SERGIO LUIZ NASI PROJETO MEMÓRIA: Onde o senhor cursou a Faculdade de Direito? ENTREVISTADO: Na PUC, ao tempo em que a área física era aqui na Praça Dom Sebastião, no Colégio Rosário. PROJETO MEMÓRIA: O senhor lembra de seus professores? ENTREVISTADO: Lembro-me de vários. Na área de Penal Material, ressalta a figura do Paulo Pinto de Carvalho, Procurador do Ministério Público, quase que emérito, influenciava na escolha de muitos pela carreira ministerial. PROJETO MEMÓRIA: Como foi o concurso do Ministério Público? Como foi a entrada no Ministério Público, saindo da faculdade? ENTREVISTADO: Esse concurso foi travado em uma época muito difícil. Foi em setembro de 1965. Corriam muitas investigações com relação aos candidatos, por conta de suas opções ideológicas. Como eu não militava em nenhuma agremiação partidária, não cheguei a enfrentar maiores dificuldades, mas com outros não foi assim. Éramos cerca de 300 candidatos, e lograram aprovação uns 40 candidatos. Eu recordo que fui o último lugar da primeira turma, e os resultados foram proclamados em outubro ou novembro, e eu consegui nomeação em 31 de janeiro de 1966. Aí, parou. Por isso é que eu disse que fui o último lugar do primeiro lote. PROJETO MEMÓRIA: Como era a estrutura do Ministério Público na época? A remuneração era boa, os salários eram bons, a estrutura operacional da instituição era boa? ENTREVISTADO: Comparativamente, bem aquém do que é hoje em dia. O apoio logístico da Instituição ao Promotor era mínimo. Os Promotores levavam, inclusive, seus pertences para o trabalho, pois nem máquina de escrever tínhamos. O que nos davam era apenas material de escritório – as laudas, as folhas, o papel carbono. A gestão Lauro Pereira Guimarães Entrevista concedida ao Projeto Memória 1 revolucionou este quadro, dando uma alavancagem impressionante, pois passamos a receber apoio institucional para o exercício da função. Por casualidade, eu estava na Comarca da terra dele, que é Taquari. O padrão remuneratório era baixo, o vencimento inicial não passava de 20 salários mínimos. PROJETO MEMÓRIA: Teve, inclusive, no final do Governo Peracchi Barcellos, e depois, ao longo do Governo Triches, uma crise institucional dentro do Ministério Público e do Palácio, em função, justamente, da questão salarial. O senhor chegou a acompanhar alguma coisa disso no interior ou essas notícias não chegavam no interior? ENTREVISTADO: Algumas notícias chegavam ao interior pela imprensa. Éramos convidados também para algumas reuniões da Associação, que ensaiava na época uma organização mais ativa. Durante o Governo Peracchi, o Lauro Pereira Guimarães era Presidente da Associação, já demonstrava dinamismo. Mas tem um dado com relação à Gestão Peracchi Barcellos muito interessante, que indica que Secretários de Estado receberam subsídios maiores, e, no dia seguinte, a notícia, a confirmação dos subsídios maiores que o Governador concedera a seu secretariado, os Desembargadores do nosso Tribunal de Justiça fizeram uma resolução se auto-aumentando, porque havia nivelação do básico dos Desembargadores com os Secretários de Estado. O Ministério Público não acompanhou, porque havia uma diferença entre uma entrância e outra. O Procurador em final de carreira recebia o equivalente, no básico, ao juiz de 4ª entrância. Mas, com o advento da Constituição de 1967, que nivelava Juiz de Direito e Promotor de última entrância, o Governador Peracchi, de maneira lisa, fez prevalecer esse entendimento, e eu recordo que foi a minha primeira experiência – embora não me atingisse porque eu estava ainda em entrância inicial – em que Promotores de entrância final, que era Porto Alegre, de primeiro grau, perceberiam valores nominais iguais aos juízes da Capital. Mas a crise maior 2 se deu durante o Governo Triches. Ali penamos, apesar da grande correspondência e amizade do Dr. Lauro com o Governador. O brilhante Sérgio da Costa Franco era colunista do Correio do Povo e criava um personagem verberando contra isso, a tal ponto que um Promotor de entrância final na capital, não Procurador, mas Promotor de entrância final, estava ganhando apenas o equivalente ao juiz de entrância inicial, porque o Governador, de maneira inadvertida, aprovou um projeto para o Judiciário e não deu essa simetria tradicional ao Ministério Público. Os valores conferidos ao Ministério Público eram sempre com uma diferença de entrância com a magistratura. Mas durante o Governo Triches ficou aplastante esta diferença. O Governo Guazelli rompeu esta violenta diferença, mas manteve ainda um nível abaixo. PROJETO MEMÓRIA: A sua primeira Comarca foi Taquari mesmo? ENTREVISTADO: Foi Taquari. PROJETO MEMÓRIA: E como era ser Promotor sem essa estrutura toda que o Ministério Público tem hoje, com um salário que não é como o de hoje, estando numa Comarca como a de Taquari, que é uma cidade distante? ENTREVISTADO: O acesso era mais difícil. A estrada até Montenegro era asfaltada; depois, chão batido. Eu era solteiro e morava com o padre vigário, na casa canônica, defronte ao Fórum. É verdade que, de vez em quando, apareciam umas substituições e se percebiam algumas gratificações. Não havia, na época, vedação à advocacia. Eu, na verdade, ensaiei alguns passinhos na advocacia. O Ministério Público também não tinha essa gama de atribuições que tem hoje, principalmente no processo civil. Nós éramos eminentemente Promotores do crime. Eminentemente, não necessariamente, mas tínhamos algumas atribuições no cível, as Curadorias, mais como custos legis e não como substituto processual, como autores. Operávamos, também, nas ações de acidente do trabalho. Naquela época havia um sistema privatizado, eram companhias securitárias. Eu tinha muita facilidade para acordos. Tínhamos também incumbência de reclamatórias trabalhistas em Comarcas onde não houvesse sindicato da 3 categoria profissional correspondente aos reclamantes. Com resíduos, tínhamos os executivos fiscais, hoje já é incumbência da PGE. Até se percebia uma espécie de sucumbência após a apuração dos haveres, da execução. O Promotor que ajuizasse um executivo fiscal, como se fosse um advogado, percebia a sucumbência, mesmo que houvesse parcelamento. Os processos falimentares, quando havia, o Ministério Público interferia. Mas, sem dúvida alguma, eram menos atribuições. Eu gostava muito da área de Processo Penal, de Direito Penal Material. Taquari não era muito movimentada com relação às sessões do Júri. Lá pelas tantas, recebi duas incumbências, e, como eu estava em estágio probatório, as aceitei logo, sem pestanejar. Era julho de 1966, e fui designado para atuar na Promotoria de Rosário. Era uma Promotoria só naquela época, uma Comarca de entrância um pouquinho maior, mas não tive muita sorte porque o juiz estava também de licença ou de férias e não havia movimento. Havia uma vantagem econômica, pois pagavam diárias corridas, mas não foi por isso que aceitei. Eu fui esperando uma certa experiência diferente, mas logrei êxito. O sucesso, porém, terminou chegando ao final do ano, pois me indicaram para Uruguaiana, porque o Ney Fayet era o Promotor e estava em férias e o outro colega, cujo nome não recordo, estava em licença. Tive, então, muitas sessões no Tribunal do Júri de Uruguaiana e vibrei, porque era uma Comarca bem estruturada, um Fórum bonito, e o Ney Fayet me deu uma ajuda. Enquanto eu preparava os processos que iam a Júri, ele, embora de férias, prontamente examinava uns inquéritos para mim. Eu atuava naqueles processos de separação judicial que tinham o nome de desquite. O Promotor oficiava, porque às vezes estava envolvido o interesse de menores. Foi uma experiência bem benéfica, profícua, não só na área do crime, como também no cível, naquilo que competia, bem restrito em relação aos padrões de hoje. Nós não tínhamos ações civis públicas. Nós também propúnhamos as ações de alimentos. No serviço de atendimento às partes, a 4 gente costurava muito acordo, conciliava, fazia termo de conciliação, submetia à apreciação judicial e ficava valendo como título executório. PROJETO MEMÓRIA: Alguma lembrança de algum fato pitoresco desses Tribunais do Júri em Uruguaiana? ENTREVISTADO: Permaneci somente um mês lá – dezembro de 1966. Não eram casos muito rumorosos, mas envolviam defesas constituídas. Alguma repercussão certamente teve. Em Taquari, lembro-me de que era uma Comarca de poucas sessões do Júri, como já disse, mas recebi a visita de advogados de outras Comarcas, inclusive de um criminalista renomado ali na área de São Jerônimo, cujo nome agora me escapa. Ele fazia boas sessões, bons Júris e tal, gostava de explorar certos sentimentos dos jurados, mas um excelente tribuno. Ele fez um Júri comigo, em que eu estava como assistente de acusação. E, achando que tinha assistente de acusação, ele era um advogado pago pelos familiares da vítima, achei que deveria dispor um pouco do meu tempo e entregá-lo praticamente na totalidade. E o advogado – que hoje está em Lajeado, uma excelente pessoa e meu amigo – ficou um pouco nervoso e só dizia que a prova condenatória estava nos autos, mas batia naqueles volumes espalhados na mesa, batia nos autos e não explicava, não explicitava todos esses elementos cognitivos colhidos contra o réu, não explicitava aos jurados. Eu falava pouco, porque tinha confiado o meu tempo a ele. A acusação, a ação civil é uma ação penal pública, e o comando é do Ministério Público. Mas, por elegância, eu deferi tempo maior ao colega da assistência. E o Dr. Alcino Machado – já falecido – no seu momento de defesa, ao ocupar a tribuna, veio já blefando, ironizando – era meu amigo. Disse que já conhecia instalações comerciais de minimercados ao lado dessas superorganizações, mas que nunca tinha visto na vida profissional dele miniacusação. Eu tive que engolir aquilo tudo, e depois, por sorte, na réplica, eu pedi licença para o colega, que hoje advoga em Lajeado. Aí, eu procurei examinar, e era do meu conhecimento, porque preparei, para poder examinar os subsídios 5 acusatórios, e mesmo assim ele foi condenado, mas por quatro a três. Repercutiu aquela defesa do Alcino, conseguimos dar uma virada, mas aquele momento que o Alcino falou... O Alcino tinha muito prestígio. Havia uma dificuldade, também, do corpo de jurados, seja qual fosse, condenatório em Taquari. PROJETO MEMÓRIA: Pois é, porque o Tribunal do Júri é sempre uma instituição muito questionada. Por um lado, entende-se que é uma forma democrática de se conduzir o julgamento, mas, por outro, há todo um questionamento no sentido de que o Tribunal do Júri possa sofrer influências de poderes locais ou do poder econômico constituído, do poder privado. Como é que o senhor vê essa questão, como é que o senhor sentiu isso ao longo da sua carreira como Promotor? ENTREVISTADO: Acho que seria mais com ênfase em Taquari, porque a minha permanência maior foi naquela Comarca. Fiquei as duas entrâncias lá, rejeitei promoção, só para continuar lá. Posso falar nessa Comarca e acho que não há nenhuma deslealdade. O que existe são sentimentos de gratidão. Esse caso que eu situei era de uma família de trabalhadores, de poucas posses, que morava na periferia, mas era gente operosa, e o clima criminoso foi em função de sacas de arroz que disputavam. Parece que eram parceiros e não se acertaram naquela parceria, então, o rapaz, tomando de uma foice, abateu o outro sócio. Era gente operosa, os familiares não tinham antecedentes, então, isso pressiona. Mas, também, quero louvar os recursos legais que a defesa usava. Por exemplo, Taquari, como eu disse, era visitada às vezes por advogados e inicia o seu primeiro Júri... O primeiro júri dessa pessoa que agora vou declinar, excelente pessoa, famosíssima no rádio, na televisão, na política, o finado Jorge Alberto Mendes Ribeiro, foi em Taquari. Veja o gabarito, veja a acuidade, ele enviou uma espécie de destacamento precursor. Sabe para quê? Para auscultar a vox populi em relação ao autor daquele homicídio que ia ser julgado, autor esse que era patrocinado por ele. Não havia nenhuma negaça a princípios éticos, nenhuma subalternidade, mas 6 apenas ele cuidou de zelar e trouxe, no dia do julgamento, o colega que acabo de nominar, que fora professor dele na faculdade, concluída a graduação na UNISINOS, e trouxe o Ney Fayet, esse que me ajudou muito em Uruguaiana. Trouxe o Ney para prestigiar a presença. O Júri foi disputado, mas venceu a tese dele, só que o Mendes Ribeiro não pagou a tradicional janta, porque quem vencesse tinha sempre o compromisso de pagar a janta. Usávamos o recinto de um grande clube lá, o Alvinegro, onde a composição das bancas se instalava materialmente. PROJETO MEMÓRIA: Aí era o momento de aparar eventuais arestas que tivessem ficado durante o julgamento. ENTREVISTADO: Exatamente... PROJETO MEMÓRIA: E, nesse período de 1966 a 1968, era perceptível algum tipo de interferência externa na instituição do Ministério Público? Penso aqui especialmente nas Forças Armadas. A presença das Forças Armadas era perceptível junto à ação do Promotor, ou não? ENTREVISTADO: Não, alguns assanhos a gente notou, mas não comigo pessoalmente. Eu tive a honra, ao assumir a Comarca, de suceder ao imortal Nejar. O Nejar era muito organizado e cuidadoso. Não lembro qual foi exatamente o pivô da história, mas o Nejar travou uma polêmica contra o Comandante do 3º Exército. Não necessariamente por problema revolucionário, não me lembro do motivo. Parece que o Nejar e o Tupinambá fizeram uma crítica a um Oficial Superior da Força Aérea, vindo a ser, ambos, interpelados pelo Comandante, que teria exigido a presença deles no Comando. Foram sobranceiramente defendidos pelo Lauro, que garantiu a manutenção da independência e do perfil vertical da instituição. Eu, pessoalmente, não tive problemas. O máximo que sentia era pressões de alguns visitantes, que se diziam enviados de um coronel X e pretendiam que eu aderisse a um plano previdenciário, um montepio ou coisa do gênero. Tínhamos, por vezes, de contemporizar um pouco e aderir. Acabaram todos quebrando. Mas, em serviço, não tive dificuldade nenhuma. Nunca enfrentei nenhuma interferência exógena no meu trabalho. 7 PROJETO MEMÓRIA: Como foi a sua nomeação para a Auditoria? Como foi a chegada à Auditoria Militar e à Justiça Militar? ENTREVISTADO: Até então havia aberto mão da promoção, para continuar em Taquari, porque não se falava em elevação comarcal. Taquari era Comarca de 1ª entrância. Já se havia costurado uma promoção para a 2ª entrância e eu iria para Jaguarão, mas, com o advento do Governo Costa e Silva, os Desembargadores se articularam em função de prestigiar Taquari, para que no próximo Código de Organização Judiciária do Estado a Comarca recebesse uma elevação. O Presidente era daquela terra, também, bem como o Adroaldo Mesquita da Costa. Veja o que é a coisa: vim a casar com uma neta do Adroaldo Mesquita da Costa, mas, na época, nem o conhecia. O Adroaldo era tio do Artur. Naquela época eu conhecia o José Leite Costa, que é filho do Adroaldo, casado com a Cecília Araújo Costa, que era advogada do Fórum. Bem, mas observando que os Desembargadores visitavam Taquari, comunicando-se com o Prefeito e as autoridades, achei de bom grado abrir mão dessa tal de promoção e fiquei por lá. Claro que precisei esperar um pouquinho até a Comarca ser elevada. Todavia, logo em seguida à elevação da Comarca, recebi outra promoção, de sorte que acabei mesmo vindo para Porto Alegre, que era entrância final. Fui designado para funcionar junto à Auditoria Militar, em substituição. Inicialmente, aceitei, por conta da gratificação percebida, mas logo que me deparei com a matéria processual, me encantei e terminei pedindo para ficar. Estava vigorando o Decreto-Lei nº 667, que transferiu a competência dos crimes praticados pelo policiamento para a Auditoria Militar, contradizendo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que sustentava tese no sentido de que crimes do policiamento eram de natureza civil. O Supremo não tinha razão nesta insistência. A Auditoria operava no QCG, Quartel do Comando-Geral. Gostei tanto da matéria processual da Auditoria que larguei a 6ª Vara Criminal: em vez dos bandidos, fiquei com os mocinhos. 8 PROJETO MEMÓRIA: Como foi lidar com o Código de Processo Penal Militar, porque não costuma ser uma matéria tratada nas Faculdades de Direito? ENTREVISTADO: É verdade. Tive outra sorte ao assumir a Promotoria. Como nós funcionávamos no QCG, fui fazer uma visita ao Comandante-Geral e ao Chefe do Estado Maior. Eles não tinham na época Subcomandante-Geral. Chego lá, estava o Milton Weinrich, que era o Comandante-Geral, cuja esposa era minha amiga de infância ali da Cidade Baixa, e o Chefe do Estado Maior era o Cel. Abreu, que foi meu colega no Anchieta e tornou-se juiz também. Eles me presentearam com uma coletânea de legislações pertinentes, notas de instrução, porque não se faz Justiça Militar só com Códigos, distribuem normas penais em branco que tem que rechear com algumas normas administrativas vigorantes na Brigada Militar. Isso me facilitou muito o trabalho. Recebi uma pasta organizada com uma dedicatória do Comandante-Geral. Em seguida, em vista da convivência com os oficiais dos Conselhos, fui fazendo uma boa amizade e passei a receber todos os fascículos da Brigada Militar que editavam a respeito de portarias, normas gerais de ação – NGA – toda essa matéria e outras emanações administrativas, uma das quais as DPOs. Formei uma boa bagagem intelectual sobre o assunto. Ah, eu perguntava muito! Especialmente na matéria mais técnica, sobre armamento pesado, informações que desconhecia, muito embora tivesse servido no Exército. Eu visitava quartéis, perguntava muito, porque essa matéria fática de caserna a gente não domina e não adianta ser só técnico aqui, aplicar a lei, tem de conhecer o fato, as nuances. Comecei a me cercar também de regulamentos, o RDBM, na época – o Regulamento Disciplinar da Brigada Militar – o Estatuto da Brigada Militar, embora aqui não se faça normalmente Direito Administrativo, isso é matéria mais para a Fazenda Pública, mas a gente, no delito, pode também examinar os antecedentes, o fichário do envolvido, para ver como é que, administrativamente, ele se portava do ponto 9 de vista disciplinar, do ponto de vista de alguns benefícios recebidos, alguns pleitos postulados, para se ter um perfil maior dos réus. Mais tarde, me associei àqueles que postulavam a criação de uma 2ª Auditoria, tamanho era o serviço: era impressionante! PROJETO MEMÓRIA: Como é que foi a ascensão para o Tribunal? ENTREVISTADO: Em meados de julho de 1985, recebi a notícia da promoção por parte do Conselho Superior do Ministério Público. Um colega havia me anunciado por antecipação, uns quatro meses antes: “Nasi, tu vais ser promovido por merecimento”. “Ótimo, muito obrigado”. Mas eu queria permanecer na Auditoria. Quando veio a promoção, o prédio do Ministério Público era aquele do IPE, na Borges, e me deu uma alegria e, ao mesmo tempo, aquela ambigüidade da dor, de separar. Era uma família isso aqui. Eu tinha um colega do Ministério Público que atuava aqui, o Pithan, que era muito tradicionalista, tinha um sítio e fazia aquelas festas lá. As advogadas que atuavam aqui não eram Defensoras Públicas, eram advogadas de ofício, chefiadas pela Cleonir Carrão, porque foi o Governo Collares que criou a Defensoria Pública. Eram somente mulheres, fora os advogados constituídos. Era uma família isso aqui, mas tinha muito serviço. Tive que sair e fui designado para uma Câmara Cível. Mas consegui logo transferência para a 3ª Câmara Criminal, onde fiquei até o dia em que o Dr. Barbosa, que era o titular do Ministério Público, com aquele vozeirão, muito ativo, brigador, disse que iria embora, quase na compulsória. Às vezes ele me brindava com uma substituição, para não perder de vista. Permaneci no Tribunal de Alçada até 1991, sendo escolhido, então, substituir definitivamente o Barbosa junto ao Tribunal Militar. Servia-me muito bem o hoje octogenário Wilson Machado. Ele servia a todos os Promotores. Quando chegou minha vez, ficou comigo e passei a considerá-lo quase como irmão. Ele me acompanhou mesmo quando estava no Alçada. Naquele tempo ele me ajudava na datilografia, nos trabalhos que eu fazia. Hoje ele está aposentado, conseguimos o aproveitamento dele e ele está aposentado pelo Ministério Público. Ele era da 10 Brigada e conseguimos a aposentadoria pelo Ministério Público, como Agente Administrativo. PROJETO MEMÓRIA: Como o senhor diferencia a atividade do membro ministerial no primeiro e no segundo grau? ENTREVISTADO: É uma mudança de ordem funcional ótica. Já não participaremos mais na formação da prova, da guerra, do fogo cruzado, mas é interessante, porque a gente fica mais custos legis, fica mais na fiscalização, fica mais imparcial. Nem sempre os advogados são bons, especialmente na jurisdição militar. Às vezes tenho suprido uma má defesa – e não faço favor nenhum – quer levantando nulidades não examinadas, quer explorando alguns segmentos da prova não assim considerados pela douta defesa. A qualidade da defesa tem melhorado muito nos últimos tempos. PROJETO MEMÓRIA: O senhor talvez seja um dos Promotores, membros do Ministério Público, que tenha tido uma das trajetórias mais longas, atuando junto à Justiça Militar – tanto no 1º quanto no 2º grau – não é verdade? ENTREVISTADO: Eu acho que sim, mas incomparável com o Dr. Alfredo Nascimento Barbosa. PROJETO MEMÓRIA: O senhor deve ter uma visão orgânica, digamos assim, da Justiça Militar. Qual é o perfil de criminalidade, qual é o perfil dos processos que chegam ao 1º grau e ao 2º grau, qual a característica dos recursos? ENTREVISTADO: O primeiro julgamento, no prédio novo, em 1982, ocorreu junto à 1ª Auditoria – já tínhamos duas Auditorias em pleno funcionamento – e era um caso muito complicado, complexo, que peguei já com o “bonde andando”. Era aquele episódio, inusitado, de alguém que estava dormindo na sua casa, numa transversal da José de Alencar, em 31 de dezembro. Estava dormindo em casa, no âmbito familiar, a esposa convidou a acordar para participar da ceia, da passagem de ano com a família, ele então acedeu, foi à mesa, tomou assento à cabeceira, e, de repente, uma bala atravessou um vidro martelado que ornava a parede dele e o matou. 11 O projétil se supunha que proviesse de um fuzil, cujo artilheiro era um soldado do Regimento, hoje denominado Esquadrão de Guarda do presídio, que estava de serviço na rede externa, e teria ouvido qualquer barulho suspeito, início de tumulto. O fato ocorreu na época de Natal e Ano Novo, quando as coisas se agitam. Ele teria feito o disparo, e essa bala veio numa velocidade de 800m/s, e, mesmo em curva hiperbólica decrescente, tinha força para chegar aonde chegou, a 2.500m de distância do local de onde foi disparada, atravessando esse vidro martelado e provocando a morte desse cidadão. Acontece que o processo era volumoso e fiquei com uma dificuldade no croqui, porque nesse croqui aparecia o artilheiro e o local onde ele estava supostamente posicionado no momento do tiro. Ele dera um tiro para cima. Depois se soube que ele estava um pouco embriagado. Não havia registro de tumulto nenhum, acho que, para saudar a chegada do Ano Novo, ele fez o disparo. Havia uma dificuldade, lá, porque, tal como estava no croqui, era impensável essa bala chegar onde chegou. Então, fui até o local. Verifiquei que realmente havia um equívoco. Se fosse verdade o que o croqui indicava, essa bala não teria chegado aonde chegou, mas sim lá na Vila Conceição. Era uma prova que não era decisiva, mas que eu precisaria ter, mentalizar, porque faria um julgamento. E um detalhe, quem é que disse que eu descia aquilo ali? Fiquei com medo, era uma escada do tipo daquelas de navio – mas lá para baixo, sem corrimão – e eu não conseguia descer. O Comandante que me assistiu disse: “Põe o pé aqui, põe o pé ali”... Aqueles soldados sobem e descem com o fuzil e nem dão bola, e eu tinha dificuldade para descer. Mas desci. Era final de tarde, e, depois de fazer toda aquela inspeção, fui descer. Tinha vertigem, mas desci. Foi feito o julgamento, o Conselho acolheu a tese da acusação e condenou o réu por homicídio culposo, porque se identificou o projétil com o cano da arma que o expelira. No começo foi uma confusão, pensava-se que teria sido disparada por um fuzil manejado por um daqueles soldados do 12 CPOR, a unidade do Exército mais próxima. Mas esse trabalho quem fez não fui eu, foi o Promotor anterior, já peguei o processo em andamento. Havia algumas coisinhas que eu tinha que identificar melhor, e me coube fazer o julgamento. Todo esse trabalho da prova fora muito bem feito. A perícia fora feita pelo Promotor que me antecedeu. Visitei o Instituto de Perícias, porque também tinha problema com o projétil – ele dilatou – e a defesa negou a autoria, dizendo que não. Enfim, o réu foi julgado e condenado por homicídio culposo, mas o Tribunal o absolveu. Na época, fiquei muito chateado, pois havíamos trabalhado muito para recolher as provas. Hoje, entretanto, entendo melhor as razões da Corte. Um dos elementos do crime culposo é a previsibilidade. A pessoa não quer o resultado, mas ela tem a previsibilidade de que, agindo como agira, poderia chegar àquele resultado fatídico. Mas o caso era tão inusitado, tão difícil de se reproduzir na práxis da vida, que o elemento previsibilidade estava muito diminuído, e, como ele quase não resistia a um juízo crítico, ou seja, pela inexistência ... Ninguém negou que o soldado disparou, mas teria sido um fato infeliz, um fato involuntário, um fato que jamais ocorreria novamente, dado a sua excepcionalidade, e o absolveram, até porque ele estava distanciado quase 3 mil metros do local onde a bala entrou e jamais suporia o artilheiro que essa bala tivesse essa trajetória, entraria em curva hiperbólica, com perda de força e, ainda assim, fosse capaz de romper um vidro grosso, martelado e ainda matar um homem que estava sentado. Fizeram umas construções bonitas e o absolveram. Fiz essa lembrança, porque foi o primeiro julgamento na casa nova. O Plenário estava cheio, porque o jornal noticiara o ocorrido. O primeiro julgamento sério que tive foi ainda estávamos no QCG. Na oportunidade, como não havia espaço suficiente de área, nos trasladamos para o auditório da Academia de Polícia Militar. Ficamos 48 horas para julgarmos oficiais e praças do 9º BPM no célebre caso Braggio. Pedi a absolvição de vários réus, porque não havia vínculos causais. Um dos 13 condenados foi tão de azar, 20 anos de serviços prestados à Brigada Militar na graduação de sargento... Esse réu entrou numa loja, junto com as guarnições, e arrebanhou em torno de 20 pares de sapatos, todos imersos em escuridão, na Praça Parobé. Entram na Escosteguy, comandados por um tenente de Academia, de boa família, tenente esse que era submetido à interferência de sargentos que comandavam a operação, que, para se unirem nessas expedições criminosas contra o patrimônio alheio, pagavam para entrar na escala de serviço. Muitas vezes o sujeito não estava na escala de serviço, mas pagava para quem elaborava a escala, para que o grupo se mantivesse unido. Esse réu que arrebanhou vinte pares chegou no alojamento e verificou que eram todos pés esquerdos. Nunca esqueci isso, condenado e ainda perdeu a graduação, por representação do Procurador da época. Os Praças têm estabilidade provisória garantida pela Constituição de 1988. Para perder o posto e a patente ou a graduação, somente com sentença condenatória superior a dois anos, ou se forem julgados indignos num outro julgamento. As praças das Forças Armadas não têm essa regalia que vale somente para as polícias militares do Brasil. No Exército, a perda é automática. Se a Auditoria Federal condena um soldado da Aeronáutica, por exemplo, a mais de dois anos, já tem que colocar a pena acessória. E aqui, não, precisa julgar ainda se é digno ou indigno. Agora, o Oficial das Forças Armadas terá que se submeter a um julgamento ético por representação do Procurador, que é o que faço aqui com os oficiais, porque é uma hora muito ruim. Já vimos tenentes-coronéis, depois de 25 anos de serviço, perderem tudo. E não é como nas Forças Armadas; lá criam uma ficção de morte civil e a esposa passa a perceber os proventos... E aqui, não. Perde tudo. Mesmo se contribuiu com 25 anos para o IPE. Certa vez, em Osório, um Praça entrou no alojamento dos oficiais e abateu o Subcomandante do pelotão com dois tiros. Existe esse problema, e é doloroso representar para perda de posto e de patente. Veja bem, o julgamento é interessante, porque não são todos os casos. Digamos, alguém, 14 um oficial de Polícia Militar, tenente, na defesa de suas instalações, abate uns invasores, mata desnecessariamente, porque a agressão ao quartel já estava contida, mas ele, nervoso, se excede e mata. Os caras estavam em fuga, ele atira e mata. Mesmo assim, certamente será condenado, mas quando chegar a hora e a vez do julgamento esse para a perda do posto e de patente, eles não vão considerar indigno, porque não pode ser indigno aquele que mata em defesa – ainda que em excesso – de suas instalações, em defesa de sua guarnição, enfim. Agora, se a coisa for alcance de verbas, distração de valores, crimes sexuais, crimes de corrupção, concussão, aí pode ser soldado, cabo, sargento, tenente, capitão ou coronel, não importa, perde tudo. Esse tenente-coronel reformou uma casa. Chefiava essa unidade da Brigada de materiais e obras, e conluiado, reformou uma casa com material público, material afeto à Corporação... PROJETO MEMÓRIA: O senhor está descrevendo casos em que oficiais foram condenados. O senhor acha que a Justiça Militar costuma ser corporativa? ENTREVISTADO: Não há esse aspecto corporativo. Novamente citando o episódio na Academia, quando terminou esse julgamento, sabes quem estava na bancada da defesa? Aquele Procurador do Estado, na época aposentado, o Pércio França. E sabes quem estava com ele? O Cláudio Brito, que depois fez concurso e passou a integrar o Ministério Público. Advogados constituídos havia dois, inclusive aquele advogado que depois foi candidato a prefeito. Ao final do julgamento, fui abraçado por aqueles jovens oficiais, como eles dizem aqui, oficiais subalternos, que são os tenentes, oficiais intermediários, capitães, dizendo que com aquela condenação eles estavam agora desagravados em sua honra, seu pundonor militar. Eles haviam protagonizado um episódio lamentável da trajetória da Corporação, com quebra da disciplina, corrupção e quebra de hierarquia. O tenente era comandado por sargentos. Sabe o que ele fazia? Adorava as lojas mais finas, ele já procurava retirar jaquetas de couro, cachimbos. É o que ele gostava mais. O produto do furto para ele, qualificado por arrombamento, era 15 cachimbo, jaqueta, calças finas, e o resto a tropa pegava. Mas foram vários episódios. Este caso Braggio alcançou enorme repercussão na imprensa. O jornal Correio do Povo, não o tablóide, mas o standard, ainda, do Dr. Breno Caldas, publicou nota no sentido de que tinham sido exemplados e que foram infligidas penas privativas de liberdade, mais as acessórias... Pena que eu não tenha o recorte hoje, mas mais ou menos o teor da notícia indicava que as penas aplicadas eram superiores às que estavam aplicando nas varas criminais. A Justiça Militar afirmou-se de forma exemplar. Lembro claramente: terminado o julgamento, os capitães vieram, me cercaram, cercaram a todos, quase que chorando, agradecendo pelo resultado. Foram dois dias de julgamento. Fazíamos as refeições lá e só saíamos para dormir em casa. No segundo dia, à tardinha, é que foi conhecido o resultado. O Conselho Especial – porque tinha oficial no meio, o que atrai a competência do Conselho Especial – se reuniu em sessão secreta e deliberou. Graças a Deus, aqueles que eu pedi a absolvição, por falta absoluta de convicção probatória, é que foram absolvidos. Recordo-me, ainda, de outro episódio, já no novo prédio, aquele envolvendo um escândalo no QCG da Brigada... Um capitão em funções de administração, cuja esposa era odontóloga, começou a usar aquela química de verba para remodelar auditórios, salão nobre do QCG e mais algumas coisas... Na verdade, não consegui provar essa transferência. Embora fora de rubrica, na verdade ele se apropriava desses valores. E, naquela época, o civil mancomunado com militares em alguma empresa criminosa ingressava na relação processual, e a Justiça Militar era competente para examinar as suas condutas. Nesse episódio ele se associou com uma firma fantasma – Irmãos Riolfi, se não me esqueço – para lesar os cofres públicos. A verba orçamentária era destinada à Brigada Militar. Eles tinham uma série de expedientes. Teve seqüestro de bens... Ele quis dizer que não. Ele fez uma casa tremenda, dizendo que a renda da esposa, que a renda familiar é que 16 perfazia os valores envolvidos, mas não conseguiu provar nada. Na verdade, era tudo auferido por meio de atividade delituosa. Na época, pois isso ocorreu antes da promulgação da Carta de 1988, o Tribunal Militar de Minas Gerais já não admitia que civis fossem também julgados pela jurisdição especializada, quando os delitos haviam sido cometidos em associação com um militar. Mas nós, aqui, ainda mantínhamos esse procedimento. O Supremo manteve a decisão do Tribunal Militar do Rio Grande do Sul, negando habeas-corpus da defesa. Outro caso interessante é o Afonso Fernandes, em que um policial militar assaltava carros fortes em conluio com um advogado e um policial civil. Todavia, esse processo, creio, se deu posteriormente à promulgação da nova Carta, determinando que a competência para julgar os civis não nos coubesse. O réu militar não havia atuado em serviço, em razão da sua função. Hoje, por exemplo, o problema da arma já não vinga mais, não é decisivo. Antigamente até se fazia um blague: se um militar quisesse matar a sogra, poderia escolher o fórum. Se usasse arma do seu quartel seria julgado pela Auditoria, se usasse arma comum, particular, ou emprestada, ia para o Júri. Aí, com a Lei nº 9.299, acabou essa história. Isso não é mais fator decisivo. Mas nós perdemos muita competência. Os delitos dolosos contra a vida, se a vítima é civil, não são nossos, por causa da repercussão negativa em torno do episódio de Carandiru. PROJETO MEMÓRIA: Como foi acompanhar todo esse processo de redução de competência em decorrência da Lei 9.299? Como foi vivenciar o andamento do processo de Carandiru? ENTREVISTADO: Fiz uma visita ao Tribunal de São Paulo, certa feita, e falei com o Promotor que elaborara essa denúncia – uma denúncia enorme, 50 laudas – e foi uma decepção total. O Tribunal me recebeu muito bem lá, mas foi um final melancólico em matéria de competência. Na primeira sessão, declinaram a competência, entendendo que os comportamentos deveriam ser examinados por um fórum comum, por uma Justiça Penal comum, porque o Comandante, o Coronel, teria agido sob os auspícios do Sr. Governador do 17 Estado, e como o Governador do Estado era o Comandante em chefe das Polícias Militares, então seria um crime comum. Mas isso é um crime militar! Não estou examinando mérito, o que eu defino aqui é a competência. Entraram no presídio a toque de corneta. Foram instados a atuar e fizeram horrores, funcionalmente, em razão da função. Não existe fisionomia mais específica de crime militar do que essa, porque só entra a força policial militar quando falece uma situação de comando da administração interna do presídio, seja presídio de porte médio, uma penitenciária ou até um presidiozinho municipal. Eu, por muitos anos, nas horas vagas, já atuando aqui, representava o MP junto ao Conselho Penitenciário e visitava muitos presídios, muitos mesmo. E falecendo autoridade, solicitando socorro, entrase. Porém jamais daquela maneira. E se o Governador dissesse: “Entra e executa”, o Comandante não é obrigado a cumprir uma ordem absurda dessas. Ele tecnicamente faz o que deve fazer. Podia, por exemplo, ter cortado a energia elétrica, suspendido o fornecimento de viveres, de água, mas aquela chacina?!! O Tribunal paulista não se houve a contento, para usar palavras mais tranqüilas. E o Promotor ficou frustrado, coitado. Ele preparou uma denúncia com base em juízo, pelo menos, de probabilidade de que as coisas aconteceram assim – 50 laudas – e a competência foi desfeita, transferiram. E depois veio aquele caso do Pará. Os cinegrafistas da Globo apanharam, mas eu acho que houve uma hostilidade de parte dos sem-terra, acho que algumas coisas ali eram favoráveis aos PMs. Eles estavam em número diminuto – é verdade que mais apetrechados – mas eles levaram a pior na primeira refrega... Bom, mas não vem ao caso, o problema é que aí já vigoravam as novas regras e suas condutas foram examinadas pelo Tribunal do Júri. Então, nós perdemos a competência... Mais um problema, aqui, que nos criou trauma, trauma mesmo, foi o advento da Lei nº 9.099. Só o Tribunal resistindo e resistindo. Até os JuízesAuditores do interior já entendiam que as ações aqui... Porque nós trabalhamos muito com lesões corporais e eles entendiam, pela lei, que agora 18 não, que, com o advento da lei, era uma nova ordem. Então, a vítima teria que representar... Mas isso na caserna não funciona. Imagina! Como é que a vítima vai representar contra um superior? Como é que numa cidadezinha interiorana, vem um brigadiano, desses arbitrários, bate em alguém... Acha que alguém vai à DP para representar? Não vai representar. Seria uma coisa temerária. Essas ações de abordagem, de bater a bastonadas desnecessariamente, como é que isso pode ser representado pela vítima? Esses dias julgamos um caso em que policiais militares agrediram na cabeça... É verdade que foram lá para um bailezinho no interior, viram algumas dificuldades lá dentro e, para afastar um ou outro elemento mais repulsivo, agiram com violência. Eles tinham o comando da ação, não precisavam bater na cabeça. Iniciaram bem, mas terminaram mal. Então, nesses casos, só haveria ação penal mediante formalização de representação por parte da vítima, o que é algo praticamente inviável. Sobre essa matéria, pipocavam pedidos de hábeas corpus no Supremo, dizendo que nós não aplicávamos os institutos da Lei 9.099. O Supremo dava razão aos impetrantes, nos mandava aplicar, e a gente não aplicava. Formou-se um impasse, mas o Tribunal Militar permaneceu firme em sua posição. Até que um belo dia, tanta era a pressão, que explodiu no Congresso. Introduziram um artiguete lá na 9.099, dizendo: “Não se aplicam os dispositivos desta lei aos crimes militares”. Sossegou. O Supremo já estava chateado com o Tribunal Militar. Se pudesse intervir aqui, interviria. PROJETO MEMÓRIA: Seria justo dizer que o Supremo tem uma certa má-vontade, também, em relação à Justiça Militar, ou não? ENTREVISTADO: Não, em absoluto. Às vezes, quando entra nessa matéria fática de caserna, nuances de caserna, eles não são muito felizes, não. Vou dar um exemplo... Não é Supremo, mas é Tribunal Superior – STJ. Se o policial militar produzir a morte de um colega fora de serviço, mesmo estando ambos fora de serviço e não tendo a motivação para o ato homicida relação com a função, o crime será militar, porque assim dispõe um dos incisos do art. 9º, que diz que será crime militar o praticado por agente em 19 situação de atividade contra outro, também em situação de atividade, onde atividade não é sinônimo de serviço, bem entendido. Pois bem, apesar dessa literalidade, o egrégio Superior Tribunal de Justiça, que é o supremo para assuntos infraconstitucionais... Não em órgão plenário, mas através de algumas egrégias turmas, tem entendido que o crime é comum... E houve um caso assim, concreto. Um soldado do 9º matou um outro, até por questão particular. O Comandante do 9º soube, mandou a patrulha, o deteve, trouxe ao quartel e aí mandaram a patrulha apresentá-lo à área operacional da polícia judiciária comum, como se fosse crime comum. Aí, é claro, fizeram o flagrante... O Tribunal soube, o Presidente soube pelos jornais, fez uma representação, abriram inquérito, ouvido o Promotor, arquivaram, porque não havia crime contra o Comandante do 9º – eles entendiam que o crime do Comandante teria sido inobservância de lei, regulamento ou instrução. O crime do soldado era do nosso conhecimento, mas ele mandara o suspeito para a Polícia Civil. E aí o Corregedor representou para que esse inquérito que já estava arquivado fosse exumado. Nesse caso, tentei até defender o coronel, argumentando que o seu crime fora de opinião, uma vez que o próprio Superior Tribunal tem interpretado esta matéria de outra forma. Entendi que o coronel interpelou mal, mas foi uma opinião. O Tribunal não acompanhou minha posição e representou para o Procurador-Geral de Justiça. Eu não falei com o Procurador-Geral, mas a assessoria do Procurador-Geral deu um parecer, dizendo que o Promotor aqui também se bateu em favor do coronel. O Promotor e o Procurador, lá, estavam certos, porque era apenas uma opção que ele teve. Então, ele não teria cometido crime nenhum, em tese. Aqui seria inobservância de lei, regulamento ou instrução. Ele teria inobservado as regras do Código Penal. Havia duas correntes, e ele optou por uma. E ele não é jurista. Se os juristas discordam, divergem, o homem que é oficial combatente, não pode optar, embora mal? Foi arquivado definitivamente, sepultado, graças a Deus. Quando a gente vê que a coisa está forçada, no 20 fim, banca um advogado. Mas eu compreendo a posição do Tribunal. O Tribunal já perdeu competência e vai entregar o ouro para os bandidos? PROJETO MEMÓRIA: Acontece prescrição no Tribunal Militar? ENTREVISTADO: É raro, mas acontece e devemos proclamar, porque é matéria de ordem pública. PROJETO MEMÓRIA: O Ministério Público tem sido referido, sobretudo depois da Constituição de 1988, como guardião da cidadania no Brasil. Os membros gostam muito dessa expressão. Como um membro do Ministério Público, dessa instituição que tem essa responsabilidade de guarda da cidadania, entende a relação entre Justiça Militar e cidadania? ENTREVISTADO: É boa, é ótima a pergunta. Pois é, vou-me situar assim: nós aqui, de alguma maneira, como operadores de Direito especializado, de certo modo, tutelamos a boa ordem nos contingentes da Brigada Militar, principalmente os operacionais, cujas missões são missões de policiamento fardado, armado, ostensivo e atividades em geral de defesa civil, corpo de bombeiros, etc., e vários tipos de policiamento, a pé, móvel, radiomotorizado, aéreo e refletindo numa boa ministração de segurança possível, pensável à cidadania. Então, eu diria até que, por conseqüência, os julgamentos do Tribunal Militar refletem sobre a manutenção da disciplina e pela boa marcha dos efetivos da Brigada Militar, nas suas missões específicas; se está zelando pelas prerrogativas da cidadania, aplicando aquilo que eles têm, que nós temos, assegurado pela carta política. Ao Estado, principalmente, cabe a ministração de segurança objetiva, e a cada um de nós, também, porque somos co-partícipes. Mas acho que, como a nossa clientela, o nosso alvo aqui é muito restrito, é especializado, até por ditames da Constituição de 1988 – exatamente no art. 125, § 4º, que fala disso, que exclui o civil – a nossa relação, aqui, em gênero e com o civil, é uma relação de proteção ante alguns arbítrios e desmandos, porque o policiamento ostensivo é da Brigada, e a Brigada é o nosso objeto. Temos um papel fiscalizatório. Velando pela boa marcha do serviço, mutatis mutandis, vela-se pela segurança aplicada nos 21 nossos quarteirões, claro que com todos os déficits de efetivo, de instrumental de apoio, com as dificuldades operacionais todas. PROJETO MEMÓRIA: Como membro, inclusive, do Órgão Especial, o senhor chega a ter contatos e comunicação com os membros do Ministério Público no Rio de Janeiro e chega a se discutir, por exemplo, por que é que no Rio de Janeiro não existe um Tribunal Militar instalado, muito embora a Constituição permita? ENTREVISTADO: Pois é, eu tive poucos contatos assim, inclusive porque é uma coisa mais atípica no Rio de Janeiro. Começa que, nas atividades de 1º grau – eles realmente não têm Tribunal Militar – são dirigidas por um Juiz que não é Auditor... É de Direito, designado pelo seu Presidente do Tribunal de Justiça para jurisdicionar os Conselhos, a Auditoria. Há necessidade de uma Justiça Especializada. Eu mesmo vejo assim, porque há necessidade de um escabinado. Às vezes, os coronéis, embora não sendo muito técnicos – há os técnicos também – são muito bem assessorados na parte técnica e trazem toda aquela informação, toda aquela vivência, todo aquele perfil de idealização do bom policial militar, coisa que o Sérgio Nasi, que foi Promotor na Auditoria e depois é Procurador aqui, com muitos anos de casa, não alcança toda essa visão do que pode representar, do que seria melhor para a Brigada Militar. Ontem, por exemplo, fui técnico em embargos infringentes. Havia um sujeito que quis ludibriar a boa-fé da administração militar, pedindo vantagens que ele já tinha recebido. Queria indenização por transporte, queria uma gratificação a que não faria jus, mas, espertamente, entrou com um requerimento na Secretaria da Fazenda. A Secretaria da Fazenda pediu para que a Brigada informasse, e uma das Diretorias informou que ele não tinha direito. Aí, abriram um IPM por estelionato, e, realmente, o crime se perfectibilizou, ele foi condenado e se discutia a pena, porque, na hora em que passou para a Brigada, viram que era uma fraude. Então, não chegou a consumar o crime, ficou numa tentativa. Aí, passou-se a discutir a pena. Eu entendi – e tive dois votos favoráveis, de 22 coronéis – que, na hora, havia tentativa... Há um redutor, e esse redutor deveria ser o máximo, porque ele sequer – até fiz uma metáfora – ele só ficou na grande área, não chegou a entrar no gol da fraude. Ele foi percebido logo, desmontaram logo o cara. Só que – e eu sabia disso, mas mesmo assim insisti – reduzindo a pena, que tem que reduzir mesmo... Só que esse redutor tem um elastério, e eu pedi o maior, e, dando um elastério maior, haveria prescrição. O problema não é meu, porque a prescrição é de ordem pública. Os coronéis acharam que a prescrição daria mau exemplo. Mas a pena era de dois anos para uma fraudezinha de uma vantagem. Então, eu reduzi um pouco – porque a lei me permite – na fração máxima, no percentual máximo, e alcançaria a prescrição. Não porque eu quis a prescrição, mas porque demorou lá embaixo. Então, nesses aspectos, os coronéis pensam mais como coronéis. Mas eu digo que não se pode fazer Justiça Criminal sem um pouco de técnica. Eu não quero me meter nesse subjetivismo, é preciso ser técnico... Mas sem perda, também, de todo o perfil do acusado, porque a parte humana interessa e as circunstâncias ambientais interessam – onde ele vivia, seu passado, suas motivações. Então é bom um escabinado, porque não faz favor nenhum e, pode ter certeza, não é corporativo. Não sei se os eminentes Desembargadores da Justiça Comum conseguiriam fazer uma justiça melhor do que a se faz aqui, mesmo com todos os seus qualificativos intelectuais. Até porque ignoram todos os interesses da Corporação e, mutatis mutandis, da cidadania. Às vezes os fatos dentro da caserna, aqueles canais de comandos são complicados. A gente pensa que alguém frustrou a lei, mas não frustrou, porque há instruções que ele obedecera, no sentido, assim, de um outro comportamento admissível, que não aquele que a lei literalmente prescreve, mas tolerável, e, talvez, por dificuldades de conhecimento e de cognição da vida de caserna, de como as coisas se organizam e se entretecem lá dentro, os Desembargadores tivessem alguma dificuldade... Sem demérito a 23 Desembargador nenhum. Eu, pessoalmente, não tenho interesse, pois pertenço ao Ministério Público, mas penso que é válido termos uma Corte especializada, ainda mais com esse escabinado, assim, formado por Juízes mais antigos, coronéis efetivos... PROJETO MEMÓRIA: Uma última pergunta, que é uma curiosidade pessoal minha. O Senhor tem uma trajetória interessante, na medida em que atua em dois órgãos judiciários, que me parecem muito peculiares, da história jurídica do Rio Grande do Sul. Eles são inclusive pioneiros. Um é o Tribunal Militar. Que é o Tribunal mais antigo do Brasil e que serve muito de modelo e, inclusive, já tem a sua jurisprudência servindo de modelo para outros tribunais, e o outro órgão – se é que nós podemos falar assim – é a 4ª Câmara, que é algo, também, que surgiu pioneiramente no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul... ENTREVISTADO: Disseste bem, pioneiramente. PROJETO MEMÓRIA: E serve hoje de referência para os outros tribunais. Inclusive, é uma grande dificuldade para os outros tribunais conseguirem instalar um órgão semelhante, quer dizer, para tratar da questão dos delitos administrativos. Então eu lhe pergunto: a que o Senhor atribui essa peculiaridade de soluções jurídicas e institucionais que o Rio Grande do Sul conhece, enfim, essa característica de ser, inclusive, um modelo nessa área para outros Estados? E fale um pouco, até, da rotina da 4ª Câmara, porque ela ainda é muito desconhecida. ENTREVISTADO: Desses feitos que trazem os prefeitos aos litígios penais, eu apenas sou ouvinte. O Ministério Público está muito bem representado junto à 4ª Câmara. Está com um Procurador que tem boa estrutura e é muito atuante, excelente pessoa, esforça-se. Aquilo ali é Júri. Eles fazem a instrução, fazem o julgamento... E eu fico aguardando a minha vez e a hora de participar daqueles feitos que são pertinentes. Fico examinando bem as intervenções do Ziomkowski, e, ali, o nível defensivo é muito bom, qualifica o trabalho e engrandece os votos, porque os votos têm que ser bem elaborados, tendo em vista que o fogo cruzado é de alto calibre. 24 E o Ministério Público, ali, está muito bem servido, não só pela competência do Ziomkowski, que, por sua vez, é muito interessado, bem preparado e vem com dossiê... Acho que tem uma estrutura de 7 ou 8 servidores ali, é impressionante! O Ministério Público está muito bem, com o Ziomkowski... E a Carmem, também, da qual eu sou o substituto. Ela pega mais essa parte de habeas corpus dos Delegados de Polícia, envolvendo falcatruas, aqueles casos dos Oficiais de Justiça que estavam envolvidos nas comissões para agilizar processos. Então, tudo pipoca lá...Crimes tributários, que eu tenho que olhar bem, porque estou meio por fora, tenho que estudar, e às vezes complica, porque são processos geralmente volumosos... Se bem que a fiscalização já manda tudo prontinho. Há processos contra a administração da Justiça, há processos contra o consumo, a lei ambiental... É uma variedade. Eu não posso dizer que estou bem entrosado, até porque acho que só atuei lá uns dois meses descontínuos. Eu gosto muito também dessas substituições nas Câmaras Especiais, porque há diversidade, desde recursos de Júri, que têm as suas peculiaridades. Mas a 4ª Câmara é especial! Quando ela está em recesso, não tramita nenhum processo contra prefeito. Eles são verdadeiros juízes instrutores. Atuam como se fossem juízes de 1º grau, instrutores. É modelar. 25