SERGIO LUIZ NASI 
PROJETO MEMÓRIA: Onde o senhor cursou a Faculdade de Direito?
ENTREVISTADO: Na PUC, ao tempo em que a área física era aqui na
Praça Dom Sebastião, no Colégio Rosário.
PROJETO MEMÓRIA: O senhor lembra de seus professores?
ENTREVISTADO: Lembro-me de vários. Na área de Penal Material,
ressalta a figura do Paulo Pinto de Carvalho, Procurador do Ministério Público,
quase que emérito, influenciava na escolha de muitos pela carreira ministerial.
PROJETO MEMÓRIA: Como foi o concurso do Ministério Público?
Como foi a entrada no Ministério Público, saindo da faculdade?
ENTREVISTADO: Esse concurso foi travado em uma época muito
difícil. Foi em setembro de 1965. Corriam muitas investigações com relação
aos candidatos, por conta de suas opções ideológicas. Como eu não militava
em nenhuma agremiação partidária, não cheguei a enfrentar maiores
dificuldades, mas com outros não foi assim. Éramos cerca de 300 candidatos,
e lograram aprovação uns 40 candidatos. Eu recordo que fui o último lugar da
primeira turma, e os resultados foram proclamados em outubro ou novembro,
e eu consegui nomeação em 31 de janeiro de 1966. Aí, parou. Por isso é que
eu disse que fui o último lugar do primeiro lote.
PROJETO MEMÓRIA: Como era a estrutura do Ministério Público na
época? A remuneração era boa, os salários eram bons, a estrutura
operacional da instituição era boa?
ENTREVISTADO: Comparativamente, bem aquém do que é hoje em
dia. O apoio logístico da Instituição ao Promotor era mínimo. Os Promotores
levavam, inclusive, seus pertences para o trabalho, pois nem máquina de
escrever tínhamos. O que nos davam era apenas material de escritório – as
laudas, as folhas, o papel carbono. A gestão Lauro Pereira Guimarães
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Entrevista concedida ao Projeto Memória
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revolucionou este quadro, dando uma alavancagem impressionante, pois
passamos a receber apoio institucional para o exercício da função. Por
casualidade, eu estava na Comarca da terra dele, que é Taquari. O padrão
remuneratório era baixo, o vencimento inicial não passava de 20 salários
mínimos.
PROJETO MEMÓRIA: Teve, inclusive, no final do Governo Peracchi
Barcellos, e depois, ao longo do Governo Triches, uma crise institucional
dentro do Ministério Público e do Palácio, em função, justamente, da questão
salarial. O senhor chegou a acompanhar alguma coisa disso no interior ou
essas notícias não chegavam no interior?
ENTREVISTADO: Algumas notícias chegavam ao interior pela
imprensa. Éramos convidados também para algumas reuniões da Associação,
que ensaiava na época uma organização mais ativa. Durante o Governo
Peracchi, o Lauro Pereira Guimarães era Presidente da Associação, já
demonstrava dinamismo. Mas tem um dado com relação à Gestão Peracchi
Barcellos muito interessante, que indica que Secretários de Estado receberam
subsídios maiores, e, no dia seguinte, a notícia, a confirmação dos subsídios
maiores
que
o
Governador
concedera
a
seu
secretariado,
os
Desembargadores do nosso Tribunal de Justiça fizeram uma resolução se
auto-aumentando, porque havia nivelação do básico dos Desembargadores
com os Secretários de Estado.
O Ministério Público não acompanhou, porque havia uma diferença
entre uma entrância e outra. O Procurador em final de carreira recebia o
equivalente, no básico, ao juiz de 4ª entrância. Mas, com o advento da
Constituição de 1967, que nivelava Juiz de Direito e Promotor de última
entrância, o Governador Peracchi, de maneira lisa, fez prevalecer esse
entendimento, e eu recordo que foi a minha primeira experiência – embora
não me atingisse porque eu estava ainda em entrância inicial – em que
Promotores de entrância final, que era Porto Alegre, de primeiro grau,
perceberiam valores nominais iguais aos juízes da Capital. Mas a crise maior
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se deu durante o Governo Triches. Ali penamos, apesar da grande
correspondência e amizade do Dr. Lauro com o Governador.
O brilhante Sérgio da Costa Franco era colunista do Correio do
Povo e criava um personagem verberando contra isso, a tal ponto que um
Promotor de entrância final na capital, não Procurador, mas Promotor de
entrância final, estava ganhando apenas o equivalente ao juiz de entrância
inicial, porque o Governador, de maneira inadvertida, aprovou um projeto para
o Judiciário e não deu essa simetria tradicional ao Ministério Público. Os
valores conferidos ao Ministério Público eram sempre com uma diferença de
entrância com a magistratura. Mas durante o Governo Triches ficou aplastante
esta diferença. O Governo Guazelli rompeu esta violenta diferença, mas
manteve ainda um nível abaixo.
PROJETO MEMÓRIA: A sua primeira Comarca foi Taquari mesmo?
ENTREVISTADO: Foi Taquari.
PROJETO MEMÓRIA: E como era ser Promotor sem essa estrutura
toda que o Ministério Público tem hoje, com um salário que não é como o de
hoje, estando numa Comarca como a de Taquari, que é uma cidade distante?
ENTREVISTADO: O acesso era mais difícil. A estrada até Montenegro
era asfaltada; depois, chão batido. Eu era solteiro e morava com o padre
vigário, na casa canônica, defronte ao Fórum. É verdade que, de vez em
quando, apareciam umas substituições e se percebiam algumas gratificações.
Não havia, na época, vedação à advocacia. Eu, na verdade, ensaiei alguns
passinhos na advocacia. O Ministério Público também não tinha essa gama de
atribuições que tem hoje, principalmente no processo civil. Nós éramos
eminentemente Promotores do crime. Eminentemente, não necessariamente,
mas tínhamos algumas atribuições no cível, as Curadorias, mais como custos
legis e não como substituto processual, como autores.
Operávamos, também, nas ações de acidente do trabalho. Naquela
época havia um sistema privatizado, eram companhias securitárias. Eu tinha
muita
facilidade
para
acordos.
Tínhamos
também
incumbência
de
reclamatórias trabalhistas em Comarcas onde não houvesse sindicato da
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categoria profissional correspondente aos reclamantes. Com resíduos,
tínhamos os executivos fiscais, hoje já é incumbência da PGE. Até se percebia
uma espécie de sucumbência após a apuração dos haveres, da execução. O
Promotor que ajuizasse um executivo fiscal, como se fosse um advogado,
percebia a sucumbência, mesmo que houvesse parcelamento. Os processos
falimentares, quando havia, o Ministério Público interferia. Mas, sem dúvida
alguma, eram menos atribuições.
Eu gostava muito da área de Processo Penal, de Direito Penal
Material. Taquari não era muito movimentada com relação às sessões do Júri.
Lá pelas tantas, recebi duas incumbências, e, como eu estava em estágio
probatório, as aceitei logo, sem pestanejar. Era julho de 1966, e fui designado
para atuar na Promotoria de Rosário. Era uma Promotoria só naquela época,
uma Comarca de entrância um pouquinho maior, mas não tive muita sorte
porque o juiz estava também de licença ou de férias e não havia movimento.
Havia uma vantagem econômica, pois pagavam diárias corridas, mas não foi
por isso que aceitei.
Eu fui esperando uma certa experiência diferente, mas logrei êxito.
O sucesso, porém, terminou chegando ao final do ano, pois me indicaram para
Uruguaiana, porque o Ney Fayet era o Promotor e estava em férias e o outro
colega, cujo nome não recordo, estava em licença. Tive, então, muitas
sessões no Tribunal do Júri de Uruguaiana e vibrei, porque era uma Comarca
bem estruturada, um Fórum bonito, e o Ney Fayet me deu uma ajuda.
Enquanto eu preparava os processos que iam a Júri, ele, embora de férias,
prontamente examinava uns inquéritos para mim. Eu atuava naqueles
processos de separação judicial que tinham o nome de desquite. O Promotor
oficiava, porque às vezes estava envolvido o interesse de menores.
Foi uma experiência bem benéfica, profícua, não só na área do
crime, como também no cível, naquilo que competia, bem restrito em relação
aos padrões de hoje. Nós não tínhamos ações civis públicas. Nós também
propúnhamos as ações de alimentos. No serviço de atendimento às partes, a
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gente costurava muito acordo, conciliava, fazia termo de conciliação, submetia
à apreciação judicial e ficava valendo como título executório.
PROJETO MEMÓRIA: Alguma lembrança de algum fato pitoresco
desses Tribunais do Júri em Uruguaiana?
ENTREVISTADO: Permaneci somente um mês lá – dezembro de
1966. Não eram casos muito rumorosos, mas envolviam defesas constituídas.
Alguma repercussão certamente teve. Em Taquari, lembro-me de que era uma
Comarca de poucas sessões do Júri, como já disse, mas recebi a visita de
advogados de outras Comarcas, inclusive de um criminalista renomado ali na
área de São Jerônimo, cujo nome agora me escapa. Ele fazia boas sessões,
bons Júris e tal, gostava de explorar certos sentimentos dos jurados, mas um
excelente tribuno.
Ele fez um Júri comigo, em que eu estava como assistente de
acusação. E, achando que tinha assistente de acusação, ele era um advogado
pago pelos familiares da vítima, achei que deveria dispor um pouco do meu
tempo e entregá-lo praticamente na totalidade. E o advogado – que hoje está
em Lajeado, uma excelente pessoa e meu amigo – ficou um pouco nervoso e
só dizia que a prova condenatória estava nos autos, mas batia naqueles
volumes espalhados na mesa, batia nos autos e não explicava, não explicitava
todos esses elementos cognitivos colhidos contra o réu, não explicitava aos
jurados. Eu falava pouco, porque tinha confiado o meu tempo a ele. A
acusação, a ação civil é uma ação penal pública, e o comando é do Ministério
Público.
Mas, por elegância, eu deferi tempo maior ao colega da assistência.
E o Dr. Alcino Machado – já falecido – no seu momento de defesa, ao ocupar
a tribuna, veio já blefando, ironizando – era meu amigo. Disse que já conhecia
instalações comerciais de minimercados ao lado dessas superorganizações,
mas que nunca tinha visto na vida profissional dele miniacusação. Eu tive que
engolir aquilo tudo, e depois, por sorte, na réplica, eu pedi licença para o
colega, que hoje advoga em Lajeado. Aí, eu procurei examinar, e era do meu
conhecimento,
porque
preparei,
para
poder
examinar
os
subsídios
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acusatórios, e mesmo assim ele foi condenado, mas por quatro a três.
Repercutiu aquela defesa do Alcino, conseguimos dar uma virada, mas aquele
momento que o Alcino falou... O Alcino tinha muito prestígio. Havia uma
dificuldade, também, do corpo de jurados, seja qual fosse, condenatório em
Taquari.
PROJETO MEMÓRIA: Pois é, porque o Tribunal do Júri é sempre uma
instituição muito questionada. Por um lado, entende-se que é uma forma
democrática de se conduzir o julgamento, mas, por outro, há todo um
questionamento no sentido de que o Tribunal do Júri possa sofrer influências
de poderes locais ou do poder econômico constituído, do poder privado. Como
é que o senhor vê essa questão, como é que o senhor sentiu isso ao longo da
sua carreira como Promotor?
ENTREVISTADO: Acho que seria mais com ênfase em Taquari,
porque a minha permanência maior foi naquela Comarca. Fiquei as duas
entrâncias lá, rejeitei promoção, só para continuar lá. Posso falar nessa
Comarca e acho que não há nenhuma deslealdade. O que existe são
sentimentos de gratidão. Esse caso que eu situei era de uma família de
trabalhadores, de poucas posses, que morava na periferia, mas era gente
operosa, e o clima criminoso foi em função de sacas de arroz que disputavam.
Parece que eram parceiros e não se acertaram naquela parceria, então, o
rapaz, tomando de uma foice, abateu o outro sócio. Era gente operosa, os
familiares não tinham antecedentes, então, isso pressiona. Mas, também,
quero louvar os recursos legais que a defesa usava.
Por exemplo, Taquari, como eu disse, era visitada às vezes por
advogados e inicia o seu primeiro Júri... O primeiro júri dessa pessoa que
agora vou declinar, excelente pessoa, famosíssima no rádio, na televisão, na
política, o finado Jorge Alberto Mendes Ribeiro, foi em Taquari. Veja o
gabarito, veja a acuidade, ele enviou uma espécie de destacamento precursor.
Sabe para quê? Para auscultar a vox populi em relação ao autor daquele
homicídio que ia ser julgado, autor esse que era patrocinado por ele. Não
havia nenhuma negaça a princípios éticos, nenhuma subalternidade, mas
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apenas ele cuidou de zelar e trouxe, no dia do julgamento, o colega que acabo
de nominar, que fora professor dele na faculdade, concluída a graduação na
UNISINOS, e trouxe o Ney Fayet, esse que me ajudou muito em Uruguaiana.
Trouxe o Ney para prestigiar a presença. O Júri foi disputado, mas venceu a
tese dele, só que o Mendes Ribeiro não pagou a tradicional janta, porque
quem vencesse tinha sempre o compromisso de pagar a janta. Usávamos o
recinto de um grande clube lá, o Alvinegro, onde a composição das bancas se
instalava materialmente.
PROJETO MEMÓRIA: Aí era o momento de aparar eventuais arestas
que tivessem ficado durante o julgamento.
ENTREVISTADO: Exatamente...
PROJETO MEMÓRIA: E, nesse período de 1966 a 1968, era
perceptível algum tipo de interferência externa na instituição do Ministério
Público? Penso aqui especialmente nas Forças Armadas. A presença das
Forças Armadas era perceptível junto à ação do Promotor, ou não?
ENTREVISTADO: Não, alguns assanhos a gente notou, mas não
comigo pessoalmente. Eu tive a honra, ao assumir a Comarca, de suceder ao
imortal Nejar. O Nejar era muito organizado e cuidadoso. Não lembro qual foi
exatamente o pivô da história, mas o Nejar travou uma polêmica contra o
Comandante
do
3º
Exército.
Não
necessariamente
por
problema
revolucionário, não me lembro do motivo. Parece que o Nejar e o Tupinambá
fizeram uma crítica a um Oficial Superior da Força Aérea, vindo a ser, ambos,
interpelados pelo Comandante, que teria exigido a presença deles no
Comando. Foram sobranceiramente defendidos pelo Lauro, que garantiu a
manutenção da independência e do perfil vertical da instituição.
Eu, pessoalmente, não tive problemas. O máximo que sentia era
pressões de alguns visitantes, que se diziam enviados de um coronel X e
pretendiam que eu aderisse a um plano previdenciário, um montepio ou coisa
do gênero. Tínhamos, por vezes, de contemporizar um pouco e aderir.
Acabaram todos quebrando. Mas, em serviço, não tive dificuldade nenhuma.
Nunca enfrentei nenhuma interferência exógena no meu trabalho.
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PROJETO MEMÓRIA: Como foi a sua nomeação para a Auditoria?
Como foi a chegada à Auditoria Militar e à Justiça Militar?
ENTREVISTADO: Até então havia aberto mão da promoção, para
continuar em Taquari, porque não se falava em elevação comarcal. Taquari
era Comarca de 1ª entrância. Já se havia costurado uma promoção para a 2ª
entrância e eu iria para Jaguarão, mas, com o advento do Governo Costa e
Silva, os Desembargadores se articularam em função de prestigiar Taquari,
para que no próximo Código de Organização Judiciária do Estado a Comarca
recebesse uma elevação. O Presidente era daquela terra, também, bem como
o Adroaldo Mesquita da Costa. Veja o que é a coisa: vim a casar com uma
neta do Adroaldo Mesquita da Costa, mas, na época, nem o conhecia. O
Adroaldo era tio do Artur. Naquela época eu conhecia o José Leite Costa, que
é filho do Adroaldo, casado com a Cecília Araújo Costa, que era advogada do
Fórum.
Bem, mas observando que os Desembargadores visitavam Taquari,
comunicando-se com o Prefeito e as autoridades, achei de bom grado abrir
mão dessa tal de promoção e fiquei por lá. Claro que precisei esperar um
pouquinho até a Comarca ser elevada. Todavia, logo em seguida à elevação
da Comarca, recebi outra promoção, de sorte que acabei mesmo vindo para
Porto Alegre, que era entrância final.
Fui designado para funcionar junto à Auditoria Militar, em
substituição. Inicialmente, aceitei, por conta da gratificação percebida, mas
logo que me deparei com a matéria processual, me encantei e terminei
pedindo para ficar. Estava vigorando o Decreto-Lei nº 667, que transferiu a
competência dos crimes praticados pelo policiamento para a Auditoria Militar,
contradizendo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que sustentava
tese no sentido de que crimes do policiamento eram de natureza civil. O
Supremo não tinha razão nesta insistência. A Auditoria operava no QCG,
Quartel do Comando-Geral. Gostei tanto da matéria processual da Auditoria
que larguei a 6ª Vara Criminal: em vez dos bandidos, fiquei com os mocinhos.
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PROJETO MEMÓRIA: Como foi lidar com o Código de Processo Penal
Militar, porque não costuma ser uma matéria tratada nas Faculdades de
Direito?
ENTREVISTADO: É verdade. Tive outra sorte ao assumir a
Promotoria. Como nós funcionávamos no QCG, fui fazer uma visita ao
Comandante-Geral e ao Chefe do Estado Maior. Eles não tinham na época
Subcomandante-Geral. Chego lá, estava o Milton Weinrich, que era o
Comandante-Geral, cuja esposa era minha amiga de infância ali da Cidade
Baixa, e o Chefe do Estado Maior era o Cel. Abreu, que foi meu colega no
Anchieta e tornou-se juiz também. Eles me presentearam com uma coletânea
de legislações pertinentes, notas de instrução, porque não se faz Justiça
Militar só com Códigos, distribuem normas penais em branco que tem que
rechear com algumas normas administrativas vigorantes na Brigada Militar.
Isso me facilitou muito o trabalho.
Recebi
uma
pasta
organizada
com
uma
dedicatória
do
Comandante-Geral. Em seguida, em vista da convivência com os oficiais dos
Conselhos, fui fazendo uma boa amizade e passei a receber todos os
fascículos da Brigada Militar que editavam a respeito de portarias, normas
gerais de ação – NGA – toda essa matéria e outras emanações
administrativas, uma das quais as DPOs.
Formei uma boa bagagem intelectual sobre o assunto. Ah, eu
perguntava muito! Especialmente na matéria mais técnica, sobre armamento
pesado, informações que desconhecia, muito embora tivesse servido no
Exército. Eu visitava quartéis, perguntava muito, porque essa matéria fática de
caserna a gente não domina e não adianta ser só técnico aqui, aplicar a lei,
tem de conhecer o fato, as nuances. Comecei a me cercar também de
regulamentos, o RDBM, na época – o Regulamento Disciplinar da Brigada
Militar – o Estatuto da Brigada Militar, embora aqui não se faça normalmente
Direito Administrativo, isso é matéria mais para a Fazenda Pública, mas a
gente, no delito, pode também examinar os antecedentes, o fichário do
envolvido, para ver como é que, administrativamente, ele se portava do ponto
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de vista disciplinar, do ponto de vista de alguns benefícios recebidos, alguns
pleitos postulados, para se ter um perfil maior dos réus.
Mais tarde, me associei àqueles que postulavam a criação de uma
2ª Auditoria, tamanho era o serviço: era impressionante!
PROJETO MEMÓRIA: Como é que foi a ascensão para o Tribunal?
ENTREVISTADO: Em meados de julho de 1985, recebi a notícia da
promoção por parte do Conselho Superior do Ministério Público. Um colega
havia me anunciado por antecipação, uns quatro meses antes: “Nasi, tu vais
ser promovido por merecimento”. “Ótimo, muito obrigado”. Mas eu queria
permanecer na Auditoria. Quando veio a promoção, o prédio do Ministério
Público era aquele do IPE, na Borges, e me deu uma alegria e, ao mesmo
tempo, aquela ambigüidade da dor, de separar. Era uma família isso aqui. Eu
tinha um colega do Ministério Público que atuava aqui, o Pithan, que era muito
tradicionalista, tinha um sítio e fazia aquelas festas lá.
As advogadas que atuavam aqui não eram Defensoras Públicas,
eram advogadas de ofício, chefiadas pela Cleonir Carrão, porque foi o
Governo Collares que criou a Defensoria Pública. Eram somente mulheres,
fora os advogados constituídos. Era uma família isso aqui, mas tinha muito
serviço. Tive que sair e fui designado para uma Câmara Cível. Mas consegui
logo transferência para a 3ª Câmara Criminal, onde fiquei até o dia em que o
Dr. Barbosa, que era o titular do Ministério Público, com aquele vozeirão,
muito ativo, brigador, disse que iria embora, quase na compulsória. Às vezes
ele me brindava com uma substituição, para não perder de vista. Permaneci
no Tribunal de Alçada até 1991, sendo escolhido, então, substituir
definitivamente o Barbosa junto ao Tribunal Militar.
Servia-me muito bem o hoje octogenário Wilson Machado. Ele
servia a todos os Promotores. Quando chegou minha vez, ficou comigo e
passei a considerá-lo quase como irmão. Ele me acompanhou mesmo quando
estava no Alçada. Naquele tempo ele me ajudava na datilografia, nos
trabalhos que eu fazia. Hoje ele está aposentado, conseguimos o
aproveitamento dele e ele está aposentado pelo Ministério Público. Ele era da
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Brigada e conseguimos a aposentadoria pelo Ministério Público, como Agente
Administrativo.
PROJETO MEMÓRIA: Como o senhor diferencia a atividade do
membro ministerial no primeiro e no segundo grau?
ENTREVISTADO: É uma mudança de ordem funcional ótica. Já não
participaremos mais na formação da prova, da guerra, do fogo cruzado, mas é
interessante, porque a gente fica mais custos legis, fica mais na fiscalização,
fica mais imparcial. Nem sempre os advogados são bons, especialmente na
jurisdição militar. Às vezes tenho suprido uma má defesa – e não faço favor
nenhum – quer levantando nulidades não examinadas, quer explorando
alguns segmentos da prova não assim considerados pela douta defesa. A
qualidade da defesa tem melhorado muito nos últimos tempos.
PROJETO MEMÓRIA: O senhor talvez seja um dos Promotores,
membros do Ministério Público, que tenha tido uma das trajetórias mais
longas, atuando junto à Justiça Militar – tanto no 1º quanto no 2º grau – não é
verdade?
ENTREVISTADO: Eu acho que sim, mas incomparável com o Dr.
Alfredo Nascimento Barbosa.
PROJETO MEMÓRIA: O senhor deve ter uma visão orgânica, digamos
assim, da Justiça Militar. Qual é o perfil de criminalidade, qual é o perfil dos
processos que chegam ao 1º grau e ao 2º grau, qual a característica dos
recursos?
ENTREVISTADO: O primeiro julgamento, no prédio novo, em 1982,
ocorreu junto à 1ª Auditoria – já tínhamos duas Auditorias em pleno
funcionamento – e era um caso muito complicado, complexo, que peguei já
com o “bonde andando”. Era aquele episódio, inusitado, de alguém que estava
dormindo na sua casa, numa transversal da José de Alencar, em 31 de
dezembro. Estava dormindo em casa, no âmbito familiar, a esposa convidou a
acordar para participar da ceia, da passagem de ano com a família, ele então
acedeu, foi à mesa, tomou assento à cabeceira, e, de repente, uma bala
atravessou um vidro martelado que ornava a parede dele e o matou.
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O projétil se supunha que proviesse de um fuzil, cujo artilheiro era
um soldado do Regimento, hoje denominado Esquadrão de Guarda do
presídio, que estava de serviço na rede externa, e teria ouvido qualquer
barulho suspeito, início de tumulto. O fato ocorreu na época de Natal e Ano
Novo, quando as coisas se agitam. Ele teria feito o disparo, e essa bala veio
numa velocidade de 800m/s, e, mesmo em curva hiperbólica decrescente,
tinha força para chegar aonde chegou, a 2.500m de distância do local de onde
foi disparada, atravessando esse vidro martelado e provocando a morte desse
cidadão.
Acontece que o processo era volumoso e fiquei com uma
dificuldade no croqui, porque nesse croqui aparecia o artilheiro e o local onde
ele estava supostamente posicionado no momento do tiro. Ele dera um tiro
para cima. Depois se soube que ele estava um pouco embriagado. Não havia
registro de tumulto nenhum, acho que, para saudar a chegada do Ano Novo,
ele fez o disparo. Havia uma dificuldade, lá, porque, tal como estava no croqui,
era impensável essa bala chegar onde chegou. Então, fui até o local.
Verifiquei que realmente havia um equívoco. Se fosse verdade o que o croqui
indicava, essa bala não teria chegado aonde chegou, mas sim lá na Vila
Conceição. Era uma prova que não era decisiva, mas que eu precisaria ter,
mentalizar, porque faria um julgamento.
E um detalhe, quem é que disse que eu descia aquilo ali? Fiquei
com medo, era uma escada do tipo daquelas de navio – mas lá para baixo,
sem corrimão – e eu não conseguia descer. O Comandante que me assistiu
disse: “Põe o pé aqui, põe o pé ali”... Aqueles soldados sobem e descem com
o fuzil e nem dão bola, e eu tinha dificuldade para descer. Mas desci. Era final
de tarde, e, depois de fazer toda aquela inspeção, fui descer. Tinha vertigem,
mas desci.
Foi feito o julgamento, o Conselho acolheu a tese da acusação e
condenou o réu por homicídio culposo, porque se identificou o projétil com o
cano da arma que o expelira. No começo foi uma confusão, pensava-se que
teria sido disparada por um fuzil manejado por um daqueles soldados do
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CPOR, a unidade do Exército mais próxima. Mas esse trabalho quem fez não
fui eu, foi o Promotor anterior, já peguei o processo em andamento.
Havia algumas coisinhas que eu tinha que identificar melhor, e me
coube fazer o julgamento. Todo esse trabalho da prova fora muito bem feito. A
perícia fora feita pelo Promotor que me antecedeu. Visitei o Instituto de
Perícias, porque também tinha problema com o projétil – ele dilatou – e a
defesa negou a autoria, dizendo que não. Enfim, o réu foi julgado e condenado
por homicídio culposo, mas o Tribunal o absolveu.
Na época, fiquei muito chateado, pois havíamos trabalhado muito
para recolher as provas. Hoje, entretanto, entendo melhor as razões da Corte.
Um dos elementos do crime culposo é a previsibilidade. A pessoa não quer o
resultado, mas ela tem a previsibilidade de que, agindo como agira, poderia
chegar àquele resultado fatídico. Mas o caso era tão inusitado, tão difícil de se
reproduzir na práxis da vida, que o elemento previsibilidade estava muito
diminuído, e, como ele quase não resistia a um juízo crítico, ou seja, pela
inexistência ...
Ninguém negou que o soldado disparou, mas teria sido um fato
infeliz, um fato involuntário, um fato que jamais ocorreria novamente, dado a
sua excepcionalidade, e o absolveram, até porque ele estava distanciado
quase 3 mil metros do local onde a bala entrou e jamais suporia o artilheiro
que essa bala tivesse essa trajetória, entraria em curva hiperbólica, com perda
de força e, ainda assim, fosse capaz de romper um vidro grosso, martelado e
ainda matar um homem que estava sentado. Fizeram umas construções
bonitas e o absolveram. Fiz essa lembrança, porque foi o primeiro julgamento
na casa nova. O Plenário estava cheio, porque o jornal noticiara o ocorrido.
O primeiro julgamento sério que tive foi ainda estávamos no QCG.
Na oportunidade, como não havia espaço suficiente de área, nos trasladamos
para o auditório da Academia de Polícia Militar. Ficamos 48 horas para
julgarmos oficiais e praças do 9º BPM no célebre caso Braggio. Pedi a
absolvição de vários réus, porque não havia vínculos causais. Um dos
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condenados foi tão de azar, 20 anos de serviços prestados à Brigada Militar
na graduação de sargento...
Esse réu entrou numa loja, junto com as guarnições, e arrebanhou
em torno de 20 pares de sapatos, todos imersos em escuridão, na Praça
Parobé. Entram na Escosteguy, comandados por um tenente de Academia, de
boa família, tenente esse que era submetido à interferência de sargentos que
comandavam a operação, que, para se unirem nessas expedições criminosas
contra o patrimônio alheio, pagavam para entrar na escala de serviço. Muitas
vezes o sujeito não estava na escala de serviço, mas pagava para quem
elaborava a escala, para que o grupo se mantivesse unido. Esse réu que
arrebanhou vinte pares chegou no alojamento e verificou que eram todos pés
esquerdos. Nunca esqueci isso, condenado e ainda perdeu a graduação, por
representação do Procurador da época.
Os Praças têm estabilidade provisória garantida pela Constituição
de 1988. Para perder o posto e a patente ou a graduação, somente com
sentença condenatória superior a dois anos, ou se forem julgados indignos
num outro julgamento. As praças das Forças Armadas não têm essa regalia
que vale somente para as polícias militares do Brasil. No Exército, a perda é
automática. Se a Auditoria Federal condena um soldado da Aeronáutica, por
exemplo, a mais de dois anos, já tem que colocar a pena acessória. E aqui,
não, precisa julgar ainda se é digno ou indigno.
Agora, o Oficial das Forças Armadas terá que se submeter a um
julgamento ético por representação do Procurador, que é o que faço aqui com
os oficiais, porque é uma hora muito ruim. Já vimos tenentes-coronéis, depois
de 25 anos de serviço, perderem tudo. E não é como nas Forças Armadas; lá
criam uma ficção de morte civil e a esposa passa a perceber os proventos... E
aqui, não. Perde tudo. Mesmo se contribuiu com 25 anos para o IPE.
Certa vez, em Osório, um Praça entrou no alojamento dos oficiais e
abateu o Subcomandante do pelotão com dois tiros. Existe esse problema, e é
doloroso representar para perda de posto e de patente. Veja bem, o
julgamento é interessante, porque não são todos os casos. Digamos, alguém,
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um oficial de Polícia Militar, tenente, na defesa de suas instalações, abate uns
invasores, mata desnecessariamente, porque a agressão ao quartel já estava
contida, mas ele, nervoso, se excede e mata. Os caras estavam em fuga, ele
atira e mata. Mesmo assim, certamente será condenado, mas quando chegar
a hora e a vez do julgamento esse para a perda do posto e de patente, eles
não vão considerar indigno, porque não pode ser indigno aquele que mata em
defesa – ainda que em excesso – de suas instalações, em defesa de sua
guarnição, enfim. Agora, se a coisa for alcance de verbas, distração de
valores, crimes sexuais, crimes de corrupção, concussão, aí pode ser soldado,
cabo, sargento, tenente, capitão ou coronel, não importa, perde tudo.
Esse tenente-coronel reformou uma casa. Chefiava essa unidade
da Brigada de materiais e obras, e conluiado, reformou uma casa com material
público, material afeto à Corporação...
PROJETO MEMÓRIA: O senhor está descrevendo casos em que
oficiais foram condenados. O senhor acha que a Justiça Militar costuma ser
corporativa?
ENTREVISTADO: Não há esse aspecto corporativo. Novamente
citando o episódio na Academia, quando terminou esse julgamento, sabes
quem estava na bancada da defesa? Aquele Procurador do Estado, na época
aposentado, o Pércio França. E sabes quem estava com ele? O Cláudio Brito,
que depois fez concurso e passou a integrar o Ministério Público. Advogados
constituídos havia dois, inclusive aquele advogado que depois foi candidato a
prefeito. Ao final do julgamento, fui abraçado por aqueles jovens oficiais, como
eles dizem aqui, oficiais subalternos, que são os tenentes, oficiais
intermediários, capitães, dizendo que com aquela condenação eles estavam
agora desagravados em sua honra, seu pundonor militar.
Eles haviam protagonizado um episódio lamentável da trajetória da
Corporação, com quebra da disciplina, corrupção e quebra de hierarquia. O
tenente era comandado por sargentos. Sabe o que ele fazia? Adorava as lojas
mais finas, ele já procurava retirar jaquetas de couro, cachimbos. É o que ele
gostava mais. O produto do furto para ele, qualificado por arrombamento, era
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cachimbo, jaqueta, calças finas, e o resto a tropa pegava. Mas foram vários
episódios.
Este caso Braggio alcançou enorme repercussão na imprensa. O
jornal Correio do Povo, não o tablóide, mas o standard, ainda, do Dr. Breno
Caldas, publicou nota no sentido de que tinham sido exemplados e que foram
infligidas penas privativas de liberdade, mais as acessórias... Pena que eu não
tenha o recorte hoje, mas mais ou menos o teor da notícia indicava que as
penas aplicadas eram superiores às que estavam aplicando nas varas
criminais. A Justiça Militar afirmou-se de forma exemplar.
Lembro claramente: terminado o julgamento, os capitães vieram,
me cercaram, cercaram a todos, quase que chorando, agradecendo pelo
resultado. Foram dois dias de julgamento. Fazíamos as refeições lá e só
saíamos para dormir em casa. No segundo dia, à tardinha, é que foi conhecido
o resultado. O Conselho Especial – porque tinha oficial no meio, o que atrai a
competência do Conselho Especial – se reuniu em sessão secreta e deliberou.
Graças a Deus, aqueles que eu pedi a absolvição, por falta absoluta de
convicção probatória, é que foram absolvidos.
Recordo-me, ainda, de outro episódio, já no novo prédio, aquele
envolvendo um escândalo no QCG da Brigada... Um capitão em funções de
administração, cuja esposa era odontóloga, começou a usar aquela química
de verba para remodelar auditórios, salão nobre do QCG e mais algumas
coisas... Na verdade, não consegui provar essa transferência. Embora fora de
rubrica, na verdade ele se apropriava desses valores. E, naquela época, o civil
mancomunado com militares em alguma empresa criminosa ingressava na
relação processual, e a Justiça Militar era competente para examinar as suas
condutas.
Nesse episódio ele se associou com uma firma fantasma – Irmãos
Riolfi, se não me esqueço – para lesar os cofres públicos. A verba
orçamentária era destinada à Brigada Militar. Eles tinham uma série de
expedientes. Teve seqüestro de bens... Ele quis dizer que não. Ele fez uma
casa tremenda, dizendo que a renda da esposa, que a renda familiar é que
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perfazia os valores envolvidos, mas não conseguiu provar nada. Na verdade,
era tudo auferido por meio de atividade delituosa.
Na época, pois isso ocorreu antes da promulgação da Carta de
1988, o Tribunal Militar de Minas Gerais já não admitia que civis fossem
também julgados pela jurisdição especializada, quando os delitos haviam sido
cometidos em associação com um militar. Mas nós, aqui, ainda mantínhamos
esse procedimento. O Supremo manteve a decisão do Tribunal Militar do Rio
Grande do Sul, negando habeas-corpus da defesa.
Outro caso interessante é o Afonso Fernandes, em que um policial
militar assaltava carros fortes em conluio com um advogado e um policial civil.
Todavia, esse processo, creio, se deu posteriormente à promulgação da nova
Carta, determinando que a competência para julgar os civis não nos
coubesse. O réu militar não havia atuado em serviço, em razão da sua função.
Hoje, por exemplo, o problema da arma já não vinga mais, não é decisivo.
Antigamente até se fazia um blague: se um militar quisesse matar a sogra,
poderia escolher o fórum. Se usasse arma do seu quartel seria julgado pela
Auditoria, se usasse arma comum, particular, ou emprestada, ia para o Júri.
Aí, com a Lei nº 9.299, acabou essa história. Isso não é mais fator decisivo.
Mas nós perdemos muita competência. Os delitos dolosos contra a vida, se a
vítima é civil, não são nossos, por causa da repercussão negativa em torno do
episódio de Carandiru.
PROJETO MEMÓRIA: Como foi acompanhar todo esse processo de
redução de competência em decorrência da Lei 9.299? Como foi vivenciar o
andamento do processo de Carandiru?
ENTREVISTADO: Fiz uma visita ao Tribunal de São Paulo, certa feita,
e falei com o Promotor que elaborara essa denúncia – uma denúncia enorme,
50 laudas – e foi uma decepção total. O Tribunal me recebeu muito bem lá,
mas foi um final melancólico em matéria de competência. Na primeira sessão,
declinaram a competência, entendendo que os comportamentos deveriam ser
examinados por um fórum comum, por uma Justiça Penal comum, porque o
Comandante, o Coronel, teria agido sob os auspícios do Sr. Governador do
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Estado, e como o Governador do Estado era o Comandante em chefe das
Polícias Militares, então seria um crime comum. Mas isso é um crime militar!
Não estou examinando mérito, o que eu defino aqui é a competência.
Entraram no presídio a toque de corneta. Foram instados a atuar e
fizeram horrores, funcionalmente, em razão da função. Não existe fisionomia
mais específica de crime militar do que essa, porque só entra a força policial
militar quando falece uma situação de comando da administração interna do
presídio, seja presídio de porte médio, uma penitenciária ou até um
presidiozinho municipal. Eu, por muitos anos, nas horas vagas, já atuando
aqui, representava o MP junto ao Conselho Penitenciário e visitava muitos
presídios, muitos mesmo. E falecendo autoridade, solicitando socorro, entrase. Porém jamais daquela maneira.
E se o Governador dissesse: “Entra e executa”, o Comandante não
é obrigado a cumprir uma ordem absurda dessas. Ele tecnicamente faz o que
deve fazer. Podia, por exemplo, ter cortado a energia elétrica, suspendido o
fornecimento de viveres, de água, mas aquela chacina?!!
O Tribunal paulista não se houve a contento, para usar palavras
mais tranqüilas. E o Promotor ficou frustrado, coitado. Ele preparou uma
denúncia com base em juízo, pelo menos, de probabilidade de que as coisas
aconteceram assim – 50 laudas – e a competência foi desfeita, transferiram.
E depois veio aquele caso do Pará. Os cinegrafistas da Globo
apanharam, mas eu acho que houve uma hostilidade de parte dos sem-terra,
acho que algumas coisas ali eram favoráveis aos PMs. Eles estavam em
número diminuto – é verdade que mais apetrechados – mas eles levaram a
pior na primeira refrega... Bom, mas não vem ao caso, o problema é que aí já
vigoravam as novas regras e suas condutas foram examinadas pelo Tribunal
do Júri. Então, nós perdemos a competência...
Mais um problema, aqui, que nos criou trauma, trauma mesmo, foi o
advento da Lei nº 9.099. Só o Tribunal resistindo e resistindo. Até os JuízesAuditores do interior já entendiam que as ações aqui... Porque nós
trabalhamos muito com lesões corporais e eles entendiam, pela lei, que agora
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não, que, com o advento da lei, era uma nova ordem. Então, a vítima teria que
representar... Mas isso na caserna não funciona. Imagina! Como é que a
vítima vai representar contra um superior? Como é que numa cidadezinha
interiorana, vem um brigadiano, desses arbitrários, bate em alguém... Acha
que alguém vai à DP para representar? Não vai representar. Seria uma coisa
temerária.
Essas
ações
de
abordagem,
de
bater
a
bastonadas
desnecessariamente, como é que isso pode ser representado pela vítima?
Esses dias julgamos um caso em que policiais militares agrediram na
cabeça... É verdade que foram lá para um bailezinho no interior, viram
algumas dificuldades lá dentro e, para afastar um ou outro elemento mais
repulsivo, agiram com violência. Eles tinham o comando da ação, não
precisavam bater na cabeça. Iniciaram bem, mas terminaram mal. Então,
nesses casos, só haveria ação penal mediante formalização de representação
por parte da vítima, o que é algo praticamente inviável.
Sobre essa matéria, pipocavam pedidos de hábeas corpus no
Supremo, dizendo que nós não aplicávamos os institutos da Lei 9.099. O
Supremo dava razão aos impetrantes, nos mandava aplicar, e a gente não
aplicava. Formou-se um impasse, mas o Tribunal Militar permaneceu firme em
sua posição. Até que um belo dia, tanta era a pressão, que explodiu no
Congresso. Introduziram um artiguete lá na 9.099, dizendo: “Não se aplicam
os dispositivos desta lei aos crimes militares”. Sossegou. O Supremo já estava
chateado com o Tribunal Militar. Se pudesse intervir aqui, interviria.
PROJETO MEMÓRIA: Seria justo dizer que o Supremo
tem
uma
certa má-vontade, também, em relação à Justiça Militar, ou não?
ENTREVISTADO: Não, em absoluto. Às vezes, quando entra nessa
matéria fática de caserna, nuances de caserna, eles não são muito felizes,
não. Vou dar um exemplo... Não é Supremo, mas é Tribunal Superior – STJ.
Se o policial militar produzir a morte de um colega fora de serviço, mesmo
estando ambos fora de serviço e não tendo a motivação para o ato homicida
relação com a função, o crime será militar, porque assim dispõe um dos
incisos do art. 9º, que diz que será crime militar o praticado por agente em
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situação de atividade contra outro, também em situação de atividade, onde
atividade não é sinônimo de serviço, bem entendido.
Pois bem, apesar dessa literalidade, o egrégio Superior Tribunal de
Justiça, que é o supremo para assuntos infraconstitucionais... Não em órgão
plenário, mas através de algumas egrégias turmas, tem entendido que o crime
é comum... E houve um caso assim, concreto. Um soldado do 9º matou um
outro, até por questão particular. O Comandante do 9º soube, mandou a
patrulha, o deteve, trouxe ao quartel e aí mandaram a patrulha apresentá-lo à
área operacional da polícia judiciária comum, como se fosse crime comum. Aí,
é claro, fizeram o flagrante...
O Tribunal soube, o Presidente soube pelos jornais, fez uma
representação, abriram inquérito, ouvido o Promotor, arquivaram, porque não
havia crime contra o Comandante do 9º – eles entendiam que o crime do
Comandante teria sido inobservância de lei, regulamento ou instrução. O
crime do soldado era do nosso conhecimento, mas ele mandara o suspeito
para a Polícia Civil. E aí o Corregedor representou para que esse inquérito
que já estava arquivado fosse exumado.
Nesse caso, tentei até defender o coronel, argumentando que o seu
crime fora de opinião, uma vez que o próprio Superior Tribunal tem
interpretado esta matéria de outra forma. Entendi que o coronel interpelou mal,
mas foi uma opinião. O Tribunal não acompanhou minha posição e
representou para o Procurador-Geral de Justiça. Eu não falei com o
Procurador-Geral, mas a assessoria do Procurador-Geral deu um parecer,
dizendo que o Promotor aqui também se bateu em favor do coronel. O
Promotor e o Procurador, lá, estavam certos, porque era apenas uma opção
que ele teve. Então, ele não teria cometido crime nenhum, em tese. Aqui seria
inobservância de lei, regulamento ou instrução. Ele teria inobservado as
regras do Código Penal. Havia duas correntes, e ele optou por uma. E ele não
é jurista. Se os juristas discordam, divergem, o homem que é oficial
combatente, não pode optar, embora mal? Foi arquivado definitivamente,
sepultado, graças a Deus. Quando a gente vê que a coisa está forçada, no
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fim, banca um advogado. Mas eu compreendo a posição do Tribunal. O
Tribunal já perdeu competência e vai entregar o ouro para os bandidos?
PROJETO MEMÓRIA: Acontece prescrição no Tribunal Militar?
ENTREVISTADO: É raro, mas acontece e devemos proclamar, porque
é matéria de ordem pública.
PROJETO MEMÓRIA: O Ministério Público tem sido referido,
sobretudo depois da Constituição de 1988, como guardião da cidadania no
Brasil. Os membros gostam muito dessa expressão. Como um membro do
Ministério Público, dessa instituição que tem essa responsabilidade de guarda
da cidadania, entende a relação entre Justiça Militar e cidadania?
ENTREVISTADO: É boa, é ótima a pergunta. Pois é, vou-me situar
assim: nós aqui, de alguma maneira, como operadores de Direito
especializado, de certo modo, tutelamos a boa ordem nos contingentes da
Brigada Militar, principalmente os operacionais, cujas missões são missões de
policiamento fardado, armado, ostensivo e atividades em geral de defesa civil,
corpo de bombeiros, etc., e vários tipos de policiamento, a pé, móvel,
radiomotorizado, aéreo e refletindo numa boa ministração de segurança
possível, pensável à cidadania.
Então, eu diria até que, por conseqüência, os julgamentos do
Tribunal Militar refletem sobre a manutenção da disciplina e pela boa marcha
dos efetivos da Brigada Militar, nas suas missões específicas; se está zelando
pelas prerrogativas da cidadania, aplicando aquilo que eles têm, que nós
temos, assegurado pela carta política. Ao Estado, principalmente, cabe a
ministração de segurança objetiva, e a cada um de nós, também, porque
somos co-partícipes. Mas acho que, como a nossa clientela, o nosso alvo aqui
é muito restrito, é especializado, até por ditames da Constituição de 1988 –
exatamente no art. 125, § 4º, que fala disso, que exclui o civil – a nossa
relação, aqui, em gênero e com o civil, é uma relação de proteção ante alguns
arbítrios e desmandos, porque o policiamento ostensivo é da Brigada, e a
Brigada é o nosso objeto. Temos um papel fiscalizatório. Velando pela boa
marcha do serviço, mutatis mutandis, vela-se pela segurança aplicada nos
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nossos quarteirões, claro que com todos os déficits de efetivo, de instrumental
de apoio, com as dificuldades operacionais todas.
PROJETO MEMÓRIA: Como membro, inclusive, do Órgão Especial, o
senhor chega a ter contatos e comunicação com os membros do Ministério
Público no Rio de Janeiro e chega a se discutir, por exemplo, por que é que no
Rio de Janeiro não existe um Tribunal Militar instalado, muito embora a
Constituição permita?
ENTREVISTADO: Pois é, eu tive poucos contatos assim, inclusive
porque é uma coisa mais atípica no Rio de Janeiro. Começa que, nas
atividades de 1º grau – eles realmente não têm Tribunal Militar – são dirigidas
por um Juiz que não é Auditor... É de Direito, designado pelo seu Presidente
do Tribunal de Justiça para jurisdicionar os Conselhos, a Auditoria.
Há necessidade de uma Justiça Especializada. Eu mesmo vejo
assim, porque há necessidade de um escabinado. Às vezes, os coronéis,
embora não sendo muito técnicos – há os técnicos também – são muito bem
assessorados na parte técnica e trazem toda aquela informação, toda aquela
vivência, todo aquele perfil de idealização do bom policial militar, coisa que o
Sérgio Nasi, que foi Promotor na Auditoria e depois é Procurador aqui, com
muitos anos de casa, não alcança toda essa visão do que pode representar,
do que seria melhor para a Brigada Militar.
Ontem, por exemplo, fui técnico em embargos infringentes. Havia
um sujeito que quis ludibriar a boa-fé da administração militar, pedindo
vantagens que ele já tinha recebido. Queria indenização por transporte, queria
uma gratificação a que não faria jus, mas, espertamente, entrou com um
requerimento na Secretaria da Fazenda. A Secretaria da Fazenda pediu para
que a Brigada informasse, e uma das Diretorias informou que ele não tinha
direito. Aí, abriram um IPM por estelionato, e, realmente, o crime se
perfectibilizou, ele foi condenado e se discutia a pena, porque, na hora em que
passou para a Brigada, viram que era uma fraude.
Então, não chegou a consumar o crime, ficou numa tentativa. Aí,
passou-se a discutir a pena. Eu entendi – e tive dois votos favoráveis, de
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coronéis – que, na hora, havia tentativa... Há um redutor, e esse redutor
deveria ser o máximo, porque ele sequer – até fiz uma metáfora – ele só ficou
na grande área, não chegou a entrar no gol da fraude. Ele foi percebido logo,
desmontaram logo o cara. Só que – e eu sabia disso, mas mesmo assim
insisti – reduzindo a pena, que tem que reduzir mesmo... Só que esse redutor
tem um elastério, e eu pedi o maior, e, dando um elastério maior, haveria
prescrição.
O problema não é meu, porque a prescrição é de ordem pública. Os
coronéis acharam que a prescrição daria mau exemplo. Mas a pena era de
dois anos para uma fraudezinha de uma vantagem. Então, eu reduzi um
pouco – porque a lei me permite – na fração máxima, no percentual máximo, e
alcançaria a prescrição. Não porque eu quis a prescrição, mas porque
demorou lá embaixo. Então, nesses aspectos, os coronéis pensam mais como
coronéis.
Mas eu digo que não se pode fazer Justiça Criminal sem um pouco
de técnica. Eu não quero me meter nesse subjetivismo, é preciso ser técnico...
Mas sem perda, também, de todo o perfil do acusado, porque a parte humana
interessa e as circunstâncias ambientais interessam – onde ele vivia, seu
passado, suas motivações. Então é bom um escabinado, porque não faz favor
nenhum e, pode ter certeza, não é corporativo. Não sei se os eminentes
Desembargadores da Justiça Comum conseguiriam fazer uma justiça melhor
do que a se faz aqui, mesmo com todos os seus qualificativos intelectuais. Até
porque ignoram todos os interesses da Corporação e, mutatis mutandis, da
cidadania.
Às vezes os fatos dentro da caserna, aqueles canais de comandos
são complicados. A gente pensa que alguém frustrou a lei, mas não frustrou,
porque há instruções que ele obedecera, no sentido, assim, de um outro
comportamento admissível, que não aquele que a lei literalmente prescreve,
mas tolerável, e, talvez, por dificuldades de conhecimento e de cognição da
vida de caserna, de como as coisas se organizam e se entretecem lá dentro,
os Desembargadores tivessem alguma dificuldade... Sem demérito a
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Desembargador nenhum. Eu, pessoalmente, não tenho interesse, pois
pertenço ao Ministério Público, mas penso que é válido termos uma Corte
especializada, ainda mais com esse escabinado, assim, formado por Juízes
mais antigos, coronéis efetivos...
PROJETO MEMÓRIA: Uma última pergunta, que é uma curiosidade
pessoal minha. O Senhor tem uma trajetória interessante, na medida em que
atua em dois órgãos judiciários, que me parecem muito peculiares, da história
jurídica do Rio Grande do Sul. Eles são inclusive pioneiros. Um é o Tribunal
Militar. Que é o Tribunal mais antigo do Brasil e que serve muito de modelo e,
inclusive, já tem a sua jurisprudência servindo de modelo para outros tribunais,
e o outro órgão – se é que nós podemos falar assim – é a 4ª Câmara, que é
algo, também, que surgiu pioneiramente no Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul...
ENTREVISTADO: Disseste bem, pioneiramente.
PROJETO MEMÓRIA: E serve hoje de referência para os outros
tribunais. Inclusive, é uma grande dificuldade para os outros tribunais
conseguirem instalar um órgão semelhante, quer dizer, para tratar da questão
dos delitos administrativos. Então eu lhe pergunto: a que o Senhor atribui essa
peculiaridade de soluções jurídicas e institucionais que o Rio Grande do Sul
conhece, enfim, essa característica de ser, inclusive, um modelo nessa área
para outros Estados? E fale um pouco, até, da rotina da 4ª Câmara, porque
ela ainda é muito desconhecida.
ENTREVISTADO: Desses feitos que trazem os prefeitos aos litígios
penais, eu apenas sou ouvinte. O Ministério Público está muito bem
representado junto à 4ª Câmara. Está com um Procurador que tem boa
estrutura e é muito atuante, excelente pessoa, esforça-se. Aquilo ali é Júri.
Eles fazem a instrução, fazem o julgamento... E eu fico aguardando a minha
vez e a hora de participar daqueles feitos que são pertinentes. Fico
examinando bem as intervenções do Ziomkowski, e, ali, o nível defensivo é
muito bom, qualifica o trabalho e engrandece os votos, porque os votos têm
que ser bem elaborados, tendo em vista que o fogo cruzado é de alto calibre.
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E o Ministério Público, ali, está muito bem servido, não só pela
competência do Ziomkowski, que, por sua vez, é muito interessado, bem
preparado e vem com dossiê... Acho que tem uma estrutura de 7 ou 8
servidores ali, é impressionante! O Ministério Público está muito bem, com o
Ziomkowski... E a Carmem, também, da qual eu sou o substituto. Ela pega
mais essa parte de habeas corpus dos Delegados de Polícia, envolvendo
falcatruas, aqueles casos dos Oficiais de Justiça que estavam envolvidos nas
comissões para agilizar processos. Então, tudo pipoca lá...Crimes tributários,
que eu tenho que olhar bem, porque estou meio por fora, tenho que estudar, e
às vezes complica, porque são processos geralmente volumosos...
Se bem que a fiscalização já manda tudo prontinho. Há processos
contra a administração da Justiça, há processos contra o consumo, a lei
ambiental... É uma variedade. Eu não posso dizer que estou bem entrosado,
até porque acho que só atuei lá uns dois meses descontínuos. Eu gosto muito
também dessas substituições nas Câmaras Especiais, porque há diversidade,
desde recursos de Júri, que têm as suas peculiaridades. Mas a 4ª Câmara é
especial! Quando ela está em recesso, não tramita nenhum processo contra
prefeito. Eles são verdadeiros juízes instrutores. Atuam como se fossem juízes
de 1º grau, instrutores. É modelar.
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ENTREVISTADO: Na PUC, ao tempo em que a área física era aqui