rua
da Cascalho Rico é uma das mais estreitas, com um valor aproximado de 3 metros para o leito carroçável
e calçadas de 0,7 metros de cada lado, aliado com a uniformidade dos gabaritos mais baixos, a rua exalta
uma ambiência peculiar e adaptada à escala humana, onde as fachadas e os moradores estão bem
próximos uns dos outros. As tipologias estão em sua maioria faceando a rua com janelas e portas voltadas
para a rua, onde 90% das suas edificações seguem esse padrão e 50% não apresentam garagem.
Os lotes dessa travessa são adaptações do miolo de uma quadra, devido ao seu tamanho e irregularidade,
logo é importante destacar a função da ocupação de vazios internos, característica forte na travessa em
estudo. Os lotes pequenos conformam essa tipologia de arquitetura com alta taxa de ocupação e faceando
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os limites do lote. Alguns lotes foram englobados por lotes lindeiros, principalmente na Avenida Rio
Branco onde prédios e comércios apresentam a testada na avenida e os fundos do terreno para a travessa,
gerando muros na mesma.
As transformações na Travessa Cascalho Rico se restringem a esta categoria, visto que os lotes não
apresentam dimensões para os tipos de empreendimentos que o centro tem atraído, criando uma condição
favorável para a permanência da via e seu caráter residencial. A travessa pode ser considerada uma das
mais fáceis de ser exemplificada, pois a partir do seu papel no tecido urbano, as outras características são
desdobradas e se tornam evidentes.
6.1. Surgimento das travessas
A figura 9 apresenta o plano do centro da cidade em 1927, apresenta um traçado ortogonal que rompe
com o traçado mais irregular da região onde a cidade surgiu (à esquerda), e se desenvolve no sentido da
primeira estação ferroviária da cidade (à direita), que foi o primeiro grande vetor de expansão. Principal
fonte documental que destaca a hipótese de que as travessas surgiram com a consolidação das quadras,
em especial na região central, que concentra grande parte das vias estudadas, devido ao fato destas terem
surgido por uma necessidade de conexão de algumas vias, transformando esse espaços urbano.
FIGURA 9 - Mapa da expansão urbana de Uberlândia, no sentido da Ferrovia Mogiana. Fonte: PMU, Adaptação:
VERA (2014)
Conclui-se então a partir do mapa, que as travessas centrais demarcadas em vermelho ainda não existiam
no ano de 1927, e que podem ter se consolidado anos depois, já que a ocupação das quadras ainda era
mais dispersa se observado os pontinhos pretos das edificações, onde as ocupações se faziam de uma
forma mais espontânea, fazendo com que os miolos das quadras apresentassem grandes áreas não
construídas.
Após consolidados os quarteirões, ainda haviam espaços ociosos no interior de algumas quadras. Uma
hipótese levantada em função disso é que com a crescente demanda por lotes na região central da cidade
naquele período, houve a necessidade de otimizar a ocupação e o parcelamento das quadras, e por isso
uma das soluções foi criar travessias e novos desmembramentos nas mesmas.
Enfim, a hipótese apresentada sobre o surgimento das travessas na cidade e sua consequente
caracterização veio do questionamento sobre a sua real função na malha urbana. E com todas as análises
feitas e desdobradas percebe-se que a travessia surge como ferramenta para o parcelamento dos lotes
centrais e sua adequação.
As travessias que não estão implantadas nas áreas centrais e que demonstram ter sido consolidadas mais
recentemente, tais como as Travessas Maria da Conceição e Getúlio Alves, demonstram uma perspectiva
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mais atual sobre a função das mesmas, pois estão associadas a conjuntos habitacionais que ocupam lotes
menores, contudo surgem como forma de otimizar o parcelamento num quarteirão que não foi planejado
para tal ocupação. Enfim, esta perspectiva apesar de atual, reforça a mesma função das travessas centrais,
entretanto não existem informações sobre a criação de conjuntos habitacionais naquelas.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da caracterização das travessas e consequentemente do papel que a mesma exerce na forma
urbana, percebemos que essa tipologia de rua resiste as transformações urbanas do centro da cidade. A
sua tipologia nos leva a um tempo onde a cidade era construída através de outro processos, que se
preservaram em parte pela condição dessas vias, da sua arquitetura, do modo de vida de seus moradores e
em parte pelas travessas não serem corredores de tráfego rápido pelo centro.
O estudo apresentou algumas das características mais marcantes dessa tipologia de via que atualmente
não é vista mais nos novos parcelamentos urbanos e nem é mais possível que seja feita, dada a
regulamentação dos novos parcelamentos que seguem diretrizes que nem sempre propiciam uma boa
qualidade espacial urbana. Ruas estreitas são demonizadas por parte da população e planejadores urbanos,
visto que sua função dentro da estrutura viária urbana não é destinada ao grande fluxo de veículos. Esse
olhar atento deveria ser feito pelo gestores públicos no sentido de promover uma maior valorização e
visibilidade dessas estruturas urbanas.
As travessas revelam uma forma distinta de vida urbana distinta das demais ruas, que além de ser
consequência de uma morfologia e de sua espacialidade, vem da necessidade constante que o homem tem
para interagir com o espaço onde vive. É preciso conservar essas espacialidades que vem sendo perdidas
na cidade contemporânea, e as travessas trazem lições de urbanidade e relação de vizinhança, uso do
espaços público, relação entre o espaço construído e livre que possibilitam um novo entendimento
espacial urbano.
8. REFERÊNCIAS
ALCANTARA, Denise de. O largo e a travessa: dicotomias pontuais e harmonias contextuais no centro,
Rio de Janeiro. Paisagem ambiente [online]. 2008, n.25, pp. 155-171.
ALCANTARA, Denise de. Percursos à deriva na investigação do lugar: O caso do corredor cultural, Rio
de Janeiro. NUTAU. Rio de Janeiro, 2006.
JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. Martins Fontes, São Paulo, 2000.
JACOBS, Allan. B. Great Streets. MIT Press, 1995.
MASSENGALE, John. ; DOVER, Victor. Street Design: The Secret to Great Cities and Towns. Wiley,
2013.
TEIXEIRA, Manuel & VALLA, Margarida. O urbanismo português, séculos XIII-XVIII, PortugalBrasil. Lisboa: Novo Horizonte, 1999.
9. AGRADECIMENTOS
Ao CNPQ pela bolsa de iniciação científica que possibilitou a execução da pesquisa
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