CADERNOS CERU
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USP – UNIVERSID
ADE DE SÃO P
AULO
UNIVERSIDADE
PA
Reitora: Profa. Dra. Suely Vilela
FFLCH – F
ACULD
ADE DE FILOSOFIA, LETR
AS E CIÊNCIAS HUMANAS
FA
CULDADE
LETRAS
Diretora: Profa. Dra. Sandra Margarida Nitrini
Vice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano
CENTRO DE ESTUDOS RUR
AIS E URBANOS – NAP
RURAIS
NAP--CERU
EDITORIAL:
Proa. Dra. Célia Regina Pereira de Toledo Lucena
Profa. Dra. Maria Christina Siqueira de Souza Campos
COMISSÃO EDITORIAL
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Prof. Dr. Mário A. Eufrasio – Sociologia/USP
Profa. Dra. Olga Rodrigues de Moraes von Simson – CM/UNICAMP
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Profª Drª Maria Christina Siqueira de Souza Campos – Coordenadora Científica – FEA-RP/USP
Prof Dr Lísias Nogueira Negrão – FFLCH/USP
Profª Drª Margarida Maria Moura – FFLCH/USP
Prof Dr Mário A. Eufrasio –FFLCH/USP
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CADERNOS CERU – FFLCH/USP
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Periodicidade: semestral
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Copyright 2008 do CERU. Direitos de publicação da Universidade de São Paulo
dezembro / 2008
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CADERNOS CERU
série 2 v. 19, n. 2, dezembro de 2008
ISSN 1413-4519
CENTRO DE ESTUDOS RUR
AIS E URBANOS
RURAIS
NAP
NAP--CERU
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© Copyright 2008 do CERU
É proibida a reprodução parcial ou integral,
sem autorização prévia dos detentores do copyright
FICHA CATALOGRÁFICA
Cadernos CERU / Centro de Estudos Rurais e Urbanos – n.
1 (mar. 1968) -. – São Paulo: CERU/USP, v. 19, n. 2,
dezembro 2008.
Semestral
Resumos em inglês e português
ISSN 1413-4519
1. Religiões 2. Campo religioso 3. Territórios urbanos
I. Centro de Estudos Rurais e Urbanos
Preparada por Eleni Steinle de Mores – bibliotecária do CERU
Esta revista é indexada por GeoDados: Indexador <http://www.uem.br/dge/geodados>
Projeto Gráfico e Diagramação
Walquir da Silva – MTb n. 28.841
Arte final da capa
Walquir da Silva – MTb n. 28.841
Revisão
Maria Christina Siqueira de Souza Campos
Jhonny Juliani
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SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................................... 07
As religiões como agentes da socialização ..................................................... 15
Maria da Graça Jacintho Setton
A religião e as origens do Estado moderno ................................................... 27
Geraldo Ribeiro de Sá
Campo religioso brasileiro e história do tempo presente ............................ 47
Arnaldo Érico Huff Júnior
Cultura brasileira e religião... passado e atualidade... ................................. 71
Pierre Sanchis
Religiosidade popular e espetáculo: a Festa do Divino de
Mogi das Cruzes (SP) ...................................................................................... 93
Neusa de Fátima Mariano
Mapeamento do protestantismo rural no lençol de cultura caipira
brasileiro .......................................................................................................... 113
Lidice Meyer Pinto Ribeiro
A influência da teologia da libertação em composições musicais
protestantes brasileiras ................................................................................. 129
Uéslei Fatarelli
Educar na religião: desafios para a transmissão de valores entre
muçulmanos em São Paulo ........................................................................... 157
Oswaldo Mario Serra Truzzi
Espiritismo no Brasil ..................................................................................... 171
Alice Beatriz da Silva Gordo Lang
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Usos alternados em territórios intersticiais na metrópole: ....................... 187
O caso “Autorama” em São Paulo
Giorgio L. Momesso
“Fazendo a Linha”: masculinidades(s) e desejo pelo mesmo sexo
nas experiências de vida de homens que fazem sexo com outros
homens em Pouso Alegre, Sul de Minas Gerais .......................................... 203
Eduardo Moreira Assis
RESENHAS
Méthodes quantitatives pour l’historien ..................................................... 229
Claire Lemercier e Claire Zalc
O celeste porvir .............................................................................................. 233
Antonio Gouvêa Mendonça
El campesino polaco en Europa y en América ............................................ 237
William I. Thomas e Florian Znaniecki
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS ...................................... 241
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APRESENTAÇÃO
Este número da revista Cadernos CERU tem como foco de seu dossiê
o tema da religião. Em diversas ocasiões o Centro de Estudos Rurais e Urbanos tem publicado em seu periódico Cadernos estudos voltados a essa
temática, apresentados ou não em sua reunião anual. Mas o tema sempre
retorna dada sua relevância na sociedade moderna em que as transformações têm ocorrido de tal maneira acelerada que os indivíduos se sentem
muitas vezes inseguros, sem saber o que fazer e no que acreditar. Como sói
acontecer em tais situações e momentos, o fenômeno religioso tende a se
fazer mais presente, sempre sob formas distintas, variando não só de acordo
com seu tempo e lugar, mas também com a classe social.
Renato Ortiz destaca, em artigo de 2001, 1 que o processo de
mundialização que se está vivenciando em tempos recentes, trouxe reflexos
significativos em todos os campos da vida social, entre os quais se inclui a
religião. Como ele salienta com base em Jaspers, as assim chamadas religiões universais desempenharam um papel fundamental na história humana,
à medida que constituíram uma forma de rompimento com o passado dos
grupos sociais (apud ORTIZ, 2001). Esse rompimento teria consagrado alguns traços próprios do processo civilizatório, como “espiritualização da
vida humana, supremacia do logos sobre o saber mítico, surgi dos filósofos
e de um pensamento especulativo” (ORTIZ, 2001, p. 60). É preciso destacar a dimensão individualizadora do processo, segundo Ortiz (2001), tanto
no que se refere à religião, quanto ao pensamento.
Embora o século XIX tenha sido marcado pela secularização e considerado por muitos casos o fim da religião – numa visão evolucionista
interpretativa da sociedade –, com o advento da ciência e da técnica, hoje se
percebe que a religião readquiriu muito de sua força passada, “como que
renascendo das cinzas”. É certo que não retomou a posição central que ocu1
ORTIZ. R. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.16, n.47, p.
59-74, out. 2001.
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Apresentação
pava nas sociedades pregressas, nas quais desempenhava papel determinante
na organização e estrutura sociais, mas continua a ocupar uma posição preponderante na sociedade moderna, um papel, é verdade, redefinido num
mundo globalizado, em que compete com o universo do consumo.
Ortiz (2001) lembra, com muita propriedade, Durkheim que, ao destacar já a dominação cientifica sobre as respostas da religião no mundo de
então, chamou a atenção para o fato de a ciência ser uma moral sem ética,
querendo com isso dizer que a ciência seria incapaz de dar sentido às ações
coletivas e que, portanto, o papel da religião como sentido de orientação
para a ação do homem na sociedade continuaria presente (1970 apud ORTIZ,
2001).
O que hoje se constata é uma ampla diversidade de crenças, desde as
tradicionais até as mais recentes, ainda não muito formalizadas. Mas tudo
isso se insere num novo contexto, caracterizado por integração econômica,
política, territorial, sócio-cultural, com tendências até a uma integração de
língua no mundo globalizado em que se vive. Nesse panorama uma palavra
chave é Estado-nação, que se apresenta com menores responsabilidades
que o Estado do Bem-Estar Social, mais impessoal e distante, mas não menos presente no qual se vê uma conquista cada vez mais evidente da cidadania, mas ainda como referência de instituições sócio-políticas fortes, como
sindicatos, partidos e movimentos sociais. Paradoxalmente, dispõe de menos poder e suas possibilidades de atuação na atual conjuntura internacional são, claramente, mais restritas. Ortiz (2001) salienta que a religião, em
contraponto e por sua própria natureza, é transnacional, podendo atuar amplamente, sem restrições.
Assim o interesse pelo estudo da religião se reacendeu, com ampliação da quantidade e diversidade dos temas tratados, o que se pode verificar
analisando-se a plêiade de textos que este número dos Cadernos CERU
inclui.
Inicialmente, o texto de Maria da Graça J. Setton, “As religiões como
agentes de socialização”, trata de um aspecto pouco abordado dentro da
Sociologia, que é o potencial socializador das religiões na sociedade moderna, à medida que analisa os sistemas religiosos enquanto espaços de
construção de sentido na sociedade. Com base na noção de cultura, Setton
concebe e analisa as religiões como matrizes de cultura, do mesmo modo
como a família e a escola, todas elas consideradas como instituições capazes de propiciar entendimento sobre a realidade dos indivíduos. Para desenvolver suas reflexões, a autora analisa especialmente dois aspectos fundamentais do processo de socialização, a linguagem e sua conexão com a
prática social dos indivíduos e grupos. Sua base teórica é constituída por
Durkheim e Weber, embora sempre fazendo contraponto com o pensamento de Bourdieu.
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Geraldo Ribeiro de Sá, em seu estudo “A religião e as origens do
Estado Moderno”, faz uma reflexão a respeito das relações entre religião e
a formação do Estado Moderno ao longo do período que vai do século XVI
até o XVII, portanto na Idade Moderna, quando se estabeleceram as bases
do Estado a partir da Reforma Protestante até a Revolução Francesa. Procura analisar o tipo de relacionamento que se estabeleceu entre estado e religião e como os princípios religiosos e políticos impactaram – e em que
medida – a formação e consolidação do estado moderno. Com base na
conceituação dada por Weber ao estado, estuda o movimento reformista
ocorrido em alguns paises da Europa ocidental, fundamentado nas obras de
Weber, Tawney, Engels e Tocqueville. Discute a grande ruptura no arcabouço
religioso estabelecido, como reação a rupturas de outras ordens, como a
econômica, a política e a social, vigentes nessa época. Mostra como as relações entre as religiões mais ou menos institucionalizadas no espaço e tempos considerados e o Estado se caracterizaram ora por tensões, ora por acomodação ou até colaboração. A idéia proclamada, da separação entre estado
e religião, nesse momento histórico, na prática não se concretizou, já que,
no campo das práticas, eram muitas as interações e, assim, essa separação
permaneceu mais no âmbito das representações.
O estudo de Arnaldo E. Huff Júnior, “Campo religioso brasileiro e
história do tempo presente”, tem como objetivo analisar o campo religioso
no Brasil sob um ponto de vista histórico. Usa como referencial teórico os
pensamentos teóricos de Pierre Sanchis e Pierre Bourdieu visando apreender a configuração desse campo, ao mesmo tempo em que discute possibilidades e dificuldades para realizar essa tarefa. As principais noções que
constituem a base interpretativa de seu trabalho são o campo e o habitus,
fundamentos utilizados para suas reflexões sobre as duas tendências
marcantes identificadas nas dinâmicas atuais da religião no Brasil, a homogeneização e a heterogeneização. Muito apropriadamente, o autor mostra
que, ao mesmo tempo em que o cristianismo brasileiro já nasce plural, o
estudo de qualquer manifestação religiosa neste país deve ser feito tendo
como cenário essa unidade na diversidade, que é constituída na Igreja Católica no Brasil. Outro traço importante discutido é a sobreposição de
paradigmas pós-modernos, modernos e pré-modernos na sociedade brasileira, ou seja, a convivência de traços diversos, característicos de momentos distintos da história das sociedades ocidentais. Também marcam o campo religioso brasileiro tanto o fenômeno do duplo pertencimento como o
trânsito entre as diversas crenças. Entre as sugestões feitas em seu texto,
menciona-se a defesa da utilização de relatos orais, como forma de coleta
de dados para a construção da história do tempo presente com referência à
pesquisa ao campo religioso no Brasil.
O texto de Pierre Sanchis, “Cultura brasileira e religião... Passado e
atualidade...”, faz uma análise, desta vez de reconstrução histórico-socioló-
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gica, das relações que se estabeleceram, no decorrer da formação social
brasileira, entre cultura e religião. O ponto de partida são reflexões sobre o
significado do conceito de cultura, sua influência nos indivíduos e suas
transformações, assim como as contribuições e resistências apresentadas
por esses sujeitos sociais ao impacto que dela recebem. Religião, então, é
vista como “cultura no superlativo”, uma cosmovisão e uma ética, que guarda
relações distintas com outros aspectos que constituem também o espaço da
cultura. O foco no Brasil leva o autor a chamar a atenção para “os retratos
do Brasil”, elaborados por intelectuais querendo interpretar o país, que acabaram por criar, na mente dos brasileiros, uma auto-imagem que acaba por
defini-lo, especialmente com base numa dimensão religiosa superlativa,
numa multidão invisível de protetores, que acabam constituindo um complexo sincretismo, o aspecto mais trabalhado por Sanchis. Assim, como
este conclui, a religião está aí, portanto, permanece, mas está mudando, ao
mesmo tempo em que apresenta rupturas e traços novos, refletindo, pois, o
que acontece no mundo globalizado.
O estudo de Neusa de Fátima Mariano, “Religiosidade popular e espetáculo: a Festa do Divino de Mogi das Cruzes-SP”, é uma análise de
caráter antropológico de uma festividade tradicional que se conserva em
várias regiões do Brasil. Nessa pesquisa, que foi o objeto de estudo de sua
tese de doutorado, são descritas em detalhes todas as etapas da preparação
dessa festa, bem como sua realização. A autora mostra claramente como, no
decorrer dos tempos, seu sentido tem se redefinido, integrando-se a cada
ano mais na lógica do mercado e se organizando de forma de divisão de
trabalho, de modo a proporcionar um espetáculo digno dos tempos atuais.
Visa-se, com isso, atrair turistas para assistir a um evento que contribui para
projetar o nome do município no cenário nacional brasileiro, assim como
aportar recursos importantes para os cofres públicos e de todas as instituições envolvidas. Mas essa lógica moderna não apaga o caráter popular desse relevante acontecimento na vida municipal e de sua contribuição para a
manutenção da cultura popular, ainda que sob um manto atual.
Lídice Meyer Pinto Ribeiro analisa, em seu texto “Mapeamento do
protestantismo rural no lençol de cultura caipira”, o desenvolvimento e o
perfil do protestantismo tradicional que se desenvolveu na região na região
de cultura caipira estudada por Antonio Candido, com características bem
distintas daquele surgido em zonas urbanas. Trata-se de um tipo de religiosidade popular que se estabeleceu nos bairros rurais, trazido por missionários estrangeiros ao longo dos séculos XIX e XX. Aproxima-se bastante do
catolicismo rústico, estudado por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968),2
embora mantenha também relações com o protestantismo histórico. A auto2
QUEIROZ, M. I. P. O catolicismo rústico no Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 5,
p.103-123, 1968.
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ra conclui que o protestantismo rural tem o poder de legitimar a cultura
religiosa da região caipira à qual se adaptou. Sua força decorre do fato de se
ter instalado em bairros rurais no momento em que estavam se formando,
sendo ali a única representante religiosa oficial. Teve liberdade para seu
desenvolvimento devido à ausência de um catolicismo oficial. Constata-se
uma convivência entre religião e magia, abrangendo crenças e práticas mágicas e religiosas, com predominância dessas últimas pelo incentivo a leitura da bíblia, que acaba servido de base para a própria prática da magia.
Ainda que apresente esses traços mistos, o protestantismo rural dominante
no lençol de cultura caipira está inter-relacionado com o protestantismo
oficial, havendo reuniões periódicas entre seus representantes em que se
verifica a partilha de crenças comuns.
Uéslei Fatareli aborda, em seu longo artigo “A influência da Teologia da Libertação em composições musicais protestantes brasileiras”, faz
uma importante análise de obras musicais produzidas por compositores ligados a determinadas linhas da Igreja Presbiteriana do Brasil, o que se inicia com a recuperação das origens da Teologia da Libertação tanto na Igreja
Católica latino-americana como em outros credos cristãos, mostrando como
as letras dessas composições procuram levar a uma atuação no sentido de
luta contra a injustiça e a desigualdade sociais, presentes no Brasil, assim
como em muitos outros países da América Latina. Com isso acabam por
atrair represálias por parte daqueles que se sentem atingidos pelas denúncias proclamadas por esse cancioneiro, tanto de natureza religiosa, como
engajada em combate contra a fome e a miséria.
O artigo de Oswaldo M. S. Truzzi foca um tema também pouco abordado na literatura sociológica brasileira, que é a transmissão de valores em
um grupo muçulmano vivendo em um país predominantemente católico,
como o Brasil. Trata-se de questão fundamental para a sobrevivência dessa
minoria étnica de origem libanesa, grupo que, embora reduzido em tamanho, é composto por indivíduos bastante diversos no que se referem a gênero, faixa etária, condições sócio-econômicas e tempo de Brasil. O estudo
baseou-se em entrevistas aprofundadas, mostrando que as instâncias de socialização mais significativas são constituídas pela família (incluindo aí os
vínculos com os parentes residentes no país de origem) e pela mesquita/
sociedade beneficente, reforçando o que é dito no primeiro artigo acima
apresentado sobre a importância da religião como agência socializadora.
Seu papel é relevante na reprodução da comunidade muçulmana em São
Paulo, fazendo competição à ação exercida pela escola e pela mídia da sociedade mais ampla na produção e internalização de valores e referências
importantes para o grupo. O fato de o Brasil ser um país “bom para os
negócios” e “ruim para a educação” das novas gerações cria uma tensão
permanente entre o ficar e o retornar ao país de origem. A escalada da violência no Oriente Médio, por outro lado, bem como a hospitalidade cres-
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cente contra os muçulmanos no mundo ocidental vêm acrescentar mais um
ingrediente à situação difícil vivenciada por essa minoria étnica, o que, conforme evidencia Truzzi, exige muitas negociações no interior dessas famílias,
tão preocupadas com a manutenção de suas tradições religiosas.
O texto de Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, “Espiritismo no Brasil”, aborda o espiritismo tanto historicamente como nos dias atuais, evidenciando a atuação do líder Rino Curti e da coligação Espírita Progressista
no panorama religioso brasileiro atual, com base em estatísticas e procurando distingui-lo de outras religiões mediúnica. Mostra também suas origens
na França e, no século XIX, sua chegada no Brasil. São, do mesmo modo,
apresentados os principais pontos da doutrina espírita. Trata-se de estudo
qualitativo, que recorre a várias fontes, como a coleta de relatos orais de
diversos tipos de entrevistados, a observação de sessões mediúnicas, a análise de documentação da Coligação Espírita e de extensa bibliografia sobre
o tema. As reflexões tecidas pela autora permitem perceber as dificuldades
inerentes ao estudo de uma crença não compartilhada, mas, sem dúvida, um
estudo em profundidade e objetivo, que exigiu conquistar a confiança dos
entrevistados para que as pesquisadoras (além da autora, o estudo foi realizado por Maria de Lourdes Janotti) pudessem conseguir depoimentos mais
completos. A interpretação tem por base o pensamento de Bourdieu, utilizando especialmente os conceitos de campo e habitus.
Por fim, é preciso apresentar dois textos muito interessantes, que tratam de uma problemática distinta dos artigos mencionados acima, mas, nem
por isso, deixam de abordar uma questão muito atual, a homossexualidade
masculina.
O artigo de Giorgio L. Momesso, “Usos alternados em territórios
intersticiais na metrópole: o caso autorama em São Paulo”, analisa o uso de
determinado espaço urbano na cidade de São Paulo por homossexuais, com
base no referencial teórico da Escola de Chicago, utilizando especialmente
os conceitos de estrutura urbana, ecologia humana e região moral. O espaço
do estacionamento autorama localiza-se no Parque do Ibirapuera e o autor
chama a atenção para três instâncias de atuação, uma constituída pelos organismos oficiais, a segunda, a vizinhança residencial, que se sente afetada
pelo uso do espaço por homossexuais, mas que em parte também se manifesta favoravelmente ao seu direito de uso desse espaço, e a terceira, formada pelos próprios usuários, que usam a área como local de socialização.
O segundo artigo dentro dessa temática, de autoria de Eduardo Moreira
Assis, intitula-se “ ‘Fazendo a Linha?’ Masculinidade(s) e desejo pelo mesmo sexo na trajetória de vida de homens que fazem sexo com outros homens”. Aborda a questão sobre como os homens que fazem sexo com outros homens lidam com diferentes masculinidades, experimentam sua própria masculinidade e elaboram o conhecimento de si e dos outros. Aqui o
espaço é uma cidade de pequeno porte, Pouso Alegre, situada no Sul de
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Minas Gerais. O estudo baseia-se na coleta de relatos orais e, entre outras
conclusões, o pesquisador mostra que, ao contrário do que se poderia pensar, a crise da masculinidade tem levado a uma valorização do modelo homem colocado sob crítica. Consegue desconstruir a “linha”, percebida como
própria performatividade do gênero. Embora experimentem diferentes masculinidades, os entrevistados são norteados por uma só, com a qual dialogam e que tem na homofobia uma parte necessária do processo de formação
desse tipo de homem. O periódico consta ainda de três instigantes resenhas.
Este número da revista Cadernos CERU contou com o apoio da Equipe
Editorial do Centro de Estudos Rurais e Urbanos, em especial com o trabalho de Jhonny Juliani, a quem devemos a revisão final dos textos, da colaboração de Eleni Steinle de Moraes, bibliotecária do CERU, assim como da
equipe de produção gráfica da CCS/USP. Mais particularmente gostaríamos de manifestar nossa gratidão à Comissão de Credenciamento do Programa de Apoio às Publicações Científicas Periódicas da USP, na pessoa de
sua presidente, professora doutora Isabel Amélia Costa Mendes e de Eugênia
Maria Lopes, secretária da Comissão.
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AS RELIGIÕES COMO AGENTES DA
SOCIALIZAÇÃO
Maria da Graça Jacintho Setton*
Resumo: O objetivo destas anotações é refletir sobre o potencial socializador das
religiões. Como um capítulo pouco visitado pela sociologia da educação, esta discussão é dirigida a todos aqueles que se ocupam em pensar a realidade da socialização na
atualidade. Pretende-se empreender aqui uma discussão que desperte o interesse entre
os educadores para esse antigo espaço de construção de sentido, os sistemas religiosos. Ou seja, pretende-se chamar a atenção para um dos processos de produção, transmissão, negociação e apreensão de um conjunto de dispositivos, físicos, mentais e
intelectuais responsáveis por parte da construção do mundo social. Vale, então, desde
já, introduzir algumas perguntas que se tentará responder ao longo do texto. Por que o
educador precisa se familiarizar com as questões relativas a uma Sociologia da Religião? Quais os elementos desse tema que precisam fazer parte da formação sociológica do educador? Serão levantados alguns aspectos que respondem em parte a essas
indagações, embora não esgotem a questão.
Palavras-chave: Socialização. Religião. Sociologia da educação.
Abstract: The purpose of this article is to reflect about the power of religion
socialization. As this chapter is a little visited in the education sociology, this discussion
is targeted at all those who are concerned about the reality about the current education.
The objective is to raise a discussion that awakens the interest among the educators in
the former dimension of the construction of meaning, the religious systems.
Furthermore, the aim is to draw attention to the process of production, transmission
and apprehension of various physical, mental and intellectual ways responsible for
the construction of the social world.
Keywords: Socialization. Religion. Sociology of education.
INTRODUÇÃO
Mesmo que grande parte das reflexões empreendidas pelos educadores ainda seja sobre o papel da escola, como instituição formal instrucional
e qualificadora de mão-de-obra, cumpre lançar aqui um convite. Propõe-se
que a Sociologia da Educação se ocupe não só da instituição escola, mas
também de outras matrizes de cultura, como a família, as mídias e, no caso
*
Professora de Sociologia da Faculdade de Educação – USP.
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SETTON, Maria da graça Jacintho. As religiões como agentes da socialização
aqui específico, a religião, pois são espaços produtores de valores morais e
identitários, são, por excelência, espaços formadores de consciência. Todas
essas agências seriam capazes de forjar, em tensas e intensas relações, um
habitus, um modus operandi de pensamento, bem como um sistema de disposições orientador de condutas, matéria de importância para os educadores da atualidade que se vêem defronte a uma realidade múltipla de referências de estilos de vida.
Para desenvolver esse argumento, seria importante esclarecer algumas idéias ou pressupostos que nortearão essas reflexões. Ou seja, para
pensar as relações entre religião e educação precisam-se fazer algumas
mediações e tomar-se-ão como eixos para essa mediação as noções de cultura e socialização.
Primeiramente, a noção de cultura compreendida em seu sentido antropológico: cultura como produto da atividade material e simbólica dos
humanos, como capacidade humana de criar significados, potencial humano de interagir e se comunicar a partir de símbolos. Segundo essa perspectiva, refletir sobre as religiões a partir do ponto de vista da educação é admiti-la enquanto produtora de cultura. É também admitir que a cultura das
religiões, as formas simbólicas, os bens de cultura produzidos pelas crenças
religiosas, nas suas mais variadas formas, contribuem, juntamente com valores produzidos e valorizados pela família, pela escola e pelo trabalho, a
constituir os seres humanos enquanto sujeitos, indivíduos, cidadãos, com
personalidade, vontade e subjetividade distintas. Em síntese, conceber as
religiões como matrizes de cultura é considerá-las enquanto sistemas de
símbolos, com linguagem própria, distinta das demais matrizes de cultura
que compõem o universo socializador do indivíduo contemporâneo.
Propõe-se, além disso, aproximar as noções de educação e socialização. A socialização compreendida aqui como um processo que busca a construção de um ser adaptado a um universo social. De caráter contratual,
revestida de um forte conteúdo moral e ético, a socialização implica a negociação de padrões de comportamento definidos e legitimados a priori.
Entretanto, a bibliografia alerta que esse processo pode ser pensado
sob dois pontos de vista. Ora como imposição de padrões à conduta individual, sendo muitas vezes definido como processo de condicionamento e
controle da sociedade sobre os indivíduos, ora como um processo de aquisição de conhecimento e aprendizado, interiorização de padrões de conduta
que nos tornam mais humanos, emancipados e civilizados (DURKHEIM,
1978). Dessa reflexão apreende-se a ambigüidade do processo e o caráter
ideológico da formação das identidades sociais.
Pode-se, então, pensar a socialização como uma dimensão fundamental da formação humana propiciada pelas matrizes de cultura que têm
como tarefa a transmissão de ideais e valores que expressam um consenso
sobre o mundo, um nomus, como diria Berger (2003). Os sistemas educativos
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dos grupos, as estratégias e práticas de socialização daí decorrentes expressariam uma ideologia no sentido de esta ser uma visão de mundo, seriam
responsáveis pela elaboração de sistemas de valores comportamentais
objetivados em símbolos sociais.
Nesse sentido, propõe-se também circunstanciar as noções - educação e socialização - como sinônimas. Uma larga tradição na área possibilita
um entendimento amplo e generoso sobre a prática educativa que transcende os muros escolares. Trabalhando com o argumento de Sposito (2003),
devem-se explorar os múltiplos caminhos relevantes para os educadores
que os levam a fazer uma sociologia não escolar da escola.
Dito de outra forma, a família, a religião, a escola seriam, então, instituições ou subespaços sociais capazes de projetar entendimentos sobre a
realidade dos indivíduos ajudando-os a construir o convívio, a ordem e ou a
transformação social. Como matrizes de cultura, gerariam em seu interior
um sistema simbólico, um ethos organizado a partir de preceitos, máximas
e prescrições morais e comportamentais. Em outras palavras, para se viver
em sociedade, é preciso partilhar uma série de códigos comunicativos (uma
língua), categorias do julgamento (sagrado, profano; divino, terreno), bem
como padrões de conduta (obediência, disciplina, ascetismo) transmitidos
por essas instituições que facilitam a vida em comum nos grupos e simultaneamente moldam a identidade individual. O processo de socialização vivido por cada um é compreendido, então, como o processo de transmissão,
negociação e incorporação desse imenso universo de símbolos que facilitam o intercâmbio da vida social, no entanto não isento de tensões.
Para desenvolver esse argumento ir-se-á enfatizar aqui apenas dois
aspectos fundamentais do processo de socialização, ainda que não sejam os
únicos. Chamar-se-á a atenção, primeiramente, para a importância da linguagem enquanto um sistema de símbolos e, em segundo lugar, sua conexão com a prática e ou ação social dos indivíduos e grupos. Para isso lançarse-á mão de dois autores paradigmáticos da Sociologia. São eles Emile
Durkheim e Max Weber. Ressalta-se, contudo, que a intenção aqui é somente resgatar algumas de suas contribuições no campo dos estudos da religião e sua interface com a educação.
Isto é, ambos os autores, cada um a sua maneira, exploram a experiência religiosa como uma forma de se entender o homem portador da capacidade de produzir símbolos e, portanto, produtor de cultura, crença e ideais
coletivos. Trabalham com o pressuposto de que cultura e religião são fenômenos que se correspondem, pois têm raízes na natureza social de produzirem sentidos e estabelecer relações sociais. Para esses autores, a construção
social da realidade é fruto das relações de sentido que os indivíduos estabelecem com seus semelhantes. Cultura e religião são fenômenos que oferecem espaço para empreender um diálogo entre indivíduo e sociedade. Mais
explicitamente, cultura e religião são vistas como espaços de entendimento
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SETTON, Maria da graça Jacintho. As religiões como agentes da socialização
das relações estabelecidas entre mundo material (estruturas objetivas) e
mundo simbólico (estruturas mental-subjetivas). A variedade e heterogeneidade dos múltiplos sistemas religiosos seriam, pois, expressão cultural,
expressões de sentido dadas pelos grupos às coisas e ao mundo ao longo
das formações históricas. A religião e suas estratégias de convencimento,
sociabilidade e controle seriam práticas e ou estratégias pelas quais os indivíduos e os grupos se mantêm coesos ou se dissociam a partir da comunhão
ou da diferenciação de sentidos. Fonte, portanto, de análise para uma Sociologia da Educação e dos processos de socialização.
UMA
DAS CONTRIBUIÇÕES DE
EMILE DURKHEIM
Ainda que os educadores tenham grande familiaridade com Durkheim
a partir de seus escritos sobre a escola e sobre a educação moral, parte da
obra desse autor é relativa à vida simbólica dos grupos. Seus estudos sobre
as formas primitivas de classificação ou sobre as formas elementares da
vida religiosa, nome de dois textos que fizeram carreira para os estudos da
religião, são também referência para uma Sociologia do Conhecimento, isto
é, parte da Sociologia que se debruçam sobre as condições sociais da produção das idéias, representações, consensos e ideologias. É nessa chave
que se irá lançar mão de suas contribuições.
Para Durkheim, os sistemas de linguagem, ou seja, os conceitos, as
categorias do julgamento, em outras palavras, as representações que se fazem sobre o mundo são em grande parte chamadas de ideais coletivos. Grande parte de seus estudos dedica-se a responder ao enigma de como se produzem esses ideais, essas crenças, sejam elas religiosas ou não. Uma das
tarefas dos sociólogos seria trabalhar metodologicamente e analisar teoricamente a produção dos sistemas simbólicos, ou seja, o conjunto de máximas, códigos do entendimento e da conduta dos grupos humanos responsáveis pela produção da crença, em outras palavras, responsáveis pelas maneiras pelas quais se constrói um entendimento sobre o mundo.
Durkheim (1982, p. 8), no livro Las formas elementales de la vida
religiosa (1982)1 dedica-se a isso. Afirma que os sistemas religiosos são
importantes, pois, como primeira tentativa de compreender a realidade exterior e objetiva do mundo, ofereceram elementos relativos ao conteúdo e à
forma lógica, ofereceram elementos de ordem cognitiva na elaboração de
idéias, pensamentos e representações sociais. A religião, segundo ele, não
acrescentou certo número de idéias ao espírito humano; a religião contribuiu para formar o espírito humano, um modus operandi de pensamento.
1
Esse livro foi traduzido e publicado no Brasil pela Editora Paulinas.
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Na raiz dos julgamentos religiosos feitos pelos homens, segundo
Durkheim (1982), existe certo número de noções fundamentais que dominam sua vida intelectual, categorias do entendimento como noções de tempo, espaço, gênero, número e causa que teriam sua origem nesse sistema de
símbolos. Para Durkheim (1982, p. 8) as representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; assim os rituais
religiosos, seus encontros semanais, os louvores e ou celebrações diversas
são manifestações que nascem e ou nasceram no seio dos grupos reunidos e
que estão destinadas a suscitar, manter ou a refazer certos estados mentais
desses grupos, em outras palavras, podem ser pensadas como estratégias de
manutenção de uma ordem de idéias e comportamentos. Portanto, a religião
é uma criação sui generis: eminentemente social, ela se realizou, justificando, as primeiras formas de coesão dos grupos.
De acordo com esse autor, é porque estavam previamente reunidos
em grupos que os homens puderam agrupar e classificar as coisas (objetos,
animais, plantas e até seus semelhantes) que os rodeavam. A unidade dos
primeiros sistemas lógicos, entre eles os religiosos, reproduz a unidade dos
grupos da sociedade. As classificações dos grupos humanos, a categorização
dos objetos, animais e plantas fariam parte de um sistema cujas partes estariam dispostas segundo uma ordem hierárquica. Existiram, pois, aspectos
de classificação dominantes e outros que estariam subordinados aos primeiros. Segundo o autor, a expressão hierárquica das coisas não tem sentido metafórico; são realmente relações de subordinação que procuram fazer
uma classificação interna. As classificações religiosas não constituem, pois,
singularidades excepcionais; parecem, ao contrário, dar início às primeiras
classificações científicas. Ou seja, da mesma forma que as classificações da
ciência, as classificações religiosas expressam-se em sistemas de noções
hierarquizadas. As coisas não estão dispostas por sistemas isolados uns dos
outros, mas esses grupos de coisas mantêm relações uns com outros, relações definidas e seu conjunto formam um só e mesmo todo integrado
(DURKHEIM,1982).
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que as contribuições de Durkheim
ajudam no entendimento sobre as relações de interdependência e simultaneidade, entre: a) a constituição da sociedade, b) a constituição de uma
cultura, a partir da constituição de conceitos e representações sociais e, por
fim, mas não por ordem de importância, c) a constituição do individuo. Três
momentos simultâneos da construção da sociedade. A sociedade e o individuo
só se realizam, portanto, quando indivíduos passam a objetivar e interiorizar
um entendimento sobre as coisas sociais.2
2
Ainda que Durkheim dê certa margem a esse entendimento, seu texto não explicita essa relação dialética entre
indivíduo e sociedade.
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SETTON, Maria da graça Jacintho. As religiões como agentes da socialização
Segundo suas próprias palavras,
Ao contrário de terem as relações lógicas entre as coisas fornecido base às relações
sociais dos homens como admite Fraser, na realidade foram estas que serviram de
propósito àquelas. Segundo Frazer os homens se teriam dividido em clãs de acordo
com uma classificação prévia das coisas; ora, muito ao contrário, os homens classificaram as coisas porque estavam divididos em clãs. (...) A sociedade não foi simplesmente um modelo de acordo com o qual o pensamento classificatório teria trabalhado; foram os próprios quadros da sociedade que serviram de quadros ao sistema. As
primeiras categorias lógicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas
foram classes de homens nas quais as coisas foram integradas. Foi porque os homens
estavam agrupados e se concebiam a si mesmos sob a forma de grupos, que agruparam
idealmente os outros seres, e as duas modalidades de agrupamento começaram por se
confundir a ponto de serem indistintas. Assim, a hierarquia lógica não é senão um outro
aspecto, da hierarquia social e a unidade do conhecimento não é outra coisa senão a
própria unidade da coletividade, estendida ao universo (DURKHEIM,1978, p. 198).
Para Durkheim, uma sociedade só se cria ao criar e recriar um ideal
coletivo, ou seja, um sistema de símbolos. Essa criação não é para a sociedade uma espécie de indulgência pela qual ela se completaria, uma vez
formada. Ao contrário, o ato da criação, o ato e o poder da simbolização são
atos pelos quais a sociedade (ou o coletivo) se faz e se refaz periodicamente. A sociedade ideal, concebida simbolicamente, aquela unida pela crença
em algum valor, não se coloca fora da sociedade real; faz parte dela. Isso
porque, como Durkheim ensinou, uma sociedade não é constituída somente
pela massa de indivíduos que a compõem, pelo território que ela ocupa,
mas, antes de tudo e, sobretudo, pela idéia que a sociedade faz de si mesma
(DURKHEIM,1982, p. 14-16).
Nesse sentido, Durkheim chama a atenção para o fato de que o ideal
coletivo expresso pela religião se deve a um poder inato do indivíduo; para
ele, foi na vida coletiva que o indivíduo aprendeu a idealizar (simbolizar) e
fazer uso do símbolo para se comunicar. Foi assimilando os ideais, valores,
categorias do julgamento, padrões morais elaborados pela sociedade que os
homens se tornaram capazes de conceber um ideal, uma crença, um sistema
de símbolos. Introduzindo-o na sua esfera da produção de cultura, a sociedade fez o homem contrair a necessidade de se alçar acima do mundo experimental e lhe forneceu, ao mesmo tempo, os meios de conceber um outro
mundo, um mundo simbólico. Assim, tanto entre os indivíduos como nos e
entre os grupos, a faculdade de idealizar e simbolizar nada tem de misteriosa. Ela não é uma espécie de luxo que o homem poderia dispensar, mas
uma condição para sua existência. Ele não seria um ser social, isto é, não
seria um homem, se não tivesse a capacidade de produzir significados
(DURKHEIM, 1982, p. 14-17).
Para Durkheim a matéria do pensamento lógico é feita de conceitos,
consensos ou pré-noções. Procurar saber como a sociedade pode ter desem-
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penhado um papel na gênese do pensamento lógico leva a indagar como ela
pode participar da formação dos conceitos. Ora, não há dúvidas de que a
linguagem e, por conseguinte, o sistema de categorias do julgamento que
ela traduz é produto de uma elaboração coletiva. A linguagem enquanto
universo simbólico exprime a maneira pela qual a sociedade e os homens
no seu conjunto representam para si os objetos da experiência. As noções
que correspondem aos diversos elementos da linguagem são, pois, representações coletivas (DURKHEIM, 1978, p. 197-200).
Mas poder-se-ia dizer também que os sistemas simbólicos, ao oferecerem categorias do entendimento, são também sistemas lógicos que
estruturam a realidade social. Ou seja, sistemas lógicos, com o potencial de
explicar o surgimento da vida, a origem dos grupos, suas diferenças sociais,
hierarquizando e classificando as coisas, os objetos, a flora, a fauna e, sobretudo os homens (DURKHEIM, 1978, p. 197). Nesse sentido, se se pode
afirmar que são capazes de integrar a partir de códigos comuns e se, além
disso, se pode considerar que os sistemas da lógica religiosa são capazes de
oferecer um entendimento sobre o mundo, tudo leva a crer que os sistemas
simbólicos são também responsáveis pela criação de consensos. Isto é, os
sistemas simbólicos, entre eles os da religião, cumpririam a função de criar
representações coletivas, gerais e universais, garantindo o entendimento e a
aceitação da realidade tal como ela está posta.
Ou seja, como diria Bourdieu (1982), os sistemas simbólicos como
agentes socializadores não cumpririam apenas as funções de comunicação
e de conhecimento, de integração e de produção de sentidos. Os sistemas
simbólicos, por servirem a essas funções, acabam também por ter um uso
ideológico, pois, à medida que a função lógica de ordenação do mundo
pode se subordinar às funções socialmente diferenciadas de diferenciação
social e de legitimação das diferenças, essas mesmas divisões efetuadas
pela ideologia religiosa podem recobrir divisões e hierarquizações sociais
em grupos ou classes. Assim, cumpre salientar, os sistemas simbólicos, entre eles as religiões, não podem ser vistos apenas como um capítulo da
Sociologia do Conhecimento, mas devem ser entendidos também como parte
de uma Sociologia que se ocupa das estratégias socializadoras de manutenção do poder e da dominação.
AS
CONTRIBUIÇÕES DE
WEBER
No que se refere às contribuições de Weber, consideram-se primeiramente algumas características metodológicas. Lembrar-se-iam suas reflexões sobre os sentidos da ação humana, ou seja, seus ensinamentos de que
para se conhecerem os fenômenos sociais deve-se extrair o conteúdo simbólico da ação ou das ações que o configuram. Ou seja, Weber convida a
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SETTON, Maria da graça Jacintho. As religiões como agentes da socialização
interpretar o sentido que os agentes atribuem a suas ações, entre elas as
ações religiosas. Para ele não seria possível explicar a prática humana como
resultado de uma causa e um efeito. Ao contrário, deve-se compreendê-la
como um fato carregado de sentido, como algo que aponta para outros fenômenos de natureza social. Propõe, pois, entender e compreender os sentidos das ações individuais ou grupais. Fazer Sociologia para Weber seria
fazer um esforço para compreender o todo complexo de significações sociais que as pessoas envolvidas atribuem a uma prática de cultura, seja ela
religiosa, política ou pedagógica (WEBER, 1979).
Os estudos sobre religião na obra de Weber expressam, então, o esforço de se construir um método de investigação compreensiva, apontando,
por um lado, as relações de sentido entre os ideais e as atitudes religiosas, e
as atividades e a organização social de grupos, por outro. Para esse autor, a
Sociologia é uma ciência voltada para a compreensão interpretativa da ação
social e, por essa via, busca uma explicação da ação social em seus múltiplos processos. Toda ação social deve ser vista enquanto processo no qual
se percorre uma seqüência definida de elos significativos. Em outras palavras, a conduta religiosa do agente, estaria orientada significativamente pela
conduta de outros numa intensa rede de sentidos. A pratica religiosa, portanto, refere-se à conduta de múltiplos agentes que se orientam reciprocamente em conformidade com um conteúdo específico do sentido das suas
ações. Posto isto, para se compreender uma ação, um fato social religioso
qualquer, é necessário muito mais do que intuição; é preciso reconstruir o
encadeamento de significados do processo de ação que se dão, sobretudo,
nas experiências socializadoras de cada individuo (WEBER, 1979, 1991).
Para os interesses desta reflexão cumpre salientar que os escritos de
religião de Weber são também tentativas de analisar as crenças religiosas,
tentativas de compreender os envolvimentos religiosos dos grupos e dos
indivíduos, a partir da materialidade e objetividade da vida dos fiéis. Ou
seja, esse autor tenta, a todo instante, fazer uma análise que seja relacional
e dialética entre dois elementos que fundam o social, os elementos de ordem material e os de ordem simbólica. Fugindo de uma análise de modelo
funcionalista, Weber procura compreender as filiações religiosas a partir
das características materiais, na perspectiva de afinidades eletivas entre esfera econômica e objetiva e esfera espiritual e subjetiva dos fiéis. Para desenvolver sua interpretação sobre as experiências religiosas, espaço por
excelência da espiritualidade, da relação com o divino e com o cosmo, Weber
parece procurar estabelecer o diálogo entre a realidade subjetiva - produtora de sentidos - e a realidade terrena, a condição humana, material e objetiva de todos.
A religião para Weber seria, portanto, uma ponte, uma via de acesso
e correspondência entre o mundo material e espiritual dos agentes. Weber
ensina a fazer uma Sociologia que favorece uma leitura relacional entre
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mundo subjetivo e mundo objetivo, entre indivíduo e sua dimensão espiritual e simbólica e o coletivo como realidade concreta, carregada de urgências materiais.
Segundo esse autor,
(...) a ânsia pela salvação, qualquer que seja sua natureza, é de interesse especial, na
medida em que traz conseqüências para o comportamento prático da vida. Esse rumo
positivo e mundano é dado de modo mais intenso pela criação de uma ‘condução da
vida’ especificamente determinada pela religião e consolidada por um sentido central
ou um fim positivo, isto é, pela circunstância de que surge, a partir de motivos religiosos, uma sistematização de ações práticas em forma de orientação destas pelos mesmos
valores. O fim e o sentido desta condução da vida podem estar dirigidos puramente ao
além ou, também, pelo menos em parte, a este mundo (WEBER, 1991, p. 357, grifos do
autor).
A esperança da salvação tem as mais profundas conseqüências para a condução da vida
quando é um processo que já neste mundo projeta de antemão suas sombras ou transcorre intimamente dentro deste mundo (WEBER, 1991, p. 357, grifos do autor}.
Nesse sentido, em sua qualidade de sistema simbólico estruturado, a
religião para Weber funcionaria como princípio de estruturação das condutas, um ethos que constrói a experiência social e individual em termos de
uma lógica em estado prático, uma ética, um sistema de disposições indiscutíveis e sagradas. Segundo Bourdieu (1982), graças ao efeito de uma consagração arbitrária socialmente, mas legítima do ponto de vista do sagrado,
a religião consegue submeter o sistema de disposições em relação ao mundo natural e ao mundo social a uma mudança de natureza, em especial convertendo o ethos, enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de
apreciação, em ética, ou seja, um conjunto sistematizado e racionalizado de
normas explícitas.
Por todas essas razões a religião, segundo esta leitura,
(...) está predisposta a assumir uma função ideológica, função prática e política de
absolutização do relativo e de legitimação do arbitrário, que só poderá cumprir na
medida em que possa suprir uma função lógica e gnosiológica consistente em reforçar a força material ou simbólica possível de ser mobilizada por um grupo ou uma
classe, assegurando a legitimação de tudo que define socialmente este grupo ou esta
classe (BOURDIEU, 1982, p. 46, grifos do autor).
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Para finalizar estas breves anotações valeria recuperar os propósitos
iniciais. Ou seja, tinha-se a intenção de empreender uma discussão sobre um
antigo espaço socializador de construção de sentido, os sistemas religiosos.
Mais do que isso, a tentativa foi sinalizar a importância dessas discussões
para o campo da formação do educador da atualidade.
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SETTON, Maria da graça Jacintho. As religiões como agentes da socialização
Na busca de apresentar argumentos relativos ao poder formador e
socializador dos sistemas religiosos exploraram-se apenas três aspectos já
bastante discutidos na Sociologia, no entanto dois aspectos que fazem
interface com a Sociologia da Educação. Primeiramente enfatizou-se o aspecto semântico e construtor de significados dos valores religiosos, contribuição, sobretudo de Emile Durkheim, e num segundo momento enfatizaramse as articulações entre estruturas mentais e comportamentais oferecidas
por Weber e, por último, o caráter ideológico e, portanto, muitas vezes político que as religiões podem assumir, lembrando as considerações de
Bourdieu acerca das contribuições de ambos.
Vivendo em um mundo em que uma variedade de crenças se mescla,
compondo um repertório religioso diversificado, é-se muitas vezes surpreendido com situações em que as hierarquias entre as religiões se manifestam em situações de conflito.
Além disso, observando os novos envolvimentos de natureza religiosa que os segmentos jovens e menos privilegiados da sociedade vêm assumindo uma discussão acerca das funções sociais e ou mesmo funções
educativas das religiões torna-se essencial.
Se não bastassem essas justificativas, tem-se presenciado de maneira
difusa um trabalho poderoso de hibridizar o caráter laico da educação escolar com a introdução do ensino religioso nos currículos oficiais, ainda que
não tenha caráter obrigatório. Trata-se de uma controvérsia antiga e continuamente em voga, sempre presente nas constituições, que põe em evidência a urgência de problematizar o poder de persuasão das categorias do
entendimento religioso.
Nesse sentido, esta discussão convida a pensar com mais cuidado em
uma esfera educativa ainda pouco explorada, contudo extremamente importante e que compõe o repertorio cultural de amplas parcelas da população brasileira.
Por último, acrescentar-se-ia que, ciente do vasto campo que esta
discussão possibilita, estas observações devem ser percebidas apenas como
um convite a novas investigações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGER, P. Religião e construção do mundo. In: O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 2003.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.
DURKHEIM, É. Émile Durkheim: Sociologia. São Paulo: Ática, 1978. (Coleção Grandes Cientistas
Sociais).
______. Las formas elementales de la vida religiosa. Madri: Akal/Universitária, 1982.
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SPOSITO, M. Uma perspectiva não escolar no estudo sociológico da escola. Revista USP, São Paulo, n.
57, p. 210-227, mar./maio, 2003.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1991. Vol.1.
______. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
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A RELIGIÃO E AS ORIGENS DO ESTADO
MODERNO*
Geraldo Ribeiro de Sá**
[...] o êxito nos negócios é em si quase um sinal de graça
espiritual, pois é prova de que um homem trabalhou fielmente em sua vocação e que “Deus abençoou seu negócio”
(TAWNEY, 1971, p. 232).
Resumo: Este artigo faz uma reflexão a respeito de alguns nexos e articulações que
perpassaram a religião e a formação do Estado moderno, no momento histórico situado entre os séculos XVI e XVIII, marcado pela Reforma Protestante e pela Revolução
Francesa. Ao se indagar a respeito das conexões de sentido existentes entre a religião
e as origens do Estado moderno, procurar-se-á responder a três questões fundamentais: a) Por que a religião e o Estado moderno, em suas origens, estabeleceram conexões de sentido entre si? b) Até onde princípios religiosos e políticos se conflitaram,
durante a formação do Estado moderno? c) Como certos princípios religiosos e suas
práticas propiciaram a formação e a consolidação do Estado moderno?
Palavras-chave: Religião. Estado. Modernidade. Ética.
Abstract: This article is a reflection on the meanings and articulations linking religion
to the formation of the modern state, between the XVI and XVIII centuries, a historic
period underscored by the reformation and the French Revolution. Three fundamental questions regarding the meaningful links between religion and the modern state
are addressed: a) Why did religion and the modern form meaningful connections from
outset? B) Up to what point did religious and political principles conflict during
formation of the modern state? C) How did some religious principles and practices
lead to the formation and consolidation of the modern state?
Keywords: Religion. State. Modernity. Ethics.
*
Uma versão preliminar deste artigo foi publicada no Painel de Humanas – Revista do ICHL da UFJF, v. 6, n. 2, p.
31-49, jun. 1991.
**
Doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, Professor Aposentado pela UFJF e Professor Titular dos Cursos de
Mestrado em Direito e em Educação, oferecidos pela UNINCOR – Universidade Vale do Rio Verde de Três
Corações (MG).
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SÁ, Geraldo Ribeiro de. A religião e as origens do estado moderno
INTRODUÇÃO
Esta reflexão procura indagar a respeito de certos nexos, articulações
e conexões de sentido existentes entre a religião e as origens do Estado
moderno. Por religião entende-se aqui não propriamente a dos Evangelhos
e, sim, a institucionalizada em organizações mais ou menos burocratizadas
como a católica romana ou as protestantes do final do século XVI aos meados do século XVIII. Por Estado moderno entende-se “O próprio “Estado”,
tomado como entidade política, com uma “Constituição” nacionalmente
redigida, um Direito racionalmente ordenado, e uma administração orientada por funcionários especializados” (WEBER, 1983, p. 4).
As indagações desta reflexão estão fundamentadas, portanto, num
determinado momento da história, simultaneamente considerada econômica, política e socialmente, isto é, o da Reforma Protestante, iniciada por
Lutero, e sua chegada à Inglaterra. Não se irá além, conseqüentemente, do
meado do século XVIII nem se ultrapassará o movimento religioso, de caráter reformista, localizado, sobretudo, em alguns países da Europa Ocidental, como Alemanha, Países Baixos, Suíça e Inglaterra, com reflexos,
inclusive, nas colônias inglesas da América do Norte.
Não se desconhecem outras formas de organização do fenômeno religioso, como o budismo,1 o taoísmo, o judaísmo, o islamismo, as seitas
cristãs com maior ou menor número de fiéis, para citar apenas algumas,
entre as muitas e diferentes denominações religiosas. Mas, também, não se
examinarão, nesta reflexão, as articulações e/ou contradições, porventura
existentes, entre as expressões religiosas, há pouco citadas, e a formação do
Estado moderno. Evitar-se-ão, inclusive, discussões teológicas como, por
exemplo, as que deram origem à Reforma Protestante, as que distinguem
igreja de seitas, por mais significativas que sejam, em razão do escopo e do
conteúdo propostos no presente trabalho.
Como recurso bibliográfico primário, foram eleitos os seguintes autores e obras: M. Weber - A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo –
R. H. Tawney – A Religião e o Surgimento do Capitalismo – e F. Engels Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São três obras clássicas,
em que o tema foi tratado exaustivamente. O autor desta reflexão, entretanto, está ciente de que as obras mencionadas não contêm, de forma sistematizada, o tema focado por este artigo, pois a preocupação dos autores citados voltou-se, sobretudo, para a constatação de nexos e contradições existentes entre a religião, o Estado e o capitalismo, com os simultâneos co1
A propósito das articulações do budismo com o capitalismo e o Estado modernos escreveu F. Fukuyama: “Suzuki
ensinava que a pessoa podia atingir o estágio de iluminação sem se retirar do mundo, levando à perfeição as
tarefas mais comuns: plantar arroz, aplainar uma taboa. Essa linhagem budista, que só existe no Japão, já foi
comparada à santificação puritana das vocações deste mundo, visto como chave da revolução capitalista dos
séculos XVI e XVII” (FUKUYAMA, 1993, p. 3-6).
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mentários a respeito das sincronias e diacronias existentes entre o religioso,
o político, o social, o ético, o econômico e outras configurações sociais.
Entre as muitas e diferentes configurações sociais constitutivas da sociedade moderna, inclui-se e se destaca o Estado. Este é, inclusive, uma instituição composta de sistemas recíprocos e contraditórios, o que lhe confere a
condição de não ficar alheio e de não permanecer como uma organização
inocente perante aos demais elementos componentes da sociedade. Reafirma-se que, entre os componentes da sociedade moderna, em destaque, a religião e o Estado, procurar-se-ão esclarecer apenas alguns motivos para certos
nexos que os articularam e também os desarticularam entre si e, simultaneamente, como esses nexos se inseriram e entraram na formação de ambos.
Na tentativa de orientar o autor e o leitor no percurso dessa reflexão,
optou-se por organizá-la por meio dos tópicos seguintes: introdução, desenvolvimento e considerações finais.
1 DESENVOLVIMENTO
1.1 A RELIGIÃO E O ESTADO MODERNO: ALGUNS MOTIVOS PARA CERTAS CONEXÕES DE SENTIDO
Ao se conhecer a história do Ocidente, mesmo que de relance, detectam-se a religião e o Estado se articulando, nas mais diferentes formas. Ora
como um todo orgânico, o que ocorreu no Império Romano, onde, muitas
vezes, o imperador era, ao mesmo tempo, deus e sacerdote. Ora como na
Idade Média, em que a religião funcionava como princípio organizatório da
sociedade e uma espécie de Estado no entendimento de Tawney (1971).
Ora desarticulando e rearticulando o império, como aconteceu com o cristianismo no interior do próprio Império Romano.
Dizia-se, também, que a preocupação básica de Espanha e Portugal,
com a descoberta de novos territórios e a implantação de colônias, era com
a dilatação da fé e do império. A cruz e a espada eram suas armas fundamentais. Também a presença da Igreja, nos navios que sulcavam as águas
oceânicas, com a presença de estatuetas de santos e de sacerdotes que celebravam missas, assistidas por toda a tripulação, caracterizava a íntima
vinculação entre Igreja e organização política da época.
Na história do Brasil, inclusive, a presença da Igreja foi considerada
indispensável, a começar pela primeira missa, celebrada por Frei Henrique
de Coimbra, com a presença dos jesuítas como Nóbrega e Anchieta. Também mais tarde, na definição dos contornos e na consolidação do Estado
moderno, os nexos com a religião não constituem exceção. No desenvolvimento deste artigo, confirmar-se-á, portanto, que o tema “Igreja e Estado”,
tanto no passado como no presente, desafiou e continua desafiando os pesquisadores.
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Nesse momento da reflexão, tem-se apenas a preocupação, conforme
já se mencionou, de examinar, sobretudo, alguns motivos ou porquês das
articulações entre a religião e o Estado moderno. Serão focalizados certos
motivos e alguns nexos resultantes, localizados apenas no momento da constituição e consolidação do Estado moderno, ou seja, situados no final do
século XVI ao meado do século XVIII. Nesse período, que pode ter começado muito antes e que pode ter-se concluído muito depois, ocorreu uma
grande ruptura na ordem religiosa, política, econômica e social vigente.
Trata-se de uma ruptura precedida de muitas outras, também marcantes, e
provocadoras de seqüelas profundas e diferenciadas. A grande ruptura de
que se fala aqui foi provocada pela Reforma Protestante, a qual, para simplificar, será denominada, doravante, simplesmente por Reforma.
Com a Reforma houve uma quebra de autoridade. Desvinculou-se do
Papa. Rompeu-se com a Igreja, que se dizia única, infalível e universal.
Igreja que era também o “Estado”, em quase toda a Europa Ocidental. Igreja que tinha o monopólio do saber. Igreja que era proprietária de aproximadamente um terço das terras nos países católicos. Não se deve esquecer
de que o Papa era chefe da toda poderosa Igreja e também chefe de “Estado”. A Santa Sé era um “Estado”, que, em certo nível, era como qualquer
outro, todavia detinha privilégios de que nenhum outro “Estado” dispunha.
A ruptura das igrejas protestantes com a Igreja Católica, provocada
pela Reforma, gerou a formação de igrejas nacionais, que traziam consigo o
sentimento nacional ou de nacionalidade. A idéia de nação, nesse momento
já envolvia a de um território, habitado por um conjunto de indivíduos, com
certos elementos culturais comuns, com destaque para a língua e o sistema
de moedas. Às vezes, não era possível atingir-se o ideal de uma língua única, mas um sistema comum de moedas, sim. A circulação de mercadoria,
inerente à maneira de produzir do capitalismo moderno, impunha também a
existência de um Estado moderno, que lhe garantisse, inclusive, um sistema
de moeda única, com a finalidade de dar suporte ao livre e permanente
movimento de troca das mercadorias por dinheiro e vice-versa.
Deve-se lembrar de que, à época, os grandes centros comerciais já
não eram somente Gênova, Flandres e outras cidades italianas, mas também Amsterdã, Genebra, Antuérpia, Londres e Zurique já disputavam com
elas. Deve-se recordar, inclusive, de que um dos pontos de ataque da Reforma era o “poder temporal” da Igreja. E a Igreja reformada precisava de um
sólido ponto de apoio, assentado no Estado nacional, evidentemente, pois
ela também era originária de raízes nacionais.
A nação, para sua expressão, exigia, no passado como no presente,
uma organização que a representasse, que a estruturasse e administrasse.
Uma organização que garantisse sua identidade, que zelasse por seus membros, defendesse seus interesses, mantivesse a integridade de seu território.
Essa organização se identificava naturalmente como Estado moderno. A
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Reforma, nesse momento, simbolizou a confluência de várias forças que se
articularam simultaneamente. E dentre essas forças destaca-se a nacionalidade, fluindo para o Estado e do Estado.
A quebra do vínculo com Roma, provocado pela Reforma, fora fundamental e, talvez, o mais difícil, porque o mais profundo. E Lutero, membro dessa mesma Igreja Católica, Apostólica, Romana, dera o chute inicial
e o grande jogo começou. E com esse jogo iniciou-se uma série de outras
peripécias. Com o grito de autonomia de Lutero perante o Papa ressoou o
de autonomia nacional, juntamente com as vibrações de uma Igreja nacional e de muitos outros fatos novos.
Por acaso, atrás do grito de Igreja nacional, de Estado nacional, juntamente com o de “fora com o Papa”, será que estava apenas o desejo da
maior glória de Deus e salvação das almas? A muitos parece que não.
Talvez para Lutero e outros a resposta fosse sim. Lutero era de origem camponesa, fora profundamente místico, além de ex-frade, pertencente a uma ordem religiosa inspirada nos rígidos preceitos de Santo Agostinho. Aliás, nesse sentido escreveu Weber (2004, p. 81): “Eles não foram
fundadores de sociedades de “cultura ética”, nem representantes de anseios
humanitários por reformas sociais ou de ideais culturais. A salvação da alma
e somente ela, foi o eixo de sua vida e ação”.
Pensando além do ideal dos reformadores, ver-se-á que há outros
ingredientes também fundamentais, além da salvação das almas e da maior
glória de Deus: o poder e os interesses crescentes da burguesia mercantil.
Essa burguesia já era próspera não só em alguns centros comerciais italianos, mas também noutros localizados na Suíça, Alemanha, nos Países Baixos e na Inglaterra, conforme já se escreveu nesta reflexão. A burguesia
mercantil precisava de um território delimitado e amplo para a livre circulação de seus produtos postos à venda, de um sistema de moedas para facilitar
seus negócios, de uma língua comum, ou pelo menos oficial, para viabilizar
o mercado, de um Estado dotado de princípios soberanos, que garantisse e
protegesse a circulação de bens, inclusive contra assaltos, piratarias e outras formas de depredação de suas propriedades. De um ambiente onde prosperassem princípios, inclusive, religiosos, que fizessem dos indivíduos pessoas mais dedicadas ao trabalho, menos esbanjadoras de dinheiro e mais
respeitadoras da propriedade alheia. A propósito, claramente, escreveu
Tawney (1971, p. 25): “O maior e prioritário escopo dos homens que se
unem em comunidade e que se colocam sob governo é a preservação de sua
propriedade”.
A ruptura provocada pela Reforma em relação à Igreja Católica incluía, também, certos aspectos doutrinários, como o livre-exame ou a livre
interpretação dos textos sagrados, isto é, da Bíblia. Enquanto a Igreja Católica determinava que o magistério eclesiástico2 é quem tinha o poder para
ensinar, inclusive para interpretar oficialmente os textos sagrados, a Igreja
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reformada atribuía esse poder a cada um de seus membros. O que implicava
a ampliação da capacidade de decisão de cada crente, liberdade individual
para muitos, bem como individualismo para um grande número de fiéis.
Ora, a teoria e, sobretudo, a prática da liberdade individual e da iniciativa privada já era cultivada pela burguesia ascendente, inclusive como
modelo de sucesso. Tais princípios serão consagrados mais tarde pelas nações e respectivos Estados emergentes. Constituiu ontem, como constitui
ainda hoje, função do Estado garantir, também, a livre iniciativa e a liberdade de pensamento e de expressão. Conseqüentemente, a combinação do
livre-exame, incentivado pela Igreja reformada, com a liberdade individual
para pensar, se expressar e tomar iniciativa deu-se de forma livre e de espontânea vontade. O princípio da liberdade fecundou, também, a liberdade
de contrato entre partes iguais, porque entre cidadãos, seres livres, dotados
de direitos e deveres, garantidos pelo Estado, o eleito como árbitro para o
caso de desavença entre as partes.
O livre-exame sempre supôs e pressupôs um ser humano também
livre, dotado de inteligência e com lucidez suficiente para fazer uso da razão. A razão adquire, como conseqüência, inclusive da Reforma, um novo
status, embora já existissem outros movimentos na mesma direção, sobretudo, por parte dos filósofos. A respeito da Reforma, escreveria muito mais
tarde Ianni (2005, p. 120-121): “Uma poderosa e eficaz argamassa desse
mundo é o protestantismo secularizado, laico, prosaico, cotidiano que toma
conta dos indivíduos, grupos, classes, coletividades, assim como de relações, processos e estruturas, em diferentes paises e continentes”.
A Reforma, porém, confere à razão um novo pulso e impulso. A razão entra na constituição do Estado sob vários aspectos. Dentre esses aspectos destaca-se, a título de exemplo, a administração fundada em princípios racionais, que deve informar toda a burocracia estatal. A razão perpassa, também, o Direito, enquanto conjunto de normas sociais emanados do
Estado. Para o Estado o Direito, contido em normas jurídicas, funda-se em
critérios de natureza racional, impessoal e objetiva. Muito a propósito devese lembrar o pensamento de Durkheim (1999, p. 39-109), no sentido de que
nas formas pretéritas de “Estado” prevalecia o Direito repressivo, no Estado moderno, porém, tende a prevalecer o Direito restitutivo. Como conseqüência, na ânsia de desmantelar as mediações feitas por pessoas, entre
Deus e os homens, a Reforma questionou e jogou por terra o poder divino
dos reis e do clero, pois Deus atua diretamente no crente, sem necessidade
de intermediários.
Como fica, então, o poder do Estado? De onde lhe vem a sanção?
Não lhe vem mais pó meio da unção com que o Papa transmitia o poder
divino aos soberanos. Origina-se a sanção de sua própria natureza, dizem
os reformados, conforme muito bem escreveu Tawney (1971, p. 25): “O
Estado, primeiro na Inglaterra, depois na França e América, não encontra
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sua sanção na religião, mas na natureza, em um pressuposto contrato para
estabelecê-la, na necessidade de proteção mútua e na conveniência de assistência recíproca”.
Está inclusa na fala de Tawwney (1971) uma nova forma de relacionamento entre Igreja e Estado. Fala-se de um pressuposto contrato regulando as relações entre ambos. Ora, a relação contratual é típica da sociedade
que se constitui com o Estado moderno. Fala-se de contrato, o que pressupõe a existência de partes livres e dotadas de razão para se contratarem. A
vinculação contratual está, pois, presente, não apenas nas relações entre
instituições, como igreja e Estado, mas também no cotidiano das relações
sociais de cidadãos entre si. É da natureza da relação contratual a duração
enquanto for conveniente às partes. A vinculação de natureza contratual,
por sua vez, pressupõe a possibilidade de conflitos em sua execução, o que
tem ocorrido até aos dias atuais, porém, a tendência geral é a do bom relacionamento entre as partes, isto é, a das relações de convivência e de mútua
proteção, buscando e encontrando, elas próprias as devidas soluções para
assegurar a continuidade da paz social.
Outro avanço, no sentido da racionalização das manifestações religiosas no protestantismo, foi o fato de se eliminar, o que se considerava uma
das magias da salvação e acontecia com a distribuição dos sacramentos. No
entender da Igreja Católica, os sacramentos exercem o poder de produzir a
graça por si mesmos. Para as igrejas reformadas, os sacramentos não passam de rituais mágicos. Não são apenas os rituais sacramentais que contêm
magia, mas todos os demais ritos católicos. A missa, por exemplo, é um rito
mágico por excelência. O poder de transformar a hóstia (pão) no corpo de
Cristo é também uma, entre as muitas magias católicas. O padre comportase como um mágico, concluíram os membros da Igreja reformada.
Para a Igreja reformada a eucaristia é símbolo e não realidade. Daí
sua preocupação em eliminar todo o cerimonial da eucaristia juntamente com
os demais sacramentos enquanto mediações de salvação. Deus age diretamente no crente. Nesse sentido explicitou Weber (2004, p. 95-96): “Isto - a
supressão absoluta da salvação eclesiástico-sacramental (que no luteranismo
de modo algum havia se consumado em todas as suas conseqüências) - era
absolutamente decisivo em face do catolicismo”.
Constaram-se, até aqui, certos motivos da aproximação e das frutíferas núpcias contraídas entre a religião e a formação do Estado moderno.
Nesse momento, uma pergunta torna-se conveniente: Os motivos de aproximação analisados não foram também razões de disputas, brigas e contradições?
Ver-se-á que sim.
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2.2 CONTRADIÇÕES NO
RELACIONAMENTO DA RELIGIÃO COM O
ESTADO
MODERNO
Um ponto fundamental, nesse momento da discussão, é a questão de
certas categorias de caráter universal, como, por exemplo, o universal “ser
humano”. O cristianismo ensinou, desde seus primórdios, que todos os homens são iguais, sem distinção de origem, sexo, raça, tribo, família ou nação.
Porém, iguais em quê?
Como?
Iguais enquanto “ser humano”.
Todos os indivíduos trazem o ser humano “dentro” de si. Portanto,
todos são filhos de Deus. De certa forma, a Igreja apropria-se do universal
“ser humano” e pretende decidir sobre os indivíduos concretamente, como
fizera no passado. Durante a Idade Média, por exemplo, a Igreja Cató1ica
deteve, com certa tranqüilidade esse monopó1io: o monopólio sobre o universal ser humano. Ela era “também” o Estado, nos países cató1icos, no
entendimento de Tawney (1971). O Estado era sua extensão e não a Igreja a
extensão do Estado. Mas, com a Reforma, a Igreja Católica foi ameaçada
nesse monopólio. Outras igrejas se constituíram e disputas se formaram em
seu próprio território. Ela se defendia, alicerçando-se no princípio de que
“fora da Igreja não há salvação”. Por sua vez a Igreja reformada proclamava: Deus é quem salva e diretamente. O que significava: os meios de salvação do catolicismo não passam de magia.
Conforme já se lembrou, a Reforma trazia em seu conteúdo a idéia
de nação, que, por sua vez, continha a noção de Estado. E a nação é, sobretudo, o elemento articulador dos indivíduos num Estado. Também o Estado
fundado, nos ideais liberais, sempre teve como um de seus princípios inerentes à sua constituição, o propósito de que todos são iguais, perante a lei,
sem distinção de sexo, raça, religião e nacionalidade. Outras categorias com
características de universais, como “humanidade”, “individualidade” e
“igualdade”, dentre muitas outras, foram motivos de aproximações e também de conflitos entre a religião e o Estado, porque foram e continuam
sendo fontes de disputas pelo poder de influência entre igrejas, entre seitas,
entre seitas e igrejas, entre religião e Estado, conforme se pretende esclarecer, a seguir.
No plano individual, alguém poderia, ou não, entrar em conflito com
ele mesmo, ao pensar nos termos seguintes: Eu sou brasileiro e católico ou
sou católico e brasileiro. O que é mais importante para mim, ser católico ou
ser brasileiro? Ainda no plano individual, convém recordar a passagem de
um filme americano, cujo contexto era uma trama entre a Igreja Católica e
a Máfia Italiana. Houve, em determinado momento, um diálogo entre o
cardeal secretário de Estado do Vaticano e o chefão mafioso. Este responde
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ao Cardeal: “eminência, para mim há três princípios invioláveis: minha Igreja, minha família e minha honra”. Observa-se que o chefe mafioso não
menciona a pátria, o que não lhe deve parecer como algo de grande importância, mas não deixa de destacar os universais “Igreja”, “família” e “honra”, consideradas propriedades suas, componentes de sua identidade e de
seu modo de agir.
Historicamente, permite-se também a indagação seguinte: Por que a
Igreja Católica, na França, no século XVIII, se constituiu em obstáculo à
formação do Estado moderno? Noutros termos, até onde a religião foi também um empecilho à organização do Estado capitalista, razão pela qual esse
Estado se estruturou não só contra ela, mas procurou, inclusive, eliminá-la?
A própria história contém uma das respostas à indagação proposta. A
respeito da ascensão da burguesia européia e da conseqüente organização
do Estado capitalista, F. Engels, (1985, p. 16), escreveu: “A grande campanha da burguesia européia contra o feudalismo culminou em três grandes
batalhas decisivas”. Em síntese essas três grandes batalhas foram a Reforma protestante alemã, a chegada do calvinismo à Inglaterra e a Revolução
Francesa.
As duas primeiras batalhas foram a favor da religião. Porque se tratava da religião reformada, cujo conteúdo doutrinário continha elementos favoráveis ou convergentes com os propósitos de produção, acumulação e
centralização de capital, pretendidos pelas classes burguesas, bem como de
uma organização política necessária a esses mesmos propósitos, desenhada
num Estado, cujo fulcro fosse a garantia dos interesses das respectivas classes. Contudo, a terceira batalha, a Revolução Francesa, travara-se, inclusive, contra a religião ou, mais precisamente, contra a Igreja Católica. A Revolução Francesa define-se como anti-religiosa. Em seus ideais prevalece o
primado da razão sobre a fé e contra a fé religiosa.
Uma outra questão põe-se neste momento: Foi a Revolução Francesa, propriamente, contra a religião ou mais especificamente contra a Igreja?
E por que contra a Igreja?
O que existia na Igreja na França para gerar tanto ódio entre os revolucionários?
O pensamento de A. de Tocqueville (1982) contém uma das chaves
para a resposta pretendida.
(...) A Igreja apoiava-se principalmente na tradição: os escritores desprezavam todas as
instituições fundadas sobre o respeito ao passado; ela reconhecia uma autoridade superior à razão individual: eles só apelavam para a razão; ela era fundada sobre uma hierarquia: eles advogavam a confusão das posições [...]. Além do mais, a Igreja parecia-lhes
o lado mais vulnerável e aberto de todo o grande edifício que atacava (p. 150-151).
Na citação de A. de Tocqueville, a categoria de caráter universal,
denominada tradição, destacou-se enquanto ponto de sustentação para a
Igreja Católica. A tradição era tão fundamental, na constituição da Igreja,
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que servia de princípio norteador para seu corpo doutrinário, quando se
tratasse, inclusive, de questões relacionadas à interpretação ou ao exame da
Bíblia e de outros textos sagrados. Tão profundos eram os nexos da Igreja
com a tradição que, às vezes, se confundia religião com tradição. E a tradição católica penetrava em todo o complexo social, econômico, político e
cultural da sociedade, a tal ponto de se dizer que a “religião” ou a “tradição”
era o princípio organizatório da sociedade medieval. Ora, se o culto à razão
era um dos princípios da Revolução Francesa, o choque, com alto nível de
violência, entre os revolucionários franceses e o alto clero católico estava
posto. De um lado, a Igreja empunhando a bandeira da tradição e, de outro,
os escritores erguendo a bandeira da razão. Eram princípios estruturais que
se chocavam. Daí o ódio à Igreja, enquanto instituição que corporificava a
religião e a tradição.
O ódio não se voltava propriamente contra a religião, mas contra a
Igreja. E, mesmo assim, principalmente, contra o segmento denominado
alto clero, o clero comprometido com o feudalismo, o clero acumulador de
privilégios, o clero agarrado à tradição. O baixo clero, pelo contrário, mantinha contato direto com o povo, colocava-se, em sua maioria, ao lado deste, sobretudo dos camponeses, por isso lutou junto com a burguesia, conforme muito bem expressou R. H. Tawney (1971) “[...] enquanto na França,
quando o estouro chegou, boa parte do clero inferior compartilhou voluntariamente a sorte do tiers état” (p. 260). Como a Igreja era a instituição religiosa por excelência, o ódio se volta, sobretudo, contra a religião. O que
explica ser a Revolução Francesa anti-religiosa.
Para os revolucionários franceses, a razão individual se colocava acima de qualquer autoridade. A razão fundava-se na ciência e na filosofia, por
conseqüência, não podia permitir algo superior a si mesma. Para a Igreja,
entretanto, a razão se subordinava à fé, à autoridade divina que se realiza
pela mediação do Papa e do magistério eclesiástico. A propósito, escreveu o
filósofo F. Hegel, (s.d., p. 275), a respeito do processo de julgamento de
Galileu. “Eu, Galileu, com a idade de 70 anos, constituído pessoalmente em
justiça, de joelhos e tendo diante dos olhos os Santos Evangelhos que seguro em minhas mãos, de alma e fé sincera, abjuro, amaldiçôo e repudio o
erro, a heresia do movimento da terra”. Galileu era um cientista, um homem
de razão. No entanto, porque católico deveria subordinar-se à doutrina da
Igreja Católica, tida por esta como fonte de ensinamento, ao qual a razão
científica tinha que se subordinar. Se o conhecimento científico lhe mostrou o movimento da terra, a Igreja afirmou-lhe que isso era impossível, ou
seja, contrariava sua doutrina tradicional. No entanto, Galileu renunciou às
conclusões a que chegara, por meio do conhecimento, mas não só renunciou, como também abjurou, amaldiçoou o erro, a heresia do movimento da
terra. Acima da ciência estava a doutrina eclesiástica. E de joelhos, posição
de humilhação, de reconhecimento de sua inferioridade.
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A atitude da Igreja e do cientista católico Galileu jamais seria tolerada pelos revolucionários franceses. A Igreja Católica assentava-se sobre
uma hierarquia e os revolucionários advogavam a quebra de toda e qualquer hierarquia. De onde vinha a hierarquia tão prezada pela Igreja Católica
ou qual fora seu fundamento?
A hierarquia católica é de orientação divina, contida na tradição e nas
escrituras, responderiam as autoridades eclesiásticas, portanto, de direito
divino. Os revolucionários franceses advogavam a confusão de posições,
que, no dizer de A. de Tocqueville (1982), significava a igualdade entre
indivíduos, porque cidadãos. Agora todos são cidadãos, logo, iguais e livres. Portanto, fora com o direito divino, fora com as hierarquias, pois
doravante o direito estará contido em normas racionais e objetivas e inspirará a organização da sociedade. Os cidadãos, por força da própria expressão, são livres e iguais para circularem nas diferentes posições sociais. Aliás, pelo princípio da liberdade e da igualdade se preconiza a diferenciação
assentada em funções. Mas, perante a lei universal, racional e objetiva, todos são iguais, independentemente da diferenciação social, econômica, política e, inclusive, funcional.
E mais, por que contra a Igreja Católica?
Ainda conforme o entendimento de A. Tocqueville (1982), pode-se
elaborar a resposta seguinte: A Igreja Católica parecia-lhes o lado mais vulnerável e aberto de todo o grande edifício que atacaram, conforme já se
escreveu, nesse trabalho, há pouco.
Que edifício era esse?
Era o feudalismo com tudo o que ele significava, certamente, mas
não um feudalismo “puro”, pois tal sistema de organização em França já
estava semi-abolido no período da Revolução. Então, por que tanto ódio a
um sistema quase defunto?
O próprio A. de Tocqueville (1982), respondeu: “A causa deste fenômeno é, por um lado, que o camponês francês tornara-se proprietário de terras
e, por outro lado, que escapara por completo ao governo do seu senhor” (p.
75). Esse ódio centrava-se, também, contra os privilégios do clero e da nobreza. Grande parte da propriedade deles fora expropriada e vendida.
Por detrás de toda essa avalanche anti-religiosa estava uma entre as
muitas molas mestras, aliada às condições de vida do povo, aos avanços da
ciência, ao culto da razão e a muitos outros fatores: uma classe em ascendência, que estabeleceu uma série de alianças, mas que visava o monopólio
do poder político, inclusive, para, por meio dele, garantir seu poder econômico, o poder do terceiro estado, o poder da burguesia. O poder revolucionário deveria atingir, inclusive, a organização econômica e política, própria do feudalismo. Uma nova maneira de produzir, fazer circular e de consumir bens e serviços também revolucionários, estava em gestação. Uma
estrutura social estava sendo elaborada. Um novo Estado se organizava.
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Quando, mais tarde, Napoleão proclamaou em alto e bom som que a
maior de suas glórias não consistia nas batalhas militares ganhas, mas em
“O Código Civil” que dera à França, um grande e definitivo passo tinha
sido dado, trazendo consigo muitos outros ingredientes, inclusive, a elaboração e a montagem da estrutura do Estado moderno. A própria expressão
“Código Civil” já era prenhe de significados. As relações fundamentais entre cidadãos, livres e iguais, começavam a ser codificadas, conforme as
normas racionais e objetivas do Direito. Os privilégios feudais, empecilhos
à livre circulação de mercadorias, estavam em franco processo de desmanche. O Estado moderno estava se impondo.
Posteriormente, Luís Bonaparte (sobrinho de Napoleão) procurou
estabelecer relações amistosas com a Igreja, inclusive a Católica, mas em
novas modalidades, conforme escreveu K. Marx (1974) “Outra idéia
napoleônica é o domínio dos padres como instrumento de governo [...] O
padre aparece então como mero mastim ungido da polícia terrena” (p. 121).
A título de maior esclarecimento e reforço ao pensamento de K. Marx,
a respeito da iniciativa napoleônica (Luís Bonaparte), referente à nova mentalidade e postura política, em face da tradicional Igreja Católica e, sobretudo, das igrejas cristãs reformadas, acrescenta-se a seguinte reflexão.
(...) Por isso, sem fazer o menor caso das chacotas dos seus colegas continentais,
continuava (Luís Bonaparte) anos após anos gastando milhares e dezenas de milhares
na evangelização das classes baixas.
Não satisfeito com sua própria maquinaria religiosa, dirigiu-se ao irmão Jonathan, o
maior organizador de negócios religiosos da época, e importou dos Estados Unidos os
revivalistas, Noody e Sankey [...] por fim, aceitou até a perigosa ajuda do exército de
Salvação [...] (ENGELS, 1985, p. 22).
1.3 CONFLUÊNCIAS NO
ENVOLVIMENTO DA RELIGIÃO COM O
ESTADO MODERNO
Conforme já se tomou conhecimento por meio de F. Engels (1985),
aconteceram duas outras grandes batalhas na campanha da burguesia européia contra o feudalismo: a Reforma protestante e a chegada do calvinismo
à Inglaterra. Por sua própria natureza, essas duas batalhas serão denominadas pró-religiosas. Pró-religiosas, no sentido da existência de certos elementos inerentes à Igreja reformada que foram ao encontro dos interesses
da burguesia ascendente e dominante. Pró-religiosas, porque a burguesia
ascendente e dominante acolheu e amparou muitos princípios e práticas da
Igreja reformada, razão pela qual a Reforma prosperou, primeiramente, nos
centros comerciais emergentes da época.
Muito a propósito foi o fato de M. Weber (2004, p. 48) ter encontrado, na ética protestante, muitos ingredientes do que chamou de “espírito”
(cultura) do capitalismo. Escreveu, também, que, em algumas cidades eu-
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ropéias e norte americanas, já existia o “espírito” capitalista na mentalidade
e na prática cotidiana de certos empresários, bem antes do desenvolvimento, inclusive, do capitalismo e da Reforma: “Por hora, é suficiente para o
propósito deste estudo indicar: que na terra natal de Benjamin Franklin (o
Massachussets) o “espírito” do capitalismo (no sentido aqui adotado) existiu incontestavelmente antes do “desenvolvimento do capitalismo” (WEBER,
2004, p. 48).
Uma nova questão deve ser posta neste momento da presente reflexão:
Quais foram os elementos, apregoados e transmitidos pela Reforma,
que vieram ao encontro dos interesses da burguesia ascendente e dominante
e que propiciaram a revolução burguesa, desembocando em uma nova forma de organização da economia e do Estado?
Os elementos apregoados e transmitidos pela Reforma e de interesse,
sobretudo, das classes burguesas foram muitos. Entre esses alguns se destacaram. Em síntese, os elementos destacados foram.
1.3.1 O
ROMPIMENTO COM A TRADIÇÃO
Em ambos os movimentos, Revolução Francesa e Reforma, um de
seus núcleos fundamentais foi a característica de ser antitradição, de provocar ruptura com o passado. A propósito, M. Weber (2004) escreveu: “Com
certeza, a emancipação ante o tradicionalismo econômico aparece como
um momento excepcionalmente propício à inclinação de duvidar até mesmo da tradição religiosa e a se rebelar contra as autoridades tradicionais em
geral” (p. 30). Rompeu-se com o Papa, com o magistério eclesiástico, com
o sistema ritual, com a organização hierárquica e, como ponto de partida,
institui-se o “livre-exame”, isto é, a livre interpretação da Bíblia e demais
livros sagrados.
1.3.2 UM
NOVO SIGNIFICADO PARA O CONCEITO DE VOCAÇÃO
O novo significado de vocação foi claramente desenvolvido em M.
Weber (2004), entre outros autores: “Vocação [...] pelo menos ressoa uma
conotação religiosa – a de uma missão dada por Deus [...] no sentido de
uma posição na vida, de um ramo de trabalho definido” (p. 71). Nesse conceito de vocação dois elementos foram fundamentais. Uma tarefa “ordenada” ou pelo menos “sugerida” por Deus. Falava-se de Reforma e de Reforma na Igreja. Portanto, havia certos elementos mantidos, outros redefinidos
e outros eliminados. Entre os que foram mantidos, destacou-se o de ser uma
religião: a “presença” da idéia de Deus foi mantida, porque indispensável,
pois sem Deus não há religião.
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É evidente que o conceito de Deus na Igreja reformada sempre foi de
alguém que mantém contato direto com os cristãos. Daí no conceito de
vocação ficar incluso também o conceito de intervenção de Deus nas tarefas humanas. Deus ordena ou pelo menos sugere o que deve ser feito. Quando
o homem escolhe a tarefa a ser desempenhada, na terra, há pelo menos a
sugestão da parte de Deus, que não abandona seus eleitos ou escolhidos. As
tarefas desempenhadas transformam-se em atividades dentro de um plano
maior, o plano divino. A tarefa humana deixa de ser um castigo para ser
uma ação enobrecedora, pois ela traz a idéia de uma sugestão divina e não
mais a lembrança de uma punição por algum pecado cometido.
A convicção de plano de vida afasta-se da idéia de desconexão de
atividades e, sobretudo, de atividades isoladas. Por causa do plano de Deus
e para sua maior glória, as atividades humanas deixam de ser soltas, desconexas e destituídas de significado. Deus não deixa seus eleitos na solidão. O
novo conteúdo de vocação redundou, conseqüentemente, em redefinição
do conceito e sentido de trabalho humano. Primeiro, o trabalho deixou de
ser um castigo e passou à categoria de sugestão divina aos seus eleitos.
Segundo, o trabalho deixou de ser um ato isolado e se situou dentro de um
plano maior e de um significado mais amplo. Enquanto no conceito tradicional de vocação estava implícita a idéia de fuga do mando, continha-se um
chamado de Deus para gozar de felicidade futura, após a morte, lá no céu, o
novo conteúdo traz o de inserção nas atividades terrenas.
Não era isso o que a burguesia também esperava? Que o homem
assumisse totalmente seu trabalho? Que o homem se transformasse em ser
produtor e reprodutor de bens e serviços, com a finalidade de serem trocados por dinheiro e cada vez mais dinheiro?
O conceito de vocação, incluso nos princípios da Reforma, estava,
também, de certa forma, embutido no conteúdo da revolução empunhada
pela burguesia ascendente, mas nem sempre de maneira explícita.
1.3.3 A
PREDESTINAÇÃO
Um dos pontos centrais da doutrina da Igreja reformada que se chocou com os ensinamentos da Igreja Católica foi a questão da predestinação.
A questão da predestinação, entretanto, nem sempre constituiu ponto pacífico mesmo entre as diferentes denominações de protestantismo, originadas
a partir da Reforma. Algumas chegaram a contestar o conceito de
predestinação. As contestações da doutrina da predestinação fizeram que
ela se tornasse objeto constante de pauta e de motivação de sínodos. A propósito do significado da doutrina da predestinação, observou M. Weber
(2004), ao citar o capítulo III de um dos grandes sínodos calvinistas ocorridos no século XVII: “Por decreto de Deus, para a manifestação de sua gló-
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ria, alguns homens [...] são predestinados à vida eterna e outros preordenados
à morte eterna” (p. 91).
Embora fosse objeto de polêmica nas igrejas protestantes, desde
os primórdios da Reforma, a doutrina da predestinação esteve presente
no dia-a-dia da vida dos “crentes”. Essa doutrina angustia os que nela
crêem. O pressuposto de que Deus, para a manifestação de sua glória,
decida que alguns nasçam predestinados à vida eterna e outros já venham ao mundo preordenados à morte eterna, é angustiante e desesperador
para muitos.
Como, então, reagiram, de modo geral, os crentes diante desse pressuposto? Incluindo os teó1ogos da Igreja reformada?
Um das reações apresentadas pelos crentes foi o de negar toda e qualquer mediação entre Deus e os homens. Deus é quem decidiu e escolheu,
portanto, o homem nada pode contribuir para sua salvação, nem pessoalmente nem em grupo. Ninguém pode ajudá-lo. Aliás, os próprios teólogos
da Reforma sugerem: se o crente não pode contribuir para sua salvação ele
poderá encontrar sinais de predestinação. O eleito por Deus e de Deus é um
privilegiado, logo ele goza de amizade divina. É impossível que uma pessoa predestinada, para a maior glória de Deus, para a vida eterna, não trouxesse ou não encontrasse alguns sinais dessa predestinação.
Mas quais seriam alguns desses sinais?
Um desses sinais poderia ser o do sucesso nesta vida, pois um eleito
para a vida eterna deveria usufruir a amizade divina, já neste mundo.
Como encontrar sinais dessa amizade?
Refugiando-se do mundo?
Não, porque tal conduta entraria em choque com a idéia de vocação
que estivesse vinculada ao conceito de predestinação. Ao se aproximarem
os conceitos de vocação e de predestinação, poder-se-ia constatar que o
próprio Deus sugerisse, também, a noção de atividade humana.
Mas, que tipo de atividade?
O trabalho humano. Este, além de satisfazer a uma vocação, quando
bem realizado e sucedido, transformava-se num dos sinais de predestinação,
de eleição por Deus, de escolha divina, desde toda a eternidade.Se o trabalho pudesse ser um dos sinais de eleição divina, ele deveria merecer toda e
qualquer dedicação, em qualquer parte do dia em que ele acontecesse. O
trabalho precisaria, inclusive, ocupar a maior parte da vida dos indivíduos.
O crente deve, entretanto, reservar algum tempo à oração e à instrução. O
lazer teria de ser momento de oração e de educação, porém o principal
recurso para educar as crianças, principalmente as mais pobres, seria o trabalho, conforme se pode ler no pensamento seguinte: Veja-se o exemplo de
um caso extremo a que se chegou, com o avanço do puritanismo, citado por
E. Thompson (1998): “Ao advogar, em 1770, que as crianças pobres fossem enviadas com quatro anos aos asilos de pobres, onde seriam emprega-
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das nas manufaturas e teriam duas horas de aulas por dia, William Temple
foi explícito sobre a influência socializadora do processo” (292):
(...) É considerável a utilidade de as crianças estarem constantemente empregadas, de
algum modo, pelo menos durante doze horas por dia, ganhando o seu sustento ou não;
pois, por esse meio, esperamos que a nova geração fique tão acostumada com o trabalho constante que ele acabe por se revelar uma ocupação agradável e divertida para
eles [...].
Pelo fato de o trabalho conter um dos sinais de predestinação, ele
deveria ser realizado de maneira agradável e a ele seria dedicada a maior
parte do dia, como foi sugerido, no mínimo doze horas, talvez. E é evidente
que tal forma de dedicação ao trabalho se adequava perfeitamente nos propósitos do processo de acumulação capitalista. Para produzir mercadoria é
preciso trabalhar. Para acumular é preciso produzir. Esse é um dos cálculos
fundamentais da sociedade organizada sob a égide da burguesia e protegida
pelo Estado moderno. Trabalho, produção, acumulação constituem um
movimento permanente. Aliás, o próprio Estado moderno, órgão por excelência da classe burguesa, se constitui, consolida e sobrevive do e pelo trabalho que produza cada vez mais excedente, para ser apropriado pela burguesia. Do trabalho excedente, provêm, inclusive, os impostos e as taxas
cobradas e recolhidas pelo Estado moderno.
1.3.4 A
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Intimamente ligada à doutrina da predestinação e ao conceito de vocação está o significado da atividade profissional, que passa a adquirir também um novo sentido. Por meio da atividade profissional, desempenhada
como vocação, sugerida por Deus, o “crente” descobriria um dos sinais de
sua predestinação, aumentaria a confiança de pessoa eleita e auto-alimentaria sua fé. Muito a propósito, observou M. Weber (2004): “E de outro lado,
distingue-se o trabalho profissional sem descanso como o meio mais saliente para se conseguir esta autoconfiança. Ele, e somente ele, dissiparia a
dúvida religiosa e daria a certeza do estado de graça” (p. 102). A atividade
profissional aumentaria a autoconfiança na eleição divina, afugentaria todas as dúvidas religiosas sobre esta vida e a outra, pois ela propiciaria ao
crente a certeza da graça. O crente teria que se dedicar à profissão não como
emprego, mas como a um sinal de certeza da eterna salvação. Não ficou
claro para o leitor, nesse texto e contexto, o sentido social da profissão. Ela
se voltava, sobretudo, para as relações pessoais entre Deus e homem. Tratase do sentido individualista da profissão, muito a gosto do individualismo
burguês. Da profissão pela profissão ao trabalho pelo trabalho, foi simplesmente um passo adiante.
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Mas, para se desempenhar a uma profissão precisava-se de um mercado, de uma clientela. Para a conquista dessa clientela, aliada ao avanço
das ciências, nada mais conveniente e necessário do que a especialização
profissional. Foi outro passo ao encontro dos interesses burgueses, uma vez
que a divisão do trabalho foi e continua sendo um dos componentes fundamentais na história da acumulação capitalista, o que favoreceu a ascensão
da burguesia, a organização do Estado moderno e vice versa. E não foi
difícil para a Igreja reformada, partindo do conteúdo de vocação,
predestinação e profissão, concluir pela salvação por meio de boas obras.
Muito a propósito, escreveu M. Weber (2004): “Obtê-la (a bem-aventurança)
por mérito não se podia, posto que dom da graça divina, mas somente àquele que vivia segundo sua consciência era lícito considerar-se regenerado. As
‘boas obras’, nesse sentido, eram ‘causa sine qua non’” (p. 134).
1.3.5 A
ASCESE SECULAR
A ascese secular, componente do conteúdo da Reforma protestante,
destacava-se, entre outros elementos, como um dos aspectos que mais coincidiram com o que M. Weber denominou “espírito” do capitalismo. E, em
razão dessa coincidência, transformou-se em uma das forças, de maior propulsão da revolução burguesa e, conseqüentemente, da constituição e, consolidação do Estado moderno.
A “ascese secular” ou a santificação com base nas atividades cotidianas (mundanas) trouxe consigo outros conceitos, como o de vocação (escolha divina), antitradicionalismo (rompimento com o passado), secularização (presença nas atividades mundanas), racionalização (adequação entre meios, fins e resultados), predestinação (escolhido diretamente por Deus
para a vida eterna), formação e ação profissional, os quais já tivemos ocasião de mencionar. A ascese secular difere da ascese católica, sobretudo da
praticada nos conventos e mosteiros beneditinos, por exemplo. O próprio
M. Weber fez menção à ascese monástica que, sob certos aspectos, se assemelhava à protestante, porém diferia dessa ascese, entre outros aspectos,
porque, enquanto a ascese secular inseria o cristão no mundo, aquela, a
monástica, afastava-o das atividades terrenas, isto é, da labuta diária.
A propósito da “ascese secular”, M. Weber (2004) escreveu: “A ascese
protestante intramundana – para resumir o que foi dito até aqui – agiu dessa
forma, com toda veemência, contra o gozo descontraído das posses, estrangulou o consumo, especialmente o consumo de luxo” (p. 154). Em decorrência, portanto, da vocação, do antitradicionalismo, da racionalização,
ascese, predestinação, formação e exercício profissional, o protestante poderá elevar-se à condição de cidadão inserido no mundo, sobretudo por
meio do trabalho.
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Com o propósito de encontrar um dos sinais da eleição divina para a
vida eterna, com certeza, o crente irá empenhar-se cada vez mais no trabalho como “vocação”. Em virtude do empenho, cada vez maior no trabalho,
ele aumentará a glória divina, a segurança de sua escolha e, conseqüentemente, a acumulação de riquezas, pois não deverá gastá-las nem esbanjálas, principalmente em jogos, luxo, alcoolismo, luxúria, tabaco etc.
O protestante não deveria fumar, beber, jogar, adulterar, em suma,
não esbanjar. E para não ser tentado ao esbanjamento, ele teria que dedicar
a maior parte de seu dia ao trabalho e apenas algumas horas aos cultos
religiosos e, outras poucas, à instrução. Ele deveria se cansar durante o dia,
dormir cedo e levantar cedo. Para dormir cedo o corpo deveria estar cansado e a mente tranqüila. Para dedicar o dia todo ao trabalho, o crente teria
que acordar e levantar cedo. Os feriados e dias de repouso precisariam ser
reduzidos ao mínimo. Também a criança tinha que trabalhar, desde os tenros anos, conforme já se observou. Quem não trabalha não come. A ascese
secular coincidia, em muitos pontos, com o projeto burguês para o trabalho.
E tal coincidência de propósitos da Igreja reformada contribuiu, fundamentalmente, para um novo tipo de organização da sociedade e da política, desembocando na formação e consolidação do Estado moderno.
Deve-se relembrar, entretanto, que o casamento entre os princípios
da Reforma e a consolidação do Estado moderno também foram permeados
de alguns conflitos, como pontos de vista diferentes quanto à usura, por
exemplo. Os juros acrescidos ao capital, na sociedade medieval, já tinham
sido objeto de controvérsias no relacionamento entre a Igreja e os católicos.
Embora a cobrança de juros sobre o capital fosse condenada pela Igreja, ela
constituíra recurso de enriquecimento muito praticado por membros da burguesia. Aliás, agiotas existiram e existirão em todos os tempos e lugares.
Com a Reforma as controvérsias sobre a usura deixaram de ser fechadas
como aconteciam na Idade Média. Entre os reformadores havia posições
diferenciadas. Enquanto Lutero, ex-frade agostiniano, manteve a condenação dos juros acrescidos ao capital, Calvino, mais liberal que Lutero, falava
em “juros justos”. Essa posição de Lutero caiu como uma luva para os comerciantes e, sobretudo, para os banqueiros.
Disputas à parte, verificou-se que, apesar das contradições e das conexões de sentido, a religião constituiu-se em elemento essencial para se
compreenderem as origens do Estado moderno.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Na procura de desvendar e esclarecer alguns nexos, relações ou conexões de sentido, bem como determinadas contradições, entre a religião, a
formação e a consolidação do Estado moderno, o autor dessa reflexão este-
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ve ciente, a todo o tempo, de que muitos outros aspectos poderiam ser abordados e não o foram. Entre os aspectos não abordados, deve-se destacar o
individualismo muito visível na sociedade capitalista, nas estruturas do Estado moderno e entre membros da Igreja reformada. Também não foram abordadas as diferenças entre as diversas denominações de Igrejas reformadas,
consideradas já tradicionais, as muitas coletividades assumidas, sob o título
de Igreja reformada, mais recente, e de suas visões de mundo sobre a atualidade, a vida futura e as práticas de caráter social, econômico e político.
Não se tratou do movimento puritano inglês como ele merece. Muito
menos foi enfocada a Igreja católica no seu período denominado Contrareforma. Também a questão da usura não foi debatida como deveria ser. Os
próprios conflitos entre Igreja e Estado, mesmo onde a Igreja reformada foi
dominante, mereceriam mais aprofundamento. Outra questão, de natureza
muito polêmica, a ponto de merecer um estudo à parte, é a questão do foro
interno e externo, competência da religião e competência do Estado.
Esses são alguns pontos que mereceriam destaque e desenvolvimento à parte, e que o autor gostaria de fazê-lo, porém, o próprio objetivo do
trabalho não os incluiu.
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1999.
ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 7. ed. Trad. de Armando Venâncio. São
Paulo: Global, 1985.
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Caderno 3, p. 6.
HEGEL. F. Princípios da Filosofia do Direito. (Texto fotocopiado, sem outras referências).
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
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IANNI, O. A sociedade global. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2005.
MARX, K. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
TAWNEY, R. H. A Religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo: Perspectiva, 1971.
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Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras,0 1998.
TOCQUEVILLE, A. de. O antigo regime. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.
WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi
e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Pioneira, 1983.
______. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo;
rev. técnica, edição de texto, glossário, correspondência vocabular e índice remissivo de Antônio Flávio
Pierucci. São Paulo: Companhia de Letras, 2004.
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CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO E HISTÓRIA DO
TEMPO PRESENTE
Arnaldo Érico Huff Júnior*
Resumo: O artigo busca construir uma perspectiva do campo religioso brasileiro e
aventar possibilidades e problemas na direção de uma história do tempo presente da
religião no Brasil. Primeiramente, tratar-se-á de apreender a configuração do campo
religioso brasileiro atual em seus traços gerais, à luz de idéias de Pierre Sanchis e
Pierre Bourdieu. Feito isto, serão discutidos os processos de formação histórica e as
dinâmicas do campo, levantando ao mesmo tempo questões para uma história da religião no Brasil atual, acercando-se de temas como memória, identidade, política, ética
e a imbricação de temporalidades diversas nesses processos.
Palavras-chave: Campo religioso brasileiro. Pesquisa histórica. Tempo presente.
Abstract: The article aims to construct a perspective of the Brazilian religious field
and to discuss possibilities and problems for a history of the present of religion in
Brazil. Firstly, we will try to apprehend a general overview of the Brazilian religious
field present configuration, illuminated by ideas of Pierre Sanchis and Pierre Bourdieu.
After that, we will discuss the dynamics of the field and its processes of historical
formation, pointing out at the same time questions for a history of religion in present
Brazil, and dealing with issues like memory, identity, politics, ethics, and the
superposition of diverse temporalities in these processes.
Keywords: Brazilian religious field. Historical research. Present time.
INTRODUÇÃO
Pensar o campo religioso brasileiro na perspectiva da história do tempo
presente implica de saída constatar certa lacuna: trata-se de um tema que
tem sido privilegiado no âmbito dos estudos antropológicos e sociológicos,
mais que nos históricos. Apesar da crescente e abundante produção na área
da história do tempo presente, na verdade poucos historiadores têm se interessado pelo assunto especifico da religião ou pelas dinâmicas históricas do
campo religioso brasileiro como fenômeno contemporâneo.
*
Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e professor do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião e da Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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JÚNIOR, Arnaldo Érico Huff. Campo religioso brasileiro e história do tempo presente
Este artigo, nesse sentido, representa um esforço para apontar possibilidades de abordagens, alguns caminhos, certas noções, algumas coisas a
considerar para uma história do tempo presente do campo religioso brasileiro. É, todavia, antes de tudo uma brincadeira, um jogo com idéias que
pode possibilitar novas idéias para pesquisas diversas. A proposta é de atentar, primeiramente, à luz de noções extraídas de Pierre Sanchis e de Pierre
Bourdieu, para a configuração do campo, e então pensar possibilidades para
a pesquisa de sua história atual.
1 CONFIGURAÇÃO ATUAL DO CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO E AS NOÇÕES DE CAMPO E
HABITUS
É possível apontar, com base na análise de Pierre Sanchis (1998), a
quem se atém neste momento, porém com certa liberdade, duas tendências
gerais nas dinâmicas atuais do campo religioso brasileiro: uma de heterogeneização, outra de homogeneização.
A primeira tendência, de heterogeneização, traduz forças de
pluralização e diversificação presentes na sociedade brasileira como parte
de um fenômeno maior que insere o país nos rumos da modernidade. Tratase de um processo que, intensificado no princípio do século XIX com a
chegada dos protestantes, acresceu ao longo do século XX novos matizes
aos já conhecidos tons dos catolicismos e das religiões indígenas e afrobrasileiras. Parte desse desenvolvimento implicou a institucionalização dos
grupos religiosos concorrentes no campo, que definiram entre si identidades contrastivas, por vezes gerando traços fundamentalistas, como no caso
de alguns protestantismos históricos e pentecostalismos.
O cristianismo brasileiro é, na verdade, em sua origem, já plural.
Basta pensar no grande espaço de diversidade que é o catolicismo brasileiro. Pode-se nele encontrar, por exemplo, coabitando, uma igreja institucional, hierárquica e formal; outra mais popular, com crenças e práticas heterodoxas e informais; ainda outra carismática, em franco trânsito simbólico
com um carismatismo de origem protestante, e ainda outra libertária,
engajada politicamente à esquerda e próxima dos pobres e excluídos – todas as tendências convivendo, não raramente de modo conflituoso, sob o
guarda-chuva institucional da Igreja Católica Apostólica Romana e mais ou
menos submissas ao sumo pontífice. Esse tipo de “unidade na diversidade”
conforma uma espécie de pano de fundo contra o qual, dada sua histórica
hegemonia simbólica e político-institucional, deve-se estudar qualquer
manifestação religiosa brasileira.
No protestantismo dito histórico (luteranos, congregacionais,
presbiterianos, metodistas, batistas e episcopais), a construção de identidades em contrastividade deu-se concomitantemente de uns para com os ou-
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tros e de todos sem exceção para com a Igreja Católica. Foi a partir de sua
inserção no território brasileiro que o campo religioso local dinamizou-se,
acirrou-se e teve início uma maior diversificação. Considere-se, nesse sentido, que boa parte do protestantismo presente no Brasil é debitário de processos de despertamento ou reavimento ocorridos nas igrejas da Europa e
dos Estados Unidos no século XIX, nos quais as identidades em negociação
tinham como principal critério de pertença a adesão ou pela conversão e
vida regrada ou pelo assentimento a um corpo doutrinário tido como verdadeiro e absoluto. A busca pela definição de fronteiras claras em ambos os
casos torna-se uma marca, também no contexto brasileiro.
Grupos como os das Testemunhas de Jeová, dos Mórmons e dos
Adventistas do Sétimo Dia, apesar do difícil enquadramento no campo cristão protestante, carregam um ethos sectário semelhante ao dos grupos assim classificados.
Por sua vez, as implicações de ruptura do pentecostalismo brasileiro
(Assembléia de Deus, Brasil para Cristo, Evangelho Quadrangular etc.) têm
sido também bastante anunciadas. A dinâmica de adesão ao pentecostalismo
acarreta de alguma forma o rompimento com o universo tradicional do catolicismo e/ou das religiões afro-brasileiras, que passam a representar uma
vida pregressa, muitas vezes demonizada. A nova vida do crente constituise, assim, por oposição à vida antiga. O processo inclui arrependimento e
conversão, bem como adesão a um novo estilo de espiritualidade e a uma
sociabilidade na qual o fiel se torna imediatamente um irmão, por oposição
ao que acontece nas estruturas muitas vezes anônimas do universo religioso
tradicional: se antes a pessoa era apenas mais uma na multidão, com a pertença pentecostal é imediatamente nomeada e assume um lugar social em
um grupo que crê e se comporta de modos determinados.
Por sua vez, grupos neopentecostais, (Universal do Reino de Deus,
Deus é Amor), com estilos de pertença por vezes menos rígidos, ao mesmo
tempo em que, para além dos códigos protestantes e pentecostais, incorporam crenças e práticas advindas do universo das religiões afro-brasileiras e
do catolicismo, institucionalizam-se e se diferenciam daqueles por meio de
sua desqualificação e demonização – vide o famoso caso do chute na estatua
de Nossa Senhora Aparecida.
O universo das religiões afro-brasileiras (Candomblé, Xangô, Casa
de Mina, Umbanda etc.) tem também suas exigências de alinhamento. Foi,
por exemplo, bastante estudado nesse âmbito o fenômeno de construção
identitária pela busca de origens puras. Nessa ótica, a religião mais pura e
mais confiável é aquela que estiver mais próxima às origens africanas, por
oposição a conformações religiosas menos puras e confiáveis, menos africanas e mais abertas a outras influências. Há nessas constatações, sabe-se, a
influência de antropólogos no uso de teorias, hoje revistas, que os conduziam
a uma busca romântica de origens (ver MONTERO, 1999, p. 342-350). De
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JÚNIOR, Arnaldo Érico Huff. Campo religioso brasileiro e história do tempo presente
modo mais preciso, pode-se afirmar que o campo afro-brasileiro passa pela
dinâmica de uma fidelidade criativa, que, ao passo que busca seus fundamentos e constrói identidades mais ou menos contrastivas, interage em um
universo aberto e fluido de significados e práticas, do qual se tratará adiante
e é da mesma forma compartilhado pelos demais grupos.
O espiritismo kardecista coloca também suas fronteiras, apesar de se
situar em um locus próximo ao mesmo tempo do universo das religiões de
possessão, pelo transe mediúnico, e do cristianismo, em função de códigos
e práticas absorvidas como a referência a Jesus Cristo e a utilização do
Novo Testamento. Assim, por exemplo, é recorrente no kardecismo o discurso que identifica e separa as práticas umbandistas como diferentes e
indesejáveis, manifestações de espíritos menos evoluídos. A preferência pelos
códigos cristãos, por sua vez, facilita a aceitação e a circulação em uma
sociedade hegemonicamente católica. Semelhantemente ao protestantismo
histórico, todavia, o espiritismo kardecista assume um discurso que, imaginado no século XIX, quer dar as razões de sua fé e exige uma compreensão
que possa também ser explicada. Um claro iconoclasmo reforça tal veio
racionalista. A doutrina correta, assim, implica o elencar de heterodoxias,
idéias falseadas que devem ser substituídas por uma compreensão acertada,
para a evolução do espírito humano. A prática da caridade, nesse contexto,
contribui como fator de diferenciação, uma vez que fora dela não há salvação. Na caridade reside, então, a força da evolução.
Outra fatia que pode ser acercada é a de grupos étnicos minoritários:
são judeus, muçulmanos, cristãos ortodoxos, budistas, xintoístas e
confucionistas que, fruto de movimentos migratórios, colaboram também
para a pluralização religiosa brasileira.
Ainda outra série de práticas, crenças e instituições numericamente
menores configura um universo vívido e dinâmico que inclui religiões orientais (Seicho-no-iê, Igreja Messiânica, Fé Bahaí, Hare Krishna, Sufismo,
Ananda Marga, Brama Kumaris), religiões amazônicas, o uso da ayahuasca,
o circuito neo-esotérico, Vale do Amanhecer, Religião de Deus etc. Quando
colocados sob a insígnia de Novos Movimentos Religiosos, aos quais pessoas livres de amarras tradicionais aderem voluntariosamente, esses grupos
e práticas, conjuntamente com os que se auto-intitulam sem-religião, representam as mais frescas cores das forças de pluralização e diversificação do
campo religioso brasileiro.1
A outra tendência, conforme o argumento de Sanchis, é de homogeneização, uma série de traços comuns, suprainstitucionais, que perpassam o
universo mental e as práticas do campo. Sua primeira constatação é de que
há certo clima espiritualista: um universo povoado de espíritos – orixás,
1
Para percepções da diversidade do campo em seu conjunto, ver, p. ex., Landim (1990), Brandão e Pessoa (2005),
Teixeira e Menezes (2006).
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desencarnados, Nossas Senhoras, anjos, forças cósmicas, Espírito Santo etc.
– que interagem e influenciam na vida das pessoas. O que possibilita essa
dinâmica entre o mundo dos espíritos e o mundo material é uma intercomunicabilidade dos sistemas simbólicos constituída historicamente e geradora
de um “clima cultural” onde tudo é possível em termos de religião. Gera-se,
assim, a possibilidade de uma pessoa experimentar a comunicação com o
mundo do além com base em códigos ao mesmo tempo kardecistas e católicos ou mesmo pentecostais, sem a constatação necessária da distância ou
da incompatibilidade doutrinária de tais vertentes. O processo de formação
das possibilidades desses fluxos de sentido deve, como se verá, ser pensado
enquanto duração.
Uma segunda característica é a crescente relativização das certezas
no que tange às crenças religiosas. Em meio ao bombardeio da oferta e
circulação de bens simbólico-religiosos no campo e a um concomitante processo de destradicionalização,2 que abalam as outrora firmes e rígidas estruturas de pertença dos sistemas religiosos tradicionais – e se contabilize aí
também a facilidade do acesso à informação no mundo globalizado e
midiático, bem como o crescimento do nível de escolarização –, possibilitase ao fiel a experiência de novos conteúdos religiosos, o acesso a novos
sistemas de crença, que podem tanto fazer perceber a religião de pertença
tradicional como apenas mais uma dentre as demais, como também, e mais
provavelmente, abrir um leque de ressignificações e de trocas simbólicas
impulsionadas pelas experiências da vida cotidiana. Cria-se, assim, um contexto propenso a emoções cambiantes e atitudes subjetivas no que se refere
à religião e à disposição para com as relações sociais.
A idéia de destradicionalização leva, por sua vez, à discussão das
dinâmicas da modernização no Brasil e à constatação de um outro traço
do campo: a sobreposição de paradigmas pós-modernos, modernos e prémodernos. Ao mesmo tempo herdando e dialogando com a modernidade
européia, desenvolveu-se no Brasil uma modernização particular não
excludente dos padrões mágicos de crenças ou das relações sociais hierárquicas pré-modernas e, ao mesmo tempo, aberta aos rearranjos da pósmodernidade. Disso decorre, conforme Sanchis (1998), que no Brasil o
sagrado cristão (religião) e o segredo pagão (magia) convivam com certo
equilíbrio.
Essa homogeneização do campo leva por fim a pertenças institucionais relativamente frouxas. É comum tanto o trânsito religioso quanto as
pertenças duplas, os cruzamentos, as porosidades, os hibridismos. Uma
pessoa pode, assim, ser adepta praticante da Seicho-no-iê e da Igreja Católica sem maiores contradições e ainda com a possibilidade de, por exemplo,
2
Veja o argumento de Pierucci (2006) acerca do processo individualizante gerado pelas religiões universalistas em
“Religião como solvente – uma aula”.
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encontrar um ambiente frutífero e híbrido entre ambas as tradições em práticas como as do culto aos antepassados e das missas de sétimo dia.
Por fim, Sanchis (1998) sublinha, como que em conclusão, a persistência de um universo tradicional de identidades porosas no campo religioso brasileiro:
Entre os três ‘momentos’ da modernidade, um, sociogeneticamente fundado, e constantemente confirmado no decorrer da história do Brasil, é dotado – por enquanto e
apesar da multiplicação de fatores contrários – de especial permanência. Uma prémodernidade duradoura e constantemente reinvestida dotou assim o Brasil de um
habitus (história feita estrutura) de porosidade das identidades (p. 23).
Sanchis vale-se assim, além da noção de campo religioso, de outra
noção que encontramos também em Bourdieu (1978, 1990, 2007), a de
habitus. Passa-se, assim, por um momento a tais idéias (OLIVEIRA, 2003).
A idéia de campo remete à existência de mundos relativamente autônomos em sociedades diferenciadas, onde se originam acontecimentos entendidos como séries causais independentes, ligados a diferentes esferas de
necessidades. Trata-se de subespaços sociais com jogos que têm alvos sociais particulares, com interesses que podem ser desinteressantes ao mundo
exterior. No interior deles há, porém, lutas para a definição do jogo e dos
trunfos para dominá-lo. Pode-se, assim, falar em um campo jurídico, um
campo artístico ou um campo religioso, por exemplo.
O campo religioso é, nesse sentido, aquele em que os bens religiosos
estão em jogo, havendo nele lutas pelas maneiras de desempenhar os papéis
determinados no próprio jogo. Nele se manipulam visões de mundo na elaboração de estruturas de percepção do mundo, palavras, princípios de construção da realidade. A religião tem, nessa perspectiva, um caráter de linguagem. É um sistema simbólico de comunicação e de pensamento.
Como subespaço social de produção e circulação de bens simbólicoreligiosos, o campo religioso está assim sujeito a regras específicas que o
configuram nas práticas. Ele é o conjunto das relações que os agentes religiosos (que Bourdieu chama também de especialistas da religião – sacerdotes, profetas e magos) mantêm entre si no atendimento à demanda dos leigos e à produção de sentido religioso para a existência de um grupo.
Em cada campo acontece a formação histórica do habitus, que é, para
Bourdieu, um sistema de disposições adquiridas para a prática, o fundamento de condutas regulares e, logo, da regularidade das condutas. Não se
origina, porém, em uma regra ou lei explícita, mas obedece ao confronto
improvisado, a uma lógica prática, como produto de histórias individuais e
coletivas. Assim, como sentido do jogo, o habitus é o próprio jogo social
incorporado, transformado em natureza – a história feita estrutura, como
disse Sanchis.
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Nessa ótica, para reconstruir as práticas, é preciso reconstruir o capital de esquemas informacionais que permite produzir pensamentos e práticas sensatas e regradas, sem a intenção de sensatez e sem a obediência
consciente a regras explícitas. É preciso compreender um senso prático que
joga o jogo de determinado campo.
Em se falando nas especificidades do campo religioso brasileiro, podese, então, perguntar pelos processos de formação histórica do próprio campo e de seus habitus religiosos. Abrem-se assim possibilidades para pensar
o intercurso entre a noção de campo religioso e o fazer de uma história do
tempo presente no Brasil. Ou seja, de colocar sob o espectro da análise
histórica o fenômeno religioso atual como algo que tem uma autonomia
relativa, um subespaço sociocultural que possui sua lógica própria, sua
historicidade e que não pode ser reduzido a fenômenos econômicos ou políticos.
Na conclusão de seu estudo, Sanchis (1998) indica estimulantes caminhos de pesquisa nesse sentido:
A modernidade contemporânea privilegia, sem dúvida, o emergente, o atual, o
happening, a experiência do momento. Ora, o modelo que se depreende da análise
que acabamos de fazer [sobre as tendências de heterogeneidade e homogeneidade no
campo religioso brasileiro], é também o de um espaço atravessado por fluxos que
mergulham em suas nascentes nos montantes da história. Fala-se aqui em ‘identidade’, em filiação espiritual. Encontramos apelo semelhante no Santo Daime, nos
carismáticos católicos, nas diversas correntes do Movimento Negro, como no próprio
Candomblé – paradoxalmente, até na Nova Era: todos procuram a fidelidade aos ‘ancestrais’ e o reencontro das ‘raízes’. Bem sabemos que estas fidelidades transhistóricas
nunca se constituem em simples fidelidades, que as raízes podem ser ‘inventadas’. A
memória coletiva é seletiva, e também o é a ‘tradição’. Mas é notável ver reemergir
do mundo moderno a ânsia de se sentir inserido num filão enobrecido pelo seu ‘tempo
longo’, a sua ‘longa duração’. Afinal se a característica mais definidora do fenômeno
religioso pode ser o fato dele constituir uma ‘tradição’, cuja referência constrói o ser
do fiel que nela se insere... A presença ativa de remanências, a metamorfose de antigas certezas também faz parte – e é condição – de certeira projeção para o futuro.
Como ao contrário pode embasar uma volta ao fechamento, à exclusividade e à exclusão que lhe é correlativa. Tal dialética revela sem dúvida uma problemática contemporânea fundamental, quem sabe a problemática essencial do momento: está em jogo
no mundo um novo processo de definição e gerenciamento das identidades (p. 24)
[grifo no original].
Apresentando sua percepção do campo religioso brasileiro, Sanchis
(1998) aponta assim também algumas questões centrais ao debate contemporâneo no ambiente da história do tempo presente, como abordadas, por
exemplo, por François Bédarida (2006), René Rémond (2006), Henry Rousso
(2000) e Michael Pollak (1989, 1992), a saber, questões relativas ao passado como tempo reencontrado e reconstruído no presente e às elaborações
de memórias e identidades em meio a processos sociais e políticos. Os te-
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mas que serão abordados nos tópicos seguintes gravitam ao redor dessas
questões.
2A
PESQUISA ATUAL EM HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE
Não se pretende justificar a existência ou argumentar a legitimidade
de um campo de pesquisa em história do tempo presente, algo que se crê
estar já bastante sedimentado nos meios acadêmicos. É suficientemente reconhecida nos meios acadêmicos brasileiros a importância, por exemplo,
da atuação do CPDOC, Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. Também do Laboratório de Estudos do Tempo Presente, da UFRJ, e do Núcleo de Estudos
em História Oral, da USP, para ficar entre os mais conhecidos.3
Cronologicamente, ao que parece, a primeira iniciativa de pesquisa
na área adveio da Alemanha, pela atuação do Institut für Zeitgeschichte de
Munique, fundado em 1949. Todavia, a influência mais forte no Brasil tem
sido do francês Institut d’histoire du temps présent, o IHTP, que iniciou
suas atividades em 1978, sob a direção de François Bédarrida.4 Nesses dois
casos, a história do tempo presente teve seu início marcado pelo envolvimento dos pesquisadores com o contexto/tema da II Guerra Mundial, suas
políticas, suas memórias (D’ALMEIDA, 2006, p. 3-4).
O traço mais característico da prática da história do tempo presente é
a unidade temporal entre o pesquisador e seu objeto de estudo. O historiador, além de ser contemporâneo dos eventos que estuda, geralmente coabita
fisicamente o espaço com suas testemunhas. Como disse Pieter Lagrou
(2000), a história do tempo presente é para as ciências históricas o que é a
observação participante para a Antropologia. É impossível separar o observador dos observados, uma vez que o próprio historiador é um dos sobreviventes.
Ainda que uma grande diversificação de temas, problemas e abordagens possa ser percebida nos esforços de pesquisa na área, é possível, mesmo assim, argumentar um certo “princípio de unidade”, como sustentou
René Rémond (2006, p. 206). Primeiramente, a história do tempo presente
é uma história da duração, não do instante, o que permite problematizar
historicamente as pesquisas e as distinguir de trabalhos jornalísticos, por
exemplo. É, além disso, um tipo de prática que deve estar aberta a mudanças, à acolhida de novos temas e de novas fontes, a fim de poder dar conta
da novidade permanente e da dinâmica de seu objeto. E, last but not least, a
história do tempo presente chama a atenção para a importância da contin3
Veja os sites: <www.cpdoc.fgv.br>; <www.tempopresente.org>; e <www.fflch.usp.br/dh/neho>.
4
Veja os sites: <www.ifz-muenchen.de> e <www.ihtp.cnrs.fr>.
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gência, do fato, da surpresa, afastando-se do tipo de historiografia que relata o passado com base em uma racionalidade a ele estranha.
Daí uma outra característica, a de um interesse bem marcado por questões que apresentem alguma relevância ou mesmo premência histórica para o
pesquisador e sua sociedade contemporânea. Em termos mais precisos, a história do tempo presente tem sido praticada freqüentemente em função de
momentos de crise, o que traz conseqüências para o próprio entendimento do
que seja o presente e assim também para o critério utilizado na definição do
recorte temporal. Há mesmo quem sustente que o recorte temporal da história
do tempo presente começa com a última catástrofe ou, ao menos, com a última grande ruptura (LAGROU, 2000). Tal foi o caso acima mencionado da
produção sobre a II Guerra Mundial para os primeiros historiadores do tempo
presente da Europa ou, num período ainda mais contemporâneo, dos estudos
sobre a queda do muro de Berlim. No Brasil, endossando essa tendência, tem
havido um freqüente interesse por questões relativas à Era Vargas e também
ao período da ditadura militar, por exemplo.
De modo alternativo, Henry Rousso (2000), que sucedeu Bédarida
na direção do IHTP, propõe um caminho de pesquisa que, ao invés de se
fundar sobre a história concreta (II Guerra, ditadura, século XX), assuma
um critério que repouse sobre a temporalidade, isto é, que considere a seqüência concomitantemente singular e universal da duração de uma vida
humana. Seria, nesse sentido, um critério em constante redefinição.
De qualquer forma, é importante perceber a proposta de que o historiador do tempo presente cumpra em seu labor um papel cívico, tenha
uma “função social”. A agenda da pesquisa, nesse sentido, não deve ser
definida internamente ao meio acadêmico, mas externamente a ele e com o
propósito não apenas de compreender o real, mas de transformá-lo. Para
Rousso (2000), a postura do intelectual que “de fora” avalia tudo é, assim,
substituída por uma interação no debate público em meio a outras vozes e
atores, para o qual o historiador pode contribuir com um saber limitado,
porém (com)provável.
No tocante ao tema específico da religião e das dinâmicas do campo
religioso brasileiro, apresentam-se problemas de outra ordem. É difícil, por
exemplo, imaginar no Brasil uma questão histórico-religiosa atual tão
impactante quanto eventos como a II Guerra Mundial ou a própria ditadura
militar brasileira. Esse fato, todavia, não implica a impossibilidade da pesquisa, mas de outra forma pode consistir em um fator criativo e instigador de
novas problematizações. Assim, por exemplo, questões de ordem religiosa
podem ser problematizadas tanto no período ditatorial militar brasileiro
quanto na Era Vargas. De outro modo, eventos mais especificamente religiosos (como, por exemplo, a cisão interna de um determinado grupo por
motivos dogmáticos), mesmo que não sejam tão relevantes em termos macrosociológicos, ou seja, que não tenham um peso significativo para o conjun-
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to da sociedade brasileira atual, podem também ser problematizados na perspectiva de uma história do tempo presente. Nessa ótica, em um outro caso,
a “relevância” do tema a ser problematizado será definida na própria relação do pesquisador, seja ele religioso ou não, com as testemunhas e o evento a ser investigado no campo religioso definido.
3 CONSIDERAÇÕES E CAMINHOS PARA UMA HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE DO CAMPO
RELIGIOSO BRASILEIRO
3.1 DURAÇÃO,
CONJUNTURA E FORMAÇÃO HISTÓRICA DO CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO
Tratar do campo religioso brasileiro como nos termos apontados na
primeira parte deste artigo é reconhecer a existência de um espaço de produção e circulação de bens simbólico-religiosos com uma autonomia relativa em relação aos demais espaços sociais nos quais os bens que circulam
são de outra natureza (p.ex., econômicos ou artísticos). Uma primeira questão que, então, se coloca é relativa ao próprio processo de surgimento desse
espaço, sua constituição, sua formação histórica. Para tanto, é necessária
uma perspectiva de processos de longa duração.
Mesmo que, como disse Bédarida (2006, p. 221), a lei que rege a
história do tempo presente seja a lei da renovação, é ponto comum que o
presente é conhecido pelo passado e o passado pelo presente. Nesse sentido, crê-se que a proposta de pensar em perspectiva de tempo longo continua sendo profícua para o estudo das religiões (DUPONT, 1976), também
as do presente.5 Falar de religião é falar de tradição. Poder-se-ia, nessa ótica, por exemplo, enquadrar o campo religioso brasileiro no campo de batalhas e de forças de longuíssima duração que é o cristianismo, enquanto
religião que proporciona o material simbólico elementar e aglutinador da
maioria das tradições religiosas locais. Importa, por exemplo, considerar
além das práticas, crenças e mitos, também as idéias sistematizadas em
forma de dogma, ou seja, as teologias em questão.
No caso específico de uma história do campo religioso brasileiro no
presente, a perspectiva de longa duração implica computar os resultados de
um processo que, entre os períodos colonial e imperial, ocasionou a formação de um sistema de crenças, práticas e símbolos que constitui como que
um repertório básico do campo e em perceber tanto suas recriações
conjunturais na atualidade quanto as negociações que com elas estabelecem representantes de tradições mais ou menos externas, como o protestantismo e o budismo, por exemplo.
5
Trata-se aqui, naturalmente, de pensar a longa duração como instrumento analítico e não como fator ativo de construção identitária, como sugere acima Sanchis, perspectiva que será analisada na etapa seguinte do argumento.
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Deve-se considerar, nessa ótica, primeiramente, a hibridação e os fluxos de sentido entre as religiões dos portugueses, dos indígenas e dos africanos. Trata-se do resultado, por um lado, da ação relativamente frágil da
religião católica oficial. A presença escassa de sacerdotes no vasto território
brasileiro e o regime de padroado que subjugava a Igreja à Coroa de certa
forma engessou a atividade do catolicismo oficial, deixando grande liberdade a inovadoras recriações locais e grupais de práticas e crenças religiosas. Por outro lado, e em complementaridade, explodia uma abundância de
práticas religiosas: o catolicismo ibérico medieval, repleto de heranças pagãs; a religiosidade doméstica nas residências e capelas privadas, muitas
vezes distante do controle dos especialistas; os muitos cultos aos santos; os
ímpetos de mortificação corporal na busca da santidade; uma curiosa intimidade com o sobrenatural, que levava, por exemplo, a castigar imagens de
santos quando os pedidos feitos quedavam frustrados, ou a recompensá-las
quando eram atendidos; os calundus, práticas negras de adivinhações, possessões, sortilégios, curas e festas, às quais recorriam não apenas os escravos, mas também muitos colonos e por vezes os próprios clérigos católicos;
as santidades indígenas, misto de catolicismo e de crenças que antecediam
a chegada dos portugueses, como a conhecida Santidade de Jaguaripe
(VAINFAS, 1995; MOTT, 1998; VAINFAS e SOUZA, 2000; COSTIGAN,
2005).
A essa primeira etapa, que se estendeu entre os séculos XVI e XVIII,
deve-se, então, acrescer a chegada massiva, a partir do começo do século
XIX, pelas vias de migração, missão ou simples trânsito de pessoas, de
novos atores e novas crenças religiosas. Primeiramente os protestantes, começando pelos luteranos (1824), que foram seguidos pelos metodistas
(1836), congregacionais (1855), presbiterianos (1859), batistas (1881) e
episcopais (1898) (MENDONÇA e VELASQUES FILHO, 1990, p. 2746). Também os novos tipos de catolicismo que nesse período passaram a
ser conhecidos no território, como os dos imigrantes italianos e das novas
ordens religiosas chegadas no ímpeto da romanização (HOORNAERT, 1992,
p. 310-312). Depois, a entrada em cena do espiritismo kardecista, que encontrou no Brasil um terreno frutífero para a crença na interação entre o
mundo dos espíritos e o mundo material, contribuindo de modo fundamental para a formação do repertório religioso nacional (VELHO, 1994, p. 66).
Com a presença dos orientais e suas diversas tradições fecha-se, então, o
ciclo de formação dessa espécie de grande caldeirão de práticas, crenças e
tradições que se apresentam como latentes possibilidades aos atores do campo
religioso brasileiro.
A análise de significativos fenômenos atuais do campo deve ter em
conta tais processos anteriores. A formação dos diversos pentecostalismos
e neopentecostalismos, por exemplo, coabita no universo protestante/evangélico, sem, todavia afastar-se in totum de códigos católicos e afro-brasilei-
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ros. Mesmo uma religião como a Seicho-no-iê, que deita suas raízes em
uma tradição tão antiga quanto o xintoísmo, partilha no Brasil de códigos
comuns, por exemplo, com o kardecismo e o catolicismo. Por outro lado, a
atração que exercem os novos movimentos religiosos deve-se também à
grande liberdade de escolha e de circulação de bens religiosos que se instaurou no Brasil em meio a todos esses processos.
Nessa sociogênese do campo, as trocas se complexificam e as religiões, ora mais ora menos “abertas”, tendem a se inter-relacionar partilhando do espaço simbólico religioso construído.6 Uma análise, diga-se,
presentista, que não perceba tais processos, pode correr o risco de mal compreender crenças e práticas profundamente enraizadas entre as populações,
obliterando sua importância ou seu significado.
Obviamente não é possível re-pensar ou re-escrever o todo da história religiosa do Brasil cada vez que se investiga um ou mais eventos da
história do tempo presente de seu campo religioso. E não é também disso
que se trata, mesmo porque, conforme se viu acima, importa partir primeiramente do evento contingente atual. O que se quer sublinhar é que tais
eventos contingentes habitam um espaço simbólico religioso que, é claro,
não surgiu no evento em si, mas sim que nele ressurgiu e nele é ressignificado
em meio às relações sociais e suas políticas. Na estrutura religiosa brasileira, criada e recriada nas práticas em um processo histórico de longa duração, habita a própria possibilidade da interação religiosa dos atores. O evento
religioso atual é, portanto, dependente dessa estrutura.
Uma saída teórica bem adequada ao ambiente das idéias de Bourdieu
seria a de pensar, com a ajuda de Marshall Sahlins (1990), a relação do
evento a ser estudado com essas estruturas de longa duração em termos de
conjuntura. Deve-se, nessa ótica, considerar os processos dinâmicos de trocas simbólicas tendo em conta uma estrutura da conjuntura. Nas palavras
de Sahlins (1990):
Uma ‘estrutura da conjuntura’ é nesse sentido um conjunto situacional de relações,
cristalizadas a partir das categorias culturais operantes e dos interesses dos atores ,(...)
está sujeita à dupla determinação estrutural de intenções baseadas em um esquema
cultural e das conseqüências involuntárias que surgem de sua recuperação em outros
projetos e esquemas (1990, p. 171).
(...) a ação simbólica é tanto comunicativa quanto conceitual: um fato social retomado
nos projetos e nas interpretações dos outros. Desse modo é que a ‘estrutura da conjuntura’ entra aqui: a sociologia de situação das categorias culturais com as motivações
6
José Bittencourt Filho (2003) chega a uma proposição semelhante quando sustenta a formação de uma “matriz
religiosa brasileira”: “Esta expressão deve ser apreendida em seu sentido lato, isto é, como algo que busca traduzir uma complexa interação de idéias e símbolos religiosos que se amalgamaram num decurso multissecular,
portanto, não se trata stricto sensu de uma categoria de definição, mas, de um objeto de estudo. Esse processo
multissecular teve, como desdobramento principal, a gestação de uma mentalidade religiosa média dos brasileiros, uma representação coletiva que ultrapassa mesmo a situação de classe em que se encontrem”. (p. 40-41).
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que oferece aos riscos de referência e às inovações de sentido. Uma prática antropológica total, contrastando com qualquer redução fenomenológica, não pode omitir que a
síntese exata do passado e do presente é relativa à ordem cultural, do modo como se
manifesta em uma estrutura da conjuntura específica (1990, p. 190).
Uma sociologia situacional dos significados entre estruturas e eventos. É isso o que propõe Sahlins. Para tanto, passado e presente imbricamse em uma estrutura da conjuntura. Nessa ótica, por exemplo, os comportamentos de voto de grupos pentecostais, considerados na dinâmica entre estrutura e evento, passado e presente, podem ganhar novos horizontes interpretativos, para além das simples contabilidades numéricas freqüentemente
produzidas nas ciências sociais. De outra forma, pode-se assim considerar
também a ascendência estadunidense por sobre o mundo evangélico brasileiro, de um modo geral, desde a gospel music até suas preferências morais,
como algo que tem uma duração que excede os acontecimentos conjunturais.
Nisso, é verdade, a história do tempo presente não se distingue dos demais
esforços de pesquisa histórica. Como disse Boas, “o olho que vê é o órgão
da tradição” (apud SAHLINS, 1990, p. 181). A questão central é, então, a
de pensar como grupos e indivíduos interagem, disputam e se apropriam no
presente desse repertório mais ou menos elástico e maleável de crenças e
práticas características do campo religioso brasileiro.
3.2 MEMÓRIAS
E IDENTIDADES SITUACIONAIS: AS DINÂMICAS DO CAMPO
Temas relativos às dinâmicas de memórias e identidades têm estado
constantemente na agenda de trabalhos em história do tempo presente e
podem também ser um topos interessante de estudos do campo religioso
brasileiro.
Nessa perspectiva, deve-se considerar primeiramente que na produção de crenças e práticas religiosas pela atualização e revisão de seus fundamentos estruturais estão também em movimento modos de representação
e compreensão individual e grupal, jogos e negociações de identidades e
memórias. As pessoas percebem-se nas memórias, nos discursos, nas práticas. Identidade é, nesse sentido, o “que o sujeito pretende ser, aos olhos dos
outros e a seus próprios olhos, eventualmente até o que ele se esforça para
se persuadir que ele é”, como disse Sanchis (1999, p. 62). Por isso, tanto os
diversos jogos de poder ao redor da manipulação de discursos e memórias,
quanto possíveis formas de apropriação e ressignificação dos mesmos podem estar na pauta de uma história como a que aqui pensamos.
As identidades e memórias em questão, nessa ótica, não são entendimentos perenes e sem história, mas têm seus processos de produção, seus
jogos de poder e suas contradições, que se fazem e se refazem pelas históri-
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JÚNIOR, Arnaldo Érico Huff. Campo religioso brasileiro e história do tempo presente
as contadas e re-contadas e pelo que é enunciado nas dispersões dos eventos
discursivos (p. ex. FOUCAULT, 2005). Nesse sentido, discursos, memórias e
identidades se entrelaçam de modo complexo nas práticas históricas.
A memória é já em si “um elemento constituinte do sentimento de
identidade” (POLLAK, 1992, p. 204). Memórias de grupos e indivíduos
são articuladas dinamicamente, nas condições do tempo presente e em meio
a interações sociais e históricas, pela construção e reconstrução de lembranças, no que se dá suporte a identidades individuais e coletivas. Todo o
processo é, assim, atravessado pela linguagem e pelo discurso. As pessoas
contam e recontam histórias sobre acontecimentos grupais, elaborando e
reelaborando mitos que, ao atuarem no caso da religião como meta-narrativas hierofânicas, tornam possível sua sociabilidade e embasam uma história comum (ver ELIADE, 1994). Nesse processo, os sujeitos religiosos,
lembrando o que querem, o que podem ou que lhes é permitido, numa construção seletiva da memória, vão elaborando sua identidade sempre em referência aos outros, a critérios de aceitabilidade e de credibilidade. Memórias
e identidades religiosas são, por isso, também disputadas em meio a conflitos sociais entre grupos políticos diversos (NEVES, 2000, p. 110-113;
APTER 2001, p. 11645-11646; POLLAK, 1992, p. 201-206; FÉLIX, 1998,
35-45).
O tema pode também ser trabalhado pensando, por exemplo, produções de memórias coletivas, definidas por Flamarion Cardoso (2005) como
(...) um conjunto de elementos estruturados que aparecem como recordações, socialmente partilhadas, de que disponha uma comunidade sobre sua própria trajetória no
tempo, construídas de modo a incluir não só aspectos selecionados, reinterpretados e
até inventados dessa trajetória como, também, uma apreciação moral ou juízo de valor sobre ela. Em ambos os níveis, tais ingredientes se modificam no tempo segundo
mudem as solicitações que, em diferentes situações histórico-sociais, façam ao passado as instâncias organizadoras da consciência social (p. 17).
A concepção abre espaço para a compreensão da memória coletiva
como estrutura, criada e re-criada nas práticas discursivas em conjunturas
dadas. A memória coletiva, assim entendida, tem sua dinamicidade nas práticas e, nessa interação, identidades sociais e também individuais são constituídas: “uma comunidade baseia sua legitimidade e sua identidade na recordação histórica”, como disse Philippe Joutard (1993, p. 526-527). A
memória, nesse caso, “se organiza em torno de um acontecimento fundador, os fatos anteriores ou posteriores sendo assimilados a este ou esquecidos; quando são memorizados, é por analogia, repetição e confirmação do
acontecimento fundador” (JOUTARD, 1993, p. 526-527).7 No caso religio7
Para uma diferenciação entre “formação” e “fundação”, vide Marilena Chauí (2004): “formação é a história
propriamente dita (...) fundação se refere a um momento passado imaginário, tido como instante originário que se
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so, o processo remete freqüentemente à esfera das narrativas míticohierofânicas e, portanto, se movimenta em um tempo muito longo: a contraparte de sua dinamicidade. A memória religiosa é, por isso, de outra ordem, é memória sagrada a embasar o todo da existência do ator religioso.
O outro lado desse processo mnemônico é o do esquecimento, a léthe
grega, o campo da obscuridade, do silêncio. A alethéia, a verdade, é, assim,
o oposto da lethe, ou seja, o que não está mais na obscuridade, no silêncio,
o que foi ativado pela memória. O que Jean-Pierre Vernant disse sobre os
gregos vale também aqui: “não há contradição entre o verdadeiro e o falso,
a verdade (alétheia) e o esquecimento (léthe) (...) mas entre esses dois pólos
se desenvolve uma zona intermediária, na qual alétheia se desloca progressivamente em direção a léthe, e assim reciprocamente” (apud FÉLIX, 1998,
p. 45; ver também POLLAK, 1989, p. 3-15). O esquecimento, então, tornase parte necessária da memória e, por conseguinte, da pesquisa.
Em termos de religião, o passado mítico das origens, o tempo
hierofânico, criado e recriado, age como modelar para as ações no presente
pela memória. É no presente que se busca o sentido de mitos e teologias.
Como disse François Dosse (2004), “a tradição só vale como tradicionalidade
na medida em que afeta o presente” (p. 179). A distância temporal, nesse
sentido, torna-se uma vantagem para a “apropriação das diversas
estratificações de sentido de acontecimentos passados transformados em
acontecimentos supersignificativos. Essa retomada reflexiva do acontecimento supersignificado está na base de uma construção das identidades fundadoras” (DOSSE, 2004, p. 179). Sendo assim, quando práticas contemporâneas encontram eco significativo nessa memória de um tempo primordial, estas passam também à sacralidade e podem mesmo, conforme o grau de
significação que se lhes imputa, ser incorporadas à memória e contadas dali
por diante como hierofanias (ELIADE, 1992, 1994).
O habitus que informa o senso prático de um determinado campo
religioso é ao mesmo tempo nutriente de e nutrido por memórias e identidades religiosas que ali são produzidas, entendidas como bens simbólicos em
circulação no campo. Cabe perguntar, assim, pelos processos históricos de
produção, reprodução e negociação dessas memórias e identidades religiosas. Também pelas formas de inculcação pedagógica do habitus. Pela
estruturação das instituições responsáveis pela manutenção das regras do
jogo e pela formação educacional tanto do fiel comum como do especialista
religioso. Enfim, pela historicidade das diversas formas sociais que permitem a produção e a circulação de bens simbólico-religiosos, também as identidades e memórias.
mantém vivo e presente no curso do tempo, isto é, a fundação visa a algo tido como perene (quase eterno) que
traveja e sustenta o curso temporal e lhe dá sentido” (p. 9).
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Em relação ao candomblé, por exemplo, pode-se perguntar como
memórias de um tempo mítico africano, original e puro, são construídas no
presente a fim de produzir ao mesmo tempo identidade e legitimidade, tanto interna quanto externamente ao grupo. De outra forma, pode-se também
indagar pelos processos pelos quais grupos protestantes tendem a construir
memórias dos primeiros missionários ou fundadores como grandes e inabaláveis exemplos de fé, os quais tipificam de alguma forma personagens
como Lutero e Calvino e remetem a uma linha espiritual que segue direto
ao Cristo, podendo formar bases para fundamentalismos diversos. Ainda de
outra forma, pode-se investigar os modos pelos quais no contexto ditatorial
a esquerda religiosa revolucionária, ancorada na Teologia da Libertação,
constrói a memória de seus mártires, hierofanizando-os e projetando-os para
o futuro. E considere-se que todas essas memórias têm sua contrapartida na
forma dos esquecimentos; ou seja, dá-se que nas trajetórias reconstruídas e
nas identidades erigidas por motivos diversos normalmente de ordem político-religiosa, histórias, fatos, pessoas são deixadas de lado em favor de
outras histórias, fatos e pessoas. Em todos os casos, como disse Rousso
(2000), “o importante não é mais o que aconteceu, mas o que foi retido e
sobre o que se pode agir”.8
No caso brasileiro, deve-se levar sempre em consideração como um
arcabouço geral no nível político-religioso o grande peso da Igreja Católica
enquanto instituição, contra ou a favor da qual as demais religiões precisam
se posicionar, gerando novos discursos, memórias e identidades.
Um campo profícuo e emergente para tais estudos, é claro, é o da
história com base em fontes orais. Cita-se Mercedes Vilanova (1998, p. 34),
a favor de tal prática: “mucho de lo que ocurre se produce en nuestro interior lo que hace indispensable el estudio de la memoria de las personas individualizadas, de sus sentimientos y de las valoraciones de su propia historia
a través de los llamados relatos de vida en los que la construcción del tiempo
ni es cronológica, ni lineal”. Trata-se de um esforço para acessar o “ponto
de vista dos nativos”, como disse Geertz (2004, p. 88).
O processo implica tratar o testemunho oral como documento histórico que possibilita pensar os modos de conduta, as práticas e rituais, o
escondido, o subjacente, a transformação do simbólico, dos sentidos
(MEYER, 2000, p. 79, 81). As próprias inverdades ou distorções nos relatos tornam-se, então, objeto de análise da construção de memórias e não
obstáculos à pesquisa. As narrativas biográficas, as palavras utilizadas, os
discursos sobre o passado, os momentos pregnantes, a possibilidade de tomar ao mesmo tempo os fatos e suas representações, a percepção das
polifonias existentes e a própria estrutura da conjuntura da entrevista perfa8
“En ce sens, le débat contemporain entre histoire et mémoire pourrait se résumer en une formule : l’important
n’est plus ce qui a été mais ce qu’il faut retenir et ce sur quoi on peut agir.”
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zem uma multiplicidade de possibilidades interpretativas no contexto das fontes
orais (FERREIRA, 1994, p. 9-12; MEYER, 2000, p. 94; ALBERTI, 2005).
Se se pensar, então, o dito “retorno do político” aos meios historiográficos e a necessidade premente de tratar dos processos de tomadas de
decisão subjetivas, a pesquisa com fontes orais apresenta-se como alternativa profícua, dado que arquivos escritos não deixam transparecer tais dimensões tão claramente (FERREIRA, 1994, p. 7). Como disse Aspásia
Camargo (1994), trata-se da:
(...) possibilidade de entender o ator por dentro, no cerne da sua cultura política, e uma
cultura política em movimento. Este é o ponto central. A meu ver o método ganha
muito quando se sabe entender a natureza dos silêncios que se criam, das incoerências, e sobretudo quando trabalha em um campo e com um objeto de estudo que se
presta à potencialização de duas qualidades básicas: a sincronização das informações
e a condensação (p. 83-84).
Todavia, como aponta Lagrou (2000), a pesquisa em história do tempo
presente encontra também um grande desafio no campo da prática convencional de análise de documentos escritos. De fato a quantidade de fontes convencionais à disposição do pesquisador representa um desafio metodológico,
tanto pela dificuldade de lidar com tamanho volume de material, quanto pela
necessidade de encontrar um caminho de utilização desse material que seja
adequado às necessidades da história do tempo presente.
3.3 RELIGIÃO,
SECULARIZAÇÃO E POLÍTICA: UMA OUTRA PERCEPÇÃO DE CONJUNTO
Questões relativas à dimensão política têm, na verdade, constituído
um campo privilegiado dos estudos de história do tempo presente e abrem
ainda outra percepção de possibilidades de pesquisa em história e religião.
Todavia, não se trata mais, hoje, de efetuar aquela história personalista de
grandes vultos políticos, mas do fazer de uma história renovada tanto pela
análise das estruturas sociais, econômicas e mentais que perpassam as relações políticas concebidas lato sensu, quanto por uma percepção pós-estruturalista das práticas de atores sociais entre estruturas e eventos, como desenvolvida por Bourdieu e Sahlins.
Nessa ótica, no que tange às relações entre religião e política no Brasil, uma primeira consideração a ser feita é a de que no curso da separação
formal entre Igreja e Estado, na entrada do período republicano, a religião
não foi simplesmente relegada à esfera privada como aconteceu em processos de modernização na Europa. Como bem sublinhou Paula Montero (2006),
com base em Habermas, a diferença que aqui deve ser feita não é entre
esfera estatal e Igreja, mas sim entre uma esfera pública do Estado, uma
esfera privada da sociedade e uma esfera burguesa ou sociedade civil.
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Tal diferenciação implica considerar o tema da modernização, e por
conseguinte da secularização, de modo alternativo à aplicação simplista de
teses weberianas que descambam na crença no atraso brasileiro em relação
a países desenvolvidos.9 Ela exige que em lugar de um processo de secularização linear e universal, se busque identificar as configurações específicas que as formas religiosas assumem em cada sociedade em função de
seus modos particulares de produzir historicamente a diferenciação e a articulação das esferas estatal, privada e civil.
Nessa ótica, Montero (2006) argumenta que a separação entre Igreja e
Estado no Brasil, ao invés de eliminar o traço religioso do social por sua
superação ou de relegá-lo à esfera privada, alocou a religião na sociedade
civil. A religião institucional, assim, deixou em princípio de influir diretamente no Estado mas continuou coisa pública, espaço amplo e frutífero de
produção e circulação de bens simbólico-religiosos e de habitus para a vida
política e civil. Nesse sentido, a emergência de Estados seculares não tem
como decorrência necessária a privatização da religião. Antes disso, o direito
à liberdade religiosa privada é condição moderna que interessa às próprias
religiões. É o caso do pluralismo religioso brasileiro, que se constituiu historicamente em nome do direito à liberdade de consciência e privacidade. Assim, por exemplo, foi interessante à Igreja Católica desvencilhar-se do Estado e do sistema de padroado para ganhar espaço junto à sociedade civil.
Fizeram também parte desse embate liberais, anarquistas, protestantes, espíritas e afro-brasileiros.
Mais especificamente, Montero (2006) sustenta o enquadramento,
no caso brasileiro, do que era tido como magia naquilo que se convencionava
chamar de religião:
(...) no Brasil o processo de diferenciação das esferas sociais não implicou a erradicação
da magia, mas uma forma particular de enquadramento daquilo que era percebido
como “magia” naquilo que se convencionava chamar de “religião”, cujo modelo de
referência era o cristianismo. (...) tal processo não redundou na retirada das religiões
do espaço público: ao contrário, resultou na produção de novas formas religiosas,
com expressão pública variável conforme o contexto e as suas formas específicas de
organização institucional. (...) o compromisso normativo resultante do movimento de
produção de novas institucionalidades religiosas – em meio a um conflituoso debate
público em torno do que poderia ser ou não compreendido como “mágico” e dos seus
efeitos sobre a ordem social – nunca levou a uma desmistificação da experiência
religiosa (seja nos termos do tipo ideal weberiano da ética protestante, seja nos termos
práticos e políticos da Igreja Católica) capaz de promover, de maneira generalizada,
formas religiosas subjetivadas (p. 50).
Conforme a percepção da autora, no processo de constituição do Estado republicano brasileiro e das leis penais e sanitárias que visavam disci9
Ver, p. ex., a análise de Jessé Souza (1999).
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plinar o espaço público, deve-se perceber, por exemplo, o combate às feitiçarias e curandeirismos como manifestação do estabelecimento de uma ordem pública moderna. Nesse contexto, ao passo que a liberdade religiosa
estava constitucionalmente estabelecida, era também preciso diferenciar o
que era religião do que era magia, processos classificatórios ao mesmo tempo simbólicos e políticos. Montero (2006) demonstra, em seu argumento,
valendo-se de pesquisas de Emerson Giumbelli, Lísias Negrão e Yvonne
Maggie, as estratégias pelas quais, na primeira metade do século XX, o
espiritismo kardecista e a umbanda se constituíram em religiões tendo como
referência a Igreja Católica, enquanto práticas negras como as do candomblé eram associadas ao crime e às drogas. Evidencia também que tal processo se deu no contexto da ação do Estado na construção de uma ordem jurídica “negociada a partir dos saberes acumulados pelos ‘homens da lei’ e
pelos médicos” (MONTERO, 2006, p. 54), informados por matrizes tanto
científicas quanto religiosas, que legitimaram determinadas formas de religião em detrimento de outras: “as particularidades da formação do Estado e
da sociedade civil no Brasil construíram o pluralismo religioso a partir da
repressão médico-legal a práticas percebidas como mágicas, ameaçadoras
da moralidade pública” (p. 56). Nesse processo, configuraram-se “estilos”
de cultos derivados de determinadas combinações dos códigos culturais
disponíveis.
Um exemplo instigante dessa interação dinâmica entre religião, Estado, sociedade civil e política pode ser encontrado no estudo apresentado
pelos antropólogos Marcelo Tadvald e Daniel de Bem (2007) acerca do
vereador petista porto-alegrense Aldacir Oliboni. Em seu segundo mandato
na vereança de Porto Alegre, Oliboni, líder comunitário e ex-seminarista,
protagoniza há vinte oito anos o papel de Jesus Cristo na procissão de páscoa
do Morro da Cruz, na capital gaúcha, à qual concorrem milhares de pessoas
anualmente. Em Oliboni, fica bastante clara a imbricação entre o campo
político e o campo religioso, dada a dificuldade de se dissociar o vereador
do ator que representa Jesus Cristo, primeiramente em função de sua própria imagem.
[Imagens disponíveis em: <http://www.camarapoa.rs.gov.br/frames/veread/pages/
oliboni.htm> e <http://www.oliboni.com/index.php>. Acesso em 14/06/2008.]
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Conforme a análise dos autores,
A apropriação destes símbolos religiosos de fato não é incólume. Pierre Bourdieu
demonstra como a própria celebração religiosa pode fazer uso da eficácia simbólica
de símbolos religiosos com o intuito de reforçar a sua própria eficácia simbólica e a
crença coletiva nesta eficácia (BOURDIEU, 2001) [referência ao texto A economia
das trocas simbólicas]. Parece que o campo político se apropria da mesma maneira
destes símbolos religiosos e o faz com os mesmos fins. No momento em que o candidato Oliboni está se apropriando desta discursividade religiosa, seja de maneira consciente ou não, ele está acionando uma série de símbolos que fazem sentido para certa
comunidade e que, por conseguinte, acabam por agregar à sua imagem (talvez depreciada) de político uma positivação importante (TADVALD e BEM, 2007, p. 291).
A imbricação do religioso e do político, em meio às dinâmicas da
esfera civil e se estendendo às esferas estatal e privada, pode bem ser percebida em diversas áreas do campo religioso brasileiro. O fortalecimento de
bancadas evangélicas, por exemplo, no nível municipal, estadual e federal é
outro fenômeno que tem sido bem estudado. Essa área de pesquisa, novamente freqüentada com maior regularidade por cientistas sociais, permanece aberta às investigações em perspectiva histórica, colocando-se como espaço frutífero de possibilidades de abordagens temáticas e teóricometodológicas.
Talvez um interessante desafio à história do tempo presente do campo religioso seja justamente a possibilidade de encontrar e dar espaço mais
aos atores nas conjunturas do que às macro-estruturas, buscando perceber
como se reflete nas histórias de indivíduos e grupos essa relação imbricada
entre a religião e as esferas pública, privada e civil. Uma pergunta que poderia ser feita, por exemplo: quais horizontes de expectativa a religião tem
projetado no mundo supostamente laico da política estatal? De fato a eminência da presença religiosa no cenário político atual do Brasil faz do tema
algo cuja relevância será dificilmente negada.
3.4 ÉTICA,
RELIGIÃO E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE
Uma última questão que gostaria de pontuar é relativa ao papel do
historiador do tempo presente e da premência de aspectos éticos e políticos
diante do tema da religião na história.
Questões éticas parecem de fato saltar à vista do historiador, de modo
especial quando o propósito é tratar do presente. Isso se deve basicamente a
duas condições: de um lado, o fato de o “objeto” estar possivelmente vivo e
poder interagir com o “sujeito cognoscente”; de outro, a já referida percepção clara da auto-implicação cultural e social do pesquisador possibilitada
pela proximidade temporal do “objeto”. Limitar-se-á aqui apenas a tecer
alguns breves comentários.
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Para começar, cita-se Bédarida (2006):
(...) se o historiador deve manter um distanciamento crítico em relação a seu objeto de
estudo e proceder com discernimento e rigor, nem por isso ele consegue ser neutro. É
mais que uma esquiva: uma renúncia. Pois nele existe apenas uma consciência e somente uma: sua consciência de historiador é sua consciência de homem (p. 227).
Mais que as outras histórias, talvez, a história do tempo presente coloca
a questão do papel fundamental das escolhas do historiador e de sua condição política. Há uma exigência ética na base de seu trabalho, a qual se manifesta mais na busca que no conteúdo, diz Bédarida (2006). Fazer história
do tempo presente começa pela definição de um problema de pesquisa que
tem implicações existenciais para o pesquisador, de modo mais agudo que
na pesquisa de épocas mais distantes. Ou seja, há uma questão de sentido
que se impõe também ao historiador diante de seu presente, seu passado e
seu futuro.
Por outro lado, a questão do presente e de uma história do tempo
presente torna-se eminentemente política não apenas pelas escolhas do historiador, mas também porque “sujeito” e “objetos” da pesquisa habitam o
mesmo tempo. Em estudos de história com base em fontes orais, por exemplo, fica sempre um quê de incômodo com a sensação de que os entrevistados poderão não gostar, não concordar ou mesmo se ofender com as conclusões do pesquisador.
Além disso, questões de veracidade de fatos e narrativas se avultam
com grande facilidade dada a eminência do presente, o que coloca o historiador constantemente diante da desconfortável posição de “definir” o que é
e o que não é informação correta ou verossímil. A impressão é de que, ainda
que de modo menos contundente, a velha questão de Ranke torna a se impor: “wie es eigentlich gewesen”. Mesmo que não haja uma unanimidade
teórico-metodológica entre os praticantes da história do tempo presente,
uma saída freqüente, e um tanto esquiva, diante desse problema tem sido a
de privilegiar abordagens relativas às reconstruções da memória, sem
adentrar mais propriamente no aspecto fatual.
De outra forma, para uma história da religião no tempo presente,
colocam-se questões ainda mais delicadas. Se se vai, por exemplo,
“desconstruir” uma memória ortodoxa, o que colocar em seu lugar, outra
memória religiosa ou uma memória secularizada? Questões de ordem ideológica e filosófica impõem-se, então, ao historiador, ainda pouco acostumado a lidar com seus pressupostos e a colocá-los “em cima da mesa” em pé
de igualdade com os demais pressupostos filosóficos e ideológicos em circulação no meio religioso e político.
Crê-se que pode ajudar então a concepção de Jörn Rüsen acerca da
condição de uma história percebida como “constituição genética de sentido”:
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O tipo genético de constituição narrativa de sentido aparece nas formas e topoi historiográficos que põem o momento da mudança temporal no centro do trabalho de interpretação histórica. Tempo, como mudança, adquire uma qualidade positiva, torna-se
qualidade portadora de sentido. De ameaça a ser reelaborada historicamente, o tempo
passa a ser percebido como qualidade das formas da vida humana, como chance de
superar os padrões de qualidade de vida alcançados, como abertura de perspectivas de
futuro, que vão qualitativamente além do horizonte do que se obteve até o momento.
A inquietude do tempo não é sepultada na eterna profundidade de uma determinada
forma de vida a ser mantida, nem escamoteada na validade supratemporal de sistemas
de regras e princípios do agir, nem tampouco diluída na negação abstrata dos
ordenamentos da vida até hoje acumulados. Ela é disposta como motor do ganho da
vida, estilizada historiograficamente como grandeza instituidora de formas de vida
capazes de consenso, ordenada topicamente à vida prática como impulso de novas
mudanças (RÜSEN, 2007, p. 58).
O debate leva a um ambiente de ar rarefeito, não tão caro a pesquisadores que têm buscado uma aproximação empírica pelas vias de uma ciência mais dura. Tais questões, todavia, devem ser enfrentadas e se pode dizer
que a boa vontade em relação a elas tem aumentado.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
São essas algumas idéias que se gostaria de trazer à baila, sem grande
novidade, posto que todas já trabalhadas por autores credenciados, porém
com outras finalidades. Arrisca-se dizer que tais idéias não valem, de um
modo geral, apenas para a história do tempo presente, podendo se estender
a outros campos da pesquisa histórica.
A articulação buscada nas idéias apresentadas foi norteada pela preocupação com um objeto que se crê ter suas especificidades, a religião, e
esta no tempo presente. Nesse ímpeto, pensa-se que uma abordagem que
considere os eventos do campo religioso brasileiro no contexto de uma duração maior possa ser bastante eficiente. Acredita-se também que o trato de
temas (já um tanto esgotados em outras áreas de pesquisa) como memória,
identidade e política, levando em conta as especificidades históricas do campo religioso brasileiro, possa ainda servir de norte para muitos estudos de
religião no meio brasileiro. Com questões éticas, por sua vez, é preciso
permanecer debatendo e, para tanto, transparência, humildade e disposição
para o diálogo continuarão sendo virtudes necessárias.
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CULTURA BRASILEIRA E RELIGIÃO... PASSADO E
ATUALIDADE...
Pierre Sanchis*
Resumo: Haveria alguma afinidade eletiva entre Cultura Brasileira e Religião? O
presente artigo esboça uma resposta, a partir, por um lado, de uma relação entre a
problemática da cultura e a da religião, por outro lado da constatação de especificidades na história da formação social brasileira. Finalmente detém-se sobre o catolicismo no Brasil e sobre o tema do sincretismo.
Palavras-chave: Cultura. Religião. Brasil. Catolicismo. Sincretismo.
Abstract: Would it have some elective affinity between Brazilian Culture and Religion?
This article sketches an answer based on a relationship between the question of the
culture and that one of the religion, and, on the other hand, on the evidence of some
specificities in the history of the Brazilian social formation. Finally, it discusses the
Catholicism in Brazil and the subject of syncretism.
Keywords: Culture. Religion. Brazil. Catholicism. Syncretism.
Desde já, o título que foi proposto coloca um problema de categorias:
Cultura... Religião... História...
Vamos por parte. Pensei em relembrar coisas elementares. Talvez do
seu encontro e cruzamento possa surgir significação.
1 PARA COMEÇAR, DE QUE SE
FALA QUANDO SE FALA EM
“CULTURA”?
1 – Parece importante ter logo em mente de que não se está falando:
Cultura, no sentido que interessa hoje, não é a instrução formal (a
escola...); nem mesmo a educação; nem o conjunto de conhecimentos adquiridos; nem a facilidade para se dar bem com as pessoas ditas “cultas”;
nem o mundo de “jeitinhos” que o ator social possa ter desenvolvido para
se sair de situações difíceis.
*
Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do Instituto Superior de Estudos da
Religião.
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SANCHIS, Pierre. Cultura brasileira e religião... Passado e atualidade...
Se fosse isso, alguns teriam “cultura”, outros, não ou se teria mais ou
menos “cultura”...
A “cultura” de que se está falando, ao contrário – está se falando na
perspectiva historicamente fundante da Antropologia –, é algo que todos os
grupos de homens e mulheres têm, porque é exatamente isso que faz que
eles sejam “gente”. Ser gente é ser homem. Mas de certa maneira. E essa
maneira particular de encarnar a humanidade constitui, para cada grupo
humano, a sua “cultura”. Tal é – ou era pelo menos – a noção clássica de
“cultura” na Antropologia.1
Vejam só – numa visão global e que merece, sem dúvida, hoje ser
precisada e matizada: O animal nasce perfeito, todo programadinho. Uma
abelha sabe, desde que nasceu (não aprendeu, nasceu assim) fazer colméia,
fabricar mel num trabalho de organização coletiva... Mas todas as abelhas,
desde que existem abelhas, fizeram colméias e fabricaram mel do mesmo
jeito: não aperfeiçoaram suas técnicas, não inventaram outro modo de arranjo social. O pequeno humano, ele, não nasce programado. Simplesmente rico das potencialidades de todo tipo, que poderão – ou não – se desenvolver. E numa determinada direção. Abandonado e solitário (cf. os casos
de “meninos-lobos”), ele seria reduzido a pouco mais do que um organismo
biológico. Pois é com o seu grupo, com base em relações e em todo tipo de
comunicações que, pouco a pouco, ele vai “aprender a ser gente”:
“Ser gente”, quer dizer: saber – e já há mil maneiras de pensar o que
“saber” quer dizer – quem ele é, o que ele significa para si-próprio, para os
outros; aliás, quem são os tais de “outros”, como se organiza o grupo maior
em que está inserido, como esse grupo se situa em determinado ponto de
uma rede de relações, quais são as coisas boas de fazer, de se viver e também as coisas ruins... E porque são boas ou ruins. O que se deve desejar ser,
o que se pode chegar a ser, quais atitudes são melhores ou piores, para si e
para os outros (para quem?), como é que o mundo se divide: gente, bichos,
coisas, gente próxima (igual?), os parentes, a família, os “outros”, amigos,
indiferentes ou inimigos; aliás, antes disso até: o que é ser “igual” (que
significa igualdade?), “diferente” (que significa diferença?), “amigo”, “inimigo” etc.
O interessante é que todos os grupos humanos não chegam às mesmas conclusões. Todos são feitos de seres humanos, certo. Por isso, têm em
comum muitos problemas para resolver; mas cada grupo tende a resolver
esses problemas do seu jeito. Cada um monta na sua cabeça, na sua sensibilidade, no seu coração, na sua vontade e no seu sonho certo tipo de mundo.
Como se usasse um par de lentes especiais que desse a tudo o que ele vê
determinada forma e determinada cor. Diferente daquelas formas e cores
fornecidas a outro grupo por suas próprias lentes. Por isso os grupos huma1
A título emblemático, ver Benedict (1934) e a Introdução, de Franz Boas.
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nos são (relativamente) diferentes, os seus “mundos” são diferentes, as suas
noções do bem e do mal são em parte diferentes, seus valores são diferentes, seus interesses privilegiados são diferentes, seus desejos são diferentes,
suas relações, entre si e com os outros grupos, tendem a ser diferentes etc.
É esse “jeito de ser gente”, relativamente diferente de grupo para
grupo, que constitui a “cultura” de cada um.
Muitas culturas existem no mundo... E por isso é difícil fazer se encontrarem e conviverem pessoas de grupos diferentes: os seus “mundos”
podem resistir a se reconhecer mutuamente os mesmos. Quando uma diz
“sim!” a outra deveria poder (até mesmo na mesma língua) entender: “Quem
sabe... Se você fizer questão... Você sabe que não quero”. Mas como ela
entende simplesmente: “Sim!”, no sentido afirmativo próprio do seu grupo,
ela poderá em seguida interpretar que esse “outro” foi um mentiroso. Simplesmente porque os tipos de relações do homem com a verdade, com a
afirmação do seu pensamento, com o outro, que ambos consideram “boas”,
não coincidem.
2 – Várias analogias são capazes de ajudar a entender como podem
assim se constituir “mundos diferentes”, pertencentes a pessoas às vezes
tão semelhantes:
Por exemplo, a analogia das línguas. A garganta humana é radicalmente capaz de pronunciar todos os sons de que são compostas todas as
línguas. E, no entanto... Os aparelhos fônicos de cada grupo, amoldados por
sua língua respectiva, acabam escolhendo um elenco limitado de sons do
qual são incapazes de sair, pelo menos sem grande esforço. Só esses sons
serão significativos para o grupo. Na imensa panóplia das possibilidades
humanas, a cultura também “escolhe” e carrega de sentido os elementos
escolhidos.
Escolhe gestos (pensar nos sentidos possíveis de uma piscadela!),
escolhe cores (o branco pode ser sinal de morte para povos orientais), escolhe tempos (tempos verbais, por exemplo: há línguas que não têm futuro),
escolhe determinadas organizações do singular e dos plurais, constrói distinções que outros ignoram: entre “eu/nós” e “eles”, entre ação e ator, entre
os “parentes” e os “outros”, escolhe valores, às vezes valores diferentes de
que se revestem as mesmas ações (o suicídio, o trabalho, a viagem ou a
fixação territorial...).
Isso é possível porque o mundo dos homens e das mulheres não é um
mundo simplesmente material, onde as coisas são, sem mais, o que são (o
“trabalho”, por exemplo, seria simplesmente o exercício de sua materialidade
muscular e o seu resultado), mas também – e, sobretudo – é o que elas
representam para esse homem: o universo do homem é um universo cujas
“realidades” são carregadas de valores (e de valores diferentes para cada
um dos grupos humanos; o mesmo trabalho pode representar tantos valores
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diferentes: um castigo, uma honra, um meio de sobrevivência, uma obra
corretiva de recuperação, uma realização pessoal profunda etc.!). Finalmente,
o universo do homem é universo simbólico e diferencialmente simbólico.
Sem dúvida, os problemas dos homens são os mesmos em toda a
parte. Por isso, muitos elementos dos seus “universos” poderão ser indefinidamente repetidos: por exemplo, em todo grupo humano há família, violência, amor, trabalho, sexo, morte. Mas o lugar desses elementos na hierarquia dos valores, a significação de cada um deles, o resultado final das
escolhas do grupo poderão ser diferentes. ‘Melhor a morte do que a desonra’, dirá um; ‘Para tudo dá-se um jeito’, dirá outro... Com a mesma legitimidade social, cada um no seu grupo.
E não se trata de tomadas de posição parcelares e isoladas, sobre
pontos independentes uns dos outros. Esse Universo particular, assim feito
de escolhas e de recortes na realidade do mundo, poderá formar um sistema, em que tudo tende a entrar, ordenado, hierarquizado, valorizado como
convém... Quando aparece algo novo, tem que encontrar um lugar no sistema, sob pena de criar problemas. Pois cada um não inventa sozinho sua
cultura: ela é criação coletiva, se transmite pela educação, constitui uma
tradição. E se assim é, ela acaba constituindo, para os membros de cada
grupo humano, um universo que lhes parece natural. O Universo. No limite, o universo único (ou, pelo menos, o único válido...).
Dentro desse Universo, específico, monta-se também um tipo de homem e um tipo de mulher: rotinizam-se hábitos, criam-se comportamentos,
escalam-se valores, implanta-se determinado “ideal de gente”.
E tudo isso se processa lá no fundo, sem que ninguém se dê conta desse
trabalho. Por isso, na sua maior parte, esse Universo continua sempre inconsciente. Por isso também, em situações normais, não se pode esperar que as pessoas o “falem”, explicitamente; é preciso observar como elas o “vivem”. O modelo clássico da pesquisa antropológica, desde Boas e Malinowski.
3 – Tudo isso seria tranqüilo e simplesmente verdadeiro, seria a verdade toda, se os grupos humanos não mudassem e não se encontrassem
entre si. Se a História não existisse. Tal visão da cultura corresponde ao
momento já quase secular de deslumbramento do olhar antropológico, quando, depois da primeira “descoberta do outro” e em contraste com a inicial
constituição de uma escala etnocêntrica de valores, em que o Ocidente ocuparia o ápice (o evolucionismo), a Antropologia constituiu-se em torno das
diferenças, apontadas, reconhecidas, valorizadas nas suas próprias lógicas.
Mas o retrato que, nessa perspectiva, foi pintado sem matizes, na verdade é
o de um quadro morto (ou de uma série de quadros mortos). Seria um quadro de reprodução pura. É preciso agora dar-lhe movimento e vida.
Pois a vida vai... Acontecem coisas, para qualquer grupo e qualquer
pessoa dentro do seu grupo. Se quiserem responder a esses acontecimentos,
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que criam novas situações, as “culturas” devem reagir criativamente, adaptar-se, inovar, mudar. Em todo tempo e lugar, a partir mesmo de seu íntimo,
alguns dos indivíduos seus participantes se opõem a elas e querem
transformá-las. É pelos indivíduos que as culturas se transformam. Mas
outros tentam, ao contrário, conservá-las (ou continuar definindo-se por
meio delas): o fenômeno complexo da “redescoberta das raízes”, em todos
os níveis, também atravessa o mundo contemporâneo... Em muitos casos,
os homens pretendem, até dramaticamente, retomar a fala autônoma do que
declara sua cultura. Outros ainda assistem mais passivamente a suas transformações, ajudados nessa passividade pelo fato de que, em geral, essas
modificações não se dão por meio de rupturas bruscas com a lógica que as
anima. A permanência alia-se, então, à mudança. O jeito de “transmitir”
confunde-se com o de “transformar”. Pois é transmitindo-se, afirmando-se,
confrontando-se, que as culturas se transformam. De qualquer modo e para
todos, as culturas também estão na história (SAHLINS, 1990).
Acresce a essas perspectivas gerais uma especificidade contemporânea: a mudança trazida pela modernidade está hoje inconfundível
(BALANDIER, 1997).
Por um lado, as culturas – ou fragmentos delas vivos nos sujeitos
sociais – viajam como nunca, entram em contacto entre si, multiplicam-se
no mesmo espaço e também se contaminam mutuamente: o multiculturalismo
coexiste com o hibridismo e a mestiçagem cultural (CANCLINI, 2000a,
2000b). Por isso, os grupos-suportes da elaboração cultural se fragmentam,
se recobrem parcialmente: a cultura passa a ser, também, de grupos cada
vez mais reduzidos – até à família...–, uma cultura de redes sociais mais do
que de instituições, umas redes que articulam finalmente indivíduos. Cada
vez menos esses indivíduos passam a reproduzir simplesmente sua cultura
e sua identidade. Relativizam o fato de recebê-las todas feitinhas por herança. Alguns, pelo deslocamento no espaço – viagem e migração – outros, e
todos, por sua exposição à mídia (e mais limitadamente ao mundo do consumo), em qualquer lugar do mundo e pela primeira vez na história, com
base em uma oferta cultural potencialmente múltipla ao infinito, passam a
fazer parte de vários universos ao mesmo tempo. Eles tecem diversas culturas dentro de si, escolhem entre os seus elementos, os articulam e
hierarquizam, transformam sua percepção do Universo. Uma cultura,
doravante em boa parte escolhida (MATHEWS, 2002). E que tende a não
conhecer mais o caráter sistêmico e totalizante de que se falou acima.
Descolamento da cultura relativamente a seu suporte étnico, descolamento
de sua incidência territorial, pluralidade das pertenças culturais e das identidades dentro do próprio indivíduo.
Por isso, em certos momentos, os sujeitos sociais estão perdidos, não
sabendo mais quem são nem qual é o seu mundo. Estariam na verdade caminhando para uma nova “visão de si e do mundo”, uma “nova cultura”?
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Até mesmo uma cultura de novo gênero? É possível, mas é também possível que o momento lhes pareça de irreversível anomia.
Por outro lado e em outro nível, também existe no mundo atual um
“grande encontro” (globalização?) das culturas, à medida que uma delas
acaba marcando por sua dominação o conjunto do espaço social. É o caso,
sobretudo, numa cidade grande. Sem dúvida, coexistem dentro dela vários
grupos específicos, múltiplas redes, uma multidão de indivíduos, todos diferentes por suas experiências, individuais ou coletivas, e que elaboram a
sua maneira própria de ver o mundo e de “ser gente”. Mas todos têm que se
haver com a mesma “cultura geral” e “moderna” da Metrópole: estão situados no seu interior, participam, querendo ou não, e mesmo se de modo
diferenciado, das grandes linhas de seus ideais, de seus valores – ainda que
em estado de revolta ou de distanciamento ao mesmo tempo virtual e prático. O desafio da globalização.
Motivos assim sobrepostos: por um lado, coexistência de ofertas culturais dilacerantes, que opõem os indivíduos entre si e os dividem no interior deles próprios, por outro lado, uniformização tendencialmente compulsória, acaba produzindo simultaneamente, na condição pós-moderna, junto
com a euforia da livre escolha e da autoconstrução das identidades, o vetor
diametralmente oposto: uma procura das raízes, uma saudade das origens,
um refúgio no reconhecimento apaziguador de uma identidade que se proclama como recebida. Uma volta dos povos para a “sua cultura” (exatamente, aliás, quando os antropólogos põem em questão a existência desta.2 Uma
cultura, no entanto, que não será mais simplesmente recebida, mas ativa e
autonomamente escolhida, indissoluvelmente reencontrada e “inventada”
(WAGNER, 1981). Perfil de “resistência”, muitas vezes de “retorno”. Pode
se discutir, por exemplo, o futuro da idéia de “nação” – para alguns,
ameaçada, por dentro, pela re-emergência de suas partes (as regiões), ou
por fora, pela exigência de maiores conjuntos (federações ou uniões) – mas
algo no mundo está hoje a remobilizar homens e mulheres, em geral em
movimentos pacíficos de efervescência ideológica, mas às vezes até a violência, pela ressurgência, a difusão, o fascínio, às vezes a criação de uma
referência grupal que signifique uma origem, uma tradição, uma terra, uma
pertença: nação, cultura, etnia. E também religião.
2 CULTURA E
RELIGIÃO
A religião teria, então, a ver com a cultura?
Dir-se-ia: tudo a ver. E tudo o que se acabou de dizer da cultura,
inclusive a mudança contemporânea na sua situação real e na sua apreensão
2
Ver, a título igualmente emblemático, Clifford (1988).
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teórica, poderia analógica –ou metonimicamente – aplicar-se à religião. A
religião também pretende fornecer ao ser social uma visão do mundo – uma
representação particular, com suas categorias próprias, que torna o mundo
intelectual e emocionalmente apreensível (Deus, deuses, orixás, anjos, santos, criação, congregação, igreja, autoridade, verdade...). Tudo isso compõe
um mundo particular e o organiza e tudo isso, para o fiel, faz do mundo
genérico o seu mundo. Como o faz a cultura. Mas, além disso, a religião
maneja categorias que atingem a subjetividade do fiel neste mundo, impulsionam sua ação, orientam e qualificam o seu comportamento externo e
suas atitudes profundas (dependência, oração, louvor, sacramento, magia,
pecado ou simplesmente erro, o sentido, afinal, do comportamento): um
motivo para viver e um modelo para a vida. “Modelo de” e “modelo para”,
diria Geertz (1978). O mesmo Geertz que intitula um capítulo seu: “A religião como sistema cultural” (GEERTZ, 1978).
Religião é cultura. Mas religião não se confunde simplesmente com
cultura. É cultura no superlativo. Põe em jogo uma totalidade, e sob o prisma do absoluto. Totalidade do mundo, explicação a mais global, em princípio sem resto. E que implica, ao mesmo tempo, dinamismo para viver3 e
balizamento para o engajamento nesta vida (Ética).
Não é fácil definir “religião” sem privilegiar ou tornar exclusivo um
só desses seus vetores: cosmovisão, que pode, então, passar a ser sonho
vazio, sem repercussão na vida, ou Ética, que tende a virar puro moralismo.
Weber renuncia a dar essa definição antes de começar a sua análise (SÉGUY,
1999) – o que seria lógico e que Durkheim, por exemplo, tinha feito. Ele o
fará no fim, promete ele. Mas acaba por esquecer sua promessa. Ele arrisca,
no entanto, esboços de definição no decorrer da análise. Simplesmente um
“tipo particular de ação social”, aquele que os atores chamam de “religiosa”. A religião do senso comum qualificado, a do “bom senso”, como diria
Gramsci (1999). Ou, mais precisamente: a organização das relações com
seres não empíricos: deuses, espíritos etc. “Organização”, uma idéia que
atravessará também a tradição durkheimiana, mas sem que lhe seja necessária a referência a “seres” sobrenaturais. É a experiência do sagrado (e,
antes da experiência, a categoria definidora do sagrado), que permite identificar o campo da religião. Pois é ela que organiza essa experiência coletiva: delineia e define um universo simbólico polarizado pela oposição sagrado/profano, instaura em torno desse universo uma comunidade (“Igreja”), celebra-o num conjunto ritual.
3
Cf. Durkheim (1977, p. 2) “Antes de tudo, a vida religiosa supõe a ação de forças sui generis, que elevam o
indivíduo acima dele mesmo, que o transportam para um meio distinto daquele no qual transcorre sua existência
profana, e que o fazem viver uma vida muito diferente, mais elevada e mais intensa. O crente não é somente um
homem que vê, que conhece coisas que o descrente ignora: é um homem que pode mais.”
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Sagrado ou Deus, em todo caso um sistema, que confere sentido ao
mundo e à existência humana e que visa um absoluto. É nesse sentido que a
religião se constitui como uma cultura, que é mais que cultura. Elevada ao
quadrado.
Mas pode também ser menos. Tanto Weber quanto Durkheim reconhecem – em sentidos diferentes, é verdade – que a religião não influencia
necessariamente o espaço todo da cultura. É-lhe possível, sem dúvida, pretender qualificar, informar (dar forma) ou até colonizar, drenar e confiscar
as energias de outros campos socioculturais: a arte, a ciência, a política, o
erotismo, mas é também possível que estabeleça com essas instâncias negociações respeitosas das respectivas autonomias. “É até possível que os
princípios desses campos a desafiem, instaurando-se em “religiões metafóricas”, “religiões no sentido amplo”, religiões de substituição”, sagrados
paralelos, abertos, também eles, à secularização. É possível, enfim, que a
própria categoria do sagrado perca socialmente sua densidade e se inscreva
nas subjetividades com crescente indiferença.
De qualquer maneira, os áleas, em que se viu metida a cultura no
mundo contemporâneo, dizem também respeito à religião. Significam um
estreitamento da sua abrangência, uma desterritorialização, uma autonomização progressiva do indivíduo em relação ao que era sua recepção sistemática como herança determinante da identidade. Abrem também para uma
eventual multiplicação das identidades religiosas possíveis, todas elas oferecidas, ao mesmo tempo, pelo mercado dos bens simbólicos, pelas relações de vizinhança, pelos meios de comunicação de massa e pelo ar do
tempo... Como as culturas, viajam as religiões. E se nos encontram mesmos
espaços, que deixam de ostentar – ou sofrer – referências exclusivas a uma
delas. A tradição não pretende mais ser, sozinha, a atribuidora do legado das
identidades. Que não são mais herdadas. As identidades, também no campo
da religião, doravante são – ou são sentidas como – em boa parte construída,
pela escolha autônoma dos sujeitos sociais. A pluralidade religiosa não constitui simplesmente o advento de uma situação quantitativa, de uma multiplicação insólita. Na sua densidade atual, ela abre qualitativamente um novo
regime em muitas sociedades.
Novo regime que, como para a cultura, implica a possibilidade, nesse
clima gerador de insegurança, da simples fuga na reprodução do modelo
tradicional ou do uso dessa mesma autonomia para um reforço das instituições religiosas: uma “conversão” à sua própria religião.
Tudo isso não constitui, no entanto, uma novidade total. Já foi lei, é
verdade, na história, que, a cada território político, correspondesse uma religião legítima. Religião da Cidade no interior do Mundo Antigo, religião do
soberano na Idade Média e parte da Idade clássica, tanto no Ocidente quanto
no Oriente, religião tribal em sociedade “sem” ou “contra” o Estado. Mas era
também freqüente o caso do advento de “outra” religião num território já
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religiosamente ocupado (o cristianismo, por exemplo, ou as religiões orientais no Império Romano tardio). Quando então se complexifica, às vezes se
dramatiza, o jogo mútuo da cultura e da religião.
Tal foi o caso do Brasil.
3 O BRASIL
Será difícil hoje continuar a reconhecer a existência de uma “cultura
brasileira”? Sem dúvida, se entender afirmar assim, por um lado, a atribuição estrita de um sistema de representações e disposições (cosmovisão e
ethos) a um grupo social determinado, tomado na sua generalidade, nos
limites de um território. Se pensar também, por outro lado, que esse sistema
consiste num arranjo permanente e fechado de elementos, atados pelo laço
de determinações lógicas. Em tal hipótese, seria até possível atribuir a tal
“cultura brasileira” uma essência e dar dela uma definição... Nada disso é,
com evidência pensável, e cada vez menos, tanto por causa do decorrer
efetivo da história quanto por causa das transformações do próprio olhar
antropológico. Mas outra perspectiva é possível. Em vez de essência, estrutura, em vez de sistema, disposição dominante, em vez de totalidade do
grupo social, o espaço de uma lógica pervasiva e desigualmente compartilhada. Com efeito, “estrutura” não é sistema, é princípio de organização de
um sistema. Num obiter dictum do próprio Lévi-Strauss (1976), encontrarse-ia essa “força que tende a organizar sempre na mesma direção todos os
elementos que a história põe à sua disposição” (p. 115). Pensando assim, a
estrutura é uma tendência, ela implica orientação e não conteúdo fixo, ela é
um processo ou, melhor, a direção de um processo; e a cultura, como estrutura, é o fato de que tal ou tal grupo humano “tende” a organizar na mesma
direção os elementos que a história põe à sua disposição. Não em todos os
momentos dessa sua história, nem sempre com a mesma intensidade, nem
em todos os segmentos sociais que o compõem, mas de modo perceptivelmente marcante, repetitivo e teimoso. Nesse sentido, dominante. O que
Geertz (1978) chamará de “tendência dominante” podendo, aliás, acompanhar-se de tendências opostas, minoritárias, mas também visíveis, e que,
por sua vez, tendem a inflectir o arranjo social, a história do grupo e a sua
auto-representação. Pois há outro argumento contra o eventual reconhecimento de uma “cultura brasileira”: ela seria feita da representação do Brasil
elaborada pelos intelectuais, intérpretes da nação, ansiosos por lhe traçar
um perfil, valorizante ou depreciativo. Sem dúvida, os “retratos do Brasil”,
ensaísticos ou romanceados, além de embasar ideologias e programas políticos, contribuíram para criar nas mentes brasileiras um imaginário sobre o
Brasil. Mas essa dimensão não deixa de contribuir para a constituição de
uma “realidade”: com efeito, quando se fala de um processo histórico que
acaba “fazendo” uma sociedade, com os seus traços particulares, não se
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pode esquecer a importância da auto-imagem que essa sociedade, por meio
de seus pensadores, criou de si mesma para si mesma e que contribui permanentemente para fazê-la existir. É Durkheim (1989) que fala da “sociedade ideal”, essa imagem que uma sociedade vê dela mesma no espelho e
que contribui para defini-la, e é Bourdieu que alude àquelas representações
da realidade social que participam da feitura mesma dessa realidade.
É, pois, dentro desses limites e tomando esses cuidados que se poderá reconhecer à “cultura brasileira” umas notas características. Limitandose aqui à cultura da religiosidade, é preciso aludir rapidamente a três dessas
características, insistindo só sobre a terceira. Elas não são características
“do brasileiro”. Nem substantivas e, por isso, permanentes e universais,
nem necessariamente definitivas, mas, criadas na história e pela história,
elas parecem marcar de maneira privilegiada o modo de se querer brasileiro
na sua longa duração.
3.1 UMA
DIMENSÃO RELIGIOSA SUPERLATIVA
“Se Deus quiser”, “Vá com Deus!”, expressões que permeiam quase
necessariamente os intercâmbios quotidianos. “Deus e fé” marcariam assim a “religiosidade mínima do brasileiro”, conforme André Droogers
(1987), aquela religiosidade oriunda da “matriz religiosa brasileira” estudada por José Bittencourt Filho (2003). Originou-se com o empreendimento
colonizador e perdura até hoje. Está claro que se continua precisando de
análises para problematizar o momento e o significado dessa dimensão,
mas contenta-se aqui hoje com uma comparação elementar entre várias pesquisas recentes. O propósito é só frisar a existência de uma diferença, que
distingue o Brasil.
Pergunta-se se o agente social se considera uma “pessoa religiosa”?
Na Comunidade Européia, em 91, a resposta era: sim, com 61%, não, com
28%. Acredita em Deus? 70,5%. Mas, em Belo Horizonte, sete anos depois,
99,3% diziam acreditar em Deus, mais de 90% na Santa Trindade e na Bíblia. Somente 5,7% se diziam sem religião e 1,1% dizia acreditar em Deus
sem ter religião definida. Mais ainda: 63,6% estimavam que a religião a que
pertencem cumpria o seu papel, e 92,5% afirmavam que a religião tem importância, grande importância ou importância fundamental na sua vida. Ao
contrário, na Comunidade Européia, a importância da religião chega modestamente em quinto lugar (49%) no campo dos valores, depois da família, dos amigos, do trabalho, do tempo livre, preferida somente à política
(LUMEN, 1998; SANCHIS, 2006).
Poder-se-ia suspeitar de que se trata de uma religiosidade própria a
Minas? Outra pesquisa, nas classes populares de seis das principais regiões
metropolitanas do país, constata a fé em Deus de 93,4% dos entrevistados e
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a existência de 91,08% de pessoas para quem a religião é importante, muito
importante ou fundamental (CERIS, 2002).
3.2 UM
POVO INVISÍVEL DE PROTETORES
Não é de ontem que os observadores detectaram, em torno do planeta
social brasileiro, a existência de um anel, dotado de vida própria: uma população de espíritos, de orixás, de santos, de mortos, de demônios, às vezes
nitidamente distintos, submetidos outras vezes a processos de troca de identidade, de valor e sentido. Um universo de relações, em princípio meta-empírico,
mas que se torna quotidianamente presente na referência, ativa e multiforme,
que mantém com ele o mundo dos homens terrena e brasileiramente vivos.
De onde vem esse universo? As origens são múltiplas, distribuídas
ao longo de toda a história nacional: além do universo indígena, Angola,
por meio de Portugal, antes mesmo da chegada dos africanos ao Brasil;
África – e sua diversidade interna –, Portugal e, no fundo longínquo, o
universo do imaginário medieval: todos diferencialmente povoados pela
convivência com fantasmas do outro mundo, pela experiência quotidiana
de sonhos significativos, pela mediação das coisas e dos seres da natureza,
pelo curandeirismo e a magia, pelo embate ambíguo entre santos e demônios. Mais recentemente, outro recomeço, de origem européia, com a chegada do espiritismo, que irá se articular com tradições anteriores: indígenas,
medievais portuguesas, mais globalmente católicas, africanas e esotéricas,
para constituir uma camada de sentido densamente presente, cada vez mais
freqüentemente reconhecida pelos estudiosos, que tendem a fazer dela hoje
um vetor fundamental da religiosidade do Brasil.
Um vetor que, vindo de tantos pontos originais, atravessa todas as
camadas e os segmentos sociais, do negro ao branco, das elites ao povo, e,
diferencialmente, boa parte do mundo das religiões. Não se trata nem de
remanências nem de reemergentes subprodutos de fases abolidas de uma
história cultural. Mas de uma constante presença, polimorfa e ambígua,
mas nem por isso menos atuante na história brasileira.
Um livro recente tenta um balanço dessa dimensão (ISAIA, 2006).
3.3 POROSIDADE DAS IDENTIDADES:
O SINCRETISMO
Não se pretende exatamente repetir que a prática do sincretismo caracteriza a religiosidade do Brasil e atravessa sua história. Deseja-se somente constatar que o problema do sincretismo (mesmo ao se lhe dar outro
nome) surge a cada vez que a sociedade brasileira se faz uma pergunta sobre sua identidade. E de expor muito rapidamente a hipótese de que algo na
história explica essa teimosia.
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“O Catolicismo formou a nossa nacionalidade” escrevia o Pe Julio
Maria em 1900 no Livro do Centenário. É preciso ler nessa fusão inicial o
primeiro motivo do signo “sincrético” na marca da religião brasileira. Dentro
das vertentes cristãs, com efeito, a do catolicismo parece aquela que, em poucos séculos, realizou o revestimento da fé – uma ruptura inicial em princípio
radical com o mundo das religiões – com todas as mediações institucionais e
rituais que precisamente constituem uma religião (organização de caráter
hierático, templo, sacerdócio, sacrifício, conjunto dogmático de crenças etc.).
Catolicismo, uma fé em forma de religião. E é por isso que, quando se implanta num espaço dominado por anteriores instituições religiosas, ele tende
a operar por meio da transmutação do que lhe parece possível assimilar e
ressemantizar na sua própria síntese. Sua auto-concepção como uma “totalidade”, “a católica”, o predispõe a essa estratégia, pois ele tem mais vocação
de fagocitose do que de exclusão. Enfim, mais do que outras correntes cristãs
ele conserva viva e atuante a dimensão do mito (inclusive uma forma própria
do seu “mito de fundação”, como o mediador institucional da graça) e quem
diz mito diz símbolo, um instrumento de intelecção que é seta de sentido
susceptível de carregar camadas superpostas de significação, as suas e as
dos territórios de sentido que atravessa.
É esse catolicismo que deu forma à conquista do Brasil no que ela
teve de contacto assimilador. Mas, enquanto na velha Europa, especificamente em Portugal, o catolicismo aparece ao pesquisador como enraizada
numa localidade concreta e delimitada, expressando a história das gerações
que nela se sucederam depois de séculos de assimilação, no Brasil ele chegou de sopetão numa terra sem limites, sem marcas e que seus portadores se
representavam como sem história. O que produziu dois tipos diferentes de
relações sincréticas (SANCHIS, 1995). Em Portugal, uma identidade católica consciente e única, nutrida inconscientemente pelas heranças religiosas
que hauriu de suas raízes (os santos herdeiros dos deuses...): um sincretismo
que provém. No Brasil, um encontro improvisado com o “outro”, primeiro
o indígena, logo depois o afro, frente a quem, junto com quem, graças a
quem se tratava de enfrentar as duras condições de sobrevivência em expedições arriscadas em meio a uma natureza ameaçadora e com esforços
imprevisíveis de implantação. Um sincretismo que advém, que tende a pôr
em comum sem confundi-los os recursos ultra-empíricos – e com eles as
representações simbólicas que lhes conferiam sentido – de cada um dos
grupos. Já nos primeiros decênios dessa relação, as “salvações” indígenas,
que reuniam gente da terra, elite branca e negros da Guiné, num mesmo
culto “sincrético” apresentam a realização desse processo (VAINFAS, 1995).
Duas observações para não ser mal entendido.
Em primeiro lugar, não se entende “sincretismo” como o produto
final de uma ação social, reduzido a uma dupla pertença ou a uma mistura
de elementos, mesmo se reorganizados. Entendo-o como um processo,
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polimorfo e cujos efeitos são os mais variados, que consiste na percepção ou a construção – coletiva de homologias de relações entre o universo próprio ao grupo e aquele do “outro” com quem o grupo está em contato: uma
percepção que desencadeia transformações na auto-imagem do grupo, seja
para reforçar seja para reduzir os paralelismos que foram detectados. Afinal, uma forma mais sutil de redefinição da identidade social (SANCHIS,
1994).
Em segundo lugar, não se trata de pensar o Brasil como um permanente desdobrar de sincretismos. Se parece lógico que esse tipo de covivência tenha chegado, na longa duração, a criar um habitus, uma “tendência”, parece claro também que esse habitus não iria fazer a história sozinho.
Ele se confrontará e se articulará com outros habitus, inclusive com o seu
oposto, aquele da peremptória afirmação identitária, da racionalização. Já
naquele primeiro momento, o das “santidades” sincréticas, também estavam ali os jesuítas, a inquisição, os princípios de organização do Estado.
Mais tarde estará Pombal, estarão os colégios protestantes, a romanização,
a Teologia da Libertação, as opções identitárias dos modernos “convertidos” pentecostais, a modernidade kantiana inspirando os movimentos antisincréticos, inclusive no candomblé...
No entanto, mesmo se não monopolizadora da história, a estrutura
sincrética – no sentido em que “estrutura” foi caracterizada acima - nunca
se tornou ausente do processo histórico da religião no Brasil. Continua-se
falando dela hoje a propósito das religiões afro-brasileiras, das religiões
orientais; paradoxo, até de certas igrejas neo-pentecostais. Limitar-se-á aqui
ao caso contemporâneo do catolicismo. Antes disso, no entanto, não se resiste a citar, pinçada entre mil, uma nota de recente número da revista Pesquisa da FAPESP, sobre o culto do Santo Daime. Sem tê-lo planejado, a
autora ilustra com clareza a conivência entre sincretismo e Brasil.
Ainda que exista uma tradição de consumo da Ayahuaska em vários
países da América do Sul, apenas no Brasil se desenvolveram religiões de
populações não-indígenas que usam esta bebida. Religiões que usam essa
beberagem reelaborando antigas tradições dos sistemas locais a partir de uma
leitura influenciada pelo cristianismo (LEBATE, apud HAAG, 2006, p. 92).
Mas é preciso passar à própria Igreja Católica. Começando por dois
exemplos recentes, altamente significativos.
Juiz de Fora. “As reuniões de dona Xzinha”: um estudo de Maria da
Graça Floriano (2002). Um grupo interreligioso (espíritas, umbandistas, fiéis do candomblé, não-crentes, New Ages, batistas) em torno de uma senhora que se diz “profundamente católica”, “católica praticante”, e que recebe
os espíritos os mais variados, mas que não aceitou a sua condição de médium se não com a promessa de poder permanecer católica. “Reuniões” de
cura, de oráculos, ritualidade de clima espírita, que se recusa em princípio a
se confessar como “de umbanda”, apesar de uma prática umbandista evi-
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dente, mesmo se seletiva. Mas também outras reuniões, chamadas dessa
vez de “orações”, onde tudo é estritamente católico, os gestos, as fórmulas,
o clima espiritual. Certo jogo de esconde-esconde entre as duas fórmulas,
alguns daqueles que, devota e exclusivamente católicos, acolhem na sua
casa a segunda – a das “orações”, totalmente ortodoxa – ignorando (ou
fazendo de conta que ignoram) a existência da primeira. E, por outro lado,
algumas dessas “reuniões” mais ou menos espíritas, especialmente a grande festa de fim de ano, concluindo-se com a encenação por um espírito
incorporado (na própria dona Xzinha) de uma celebração da missa tradicional (chamada “Santa Ceia”, ao modo evangélico), num suposto latim, por
um dito Padre José, às vezes até substituído por um Papa – um velho papa
sentado e rigidamente encurvado, que, por sua vez, celebra conforme um
cerimonial mais próximo do rito pós-conciliar.
Vê-se, pois, que o catolicismo está aqui presente, oficialmente reconhecido como catalisador e vetor principal, ainda que, de fato, reinterpretado
num quadro alheio. Está-se explicitamente em território marginal. A instituição não está presente, se não sob a formo de seu duplo mediúnico.
Em Porto Alegre, no caso do Grupo São José, estudado por Carlos
Steil (2004), ela está explicitamente presente, ainda que num espaço relativamente marginal. Trata-se de um grupo nas ondas carismáticas, fundado,
ele também, por uma senhora católica “desde o ventre de sua mãe” e que
conta hoje duzentos a trezentos dirigentes e uns 5000 membros. Um segmento institucional bem visível, sem dúvida. Ora, apesar de concepções
doutrinais não necessariamente ortodoxas (existência de demônios intergeracionais, herdados pelos vivos e que os obsedam na atualidade, experiência direta desse universo diabólico, aceitação de cruzamentos psico-místicos e de revelação de “palavras de Deus” que criam um espaço onde podem se abrigar simultaneamente diversos sistemas religiosos: catolicismo
popular, pentecostalismo, neopentecostalismo, espiritismo, religiões afrobrasileiras, New Age etc.), apesar também dos ritos de cura (física, psíquica
e espiritual), em parte realizados fora do espaço eclesiástico e da presença
clerical, a identidade “católica” do grupo é legitimada pela neutralidade
mais ou menos positiva do clero. Está fundada num raciocínio de sabedoria
operativa: se a Igreja oficial não é capaz de oferecer uma resposta aos contemporâneos de tendência New Age ou espíritas e que esse grupo disponha
dos meios de fazê-lo, por que não aceitá-lo, num sistema globalizante, polarizado pela dimensão da missa e dos sacramentos e dominado pela existência de uma comunhão católica substantiva?
Esses exemplos dão a idéia do que pode ser uma resposta do catolicismo como sistema e da Igreja Católica – pelo menos no seu espaço marginal ou semi-marginal – ao desafio que representa para ele o pluralismo religioso atual no Brasil. Mas é evidente que essa resposta não poderia ser a
única.
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Por um lado, pois, aceitação da fluidez e porosidade das identidades –
entre elas a identidade católica, – mas também, massiçamente, afirmação dessa
identidade como bem definida, segura de suas referências, contrastiva com
outras. É o conjunto do quotidiano institucional, com seu funcionamento e as
tomadas de posição públicas de sua hierarquia, a vida de suas paróquias. Um
catolicismo em grande parte “romanizado” (doutrina com arestas definidas,
catecismo, moralismo, autoridade clerical, sacramentalismo), mas também
em parte transformado por movimentos mais recentes, já solidamente implantados (seus temas veiculados pela pregação e os contatos internos, a
liturgia, a repercussão social e midiática). Entre esses movimentos dois
merecem ser enfatizados porque resumem provavelmente para o grande
público a experiência católica num Brasil recente: as Comunidades Eclesiais
de Base, inspiradas pela Teologia da Libertação, e a Renovação Carismática
Católica. Dois movimentos de tendência hegemônica, mesmo se os seus
participantes diretos são minoritários dentro do catolicismo (em 1994, CEB´s:
1,8% da população; RCC: 3,8%; outros movimentos, 7,8%, e católicos tradicionais dos meios paroquiais, 61,4%., segundo PIERUCCI e PRANDI,
1996), e cuja influência doutrinal, pastoral, ritual e social os transforma em
símbolos e vetores de identidade. Mais do que “movimentos na Igreja”, um
e outro gostaria de se pensar como “a Igreja em movimento”.
Em outra hora seria interessante analisar a sua história, mostrar como
as Comunidades Eclesiais de Base, apesar de resistências e reservas da hierarquia, acabaram constituindo uma referência identitária do catolicismo,
no momento em que o movimento carismático, recém importado dos Estados Unidos, começava o seu trabalho de nucleação, vencendo outras resistências, convencendo a hierarquia que, afinal, ele podia reinstaurar uma
dimensão “espiritual” que bom número de fiéis esperava e que suas veleidades de autonomia em nada desafiavam a disciplina eclesiástica tradicional. Pelo contrário. Com eles também a identidade católica parecia assegurada, afirmada, até, de modo insistente: “Eu sou católico”, “Me orgulho de
ser católico”, lê-se nas camisetas, nos pára-brisa de carro ou ainda: “A castidade, você pode!”. Sacramentos, culto marial, o clero, o Papa.
O motivo dessa afirmação identitária é duplo: é-lhes preciso conseguir a aprovação da hierarquia e se distanciar, frente à opinião pública, do
modelo pentecostal, o seu inspirador direto. Em conseqüência, é uma
dialética em torno de uma afirmação identitária e/ou de uma porosidade das
identidades que explicará sua trajetória.
Assim como o era para as CEB´s, para os carismáticos o “outro” é
um horizonte próximo, que os inspira, mas ao mesmo tempo do qual é preciso que se distanciem. Sob pena de perder o reconhecimento da instância
que, no interior do catolicismo, tem o monopólio da definição da identidade
legítima. Para os primeiros, esse “outro” tinha sido, um tempo, uma ideologia: o marxismo, para os segundos, será um outro social, diferencialmente
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religioso. Para uns e outros, essa primeira versão da alteridade acabará sendo superada/assimilada.
Mas o que é aqui significativo é que, mesmo a partir dessa posição
afirmativa o problema do “outro” (o outro como problema em referencia à
definição de si) não vai deixar de estar presente. Em vários níveis até, como
se o impusesse uma lógica de situação, nos quadros de leitura de determinada cultura.
Tome-se o caso da Teologia da Liberação e das Comunidades Eclesiais
de Base. A figura central do “pobre” foi primeiro interpretada como uma
posição estrutural. Na perspectiva analítica que era instrumento dessa teologia, o “pobre” é a classe explorada, um dos pólos opostos de uma estrutura dicotômica (“proletariado”). Mas o questionamento teórico e político
dessa análise, que ocorreu nos anos 90, reforçando a lição de concretude da
impregnação bíblica, base radicalmente identitária dessa teologia (o “pobre” bíblico) vai pouco a pouco conferir a esse personagem um rosto de
gente. O “pobre” será o marginalizado concreto: entre outros, o negro, o índio, quer dizer, no clima universal então reinante de descoberta e valorização
das alteridades culturais, o portador de outra cultura. Tema da Inculturação?
“A questão cultural põe no programa da humanidade o difícil equilíbrio entre
o universalismo do gênero humano e o particularismo de povos e de grupos
sociais”, escreve então um teólogo do CIMI, a Comissão Missionária junto
aos Indígenas. Por isso, será possível perguntar em que medida se pode
separar dessa cultura a(s) religião(ões) que lhe é(são) tradicionalmente
associada(s)? Religião e cultura...
É assim que, no cerne mesmo do problema cultural brasileiro, o
pluralismo cultural vem questionar a unicidade da identidade religiosa. Em
todo o caso é dentro dessa preocupação que nascem movimentos, como
“União e Consciência Negra”, “Agentes de Pastoral Negros”, paralelas católicas do Movimento Negro que estava se implantando no Brasil. Com
eles não se tratava de passar de uma teologia da política e do social a uma
teologia da cultura, mas de tomar posição diante da situação do Negro no
Brasil e na Igreja Católica no Brasil (VALENTE, 1994). Três debates para
situar uma afirmação de identidade: com a Teologia da Libertação, com o
Movimento Negro, com as posições tradicionais da Igreja Católica, e dois
níveis necessários dessa afirmação: o nível da cultura (determinada visão
do mundo, a ser integrada na teologia, determinados elementos de expressão cultural, na liturgia) e o nível da religião, com o encontro – a descoberta, o possível confronto – no próprio seio dessa cultura, das religiões que
emanam dela e que conservaram os seus valores no decorrer da história
dramática do grupo negro no Brasil. Imagina-se o debate potencialmente
introduzido numa igreja, numa religião, para essa temática cruzada de “outra cultura”, que ela aceita e quer assumir, e de “outra religião”, frente à
qual sua identidade tem que se pronunciar (SANCHIS, 1999). No caso con-
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creto, se o debate pode permanecer teórico entre os responsáveis e os teólogos, ele se torna drasticamente existencial no seio das paróquias populares,
quando essas perspectivas tendem a se institucionalizar pela celebração,
ocasional ou sistemática, da “Missa Afro” ou, como se prefere hoje dizer,
da “Missa inculturada”. Novo problema de identidade, na abertura ao desafio que constitui a própria alteridade do “outro”. Nos meios populares de
seis grandes metrópoles brasileiras, 40,4% dos católicos (mas só 28,5% dos
não católicos) veriam com simpatia a presença das culturas negras ou indígenas nas suas celebrações (CERIS, 2002). Em Belo Horizonte, 62,3% dos
fiéis que acabavam de participar de uma missa inculturada, boa parte deles
negros e simpatizantes do movimento dos Agentes de Pastoral Negros, disseram apreciar a presença de elementos culturais “africanos” (ou “negros”),
sobretudo a música afro, o toque dos atabaques, a dança. Até o uso de
“Olorum” ou “Oxalá” para invocar a Deus é aceito por mais da metade dos
assistentes interrogados. E são inclusive 58,8% a desejar que, no decorrer
da missa–afro, estejam visivelmente presentes – por meio de seus símbolos, seus dignitários, talvez até algum rito – as religiões afro-brasileiras
(SANCHIS, 2001). Cultura? Religião? Vê-se que chega o momento em que
a distinção não é mais fácil e que se ultrapassa o limiar do jogo das identidades propriamente religiosas.
Os exemplos que se acabou de citar se revelam à luz do dia. Mas,
mais uma vez, eles poderiam se estender além, se não num espaço marginal, pelo menos numa zona de menor visibilidade, quando vão se tornando
menos raros os casos de sacerdotes, de freiras ou de militantes católicos que
se submetem – não mais “cultura”, mas “religião” – ao integral processo de
iniciação no candomblé, que alguns deles, pelo menos, auto-reconhecidamente “afro-descendentes”, consideram como um veio religioso ancestral
de que devem reencontrar os valores.
O caso recente do Pe José Pinto, em Salvador, permite, por seu caráter de caso-limite, verificar a existência e medir a fragilidade dessa distinção entre cultura e religião. Sabe-se que o Padre, em razão de encenações
inesperadas na Festa dos Reis, em janeiro, acabou sendo suspenso das ordens sacerdotais. Entre outras manifestações julgadas excêntricas pelas autoridades da Igreja, figurava já o uso do traje sagrado de Oxum, deusa das
águas no Candomblé, e dos passos de dança que lhe são próprios. Os desdobramentos, os discursos, as declarações foram vários. Em todos eles o Padre, ele próprio antigo cultor da dança clássica, explicitava sua intenção de
marcar assim o seu respeito para os irmãos candomblecistas e de celebrar a
epifania do Cristo pelo uso artístico da dança, que seria a expressão do
equivalente contemporâneo e local do Rei Mago evangélico. No dia 10 de
janeiro o boletim virtual Mix-Brasil podia escrever que, na opinião do padre jesuíta Luis Côrrea, 43, da PUC-Rio, é normal o catolicismo incorporar
elementos culturais ligados a outras crenças. É o que ele chama de incultu-
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ração. Citando o padre: “Existe uma dinâmica da fé de assumir as culturas
locais. É normal que novos elementos sejam incorporados às religiões”.
Afirmação da Cultura. Mas no dia 18 de maio estoura a notícia: o Pe Pinto
se converteu ao candomblé. No dia seguinte, 19, Globo-on-line insiste: “Padre Pinto quer virar pai-de-santo.” Só agora, teria declarado o padre, percebi que tinha vocação para pai-de-santo. Implicação da religião. No mesmo
dia, no entanto, Terra Notícias retifica:
Representantes da Igreja Católica e de entidades de defesa da cultura
afro-brasileira [são dados os nomes dos participantes e a própria mãe de
santo confirma] negaram na tarde dessa sexta-feira que o Padre José Pinto
tenha se convertido ao candomblé. Ao contrário do que ele havia declarado,
os religiosos esclareceram que ele se submeteu a um mero processo de purificação, disponível a qualquer pessoa que procure um terreiro. Uma volta
ao nível da Cultura?
A ambivalência subsiste quase inteira. Pois, nos casos citados anteriormente (de “iniciação” de padres e freiras), o reconhecimento do caráter
propriamente religioso da iniciação não impedia os ministros cristãos de se
submeter a ela, sem “conversão”, no sentido de um trânsito religioso que
implicaria o abandono da primeira religião. E existem casos menos radicais
ainda, por exemplo, este de um jovem cristão negro, vicentino e secretário
de uma paróquia, que, tendo assistido a um culto de candomblé, exulta de
felicidade por ter “sentido que estava com [seu] povo, mais em casa, fazendo o que [ele] gosta de fazer”. “Senti muito mais, muito mais Deus do que
aqui.” E detalhando a visão de Deus que lhe passou o culto do terreiro, ele
conclui: “Sabe, acho que Deus é isso”. Mas nem por isso muda de religião
para aderir à religião que tanto o cativou: “Não que entendo que é certo”...: Já
que não adere, então, à “outra” religião, aprecia simplesmente uma cultura?
Que poderia até vir a marcar a expressão de sua própria religião?
Seria preciso encontrar a fórmula que conservasse a ambivalência analítica da situação. Uma adesão emocional profunda, não a uma religião, mas
a uma “cultura enquanto religiosa”, já que está em jogo uma concepção de
Deus e do gênero de relação que o homem deve cultivar em relação a ele.
Falência do(s) “sistema(s)”, mas presença de uma lógica subjetiva que
redistribui as cartas, criando um cenário inédito.
No entanto, as alteridades, africana ou, paralelamente, indígena, não
são as únicas concernidas. Outras entram no jogo da oferta e da porosidade na
mesma época. Nos anos 90, com efeito, clara inflexão veio revisitar a relação
ao “outro” da Teologia Católica da Libertação. A referência marxista deixou
crescentemente lugar para o encontro, em torno do tema da mística, seja com
as correntes holistas, esotéricas e ecléticas da Nova Era, seja, mais diretamente, com as fontes religiosas orientais. “Um espectro ronda o cristianismo
histórico”, podia escrever recentemente um antropólogo, “o espectro da Nova
Era” (CAMURÇA, 1998). Não só, como é sabido, os carismáticos, mas
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também os teólogos da Libertação, estão sendo acusados pelos defensores
de uma identidade católica de fronteiras definitivamente traçadas, de
escancarar o espaço católico para a invasão da alteridade dissolvente. É
provável que esteja a se esboçar o desenho de um espaço em que teólogos
“progressistas”, comunidades, religiosas ou laicas, assíduas às técnicas orientais de meditação e concentração, aos processos holísticos de cura, simples grupos de oração carismáticos, poderão inspirar-se simbioticamente na
experiência religiosa desse “outro”, pensado por outros como o espectro da
alteridade inassimilável. Sem que esse encontro elimine, por outro lado, a
diferença entre as correntes da Libertação e da Renovação Carismática. Para
os teólogos da Libertação, não mais do que o fazia o caráter cultural de sua
adesão à análise de tipo marxista ou aos movimentos de caráter étnico, o
seu atual transbordamento holístico não apaga a urgência da presença especificamente cristã junto aos problemas sociais e aos “pobres”. Ele a projeta,
ao contrário, numa luz mais integral.
Um último exemplo permitirá voltar ao nível da cultura. Dessa vez
de uma cultura bem presente e envolvente, de uma alteridade menor. O
clima que emana do movimento carismático, mais do que o movimento
como tal, permitiu a eclosão do fenômeno, bem brasileiro nas suas formas
concretas, dos “padres cantores” e especialmente de figuras proeminentes
entre eles, que reúnem, às dezenas de milhares, multidões de fiéis para a
celebração de missas espetaculosas, em que o símbolo essencial parece às
vezes serem os movimentos de um corpo atlético e a finalidade uma emoção de reconciliação consigo próprio. Aqui, é a cultura de massas que constitui a alteridade englobada pela intenção religiosa e católica: por um lado,
um de seus sinais principais, a julgar pelo número de Academias ou de
Centros de aeróbica que se multiplicam freneticamente nas cidades brasileiras, por outro lado, a sua manifestação típica e provavelmente essencial,
o show, comunicação expressiva com ares de transe, catarse coletiva e recarga
emocional, instrumento de uma afirmação recorrente de identidade. Uma
identidade católica, nesse caso, e, mesmo se “moderna” nos seus meios
culturais de expressão, tradicional, ou melhor, “intransigente”, quando
explicita o seu conteúdo. Outro caso de solução possível para o confronto/
identificação entre religião e cultura.
CONCLUSÃO
Existem ainda culturas? Diversifica-se a religião? Gostaria de concluir apontando, ao mesmo tempo, a permanência e a mudança. A religião
também está aí, a mesma e outra. Presa no redemoinho de culturas e identidades - identidades não mais sempre atribuídas pelas culturas ou herdadas
com elas, culturas também escolhidas (“inventadas”, diz Wagner) por estra-
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tégia política – à procura de identidades. No mundo da religião também,
continuidades e rupturas? Um livro recente (MENEZES e TEIXEIRA, 2006)
analisa nesses termos as “Religiões no Brasil” (é o título): “rupturas e continuidades” é o subtítulo. Rupturas, aspectos novos, que chegam a caracterizar uma mudança de civilização: a emergência central do indivíduo, a
importância da emoção, a progressiva desinstitucionalização da experiência religiosa, o pluralismo das instituições – ou no seu interior ou até no
âmago das subjetividades –, o trânsito e a circulação entre instâncias, um
novo esoterismo, uma neo-mística, a destradicionalização da própria espontaneidade, a multiplicação dos “religiosos sem religião”... Mas também
uma série de traços que bem poderiam significar permanência e restauração: uma densificação da adesão institucional, um reforço das próprias instituições, a persistente presença nuclear do cristianismo, um reavivamento,
até, da identidade católica, certa retradicionalização das performances no
culto, a presença crescente, enfim, da religião no espaço público.
Contradição? Coexistência paradoxal própria de uma era de lógica
disruptiva? Sem dúvida, contrastes semelhantes encontram-se em pesquisas
feitas no resto do mundo, inclusive no meio específico da juventude. Mas
quero ler neste paradoxo mais uma marca do Brasil (da “cultura brasileira”),
onde o “sim” e o “não”, o “isso” e o “aquilo” não são simplesmente exclusivos. Pois, ao que parece, esses aspectos contraditórios vêm cada vez mais se
articulando, melhor dito, se compenetrando, fazendo que não se trate nem
de ruptura e novidade só, nem só de retorno e recuperação, nem, ainda, de
uma simples justaposição das duas tendências. Seria até pobreza analítica
contentar-se em detectar na vida religiosa contemporânea no Brasil uma
série de “novidades” simplesmente matizadas por continuidades ou moduladas por ressurgências. É outro o panorama! Os dois pólos antagônicos da
ruptura e da continuidade, longe de simplesmente se oporem, se justaporem
ou se balancearem, compõem, juntos, uma realidade diferente, cuja originalidade está exatamente no fato de que esses lances antagônicos se qualificam e se performam reciprocamente. Um não existe se não por meio da
forma emprestada do outro. Haja vista, por exemplo, a relação, não mais
simplesmente antagônica, do indivíduo e da instituição. É ato autônomo do
indivíduo a referência a uma instituição, que contribui para constituí-lo,
mas a instituição não o define por inteiro, nem ele amolda sua identidade às
exigências do inteiro universo simbólico da instituição.
Afinal, a singularidade do universo religioso contemporâneo não está
nem na novidade de seus componentes nem no caráter reiterativo das experiências dos seus atores, mas na tendencial transfiguração destes componentes e destas experiências, pela existência, que permeia uns e outras, de
um tecido inédito de relações. Representará ele na modernidade o número
TRES, tão caro à teimosa e perdurável presença da “cultura brasileira”?
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RELIGIOSIDADE POPULAR E ESPETÁCULO:
A FESTA DO DIVINO DE MOGI DAS CRUZES-SP*
Neusa de Fátima Mariano**
Resumo: A festa do Divino Espírito Santo de Mogi das Cruzes, ao mesmo tempo em
que representa o passado na forma de festejo tradicional, circunscreve-se no espaço
urbano com toda a sua complexidade. A própria festa moderniza-se na sua organização, o que implica divisão de trabalho, administração das finanças, divulgação pela
mídia, entre outros aspectos. A festa, na verdade, atualiza-se na dinâmica da sociedade urbana, incorporando novos valores, ajustando e/ou eliminando os antigos. A festa
dos novos tempos redefine-se a cada ano, vai cada vez mais se integrando à lógica do
mercado, como espetáculo. Entretanto, a Festa de Mogi comporta também momentos
de plenitude pela presença marcante da cultura popular, manifestando (inconscientemente) resíduos de tempos pretéritos, que, uma vez não dominados pelo capital e
reunidos, apresentam potencial transformador.
Palavras-chave: Festa. Cultura popular. Espetáculo.
Abstract: The Divine Holy Ghost Party of Mogi das Cruzes, at the same time that
represents the past in the traditional festivities form, describes itself in the urbane
space with all its complexity. The proper fest modernizes itself in its organization,
what implies division of work, financial administration, and divulgation by media
among other aspects. The Party, in reality, updates itself in the dynamic of urbane
society, incorporating new values, adjusting and/or eliminating the old values. The
party of the new time redefines itself in each year increasingly integrating to the market
logic, as spectacle. However, the Party of Mogi admits also moments of plenitude, by
the excellent presence of the popular culture, manifesting (unconsciously) residues of
preterit times, what, once not dominated by the capital and joined, have transformer
potential.
Keywords: Party. Popular culture. Spectacle.
*
O presente texto é fruto de pesquisa realizada para a conclusã
o da tese de doutorado, defendida em agosto de 2007. Houve acompanhamento da Festa do Divino em Mogi das
Cruzes no período de 2003 a 2007, tendo a coleta de relatos orais sido realizada, na sua maior parte, durante o ano
de 2006.
**
Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Endereço: Av. Jaguaré, 325. Ed. Paula, apto.
112. Jaguaré, São Paulo – SP. CEP: 05346-000. E-mail: [email protected].
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A
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FESTA
... enxergamos nela [na festa] uma ocasião na qual a
sociedade penetra no mais profundo de si mesma, naquilo que habitualmente lhe escapa, para compreenderse e restaurar-se.
Nestor Garcia Canclini (1983)
Na sociedade grega (clássica), a festa estava intimamente ligada à
natureza, que representava para os camponeses uma tenebrosa unidade: ao
mesmo tempo fantástica – por proporcionar a plenitude da vida – e temível
– por suas manifestações catastróficas, como epidemias, invernos rigorosos, tempestades etc. O acontecimento da festa era uma garantia e um agradecimento, uma cooperação à ordem da natureza, sobretudo para que o ciclo das estações do ano propiciasse boa colheita. A festa camponesa, imbuída de muita alegria, fartura, divertimento (danças, músicas, jogos), fortalecia os laços sociais das comunidades e também aflorava comportamentos e
desejos recalcados pelas disciplinas coletivas do cotidiano. As energias acumuladas eram, então, libertadas na festa, momento em que tudo era permitido; todos os prazeres possíveis eram tirados da natureza, de cada membro
da comunidade e da vida social. (LEFEBVRE, 1958).
Canclini (1983) considera a festa não uma ruptura com o cotidiano,
mas o momento de engrandecimento deste pela plenitude que ela proporciona. Para o autor,
[...] a festa sintetiza a totalidade da vida de cada comunidade, a sua organização econômica e suas estruturas culturais, as suas relações políticas e as propostas de mudanças. Num sentido fenomênico é verdade que a festa apresenta uma certa descontinuidade
e excepcionalidade: os índios interrompem o trabalho habitual (ainda que para realizar outros, às vezes mais intensos e prolongados), vestem roupa especial, preparam
comidas e adornos incomuns. Mas não pensamos que a soma destes fatos seja
determinante para situarmos a festa num tempo e lugar opostos ao cotidiano
(CANCLINI, 1983, p. 54).
A exuberância da festa, a abolição de regras e a transposição de limites, aparecem como um risco à sociedade, na ocorrência de um período de
escassez. É que por ocasião de alguma catástrofe natural, os alimentos da
festa, consumidos exageradamente e desperdiçados, seriam lamentados. É
esse o risco, o mistério que permeia a ordem das coisas da natureza. A festa,
nesse sentido, tornava-se, no interior das atividades cotidianas, uma espécie de aposta sobre o futuro (LEFEBVRE, 1958).
A festa era, então, envolvida por rituais mágicos, celebrações que a
tornavam sagrada, sacralizando a comida, a bebida, abençoando a fecundação, a reprodução da vida. A manutenção da festa como tradição, reforçan-
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do magias e ritos, tinha como função regularizar as energias, equilibrar a
ordem natural (dos ciclos de renovação como nascimento e morte, número
de seres humanos e de almas no mundo). O sacrifício, conforme Lefebvre
(1958), entendido como doação para a festa, começou a ser diferenciado
conforme as classes sociais. Os mais abastados, em evidência social, se
“sacrificavam” mais pela festa, enriquecendo-a com suas doações fartas. A
prosperidade deles contribuía para a prosperidade geral e, por isso, eram
também abençoados e aclamados pela comunidade.
Nesse sentido, segundo Canclini (1983), a festa reproduz também as
contradições da sociedade, ou seja, as diferenças sociais e econômicas nela
são manifestadas e visíveis.
Os rituais festivos, aos poucos, foram passando da esfera da natureza
para a da religião cristã. Conforme Thompson, a Igreja foi cooptando as
festividades mais relacionadas à natureza, as consideradas pagãs, tornandoas católicas. Assim, o calendário cristão foi se ajustando ao agrário, ou seja,
coincidindo com os períodos de colheita e fartura.
Em geral, o clero que exerce suas funções pastorais com desvelo
sempre encontra maneiras de coexistir com as superstições pagãs e heréticas de seu rebanho. Por mais deploráveis que essas soluções de compromisso pareçam aos teólogos, o padre aprende que muitas das crenças e práticas do “folclore” são inofensivas. Se anexados ao calendário religioso
anual, podem ser assim cristianizadas, servindo para reforçar a autoridade
da Igreja. [...] O mais importante é que a Igreja devia, nos seus rituais,
controlar os ritos de passagem da vida pessoal e anexar os festivais populares a seu próprio calendário (THOMPSON, 1998, p. 51).
Para a Igreja, algumas manifestações pagãs, entendidas como inofensivas ao seu poder, não foram banidas, e persistiram como folclore.
Com base em Florestan Fernandes (1998), entende-se que o folclore1
pode desempenhar uma função social nas festividades religiosas católicas, a
partir do momento em que se apresenta como um elo entre o passado e o
presente, na transmissão de determinados valores e códigos sociais. Assim, a
festa popular passa a ser conhecida por meio de seus componentes de
caráter folclórico, o elo entre o passado e o presente, recheado de símbolos
e representações, mitos e ritos. Há na festa, portanto, a possibilidade da
emergência da espontaneidade, da alegria e da beleza – apesar da tendência
a regras impostas, principalmente pela Igreja, sobre os rituais de raízes camponesas.
1
A intenção não é discutir o conceito de folclore, mas cabe, neste momento, esclarecer que folclore é aqui entendido como parte constitutiva da cultura popular. Esta não se resume somente a elementos folclóricos, mas contém
também outros aspectos da vida cotidiana. Apenas se apóia em Florestan Fernandes para mostrar que o folclore
também tem um conteúdo, não sendo pura e simples estética que serve ao espetáculo.
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Uma vez que se entende a cultura como processo e a cultura popular
como a mais arraigadamente tradicional2 pelo seu caráter espontâneo, é preciso considerar o dinamismo, a contemporaneidade e os “ajustes” no tempo
e no espaço. Não há necessidade de “congelamento” da cultura popular
para conservá-la, pois ela é a cultura que o povo faz, cria e recria no seu
cotidiano, conforme suas condições, numa dinâmica impossível de ser estagnada. Enquanto houver povo, haverá cultura popular, ou seja, ela não
morre, pois a tradição3 é plástica e aceita inovações trazidas pela modernidade. (BOSI, 1987).
Com o advento da Revolução Industrial e a conseqüente fragmentação da vida cotidiana, as tradições festivas da religiosidade popular foram
ganhando contornos espetaculares, numa tendência a se tornarem mercadoria, sendo cooptadas pelo capital. Entretanto, segundo Ortiz (1999), mesmo
industrializada, a cultura e, no caso, a festa popular não passa a ser inteiramente mercadoria, porque encerra em si um “valor de uso”, inerente à sua
manifestação. A tradição pode ser mantida e, inclusive, se fortalecer, utilizando-se, contraditoriamente, de mecanismos mercadológicos que a
fragilizam numa tendência ao seu desaparecimento.
Cabe salientar que a festa sempre ilustra uma esperança ou um resíduo,4 algo que está nela, que pode se manifestar por meio da tradição e da
espontaneidade (BLOCH, 2006).
A
UTOPIA DO
ESPÍRITO SANTO
No catolicismo, o Espírito Santo é a terceira pessoa da Santíssima
Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), sendo considerado o sopro da vida.
Assim consta em Gênese (2, 7), no Antigo Testamento:5 “Javé Deus plas2
Aqui, ousa-se dizer que a cultura popular é a mais arraigadamente tradicional, porque se entende que a cultura se
apresenta de forma bastante plástica, havendo, por exemplo, a cultura de massa, produto da chamada indústria
cultural. Essa cultura de massa não se mostra pelas tradições, mas por elementos efêmeros que a compõem,
prontos para serem consumidos como mercadoria.
3
A tradição, conforme Thompson (1998), tem caráter ideológico, em oposição ao pragmatismo, e se caracteriza
pela invariabilidade, na realização de práticas fixas, com repetições (cíclicas) formalizadas. Ou seja, as tradições
têm sentido no plano subjetivo (e mesmo supersticioso) das idéias, ao passo que os costumes são variáveis e
ligados à práxis cotidiana, estabelecendo-se no plano técnico. No entanto, os costumes e as tradições estão
associados de forma que a destruição de um acarreta na transformação ou destruição do outro. A fraqueza da
tradição manifesta-se quando se perde no tempo o seu caráter ideológico e sua realização é justificada única e
simplesmente sob o ponto de vista prático, ou seja, pelo costume. O costume, por sua vez, pode ser tradicional,
quando se reveste de sentido mais profundo e ideológico (expresso pelos simbolismos e rituais) na vida cotidiana.
4
Para Lefebvre (1967), resíduo não é entendido como “sobrevivência” ou “permanência”, mas sim, como algo
que não se deixa reduzir, o irredutível; como algo que não se deixa cooptar pelo capital, algo que fica fora dos
sistemas e das estruturas; apresenta a esperança de uma transformação no cotidiano, a utopia.
5
BÍBLIA. 1994, p. 22.
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mou o homem, pó da terra, insuflou em suas narinas um sopro de vida, e o
homem se tornou um ser vivo”.
Dessa forma, deu-se a “intromissão” do Espírito Santo que originou
a vida, por meio do sopro de Deus (ETZEL, 1995). Mas é no Novo Testamento que o Espírito Santo ganha maior visibilidade, pois na liturgia cristã,
celebra-se a Sua manifestação em forma de “línguas de fogo” aos apóstolos
e à Virgem Maria no dia de Pentecostes – cinqüenta dias após a ressurreição
de Cristo (Páscoa cristã), assim como Jesus havia anunciado (Atos dos Apóstolos, 1, 8; 2, 1-4).6 Uma pomba branca representa o Espírito Santo, porque
foi sob essa forma que Ele batizou Jesus Cristo (Evangelho Segundo São
João, 1, 31-34).7
Para os judeus, conforme Araújo (2005), Pentecostes é o dia em que
se celebra a colheita realizada cinqüenta dias após a chagada de Moisés
com seu povo na Terra Prometida; são as primícias oferecidas em agradecimento a Deus pela terra e pela colheita farta.
Javé falou a Moisés, dizendo: “Fala aos filhos de Israel: quando tiverdes entrado no
país que eu vos dou, e tiverdes cortado sua ceifa, levareis ao sacerdote um punhado
das primícias de vossa ceifa. Ele apresentará esse punhado diante de Javé para atrair
sobre ele sua complacência; o sacerdote o apresentará no dia seguinte ao sábado
(Levítico, 23, 9-11).8
A partir do dia seguinte ao sábado, do dia em que tiverdes levado o punhado para ser
apresentado, contarei sete semanas inteiras. Contareis cinqüenta dias até o dia seguinte ao sétimo sábado e oferecereis a Javé uma oblação nova. Levareis de vossas casas
dois pães para a oferta apresentada; serão feitos com sete litros de flor de farinha e
cozidos com levedo; são as primícias oferecidas a Javé” (Levítico, 23, 15-17). 9
No século XIII, a Europa tomava conhecimento da tese do abade
italiano Joaquim de Fiore (1145-1202), que fez divulgar a importância do
Espírito Santo para a humanidade, entretanto, em discordância com a doutrina católica (BRANDÃO, 1978). Para Fiore, a Santíssima Trindade era
constituída pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, separadamente – não
comportava três pessoas em uma só, como defendia a Igreja. As entidades
corresponderiam, na verdade, a três períodos da vida da Terra: o primeiro
seria o da Lei ou do Pai, momento da criação do universo, relatado no Antigo Testamento; o segundo período seria o do Filho (Jesus) ou da Fé, que
nasce do Pai pregando amor e caridade, registrado no Novo Testamento;
por fim, o período do Espírito Santo ou do Júbilo, a alegria, que traria o fim
do sofrimento e promoveria a caridade entre os povos. Começaria a ser
6
BÍBLIA. 1994, p. 1126-1127.
7
BÍBLIA. 1994, p. 1097.
8
BÍBLIA. 1994, p. 139.
9
BÍBLIA. 1994, p. 139.
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escrito o Evangelho Eterno, com o advento da Era do Espírito Santo, que
estaria por se iniciar no século XIII (LEFEBVRE, 1983; BRANDÃO, 1978).
Así se periodiza el tiempo. El Padre es la ley en todos los sentidos: Ley de sufrimiento
y de muerte, Ley moral e política, Ley del Jefe y del Señor, Ley de la guerra y de la
lucha por vivir o sobrevivir. El Hijo trae la fe: confianza en el discurso, en la escritura
y el saber, en el provenir y el desenlace de los acontecimientos, fe en las capacidades
de la organización y de la razón, fe en el conocimiento explicitado durante las
discusiones. El Espíritu, por su parte, no trae la alegria: es la alegria. Escapando, sin
excluir la violencia, de la Ley de lucha y de guerra, pacificando la vida carnal sin
destruirla sino integrándola por el amor y la contemplación en la vida espiritual, desviando hacia él palabras y discursos, el Espíritu indica y abre el caminho de la alegria
eterna (LEFEBVRE, 1983, p. 151).
Para que o caminho fosse aberto rumo à alegria eterna, seria necessário, conforme Fiore, a presença de um novo “chefe”, assim como foi Jesus
Cristo. Esse novo “chefe” substituiria os bispos da Igreja Católica – o que
representava ameaça ao poder clerical – e levaria a paz e a harmonia aos
povos, acabando com a pobreza e as doenças que aterrorizavam os europeus (BRANDÃO, 1978). Suas idéias ganharam muitos adeptos, entre eles,
dos franciscanos, que associaram a figura do novo “chefe” a Francisco de
Assis, falecido no início do século XIII (BRANDÃO, 1978).
Segundo a lenda corrente em Portugal, a Rainha Dona Isabel, esposa
do Rei Dom Dinis, havia oferecido o cetro e a coroa reais ao Espírito Santo
(talvez por estar influenciada pela tese de Fiore, na perspectiva de dias melhores) diante de uma crise pela qual, conta-se, Portugal estava vivendo.10
Dessa forma, o Espírito Santo tornava-se Imperador de Portugal, com a
retirada da Rainha Dona Isabel no Convento de Santa Clara. Finalizada a
crise, em agradecimento ao Espírito Santo, a Rainha teria promovido uma
festa em sua homenagem, que se repetiria a cada ano (CASCUDO, 2001).
Assim como em qualquer festa da época, os “vodos” eram praticados também durante as festas do Espírito Santo, constituindo-se em doação de alimentos por parte da realeza, num verdadeiro banquete para os pobres. Durante a festividade, era escolhido um “imperador”, provavelmente alguém
do povo, que era coroado no dia de Pentecostes, numa aparente inversão
social, pois terminada a homenagem, todos retornavam aos seus “postos”.
Ao “imperador por um dia” eram atribuídos alguns poderes, como a distribuição de alimentos e a libertação de presos.
10
Segundo Gimenez (1995, p. 34-35), o governo de D. Diniz foi marcado pela oposição que lhe fazia a nobreza,
tendo como representantes desta, seu irmão Afonso e seu filho, herdeiro do trono, Afonso IV. O autor revela ainda
que naquela época, as cidades estavam se desenvolvendo economicamente e, nesse processo, havia dificuldade
de alguns novos grupos sociais sobreviverem, como os comerciantes, os banqueiros, os administradores etc. A
Rainha D. Isabel, por sua vez, auxiliava os pobres, com a construção de albergarias e a distribuição de esmolas.
Talvez seja por causa dessa situação conflituosa nos setores político e econômico durante o governo de D. Diniz,
que a lenda faz referência a uma crise.
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Cerca de um século e meio depois, Dom Manuel (1469-1521) proibiu os “vodos” em qualquer data e restringiu a sua prática somente durante
as Festas do Divino Espírito Santo (ETZEL, 1995).
E defendemos, dizem as Ordenações do Reino, que não façam vodos
de comer e de beber, nas igrejas e nem fora dellas, posto que digam que
fazem por devoção de algum sancto, sob pena de que o que assim pedir e
receber, pagar em dobro na cadeia tudo o que receber para quem o acusar.
Não tolhemos, porém, os vodos do Espírito Sancto, que fazem na festa de
Pentecostes (FAZENDA, 1920, p. 366).
Assim, tornava-se oficializada a festividade em homenagem ao Espírito Santo, com direito aos “vodos” – representação da caridade com a
distribuição da fartura – talvez para lembrar a superação da crise no reinado
de Dom Diniz, talvez como afirma Vieira Fazenda (1920), como homenagem à Rainha Dona Isabel, a grande incentivadora dos festejos do Espírito
Santo, pois, segundo Etzel (1995, p. 59), a Rainha reuniu na comemoração
festiva “os elementos existentes nos usos e costumes populares”. Mesmo
subordinada à religião católica, a festividade mantinha o caráter de culto
aos vegetais e à natureza, incorporada, entre outros momentos, nas homenagens ao Espírito Santo.
A FESTA DO DIVINO
DE
MOGI
DAS
CRUZES
Apesar da veiculação de notícias em revistas, jornais, panfletos,
sobre a antiguidade de mais de trezentos anos da Festa do Divino de Mogi
das Cruzes, nenhum documento que o prove foi encontrado11 durante a
pesquisa.12 O mais antigo registro da Festa refere-se a uma Provisão encaminhada pela Paróquia de Santana de Mogi das Cruzes à Arquidiocese de
São Paulo, para a exposição do Imperador do Espírito Santo, com data de
1822.13 Cabe observar que as primeiras Provisões encontradas, relativas à
Festa do Divino Espírito Santo, são de procissão e exposição “para Mogy
do Imperador do Espírito Santo”, ou “para a festividade do Imperador”,14
fazendo referências também à Imperatriz, como mostra o documento de
1832:
11
Grinberg (1981, p. 124-125) publicou Ata da Câmara de 04/05/1613,
na qual há uma referência ao Espírito Santo como data comemorativa; aliás, no período colonial, como o tempo
era marcado pelo calendário litúrgico, tal documento torna-se insuficiente para se afirmar a existência da Festa do
Divino em Mogi desde o século XVII. Contudo, não foi possível ter acesso ao documento original.
12
Documentos constantes no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, no Arquivo Histórico e Pedagógico de
Mogi das Cruzes, e nos arquivos do jornal Diário de Mogi, foram pesquisados durante o ano de 2006.
13
Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo – ACMSP – Registro de Provisões 1818-1827.
14
ACMSP – Registro de Provisões 1818-1827.
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Provam. de Exposam. e Procissão para festivide. do Imperador de Mogy.
Provam. de Exposam. e Procissão para festivide. da Imperatris de Mogy.15
A denominação de “festeiros” começa a aparecer, já na segunda metade do século XIX, nas Provisões, em substituição às designações de “imperador” e “imperatriz”, que apresentam mais informações sobre as comemorações do dia de Pentecostes, realizadas sempre cinqüenta dias após a
Páscoa, ou seja, sem data fixa.
Provisão de Exposição e procissão pª. a Parochia de Mogy das Cruzes a favor do Festeiro do Divino Espto. Santo e tão bem septenário [festa
com duração de sete dias] a favor do Festeiro.
Dita de Exposição e Procissão pª. a Parochia de Mogy das Cruzes a
favor da Festeira do Divino Espto. Sto.16
Provavelmente, por essa época, a população oriunda do campo (Serras de Itapeti e do Mar), que vivia com base na produção de subsistência,
aproveitava o momento da festa para comercializar ou trocar o excedente
por sal, querosene, tecido; os alimentos (dentre eles, o palmito, abundante
na época) trazidos do meio rural eram colocados sobre folhas de palmito
que forravam os carros de bois – meio de transporte comumente utilizado.
Assim, os palmitos “entravam” na cidade, representando a distribuição da
fartura, condizente com o fundamento da festa: a caridade, o fim da miséria,
justiça etc.
Os responsáveis pela festa, autorizados pela Igreja (os festeiros),
recepcionavam essa população com “afogado”, uma espécie de carne ensopada, rica em gordura e servida quente, com farinha de mandioca no fundo
do prato. Esse é considerado o prato típico e sagrado da Festa do Divino de
Mogi das Cruzes até hoje.
Com a construção da estrada de ferro no fim do século XIX e, com
ela, a instalação de algumas fábricas e a imposição de um modo de vida
cada vez mais urbanizado, a população de Mogi das Cruzes foi pouco a
pouco rompendo sua base na economia de subsistência. Assim, mudava-se
também o modo de festejar o Espírito Santo. A chegada espontânea da população rural para a festa, por exemplo, passou a ser representada pela “Entrada dos Palmitos”, apenas uma alusão ao passado. Consiste em um grande
desfile com a participação de grupos de Congada e Moçambique,17 alimen15
Leia-se: “Provisão de Exposição e Procissão para festividade do Imperador (Imperatriz) de Mogy“. ACMSP –
Registro de Provisões 1828-1835, p. 153-verso.
16
ACMSP – Registro de Provisões 1867-1870, p. 6 – verso.
17
Segundo (Câmara Cascuda (2001, p. 149), a congada é um
“[...] folguedo de formação afro-brasileira, em que se destacam tradições históricas, os usos e costumes tribais de
Angola e do Congo, com influências ibéricas no que diz respeito à religiosidade. Lembra a coroação do Rei
Congo e da Rainha Ginga de Angola, com a presença da corte e seus vassalos. Trata-se de um auto que reúne
elementos africanos e ibéricos, cuja difusão vem do século XVII“. Mário de Andrade pesquisou sobre a Congada
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tos e crianças em carros de bois e charretes, enfeitados com flores de papel
crepom etc. A distribuição do “afogado”, logo após o desfile, ganhou caráter de ritual muito mais ligado ao sagrado e religioso, do que à ordem prática que lhe deu origem, que era alimentar e aquecer os viajantes oriundos do
meio rural no frio de outono.
Segundo Grinberg (1983), naquele tempo, já aconteciam as Alvoradas (procissão pelas ruas centrais da cidade realizadas durante nove dias,
sempre às cinco horas da manhã), acompanhadas pela Folia do Divino,18 e
constituídas por pessoas que haviam feito promessas ao Espírito Santo.
Depois da procissão, todos tomavam café com biscoito, oferecidos na igreja de Santana, aliás, como ocorre até hoje. No domingo, dia de Pentecostes,
eram promovidas brincadeiras para as crianças e, à noite, a procissão do
Espírito Santo. A queima de fogos finalizava a festa.
Segundo o jornal O Liberal (1931, 1932), a festa era, ainda, constituída
por vários outros momentos, entre eles a distribuição de presentes aos presos da cadeia local, doces e moedas para as crianças e esmolas e cobertores
aos pobres, além de quermesse com várias brincadeiras. Ao final da festa,
era realizado o sorteio do casal de festeiros para o ano seguinte. Os festeiros
tinham (e ainda têm) o direito de escolher o casal de Capitães de Mastro,
geralmente pela amizade ou pelo parentesco. A função dos Capitães de
Mastro é de auxiliar em todo e em qualquer momento o casal de festeiros
para a realização da Festa do Divino; o casal também é responsável pelo
ritual de levantamento do mastro com a Bandeira do Divino19 na ponta,
erguido na véspera do dia de Pentecostes.20
Na década de 1930, circulava um “Livro de Ouro”,21 no qual eram
registradas doações para a festa, em dinheiro ou em espécie, como galinhas,
porcos, grãos, café, etc. Por isso, tornava-se importante o festeiro ser bem
e o Moçambique de Mogi das Cruzes, na década de 1930. Seus registros estão em Danças Dramáticas do
Brasil, 2002.
18
A Folia do Divino, constituída por tocadores e cantadores, sai pelos bairros rurais angariando prendas para a
Festa, carregando a Bandeira do Divino, que tem a função de abençoar as residências por onde passa. Em Mogi
das Cruzes, a Folia do Divino nunca exerceu sua função plena, participando apenas das procissões dos dias
festivos. A dificuldade em manter o costume da função pré-Festa está, entre outras, na falta de tempo livre, uma
vez que seus componentes trabalham durante o dia, restringindo a participação na Festa do Divino. A arrecadação
de prendas, em Mogi das Cruzes, fica sob os cuidados das chamadas Rezadeiras (às vezes participa algum rezador
também) que, desde a década de 1980, têm exercido o papel da Folia ao visitar residências de devotos (previamente agendadas) para rezar e recolher e pedidos ao Divino, que são queimados no dia de Pentecostes.
19
A Bandeira do Divino é vermelha, representando o fogo, que é uma das formas de manifestação do Espírito
Santo, conforme a Bíblia. Há, no centro da Bandeira, uma Pomba Branca, outra forma de aparição do Espírito
Santo, conforme já mencionado.
20
Em 2007 e 2008, o levantamento do mastro ocorreu no primeiro dia da Festa do Divino, de forma diferente do
que vinha ocorrendo há anos.
21
O “Livro de Ouro” não circula mais, tendo sido abolido, conforme relatos de ex-festeiros, no início da década de
1980.
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relacionado socialmente, ou seja, ter influência junto a uma elite que poderia contribuir com somas maiores para a festa. Assim, o “sucesso” da festa
estaria garantido quanto mais bem relacionado e quanto melhor condição
financeira tivesse o casal de festeiros. Nesse sentido, pode-se dizer que a
festa abarca as diferenças sociais, ao passo que, assim como no passado da
festa em Portugal, é proporcionada e realizada pela elite. E é preciso Lembrar-se das palavras de Lefebvre (1958), ao dizer que a prosperidade dos
ricos contribuía para a prosperidade geral; assim, uma vez bem sucedida, a
festa garantiria bênçãos a todos, equilibrando as forças da natureza, por
meio do Espírito Santo.
A partir da década de 1950, Mogi das Cruzes iniciava um processo
de intensificação de seu setor industrial, incentivando a instalação de fábricas no município. Aos poucos ia ganhando corpo o discurso da sociedade
moderna e do progresso do país, a exemplo do que já se configurava em São
Paulo. A Festa do Divino de Mogi das Cruzes, por seu caráter religioso
popular, enfrentava, no plano ideológico, dificuldades com relação à sua
aceitação, tomada como sinalização de atraso. Porém, mesmo que singelas,
o Espírito Santo recebia suas homenagens.
Hoje, a Festa do Divino Espírito Santo é bastante divulgada, pois
desde 1985, faz parte do calendário turístico de Mogi das Cruzes (MORAES,
2000). Portanto, o discurso, nos jornais da cidade, feito por uma camada da
sociedade preocupada em manter a tradição, vai ao encontro da potencialidade turística que a festa tem. A presença marcante dos chamados “grupos
folclóricos”, bem como o desfile da Entrada dos Palmitos com os carros de
bois enfeitados são cada vez mais enaltecidos, com o objetivo de atrair turistas, pesquisadores, programas televisivos etc., no período da Festa do
Divino. Pensava-se que, pela aparência colorida dos grupos folclóricos que
chama a atenção de pesquisadores, da imprensa etc., a festa jamais sucumbiria. Assim, germinava, na passagem da década de 1980 para 1990, uma
nova forma de se pensar e organizar a Festa do Divino, em nome da tradição da cultura popular.
Em 1994, um grupo de ex-festeiros fundou uma associação com o
intuito de auxiliar os festeiros na realização da Festa do Divino: a Associação Pró-Festa do Divino Espírito Santo. Tal fato veio contribuir para mudanças significativas com relação não só à organização, mas também à apresentação e, em parte, ao sentido da Festa.
A Associação Pró-Divino22 foi aperfeiçoando a sua logística e eficiência ao longo do tempo. Para isso, intensificou a divisão do trabalho dentro da
própria Associação com a criação de coordenações, no interior das diretorias. A Associação tem atuado também na área de captação de recursos junto
22
Atualmente, a Associação Pró-Divino possui sede própria, em terreno doado pela Prefeitura Municipal, no
ano de 1997.
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às empresas de Mogi das Cruzes. Assim, a coordenação de marketing oferece a essas empresas um espaço em cartazes, folders, aventais, bonés e
demais meios de divulgação, em troca de auxílio financeiro ou material
para a Festa do Divino. Dessa forma, a festa foi ganhando cada vez mais
dimensões espetaculares, sobretudo pelas suas manifestações folclóricas,
chamando a atenção, não só da população local, mas de turistas também, e,
por isso mesmo, de empresas e da mídia (escrita e televisiva).
A Festa do Divino de Mogi das Cruzes tem seu marco inicial já com
o encontro das bandeiras, em frente à casa do festeiro do ano, de onde seguem em procissão, até a Praça da Catedral de Santana onde o bispo
diocesano faz a bênção das bandeiras do Divino (foto 1). Este é também o
momento de abertura do Império23 do Divino Espírito Santo (foto 2), montado a cada ano, na Praça da Catedral. Lá ficam guardadas as bandeiras dos
festeiros e dos Capitães de Mastro. Esse é o espaço sagrado de onde partem
e para onde chegam todas as procissões realizadas durante a festa.
A quermesse da festa é realizada, desde 2003, no Centro de Integração
Profissional Maurício Najar (CIP). Apesar de um pouco distante da Catedral de Santana, o Centro de Integração é grande o suficiente para abrigar as
barracas de comida, bebida, doces e demais diversões. A quermesse acontece todos os dias da festa, ou seja, durante os onze dias, e termina no dia de
Pentecostes, sendo voluntárias as pessoas que trabalham nas barracas, sob
coordenação da Associação Pró-Divino; algumas dessas barracas estão sob
a responsabilidade de instituições de caridade, que repassam 25% do que
arrecadam para a referida Associação. O lucro da quermesse, após o acerto
de contas com as instituições e demais gastos, é entregue à diocese de Mogi
das Cruzes, para obras de caridade, segundo informações de membros da
Associação Pró-Divino.
Cabe observar que a quermesse representa, hoje, uma fragmentação da
Festa do Divino de Mogi, uma vez que, aos poucos, foi se dissociando da
centralidade da mesma – a Catedral de Santana e o Império do Divino. Acontece que, dado o aumento da participação popular na festa, a Praça da Catedral ia se tornando cada vez mais insuficiente, havendo transferência da quermesse ora para outra praça, ora para um estacionamento ou para um espaço
da Prefeitura, até chegar ao CIP. Tendo grande visibilidade, a quermesse, que
conta com o voluntariado, recebe também o auxílio de funcionários públicos
e de empresas privadas,24 inclusive do Prefeito Municipal que, durante a Festa, aparece à população e, sobretudo à mídia, como apenas mais um dentre
23
Império é um local escolhido para se montar um altar do Espírito Santo. Dependendo de onde ocorre a Festa do
Divino, esse local pode ser uma sala nas dependências da igreja ou capela, a própria casa dos festeiros ou, ainda,
montado com material de madeira, como ocorre em Mogi das Cruzes. No Império, ricamente decorado, ficam
guardadas as bandeiras dos festeiros e dos Capitães de Mastro.
24
Conforme relatos, funcionários de empresas privadas e do serviço público trabalham na quermesse como voluntários, proporcionando visibilidade a essas instituições.
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os muitos devotos. Pode-se dizer até, que a Quermesse é, hoje, outra Festa, pois muitos de seus freqüentadores não são os mesmos que participam
da chamada parte religiosa da Festa, constituída por missas, passeatas,
procissões.
A partir do segundo dia de festa, à noite, inicia-se a missa da novena,
na Catedral de Santana, celebração eucarística com a participação de padres
da diocese de Mogi das Cruzes e suas paróquias. Logo após a novena acontece a Passeata das Bandeiras que, com a Folia do Divino, percorre as ruas
do centro da cidade, visitando de duas a três residências previamente
agendadas pela Associação Pró-Divino. Após as saudações cantadas da Folia,
os donos da casa sempre oferecem aos presentes café, bolo, pão, chá etc.
Quando vir em sua casa
uma bandeira chegar
É o Divino Espírito Santo
que veio lhe visitar. (Folia do Divino de Biritiba Ussu (Mogi das
Cruzes))
A Alvorada ainda acontece durante nove dias, sempre às cinco horas
da madrugada. A procissão, que também conta com a participação da Folia
do Divino, começa e termina no Império do Divino, assim como na Passeata das Bandeiras. Dois dias da Alvorada podem ser considerados especiais: na primeira segunda-feira da festa, a procissão da Alvorada é interrompida ao chegar ao Cemitério de São Salvador, onde é celebrada uma missa
pela intenção dos festeiros, dos Capitães de Mastro e dos devotos falecidos;
no domingo de Pentecostes, acontece o ritual da fogueira, em que a procissão é recebida pelas pessoas que passaram a noite em vigília na igreja Nossa Senhora do Carmo. Em frente a essa igreja é acesa uma fogueira e feita
uma celebração com todos os fiéis.
A tarde do primeiro domingo da festa é reservada às crianças, com
várias brincadeiras, como quebra-potes, corrida do saco, corrida do ovo na
colher, entre outras. Voluntários, estudantes das Universidades Braz Cubas e
Mogi das Cruzes, organizados também pela Associação Pró-Divino,
monitoram as brincadeiras das crianças, inserindo-as no contexto da festa.
A Entrada dos Palmitos, conforme já mencionado, acontece no sábado pela manhã, véspera de Pentecostes e é, atualmente, um dos momentos
mais importantes da festa, não só pelo que representa, pela memória, tradição e identidade da população, mas também pelo fato de ser um momento
de grande visibilidade da Festa, sobretudo na mídia (foto 3). A cada ano, os
jornais noticiam um número maior de espectadores, uma forma de atrair,
inclusive, o setor empresarial na qualidade de investidor e/ou patrocinador
da Festa do Divino.
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Participam do desfile várias paróquias com seus grupos de catequese,
escolas, festeiros, ex-festeiros, Capitães e ex-Capitães de Mastro, devotos,
bandas de música, grupos de Congada e Moçambique, bonecões, carros de
bois, carroças, charretes, cavaleiros, percorrendo as principais ruas do centro da cidade. A Entrada dos Palmitos traz à tona a festa pagã, uma vez que
reverencia a natureza e a fartura – representada pelos alimentos – a fecundação, reprodução da vida e o futuro – representados pelas crianças, no
interior dos carros de bois.
Após a Entrada dos Palmitos é distribuído o “afogado”, preparado
durante a noite anterior, e consumido após cerca de duas horas de espera na
fila. Afinal, o “afogado” não é um simples alimento, pois é sagrado, tendo,
inclusive, poder de cura, valendo o sacrifício da espera.
No dia de Pentecostes, pela manhã, escolas e demais instituições iniciam a confecção do Tapete Ornamental pelas ruas centrais de Mogi das
Cruzes. Conforme o jornal Mogi News (2003), o tapete é confeccionado
com pó de quartzo e serragem, sendo utilizados também outros materiais
como pó de café, areia e sal grosso. Ainda segundo o referido jornal, o
tapete é tradição nas festividades de Corpus Christi, tendo sido incorporado
à Festa do Divino em 1994, por iniciativa do então festeiro. Sobre o tapete
percorre a procissão de Pentecostes, na qual estão presentes os grupos de
Congada e Moçambique,25 as Irmandades de São Benedito, Venerável Ordem Terceira do Carmo, Sagrado Coração de Jesus, Santana e Santíssimo
Sacramento, as Rezadeiras, o bispo diocesano e padres, seguido do Imperador e Imperatriz (casal de crianças), dos Festeiros e do andor do Divino
(foto 4) e ainda, os casais de ex-festeiros e ex-Capitães de Mastro, a Banda
Santa Cecília e os devotos em geral.
No percurso da procissão são colocados sete altares com a Pomba
Branca, um de cada cor, representando os dons26 do Divino Espírito Santo.
Ali, a procissão pára, todos rezam e uma pomba branca é solta.
Termina a procissão na Catedral onde é celebrada a missa solene,
pelo bispo diocesano de Mogi das Cruzes. A Pomba que estava sobre o
andor é levada para dentro da Catedral e os grupos de Congada e Moçambique ficam dançando na Praça, em frente ao Império do Divino e ao Mastro.
Depois da missa ocorre a queima dos pedidos ao Espírito Santo, na presença do bispo, dos festeiros e de devotos.
25
Em Mogi das Cruzes existem os seguintes grupos: Congada São Benedito, Congada Santa Efigênia, Congada
Nossa Senhora do Rosário, Batalhão Nossa Senhora Aparecida e Moçambique São Benedito e Nossa Senhora do
Rosário.
26
Isaías, profeta de Jesus Cristo, atribuiu ao Espírito Santo sete dons, os quais são hoje representados por cores:
azul – sabedoria; prata – entendimento; verde – conselho; vermelho – fortaleza; amarelo – ciência; azul escuro –
piedade; roxo – temor a Deus (Isaías 11, 2), conforme Rodrigues Filho e De Carlo Filho (2004).
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Ao final do dia, os festeiros fazem o agradecimento e uma prece ao
Espírito Santo e fecham o Império, que será desmontado e reaberto somente um ano depois.
Geralmente, durante as celebrações de Corpus Christi é anunciado o
nome do novo festeiro pelo bispo diocesano, com base em uma lista de
nomes proposta pela Associação Pró-Divino.
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
No processo de transformação da festa da religiosidade popular em
produto a ser consumido, a Entrada dos Palmitos que tinha antes relação
direta com o vivido, passa a ser um cortejo organizado para atender a interesses de determinados grupos locais. Nesse sentido, as ruas são interditadas e as rotas alternativas são divulgadas nos meios de comunicação, a fim
de não provocar transtornos aos usuários; autoridades municipais se vêm
ao lado de Festeiros e Capitães de Mastro carregando bandeiras do Divino;
Paróquias são representadas pelas crianças da catequese e pelos grupos da
comunidade; grupos de Congada e de Moçambique continuam se apresentando, só que agora têm direito a pequeno “cachê” ou ajuda de custo, embora,
segundo entrevistas, este não seja o fator determinante de sua participação;
a população rural da região (com charretes e carros de bois) recebe toda a
assistência ao chegar para a Entrada dos Palmitos, uma vez que é convidada
pela Associação. Vai-se perdendo o sentido espontâneo da participação popular numa tendência à reinvenção do tradicional, pois hoje o cortejo agrega elementos que não fizeram parte do passado da festa, o passado que se
quer preservar. Terminado o cortejo, as ruas são imediatamente limpas, sem
deixar vestígios do ocorrido, a fim de interferir pouco na “ordem urbana”.
Para garantir a tradição, a festa aos poucos vai se tornando mercadoria, mediante a venda de quotas de patrocínio às empresas de Mogi das
Cruzes e região. As empresas apoiadoras da festa ganham notoriedade, por
meio dos folhetos e cartazes de divulgação, e da mídia. A diretoria da Associação Pró-Divino, que medeia essa negociação, por sua vez, entende que
seu papel é preservar a tradição da festa e, para isso, contrapõe-se a algumas
condições impostas por possíveis patrocinadores: não é em todo lugar que
se pode colocar o logotipo da empresa patrocinadora. A Bandeira do Divino, a Entrada dos Palmitos, a Procissão de Pentecostes, o Tapete Ornamental são intocáveis nesse sentido; não é qualquer empresa que pode patrocinar, pois prevalece o bom senso.
Recorreu-se a Debord (1997, p. 18) para pensar no espetáculo da
festa, pois, para o autor, quando a aparência ganha contornos fundamentais,
é porque a vida social está tomada pelo espetáculo, subordinada aos “resultados acumulados da economia”.
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O caráter espetacular da festa domina a quermesse, pois o comércio
que nesse momento festivo se estabelece torna-se importante à medida que
dele provém o recurso destinado ao pagamento de serviços, os quais contribuem para a transformação da festa em espetáculo.
A Festa do Divino Espírito Santo de Mogi das Cruzes reproduz as
contradições da sociedade, as diferenças sociais e econômicas. A Igreja, por
meio do bispo diocesano, busca seus fiéis, atraídos pelas atividades da festa
e, atualmente, freia a ostentação e incentiva a realização da festa pelos diversos bairros de Mogi das Cruzes, esperando a intensificação de seu caráter religioso. Assim, como revelou a pesquisa realizada por Brandão (1978),
a Igreja respeita, mas desprestigia o “lado profano” dos festejos, tentando
deslocar para a tradição da festa, o aspecto mais religioso; as autoridades
civis e as empresas, ao contrário, privilegiam os rituais “folclóricos” ou
“lado profano”, centrando a Festa nos momentos mais atrativos aos turistas, aos curiosos, ao mercado; os “[...] agentes da Festa [devotos] trabalham
no sentido de preservar o que consideram ‘suas tradições’, para eles o motivo quase único pelo qual ainda tem sentido repeti-la todos os anos”
(BRANDÃO, 1978, p. 45).
A forma como é feita essa “preservação da tradição”, pelos
organizadores, no caso de Mogi pela Associação Pró-Divino, é aquela sob o
domínio do capital. Eis a contradição: a espetacularização da festa não pode
ser entendida como um fato dissociado do contexto urbano-industrial, do
processo de modernização. A festa se moderniza ao se atualizar no processo
de urbanização, mas mantém não só elementos do seu passado como também aqueles de plenitude, os quais emergem no período festivo e, mesmo
antes dele, durante a sua preparação. No cotidiano acelerado do processo de
modernização dominado pelo capital, o tempo lento de uma sociedade agrária
ainda persiste.
Ao mesmo tempo em que há uma grande organização da Festa do
Divino de Mogi das Cruzes por meio da Associação, com intensa e evidente
divisão do trabalho, é importante para o devoto possuir bandeira do Divino,
participar da festa como voluntário e manifestar sua religiosidade, transformando a organização de caráter empresarial da qual participa em nada mais
que devoção, agradecimento, alegria, esperança. Há, nesse sentido, uma
tradução do espetacular para o popular que, transforma o espetáculo da festa em momento privilegiado de encontro, de reunião, de uma sociabilidade
mais profunda.
Lembrando Lefebvre (1958), o acontecimento festivo reúne todas as
energias acumuladas no cotidiano que explodem na abundância (de ornamentações, de alimentos, de alegria, de esperança). Os resíduos emergem na festa,
mostram-se à sociedade que não se apercebe de seu potencial transformador.
Manifestam-se as possibilidades de transformação, na alegria coletiva, no estar em festa, mesmo esta em processo de espetacularização. Essas
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Foto 1: Cerimônia de abertura da Festa do Divino de Mogi das Cruzes, quando
o Bispo Diocesano benze as bandeiras dos fiéis, em frente ao Império.
Foto: Neusa de Fátima Mariano/2006.
Foto 2: Altar do Espírito Santo no interior do Império do Divino. Chamamos a
atenção para o cetro e a coroa reais, na parte inferior da foto.
Foto: Neusa de Fátima Mariano/2005.
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Foto 3: O cortejo da Entrada dos Palmitos toma as ruas do centro da cidade,
terminando no Império do Divino, na véspera de Pentecostes.
Foto: Neusa de Fátima Mariano/2006.
Foto 4: Andor do Espírito Santo, representado por uma Pomba Branca, durante
a Procissão de Pentecostes.
Foto: Neusa de Fátima Mariano/2006.
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possibilidades não significam retorno ao passado porque a festa é tradicional, antes visam o que está por vir ou, como diz Bloch (2005, p. 21-22),
visam o “ainda-não-consciente”, aquilo que “ainda não veio a ser”, algo
que ainda não se alcançou, o futuro que se almeja.
A Festa do Divino Espírito Santo de Mogi das Cruzes manifesta esse
potencial que alimenta a esperança de um mundo melhor, a utopia. Resíduos
fazem-se presentes na festa (os irredutíveis), por meio da cultura popular,
mas “ainda-não-conscientes”, ainda não compreendidos, separados que estão, diluídos no cotidiano e no espetáculo que tende (mas se trata de uma
tendência) a destruir a festa no seu sentido mais pleno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, A. M. R. Câmara. In: Festa do Divino e suas transformações na comunicação e na cultura.
São Paulo: Andross, 2005.
BÍBLIA. Mensagem de Deus. São Paulo: Santuário/Loyola, 1994. 1324 p.
BLOCH, E. Formas remanescentes mais antigas do tempo livre, deturpadas, porém não sem esperança:
hobby, festa popular, anfiteatro. In: —– O princípio esperança. Trad. de Werner Fuchs. Rio de Janeiro:
EDUERJ/Contraponto, 2006. V. 2. p. 459-467.
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MAPEAMENTO DO PROTESTANTISMO RURAL
NO LENÇOL DE CULTURA CAIPIRA BRASILEIRO
Lidice Meyer Pinto Ribeiro*
Resumo: Observa-se no lençol de cultura caipira delimitado por Antonio Cândido a
existência de um protestantismo histórico que difere do protestantismo urbano por
apresentar características próprias, incluindo crenças e interpretações que se assemelham mais ao catolicismo rústico que ao protestantismo propriamente dito. Esse protestantismo, que se denomina aqui de protestantismo rural, contrasta nitidamente enquanto ethos, modo de operação e modo de vida com o protestantismo urbano. Em
sua definição, tomam-se por base as características da religiosidade caipira determinadas por Antônio Mendonça: familiaridade com o sagrado (religiosidade difusa,
santorial, politeísta, mágica e messiânica) e caráter lúdico. A presente pesquisa propõe-se a investigar a dispersão desse protestantismo com características particulares
que ocorreu no lençol de cultura caipira brasileiro por meio da sintonia de valores
oriundos de uma denominação de origem reformada ou calvinista com os valores da
cultura caipira de raiz. Este estudo enfoca as igrejas da denominação presbiteriana
implantadas no meio rural brasileiro. Baseia-se em análise de documentação histórica
de caráter mais amplo sobre a Igreja Presbiteriana no Brasil e no âmbito da religião na
qual o estudo se baseou. Pretende-se que esta pesquisa contribua para uma melhor
compreensão dos processos de formação do protestantismo brasileiro como um todo
por meio do estudo dessa vertente desconhecida: o protestantismo rural.
Palavras-chave: Protestantismo. Protestantismo rural. Presbiterianismo. Antropologia rural. Antropologia da religião.
Abstract: In the peasant society described by Antonio Candido, we observe the
existence of a historic Protestantism that has it’s own characteristics, including beliefs
and interpretations that are closer to peasant Catholicism than to the proper
Protestantism. This kind of Protestantism, which I call rural Protestantism, clearly
contrasts in ethos, operation and life style, with urban Protestantism. Its defining
characteristics are those studied by Antônio Mendonça: intimacy with the sacred
(diffuse, polytheistic and messianic religiosity with emphasis on saints and magic)
and playfulness. This paper aims to investigate the propagation of this special kind of
Protestantism which resulted from syncretism of the values brought by Reformed or
Calvinist missionaries with the pre-existing peasant values. It is based on analysis of
historical documentation of wider character on the Presbiteriana Church in Brazil and
the scope of the religion on which the study is based. Our goal is to enhance the
understanding of the formative processes of Protestantism in Brazil by exposing this
little-known entity, rural Protestantism.
Keywords Protestantism. Rural Protestantism. Presbyterianism. Rural Anthropology.
Anthropology of Religion.
*
Doutora em Antropologia Social pela FFLCH/USP, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro do GAAIA – Grupo de Antropologia Jurídica, Agrária e Ambiental (Dep. Antropologia/FFLCH/USP).
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INTRODUÇÃO
Observa-se, no lençol de cultura caipira1 delimitado por Antonio
Candido (2001), a existência de um protestantismo que difere do protestantismo tradicional e urbano por apresentar características próprias, incluindo
crenças e interpretações que se assemelham mais ao catolicismo rústico2
que ao protestantismo propriamente dito. Esse protestantismo, que se passa
a denominar de protestantismo rural,3 contrasta nitidamente enquanto
ethos, modo de operação e modo de vida do protestantismo urbano.
Muito se tem pesquisado acerca do chamado catolicismo popular ou
catolicismo rústico. Pesquisadores como Carlos Rodrigues Brandão e Maria Isaura Pereira de Queiroz tentaram desvendar seus mistérios e encantos,
além de procurar defini-lo. Não houve, porém, até o momento estudos
sobre o protestantismo tradicional que se desenvolveu nas áreas rurais do
Brasil. Na pesquisa de doutorado da qual resultou a tese “Religião, Magia e
Vida de um Protestantismo Rural” (RIBEIRO, 2005), defendida junto à
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, procurou-se demonstrar a existência desse fenômeno religioso, pelo
qual, características observadas na prática do catolicismo rústico, são observadas também dentro do protestantismo que se desenvolveu nas regiões
rurais do Brasil.
Para configurar o protestantismo rural, deve-se compreender primeiramente a época e o pano de fundo religioso em que se deu a inserção do
protestantismo no universo camponês brasileiro.
Após algumas tentativas anteriores4 frustradas, a religião protestante
chegou definitivamente ao Brasil em meados do século XIX, por meio do
protestantismo de missão ou conversão e encontrou aqui já profundamente
enraizado o catolicismo implantado pelo descobridor e colonizador. Devi1
O lençol de cultura caipira definido por Antonio Candido teria se estendido, em fins do século XVIII, pelas
capitanias de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul, em que se revelam formas de sociabilidade
e sobrevivência caracterizadas por soluções mínimas (CANDIDO, 2001, p. 45).
2
O termo catolicismo popular é apenas um dos utilizados para o mesmo fenômeno, podendo ser encontrado dessa
forma em Guimarães (1974), em Cesar (1976), Azzi (1976), Hoornaert (1976) e em Brandão (1985). Os outros
termos utilizados são: Rústico, em Queiroz (1973), Monteiro (1974) e Brandão (1980), Tradicional-Rural, em
Camargo (1973), Privatizado, em Oliveira (1976a e 1976b) e Folk, em Araújo (1958, 1979) e Della Cava (1977).
Cabe ressaltar a existência da visão de Marco Antônio Silva Melo e Arno Vogel, que defendem a possibilidade de
ser uma característica do catolicismo universal a de abrigar catolicidades particulares em seu seio, sem causar
uma ruptura em sua essência, não admitindo assim a separação de um catolicismo popular e um catolicismo
urbano. Esses dois tipos seriam apenas duas formas de apresentação de um mesmo catolicismo universal.
3
Para maiores informações sobre o protestantismo rural, consulte Ribeiro (2005).
4
Mendonça e Velasques Filho (1990) classifica as tentativas de implantação do protestantismo no Brasil em quatro
tipos: Invasão (1557-1558 no Rio de Janeiro, 1630-1654 no Maranhão, 1555-1558 no Rio de Janeiro, 1630-1654
em Recife e Olinda, 1594-1615 no Maranhão), Imigração (1816 no Rio de Janeiro, 1820 em Nova Friburgo, 1824
em São Leopoldo), Conversão (1835 e 1859 no Rio de Janeiro, 1881 em Salvador, 1890 em Porto Alegre) e Exílio
(1855 em Petrópolis).
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do ao tempo em que se preservou a sua hegemonia no território brasileiro, o
catolicismo criou fortes laços com a cultura brasileira, chegando mesmo a
formar uma relação simbiótica com a mesma, que pode ser sentida com
profundidade no catolicismo popular5 ou rústico, já bem estudado por diversos autores.
Apesar de sua implantação original em cidades em franco crescimento, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, o protestantismo não se desenvolveu como queriam seus divulgadores nos centros
urbanos. A mensagem religiosa protestante no Brasil não atingiu a classe
dominante, fortemente imersa no catolicismo por motivos não só religiosos, mas principalmente políticos, devido à profunda interligação dessas
duas áreas. O produto dessa simbiose entre religião e poder local é chamado por Hoornaert (1974) de “catolicismo patriarcal”.
Por encontrar maior resistência ao seu crescimento nos centros urbanos, onde o catolicismo assumia uma postura dominante pela presença física tanto das igrejas como dos párocos, o protestantismo buscou terreno para
seu crescimento no ambiente rural. Seguindo o caminho da expansão cafeeira
(MENDONÇA, 1995; CALDAS FILHO, 1999), os missionários protestantes investiram na evangelização dos interiores, penetrando pelas zonas
rurais da província de São Paulo e zonas fronteiriças da província de Minas
Gerais, dali se encaminhando para toda a área do cinturão caipira delimitado por Antônio Candido (2001) indo até Mato Grosso e Goiás, áreas distantes fisicamente da Igreja Católica e fora dos patrimônios dos santos de devoção.6
Mendonça (1995), em seu estudo sobre a inserção do protestantismo
no Brasil, descreve com propriedade a religião do homem pobre do século
XIX, momento em que se dá a investida do protestantismo no meio rural. A
religião presente no meio rural era o catolicismo, mas pode-se dizer que
essa presença não se dava por uma escolha pessoal do fiel, mas, sim, por
uma tradição trazida pelo colonizador que acabou por se fixar nos vales
perto de rios, assumindo uma atividade agrícola. Não eram, portanto, pessoas com grande conhecimento teológico, mas, sim, detentoras de um saber
religioso difuso e tradicional. Mendonça descreve a teodicéia existente no
5
Por catolicismo popular entenda-se a definição dada por Brandão: “um sistema coerente e complexo de crenças e
práticas do sagrado, combinadas com agentes e trocas de serviço... Não é uma criação religiosa exclusiva e
isolada dentro de uma cultura camponesa, mas, ao contrário, retraduz para a sociedade caipira dependente, segundo os seus termos, o conhecimento e a prática erudita da religião dominante” (BRANDÃO, 1985, p. 32).
6
O patrimônio do santo de devoção aqui se refere às áreas do catolicismo patriarcal, no qual vigorava o “direito de
padroado”. Em uma carta do secretário do bispado de Mariana, MG, do final do séc XIX, lê-se: “os fundadores
recebiam dos Exmos. Rvmos. Srs. Bispos o titulo de padroeiros dessas capelas, gozando de muitos privilégios,
como o de ter capelão, poder nomeá-los entre os sacerdotes aprovados, administrar os bens das capelas, etc, titulo
este de que os fundadores muito se vangloriavam. Era uma espécie de direito de padroado” (RIBEIRO, 2005, p.
178).
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meio rural brasileiro do século XIX como sendo difusa, santorial, politéica,
mágica e messiânica. É o surgimento de um catolicismo de raiz, ou seja,
uma crença fortemente enraizada na existência de Deus e de diversos santos
intermediários, além de outros habitantes de um mundo sobrenatural que
tem uma existência paralela à dos homens, mas que interage constantemente com esta. Uma religiosidade rica em eventos mágicos e simbólicos, que
se apresenta em todos os momentos da vida do homem do campo, desde o
seu nascimento até a maturidade, envolvendo o preparo da terra, o plantio e
a colheita. A familiaridade com o sagrado manifesta-se na compreensão
holística de seu mundo, no qual todos os eventos do cotidiano comuns ou
extraordinários estavam dentro de uma lógica religiosa mágica e simbólica
perfeitamente compreensível para os pertencentes a esse grupo social.
Por fim, observa-se a existência de um caráter extremamente lúdico
na sociedade rural, marcado pelas festas, mutirões e relações de compadrio
e compadresco. Regina Novaes (1983), sintetizando o ethos desse catolicismo de raiz afirma: “ser católico é natural. É dar continuidade aos ensinamentos que fizeram parte de seu processo de socialização, que lhes forneceram elementos para uma determinada visão de mundo e lhes transmitiram
práticas adequadas para a relação com os poderes sobrenaturais” (p. 156)
Pode-se, portanto, afirmar que o protestantismo tradicional, ao penetrar na zona rural do país, se deparou com uma religiosidade que trazia em
si elementos do catolicismo oficial moldados segundo a cultura caipira, o
chamado catolicismo de raiz. O evangelho protestante chegou ao meio rural brasileiro como uma proposta alternativa plausível tanto no plano das
crenças como no das condições de existência. Mendonça (1995) correlaciona
cinco razões porque a população rural ofereceu pouca resistência à mensagem protestante:
(...) o campo religioso rarefeito, o temor constante da expropriação religiosa, a recusa do padre como sinal desta expropriação, a pobreza do receptor da mensagem protestante e, finalmente, o nomadismo religioso... afiguram-se ter sido as pequenas brechas através das quais o protestantismo penetrou na camada pobre da população rural
(p. 146).
Apesar dessas cinco condições favoráveis à penetração de uma nova
forma religiosa, ocorreram ainda duas forças de resistência, uma interna,
mediante o institucionalismo e intelectualismo protestante, que dificultava
a compreensão da mensagem, e outra externa, que se manifestava nas atitudes que eram esperadas dos novos conversos:
A institucionalização excessiva, com suas exigências e obrigações,
assim como o intelectualismo, limitaram, sem duvida, o ingresso de adeptos no protestantismo. Sua ética muito distanciada dos padrões vigentes na
sociedade brasileira fizeram do protestantismo uma contracultura (MENDONÇA, 1995, p. 150).
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Devido às desigualdades sociais e religiosas encontradas em cada
bairro rural em que o protestantismo chegava, apesar de ter ocorrido a aceitação da mensagem com uma relativa abertura, a forma como essa mensagem foi trabalhada dentro do sistema sócio-religioso não foi a mesma em
todos os locais:
a) em alguns bairros, onde o catolicismo oficial era mais presente,
apesar das características já citadas, o evangelho chegou como uma nova
religião, com uma teodicéia (BERGER, 1971) de contraste em relação à
religião anteriormente estabelecida, embora não se opondo radicalmente,
como foi exposto acima, estabelecendo-se da forma tradicional;
b) numa outra situação, o missionário protestante encontrou bairros
onde os elementos oficiais do catolicismo eram extremamente escassos, se
não ausentes, não havendo o confronto de teodicéias e, dessa maneira, podendo implantar-se de forma mais autêntica. Nessas localidades a mensagem tradicional recebida foi filtrada, reinterpretada e reinventada. Foi aí
que se desenvolveu o protestantismo rural, tema desta pesquisa.
CARACTERÍSTICAS
DO PROTESTANTISMO RURAL
Quando a mensagem protestante chegou aos bairros rurais onde não
havia um representante oficial do catolicismo, mesmo que leigo, o protestantismo desenvolveu-se de forma bem diferenciada. Esses bairros, por se
situarem em regiões de mais difícil acesso e por serem pouco povoados,
não despertaram muito interesse político e econômico por parte da Igreja
oficial. Dessa forma, os moradores desses bairros raramente tinham contato
com um pároco, passando alguns por um processo de descrédito do catolicismo mesmo antes da chegada do protestantismo, o que se observava pelo
estado de abandono de algumas capelas de sítio. Como não havia uma religião oficial pré-estabelecida hegemonicamente contra a qual necessitasse
de contrapor-se, o protestantismo teve espaço para reinventar-se, dando origem a uma nova forma religiosa: o protestantismo rural.
Nessa nova forma de protestantismo, observa-se a inexistência de
rupturas com o catolicismo de raiz pré-existente no lençol de cultura caipira
brasileiro. A mensagem racional do protestante adaptou-se à crença no sobrenatural, inserindo-a no conjunto de suas explicações lógicas do universo
circundante. Tomando por base as características da religiosidade caipira
identificadas por Antônio Mendonça (1995): familiaridade com o sagrado
(religiosidade difusa, santorial, politeísta, mágica e messiânica) e caráter
lúdico, pode-se perceber como o protestantismo rural resolveu o problema
da inserção na cultura caipira, adaptando-se à mesma.
A primeira característica da religiosidade caipira, familiaridade com
o sagrado, mantém-se dentro do protestantismo rural, por meio de re-interpretações e pelo estabelecimento de co-relações. Dentro dessa primeira ca-
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racterística, pode-se perceber a re-interpretação dos símbolos e ritos, a compreensão da natureza como instrumento e voz de Deus, o estabelecimento
sincrético de ritos produtivos e protetivos e a compreensão do mundo sobrenatural dentro de uma hierarquia que inclui os seres fantásticos (saci,
lobisomem etc.) juntamente com as figuras de Deus, Jesus e Espírito Santo.
O protestantismo oficial que chega ao meio rural brasileiro vem, como
já se afirmou anteriormente, despido de simbologias mágicas. Os poucos
símbolos e ritos do cristianismo que restaram ao protestantismo histórico
recebem dentro do protestantismo rural uma nova roupagem, sendo
reinterpretados. São estes: a água batismal, o pão na cerimônia de Santa
Ceia ou Ceia do Senhor, o vinho e o templo. Apesar de o protestantismo
histórico não apresentar uma grande ênfase no local de culto, o que Mendonça (1995) percebeu como uma das brechas que facilitaram a penetração
do protestantismo no meio rural dos santos nômades,7 para o protestantismo rural, o templo adquire a função de símbolo da presença divina e espaço sagrado,8 tão importante para a constituição da identidade do indivíduo
frente ao bairro e frente ao restante de seu mundo. O templo torna-se o
símbolo principal de pertencimento ao bairro, sendo comum a presença de
ex-moradores nas celebrações das festas anuais, como forma de manter a
identidade adquirida enquanto morador do bairro protestante, mantendo o
sentimento de localidade9 que vinha do catolicismo de raiz.
Esses quatro elementos, água, pão, vinho e templo, que no protestantismo histórico aparecem apenas como um sinal visível da ação de Deus
adquire aqui uma reinterpretação, assumindo características ausentes e até
mesmo renegadas pela grande tradição.
Os rituais protestantes são reinventados, observando-se nos discursos
dos fieis, a existência de outros ritos além dos aceitos pela igreja oficial,10 que
apresentam todas as características antropológicas para serem considerados
como rituais de dois tipos: rituais coletivos e rituais individuais. Por rituais
coletivos entendem-se aqueles que necessitam de um grupo social reunido
para que se desenvolvam, sendo esses o Batismo, a Profissão de Fé e a
Santa Ceia. Os rituais individuais seguem uma estrutura fixa e formulada
7
“Não estando a religião protestante ligada ao espaço, mas sendo seu Deus radicalmente transcendente, o nomadismo
podia ser até mais fácil para eles do que para os católicos. Onde estivessem alguns, ou mesmo uma só família, ali
estava a igreja” (MENDONÇA, 1995, p. 154).
8
Para uma maior compreensão sobre o simbolismo do templo, consultar o artigo “A Igreja, espaço sagrado
Reorganizador do Mundo” (RIBEIRO, 2006).
9
“O sentimento de localidade constituía elemento básico para delimitar a configuração de um bairro, tanto no espaço
geográfico quanto no espaço social. Tradicionalmente uma capela marcava o núcleo central, e a festa do padroeiro
constituía um dos momentos importantes de reunião para os componentes dispersos pelas cercanias, — momento
em que se afirmava a personalidade do bairro, em relação aos bairros vizinhos” (QUEIROZ, 1967, p. 65).
10
As denominações protestantes que evangelizaram o cinturão de cultura caipira consideram como ritos apenas a
Santa Ceia e o Batismo.
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pela divindade, mas podem ser experimentados sem a presença de outro
indivíduo. O rito particular, individual, celebrado pelo protestante rural é a
conversão. Comparativamente à oração estudada por Mauss, a conversão é
uma prática voltada para as coisas sagradas, com eficácia em si mesma,
porém motivada por um poder religioso externo ao indivíduo que dela participa. A conversão é plena de sentido como um mito e cheia de força e
eficácia como um rito. No evento da conversão, ocorre um retorno à perfeição estabelecida por Deus para a manutenção da ordem no bairro, na concepção de seus moradores. Crê que Deus é o criador e o mantenedor da
ordem e da estabilidade natural e social, logo, o afastamento de um dos
elementos sociais da comunhão da igreja é uma ruptura na organização,
necessitando ser restaurada.
No protestantismo rural, observa-se que, mesmo após a conversão, o
mundo do caipira não perde seu significado mágico-religioso. Todo o universo é sagrado, pois todo ele é permeado pela esfera do sagrado. A natureza é o veiculo da força divina e também o seu meio de comunicação com os
homens. Dessa forma, o caipira protestante continua a “ler” nos eventos
meteorológicos, nas manifestações de animais ou no canto dos pássaros as
mensagens de Deus para os seus problemas cotidianos, como dia para plantar, colher, para castrar a criação e até para calcular o parto das fêmeas em
geral. A relação do lavrador é diretamente com Deus, que para o caipira
habita o céu, mas se manifesta na vida dos homens na terra por meio da
natureza. As manifestações do sagrado na natureza têm a finalidade de serem transmissoras e comunicadoras do poder de Deus. Cabe ao caipira protestante conhecer a linguagem de Deus na natureza. O uso de ervas curativas e mágicas é comum, pois há a compreensão de que Deus age diretamente na natureza revestindo-a de força, razão pela qual as plantas que são
colhidas no “mato”, onde não há a interferência humana, são cheias de força revigorante e curativa.
Dentro dessa compreensão do sagrado em todas as dimensões da vida,
a religião protestante, como sistema de explicação, é incompleta e não abrange todo o campo simbólico necessário. No protestantismo rural, não ocorre,
portanto, uma substituição de sistemas, mas uma complementaridade com
o catolicismo de raiz, necessária para abranger toda a necessidade de explicação simbólica para os sinais que o homem do campo observa todos os
dias na terra, água e ar. Criam-se ritos produtivos e protetivos.11 Os ritos
produtivos relacionam-se com a produção de bem-estar individual e coletivo. É um conjunto de práticas de fundamento mágico-religioso relacionadas com os acontecimentos fundamentais da vida humana (gravidez, parto,
11
Classificação baseada em Emilio Willems (1947) e (1961), que, por sua vez, se baseou no esquema de Raymond
Firth, “Human types” (1938), adotando a distinção entre ritos “produtivos”, “protetivos” e “destrutivos”, sendo
esses ritos tanto religiosos como mágicos.
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período menstrual, batismo, casamento e morte), com a casa, a lavoura e a
criação dos animais. Os ritos protetivos são práticas de conotação mágica
que visam garantir a proteção da criação, da plantação, da casa. A proteção
da pessoa exige que, em situações limite da vida, como a concepção de um
novo ser, na morte e nos enterros, se ponha em prática uma série de medidas
em que elementos religiosos e mágicos se combinam em proporções várias.
Apesar de o protestantismo ter modificado a religiosidade popular
caipira da região, manteve muitas de suas características constitutivas e
adquiriu outras, plasmando as representações e as práticas da sua doutrina à
luz do sentido do sagrado camponês. Ocorreu um movimento contínuo, ora
de segregação ora de agregação. Numa correlação ao pensamento de Franz
Boas d (1955) e que a história não se produz linearmente,12 o protestantismo rural mostra-se diferenciado do protestantismo oficial, mantendo com
ele, porém, vínculos doutrinários e de práticas rituais. Pode-se, dessa forma, intuir a presença de uma religiosidade popular nos bairros rurais protestantes, que em muitas maneiras se assemelha ao catolicismo popular,
mas que, também, em muitas maneiras se distancia deste, originando um
universo de crenças e práticas único e diferenciado. Surge um sistema mágico-religioso, que, apesar de regido por uma religião de características
racionalistas, tem um domínio que escapa completamente às representações oficiais: um domínio mágico, autônomo da sociedade caipira brasileira, eivada do catolicismo popular. O domínio religioso, representado pela
Igreja Protestante Tradicional, cobre o primeiro, sem, porém, anulá-lo, exercendo assim uma influência fortíssima na interpretação local das representações do universo caipira. Dessa forma, a própria Bíblia, livro principal da
fé religiosa cristã, é reapropriada pela cultura caipira local, que se aproveita
de certos textos para embasar suas ações e crenças, numa autonomia representacional e de práticas.
As práticas da religiosidade popular, sejam as do catolicismo oficial
ou sejam as manifestações do protestantismo, sustentam-se em um alicerce
comum: a noção do sagrado e da proximidade do mundo divino. O homem
do campo não distingue seu mundo natural do mundo divino, mas há uma
permeabilidade entre os dois mundos. Nos bairros onde ocorre o protestantismo rural poder-se-ia dizer que o próprio Deus habita o mundo dos homens como se pode perceber nos diálogos do cotidiano caipira. Em oposição ao protestantismo formal, ocorre uma relação próxima e humanizada
com Deus, dispensando muitas vezes a figura de Cristo, que faria esse papel
12
“Não é menos arbitrário pressupor que as formas sociais devem ter-se desenvolvido numa seqüência universalmente válida, cada estágio sempre se baseando em seu precedente, em todas as partes do mundo.” “It is no less
arbitrary to assume that social forms must have developed in regular universally valid sequence, one certain
stage always being based on the same preceding one in all parts of the world” (BOAS, 1955, p. 80).
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mediador no cristianismo reformado e dos santos do catolicismo.13 A figura
do Espírito Santo, tão reverenciada nas igrejas pentecostais, também não
aparece constantemente no protestantismo rural. Na hierarquia classificatória
do mundo religioso do protestante rural, portanto, as figuras de Cristo e do
Espírito Santo perdem a importância dada nas religiões protestantes históricas e o diabo “despiu-se de grande parte de sua grandiosidade e onipotência
do seu ascendente europeu” (NOGUEIRA, 1995, p. 159) para se tornar
uma personagem inserida no cotidiano, um tentador medíocre, com o poder
limitado pelo poder divino, estando suas ações submetidas muitas vezes
também à concordância humana. Também não existe no discurso dos protestantes rurais a presença dos anjos, que se encontram ausentes de suas
representações. A figura dos anjos da guarda, tão presente no discurso das
mulheres e crianças no catolicismo popular aqui se mostra totalmente ausente. Não ocorrem visões de anjos ou profecias, típicas das denominações
pentecostais.
As visagens, seres fantásticos mágico-sobrenaturais, como saci, lobisomem, boitatá e outros, ignoradas pelo protestantismo oficial, surgem muito
esporadicamente, com finalidades morais e de controle social, podendo ser
investidas da autoridade de hierofanias, como agentes de Deus ou do diabo.
A ocorrência de milagres não é uma propedêutica da religião, como é
no catolicismo popular, em que a crença se fortalece a cada intervenção do
divino na vida humana. A intervenção do divino na terra está presente no
cotidiano, manifestando-se a cada mudança climática ou de saúde. Entretanto, ocorrem eventos considerados milagrosos que fogem do contexto
diário da vida no campo. Estes são relatados como sendo uma ocorrência
sobrenatural a quebrar a homogeneidade da constância diária do sagrado
entre os homens. O milagre é a manifestação mais visível do poder sobrenatural de Deus, embora nas igrejas do protestantismo histórico, como a Igreja
Presbiteriana do Brasil, os milagres aconteçam com parcimônia e recato. Peter
Berger (1971) afirma que, da Reforma para Calvino, o protestantismo retirou
da religião dos católicos “as três concomitâncias do sagrado mais antigas e
poderosas: o mistério, o milagre e a magia” (p. 161). A religiosidade popular
vem, pois, devolver o re-encantamento ao mundo dos homens, por meio da
coexistência pacífica da religiosidade oficial e dos eventos mágicos e misteriosos, juntamente com a re-valorização do milagre.
A segunda característica da religiosidade caipira, ou seja, o caráter
lúdico mantém-se dentro do protestantismo rural, podendo ser percebida
13
Brandão realiza um breve levantamento comparativo da sacralização de lugares e da geografia das divindades
para outras religiões fora do catolicismo camponês, onde encontra para o protestantismo histórico informações
dispares das que aqui apresentamos. Para efeito de comparação, ver Brandão (1989, p. 33-37).
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nas festas, nos mutirões e laços de compadrio, que “transcendem o âmbito
familiar, encontrando no bairro a sua unidade básica de manifestação”.14
Esses três eventos sociais, censurados pelo protestantismo histórico, são resignificados dentro do protestantismo rural, mantendo, então, o crente rural
as suas características marcantes de caipira.
Enquanto nos bairros rurais católicos as festas dos padroeiros são
uma característica importantíssima por dar a configuração física desses bairros, como foi mostrado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, nos bairros
protestantes, os limites do bairro são estabelecidos por elementos da vida
dos moradores que os diferenciam dos bairros católicos vizinhos. Pode-se
dizer que a demarcação do bairro rural protestante não ocorre pela presença
de um rito demarcatório, mas, sim, devido a ausências, pois, dentre esses
elementos diferenciadores, constata-se a ausência do consumo de bebidas
alcoólicas e de fumo e a ausência de desmatamento, entre outras. O ciclo
dos dias de festa no protestantismo rural segue a ordem da própria vida
cotidiana, numa seqüência de situações únicas (nascimentos e mortes), raras (casamento ou batismo dos filhos) ou repetidas (aniversário da Igreja,
Natal e Ano-Novo). O aniversário da Igreja é a festa mais significativa, já
que rememora o mito de gênese do bairro, pois, na compreensão dos moradores, a religião protestante é que legitima a organização social diferenciada do bairro em questão. Apesar da continuidade do caráter lúdico do catolicismo de raiz nos bairros de protestantismo rural, deve-se atentar para o
sentido dado para a palavra festa, pois esta não equivale às festanças ou
folguedos católicos. Festa para um protestante rural é uma ocasião para a
reunião de muitos “parentes”, reforçando a noção de pertencimento a um
bairro rural. Para o crente, um culto especial ou um enterro pode ser considerado uma festa, uma vez que ele atende às suas duas condições necessárias: reúne muita gente e fortalece a noção de identidade como bairro rural
protestante.
A noção de fraternidade entre os moradores é muito forte, razão pela
qual conservam a função do mutirão, apesar de haverem modificado sua
estrutura. Por meio das relações de parentesco, biológico e social, todos os
moradores são parentes, numa relação análoga ao compadrio católico. Numa
lógica de trocas, de reciprocidades e relações, crêem que da mesma forma
que Deus vive em união na Trindade com Jesus e o Espírito Santo, da mesma forma, aqueles que o seguem devem viver em união.15 No protestantismo rural, não ocorre a substituição do compadrio pela fraternidade, mas há
14
Antonio Candido nomeia esta segunda característica da sociedade caipira como “vida lúdico-religiosa”, que
seria um “complexo de atividades que transcendem o âmbito familiar, encontrando no bairro a sua unidade básica
e manifestação” (CANDIDO, 2001, p. 94).
15
Margarida Maria Moura (1978) registra em “Os Herdeiros da Terra” o uso das expressões “união”, “consideração” e “preferência” como categorias locais do bairro rural protestante de São João da Cristina, MG, para expressar solidariedade.
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uma reorganização simbólica da relação, pois mantém seu simbolismo religioso de parentesco espiritual, complementando o parentesco biológico e
social. Pode-se perceber, então, como o protestantismo rural manteve as
características da religiosidade rural (familiaridade com o sagrado e caráter
lúdico), não perdendo assim o crente, a sua identidade de caipira.
EXPANSÃO
DO PROTESTANTISMO RURAL
Com base nas características acima descritas, é possível traçar a rota
de expansão e posterior implantação do protestantismo rural no Brasil. Apesar
de se poder intuir a existência de mais de uma denominação protestante que
se deixou desenvolver por meio da sintonia de valores oriundos da cultura
caipira de raiz, este estudo enfocou primeiramente a Igreja Presbiteriana do
Brasil. Isso se deve ao fato de esta ter sido a maior e mais antiga denominação reformada do país, tendo os primeiros representantes dessa igreja chegados ao Brasil ainda no começo de sua história, em 1555. Os primeiros
missionários da Igreja Presbiteriana no Brasil evangelizaram a região de
São Paulo, o Oeste de Minas, o Triângulo Mineiro e o Sul de Goiás, o que
coincide com o hoje chamado cinturão de cultura caipira. Ao fim de 1900, a
Igreja Presbiteriana já havia chegado ao Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e
Sul do país. Foram sessenta e quatro as Igrejas Presbiterianas formadas no
cinturão de cultura caipira de 1865 até 1903.
Essas igrejas, bem como a data e o pastor responsável por sua organização, estão listadas a seguir:
13-11-1865 Brotas (SP) A.L. Blackford, J.M. Conceição
17-05-1868 Lorena (SP) A.L. Blackford
23-05-1869 Borda da Mata (P. Alegre, MG) R. Lenington, E.N. Pires
01-09-1869 Sorocaba (SP) A.L. Blackford
26-06-1870 Hopewell/Santa Bárbara (SP) J.R. Baird, W.C. Emerson
10-07-1870 Campinas (SP) G.N. Morton, E. Lane
16-03-1873 Rio Novo (SP) J.F. Dagama
13-04-1873 Rio Claro (SP) J.F. Dagama
20-04-1873 Caldas (MG) G.W. Chamberlain
10-01-1874? Penha (Itapira, SP) Edward Lane
27-09-1874 Machado (MG) M.P.B. Carvalhosa
14-12-1874 Cruzeiro/Embaú (SP) M.P.B. Carvalhosa, E. Vanorden
21-03-1875 Dois Córregos (SP) J.F. Dagama
25-04-1875 São Carlos (SP) J.F. Dagama
04-05-1879 Faxina (Itapeva, SP) A.P. Cerqueira Leite
03-06-1879 Araraquara (SP) J.F. Dagama
28-11-1880 Ubatuba (SP) A.B. Trajano
15-12-1880 Lençóis (SP) G.W. Chamberlain
1880? Mogi-Mirim (SP) ??
23-05-1881 Cabo Verde (MG) Miguel Gonçalves Torres
26-10-1881 Areado (MG) Miguel Gonçalves Torres
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12-06-1882 Guareí (SP) Antonio Pedro de Cerqueira Leite
29-04-1883 Itatiba (SP) John W. Dabney
06-04-1884 Campanha (MG) Eduardo Carlos Pereira
11-01-1885 Pirassununga (SP) João Fernandes Dagama
10-05-1885 Itapetininga (SP) Zacarias de Miranda
01-08-1885 Botucatu (SP) George A. Landes
29-07-1888 Tatuí (SP) Zacarias de Miranda
29-10-1888 Cana Verde (MG) Eduardo Carlos Pereira
31-03-1889 São João da Boa Vista (SP) Delfino Teixeira, W.L. Bedinger
14-04-1889 Jaú (SP) John Beatty Howell
13-08-1889 Santa Cruz do Rio Pardo (SP) J.R. Carvalho Braga
27-07-1890 Bela Vista de Tatuí (SP) Zacarias de Miranda
07-08-1890 Fartura (SP) Carvalho Braga, Zac. Miranda
10-08-1890 Espírito Santo do Pinhal (SP) Delfino Teixeira, Álvaro Reis
24-01-1891 São Sebastião da Grama (SP) Delfino Teixeira, Álvaro Reis
27-09-1891 Boa Vista do Jacaré (SP) João Fernandes Dagama
08-05-1892 Sengó (Pouso Alto, MG) Manoel Antonio de Menezes
18-06-1893 Bagagem (MG) Álvaro Reis, Caetano Nogueira Jr.
02-07-1893 Paracatu (MG) Álvaro Reis, Caetano Nogueira Jr.
16-07-1893 Santa Luzia de Goiás Álvaro Reis, Caetano Nogueira Jr.
16-08-1893 Araguari (MG) Álvaro Reis, Caetano Nogueira Jr.
10-02-1895 Palmeiras (Matão, SP) Herculano de Gouvêa
05-09-1895 Ribeiro do Veado, Pederneiras (SP) João Vieira Bizarro
10-09-1895 Ribeirão Claro, Iacanga (SP) João Vieira Bizarro
22-08-1896 Tietê (SP) Zacarias de Miranda
09-12-1896 Taquari, Itaju (SP) Francisco Lotufo
??-04-1897 Cajuru (SP) Álvaro Reis, Lino da Costa
30-10-1897 Campestre (MG) Bento Ferraz
22-09-1899 Filadelfa, São Paulo (SP) Zacarias, Francisco Lotufo
13-05-1900 Piumhi (MG) S.R. Gammon, Álvaro Reis
24-09-1900 São João da Cristina (MG) M.A. Menezes
14-10-1900 Juquiá (SP) Modesto Carvalhosa
20-10-1900 Cabo Verde/S.Bartolomeu (MG) Caetano Nogueira
14-04-1901 Lençóis (SP) – reorganizada Francisco Lotufo
10-11-1901 São Manuel (SP) Francisco Lotufo, V.T. Lessa
09-03-1902 Alto Jequitibá (MG) Álvaro Reis, Matatias G. Santos
05-11-1902 São João Nepomuceno (MG) Á.Reis, J.Ozias, H.Allyn, A.Hardie
07-11-1902 São João del Rei (MG) Á.Reis, J.Ozias, H.Allyn, A.Hardie
04-01-1903 Italiana de São Paulo (SP) ??
11-01-1903 Atibaia (SP) Modesto Carvalhosa
Dessas todas citadas, algumas deixaram de existir devido ao êxodo
rural ou à diminuição do número dos fiéis, como o que ocorreu em SengóMG. Outras se transformaram em igrejas urbanas em conseqüência do crescimento do bairro e sua urbanização, como Machado, MG. Algumas, porém, mantiveram suas características rurais, além do seu poder hegemônico
frente à implantação de outras correntes religiosas, como o que aconteceu
no bairro de São João da Cristina, MG.
Dentre as sessenta e quatro igrejas presbiterianas implantadas até 1903
no cinturão de cultura caipira, destacam-se dezesseis que ainda podem ser
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classificadas como pertencentes a bairros rurais e, portanto, onde pode ainda existir o protestantismo rural, objeto deste estudo:
Estado
Igreja Presbiteriana
Ano de organização
Goiás
Santa Luzia de Goiás (atual Luzitânea)
1893
Minas Gerais
Borda da Mata / Pouso Alegre
1869
Cabo Verde
1879
São Paulo
Cana Verde
1888
Paracatu
1893
Campestre
1897
São João da Cristina / Maria da Fé
1900
Alto Jequitibá
1902
São João Nepomuceno
1902
Penha / Itapira
1874
Santa Cruz do Rio Pardo
1889
Espírito Santo do Pinhal
1890
São Sebastião da Grama
1891
Palmeiras / Matão
1895
Ribeiro do Veado Pederneiras
1895
Ribeirão Claro / Iacanga
1895
Durante a fase de duração deste estudo, pretende-se visitar as igrejas
formadas nessa época, que ainda estejam situadas em região rural, nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Nessas visitas será verificada a
situação atual física dessas igrejas, bem como social. Far-se-á uma análise
da sua influência perante a população de membros atuais e perante a cidade
ou bairro em que está inserida.
Paralelamente a essa análise, procurar-se á observar as características marcantes do protestantismo rural, propostas por Ribeiro (2005), sendo
estas: a familiaridade com o sagrado (re-interpretação dos símbolos e
ritos, a compreensão da natureza como instrumento e voz de Deus, o estabelecimento sincrético de ritos produtivos e protetivos e a compreensão do
mundo sobrenatural dentro de uma hierarquia que inclui os seres fantásticos juntamente com as figuras de Deus, Jesus e Espírito Santo) e o caráter
lúdico (festas, mutirões e laços de compadrio).
Os dados obtidos com essas pesquisas de campo serão comparados
ao referencial do protestantismo rural visando estabelecer a distribuição
geográfica de Igrejas Presbiterianas com o mesmo perfil no cinturão de
cultura caipira brasileiro.
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CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O protestantismo rural tem o poder de legitimar a cultura religiosa do
lençol caipira ao qual se adaptou, impedindo a constituição de uma cultura
ilegítima. Deve-se ter sempre em mente que esse protestantismo, que, à semelhança do catolicismo brasileiro, assume características diferenciadoras e
próprias, só se desenvolveu quando ocorreu em primazia num bairro rural
brasileiro. A especificidade desse protestantismo deve-se, principalmente, ao
fato de uma igreja protestante histórica ter chegado por meio de missionários,
se instalado no bairro quando este estava em seus primórdios e ali se conservado como única representante religiosa oficial. A ausência da necessidade
de uma oposição contrastante a um catolicismo oficial, inexistente nesses
bairros, permitiu a liberdade de se desenvolver um padrão de crenças e práticas diferenciados, que aqui se chamou de protestantismo rural, que se desenvolveu num amálgama com as crenças já pré-existentes no país.
Na vida real dos moradores desses bairros rurais, na ordem dos fatos,
mas não dos conceitos, magia e religião convivem, formando um sistema
de conexões ora expostas, ora ocultadas, mas delineadoras de uma forma de
pensar específica. O mundo mágico-religioso abrange crenças e práticas
mágicas e religiosas numa mistura que não se processa com partes iguais de
ambos os componentes. Devido às características racionais do protestantismo e ao estímulo à leitura e ao estudo da Bíblia, o caipira do protestantismo
rural tende a relacionar cada evento mágico com passagens bíblicas, ocorrendo dessa forma uma superposição dos elementos religiosos sobre os de
caráter mágico, observados nas interpretações das visagens e na re-interpretação dos ritos e símbolos da igreja oficial.
O protestantismo rural seria, portanto, uma sintonia (valores simultâneos), pois, apesar da adoção do racionalismo protestante e, conseqüentemente, com a recusa da magia como possibilidade interpretativa e
organizadora do mundo, uma grande parte do arsenal de crenças oriundo da
catolicidade do lençol de cultura caipira brasileiro mantém-se presente, porém
banhado pelas idéias protestantes veiculadas pela Igreja protestante oficial.
Pode-se dizer que, se a versão popular do catolicismo oferece a base,
o que se chama de protestantismo rural recebe ou absorve o referido catolicismo e lhe oferece uma nova coligação: ao invés de ser uma contraparte de
um catolicismo oficial, agora se amalgama com o protestantismo histórico.
Esse trajeto de trocas e aquisições e substituições oferece uma visão bastante fecunda dos sincretismos e hibridismos aos quais os fenômenos culturais
se prestam, num processo de movimento, gerando permanentemente novas
combinações no plano simbólico e no plano das relações entre os homens.
No protestantismo rural não ocorre uma ruralização da essência do
protestantismo oficial, mas as populações concretas que a ele aderem continuam com a referência cultural de um universo de representações que a
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catolicidade rural majoritária já incorporava muito antes. Ocorre, portanto,
uma combinação, onde certas referências bíblicas são selecionadas e
reapropriadas pela cultura camponesa, que as relaciona com suas experiências próprias do misticismo da catolicidade rural.
O protestantismo rural desenvolveu-se devido à necessidade de suprir
os vazios deixados pela igreja oficial, que não teve condições de responder a
todos os questionamentos do homem do campo, que não via nela competência para atender às necessidades inerentes de seu modo de vida, como afirma
Pierre Bourdieu (2001): “Enquanto a religião agrária é constantemente
reinterpretada na linguagem da religião universal, os preceitos da religião
universal se definem em função dos seus costumes locais” (p. 68).
Não ocorrem, então, os rompimentos extremos previstos por Weber
(1982, p. 148 e 151) quanto à adoção do protestantismo por um grupo social rural nem o despojamento total da magia por meio de um desencantamento do mundo pelo domínio racional. Apesar das diferenças aqui observadas, as igrejas constituídas nesses bairros rurais não entram em divergência físsil em nada com a Igreja tradicional, permanecendo integradas em
seu sistema estrutural. As atividades e procedimentos religiosos dos crentes
que ali se congregam não apresentam discrepâncias quando em comparação com as atividades da igreja tradicional à qual se ligam. Também quanto
à liturgia, ritual e homilética, não existem diferenças estruturais entre as
igrejas urbanas e as dos bairros rurais. Ambas, igreja protestante, oficial,
urbana e erudita e igreja protestante do meio rural, rica em magia, pertencem a um mesmo sistema organizacional e histórico, fazendo parte de uma
estrutura que se inter-relaciona, com reuniões periódicas, em que os membros de ambas as instituições se encontram e partilham de suas crenças em
comum.
Assim sendo, é possível estabelecer um limite geográfico e social
entre o protestantismo urbano, considerado oficial, e o protestantismo rural, que, apesar de apresentar características unificadoras com o primeiro,
manifesta também características próprias de identidade religiosa.
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A INFLUÊNCIA DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO EM
COMPOSIÇÕES MUSICAIS PROTESTANTES
BRASILEIRAS*
Uéslei Fatareli
Resumo: Este artigo é parte integrante da dissertação intitulada “Cantai ao Senhor
um Cântico Novo”: Influência da Teologia da Libertação no Canto Protestante Brasileiro e tem como foco a influência dessa teologia na música protestante feita no Brasil
durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. Com relação a esse tipo de trabalho musical
produzido no Brasil, autores como João Dias de Araújo, Simei Monteiro, Jaci Maraschin
e outros são mencionados. Este artigo tem também a intenção de estimular a reflexão
em torno de uma forma de expressão poética que tem sido pouco elaborada no contexto do protestantismo brasileiro atual. Esclarecemos com relação ao texto a seguir,
que o mesmo se refere ao segundo e terceiro capítulo da dissertação.
Palavras-chave: Teologia da Libertação. Protestantismo. Música.
Abstract: This article is part of a dissertation titled “Sing to the Lord a new song”:
The Liberation Theology Influence in Brazilian Protestant Singing. The focus of it is
the influence of this theology during the years of 1960, 1970 and 1980 in Brazilian
protestant singing. According with this kind of musical work produced in Brazil, authors
as João Dias de Araújo, Simei Monteiro, Jaci Maraschin and others are mentioned.
This article has the intention to stimulate a reflection towards the poetry expression
which has been neglected in the actual context of Brazilian protestant singing. We
explain in relation to the text following that it refers to the second and the third chapter
of the dissertation.
Keywords: Liberation Theology. Protestantism. Music.
CONSIDERAÇÕES
PRELIMINARES
De acordo com a Organização Não-Governamental “Unmillennium
Project”,1 mais de um bilhão de pessoas no mundo vivem com menos de
um dólar por dia. Dois bilhões e 700 milhões sobrevivem com menos de
dois dólares por dia. Além desses dados econômicos, muitas dessas pessoas
têm que andar uma milha para coletar água e madeira para o fogo.
*
Texto elaborado com base na dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie no ano de 2006
para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião e que teve o seguinte título: “Cantai ao Senhor um
cântico novo: influência da teologia da libertação no canto protestante brasileiro”.
1
Disponível em http://www.unmillenniumproject.org/press/press2.htm. Acesso em: 12 dez. 2006.
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Esse quadro tem trazido consigo as seguintes conseqüências: a presença em determinados países de doenças que já foram erradicadas há décadas nos chamados países desenvolvidos; a morte anual de onze milhões de
crianças que não atingem os cinco anos de idade, morrendo seis milhões
dessas crianças por ausência de prevenção em razão de malária, diarréia e
pneumonia.
Todos os dias mais de 800 milhões se recolhem para dormir com
fome, dos quais 300 milhões são crianças. A cada 3.6 segundos uma pessoa
morre vítima de fome aguda. A maioria delas são crianças com menos de
cinco anos de idade.
Todos esses dados, sem mencionar outros, tais como saúde,
água, educação etc., fazem pensar que a sociedade precisa abrir seus olhos
e, individual e coletivamente, engajar-se, não numa revolução armada e
muito menos intolerante e torturante, mas numa revolução solidária permanente que não somente dê pão ao que tem fome, mas também que crie meios sócio-educacionais para que o faminto aprenda a fazer o seu próprio pão
e assim reúna condições para ser, não necessariamente um herói ou mártir
nessa revolução, mas, simplesmente, um ser humano.
Este artigo, intitulado “Cantai ao Senhor um cântico novo”: Influência da Teologia da Libertação no Canto Protestante Brasileiro, tem como
alvo fazer uma análise do impacto da Teologia da Libertação, conforme
leitura hermenêutica apresentada por Gustavo Gutiérrez,2 na linguagem
musical evangélica brasileira no período de 1960 a 1980. O objetivo é estudar a Teologia da Libertação e sua inserção dentro do protestantismo histórico tendo como base letras de músicas compostas por autores como Jaci
Maraschin,3 João Dias de Araújo4 e outros. A referência ao ramo histórico
do protestantismo brasileiro implica denominações como Igreja Presbiteriana
2
Teólogo católico peruano considerado por muitos o pioneiro na sistematização da Teologia da Libertação. Estudou Filosofia e Psicologia na Universidade Católica de Louvain, Bélgica. Seus estudos de Teologia foram efetuados
na Universidade Católica de Lyon, França, na Universidade Gregoriana de Roma e no Instituto Católico de Paris,
chegando ao grau de doutor. Publicou La Pastoral de La Iglesia Latino-americana (1968) e Apuntes para uma
Teologia de la Liberatión (1971). Na década de 1980 enfrentou processo da Cúria Romana, que acusava sua obra
de reduzir a fé à política.
3
Sacerdote aposentado da Igreja Anglicana no Brasil, escritor e compositor com várias contribuições no campo
litúrgico. Foi membro da comissão editorial do Hinário da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Coordena o
programa de estudo, pesquisa e experimentação Liturgia e Arte, ligado ao Instituto Ecumênico de Pós Graduação
em Ciências da Religião do Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, São Paulo. Suas
composições cristãs brasileiras fazem parte de hinários batistas, católicos, luteranos, metodistas e presbiterianos
e já foram traduzidas e publicadas na Alemanha, Canadá, Costa Rica, Estados Unidos, França, Holanda e Suíça.
Editou as coletâneas O Novo Canto da Terra (IAET, 1987) e Brasilian Songs of Worship (WCC, 1989). Com
Simei Monteiro editou A Canção do Senhor na Terra Brasileira (Aste, 1982) e com Odair Pedroso Mateus, Jesus
Cristo, Vida do Mundo (Ciências da Religião / Edições Liberdade, 1986).
4
Teólogo, bacharel em Direito, conferencista, escritor, compositor. Foi professor de Teologia Sistemática e Ética
Cristã no Seminário Presbiteriano do Norte, em Recife, PE. Fez pós-graduação no Seminário Teológico de
Princenton, nos Estados Unidos. É ministro da Federação Nacional de Igrejas Presbiterianas (FENIP).
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Independente,5 Igreja Presbiteriana Unida,6 Igreja Metodista7 e Igreja
Anglicana.8
A Teologia da Libertação, que deste momento em diante será referida com a sigla TL, tem sido conhecida de forma mais ampla por meio de
sua rica e diversificada literatura. Existem mesmo autores e obras voltadas
para a TL que contam com reconhecimento internacional. Não obstante,
tanto por seu conteúdo como por sua repercussão artística e cultural, a música da TL merece ser objeto de estudo e avaliação.
RAÍZES
DA
TEOLOGIA
DA
LIBERTAÇÃO
E SEUS PRIMEIROS PROTAGONISTAS
Antes de prosseguir, convém fazer um traçado histórico da TL. Nesse sentido, resumidamente falando, pode-se dizer que existiram vários fatores sociais e expressões de pensamento que lhe deram forma. Em outras
palavras, não é possível falar em TL sem considerar Bartolomé de las Casas, no século XVI, e, vários séculos depois, os movimentos teológicos
ocorridos na França na década de 1950. Bartolomé denunciou a violência
perpetrada em nome do Evangelho contra as populações aborígenes latinoamericanas e, ao refletir sobre a fé cristã à luz dos oprimidos, foi, possivelmente, o primeiro a lançar propostas de uma nova hermenêutica que, tempos depois, tomaria corpo na TL, teologia essa que dava abertura ao pensamento marxista como instrumental de análise. No contexto católico-romano, na década de 1950, pensadores como Teilhard de Chardin, Emmanuel
Mounier e outros, pela análise crítica que fizeram ao capitalismo, acabaram
por despertar o interesse pelo marxismo e pelo socialismo.
5
Ramo do protestantismo brasileiro, criado em 1903, em São Paulo, como resultado da divisão da Igreja Presbiteriana
do Brasil. Sete pastores e catorze presbíteros, sob a liderança de Eduardo Carlos Pereira e Otoniel Campos Mota,
desligaram-se dessa igreja. O problema da relação dos pastores nacionais com os missionários norte-americanos,
a obra educacional, o nacionalismo e a questão maçônica, possivelmente interligados, foram motivos do cisma.
Sua administração e doutrina seguem o presbiterianismo e o calvinismo.
6
A Igreja Presbiteriana Unida (IPU) de maior abertura teológica e ecumênica é composta de comunidades e pastores originários da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). Seu surgimento é entendido como uma reação à tendência
fundamentalista de segmentos ligados à IPB. A IPU começou com a FENIP (Federação Nacional de Igrejas
Presbiterianas) e a 10 de setembro de 1978 foi fundada como esta nova entidade.
7
A Igreja Metodista, que é de origem missionária norte-americana é um ramo tardio da Reforma Protestante do
século XVI. Os metodistas estabeleceram-se definitivamente no Brasil em 1886 com os missionários Junius E.
Newman, John J. Ramson, J. W. Koger e James L. Kennedy. Embora seu crescimento inicial tenha sido lento e
difícil, em razão da presença física da Igreja Católica, sua prioridade na esfera da educação acabou por favorecer
a abertura de colégios e universidades em lugares diversos. E, além de herdarem dos anglicanos uma liturgia
elaborada e formal que se refletiu nos primeiros manuais de culto produzidos pelos missionários no Brasil, uma
Igreja de classe média e tem na ética seu componente religioso mais forte.
8
A Igreja Anglicana do Brasil, também chamada Episcopal, do Brasil, surgiu em 1898, no Rio Grande do Sul, de
onde se expandiu para o Rio de Janeiro em 1908. O crescimento desta Igreja tem sido lento, talvez pelo seu culto
muito semelhante ao da Igreja Católica, o que não lhe favorece identidade imediata. Os anglicanos ou episcopais
se formaram sob dupla orientação: de um lado, o conversionismo teológico das Igrejas norte-americanas e, de
outro, o rigoroso ritualismo do Livro de Oração Comum dos anglicanos.
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Pode-se, com base na ótica acima, considerar que, embora o movimento da TL tenha nascido na América Latina, ele trouxe consigo influências de pensadores europeus. Não obstante, ainda que tais influências existam na construção da TL, não há como refutar que a mesma tomou forma e
se desenvolveu dentro do contexto sócio-religioso latino-americano e, nesse campo, estabeleceu sua própria expressão pastoral e política, especialmente, em favor dos pobres
Convém salientar ainda que esse desenvolvimento preliminar da TL
a aproxime também de Richard Shaull, Camilo Torres e de Ruben Alves.
Alves publicou em 1969 uma obra intitulada Towards a Theology of
Liberation e nela tentou examinar as alternativas que o homem tinha para
procurar a libertação, pois, para ele, nem existencialismo, tecnologismo,
marxismo, o antigo calvinismo e outras correntes de pensamento, ainda que
apresentassem pontos fortes, não libertavam realmente o homem. Alves
procura o homem livre, humanizado, o homem criador.
Camilo Torres, mesmo não pertencendo ao círculo dos que refletem
acerca da libertação, tem grande significância para o movimento. Segundo
o Dicionário Enciclopédico das Religiões (SCHLESINGER e PORTO, 1995,
p. 2534), ele foi um sacerdote católico, sociólogo, político e guerrilheiro
colombiano que entrou em desacordo com o Cardeal Luís Concha, arcebispo de Bogotá, que o proibiu de atuar em questões sociais. Torres, na década
de 1960, atuou como capelão e professor da Universidade Nacional da Colômbia e, durante aquele período, conclamou e articulou mudanças nas estruturas básicas econômicas e sociais. Sua ação provocou uma reação da
Igreja Católica, pois ele afirmava: “A ação revolucionária é uma luta cristã
e sacerdotal”. Essa atitude de Torres (apud CONN e STURZ, 1984) fez com
que ele fosse não só removido de sua cátedra universitária, mas, também,
proibido de falar sobre questões de ordem social. Em conseqüência disso,
pediu a redução ao estado laico, tendo, em 1965, deixado o sacerdócio e,
naquele mesmo ano, se associado a um movimento guerrilheiro revolucionário. Quanto à sua morte e suas idéias, Conn e Sturz (1984) registram:
Sua morte trágica numa emboscada eletrificou o mundo latino e virtualmente canonizou-o como santo pioneiro do pensamento da libertação. Em resumo, as idéias de
Torres incluíam muitos dos elementos que mais tarde seriam incorporados no pensamento da libertação – a práxis revolucionária, o enfoque sobre a sociedade e não a
igreja, e a análise sócio-econômica. A relevância dele, no entanto, não está ali. Encarnou
para a América Latina a significação do lema conscientization. E por isto é saudado
por homens tais como Miguez-Bonino e Gustavo Gutiérrez (p. 42).
Millard Richard Shaull nasceu na Pensilvânia em 24 de novembro de
1919. Sua família era presbiteriana e ele cursou Sociologia no Elizabeth
College, uma instituição de tradição anabatista. Foi nessa instituição educacional que Shaull sofreria a influência de reformadores radicais, como
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Thomaz Münzer. Seus estudos teológicos em Princenton estabelecerem as
condições para que ele conhecesse Josep Luki Hromadka, teólogo da Universidade de Praga, profundamente envolvido com as questões da Igreja na
Europa, especialmente no que diz respeito ao nazismo incipiente. Além da
influência de Hromadka, Shaull teve contato com a teologia reformada européia e com autores como Karl Barth, Rudolf Bultmann e Emil Brunner.
Em 1950 aprofundou seus estudos no Union Seminary, de Nova Iorque.
Nessa ocasião, Shaull iniciou seus estudos sobre o marxismo e posteriormente fez um programa de doutoramento no mesmo Seminário. Seu
orientador foi o respeitado teólogo presbiteriano Reinhold Niebuhr. Este,
tendo como referencial a teologia de Karl Barth, propiciou que Shaull
aprofundasse sua reflexão teológica. Mais adiante, Paul Lehmann ofereceu
a Shaull os meios para que ele formulasse seu pensamento político-teológico na direção da TL.
Depois que Shaull trabalhou na Colômbia, veio para o Brasil. Aqui
ele atuou como professor do Seminário Presbiteriano de Campinas por vários anos. Conn e Sturz (1984) comentam que Shaull contribuiu para a formação de uma pré-teologia da libertação, principalmente, no início década
de 1960. Com relação a isso, esses autores dizem:
Durante o tempo em que estava no Brasil, Shaull passou de uma linha ligeiramente
liberal para a posição não-ortodoxa e, eventualmente, nos anos sessenta, para uma Teologia da Revolução em que ele propôs que não haveria nenhuma possibilidade de o
cristão estar ausente de uma revolução armada no Brasil. Nos vários estágios de seu
pensamento, Richard Shaull deixou discípulos, seja na Argentina seja no Brasil, onde o
impacto de seu pensamento foi muito grande. Aliás, ele foi mais uma espécie de
catalisador do que propriamente um pensador original.
Como resultado do trabalho de Shaull, surge nos anos cinqüenta para sessenta uma linha
que é uma espécie de pré-teologia da libertação. Numa reunião, onde nasceu a ISAL
(Igreja e Sociedade na América Latina), realizada em Lima em 1961, surgem os primeiros trabalhos que dão indícios da direção que a ISAL vai tomar. Nos primeiros trabalhos
apresentados nessa primeira reunião de 1961, apenas um dos trabalhos é destacadamente
avançado em termos de teologia sociológica. Poucos anos depois, em El Tabo, a ISAL
tornou a reunir-se. Agora, em meados da década de sessenta, todos os trabalhos têm esse
teor de que o Evangelho é uma opção pelos oprimidos (p. 80).
Ao tratar da TL não se pode deixar de considerar e destacar a contribuição dos teólogos católicos latino-americanos, especialmente depois do
Vaticano II ocorrido em Roma entre 1962 e 1965. Foi a partir daí que esses
teólogos começaram sua guinada para a esquerda. Essa mudança de direção
e de posição torna-se expressa de forma concreta na Conferência Episcopal
Latino-Americana (CELAM) reunida em Medellín, Colômbia, em 1968.
Foi nessa reunião que a tese de Gustavo Gutiérrez, intitulada Hacia una
teología de la liberatión, foi adotada pelos bispos. Medellín tornou-se assim um passo importante na inauguração e construção de uma teologia que
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privilegiava a reflexão crítica no âmbito católico-romano latino-americano.
Tal postura chegou a servir até mesmo, em alguns momentos, de ponte de
aproximação e interlocução com alguns teólogos protestantes.
Quanto a essa origem do movimento no círculo católico latino-americano, McGrath (2005) registra:
Em 1968, bispos da igreja católica romana da América Latina reuniram-se em um
congresso em Medellín, na Colômbia. Esse encontro – normalmente conhecido como
CELAM II – causou um grande impacto em toda a América Latina, ao reconhecer que
a igreja havia freqüentemente se posto ao lado dos governos ditatoriais dessa região,
e ao declarar que, no futuro, tomaria o partido dos necessitados (p. 153).
A Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín, segundo acentua Libânio (1987), é o lugar do reconhecimento oficial
por parte do episcopado da nascente Teologia da Libertação. Ele observa
que “A partir daí, Medellín vai ser um marco e símbolo de todo um universo teológico e pastoral envolvido com a problemática da libertação” (p. 26).
Galilea (1978), por sua vez, acentua que foi em Medellín que a idéia
de libertação e da teologia da libertação adquiriu estatuto eclesial. Quanto à
Conferência e o tema da libertação, esse autor observa e comenta:
Ali, dá-se um sentido e uma interpretação teológica à tarefa de Libertação humanotemporal da América Latina, ao relacioná-la com a salvação de Jesus Cristo. Se há
relação entre fé e libertação humana, entre o reino de Deus e a construção da sociedade, entre a evangelização e a promoção temporal, então “libertação” não é uma noção
puramente terrena, mas tem uma dimensão escatológica. Portanto, pode-se falar de
uma teologia da libertação (p. 25).
Houve também outra Conferência realizada em Puebla de Los Angeles
de 21 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. Puebla, termo que se identifica
com a III Assembléia Geral do Episcopado Latino-Americano ocorrida no
México, teve uma direta relação com a Conferência do Episcopado ocorrida em Medellín. Galilea (1978) observa: “...a Conferência de Puebla assume amplamente o tema da libertação e da evangelização libertadora, na
mesma perspectiva. Puebla chega mesmo a elaborar mais a fundo a idéia de
libertação...” (p. 26).
Puebla produziu um documento que destacava o caráter missionário
da Igreja. A respeito desse documento, destaca-se o seguinte comentário
apresentado no Dicionário Enciclopédico das Religiões (SCHLESINGER
e PORTO, 1995, p. 861):
Segundo o documento de Puebla, a missão da Igreja fica sendo, antes de mais, uma
tarefa escatológica e transcendental, tarefa, porém, que passa por estruturas temporais
e se preocupa seriamente com a cristianização das mesmas, a tal ponto que esquecer
tais estruturas seria incoerência ou traição ao Evangelho (p. 861).
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O documento de Puebla, dentre outras coisas, propunha despertar
uma religiosidade que não ficasse alheia ao abismo entre ricos e pobres,
especialmente no contexto latino-americano, pois é nesse ambiente, na década de 1960, que proliferavam os regimes militares e os modelos econômicos que favoreciam o aumento da miséria e a situação de dependência
dos chamados países subdesenvolvidos aos países desenvolvidos.
A
PRESENÇA DA MÚSICA NA
TL
…música religiosa consistente pertence ao que há de mais profundo e rico de efeito
que a arte em geral pode produzir (HEGEL, 2000, p. 333).
Em razão do que foi dito anteriormente, a TL serviu somente para
atrair o interesse de pesquisadores e escritores de livros; ela também, desde
sua formação, acabou por provocar a criação de composições musicais que
podem ser detectadas dentro do campo religioso católico e, também, dentro
do campo religioso protestante. Nesse sentido, a TL não tem somente um
considerável número de obras literárias, ela também se faz acompanhar de
uma voz poética que pode ser conhecida em canções voltadas para sua
temática. Todavia, poucos são os trabalhos que têm se dedicado a analisar o
campo musical vinculado à TL. Com relação a isso, Boadella (2002) tece o
seguinte comentário:
Uno de los aspectos menos estudiados de la TL ha sido, curiosamente, el de su música. Y, sim embargo, fue uno de los más aceptados y difundidos, ya que sus autores e
intérpretes alcanzaron uma fama que rebasaba lo meramente religioso y litúrgico y
algunas de sus obras han llegado a insertarse en el repertorio general de la música
popular latinoamericana (p. 177).
Como se pode notar, ainda que a música da TL não tenha sido objeto
de maior consideração por parte de pesquisadores do campo religioso, isto
não impediu que a criação musical voltada para a temática libertacionista
deixasse de se desenvolver ou mesmo de se difundir na América Latina.
Quanto aos antecedentes do fenômeno musical ligado à TL, Boadella
(2002, p. 178) registra:
El fenômeno musical de la TL tiene vários antecedentes que conviene recordar. En
primero lugar en los años 60, se produjo en toda Iberoamérica un movimiento muy
poderoso de reivindicación de las músicas populares e indígenas. Surgieron cantantes
y compositores de la talla de Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, Violeta Parra, Victor
Jara y Oscar Chávez, por citar algunos, que, además, de dignificar el folklore americano, introdujeron elementos de protesta, poéticos y de alto contenido humanista. Su
fama llegó pronto a Europa (p. 178).
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Boadella acentua também que a TL proporcionou condições favoráveis no sentido de se criar um canto novo latino-americano. Boadella (2002
apud MÁRQUEZ, 1982) argumenta:
Este movimiento, conocido también como canto nuevo latinoamericano, fue ‘el grito
de los que no tienen voz, um grito de dolor y esperança de nuestros pueblos e intenta
responder a la situación de dominación y a los esfuerzos de liberation. [...] La
imaginación de los creadores del canto se vê sacudida por los conflitos sociales y
políticos internos, por uma juventud que nace al terminar la segunda Guerra Mundial
y que inaugura la búsqueda de valores que le sean próprios; es sacudida también por
las consecuencias que crea uma migración progressiva del campo a la ciudad, y por
una Iglesia que debe comprometerse cada vez más con las necesidades del pueblo
[...]’ (p. 559-560).
Como o objetivo deste artigo é considerar a influência da TL em
composições musicais de autores protestantes e, embora a TL não tenha
influenciado somente esse campo religioso, aqui o foco da pesquisa tem
como objeto de estudo o campo protestante. O interesse deste estudo nasceu tanto pela razão de se estar envolvido com a música protestante desde a
infância, como também pelo entendimento de que a música tem a capacidade não só de fazer vislumbrar grandes horizontes por meio de sua poesia,
como também pode, em sentido contrário, despertar reducionismos desastrosos.
Analisar a influência da TL no campo musical protestante é uma oportunidade de refletir sobre uma poesia que convida a cantar de forma
contemplativa e ao mesmo tempo comprometida com a realidade histórica
em que se vive, ou seja, é cantar levantando os olhos para os céus com os
pés firmes na terra e tendo os pés firmes na terra caminhar na direção do
outro para o seu bem. É, também, uma poesia cantada que desperta uma
caminhada comunitária em que todos, unidos e conscientes de seu papel na
história, trabalham na construção de novos paradigmas que combatam toda
forma de opressão ou exclusão, injustiça ou acepção, pobreza ou omissão,
devastação ou destruição.
O CONTEÚDO
DO CANTO EXPRESSO ATUALMENTE NAS I GREJAS
PROTESTANTES BRASI-
LEIRAS
Assiste-se nos dias atuais à profusão de um vasto número de canções
de pessoas ligadas direta ou indiretamente ao protestantismo que se manifesta no Brasil. Todavia, como já bem observaram Adorno e Horkheimer
(1985) “a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança” (p.
113). Nesse sentido, pode-se também observar que os conteúdos musicais
atualmente expressos nas igrejas protestantes têm sido, na maior parte das
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vezes, semelhantes uns aos outros, tanto no que se refere à sua temática
como no que tange à sua qualidade poética e textual.
Precisa-se, antes de prosseguir, salientar um duplo aspecto relacionado ao campo musical a que se referiu nesta parte da análise. Ou seja, no que
envolve a música instrumental popular, houve avanços e alguns aprimoramentos. Não obstante, o mesmo não se deu, pelo menos com a mesma intensidade, em relação à composição, no que tange às suas letras. Quer-se
dizer com isso que muitas dessas canções contemporâneas, atualmente chamadas no Brasil de música gospel ou música evangélica, repetem, geralmente de forma intimista, os mesmos assuntos. Por conseguinte, uma crescente falta de critério nesse campo musical tem favorecido, em grande parte, a banalização e a massificação da música religiosa de cunho protestante,
especialmente por parte daqueles que a tratam como mero produto a ser
comercializado e não mais como meio de instrução. Isto, entretanto, não
significa que não tenha ocorrido evolução no meio musical protestante. Há
exemplos positivos que serão tratados posteriormente. No momento convém retornar ao conteúdo que tem sido expresso na maioria das músicas
que têm relação próxima ou distante com o protestantismo.
Ressalta-se, inicialmente, que muito do que é produzido no Brasil
nas composições atuais, seja dentro do protestantismo de imigração ou de
origem missionária ou ainda proveniente de ambiente pentecostal ou
neopentecostal, tem, ainda, fortes vínculos com os hinos do século XIX,
especialmente no que diz respeito ao caráter individualista e intimista das
canções. Pode-se concluir esse fato pelo vasto número de composições que
continuam sendo elaboradas utilizando a primeira pessoal do singular. A
razão disso deve-se, em grande parte, não só à influência da teologia presente no primeiro hinário feito no Brasil, como também à constante influência das versões para o português de canções norte-americanas que aqui são
gravadas e difundidas. Estas se aproximam da pós-modernidade, aquelas,
as inspiradas no primeiro hinário, do mundo moderno afeiçoado ao romantismo que representava “uma reação sentimental à ênfase exagerada à razão
objetiva do iluminismo no século XVIII” (OLSON, 2001, p. 558). Com
relação ao romantismo, Olson (2001) registra:
Os românticos celebravam os ‘sentimentos’, pelos quais entendiam não as emoções
irracionais, mas os anseios humanos profundos e a apreciação da beleza pela natureza. O movimento romântico deu origem a novos florescimentos nas artes em meio a
uma cultura que tendia a valorizar dados científicos sólidos e filosofias intelectuais
(p. 558).
Por outro lado, para que se tenha uma compreensão do que se vê hoje
acontecendo na produção musical ligada ao protestantismo, convém tecer
algumas breves considerações com relação à indústria cultural e à chamada
pós-modernidade.
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Segundo Huisman (2001), a expressão indústria cultural foi cunhada por Horkheimer e Adorno (1985). Ele comenta:
A indústria cultural – expressão forjada por Horkheimer e Adorno – em vez de
corresponder às necessidades efetivas dos indivíduos, é, segundo eles, uma empresa
de manipulação e condicionamento que não permite efeito retroativo nem feedback.
A cultura que se pretende democrática ou democratizada na verdade não o é, de modo
algum, e os novos empresários da cultura, assistidos por especialistas em marketing,
contentam-se em distribuir as migalhas da cultura burguesa tradicional. Disso só pode
resultar uma gigantesca “mistificação das massas” (p. 11).
De acordo com o pensamento dos filósofos Adorno e Horkheimer
(1985) “a indústria cultural coloca a imitação como algo absoluto” (p. 123).
Ao tratar sobre ela, os filósofos alemães registram:
A indústria cultural está corrompida, mas não como uma Babilônia do pecado, e sim
como catedral do divertimento de alto nível... . A fusão atual da cultura e do entretenimento não se realiza apenas como depravação da cultura, mas igualmente como
espiritualização forçada da diversão. Ela já está presente no fato de que só temos
acesso a ela em suas reproduções, como cinefotografia ou emissão radiofônica. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 134).
Adorno e Horkheimer (1985) relacionam a indústria cultural com a
cultura de massas, sendo esta uma cultura de caráter monopolizante com
fortes traços mercadológicos. Eles comentam:
Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura
conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais
sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar
como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma
ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente reproduzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus
diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos
(p. 114).
Nesse tipo de ambiente focalizado por Adorno (2004), onde milhões
de pessoas participam da indústria cultural, os padrões de arte são determinados por fatores de consumo, ou ainda melhor, pelas necessidades dos
consumidores. Dessa forma, torna-se inevitável a disseminação de bens
padronizados para a satisfação de necessidades iguais. Um desses bens,
Adorno (2004) identifica como “música ligeira”. Ele declara:
Não somente o ouvido do povo está tão inundado com a música ligeira que a outra
música lhe chega apenas como a música considerada “clássica”, oposta àquela; não
somente os sons onipresentes de dança tornam tão obtusa a capacidade perceptiva que
a concentração de uma audição responsável é impossível; mas a sacrossanta música
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tradicional se converteu, pelo caráter de sua execução e pela própria vida dos ouvintes, em algo idêntico à produção comercial em massa e nem sequer sua substância
permanece sem se contaminar (p. 18-19).
Se na concepção de Adorno (2004) a indústria cultural provoca uma
padronização da arte e, conseqüentemente, seu engessamento e empobrecimento, no pós-modernismo a arte se presta mais como instrumento de sedução do que propriamente de reflexão.
Lipovetsky (2005), ao tratar do movimento pós-moderno como canal de propagação de uma arte individualista, registra:
(...) o pós-modernismo ratifica o vazio e a repetição, cria um pseudo-acontecimento,
alinha-se com os mecanismos publicitários, nos quais a afirmação enfática da marca
basta para designar uma realidade incomparável... é o processo de dessubstancialização
que ganha abertamente a arte por amálgama indiferente, por assimilação acelerada
desprovida de projeto. Do mesmo modo que as grandes ideologias, a arte, quer seja
levada pela vanguarda ou pela “transvanguarda” é regida pela mesma lógica do vazio,
da moda e do marketing (p. 101).
Nesse caso, conforme Adorno (2004) já apontava, a arte passa a ser
tratada como mero produto de consumo. Com base nesse molde imposto
tanto pela indústria cultural como também pela cultura consumista e
hedonista pós-moderna, vários segmentos são atingidos, inclusive o segmento religioso. Podem-se constatar tais situações por meio da análise de
alguns conteúdos expressos em letras de autores e compositores ligados à
música evangélica atual. Ressalta-se aqui que a análise neste trabalho não
se presta a promover qualquer tipo de catilinária com relação às letras que
serão mencionadas, mas a uma constatação, ou seja, que o canto atual de
pessoas ligadas direta ou indiretamente ao protestantismo, em sua maior
parte, tem trazido consigo características tanto do pensamento moderno,
como também do pós-moderno, pensamentos esses que geralmente desprezam a originalidade, enaltecem e cultuam o individualismo e o personalismo
e, ainda, estimulam o consumismo e o hedonismo.
O exemplo dado a seguir, encontrado na letra da música gravada pelo
Ministério Apascentar de Nova Iguaçu intitulada Toda Sorte de Bênção,
mostra os traços a que se referiu. Observem-se as estrofes a seguir:
Por onde eu for a Tua bênção me seguirá
Onde eu colocar as minhas mãos prosperará
A minha entrada e a minha saída bendita será
Pois sobre mim há uma promessa
Prosperarei, transbordarei
Os meus celeiros fartamente se encherão
A minha casa terá sempre Tua provisão
Onde eu puser a planta dos meus pés possuirei
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Pois sobre mim há uma promessa
Prosperarei, transbordarei;
Para direita, para esquerda
À minha frente, e para trás
Por todo lado ( oooo )
Sou abençoado ( eeee )
Em tudo o que eu faço ( oooo )
Sou abençoado ( eeee )
Toda sorte de bênçãos
O Senhor preparou para mim
E em todas as coisas
Eu sou mais do que vencedor.9
[grifos do autor]
Pode-se observar nessa letra, dentre outros aspectos, traços de um
individualismo acentuado. Tal constatação pode ser vista tanto pelo uso
constante da primeira pessoa do singular, seja de forma explícita ou não,
isto é, na forma expressa ou oculta, como também por meio da repetição
freqüente do pronome possessivo e reflexivo referente à primeira pessoa do
singular. Além desse aspecto individualista, comum às duas canções, os
textos também apontam para aspectos ligados a uma adoração mais voltada
para a prosperidade pessoal. Isso pode ser observado nas seguintes frases
da segunda canção, intitulada “Toda sorte de bênção”, elas são: “Prosperarei, transbordarei; Os meus celeiros fartamente se encherão; A minha casa
terá sempre Tua provisão”.
Há muitas outras letras que poderiam ser citadas que revelam os mesmos traços e os mesmos conteúdos. Todavia, como não é esse o nosso foco
principal neste momento, esclarece-se que a menção das mesmas se presta
neste caso, única e exclusivamente, para estabelecer um contraste entre o
conteúdo atual da maioria das letras difundidas no Brasil por meio das igrejas
ligadas ao protestantismo com os conteúdos do canto vinculado à TL, canto
este que propõe uma adoração mais contextualizada e mais próxima da realidade social. Desse canto, será tratado na seção subseqüente.
O CANTO
PROPOSTO PELA
TEOLOGIA
DA
LIBERTAÇÃO
Vos sos el Dios de los pobres
El Dios humano y sencillo
El Dios que suda en la calle
El Dios de rostro curtido 10
(Misa Campesina Nicaragüense)
Carlos Mejía Godoy.
9
Essa composição do Ministério Apascentar de Nova Iguaçu está disponível em http://cifraclub.terra.com.br/cifras/ministerio-apascentar-de-nova-iguacu/toda-sorte-de-bencao-gzmpt.html. Acesso em: 19 set. 2007.
10
Essa citação está disponível em http://www.ucis.pitt.edu/clas/nicaragua_proj/society/misa_campesina.html). Acesso
em: 18 nov. 2006.
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O canto ligado ao fenômeno religioso traz, na maioria das vezes,
compatibilidade com os conteúdos do pensamento ou da teologia que está
por trás dele. Isso não é diferente com relação à TL.
Nesse sentido, temas que estão intimamente associados à TL, tais
como, a opção preferencial em favor dos pobres e oprimidos, o engajamento
do povo de Deus no combate às injustiças, desigualdades e opressões dos
mais fortes e a ênfase ecumênica, estão presentes nas letras dos cantos influenciados pela TL .
Conquanto já se tenha dito que autores protestantes provocaram a
formação da TL, não se pode deixar de mencionar que, com relação à música de conteúdos libertacionistas, várias situações cooperaram para o seu
nascimento. Com relação a isso, pode-se dizer que houve fatores, tanto de
ordem política e cultural como também de ordem eclesiástica, que propiciaram a criação musical de matriz libertacionista. A questão eclesiástica ligava-se, principalmente, às comunidades eclesiais de base e ao Concílio
Vaticano II e os motivos de ordem política e cultural, aos movimentos populares de contestação e aos regimes totalitaristas que, em sua maioria, eram
passivos ao imperialismo norte-americano. Tais movimentos fizeram-se
acompanhar de um florescimento da música popular latino-americana. Quanto ao importante Concílio Vaticano II, Boadella (2002) comenta:
Em efecto, el Concilio Vaticano II, impulsionado por Juan XXIII, además de aceptar
las lenguas vernáculas como instrumento de la liturgia, reafirmaba la importancia que
tiene para la Iglesia el canto así como como la participación del pueblo en dicha
actividad (p. 178).
Boadella (2002, p. 178) ainda acrescenta:
Foméntese con empeno el canto religioso popular, de modo que em los ejercicios
piadosos y sagrados y en las mismas acciones litúrgicas, de acuerdo con lãs normas y
prescripciones de las rubricas, resuenen las vocês de los fieles.
Como em ciertas regiones, principalmente em las misiones, hay pueblos com tradición
musical propia que tine mucha importancia en su vida religiosa e social, hay que dar
a esta música la debida estima y el lugar correspondiente no solo al formar su sentido
religioso, sino también al acomodar el culto a su idiosincrasia (...) (apud Constitución
Sacrosanctun Concilium, nn. 118 y 119).
Com a abertura proposta pelo Vaticano II e o anseio de povos latinoamericanos em expressar uma identidade própria, política e liturgicamente
falando, a música passou a ser um instrumento de contestação, conscientização e de resgate da cultura do continente latino americano. Entretanto,
com bem lembra Boadella (2002), já em meados da década de 1950, o Mons.
Sergio Méndez Arceo levou adiante uma série de mudanças pastorais e
litúrgicas que tem sido considerada como um dos antecedentes da TL.
Boadella (2002) comenta:
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Um poço más tarde, a princípios de los sesenta, Mons. Méndez Arceo promovió la
creación de la llamada Misa Popular, para los grupos paroquiales de canto. Por tratarse
de una misa más sencilla, musicalmente hablando, se incorporó fácilmente a las numerosas comunidades de base de la región, ya que no requería de una orquestra, como
era o caso de la Misa Panamericana (p. 178).
A chamada Misa Popular, pela suas próprias características, identificou-se com a mensagem libertacionista e vice-versa, especialmente no que
tange à formação de uma consciência religiosa crítica que promovesse mudanças sociais. Um dos compositores que se destacaram na década de 1970
com relação à composição de músicas para as chamadas Misas Populares
foi o nicaragüense Carlos Mejía Godoy. Pode-se observar especialmente na
chamada Misa Campesina Nicaragüense,11 composta por dez canções, a
temática libertacionista. Mencionam-se a seguir duas canções de Carlos
Mejía Godoy, seu principal autor:
Kyrie
Cristo. Cristo Jesús,
identificate con nosotros.
Señor, Señor mi Dios
identificate con nosotros.
Cristo, Cristo Jesús, solidarízate
no con la clase opresora
que exprime y devora
a la comunidad
sino con el oprimido,
con el pueblo mío
sediento de paz
Vos Sos El Dios de Los Pobres
Vos sos el Dios de los pobres
El Dios humano y sencillo
El Dios que suda en la calle
El Dios de rostro curtido.
Por eso es que te hablo yo
Así como te habla mi pueblo
Porque sos el Dios obrero
El Cristo trabajador
Vos vas de la mona con mi gente
Luchás en el campo y la ciudad
Hocés fila allá en el compomento
Para que te poguen tu jornal.
Vos comés raspando allá en el parque
con Eusebio, Poncho y Juan José
11
Essa obra está disponível em http://www.ucis.pitt.edu/clas/nicaragua_proj/society/misa_campesina.html). Acesso em: 18 nov. 2006.
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Y hasta protestás por el cirope
Cuondo no te le echan mucho miel.
Vos sos el Dios de los pobres...
Yo te he visto en uno pulpería
instalado en un caramanchel.
Te he visto vendiendo lotería
sin que te avergüence ese papel.
Yo te he visto en las gasolineras
Chequeando los llantas de un comión
Y hasta patroleando carreteras
con guantes de cuero y overol.
Vos sos el Dios de los pobres...
Conquanto a Misa Campesina Nicaragüense tenha sido banida das
igrejas da Nicarágua pela hierarquia católica, desde que foi concebida ela
tem sido executada em várias diferentes línguas ao redor do mundo. Boadella
(2002, p. 183)12 a considera a música mais representativa da TL.
Um fato curioso que merece ser apontado com relação à Misa
Campesina Nicaragüense é que o Credo, uma das composições nela inserida,
está na sua íntegra presente no caderno13 musical utilizado em Lima, no
Peru, de 11 a 18 de novembro de 1982, na Assembléia Constitutiva do Conselho Latinoamericano de Igrejas. Esta Assembléia, também expressa na
sigla CLAI, congregava setores eclesiásticos do protestantismo latino-americano que, na ocasião, objetivavam uma ação pastoral marcada pela consolação e pela solidariedade. Longuini Neto (2002) destaca: “A Assembléia
de Huampaní testemunhou, de maneira bastante clara, que o CLAI cumpriria sua vocação de luta pela justiça e de solidariedade aos marginalizados
do continente” (p. 256).
Finalmente, acredita-se que o pensamento de Simei Ferreira de Barros Monteiro,14 autora de várias composições vinculadas à TL, algumas das
quais serão mencionadas mais adiante, ao se tratar da perspectiva libertadora,
resume de forma apropriada o pensamento e conseqüentemente aquele que
será o conteúdo do canto proposto pela TL. Ela escreve:
12
Essa afirmação pode ser encontrada no artigo de Boadella intitulado Música para la teologia de la liberatión que
foi publicado pela Universidade de Navarra, em Pamplona, na Espanha, em 2002 no Anuario de Historia de La
Iglesia, à p. 183.
13
Esse caderno utilizado na Assembléia foi chamado Cancionero e continha setenta e sete músicas que apresentavam os seguintes temas: louvor – invocação, confissão, ações de graça, profissão de fé – consagração, comunhão
fraternal e testemunho.
14
Licenciou-se em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Estudou música no Conservatório Brasileiro de
Música e na Escola Nacional de Música. Bacharelou-se em Música Sacra no Seminário Teológico Batista do Sul
do Brasil, onde também iniciou sua carreira docente e de compositora. Sua formação teológica, além de estudos
especiais na área de música eclesiástica foi aprofundada durante estudos feitos no Instituto Superior Evangélico
de Estudos Teológicos (Isedet) em Buenos Aires, Argentina. É professora de Liturgia na Faculdade de Teologia
da Igreja Metodista e dirige a Coordenadoria de Liturgia e Música da mesma faculdade. É mestre em Ciências da
Religião pelo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
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A perspectiva libertadora não separa fé e vida, oração e ação, compromissos e tarefas
diárias, contemplação e luta, criação e salvação. A espiritualidade não é expressa apenas em momentos de celebração, mas é o caminho com Deus para a libertação. Os
grandes temas da vida de Jesus Cristo não se expressam separadamente da vida. Assim, por exemplo, o evento da ressurreição é percebido da vida de Jesus e como possibilidade real na vida dos oprimidos. O próprio Cristo é visto encarnado no outro, no
pobre. É desse modo que a fé se concretiza. “Fora de suas concretizações históricas, a
fé não é para o homem senão abstração, ou melhor, apenas possibilidade transcendental de realizações particulares”, afirma Clodovis Boff (MONTEIRO, 1991, p. 40).
Convém aqui destacar, como se verá nas páginas a seguir, que a produção e utilização das músicas de conteúdo libertacionista, tanto no ambiente católico de língua espanhola como no ambiente católico e protestante
de língua portuguesa têm semelhanças e características próprias. Antecipadamente, pode-se destacar que as semelhanças têm relação com uma produção que absorvia elementos diversos da cultura musical popular latinoamericana e uma utilização restrita ao meio sócio-religioso em que pretendiam se inserir. Tal constatação, em ambas as situações, decorre da existência prolongada de uma liturgia e teologia acentuadamente européias e pouco abertas à temática libertacionista. Somando-se a isso, havia uma política
de repressão arraigada aos governos latino-americanos, um tipo de poder
que ameaçava e condenava qualquer tipo de expressão, literária ou artística,
individual ou coletiva, que contrariasse a ideologia de seus respectivos regimes totalitários, comuns em países da América Latina nas décadas de
1960, 1970 e 1980. Não obstante, tanto a produção musical de matriz católica como a que foi desenvolvida no segmento protestante no âmbito da TL
não puderam ser abafadas ou contidas pelos regimes. A produção protestante teve sua expressão mais difundida por meio de discos, cadernos musicais
e alguns grupos musicais itinerantes. Por outro lado, a produção católica,
também contando tanto com algumas composições e gravações de padres e
outros artistas populares, desempenhou um papel acentuado de divulgação
da temática libertacionista, especialmente em algumas missas. Nesse sentido a chamada Misa Campesina Nicaragüense, já mencionada anteriormente, ocupou papel de destaque.
A TEMÁTICA LIBERTACIONISTA DIFUNDIDA POR AUTORES BRASILEIROS LIGADOS AO PROTESTANTISMO
Em primeiro lugar, convém repetir mais uma vez que a música de
conteúdo libertacionista não é como alguns imaginam uma criação que ficou restrita ao ambiente católico-romano latino-americano. Ela também foi
gerada dentro do campo protestante.
A partir da década de 1960 autores protestantes começaram a escrever letras que traziam consigo elementos próprios da TL. Uma das primei-
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ras foi feita em 1967 e trouxe o seguinte título: “Que estou fazendo?” Seu
autor é João Dias de Araújo, pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil.
O texto que, posteriormente, em 1974, foi musicado por Décio E. Lauretti,
assim se apresenta:
Que estou fazendo se sou cristão, se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres em lar, sem pão, há muitas vidas sem salvação.
Mas Cristo veio pra nos remir, o homem todo, sem dividir:
Não só a alma do mal salvar, também o corpo ressuscitar.
Há muita fome no meu país, há tanta gente que é infeliz,
Há criancinhas que vão morrer, há tantos velhos a padecer.
Milhões não sabem como escrever, milhões de pobres não sabem ler:
Nas trevas vivem sem perceber que são escravos de um outro ser.
Que estou fazendo se sou cristão, se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres em lar, sem pão, há muitas vidas sem salvação.
Aos poderosos eu vou pregar, aos homens ricos vou proclamar
Que a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus.15 [grifos do autor]
(BUYERS, 1987, p. 113).
A letra acima, ao refletir criticamente sobre a realidade social, ao
tratar da imensa população de pobres, ao enfocar uma salvação que leva o
indivíduo a ser parte do projeto divino que combate toda forma de opressão
e injustiça, trazia a lume os principais temas da TL.
Jaci Maraschin, teólogo anglicano e poeta, editou livros de cânticos,
com letra e música, tanto no Brasil como no exterior. Muitos desses livros
enfocaram, tanto por meio das composições do próprio Maraschin como
também pelos demais compositores neles inseridos, temas comuns à TL.
Um dos principais livros que editou é intitulado Novo Canto da Terra16
(MARASCHIN, 1987). Com relação ao processo de sua elaboração, Ramos (1996) comenta:
O processo contou com a participação de compositores, musicistas profissionais e
teólogos pois “é preciso o cuidado com a teologia que cantamos uma vez que não
fazemos, neste projeto, música apenas por amor à arte, mas também por amor ao
evangelho”. O título do livro indica a preocupação dos autores das letras e das músicas no esforço para “cantar o nosso compromisso com a terra, cantando a partir dela,
sabendo que se trata da mesma terra criada por Deus e escolhida por ele para a
encarnação de seu Filho”. Tal esmero, infelizmente, não tem sido a regra nas coletâneas de perfil carismático (p. 29).
15
Essa composição pode ser encontrada na página 113 do caderno de música intitulado Nova Canção, Coletânea de
Hinos e Cânticos Brasileiros compilado por Norah Buyers e editado pelo CEBEP/CAVE. A edição aqui utilizada
é de 1987.
16
Esse livro teve como editor Jaci C. Maraschin e foi publicado pelo Instituto Anglicano de Estudos Teológicos
(IAET) no ano de 1987.
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Nesse importante trabalho editado por Maraschin, os temas que mais
se acentuam são: esperança (trinta composições); libertação, libertar e libertador (vinte e sete composições); povo (vinte e duas composições); canção (vinte e duas composições); pão (vinte e uma composições); reino (vinte e uma composições); alegria (vinte e uma composições); terra (vinte composições); caminho (dezessete composições); justiça (dezesseis composições); evangelho (dez composições); comunhão (nove composições); festa,
festança (nove composições). Observemos, a seguir, algumas estrofes de
composições de Jaci C. Maraschin e Simei Monteiro registradas no livro
Novo Canto da Terra (MARASCHIN, 1987), e a relação delas com conteúdos da TL. As três primeiras são da autoria de Maraschin e as duas seguintes são da autoria de Monteiro. Eis o conteúdo das letras:
Espírito e História
Vem, instaura o novo mundo
onde o amor seja a linguagem,
e que seja o amor profundo:
seja o norte dessa viagem.
Queima tudo o que enfeitiça:
o poder do braço iníquo;
rompe o cerco da injustiça
que separa o pobre do rico.
Esperança
O direito de viver
é para todos e sem distinção.
Aprisionado numa só cadeia
o povo quer e busca libertação
Se não estamos aqui numa grande Babel
só foi por Deus que isto aconteceu.
Que os desolados, os pobres e os sem lar
possam cantar, vibrantes, a vitória
de um reino que começa aqui e agora.
A Ceia do Senhor
Partilhar o pão,
Distribuir o vinho,
Estender a mão
A qualquer vizinho.
Alargar o chão,
Retirar o espinho,
Abraçar o irmão,
Não ficar sozinho
O pão da eucaristia
é mais que pura massa,
é feito de alegria
é dado a nós de graça
Jesus, em qualquer parte,
és mais que forma e rito:
és pão que se reparte
no mundo injusto, aflito.
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Permite que este trigo
na terra amadureça,
e a fome do mendigo,
enfim, desapareça.
A Nova Canção
Vivo a vida que é diferente,
Que quer ver a minha gente, Senhor,
te amar e ser como Tu.
Quero mudar a face do mundo,
E dar-lhe amor mais profundo, Senhor,
do que se costuma dar.
Pois Cristo veio e morreu,
e não apenas viveu,
e veio para ficar,
e vem comigo lutar, lutar,
e vem comigo lutar,
Vem lutar, vem lutar.
Salmo 2
Por que há nações orgulhosas,
Querendo um domínio total?
Negando a Deus e em nome da paz,
Destroem em vez de livrar.
Por que se acumulam riquezas,
Por que há pobreza e opressão?
Cuidado, nações, aprendam lições:
Juízo de Deus vai chegar!
Nessas letras de Monteiro, é-se colocado diante da TL. Na primeira
isso se dá especialmente a partir dos textos que trazem consigo palavras e
expressões como: “novo canto da terra”, “reconstrução”, “quero mudar a
face do mundo” e “vem comigo lutar”. Na segunda composição, a aproximação da temática libertacionista ocorre quando a letra denuncia imperialismos que promovem a morte, acúmulo de riquezas em contraste com a
pobreza e a opressão, além de deixar claro que Deus se coloca ao lado dos
que se empenham pela paz.
Embora esse caderno, editado em 1987, seja um dos mais extensos
que foram produzidos com relação à temática libertacionista, houve também produções menores que se preocuparam em estabelecer conexão com
a TL. Dentre outros, cita-se a coletânea de hinos e cânticos brasileiros, editada pela primeira vez em 1975 e coordenada por Norah Buyers com apoio
do CEBEP (Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais) e da CAVE
(Centro Áudio-Visual Evangélico), intitulada Nova Canção. Maraschin
(BUYERS, 1987) faz o seguinte comentário no prefácio da primeira edição
desse caderno:
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A música do povo das igrejas é, antes de qualquer coisa, música do povo. É a música
dos que compõem, escrevem poesia e cantam. E é, também, resultado das experiências dos que vivem com esse povo, dos que têm a mesma sensibilidade e buscam
expressar a fé nos ritmos, formas, atmosfera e cultura locais (p. 5).
Outro caderno de músicas que seguiu em grande parte a proposta do
anterior foi o coordenado por Jaci Maraschin e Simei Monteiro. Seu título
ficou assim estabelecido: A Canção do Senhor na Terra Brasileira. Esse
caderno foi editado pela Associação de Seminários Teológicos Evangélicos
(ASTE) em 1982. Quanto ao conteúdo das letras e às formas musicais,
Cantoni registra no prefácio:
Os textos falam da vida do nosso povo, suas angústias, sofrimentos e alegrias, à luz do
evangelho. O homem é tratado como um ser global sem dividi-lo em corpo e alma.
As formas musicais são bem populares, outras vezes sem uma definição clara. Percebe-se a procura do compositor em pesquisar, experimentar e encontrar o veículo adequado para a comunicação do texto (MARASCHIN e MONTEIRO, 1982, s.p.).
Acredita-se que a menção a esses cadernos contribui para compreender que havia uma preocupação de pessoas ligadas ao protestantismo em
articular, expressar e divulgar, ainda que de forma experimental, novas propostas litúrgicas que, por sua vez, veiculassem os anseios da TL.
Outro fator que colaborou para que a TL se expressasse musicalmente foram os hinários e grupos musicais que surgiram especialmente na década de 1970 e 1980.
O primeiro grupo que surgiu dentro do presbiterianismo, inspirado
no trabalho realizado pelo Coral do Morro que mais adiante será objeto
destas considerações, foi o Grupo Café. Seu nascimento ocorreu a partir de
um festival que foi organizado pela Federação São Paulo de Mocidades da
Igreja Presbiteriana Independente do Brasil em 31 de outubro e 1º de novembro de 1981. Esse festival foi chamado Café: canções para em festival
evangélico. A idéia na ocasião, segundo Valdomiro Pires de Oliveira,17 fundador do Grupo, era despertar a juventude para compor músicas em louvor
a Deus e também para falar do Evangelho com ritmos brasileiros.
O festival deu ocasião à gravação de um LP (long play) que trouxe o
mesmo título do festival. Nesse disco, ficava evidente mais uma vez a proposta do festival, isto é, a de criar uma música popular brasileira religiosa
17
Formou-se em Teologia na Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil em São Paulo,
no ano de 1974 e concluiu o curso de Filosofia, no ano de 1975, na Universidade de Mogi das Cruzes. Valdomiro
Pires de Oliveira, reverendo da Igreja Presbiteriana, lançou, em 1986, pela Editora Metodista em parceria com o
CEBEP – Centro Brasileiro de Estudos Pastorais - seu primeiro livro intitulado “Aquarelando – Um novo tempo
começa pela poesia”. Ele é também letrista de várias composições, algumas delas gravadas pelas Edições Paulinas
e outras gravadoras.
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ou, ainda, uma nova música cristã. Essa gravação ficou sendo a primeira do
Grupo Café. O disco reuniu doze canções, e em sua maioria pode-se notar
aspectos relacionados com a TL. A título de constatação, será mencionada a
canção intitulada Ciranda da Libertação composta por Ernesto Barros Cardoso. Eis a letra que se encontra na contracapa do primeiro disco gravado
pelo Grupo Café em 1981:
Ciranda da Libertação
Canta tuas canções tão belas, tuas canções sentidas
Não podemos cantar se a tristeza é tamanha
Só nos resta chorar nesta terra estranha
A injustiça, a maldade fez na gente ferida
Só ficou a saudade da alegria perdida
Nossa língua secou, nosso peito rachou
Não podemos cantar, não podemos cantar
Alegria, alegria! Vem aí libertação
Pois nasceu um novo sol, tornando a noite em claro dia
Iluminando as trevas da injustiça, eliminando os erros e o mal
Desmascarando toda mentira eis o Messias afinal,
Filho de um pobre carpinteiro e fruto da humildade maternal
Nasceu em meio as palhas e o cheiro dos animais lá no curral
Alegria, alegria! Vem aí a libertação
Ele que viveu em meio aos pobres tratando todo mundo como irmão
Ouvindo a voz da gente oprimida cumpriu em tudo a sua missão
O nosso canto hoje é de esperança de que haverá uma transformação
E na fragilidade da criança achamos forças para a nossa missão.
Além do LP já mencionado, o Grupo Café, entre 1984 e 1985, elaborou um segundo disco intitulado Mutirões, seguindo a mesma proposta inicial. O segundo trabalho, entretanto, não contou com apoio da gravadora
“Discos Musicais Califórnia Ltda.”, que havia produzido o primeiro disco.
Não obstante, a produtora fonográfica Edições Paulinas Discos, de confissão católica romana, ao tomar conhecimento do trabalho musical e de seu
respectivo conteúdo, investiu financeiramente, entre 1984 e 1985, na produção daquele que se tornou o segundo disco do Grupo Café. Destaca-se, a
seguir, uma das doze canções que fizeram parte desse segundo trabalho
musical. A letra é da autoria de Valdomiro Pires de Oliveira e a música de
Ismar do Amaral. A letra “Mutirões” assim se apresenta na contracapa do
segundo disco gravado pelo Grupo Café entre 1984 e 1985:
Quando os nossos mutirões forem movidos pela fé
No Evangelho que é vida, cartilha para ser seguida
Vai ter pão em toda mesa, vai ter semente no chão
Vai ter vinho em todo copo, vai ter copo em toda mão
Todo ser vai comungar, todo olhar vai se encontrar
Toda mão vai ajudar, toda garganta vai cantar.
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Pode-se observar, tanto no primeiro disco com no segundo, a temática
libertacionista. Tal fato pode ser constatado nas seguintes palavras e expressões: injustiça, gente ferida, vem aí libertação, haverá uma transformação, voz da gente oprimida, vai ter pão em toda mesa e toda mão vai
ajudar.
O Grupo Café, embora tenha atuado durante dez anos, teve sua produção fonográfica limitada a esses dois discos que aqui foram mencionados. Depois desse período o Grupo deixou de exercer sua atividade musical
em conjunto. Não obstante, o Valdomiro Pires de Oliveira criou o movimento Areópago que, segundo ele, era uma nova alternativa artística para a
vida da igreja.
O movimento Areópago teve seu início a partir de novembro de 1986
na cidade de São Paulo, num encontro organizado por Valdomiro Pires de
Oliveira. Nessa ocasião, segundo Calvani,18 compositores e poetas cristãos,
em número de dez, discutiram seus trabalhos, compartilharam suas experiências e refletiram a partir de uma exposição de Flávio Irala. Esse primeiro
encontro, em 1986, desencadeou outros quatro encontros. O segundo ocorreu em março de 1987 e contou com a participação de quarenta artistas que,
na ocasião, debateram entre si com base em uma palestra proferida pelo
professor Antonio Gouvêa de Mendonça. Nesse segundo encontro, conforme observa Calvani, delinearam-se os contornos do movimento, ou seja,
reunir artistas de vários segmentos. O terceiro encontro ocorreu em agosto
de 1987 nas dependências do Instituto Paulo VI, uma instituição católica
romana. Nesse, cinqüenta e dois artistas estiveram presentes e, dividindose em cinco grupos, trataram de questões relacionadas com teatro, expressão corporal, desenho, poesia e música. Em abril de 1988, já com oitenta e
cinco artistas vindos de várias partes do Brasil, o movimento Areópago
criou dois novos grupos: um de fantoches e outro de dança. Em novembro
de 1988, novamente no Instituto Paulo VI, o movimento Areópago reuniu
quase cem artistas. Nesse quinto encontro tratou-se da questão do Corpo e
da Ética. Esses cinco movimentos apontam para os propósitos que estavam
presentes no Grupo Café, ou seja, o de expressar por meio de uma musicalidade brasileira a arte cristã que exaltava Deus e mantinha os olhos abertos
para a realidade social brasileira, não somente com o fim de constatar os
fatos nela presentes, mas, principalmente, para denunciar injustiças e engajar
o povo de Deus na construção de um mundo novo e melhor.
Desses movimentos supramencionados, surgiu o disco Areópago.
Destaca-se a seguir “Hino Ameríndio” uma das composições que fizeram
parte desse disco e que Calvani destaca na contracapa do álbum. Eis a letra:
18
Essa informação de Carlos Eduardo Brandão Calvani encontra-se na contracapa do disco Areópago gravado em
1991.
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Povo de vida marcada, por balas, cacete e canhão
Povo de gente exilada, pela maldita opressão
Gente miscigenada, branca, negra, ameríndia
Pra vida predestinada, mas infeliz e sem nada
Vem, Senhor, ao nosso encontro refaz o nosso encanto
Nós queremos caminhar na força desse canto
Sangue que corre nas veias fazendo do grito canção
Unindo selvas e areias, ruas, floresta e sertão
Brilha no olhar desse povo a força do vento e do céu
Dando prazer nesta vida o doce gosto do mel.
Pode-se notar também, nestas letras, realidades que a TL focaliza
com freqüência, a situação de opressão em que vivem aqueles que estão sob
o domínio de regimes totalitários, a escassez de bens e direitos fundamentais e a convocação a uma ação conjunta de todos os cristãos a favor de uma
sociedade mais justa.
Convém ressaltar ainda que esse álbum, que trouxe o selo da Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil, foi gravado em 1991 e contou a participação de outros grupos que haviam sido criados com base no trabalho
iniciado pelo Grupo Café, que são: Grupo Folhas Vivas, Grupo Novo Rumo
e Grupo Leme. Além desses grupos, o álbum teve a participação de João
Lucas Esvael e Manoel Santos.
Os fatos até aqui colhidos em relação ao Grupo Café e aos demais já
mencionados, mostram que houve dentro do presbiterianismo, mais especificamente na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, expressões musicais que focalizaram de forma acentuada temas da TL, mesmo enfrentando
oposição e arbitrariedades.
Outro trabalho musical que, além de inspirar a formação do Grupo
Café, continua vivo, é o que surgiu dentro do âmbito luterano, trata-se do
“Coral do Morro” já mencionado anteriormente neste texto.
A criação do supracitado Coral ocorreu em 1973 na Faculdade de
Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Sua primeira gravação ocorreu no final daquela década e o título do álbum
que gravaram foi O Novo Canto da Terra. O segundo trabalho fonográfico
ocorreu em 1982 e recebeu o título Arrozais Florescerão. Quanto à seleção
das músicas, Frederico (1998, s.p)19 comenta que o coro optou pelas músicas cristãs brasileiras que fossem simples e cantáveis, evitando cair numa
erudição que tornasse a comunicação do texto muito difícil. “Convite à Liberdade”, uma das canções que o Coral executou em várias de suas atuações tinha a seguinte letra:
19
Esse comentário de Denise Cordeiro de Souza Frederico pode ser encontrado em sua tese de doutorado defendida
em 05 de agosto de 1998 na Escola Superior de Teologia, no capítulo intitulado A Seleção de Cantos para o Culto
Cristão: Critérios Obtidos a Partir da Tensão entre Tradição e Contemporaneidade na Música Sacra Cristã
Ocidental. Tal registro encontra-se disponível em http://www.musicaeadoracao.com.br/hinos/tensao/5_cap5.htm.
Acesso em: 19 nov. 2006.
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Ó vinde, vós, os povos de todas as nações,
erguei-vos e cantai com alegria
Fazei soar nos ares nova melodia
Dizei que Jesus Cristo traz libertação
É tempo de romper a vil escravidão
Que em vós exercem homens ou idéias
É tempo de dizer que só Deus pode ser
O único Senhor da humanidade
A verdade vos libertará,
Sereis em Cristo verdadeiramente livres
Vinde todos, sim, ó vinde já
E celebrai com alegria a vossa libertação
E vós os oprimidos, e vós os explorados
E vós os que viveis em agonia
E vós os cegos, coxos, vós cativos, sós,
Sabei que em breve vem um novo dia.
Um dia de justiça, um dia de verdade,
Um dia em que haverá na terra paz
Em que será vencida a morte pela vida
E a escravidão enfim acabará.
Essa letra, intitulada “Convite à liberdade”, surgiu no movimento
dos Grupos Bíblicos Universitários de Portugal no contexto da Revolução
dos Cravos e foi escrita e musicada por Sérgio Matos. Micaela Berge, posteriormente, fez arranjo para canto coral. Ainda que tudo indique que a origem dessa canção em Portugal não tenha vínculo direto com a TL, sua
execução no Brasil pelo Coral do Morro na década de 1980 sinalizava uma
abertura ao pensamento da TL, uma abertura que se apresentava tanto no
contexto luterano como em outros segmentos protestantes estabelecidos no
Brasil. Tal fato pode ser notado não só com relação à música entoada pelo
Coral do Morro, mas também por meio do cancioneiro que surgiu dentro da
IECLB. Frederico (1998), comenta:
O cancioneiro O Povo Canta nasceu dentro da IECLB, mas por iniciativa de pessoas que atuavam na Pastoral Popular Luterana (PPL). Está dividido em quatro “capítulos”, que são: o povo canta sua vida; a igreja canta sua fé; liturgia e canto litúrgicos
e celebração. A “filosofia” principal para a seleção dos cantos pode ser verificada
sobretudo na sua primeira seção, onde muitos cantos sobre o Deus que liberta os
pobres, oprimidos e sofredores e os que convidam o povo cristão a se engajar no
auxílio a essa gente: “ O Povo Canta” reúne ao lado de canções antigas, canções
cristãs de composição recente, que são cantadas em meio popular, por exemplo, nas
vigílias de protestos, contra más condições de vida, em frente a palácios de governo
e sedes de grandes empresas, em manifestações de rua, que reivindicam melhorias
em diversos setores dos marginalizados da sociedade, em reuniões de grupos de
periferia, que se organizam para unificar uma luta. (...) Comunidades da IECLB
cantam estes hinos em seus cultos dominicais. (...) O cancioneiro constitui-se em
subsídio teórico e espiritual para membros da Igreja engajados em grupos que ultrapassam os limites da comunidade religiosa. Em sentido inverso, por conter canções
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de cunho histórico-cultural e ligados à tradição, ele é responsável também por trazer para dentro da comunidade o tema da responsabilidade social dos cristãos, na
forma de expressão cantada e celebrada (s.p.).
Como pode ser visto, a influência da TL ocorreu também na elaboração dos cancioneiros e hinários protestantes que surgiram na década de
1970 e de 1980 no Brasil, mais especificamente no contexto luterano20 e
episcopal. Com relação à Igreja Presbiteriana Independente, Frederico (1998)
comenta com relação ao hinário que havia sido planejado para ser lançado
em 2003, ano do centenário da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil:
Foram editadas seis coletâneas com as propostas dos hinos que formarão o futuro acervo desse hinário, denominadas Canteiro. Além do acervo da “tradição protestante” no
país, há grande diversidade quanto ao seu conteúdo teológico, tanto há responsos, corais
alemães e cantos brasileiros que atendem à teologia social (FREDERICO, 1998, s.p.).
Conquanto tenha havido esforços no sentido de desenvolver e ampliar temas sociais nas canções entoadas nas igrejas protestantes, na maioria
das vezes elas acabam sendo relegadas à periferia litúrgica e, em conseqüência, geralmente, recebem um tratamento avulso de duração curta e limitada. Não obstante, novos grupos musicais têm surgido em algumas igrejas protestantes. Um deles, do qual se pôde tomar conhecimento, surgiu há
cerca de cinco anos na Segunda Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte –
IPU (Igreja Presbiteriana Unida) e se autodenomina Coração do Povo.
Menciona-se a seguir uma das letras do CD que lançaram em parceria com
a Visão Mundial.21 Pode-se notar que a temática da TL retorna com clareza
em seu conteúdo. Observe-se o teor da canção intitulada “Pai nosso dos
mártires”:
Pai nosso, dos pobres marginalizados
Pai nosso, dos mártires, dos torturados
Teu nome é santificado
Naqueles que morrem defendendo a vida
Teu nome é glorificado
Quando a justiça é nossa medida
Teu reino é de liberdade
Da fraternidade, paz e comunhão
Maldita toda a violência
20
Refere-se ao segmento religioso que, sob a influência do reformador protestante Martinho Lutero, teve suas
origens na Europa no século XVI e que, posteriormente, no início do século XIX, se instalou no Brasil no ano de
1824 com a chegada dos primeiros imigrantes evangélicos alemães em Nova Friburgo no Rio de Janeiro e em Rio
dos Sinos, no Rio Grande do Sul, no mesmo ano.
21
Organização Não Governamental Cristã fundada pelo jornalista Bob Pierce no ano de 1950. No Brasil, a Visão
Mundial, por meio de programas de saúde preventiva, investe em projetos sociais que enfatizam o desenvolvimento da criança.
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Que devora a vida pela repressão
Maldita toda violência
Que devora a vida pela repressão
Queremos fazer tua vontade
És o verdadeiro Deus libertador
Não vamos seguir as doutrinas
Corrompidas pelo poder opressor
Pedimos-te o pão da vida,
O pão da segurança, o pão das multidões
O pão que traz humanidade
Que constrói o homem em vez de canhões
O pão que traz humanidade
Que constrói o homem em vez de canhões
Perdoa-nos quando por medo
Ficamos calados diante da morte
Perdoa e destrói os reinos
Onde a corrupção é a lei mais forte
Protege-nos da crueldade
Do esquadrão da morte, dos prevalecidos
Pai nosso revolucionário
Parceiro dos pobres, Deus dos oprimidos
Pai nosso revolucionário
Parceiro dos pobres, Deus dos oprimidos.
Além do Coração do Povo, outro grupo chamado Viva Vida surge
nesse cenário musical mais recente. Não se tem conhecimento do período
em que gravaram, entretanto suas composições também se identificam com
o pensamento da TL. Registram-se, na seqüência, partes das composições
de Xico e de Laan e de Laan e Sérgio Marcos. Eis parte do conteúdo das
canções Leite y mel e Morenamérica:
Você nos prometeu que um dia nós teremos
Um mundo bem melhor que este em que vivemos...
Dispostos estamos, pois a assumir o compromisso
Dos pobres libertar, estando a seu serviço
Nossa Morenamérica, pátria sofrida
Irmã de cor Negráfica, terra ferida
Vem libertar! Vem libertar!
Oh! Deus...
Por certo vais transformar
A terra Tua vais libertar
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Como se pode ver, a temática libertacionista inseriu-se no campo
protestante, também, por meio da música, tanto pelo canto coral, como também por grupos musicais e literatura musical. Na década de 1960 esse mo-
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vimento musical iniciou seus primeiros passos e, mais adiante, nas décadas
de 1970 e 1980, se desenvolveu e se espalhou. Nas décadas seguintes sua
expressão e produção diminuem acentuadamente, mas ainda se vêem esforços em prol de uma proposta musical que pretende – conforme apontava
Calvani22 no disco Areópago – “expressar a dor, o sofrimento e a esperança
dos que não têm voz, mas que gemem com toda a Criação e, ao mesmo
tempo, anunciar os sinais de Nova Criação e da Vitória sobre a Morte.”
Finalmente, Calvani lembra também, ao se referir a Chico Buarque e
sua atuação na década de 1970, que uma das funções da arte é exercer o
papel profético. Calvani (1998) escreve:
Outra função da arte é a profética. Nos anos 70, Chico Buarque teve muitos problemas com a censura do regime militar, que logo percebeu o poder crítico, conscientizador
e revolucionário de suas canções recheadas de uma simbiose perfeita entre lirismo e
protesto (p. 157).
Chico Buarque, durante parte do regime militar, precisou se autoexilar na Itália por um ano. Tal fato mostra, dentre muitos outros aspectos
que poderiam ser analisados, que a arte, quando se torna instrumento de
contestação e confrontação, acaba muitas vezes por se tornar alvo de forte
represália por parte daqueles que se vêem atingidos por sua estética denunciadora e provocadora de conscientização. Nesse sentido, tendo como base
o pensamento do filósofo alemão Adorno, pode-se considerar que, atualmente, em razão da indústria cultural estar dominada, em sua maior parte,
por empresários que se curvam diante de especialistas do marketing com
mentalidade voltada para o entretenimento e a diversão, depara-se a sociedade com um número cada vez maior de produções musicais precipuamente
voltados em atender os interesses e as demandas do mercado fonográfico.
O estabelecimento permanente ou a entronização dessa indústria cultural
reducionista se presta, em muitos casos, para entorpecer o povo, ao invés de
despertá-lo, conscientizá-lo e movê-lo, em âmbito sócio-coletivo, a almejar
e a construir uma sociedade que não seja mais escrava de senhores ou estruturas que roubam dela a condição de ser uma sociedade liberta e libertadora.
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ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
22
Esse dado de Carlos Eduardo Brandão Calvani encontra-se na contracapa do disco Areópago gravado em 1991.
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FATARELI, Uéslei. A influência da teologia da libertação em composições...
BOADELLA, Montserrat Galí. Música para La Teologia de la Liberation. Anuario de historia de la
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EDUCAR NA RELIGIÃO: DESAFIOS PARA A
TRANSMISSÃO DE VALORES ENTRE
MUÇULMANOS EM SÃO PAULO
Oswaldo Mario Serra Truzzi*
Resumo: O presente artigo procura examinar as estratégias de que se valem os muçulmanos para enfrentar um problema comum a qualquer minoria religiosa atuante no
Brasil. Como passar e transmitir, às novas gerações, valores e referenciais de conduta
condizentes com a fé religiosa, em um país de maioria católica e maciçamente cristã?
Em última análise, essa questão se vincula à própria reprodução da comunidade. O
material empírico que sustenta a análise aqui empreendida é composto por dez entrevistas em profundidade, com muçulmanos pertencentes a gêneros, faixas etárias, condições sócio-econômicas e tempo de Brasil variáveis.
Palavras-chave: Educação islâmica. Entrevistas. Valores religiosos.
Abstract: This article examines the strategies that the Moslem people use to face a
problem that exists in any religious minority in Brazil: how to pass on to the new
generations behavior reference values in agreement with their religious faith in a country
mostly Catholic and almost totally Christian? In other words, this subject is closely
related to the own Muslim community reproduction. The empirical material that
supports this analysis is made of ten detailed interviews with Moslem people of different
genders, ages, social and economical conditions and times of living in Brazil.
Keywords: Moslem education. Interviews. Religious values.
INTRODUÇÃO
Famílias muçulmanas, sobretudo de origem libanesa, passaram a integrar com maior freqüência a paisagem paulistana dos dias de hoje, ainda
que constituam um contingente numericamente muito menos importante
que a imigração anterior de cristãos, presentes desde as últimas décadas do
século XIX.
Esse movimento migratório de muçulmanos, a princípio muito tímido, cujos primórdios remetem às primeiras décadas do século XX, foi re*
Professor da UFSCar.
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TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Educar na religião: desafios para a transmissão...
forçado no pós-Segunda Guerra, pela conjuntura de depressão econômica
que atingiu regiões mais atrasadas do Oriente Médio e, mais ainda, a partir
de 1975, quando eclodiu a guerra civil libanesa (OSMAN, 1998; GATTAZ,
2001). A falta de perspectivas para os jovens, que residiam em regiões preponderantemente rurais, como o Vale do Bekaa, ou em pequenas aldeias ao
Sul do Líbano, onde os conflitos político-religiosos eram mais presentes,
impeliu os que ainda tinham alguma autonomia a decidirem pela emigração. Hoje a comunidade muçulmana no Brasil é estimada por suas lideranças como perfazendo entre meio e um milhão de indivíduos (HAYEK, s.d.;
FOLHA DE SÃO PAULO, 2001; O GLOBO, 2001), a grande maioria deles provenientes de famílias originárias do mundo árabe, especialmente,
como já se disse, do Líbano.
Essa característica singular atua como elemento de homogeneidade,
de modo a fazer coincidir as identidades étnica e religiosa no grupo, ao
contrário do que ocorre nos Estados Unidos,1 por exemplo, onde a comunidade muçulmana provém, por assim dizer, de origens nacionais muito distintas, trazendo de cada origem traços culturais próprios. É possível, e existem, conversões de brasileiros, não descendentes de imigrantes muçulmanos, assim como muçulmanos originários de outros países, mas em contingentes numericamente pouco expressivos. Em São Paulo, o próprio título
da revista da comunidade muçulmana denuncia a origem comum: Al Urubat,
‘O Arabismo’ em português.
O muçulmano libanês pouco inovou em relação a seu conterrâneo
cristão, chegado anteriormente: começou também como vendedor ambulante de artigos populares e, em seguida, se estabeleceu com um comércio
de armarinhos. Aos poucos, porém, à medida que algumas famílias logravam relativo sucesso, passaram a se dedicar à comercialização de móveis
populares. Entre as famílias originárias do vale do Bekaa e do Sul do Líbano, um grupo considerável de muçulmanos passou também a comercializar
confecções (sobretudo em jeans), concentrados ao redor da Rua do Oriente,
no bairro do Brás. Muitos desses imigrantes emigraram provisoriamente,
fugindo dos combates em sua terra natal, alimentando inicialmente o sonho
de retornar. Alguns voltam efetivamente para rever familiares, a passeio, ou
mesmo, em alguns casos, definitivamente, mas em geral têm dificuldades em
se estabelecer novamente no Líbano, em virtude das melhores perspectivas
econômicas que o Brasil oferece. A imensa maioria se estabeleceu no ramo
comercial, mesmo que hoje mascatear seja pouco usual, em virtude da violência nas grandes cidades.
1
Nesse país estima-se que os muçulmanos perfaçam um contingente de cinco milhões de indivíduos, enquanto a
população muçulmana do planeta é avaliada em mais de um bilhão de fiéis, 18% dos quais habitando o mundo
árabe. A Indonésia é o país que abriga o maior contingente.
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O presente artigo procura examinar as estratégias de que se valem os
muçulmanos para enfrentar um problema comum a qualquer minoria religiosa
atuante no Brasil. Como passar e transmitir, às novas gerações, valores e
referenciais de conduta condizentes com a fé religiosa em um país de maioria
católica e maciçamente cristã? Em última análise, essa questão se vincula à
própria reprodução da comunidade. O material empírico que sustenta a análise aqui empreendida é composto por dez entrevistas em profundidade, com
muçulmanos pertencentes a gêneros, faixas etárias, condições sócio-econômicas e tempo de Brasil variáveis (metade deles nasceu no Líbano).
Toda prática religiosa embute em si mesma uma ação pedagógica,
mas processos de secularização vêm crescentemente solapando a relação
entre crença religiosa e conduta social, sobretudo em sociedades européias
(BERGER, 1985; MARTIN, 1978). Embora possa se discutir a tese da secularização no contexto nacional, especialmente tendo-se em conta o boom
pentecostal recente (FONSECA, 2002), o problema da transmissão de valores e da socialização de indivíduos na fé religiosa coloca-se, de qualquer
modo, com maior ênfase quando a religião é (ainda) estruturante do cotidiano, isto é, quando as práticas associadas à religião permeiam as condutas,
atitudes e valores do dia a dia.
Nesse particular, essa constitui uma das principais diferenças entre árabes muçulmanos e cristãos em São Paulo. Não obstante a presença de muitas
características culturais comuns, advindas da cultura árabe,2 a maior proximidade dos cristãos (sobretudo maronitas e ortodoxos) ao catolicismo
hegemônico abrandou práticas religiosas distintas ao longo de gerações, resultando muitas vezes não apenas na incorporação de fiéis à Igreja Católica
dominante, mas também, sobretudo, no distanciamento da vivência religiosa,
expressa na consagrada fórmula “sou de (ou fui educado em) família de origem cristã, mas não sou praticante”. Já entre os muçulmanos, como se verá ao
longo deste artigo, a religião é muito mais estruturante do cotidiano.
No caso dos muçulmanos, a confluência entre ethos religioso e ethos
familiar, ordens de relacionalidade primordiais – uma mais cosmológica,
outra mais societária – define as condições básicas da presença de tais indivíduos no mundo, aquelas que os sustentarão como elementos da vida pública e que pautarão suas condutas e seus desafios. Conforme observou
Duarte (2006),
2
Tais como a centralidade da família, a dedicação ao comércio, os papéis diferenciados segundo o gênero, a
decisiva influência familiar na escolha do cônjuge, a preferência por filhos homens, as resistências à profissionalização feminina, o controle sobre a educação dos filhos etc. Tais paralelismos tornam-se – é verdade – mais
evidentes, não no cotejamento atual entre os dois grupos, mas, sobretudo quando abstraímos o processo de
aculturação do grupo cristão propiciado pela vivência de décadas no meio social brasileiro e comparamos as
mentalidades de imigrantes dessa origem no início do século XX com imigrantes de origem muçulmana chegados
há cerca de 30 anos atrás. Aí se torna evidente o peso de uma cultura árabe, de feitio nitidamente patriarcal, que
embasa e funciona como alicerce comum a práticas religiosas diferenciadas.
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(...) qualquer iniciativa que tenda a influir na vida social contemporânea de modo a
viabilizar sua adequação aos valores modernos por excelência, (...) enfrenta a necessidade de indagar como se articulam família e religião, de que modo conformam
representações e experiências de subjetividade mais ou menos sensíveis à pregação
modernizante (p. 8).
Pretende-se argumentar, pois, que, para fazer face aos desafios lançados para a educação de jovens dentro das tradições religiosas muçulmanas, a família e a comunidade muçulmana mais ampla atuam como elementos essenciais, constituindo os dois espaços de socialização (DUBAR, 2000)
privilegiados nesse processo relativamente complexo, porque sujeito a muitas
tensões, idas e vindas e negociações.
Por família refere-se não apenas à família nuclear, mas à ampliada,
composta por avôs e avós, tios e tias, primos e primas e seus respectivos
cônjuges e filhos. A família, como já se explorou alhures (TRUZZI, 1997),
seja ela de origem cristã ou muçulmana, provavelmente constitui o elemento
mais essencial da identidade de imigrantes árabes. Por outro lado, por comunidade entende-se o conjunto das famílias muçulmanas que habitam a região
metropolitana de São Paulo. Tal comunidade mais ampla encontra-se
subagrupada em comunidades menores, que praticam determinada doutrina
no interior do islamismo (a maior parte são sunitas) ou que freqüentam uma
determinada mesquita ou que provêm de uma mesma região de origem.
Pertencimento religioso, concentração espacial e origem familiar encontramse relativamente imbricados no caso de muçulmanos em São Paulo.
Tudo se passa como se o indivíduo muçulmano em São Paulo fosse
socializado a partir de círculos concêntricos: em primeiro lugar, em um nível
mais íntimo e próximo, a decisiva esfera familiar, no velho e no novo país –
formadora, reprodutora e crivo das influências mais profundas de natureza
afetiva, moral, social, cultural e econômica (BERGER e LUCKMAN, 1983).
Em seguida, os correligionários conterrâneos, cujas famílias provêm da mesma aldeia ou cidade no país de origem, ladeados pelos de outras origens, mas
que aqui na nova terra tornaram-se próximos por circunstâncias diversas.
Por último, a comunidade muçulmana mais ampla, concebida como uma
espécie de família universal, cuja unidade depende de cooperações mútuas.
A
FAMÍLIA COMO INSTÂNCIA SOCIALIZADORA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO
Entre muçulmanos, a família atua como a instituição mais fundamental de socialização, pois a centralidade desta na vida do indivíduo lhe
confere a primazia na transmissão de heranças afetivas, morais, culturais,
sociais e patrimoniais (econômicas). Aproxima-se, nesse sentido, de uma
instituição total, no sentido em que Goffman (2005) empregou o termo.
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Entre os entrevistados, compartilha-se do entendimento de que todos
os membros de uma família devam permanecer juntos o máximo possível,
seja em casa, seja no trabalho ou em outras atividades. Espera-se, assim,
manter as crianças sempre envolvidas no seio da família, de modo a poder
lhes transmitir os valores da vida familiar num ambiente islâmico. Uma
conseqüência importante diz respeito ao contínuo controle da comunidade
sobre o indivíduo. Esse aspecto, obviamente, colide com a valorização e
busca de privacidades individuais, cada vez mais comuns em sociedades
ocidentais (OSMAN, 2006, p. 187-9). É oportuno mencionar, a esse respeito, que em muitas ocasiões os indivíduos entrevistados se fizeram acompanhar por familiares,3 em geral do mesmo sexo do(a) entrevistado(a), o que
leva ao tema dos papéis diferenciados segundo o gênero nessa comunidade.
O caráter eminentemente patriarcal da organização familiar confere
de fato papéis muito diferenciados ao homem e à mulher. Tais papéis são
percebidos e incorporados pelas crianças desde muito cedo. Ao homem cabe
o papel de provedor. Ele define a unidade familiar, sua honra e seu orgulho
próprio derivam dele saber cuidar de sua família, zelando por sua sobrevivência econômica, pelo bom encaminhamento dos filhos, pelos assuntos,
de natureza social ou política, externos ao lar. É compreendido como o mais
apto para tal porque teoricamente mais experiente e exposto à vida pública.
Isso não exclui a possibilidade de consultas e de discussão com a esposa,
mas a autoridade e a responsabilidade final sobre os destinos familiares
recaem sobre ele, que tem experiência, conhecimento e autoridade em seu
papel. Um dos corolários importantes no exercício de tal papel é a vergonha
de admitir alguma necessidade.
Os filhos, por sua vez, observam uma grande, se não absoluta, obediência aos pais, devendo-lhes respeito. Se homens são entendidos como responsáveis pela continuação da família, levando adiante seu sobrenome, derivando-se daí uma clara preferência por filhos do sexo masculino. Sendo
assim, o celibato do homem é encarado como um grande problema. São
ainda privilegiados, na razão de dois para um, no sistema de herança (em
relação às mulheres), já que devem arcar com a responsabilidade de cuidar
de toda a família: dos pais idosos, dos irmãos e irmãs, além de sua própria
família, compreendidos aí sua esposa e filhos. As filhas mulheres, por sua
vez, ao se casarem, passam a integrar a família do marido.
De uma forma geral, o papel da mulher é o de procriar e educar os
filhos. A maternidade é, assim, tida como um valor crucial e a incapacidade
de gerar filhos pode mesmo justificar o abandono da esposa pelo marido,
3
Sengstock (1996, p. 293) reporta uma situação semelhante: “Essa comunidade apresenta uma característica extremamente social. Todos se preocupam com as atividades do outro e esperam ser envolvidos nelas. Mesmo
realizar entrevistas com fins de pesquisa na comunidade raramente se constitui como uma atividade individual.
Visitas são quase constantes, de modo que o entrevistador raramente surpreende o entrevistado sozinho. Nos
raros momentos em que se encontra só, este raramente permanece nessa condição. Os vizinhos notam a presença
de alguém novo e aparecem para ver o que está acontecendo”. Na maioria dos casos, reporta ainda essa autora, os
intrusos acabam também participando da entrevista.
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uma vez que o islamismo proíbe a adoção de filhos, tal como no mundo
ocidental se pratica. A mulher exerce ainda pleno controle sobre o cotidiano
familiar, sobretudo no que se refere à criação dos filhos, pelo menos até
certa idade. Essa ressalva é necessária, pois, quando há separação do casal,
entende-se que os filhos devem obediência e “pertencem” ao pai, pois carregam seu sobrenome (DAHL, 1997).
Contudo, os casos de separação são raros, ainda que teoricamente
permitidos pela religião. São raros porque uma família constituída e estável
representa um valor essencial perante a comunidade. Além disso, é provável que as poucas esposas dispostas a se separar acabem se sujeitando a
uma convivência com o marido, mesmo que apenas formal, para salvar
aparências e, sobretudo, com o intuito de manter o contato com os filhos.
Por outro lado, mesmo que tradicionalmente tenham sido ensinadas
a ter como obrigação primeira educar os filhos e servir o lar, as vicissitudes
da vida moderna têm exigido, sobretudo das mulheres mais jovens, a inserção no mercado de trabalho. Essa é uma decisão hoje sujeita a disputas,
pois a profissionalização para a mulher muçulmana ainda é encarada por
amplos setores da comunidade com muito receio. As resistências decorrem
não apenas das obrigações para com os filhos e o lar, mas também da alegada
inconveniência de expô-la frente a outros homens fora do círculo familiar.
O entendimento das restrições religiosas no vestir segue a mesma pauta:
doutrinariamente no islamismo, a mulher, quando em público, deve cobrir
todas as partes do corpo para se resguardar. Toda a sensualidade, disse-me
um entrevistado, deve ser assim guardada para o marido, para dentro de
casa. Tal circunstância acarreta um duplo padrão de vestimenta para mulheres muçulmanas mais aculturadas, dependendo do local onde ela esteja: na
mesquita, na própria casa, no trabalho ou simplesmente nas ruas.
Retomando-se o tema da profissionalização feminina, um meio termo muitas vezes negociado é o trabalho da mulher no negócio da família: já
que muitas famílias detêm negócios próprios, resulta essa como uma solução mais aceitável, que preserva, de qualquer modo, a autoridade masculina como provedor.4
O PESO
DA SOCIEDADE DE ORIGEM
Se a família está há pouco tempo no Brasil, tende a haver maiores
resistências à mulher em se profissionalizar fora do ambiente familiar, a
menos que haja necessidades econômicas incontornáveis. Isso acontece
porque o peso da sociedade de origem se faz mais presente nos valores
4
Kulwicki (1996, p. 191) constata, por exemplo, haver resistências entre homens da comunidade em aceitar assistência social pública nos Estados Unidos, porque esta é percebida como um traço negativo à condição de provedores econômicos.
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familiares. Ao contrário do que ocorre em Beirute, nas aldeias do interior
do Líbano, de onde em geral provêm as famílias que chegam a São Paulo, é
rara ainda a profissionalização feminina em ambientes que escapam ao controle da família ampliada.
Desse modo, não podem ser negligenciadas as influências significativas da sociedade de origem na conformação dos valores familiares que
presidem a socialização e formação dos mais jovens. Como os processos
migratórios ocorreram há relativamente pouco tempo, muitas famílias compartilham do convívio com pais, parentes ou amigos imigrantes, facilitado
também pelos contínuos deslocamentos entre um país e outro, reduzidos o
custo e o tempo de viagem, ambos elevados até tempos recentes. A imigração assumiu assim um caráter transnacional (SCHILLER et al., 1995), no
qual o indivíduo pode transitar entre realidades bastante diferentes, não sendo
o caso aqui de se explorar, por falta de espaço e de adequação ao tema, as
conseqüências desse fenômeno do ponto de vista das manifestações
identitárias.
Algum domínio da língua árabe no cotidiano familiar decorre dessa
condição, já que a maior parte dos entrevistados não freqüentou escolas da
colônia. Um deles assim se manifestou: “português é na escola, em casa é
árabe e na loja é misturado”. Em muitos casos, a fluência nesse idioma vai
se reduzindo ao longo do tempo, pois a sobrevivência do árabe como língua
praticada no seio das famílias depende em boa medida da presença de imigrantes na própria família e da densidade dos vínculos mantidos com a terra
de origem. Cumpre-se ressaltar que o tema tem sua devida importância do
ponto de vista da manutenção das tradições religiosas, pois todos os rituais
islâmicos são praticados em árabe, considerado língua sagrada para os muçulmanos. Desse modo, a comunicação em árabe, ao lado do preparo e das
práticas alimentares, que também constituem outro referencial importante,
reforça assim uma sociabilidade própria e endógena às famílias muçulmanas em São Paulo.
INSTITUIÇÕES
DA COMUNIDADE E SOCIABILIDADES
Outra instância muito significativa de socialização para os muçulmanos é representada pelas atividades desenvolvidas no seio da própria colônia, junto às sociedades beneficentes, cujas sedes são normalmente
construídas em áreas anexas às mesquitas. Esse local, no qual as famílias se
encontram, abriga um conjunto expressivo de atividades sociais, culturais e
de apoio à comunidade. “A instituição da mesquita desempenha um papel
crucial à vida de toda a comunidade, já que nela as funções psicológicas
vitais da religião integram a personalidade do indivíduo ao da sociedade em
seu entorno” (ELKHOLY, 1966, p. 134).
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Em São Paulo, ali é o lugar no qual a comunidade se reconhece, onde
as informações circulam, as pessoas se encontram, as relações são revigoradas, os matrimônios tecidos, as visitas de autoridades recebidas, as comemorações celebradas, os negócios e a política – daqui e da terra de origem –
discutidos. O almoço de sexta-feira, que ocorre após os serviços na mesquita, é, semanalmente, o momento mais importante de reunião social da comunidade. Como se referiu um dos entrevistados,
(...) não é só uma estrutura física, (aqui chegam) os problemas de cada um, o xeique
tem que resolver o casamento de um, a separação de outro, a família que brigou com
esse, a família que brigou com aquele, a pessoa que está precisando de uma cesta
básica ali, aqueles que têm problemas..., então, a gente procura..., trazer essas pessoas
e ajudá-las (...), bolsas de estudo, então a gente procura estar direcionando sempre.
Existe uma rede de apoio, com certeza.
Quase todos os eventos da comunidade, incluindo-se festas e casamentos, são ali celebrados. A freqüência ao clube da colônia, localizado no
Riacho Grande, na zona sul de São Paulo, foi apontada por muitos como
bastante episódica.
Nesse sentido, o círculo de relacionamentos se encerra na própria
colônia, se se descontar, é claro, aqueles exigidos pelos negócios, na esfera
dos relacionamentos comerciais. Isso significa que a sociabilidade dos indivíduos é quase que exclusivamente dependente do círculo familiar e das
relações da família com a colônia muçulmana, pois os próprios negócios
são familiares e fora da família não existe muita coisa além das atividades
propostas pelas mesquitas e respectivas sociedades beneficentes.
Entre os entrevistados, em quaisquer faixas etárias, impressiona assim a circunstância de a sociabilidade das famílias estar ancorada em boa
medida na vida sócio-religiosa da comunidade, num padrão muito distinto
dos árabes cristãos, entre os quais é relativamente comum se encontrarem
famílias que não colocam o pé em uma igreja há meses. Para os muçulmanos, a religião parece assim se revelar, como aqui já se disse muito mais
presente, estruturando com grande intensidade o cotidiano vivido.
Em inúmeras vezes, em meio às entrevistas, foram feitas alusões aos
preceitos do islamismo para justificar atitudes, comportamentos e juízos de
valor. A própria brochura impressa sob os auspícios da Assembléia Mundial
da Juventude Islâmica, destinada a apresentar o Islã e os muçulmanos, reconhece que ambos podem parecer exóticos ou mesmo extremistas no mundo
moderno. Explica, contudo, que “talvez isso aconteça porque a religião não
domina a vida do dia a dia no Ocidente de hoje, enquanto os muçulmanos
têm a religião sempre presente em suas mentes, e não fazem distinção entre
o secular e o sagrado. Acreditam que a Lei Divina, chari’a, deve ser tomada
seriamente. Por isso, assuntos relacionados com a religião continuam tão
importantes” (HAYEK, s.d.).
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O PAPEL
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DA ESCOLA
É evidente o impacto decisivo dessa situação na educação dos filhos
ou, melhor dizendo, na apresentação às crianças do mundo dos adultos. São
a família e as atividades sociais da colônia nas sociedades beneficentes as
instâncias socializadoras por excelência, que inclusive lutam para compensar, por assim dizer, a influência “laica” ou “católica”5 exercida pela escola.
É fato que a comunidade mantém uma escola islâmica na Vila Carrão, zona
leste de São Paulo, que oferece matrículas da pré-escola ao ensino médio,
mas os esforços para uma orientação pedagógica que se coadune com os
preceitos islâmicos são relativamente recentes e, além do mais, é evidente
que nem todas as famílias da comunidade têm seus filhos nessa escola.
Desse modo, a influência da escola é muitas vezes encarada de modo
ambíguo, ao mesmo tempo como oportunidade e como ameaça e, evidentemente, os critérios para avaliar a importância da educação formal variam
segundo o gênero da criança. Assim, apesar de o próprio Profeta Maomé
considerar a procura do conhecimento como uma obrigação (HAYEK, s.d.)
e apesar do reconhecimento hoje, pelas famílias, da importância dos estudos e de uma educação formal, estes são vistos como mais importantes para
os homens do que para as mulheres. Uma boa educação formal, mediada
pela escola, é reconhecida hoje como fator importante para a sobrevivência
econômica das famílias e esta é uma tarefa que, tradicionalmente, cabe ao
homem como provedor. Não significa isso, obviamente, que as mulheres se
encontram excluídas da escola, mas que o empenho das famílias em apoiálas até a conclusão dos estudos superiores é menor. “Às vezes muito estudo
até atrapalha”, disse-me um entrevistado, enquanto outra se referiu às palavras cheias de peso de seu pai ao permitir, após muita insistência, que ela
cursasse faculdade: “Faça o que quiser, mas não se esqueça de que você é
muçulmana”.
Outra entrevistada, apreciando sua trajetória, referiu-se a uma espécie de dupla jornada em sua formação: a da escola formal, exterior, não
muçulmana, importante para se obter um diploma capaz de lhe assegurar
algum futuro, e a de sua casa, interior, onde os valores mais tradicionais da
comunidade foram instilados. São dois mundos em tensão e que de alguma
forma tiveram que ser acomodados na trajetória da maioria das famílias.
Essa mesma entrevistada reconhece, por decorrência, que a educação dos
filhos muçulmanos hoje está se tornando cada vez mais difícil.
Tensões desse tipo são encaradas, de certa forma, como o preço a
pagar pela criação dos filhos em um país não islâmico, como o Brasil. Por
causa disso, muitas famílias avaliam ser muito mais fácil educar os filhos
5
Não é raro que famílias muçulmanas matriculem seus filhos em escolas privadas, mesmo que católicas, procurando níveis de ensino melhores que aqueles oferecidos por escolas públicas.
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no Líbano, porque lá são criados “dentro da religião” (OSMAN, 2006).
Assim, algumas, quando podem, providenciam a mudança de seus filhos
para a terra de origem familiar, sobretudo no período da adolescência, quando
as pressões e os conflitos se tornam mais agudos. Lá residem por alguns
anos, retornando suficientemente maduros ou casados. O casamento representa um momento importante e merece uma atenção especial.
CONTROLE
FAMILIAR SOBRE OS CASAMENTOS
Sendo a constituição de uma família estável e integrada à comunidade um valor essencial, o tema dos casamentos é caro o bastante para não ser
deixado exclusivamente sob as prerrogativas dos cônjuges. Esforços são
evidentemente empreendidos no sentido de controlar os relacionamentos,
os namoros e, por fim, o casamento, que representa a criação, o ato de
surgimento de uma nova família, e, portanto, o momento crucial no qual
responsabilidades e compromissos com as tradições religiosas e culturais
são cobrados.
O namoro, por exemplo, pode até ser compreendido como uma oportunidade para que um casal se conheça, desde que seja absolutamente supervisionado, numa prática bastante distinta do “ficar”. Nesse ponto, incentivam-se as atividades centradas nas sociedades beneficentes anexas às
mesquitas como uma alternativa de socialização para os jovens, mesmo que
sob os olhares zelosos dos pais. Contudo, muitos jovens encaram tais restrições como muito severas, sobretudo as meninas, que reclamam da iniqüidade de tratamento em relação a seus irmãos, mais “soltos”.6 Percebe-se,
então, que o sistema incentiva meninos muçulmanos a se relacionarem com
meninas não-muçulmanas, já que as regras para um namoro com alguém da
colônia são por demais estritas.
Sobre o casamento propriamente dito, as percepções a seu respeito e,
por conseqüência, do processo adequado para se arrumar um cônjuge, vêm
sofrendo evoluções significativas, transitando de uma postura mais tradicional, pautada por casamentos arranjados, na qual o papel dos pais era preponderante, para outra com maior autonomia dos próprios cônjuges. Tradicionalmente, pode-se dizer que os cônjuges eram selecionados pelos membros das respectivas famílias, que combinavam a união, analisando-se o
histórico familiar, os recursos econômicos disponíveis, as afinidades familiares, regionais etc. Hoje é possível encontrar-se de tudo na colônia, desde
casamentos arranjados a casamentos mistos, cuja ocorrência vem aumen6
Ainda que o islamismo estipule que relações sexuais devam ocorrer somente após o casamento, os entrevistados,
de modo geral, reconhecem que, na prática, provavelmente muito mais homens do que mulheres transgridam a
doutrina islâmica nesse ponto.
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tando significativamente, a despeito da nítida preferência das famílias por
casamentos endogâmicos, isto é, com noivos pertencendo à mesma religião.
Aí também incidem questões de gênero, pois se torna mais fácil ao
homem muçulmano se casar com uma mulher não muçulmana do que o
contrário, já que a religião da (futura) família será a religião do homem.
Desse modo, espera-se que a mulher se converta à religião do homem. Quando a mulher casa fora do grupo, como ela “pertence” à família do marido,
não sendo o marido muçulmano, a família perde-se para o grupo, sendo
comum, nesse caso, seu ostracismo perante a comunidade. Além disso, a
situação é embaraçosa para os pais e irmãos, que têm que se justificar sobre
o ‘fracasso’ em educá-la de modo apropriado.
Casamentos mistos, mesmo sendo o noivo muçulmano, podem gerar
tensões consideráveis, advindas das pressões da comunidade. Um ponto
sensível, implícito ao tema, diz respeito, é claro, à identidade religiosa dos
filhos. O temor é que estes sejam criados longe da fé islâmica, ameaçando a
reprodução da própria comunidade. O casamento com noivos de outras religiões é tido assim como problemático: as complicações derivam do relacionamento difícil entre famílias e da disputa religiosa atinente à criação dos
filhos. De qualquer modo, há indícios de que os casamentos mistos vêm
aumentando. Essa tendência mostra-se como quase inevitável, pois, por mais
forte que seja a sociabilidade, interna à colônia, das famílias, os filhos acabam circulando por ambientes fora da comunidade, sobretudo ao freqüentarem faculdades.
Desse modo, é possível concluir que um casamento misto introduz
uma turbulência encarada como desnecessária e, é claro, capaz de ameaçar
o controle sobre a nova família que se forma. Além disso, muitos jovens
não obtêm emprego fora da unidade familiar, havendo expectativas mútuas,
de pais e de filhos, em relação à continuidade dos negócios familiares. Essa
situação de dependência econômica em relação aos pais aumenta as chances
de estes desempenharem um papel importante nas decisões conjugais. À
medida, entretanto, que trajetórias profissionais ganhem autonomia, é razoável se supor que os jovens se predisponham menos a aceitar a ingerência
dos pais na escolha de seus cônjuges.
Na colônia muçulmana, é temerário, pois, se compreender o casamento como estratégia de emancipação, já que a influência da família é
muito forte, embora doutrinariamente ninguém – homem ou mulher – deva
se casar à força, obrigado. Entretanto, “quem casa, casa também com os
pais”, disse-me um entrevistado. Assim, a avaliação dos pretendentes pelas
famílias constitui ponto fundamental na consideração dos casamentos. Sendo o casamento assunto tão importante, cabe muitas vezes à família tomar a
iniciativa para tratar de assunto tão crucial.
Uma alternativa segura, e efetivamente trilhada por muitos, é o casamento na própria família, em geral entre primos, de primeiro ou segundo
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graus, muito comum nos primórdios da imigração árabe (inclusive cristã),
tanto na própria terra de origem, quanto em outros países que receberam
imigrantes árabes. Eleger um cônjuge no interior da própria família representa, desse ponto de vista, alguma segurança e garantia de afinidade religiosa e de costumes, além de eventualmente evitar a dispersão do patrimônio
familiar, nos casos em que este for significativo.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A família – incluindo-se aí os vínculos com parentes na terra de origem – mais o conjunto mesquita-sociedade beneficente representam as
instâncias de socialização mais significativas hoje para a colônia muçulmana
de São Paulo. Elas tentam garantir a reprodução da própria comunidade, competindo com outras instâncias importantes da sociedade inclusiva, como as
escolas e a mídia de modo geral (televisão e internet, sobretudo), na produção
e interiorização de valores e referências culturais caros ao grupo. Aqueles
habituados a laços pessoais, de confiança, de reciprocidade e de hospitalidade acabam estranhando uma ordem social cada vez mais individualista e
impessoal. Nessa disputa simbólico-pedagógica, na qual cada agente dispõe de posições, influências, visibilidades e recursos diferenciados, é de
certo modo inevitável que surjam tensões.
Tais tensões são geradas de acordo com o posicionamento relativo
dos indivíduos na comunidade muçulmana. Há dois eixos principais que
estruturam os conflitos: de um lado, aqueles de natureza geracional, no
âmbito interno das famílias; de outro, entre aculturados e recém-chegados
(menos tempo de Brasil e muitos vínculos com a sociedade de origem), que
tendem a ser de natureza interfamiliar, ainda que numa mesma família possam existir frações vindas em épocas distintas.
Ambos os eixos envolvem percepções diferenciadas sobre aquilo que
constitui o essencial (ou o mínimo) para ser muçulmano, inaugurando uma
ampla agenda de negociações. Césari (1994) e outros autores (KHOSROKHAVAR, 1997; MUÑOZ, 2003; PETER, 2005) denominam o fenômeno de Islã
individualizado, entendido primariamente como um Islã vivido na esfera privada, um Islã onde o crente decide autonomamente quais elementos da religião ele considera ou não obrigatórios (CASTRO, 2007). Tais elementos abrangem a observância mais ou menos rígida de obrigações – de natureza social,
econômica, moral, sexual e nupcial – e de preceitos religiosos – orações,
jejum, restrições alimentares e alcoólicas, vestimenta e filantropia,7 impondo
padrões duplos de uma conduta hesitante entre o secular e o sagrado, muitas
vezes difíceis de serem harmonizados no indivíduo.
7
Os muçulmanos praticam o zakat, espécie de dízimo (2,5% do que se ganha) preconizado pela doutrina islâmica.
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De um lado, observam-se em países ocidentais, de modo geral, processos de secularização impondo um declínio do papel das instituições religiosas tradicionais sobre as novas gerações de muçulmanos. Além disso, o
Brasil, em particular, é considerado um país bom para os negócios, mas
ruim, perigoso e permissivo demais para educar os filhos “na religião”,
gerando uma tensão permanente nas famílias entre o ficar e o voltar. Por
outro lado, os recentes conflitos no Líbano e no Oriente Médio de forma
geral, somados às maiores dificuldades de entrada de árabes nos Estados
Unidos após o 11 de setembro, tendem a avolumar a entrada de muçulmanos no Brasil, adensando a comunidade, os vínculos com a terra de origem,
e a prática de uma religiosidade de feitio tradicional, movimento reforçado
pela importação de xeiques. Disso tudo resulta a certeza de muitas negociações no interior das famílias empenhadas em transmitir a seus filhos suas
tradições e valores religiosos.
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ESPIRITISMO NO BRASIL
Alice Beatriz da Silva Gordo Lang*
Resumo: O espiritismo teve início na França com a codificação do Livro dos Espíritos por Allan Kardec (1804-1869), por meio de um diálogo com espíritos; difundiu-se
na Europa e chegou ao Brasil ainda no século XIX. O espiritismo kardecista é filosofia, ciência e religião e, enquanto tal, uma religião mediúnica. As reflexões apresentadas no texto baseiam-se em pesquisa realizada para construir a biografia do líder
espírita Rino Curti (1922-2003) e delinear o histórico e atuação da Coligação Espírita
Progressista por ele fundada. Utiliza a metodologia da história oral, recorrendo também à análise de documentação, bibliografia e observação de sessões mediúnicas. A
análise apontou “não ditos”, “não perguntados” e não compreendidos” no momento.
Facilidades e dificuldades do estudo de uma crença por um pesquisador não adepto
são destacadas. Buscando compreender o espiritismo, utilizamos a perspectiva
relacional proposta pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, especialmente os conceitos de ‘campo’ e ‘capital’. Sugerimos a extensão do conceito de ‘campo’ para compreender esse universo que inclui o relacionamento entre encarnados e desencarnados.
Palavras-chave: Religião. Espiritismo. Mediunidade.
Abstract; The Spiritism began in France with the Encode written by Allan Kardec
through a dialogue with the Spirits. From this dialogue resulted ‘The Spirits’ Book”.
The Spiritism has quickly disseminated in Europe, and in the same century came to
Brazil. Kardecist Spiritism is a science, a philosophy and a religion, and as a religion
it is a mediunic one. These reflections are based on a research to build the spiritist
leader Rino Curti’s (1922-2003) biography and to delineate the historic development
and activities of the spiritist center created by him, named Coligação Espírita Progressista. Oral history methodology was used as well as documentary and bibliographic
analysis and observation. This analysis pointed to the “not said”, the “not asked” and
the “not undersatood” at that moment. Advantages and disadvantages, facilities and
difficulties are discussed, involved in a study of a religious belief, made out by a
researcher who can be member of the studied faith or be only an observer. Trying to
understand Spiritism, we considered the relational concepts proposed by the French
sociologist Pierre Bourdieu, especially the concepts of ‘field’ and ‘capital’. We suggest
an extension of the concept of ‘field’, including the social positions occupied by people
who are alive, and also by spirits.
Keywords: Religion. Spiritism. Medianimity.
*
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos. Email: [email protected].
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PANORAMA
LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. Espiritismo no brasil
RELIGIOSO NO
BRASIL ATUAL
O censo demográfico brasileiro de 2000 registrou 2.337.732 espíritas declarados, total que corresponde apenas a 1,38% da população residente. Contudo, é a terceira religião em número de aderentes no país de maioria
católica (78,8%) e protestante (15,4%). Em menor número aparece a menção a outras crenças (2,12%), enquanto 7,3% declararam-se ateus ou sem
declaração. De 1990 para 2000 houve uma sensível diminuição do total de
católicos declarados, um aumento dos protestantes das várias denominações e dos ateus ou sem religião declarada.
De um modo bastante geral, o espiritismo pode ser compreendido
como uma crença nos espíritos e a aceitação da possessão como meio pelo
qual os espíritos se comunicam com os vivos. A opção espírita engloba os
kardecistas (2.262.401), adeptos de umbanda (397.431) e candomblé
(127.582), seitas estas de origem afro, além de outras como xamanismo e
santo daime com menor número de seguidores, seitas que pressupõem conhecimento e uso de forças sobrenaturais. Trata-se de religiões mediúnicas,
considerando a mediunidade, de modo geral, como canal de comunicação
entre espíritos desencarnados e encarnados (ver PIERUCCI; PRANDI, 1996;
TEIXEIRA; MENEZES, 2006)
Quanto aos espíritas, nos dez anos que medeiam os censos de 1990 e
2000 houve um crescimento dos kardecistas e diminuição dos adeptos da
umbanda e do candomblé. Haveria também uma sub-representação dos espíritas no censo, dado que muitos espíritas professam também outras religiões e as apontam como única opção religiosa. Os espíritas concentram-se
em maior número no meio urbano e têm nível educacional mais alto que o
dos seguidores de outras religiões.
As reflexões apresentadas referem-se ao espiritismo de vertente
kardecista, também conhecido como espiritismo “de mesa branca”. Contudo, são inicialmente tecidas breves considerações sobre as outras religiões
mediúnicas apontadas, com o intuito de estabelecer diferenças com relação
ao espiritismo. Uma distinção inicial é a de que o espiritismo kardecista não
se apresenta apenas como religião, assumindo o tríplice aspecto de filosofia, ciência e religião. Contudo, é como religião que o espiritismo aparece
nos censos brasileiros.
A umbanda acredita em um Deus único e superior, chamado Olorum
ou Zambi; propõe a obediência a valores humanos como fraternidade, caridade e respeito ao próximo. Há o culto aos Orixás, manifestações divinas
que se confundem com um elemento da natureza do planeta ou da própria
personalidade humana. Cada pessoa está ligada a um orixá. Como uma religião espíritualista, a ligação entre os encarnados e os desencarnados se faz
por meio dos médiuns. Os médiuns de incorporação “emprestam” seus corpos para os guias (ou “cavalos”) e para os Orixás. A umbanda tem como
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lugar de culto o templo, terreiro ou centro, que é o local onde os umbandistas
se encontram para realização do culto aos Orixás e aos guias que na umbanda
se denominam giras.
Candomblé é uma religião originária da África, trazida ao Brasil por
escravos. Oxalá é a divindade da criação. Cultuam os Orixás, de origem
totêmica, que representam as forças que controlam a natureza e seus fenômenos, tais como as águas, o vento, as florestas, os raios. Ritos e cerimônias
realizam-se em casas ou terreiros, de linhagem matriarcal uns e patriarcal
outros quanto à direção. Há um sincretismo entre o candomblé e a religião
católica, sincretismo que foi uma forma de defesa a que recorreram os cativos
visando a preservação da religião proibida pelos escravocratas no século XIX.
Outras religiões de possessão mencionadas no censo são, por exemplo, xamanismo e santo daime. Xamanismo é uma religião ou filosofia de
vida muito antiga. O trabalho xamânico busca beneficiar a vida, tendo o
propósito de curar. Os xamãs, ao som de tambores, entram em estado alterado de consciência, fora do tempo e do espaço, para procurar, além da
realidade, informação e cura necessárias às suas comunidades. Busca a cura
de doenças físicas, psíquicas e espirituais e provê acompanhamento na morte,
antes, durante e após a morte física.
Santo Daime, também conhecido como “a religião da floresta”, surgiu na região amazônica, apresentando-se como uma missão espiritual que
visa encaminhar os praticantes a processos de cura e regeneração, processos catalizados por uma bebida sacramental psicoativa (ayhuasca). O autoconhecimento é um meio para obter sabedoria. Há uma forte presença da
música nos rituais.
Camargo (1961) propõe a existência de um continuum mediúnico,
tendo como pontos extremos o kardecismo e a umbanda. Segundo o autor,
o espiritismo propriamente dito á a doutrina codificada por Allan Kardec,
distinguindo-se pela consciência, sobriedade e ética, enquanto a umbanda
está marcada pela inconsciência, ritualismo e magia.
O espiritismo de vertente kardecista distingue-se das outras religiões
mediúnicas atuantes no Brasil, dado que a doutrina espírita se assume como
fé raciocinada.
O ESPIRITISMO
E SUAS ORIGENS
O espiritismo teve início na França com a codificação do Livro dos
Espíritos por Allan Kardec em 1857. As primeiras manifestações de espíritos na linha que conduziu ao kardecismo ocorreram nos Estados Unidos,
em uma propriedade rural em Hydesville, quando as irmãs Margaret e Katie
Fox, de doze e catorze anos, ouviram batidas na parede e as interpretaram
como manifestações inteligentes de espíritos, dado que respondiam a per-
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guntas por meio do número de batidas. A notícia logo se espalhou e atraiu
inúmeras pessoas. As irmãs Fox foram levadas à Europa.
Na Europa e na Inglaterra difundiu-se o fenômeno das mesas girantes
que respondiam a perguntas; outras formas de manifestação da mesma ocorrência eram as mensagens escritas por um lápis acoplado ao bico de uma
cesta que também aconteciam na França. Esses fenômenos, atribuídos a
espíritos, ocorriam através de pessoas que tinham o poder da mediunidade.
Tais fatos atraíram a atenção do pedagogo francês Hippolyte Léon
Dénizard Rivail (1804-1869), já autor de livros em sua especialidade, que
decidiu investigá-los. Foi auxiliado por um espírito que se apresentou como
o Espírito da Verdade e que respondia às questões que eram formuladas por
Kardec, dando origem ao Livro dos Espíritos (1857), que mantém a estrutura de perguntas e respostas, introduzindo os princípios básicos da doutrina
espírita: a imortalidade da alma, a necessária evolução do espírito conduzindo à perfeição, a reencarnação, a possibilidade de comunicação entre vivos e
espíritos através dos médiuns (KARDEC, 1996).
Seguindo o mesmo procedimento, Rivail escreveu outros livros: O
Livro dos Médiuns (1861), que trata das relações mediúnicas, apontando as
leis e condições do intercâmbio espiritual; O Evangelho segundo o espiritismo (1864), explicitando o conteúdo moral da doutrina; O Céu e o Inferno
(1865), discutindo as penas e gozos terrenos e futuros; A Gênese, os Milagres e as Predições (1868), tratando dos problemas genésicos e da evolução
física da terra. Esses cinco livros formam o chamado Pentateuco espírita,
cujo codificador foi Kardec, pois os livros seriam de autoria dos espíritos.
Rivail adotou o nome de Allan Kardec, que fora o seu em encarnação anterior como druída.
A codificação foi elaborada em um momento histórico em que o pensamento científico estava dominado pelo racionalismo e pelo evolucionismo.
A perspectiva evolucionista foi proposta por Darwin em A origem das espécies por meio da seleção natural, livro lançado em 1859, que alcançou
expressiva vendagem na época.
Mostra Rino Curti que o espiritismo é ciência, filosofia e religião,
“três áreas secularmente contrastantes em vários aspectos, mas compatibilizadas no kardecismo que lhes infunde o mesmo método, o mesmo sentido
evolutivo e unificação. Um ponto de vista que é totalmente espírita”. (LANG;
JANOTTI, 2005, p. 180).
O Livro dos Espíritos teve imediata e grande aceitação, mas provocou uma forte reação da Igreja Católica. A intolerância católica desencadeou perseguições e levou à queima de livros de Kardec que haviam sido
enviados a Barcelona, em 9 de outubro de 1861, episódio que ficou conhecido como o Auto de Fé de Barcelona.
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DOUTRINA ESPÍRITA
O espiritismo é a terceira revelação. A primeira foi a de Moisés, a
segunda de Jesus, que já anunciou a terceira: o Parácleto (ou o espiritismo).
Cada revelação atendia àquilo que estava ao alcance da época compreender.
A doutrina não foi concebida por Kardec, mas foi por ele codificada.
é a Doutrina dos Espíritos e Kardec, o codificador. A doutrina espírita é
concebida como uma fé raciocinada, ou seja, é aceito somente aquilo que
passa pelo crivo da razão. Princípios fundamentais da doutrina espírita estabelecem:
–
–
–
–
–
Deus é o criador de tudo o que existe;
além do mundo dos vivos (ou dos encarnados) há o mundo dos
espíritos que existem em diferentes graus evolutivos: os imperfeitos, os bons, e os puros ou espíritos de luz;
aceita a reencarnação como condição para que o espírito possa
progredir, configurando a pluralidade de existências; os espíritos puros são aqueles que já se libertaram das encarnações;
todos os espíritos evoluem sem cessar, embora possam renascer
em condições sociais inferiores;
as relações dos espíritos com os vivos são constantes e sempre existiram. A mediunidade é a faculdade que permite aos vivos a comunicação com os Espíritos – é um dom que precisa ser desenvolvido.
O ESPIRITISMO
NO
BRASIL
O espiritismo logo chegou ao Brasil, trazido pelos médicos homeopatas
e também médiuns Bento Mure e João Vicente Martins, em 1840, sendo aceito por um grupo de médicos também homeopatas do Rio de Janeiro que formaram o Grupo Confúcio. O grupo recebeu uma mensagem espiritual informando que o Brasil fora escolhido como o país para o qual iria se transplantar a ‘árvore do Evangelho’, onde o espiritismo iria se desenvolver.
Ismael, mensageiro de Jesus, foi encarregado de cuidar do espiritismo no
país. O espiritismo se difundiu, vários grupos se formaram e, em 1884, foi
fundada a Federação Espírita Brasileira com o fito de reuni-los.
Um importante estudo sobre o espiritismo, considerando seu nascimento, evolução e atualidade e comparando a manifestação religiosa no
Brasil e na França foi apresentado por Aubrée e Laplantine (1990).
Mas os grupos mantinham-se desunidos. O médico e político cearense
Adolpho Bezerra de Menezes, conhecido como o médico dos pobres, teve
conhecimento do espiritismo e a ele se converteu. Recebeu a missão de
promover a união dos grupos espíritas. O Espiritismo chegou a vários pon-
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tos do país, atuando através de centros e federações. Em São Paulo, foi
fundada a Federação Espírita do Estado de São Paulo - FEESP, em 1936.
MEDIUNIDADE
O espiritismo é ciência, filosofia e religião. Quanto ao terceiro aspecto,
é uma religião mediúnica. O médium espírita é o canal de comunicação entre
vivos ou encarnados e mortos ou desencarnados. A mediunidade expressa-se
de várias formas: intuição, psicofonia (ou incorporação), psicografia, vidência,
materialização, transposição, materialização, manifestações na arte.
No século XX, poderosos médiuns apareceram no Brasil, como Chico
Xavier (1910-2003), médium internacionalmente conhecido que chegou a
ser indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Chico Xavier, homem de pouco
estudo, escreveu 409 livros ditados por vários espíritos: Emmanuel e André
Luís, em maior número, Humberto de Campos, Irmão X, Meimei, Auta
Souza, Casemiro Cunha, Cornélio Pires, além de Espíritos diversos. O de
maior vendagem é Nosso Lar, ditado pelo espírito André Luís, que ultrapassou a casa de 2 milhões de exemplares vendidos.
A psicografia foi seu dom mais conhecido, mas sua mediunidade se
manifestava também por meio de psicofonia, vidência e audiência. Desenvolveu uma grande obra de assistência social em sua cidade natal, Pedro
Leopoldo e depois em Uberaba, no Estado de Minas Gerais. Seu mentor era
o espírito Emmanuel, que em sua última encarnação teria sido o padre jesuíta português Manuel da Nóbrega, um dos fundadores da cidade de São
Paulo em 1554 (MAIOR, 2003).
Um livro ditado a Chico Xavier pelo espírito Humberto de Campos Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho, reiterava a informação de
que o Brasil fora escolhido como o lugar onde o espiritismo iria se desenvolver (XAVIER, 1999). Em parceria com o médium Waldo Vieira, Chico
Xavier psicografou dezessete livros.
Outros médiuns bastante conhecidos no Brasil foram o mineiro
Eurípedes Barsanulfo e José Arigó, entre outros. Eurípedes Barsanulfo (18801918) nasceu em Sacramento, no Triângulo Mineiro; tinha o dom de curar,
o que fazia por meio de passes e remédios homeopáticos, transpondo-se
espiritualmente para curar doentes distantes; fundou o Colégio Allan Kardec,
onde era ministrado o curso normal e a doutrina espírita era ensinada. José
Arigó (1921-1971) era também um médium de cura que sofreu inúmeros
processos judiciais pelo exercício de seu dom.
Nos dias de hoje, o médium João de Deus, nascido em 1942 no interior de Goiás, é um poderoso médium de cura que atende em Abadiânia,
Goiás, no Centro Dom Inácio de Loiola, atraindo pessoas de várias partes
do país e até do exterior. Já foi acusado inúmeras vezes de exercício ilegal
de medicina.
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Em São Paulo, Luís Antonio Gasparetto tornou-se conhecido inicialmente como pintor mediúnico, reproduzindo quadros de pintores internacionalmente famosos. Tendo-se formado em psicologia, passou à dedicarse à questão da auto-ajuda, orientando-se pela ética da prosperidade. Seu
guia espiritual é o preto velho Calunga. Com a família, organizou o Centro
‘Os Caminheiros”, onde profere palestras sobre auto-ajuda. A mãe, Zíbia
Gasparetto é também médium e escreveu numerosos livros ditados por espíritos, especialmente por Lucius.
Segundo Stoll (2003), Chico Xavier e Gasparetto representam duas
formas de expressão da doutrina espírita com características específicas.
São reinterpretações de tradições, apoiadas em códigos de códigos de conduta distintos, mesmo que apoiadas na versão original de Kardec.
Os espíritas reúnem-se em centros e sua atuação se faz em três direções: assistência espiritual, assistência social e ensino. Os centros têm autonomia, alguns se integram nas federações estaduais e na federal, outros
desenvolvem sua atuação isoladamente.
O ESTUDO
REALIZADO
As reflexões apresentadas baseiam-se em pesquisa realizada para
construir a biografia do líder espírita Rino Curti (1922-2003) e delinear o
histórico e atuação da Coligação Espírita Progressista por ele fundada e
dirigida na cidade de São Paulo. A pesquisa, realizada pela Profa. Maria de
Lourdes Monaco Janotti e pela autora, foi desenvolvida com a metodologia
da história oral e recorreu à complementaridade de fontes – orais, escritas e
imagéticas –, além de observação participante.1
Tratava-se de um estudo acadêmico e sem intenções de proselitismo.
Buscávamos compreender esse fenômeno religioso com os olhos da historiadora (Janotti) e da socióloga (Lang). Utilizando metodologia da história
oral na realização da pesquisa, inúmeras entrevistas foram feitas, gravadas,
transcritas e analisadas: do líder professor Rino Curti e da esposa Anna
Flora coletamos histórias de vida; da filha do casal, de dirigentes do centro
e médiuns obtivemos relatos de vida; coletamos depoimentos de outras pessoas ligadas ao centro; procedemos à observação de sessões mediúnicas
onde espíritos se manifestaram através de médiuns, recorremos à análise da
documentação da Coligação Espírita Progressista, da obra escrita por Rino
Curti e à bibliografia relacionada ao tema. Em sessões mediúnicas presenciamos fenômenos de psicografia, vidência e incorporação.
As fontes orais coletadas por meio de entrevistas de História Oral
assumem formas diferentes:
1
Os resultados da pesquisa foram apresentados no livro de Lang e Janotti, Espiritismo progressista: pensamento e
ação de Rino Curti (2004). As presentes reflexões são de responsabilidade da autora deste texto.
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–
–
–
a história oral de vida é o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, contando livremente sua vida, imprimindo ao relato suas próprias categorias, impondo um
ordenamento e selecionando ele mesmo o que quer relatar;
o relato oral de vida, é uma história de vida abreviada, focalizando determinados aspectos ou fases da vida do narrador;
objetivo do depoimento oral não é primordialmente a vida do
narrador, mas a obtenção de informações e testemunho sobre sua
vivência em determinadas situações ou a participação em determinadas instituições que se quer estudar. Tenha-se presente que nas
ciências sociais o depoimento não tem o sentido de estabelecimento da verdade, mas de conhecimento de uma versão (LANG, 1996).
O LÍDER RINO CURTI (1922-2003)
Rino Curti nasceu em Ímola, Itália, em 1922, em uma família católica. Imigrou para o Brasil com a família aos catorze anos. Prosseguiu os
estudos no Brasil, formou-se engenheiro pela Escola Politécnica de São
Paulo da Universidade de São Paulo. Foi Professor da Escola de Engenharia de São Carlos e da Escola Politécnica de São Paulo, tendo trabalhado
como engenheiro em grandes firmas, como a Cosipa e a Cesp.
Rino Curti conheceu o espiritismo por meio de sua futura esposa,
Anna Flora, de família espírita e com dotes de mediunidade. Dizem que
90% das pessoas chegam ao espiritismo pela dor e 10% pelo amor. O caminho pela dor é configurado, por exemplo, pela perda de uma pessoa querida, por uma doença grave ou incurável. O caminho do amor passa pelo
desejo de melhor conhecer o espiritismo e os caminhos por ele abertos; essa
foi a motivação de Rino Curti, atraído por conhecer a doutrina espírita.
Rino Curti estudou profundamente e com grande empenho a doutrina. Ingressou na Federação Espírita do Estado de São Paulo – FEESP, chegando
a diretor de ensino. Desenvolveu um sistema educacional de espiritismo e
escreveu numerosos livros.
Rino Curti conheceu as obras de André Luiz ditadas a Chico Xavier2
e as estudou profundamente. Uma de suas iniciativas, bastante contestada
pela diretoria da FEESP, foi a introdução de André Luiz na Federação, em
palestras que despertaram grande interesse e aceitação dos freqüentadores.
Em virtude de desentendimentos, especialmente doutrinários, Rino
Curti deixou a Federação. Uma das principais divergências dizia respeito à
concepção sobre os passes mediúnicos; a Federação adotava quarenta e dois
2
Obras de André Luiz ditadas a Chico Xavier: Evolução em dois mundos, Mecanismos da mediunidade, Os mensageiros, No mundo maior, Nosso lar, Obreiros da vida eterna, Sinal Verde, entre outras.
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tipos de passes e Rino Curti propôs que fossem adotados apenas cinco passes, baseando-se em ensinamentos de Kardec que vinculam os passes ao
objetivo buscado e não à posição das mãos. São eles: PS – passe de sustentação, PN1 – dirigido ao auxílio na obsessão simples, PN2 – dirigido ao
auxílio na obsessão por fascinação, PN3 – dirigido ao auxílio na obsessão
por subjugação, PN4 – dirigido ao auxílio de curas físicas, devendo este
ser associado à assistência médica (CURTI, 1985). Por outro lado, Rino
Curti atribuía maior importância à dimensão do ensino, enquanto as atividades da Federação privilegiavam a assistência social, ao lado da espiritual.
Acreditava que é pelo estudo que se chega à reforma íntima que possibilita
o aperfeiçoamento.
Rino Curti deixou a Federação em 1984 e, acompanhado de seguidores que aceitavam sua orientação, criou outro centro, a Coligação Espírita
Progressista – CEP. Na CEP, desenvolve-se a Assistência Espiritual e a Assistência Social, mas grande ênfase é dada ao Ensino, ministrado mediante
de cursos de níveis diversos. Rino Curti foi um líder extremamente respeitado pelos seguidores.
A COLIGAÇÃO ESPÍRITA PROGRESSISTA
A Coligação Espírita Progressista, CEP, é uma sociedade civil com
estatutos registrados. Foi dirigida por uma diretoria presidida por Rino Curti até a morte do líder em 2003. Há uma equipe do Plano Espiritual que se
liga à CEP, equipe comandada pelo espírito Bezerra de Menezes. Também
integram essa equipe os espíritos que, enquanto encarnados, foram o jornalista Medeiros e Albuquerque e os escritores Machado de Assis e Humberto
de Campos, observando-se que estes não eram espíritas na vida terrena. Os
espíritos manifestam-se nas reuniões da diretoria através dos médiuns, aprovando ou não as decisões tomadas. Os espíritos Emmanuel, Sheila e André
Luiz manifestam-se com frequência nessas ocasiões.
Como em quase todos os centros espíritas, a ação da CEP se faz nas
três direções: assistência social, assistência espiritual e ensino.
A assistência social provê remédios, roupas e alimentos a necessitados, além de oferecer tratamento dentário em um consultório montado no
próprio prédio e um curso para gestantes. Acreditam que mais beneficiados
são os que dão que os que recebem, pois essa ação representa uma oportunidade para o exercício da humildade, da tolerância e da caridade, como
aponta um diretor:
Em primeiro lugar, eu digo que elas não estão aqui para receber esmolas, que nós
estamos aqui para ajudá-los como irmãos, auxiliá-las e que elas são muito importantes para nós, são mais importantes para nós do que nós para elas. (...) O trabalho
espírita é melhor para quem o exerce do que para quem recebe o benefício.
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LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. Espiritismo no brasil
A assistência espiritual é feita por meio de palestras e passes. As palestras visam o aperfeiçoamento do indivíduo que resulta da reforma íntima; os
passes, dados por médiuns pela imposição das mãos, seguem a orientação
aceita por Rino Curti e se fazem segundo o tipo de tratamento buscado.
Grande ênfase é dada na CEP ao ensino, por acreditar Rino Curti que
só mediante o conhecimento o espírito pode evoluir e também por reconhecer a necessidade de sólida preparação intelectual dos dirigentes espíritas.
Dentro dessa orientação foram elaborados livros e organizados cursos: cursos para crianças, adolescentes e para adultos. Para adultos são dados os
seguintes cursos: Básico, Educação Mediúnica Espírita, Educação Evangélica Espírita, Divulgador e Expositor Espírita, todos com duração de quatro
anos e, finalmente, o Centro de Estudos, de duração permanente visando o
aperfeiçoamento. Do Centro de Estudos se encarregava Rino Curti.
Os dados da escola dão conta do número de alunos encarnados. Contudo, conforme afirmam os médiuns, além dos alunos encarnados, os cursos contam também com numerosa assistência de alunos desencarnados,
como aponta um diretor e também médium:
Os médiuns que trabalham nas classes transmitem mensagens como: “A sala está
cheia”. Quando estávamos na Vergueiro (endereço anterior da CEP), cheguei a dar
aula para três alunos, mas sabia que tinha espíritos ouvindo. Eles também precisam
aprender, já que não tiveram oportunidade de conhecer o Espiritismo quando encarnados. Então, confiamos que temos outra platéia além da dos encarnados. (LANG;
JANOTTI, 2005, p. 173).
Em uma festa de formatura a que assistimos, após o discurso do
representante dos alunos, um médium tomou a palavra e transmitiu o discurso dos espíritos que haviam também concluído o curso. Como pesquisadoras, estávamos presentes nessa sessão e foi possível gravar e transcrever
as palavras do espírito orador através do médium:
Queridos amigos, companheiros de jornada.
O Plano Espiritual também está em festa, reunidos estamos alunos desencarnados que
também se formam nesta oportunidade. Todos entrelaçados, todos se dando as mãos
em prece agradecendo ao Divino Mestre pela oportunidade de aprendizado, pela oportunidade de sermos melhores hoje do que éramos quando iniciamos esta caminhada.
Ao iniciarmos o aprendizado nesta Casa, os alunos encarnados e desencarnados se
deparam com dificuldades da mudança. A reforma íntima é a primeira mola que impulsiona o aprendizado na escola. A disciplina aprendida de semana a semana, com o
comparecimento aos cursos, é o instrumento que nos leva ao aprendizado efetivo. A
perseverança de que necessitamos para assimilar todo esse estudo é nosso melhor
aprendizado. À medida que assimilamos a disciplina e que nos tornamos perseverantes, abrem-se à nossa frente novas oportunidades, novas bênçãos nos são dadas, sentimos dia a dia a necessidade de nos doarmos, de repartirmos o amor recebido com
todos os irmãos de nossa caminhada; e o aprendizado é lento. O aprendizado se faz
passo a passo, mas a partir do momento em que nos disciplinamos e nos tornamos
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perseverantes, a caminhada é quase que automática. Depois de assimilarmos o aprendizado no curso, achamos que já somos melhores, mas ao chegarmos ao final é que se
abre diante dos olhos o quanto ainda temos de percorrer, porque o que aprendemos no
curso é a doutrina dos espíritos que alerta para o amor. Passamos após este aprendizado à segunda etapa, que é a que nos leva ao Mestre, que é servir, e servir implica nos
anularmos, servir implica nos doarmos, deixarmos de lado o nosso egoísmo e ajudarmos a quem precisa, muito mais do que nós mesmos, e é nesse momento, meus amigos, que a bênção do Pai nos abraça, porque estamos prontos para realmente efetivarmos em nós todo o aprendizado que a escola nos ofereceu. Somos hoje gratos a essa
escola, a seus dirigentes, a seus expositores e aos alunos, futuros trabalhadores da
seara de Jesus. Muito temos a agradecer, mas é sempre pouco diante do tanto que
recebemos em todos esses anos. Falo em nome dos alunos desencarnados, mas posso
dizer que, embora sejamos em maior número, as nossas dificuldades são as mesmas,
os nossos vícios a serem vencidos são os mesmos, e, espíritos eternos que todos somos, não há diferença entre o nosso plano e o em que vocês estão agora. Ao mestre
querido agradeço e a todos que participaram do efetivo aprendizado e a todos esses
alunos que hoje se formam. Tenho certeza que alguns de nós já estamos prontos a doar
em favor do nosso próximo. Graças a Deus (LANG; JANOTTI, 2005, pp. 173-175).
Mostram as palavras reproduzidas a busca dos espíritos pelo aperfeiçoamento, indicam as várias fases em que espíritos se encontram e sua presença nas atividades do centro que também a eles é direcionada.
É com base no curso e no treinamento que os médiuns desenvolvem
o dom da mediunidade e se tornam aptos a distinguir bons de maus espíritos
e a agir apropriadamente, tanto com relação aos encarnados, quanto aos
desencarnados. Maus espíritos, espíritos obsessores, precisam ser reconduzidos e encaminhados para o aperfeiçoamento.
O prédio da Coligação Espírita Progressista, situado em São Paulo
na Rua Batuíra,3 bairro Vila das Mercês, foi construído com quatro pavimentos, dedicados a cada área de atuação: Assistência Social, Assistência
Espiritual, Divulgação, Ensino. A CEP publica a revista Fé Raciocinada e
livros de Rino Curti vendidos na própria sede da entidade, juntamente com
os de outros autores espíritas.
Reflexões
O estudo desse instigante universo levou a inúmeras reflexões, das
quais algumas são aqui apresentadas. Uma questão inicial diz respeito ao
estudo de uma crença por um pesquisador que é um seguidor dessa crença,
fato mais comum, ou por aquele que é apenas observador, podendo-se destacar vantagens, desvantagens, facilidades e dificuldades em cada uma das
situações.4 Nesse sentido, Pierre Bourdieu observa:
3
O nome da rua onde a CEP foi instalada é bastante significativo, dado que o português Antonio Gonçalves da
Silva, o Batuíra, nascido em Portugal em 1839 e emigrado para o Brasil aos onze anos, foi o criador de diversos
centros espíritas.
4
Observo inicialmente que cheguei ao espiritismo por um caminho diverso de minha trajetória pessoal. Não sou
espírita e a sociologia das religiões não era até então objeto de meus estudos. A tarefa proposta era escrever a
biografia do líder Rino Curti e o histórico da Coligação Espírita Progressista.
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LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. Espiritismo no brasil
O adepto da crença por ele analisada corre o risco de perder a objetividade e produzir
uma espécie de ciência edificante, pois suas convicções fazem parte de sua identidade. Por outro lado, não pertencendo ao campo estudado, o pesquisador poderá desconsiderar ou não obter informações fundamentais para sua compreensão
(BOURDIEU, 1990, p. 113).
Vivemos a grande dificuldade de estudar uma crença não partilhada
e, mais ainda, de pretender estudar o fenômeno religioso como um fato
social em uma visão científica, mantendo isenção. Não havia, por parte das
pesquisadoras, qualquer intenção de proselitismo.
A análise do conteúdo das narrativas coletadas com recurso à metodologia da história oral, que pressupõe a interação pesquisador-narrador,
permitiu deduzir os “não ditos”, apreender os “não perguntados” e os “não
compreendidos” naquele momento e investigar mais diretamente sobre tais
questões. Quanto aos “não ditos”, é preciso considerar o simples esquecimento e a omissão intencional, difíceis de distinguir. Os “não ditos” por
omissão deviam-se, em grande parte, ao fato de as pesquisadoras não serem
espíritas. Observamos que os entrevistados não falavam espontaneamente
de fatos relacionados à fé. Apenas quando fatos e questões eram inferidos
pela análise e observação e manifestando as pesquisadoras certo conhecimento sobre os mesmos, os entrevistados falavam sobre eles e novas informações e esclarecimentos podiam ser obtidos. Havia também os “não perguntados”, referidos a tópicos que somente mais tarde foram avaliados como
importantes para levar a um conhecimento mais profundo.
Houve também os “não compreendidos” no momento em que foram
observados. Verificamos que compreender, no caso desse estudo, significava ultrapassar o limite da observação de suas manifestações e se inserir de
algum modo na crença. Algumas respostas começaram então a surgir, como
uma relativa à ação da mediunidade.
Rino Curti afirmava que tinha mediunidade de inspiração, que seus
livros não eram psicografados, mas escritos com apoio em muita pesquisa,
como o trabalho de todo intelectual. Em um contato informal, um médium
contou que Rino Curti submetia os textos elaborados à apreciação do Plano
Espiritual através de médiuns. O Plano Espiritual aprovava ou não os textos, em muitos casos sugerindo alterações para o melhor entendimento.
Compreendemos, então, que esse tinha sido o caso em uma aula ministrada pelo Professor Curti no Centro de Estudos, para uma platéia dos
estudantes mais avançados na doutrina, de médiuns e de espíritos que participavam para aprender e progredir. Rino Curti leu para a platéia um capítulo que havia terminado para um livro – “Adendos a mecanismos da mediunidade de André Luiz”. A platéia ouviu a leitura de olhos cerrados, sem que
nenhuma anotação fosse feita. As luzes estavam desligadas, para que a corrente mediúnica não fosse interrompida. Terminada a leitura, foi dada passividade, procedimento que possibilita aos espíritos se manifestarem através dos médiuns que os incorporam. Vimos o texto ser inteiramente analisa-
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do pela palavra de alguns médiuns. Só mais tarde compreendemos o fenômeno observado. São dificuldades do pesquisador não adepto da crença.
INTERPRETAÇÃO
DOS RESULTADOS
Tentamos interpretar e compreender a realidade constituída pelo espiritismo, um surpreendente universo que tínhamos pela frente. As reflexões foram elaboradas pela perspectiva das Ciências Sociais e não da crença, considerando o espiritismo como um fato social. Tentamos entender o
espiritismo no contexto de uma sociedade na qual seus seguidores interferem e atuam.
A interpretação recorreu à extensão do referencial teórico adotado, a
perspectiva relacional proposta por Pierre Bourdieu, para compreender esse
universo que inclui o relacionamento entre encarnados e desencarnados.
Para o estudo da realidade social, Bourdieu e Wacquant (1992, p.72)
propõem uma perspectiva relacional, admitindo que “o que existe no mundo social são relações – não interações ou laços intersubjetivos entre os
agentes, mas relações objetivas que existem independentemente das consciências e vontades individuais”. Para a compreensão, Bourdieu sugere um
conjunto de conceitos interrelacionados e que, por seu caráter sistêmico, se
implicam mutuamente. São os conceitos de campo, capital, habitus, estratégia, trajetória e estilo de vida. De modo mais especial, consideramos nesta análise os conceitos de campo e capital.
Campo é definido por Bourdieu (1989) como um conjunto, ou uma
configuração de relações objetivas entre posições e não entre pessoas. Estas
posições são definidas objetivamente em sua existência pelas determinações que impõem a seus ocupantes, agentes ou instituições, com relação à
posse do capital deste campo, bem como pelas relações objetivas no tocante
às outras posições do mesmo campo. Assim, o campo é visto como o espaço social em que os agentes se situam ocupando determinadas posições e no
qual lutam pela distribuição do capital específico. Cada campo tem um capital que lhe é peculiar: capital econômico, capital social, capital cultural,
capital simbólico. A luta pela dominação faz que o campo se estruture e
reestruture constantemente. Os campos obedecem a lógicas diversas.
O capital específico do campo religioso seria constituído pelos bens
de salvação e as diferentes religiões visam o monopólio dos caminhos para
que os homens possam atingi-los (BOURDIEU, 1974). No caso do espiritismo, a reforma íntima é o caminho para a evolução espiritual, obedecendo
ao princípio espírita de que “sem caridade não há salvação”.
No tocante ao espiritismo, há que considerar não apenas o relacionamento entre as posições ocupadas por encarnados e desencarnados, seja na
direção dos centros, seja entre os leigos, seja com relação àqueles não atingidos pela mensagem espírita. O relacionamento de posições sociais dá conta
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da realidade social, tal como normalmente considerada. Mas não esclarece
uma realidade na qual, ao lado dos vivos estão os desencarnados, percebidos e vistos pela mediunidade, emitindo opiniões, esclarecimentos e conselhos no caso de espíritos bons em caminho de aperfeiçoamento, ou obsediando os vivos no caso dos espíritos maléficos que devem ainda encontrar o
caminho da salvação e para tal devem ser encaminhados. A ação do centro
espírita deve receber o aval do plano espiritual por meio de seus mentores
que se expressam através da mediunidade.
O estudo suscita ao estudioso muitas indagações, como a questão do
poder no espiritismo e nos centros espíritas. Uma comparação com a estrutura da Igreja Católica aponta uma diferença significativa. Na Igreja Católica há uma estrutura piramidal encabeçada pelo Papa, chefe supremo de
uma organização hierárquica a quem a obediência é devida, representante
do Deus na terra. Há a crença na infalibilidade do papa e a aceitação de
dogmas, verdades reveladas e não necessariamente sujeitas à razão.
No espiritismo há uma autonomia de cada centro, relacionando-se e
se reportando cada qual diretamente ao Plano Espiritual, não existindo um
poder único centralizador. O poder temporal em cada centro, como no caso
estudado, é exercido pela diretoria executiva assessorada por médiuns, alguns com cargos na diretoria. Essa autonomia permite a criação de novos
centros, como ocorreu no caso da CEP. É o caso também das inúmeras
denominações protestantes.
Nesse campo relacional há que considerar as posições ocupadas por
encarnados, por desencarnados e pelos médiuns, intermediários entre os
espíritos e os homens. Observamos que, para os espíritas, existem espíritos
de condições diversas no processo evolutivo, atuando de formas também
diversas.
Para a compreensão do espiritismo enquanto fato social, sugerimos
uma extensão do conceito de campo proposto por Bourdieu, incluindo posições ocupadas por encarnados em seus diferentes papéis sociais e também
por aquelas ocupadas por desencarnados, em diferentes estágios de evolução, cuja presença e atuação são vistas e sentidas pelos médiuns.
O espiritismo configura uma questão extremamente sugestiva que
demanda o aprofundamento dos estudos para uma mais profunda compreensão.
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USOS ALTERNADOS EM TERRITÓRIOS
INTERSTICIAIS NA METRÓPOLE: O CASO
“AUTORAMA” EM SÃO PAULO*
Giorgio L. Momesso**
Resumo: O presente artigo visa expor as características de um lugar peculiar na cidade de São Paulo a partir da descrição dos usos alternados recorrentes nessa localidade
e com base nas seguintes questões: por que determinados grupos recorrem a determinados espaços como local de socialização e a quais possíveis padrões esse processo
corresponde? Ou seja, o que se pretende é compreender o fenômeno segundo a perspectiva de um comportamento de grupo associado a um quadro de valores e em relação ao local escolhido como pont6o de encontro. Para isso, foram adotados alguns
conceitos próprios da Escola de Chicago de Sociologia, tais como os de estrutura
urbana, ecologia humana e região moral, além de outros apropriados ao tratamento do
tema sem esquecer o caráter essencialmente etnográfico descritivo do estudo adiante
apresentado.
Palavras-chave: Estudos urbanos. Pesquisa empírica. Escola de Chicago. Territórios
marginais. Espaço, identidade e territorialização.
Abstract: The present article aims to display the characteristics of a peculiar place in
the city of São Paulo based on the description of the recurrent alternative uses in this
locality and to answer the following questions: why determined groups appeal for
definitive spaces as local of socialization and to which possible standards this process
corresponds? That is, what is intended is to understand the phenomenon under the
perspective of the behavior of a group associated with a picture of values and in relation
to the chosen place as meeting point. For this, some proper concepts of the Sociological
School of Chicago have been adopted, such as those of urban structure, human ecology
and moral region, beyond other ones appropriated to the treatment of the subject without
forgetting the essentially ethnographic and descriptive character of this study.
Keywords: Urban studies. Empirical research. School of Chicago. Marginal territories.
Space and identity.
*
Comunicação apresentada no 35º Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos, Sessão de Comunicações de
Pesquisa XV: Questões Urbanas – II, sob o título: “Autorama, causas e circunstâncias na apropriação de um espaço
urbano”, 16/05/2008.
**
Orientando do Prof. Dr. Mário A. Eufrasio e pertencente ao Grupo de Seminários: sociologia Urbana – FFLCHUSP/CERU.
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INTRODUÇÃO
Numa grande metrópole como São Paulo pode-se destacar do contexto cotidiano certas singularidades que fogem ao olhar trivial do citadino
distraído e apressado; tais singularidades ou idiossincrasias – entendidas
aqui como características morais e comportamentais peculiares a determinados grupos em relação à apropriação de certos espaços urbanos – são
para o presente estudo o ponto de partida necessário a um exercício de
observação de campo e verificação empírica de esquemas teóricos.
O que se pretende destacar e compreender são os processos inerentes
à constituição de um espaço ou território dentro dos interstícios físicos e
culturais de uma grande cidade. O que interessa, em princípio, são aqueles
espaços destinados e reservados para determinados usos e grupos e que, no
entanto, acabaram servindo – separados ou acoplados ao seu desígnio original – ao proveito de outro grupo qualquer, inicialmente não previsto ou não
desejado como usufrutuário. Existem áreas dentro da cidade que independentemente de seus respectivos projetos oficiais servem a grupos que as
subvertem, adotando normas, condutas, valores e atitudes muitas vezes opostos aos esperados.
Em São Paulo, podem-se citar ao menos dois exemplos factuais: a
zona de meretrício que se estende pela Rua Augusta desde as imediações da
Avenida Paulista até as proximidades do Bairro Bela Vista, algo que certamente não fazia parte de qualquer plano urbanístico para essa região, e o
tráfico e consumo de drogas a céu aberto – na chamada cracolândia – nas
redondezas das Estações Luz e Júlio Prestes, outro uso do espaço urbano
público também não esperado ou desejado pela vizinhança ou pela Prefeitura da cidade. Observando as “franjas” que separam um espaço ou território de outros, o pesquisador, por vezes, se surpreende ao perceber que ruas,
calçadas, praças e estacionamentos que, mormente existirem para fins respectivos, em alguns casos, cede lugar a outro uso – controverso, marginal,
extraordinário e até mesmo ilegal.
Como local de observação de uma investigação preliminar, tomarse-á como exemplo o estacionamento do Parque Ibirapuera que fica ao lado
do prédio da Bienal e que à noite é conhecido como autorama.1 Quanto a
seus freqüentadores, por ora, pode-se considerar provisoriamente que se
trata de um conjunto relativamente homogêneo de indivíduos com interesses e expectativas em comum, que utilizam o espaço apenas à noite e que
têm na homossexualidade sua principal característica aglutinante.
1
Conforme o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa/2001 a acepção do termo ‘autorama’ é a seguinte: miniatura de pista automobilística para corridas de carros de brinquedo. Certamente, o nome alude à constante circulação de veículos no interior do estacionamento durante o período de tempo em que o mesmo serve de espaço de
socialização entre seus freqüentadores noturnos.
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Cabe destacar que não se trata de identificar as razões psicossociais
das pessoas que freqüentam o lugar, até porque as personalidades em jogo
são muito mais complexas quando tomadas individualmente. O que se quer
é justamente compreender o fenômeno segundo a perspectiva de um comportamento de grupo, associado a um quadro de valores, e em relação ao
local escolhido como ponto de encontro.
Num primeiro momento, pode parecer que o estudo se centra na sexualidade dos atores e de seus respectivos processos de construção identitária,
pois, movidos por interesses comuns, é no reconhecimento de diferenças
ou semelhanças que os indivíduos tendem a procurar grupos relacionais;
conseqüentemente, acabam se segregando mutuamente e criando suas próprias regras de convivência. E é com base nessas regras e comportamentos
específicos que as fronteiras de coexistência se constroem, se contraem ou
se expandem, definindo, dessa forma, a territorialidade do lugar.
Todavia, o que verdadeiramente se almeja é entender quais são os
fatores – próprios dos grandes centros urbanos – que interagem e colaboram para que ocorra a ocupação de determinada área por determinado grupo; portanto, a congeneridade sexual é considerada aqui apenas por seu
aspecto agregador, sendo provavelmente a única característica comum à
maioria dos atores; afinal, se considerados por outros prismas de abordagem, certamente se apresentarão com o mais alto grau de heterogeneidade,
impedindo qualquer possibilidade de agrupamento.
Desse modo, as questões que se colocam são as seguintes: por que o
grupo x recorre ao espaço y como local de socialização e não ao espaço w, k
ou z etc. e por que causas e/ou circunstâncias o espaço y “acolhe” o grupo x?2
O método empírico de observação e registro das informações obtidas
em campo é o preconizado pela etnografia, sendo as técnicas adotadas caracterizadas fundamentalmente por questionários exploratórios e entrevistas iniciais. Quanto à abordagem teórica inicial adotada na interpretação
dos dados, pode-se dizer que o estudo é norteado pelos conceitos de estrutura urbana e de ecologia humana, sendo mais precisamente denotado pela
idéia de região moral expressa por Park em 1915.3
[...] a cidade está enraizada nos hábitos e costumes das pessoas que a habitam. A
conseqüência é que a cidade possui uma organização moral bem como uma organização física, e estas duas interagem mutuamente de modos característicos para se moldarem e modificarem uma a outra [...] Por outro lado, essa enorme organização que se
2
Também caberia a seguinte questão: é um fenômeno sui generis ou é passível de generalização? Isto é, dados
determinados fatores, seria possível prever o surgimento de processos de ocupação semelhantes em outros locais
com as mesmas características?
3
Esses conceitos foram propostos por Ernest W. Burgess e Robert E. Park, ambos da Escola de Chicago de Sociologia, em textos datados das primeiras décadas do século XX.
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erigiu em resposta às necessidades de seus habitantes, uma vez formada, impõe-se a
eles como um fato externo bruto, e por seu turno os forma de acordo com o projeto e
interesse nela incorporados [PARK, (1915), 1976, p. 29].
Se, por um lado, a divisão geometrizada do plano da cidade sugere
sua artificialidade – no sentido de que sua expansão é ou tende a ser projetada e controlada como um quebra-cabeça passível de ser remontado de
inúmeras maneiras – por outro lado, entretanto, ao se identificar a expressão concreta de sua organização moral, nota-se que a interação entre sua
estrutura física e sua estrutura valorativa gera determinações simultâneas
de uma em relação à outra. Contudo, segundo Park (1976), não se trata
propriamente de uma relação entre forças eqüitativas, ou seja, a estrutura
física da cidade mostra-se muito mais determinante da estrutura moral do
que o inverso – entenda-se por estrutura física não apenas a materialidade
palpável aos sentidos humanos como ruas, postes, edifícios, carros etc. e,
sim, sobretudo, os processos e interesses que criaram não só esses objetos,
mas também a necessidade de sua existência.
Para Park (1976), uma interfere na outra – impõem-se limites recíprocos
– mas a via de intervenção da determinação social sobre a intersubjetividade
social é muito mais forte do que a relação inversa. O indivíduo está muito mais
sujeito aos ditames da organização social da grande cidade do que é capaz de
interferir e a transformar; entretanto, e não obstante, o indivíduo – ou, por melhor dizer, um grupo de indivíduos – tende a impor suas características ao habitat,
diferenciando-o relativamente a outros espaços. E, mesmo que os espaços se
configurem muito mais por suas inúmeras semelhanças do que por suas
assimetrias, o que geralmente se destacam são as diferenças mutuamente reconhecidas por seus usuários, ou seja, o que diferencia as pessoas do “quarteirão
de cá” em relação às do “quarteirão de lá”.
É inevitável que indivíduos que buscam as mesmas formas de diversão [...] devam de
tempos em tempos se encontrar nos mesmos lugares. O resultado disso é que, dentro
da organização que a vida citadina assume espontaneamente, a população tende a se
segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de acordo com seus gostos e
seus temperamentos [PARK, (1915) 1976, p. 64].
Pode-se afirmar que o autorama é um espaço urbano que enseja certo tipo de ocupação bastante peculiar, vinculada à construção de identidades alternativas.
1 OBSERVAÇÕES
DE CAMPO
Considerando que a pesquisa de campo se deu com visitas ao estacionamento – sempre depois das vinte horas do dia – e de entrevistas com
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seus freqüentadores, passar-se-á à descrição das facetas estruturais observadas nesse grupo.4
Desde a primeira ida a campo ficou clara a visibilidade desfrutada
por sujeitos muito bem trajados guiando automóveis de luxo ao circularem
pelo local, algo confirmado pelas entrevistas e pela percepção da existência
de categorias classificatórias subjacentes aos subgrupos dentro do universo
maior das relações. Fatores como o modelo e o ano do veículo, local de moradia, educação em nível superior, renda etc., têm um alto grau de relevância
na construção do status social. O gueto, mesmo caracterizado como pluralista,
não está isento de segmentações, tensões e conflitos, como mostraram alguns
exemplos de classificações e hierarquizações internas observadas.
1.1 DESCRIÇÃO DAS RUAS DO ESTACIONAMENTO (OS TERRITÓRIOS DENTRO
DO TERRITÓRIO)
Na entrada do autorama, ao lado da guarita de vigilância da Guarda
Metropolitana, nota-se uma aparente ausência de movimentação de veículos
ou mesmo de pessoas pelo local; afinal, a topografia do estacionamento se
estende em aclive da área interna para a área externa, o que, de grande modo,
bloqueia a visão de quem está fora. Pode-se dizer que, devido ao isolamento
do estacionamento em relação às áreas internas do parque e ao passeio da Av.
Pedro Álvares Cabral, é bem possível que a grande maioria dos transeuntes
de passagem não perceba a intensa movimentação que ocorre dentro desse
espaço, principalmente ao cair da noite nas sextas-feiras e sábados.
Após a guarita, segue-se invariavelmente pela rua longitudinal direita; esta é a principal rua do autorama, pois, tanto para entrar como para sair
do estacionamento, é preciso transitar por ela; é também a rua que dá acesso
às ruas transversais nas quais as pessoas e automóveis estão parados ou em
movimento. Apesar de sua importância ser de ordem geográfica, não deixa
de ser também um ponto de encontro entre amigos, desconhecidos e vendedores de bebidas, mas com um fluxo muito menor de pessoas travando
relações.
Os primeiros veículos avistados, logo após a entrada, estão estacionados na Rua 1, que é também o local onde ocorre a maioria dos encontros
sexuais dentro dos automóveis, talvez por ser a rua menos movimentada do
4
Por outro lado, vale salientar que as observações, a pesquisa de noticiário e as entrevistas sugerem – não exagerando o alcance dessa generalização – que tanto a vizinhança residencial circundante quanto a administração do
Parque não simpatizam com a presença interativa dos homossexuais no estacionamento ao lado da Bienal. Os
motivos são diversos, mas cabe destacar, em primeira ordem, os de caráter moral e amplamente presentes no
intrincado discurso desses atores que, se decupado em fragmentos simplificados, pode ser reorganizado e resumido na seguinte asserção: “sexo em praça pública não é de bom tom, caracteriza crime de atentado violento ao
pudor e é punível com pena de reclusão; sexo entre indivíduos do mesmo gênero, então, é menos desejável ainda,
mesmo que não possa ser combatido direta e ostensivamente, será alvo de constante reprovação e intermitente
coibição”. Quanto às idas a campo, essas sempre se deram em noites de sábado para domingo – pois o número de
freqüentadores é exponencialmente maior nesse dia – e nas seguintes datas: 29/09, 06/10, 20/10 e 27/10/2007.
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estacionamento.5 Segundo os entrevistados, na maioria das vezes, são encontros entre homens que acabaram de se conhecer, ocorrendo também o
sexo entre clientes e michês. Muito embora sejam as duas últimas ruas ainda menos movimentadas, nelas o trânsito de veículos não é permitido e a
presença de pessoas é constrangida por uma barreira física...; um cordão de
isolamento, posto pelo DETRAN-SP, separa essas ruas das demais.
A Rua 2 é o ponto de encontro dos freqüentadores mais antigos, aqueles que já conhecem o autorama há mais de dez anos, afirmando alguns
freqüentar o estacionamento há mais de vinte anos.6 São na maioria homens, homossexuais declarados, com mais de quarenta anos, que cursaram
o ensino superior, profissionalmente bem sucedidos e economicamente estáveis, solteiros e que, segundo os mesmos, desfrutam do ambiente muito
mais como local de encontro entre amigos do que para o flerte sexual.7
Outro fator a ser destacado em relação à Rua 2 é a movimentação de
pessoas entre essa rua e a Rua 3 ou, dito no linguajar local, entre a Rua do
INSS e a 5ª Avenida ou Champs-Elysées.8 Essa circulação segue certos padrões, pois os indivíduos próprios dessas subáreas quase sempre se movimentam em pequenas turmas de três a cinco indivíduos a pé, sua movimentação a bordo de automóveis se dá primordialmente na chegada e não durante a estada no estacionamento. Ao que parece, a circulação ininterrupta
de veículos está mais ligada ao flerte sexual entre os que acabam de chegar
e os que se masturbam publicamente no fundo do estacionamento, embora
também ocorra a circulação de curiosos, de pessoas procurando suas turmas de amigos, de clientes à procura de michês, de supostos usuários e
vendedores de drogas, ou mesmo de algum outro fator que talvez tenha
escapado às observações de campo.9
5
Rua 1 ou Rua do Abatedouro, designação presente na fala dos entrevistados.
6
Rua 2 ou INSS.
7
Muitos dos entrevistados do INSS se mostraram bastante preconceituosos em relação aos acontecimentos comuns
à Rua 5, aos travestis e trans-sexuais, ou mesmo ao movimento gay organizado, especificamente ao evento anual
internacionalmente conhecido como “Parada Gay”. São freqüentadores que aparentemente conservam certo grau
de conduta ética rígida e intolerância contra outros subgrupos de freqüentadores. Dentre os entrevistados nessa
sub-área, dois casos se destacam por sua peculiaridade: um dos entrevistados é conhecido como “padre” entre
seus colegas, por ser um ex-clérigo da Igreja Católica; outro entrevistado declarou ser ex-missionário da “Igreja
de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”, mais conhecida como “Igreja Mórmon”, inclusive dizendo ter
viajado por mais de um ano pelo Brasil e por outros países fazendo proselitismo religioso.
8
Essas denominações (INSS e 5ª Avenida ou Champs-Elysées) são adscrições terminológicas amplamente utilizadas por seus respectivos públicos freqüentadores, não representando, entretanto, qualquer tipo evidente de segregação mútua intransponível entre os mesmos. Ao contrário, mesmo que os freqüentadores cultivem certo sentimento de pertencimento em relação a determinadas subáreas e subgrupos – relativamente individualizados – não
deixam de circular entre os demais, principalmente os freqüentadores mais jovens da 5ª Avenida ou ChampsElysées, que podem ser definidos, entre outras características, como o grupo mais circulante do espaço, pois, além
de se concentrarem entre as calçadas da Rua 3 e 4, transitam constantemente entre as outras ruas.
9
O autorama não é apenas um ponto de encontro, é também um lugar de trânsito pelo qual muitos passam antes e/
ou depois da “balada”; o estacionamento é um local muito disputado entre os promoters de clubes gays: numa
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A Rua 3, por sua vez, é a rua mais ocupada do estacionamento, é
onde a maioria das pessoas circula ou estaciona seus carros; não por acaso
é também o local de concentração de vendedores ambulantes de cerveja,
vinho, vodka, cachaça, espetinhos, cachorros-quentes, lanches etc. Apesar
das poucas entrevistas realizadas nessa subárea, as observações de campo
indicaram que seus freqüentadores são majoritariamente jovens entre
dezesseis e vinte e seis anos do sexo masculino. O que não exclui ou contradiz a constatação de ser também a subárea com maior incidência de homossexuais femininas, trans-sexuais e heterossexuais de ambos os sexos.
A Rua 4 é a fronteira entre as Ruas 3 e 5.10 Sendo que a Rua 5 é a subárea mais liberalizada às práticas sexuais explícitas, mais notadamente à
masturbação exibicionista; segundo os entrevistados e outros levantamentos, pode-se supor que outrora tal prática, além de ser mais disseminada
nessa sub-área, também se associava à felação e sodomia; todavia, levandose em consideração que esses freqüentadores se concentram nas duas últimas ruas do estacionamento – Rua 6 e Rua 7, as mais escuras – e que recentemente foram empurrados para a Rua 5, devido ao cordão de isolamento
imposto pelo DETRAN-SP, é bem provável que tenham sido coibidos pela
nova situação a retraírem seu comportamento usual anterior11 A iluminação, o trânsito mais acentuado de veículos e a própria presença policial
impedem que esses freqüentadores mantenham suas condutas anteriores,
sendo restringidos a comportamentos menos explícitos.12
Por fim, tem-se a rua longitudinal esquerda, que é a outra via de
acesso às ruas transversais, assim como a rua longitudinal direita; seu calçamento percorre quase toda a extensão lateral do estacionamento junto à
grade, sendo esta a separação física entre o mesmo e o passeio público da
Av. Pedro Álvares Cabral. Por estar na parte mais alta e iluminada não chega a ser uma rua convidativa ao encontro sexual, sendo relegada ao uso
como latrina; tendo em vista que o consumo de bebidas é notório entre os
inúmeros freqüentadores, que não existem sanitários no interior do estacionamento ou mesmo nas proximidades e que os banheiros do Parque são
vedados ao uso após o horário de fechamento, seria de se esperar que algum
ponto do estacionamento fosse utilizado para esse fim.
única noite foi possível reunir mais de vinte folhetos diferentes de divulgação de eventos voltados para o público
homossexual.
10
Ou fronteira entre a 5ª Avenida/Champs-Elysées e a Feira do Cú. Vale ressaltar que os nomes aqui usados na
classificação de cada uma das ruas ou subáreas do estacionamento são provenientes do próprio vocabulário
corrente entre os usuários noturnos; portanto, visando respeitar os códigos negociados e amplamente empregados
no local, optou-se por reproduzi-los sem melindres eufemísticos.
11
Por meio do site de pesquisas Google é possível encontrar diversas produções pornográficas em vídeo, filmadas
no interior de automóveis ou junto à grade na parte mais erma do estacionamento: as ruas 6 e 7 antes do isolamento pelo DETRAN-SP.
12
Se tal circunstância se configura em situação transitória ou perene é algo que somente será passível de verificação depois de transcorrido mais algum tempo de observação.
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Não obstante, o ato de urinar em público parece gerar algum tipo de
fetiche capaz de estimular um ou mais freqüentadores a assediar visualmente quem urina, algo que, apesar de não incorrer em abordagens verbais
explícitas, acontece sem quaisquer sutilezas. Porém, se não houver correspondência de interesses, volta-se cada qual para o ponto de onde veio. Mais
precisamente, não se constatou durante as observações à distância que tal
episódio se desdobre em encontro sexual ou de qualquer outra ordem; ao
contrário, o anonimato dos indivíduos parece ser importante na relação fetichista em questão, tanto para quem observa quanto para quem se deixa
observar. A maioria dos indivíduos propensos a se deixarem observar são
aqueles que não fazem questão de se ocultar atrás de árvores ou postes:
apenas se viram de costas para a rua em que estão. Já os indivíduos interessados em olhar não escondem sua intenção à medida que se aproximarem
sorrateiramente, fixando a vista nos que urinam. Talvez seja uma manifestação atenuada do comportamento sexual mais explícito recorrente à Rua 5,
mas como esses indivíduos não foram entrevistados confirmando se também são freqüentadores da rua supra, apenas supõe-se a existência de identidades comportamentais correlatas.
Duas questões se impuseram paralelamente às observações: a existência de tráfico de drogas e a de pedofilia no local. Em princípio, poderiam
ser compreendidas como simultânea causa e efeito do ajuntamento de pessoas; isto é, tanto uma quanto a outra poderiam assumir o caráter causal da
presença de certos indivíduos à procura de sexo com menores de idade e/ou
consumo de drogas, como também poderiam ser entendidas como efeitos
da aglomeração humana em um espaço de socialização sem regras rígidas
de conduta ou repressão institucional severa. Pareceu ser bastante difícil
verificá-las em campo; no entanto e inesperadamente, concomitante à segunda visita, ocorreu a apreensão de uma grande quantidade de cocaína e
de munição para arma de fogo, resultado de uma diligência policial que, em
si, comprovou ao menos a ocorrência de tráfico de entorpecentes no local.13
Quanto à pedofilia ou prostituição infantil, inúmeras informações
positivas foram prestadas por muitos dos entrevistados, porém, não houve
oportunidade de comprová-las diretamente em campo; tudo que se pode
dizer no momento sobre o assunto é que adolescentes com menos de dezoito anos de idade freqüentam o autorama, fato comprovado pelos depoentes
que reconheceram ser menores de idade. Mas se esses se prostituem ou se
relacionam sexualmente com homens maiores de idade, são informações
difíceis de serem obtidas a partir das poucas visitas empreendidas; talvez
13
Pode-se afirmar, sem exagero, que se existe uma sub-área vinculada ao tráfico e consumo de drogas, tratar-se-á da
Rua 5, devido ao pronunciado consumo de maconha nessa rua e pela apreensão de cocaína e munição na mencionada diligência de busca e apreensão efetuada pela polícia militar na madrugada do dia 7 de outubro de 2007
(36º D. P. Vila Mariana: Boletim de Ocorrência e Auto de Exibição e Apreensão nº 7201/2007).
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uma pesquisa mais prolongada e capaz de criar laços de confiança mais
sólidos entre o pesquisador e os pesquisados possa permitir responder a
essa questão.
1.2 O ESTACIONAMENTO
GAY E A ESTRUTURA DA CIDADE
Indaga-se como é possível um estacionamento se tornar espaço de
socialização homossexual, uma vez que existem tantos outros lugares na
cidade que aparentemente são tão ou mais atraentes do que um mero terreno asfaltado. No que ainda diz respeito à importância de territórios
homoeróticos para a formação das personalidades individuais – ou de identidades coletivas – pode-se colocar outra questão: será a ocupação do
autorama resultante de um tipo de fuga de outros lugares caracterizados
como opressores e preconceituosos, inevitavelmente experimentados pelos
homossexuais na metrópole paulistana?
Talvez sim, talvez não. A complexidade de uma resposta plausível
ultrapassa o alcance da própria questão; no entanto, não se furtando ao compromisso de ao menos apontar para uma direção, pode-se dizer que sim: o
autorama realmente é um daqueles lugares (vistos na literatura sobre o tema
– é preciso lembrar Fry (1982), Humphrey (1970), Perlongher (2005)) onde
os indivíduos encontram parte essencial do processo de formação identitária,
seja por permitirem um comportamento que esteja mais de acordo com suas
aspirações ou simplesmente por imbuí-los de força e apoio para a autoaceitação. Contudo, a simplicidade dessa formulação poderia conduzir a
um beco sem saída, pois enseja simultaneamente a afirmação de que os
homossexuais freqüentam o estacionamento para socializarem porque é um
local consentido para esse proveito desde há muito tempo ou que o mesmo
é uma área de socialização homossexual porque é freqüentado por homossexuais há muitos anos, ou seja, nada se acrescenta!
O que carece de elucidação não são tão somente as causas ou motivos do processo de ocupação desse local – situado naquilo que aqui se chama de interstício urbano, de pequeno espaço entre as partes de um todo ou
entre duas áreas contíguas; ou seja, o diminuto estacionamento anexo ao
“verde” insular que, por sua vez, é rodeado por todos os lados pela paisagem densamente urbana – mas, sim, o processo em si próprio. Uma vez
desencadeada a sucessão de eventos, pouco resta a perseguir se não a lógica
inerente à profusão de relações em relevo. Nesse sentido, destaca-se a existência de certa afinidade entre inúmeros depoimentos colhidos em campo,
pois todos dão a entender que a segregação relativa entre a área do Parque e
as áreas circunvizinhas sempre foi um fator mais que contribuinte para o
processo gradativo de ocupação do estacionamento ao lado da Bienal e que,
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independentemente das circunstâncias motivadoras passadas ou presentes,
o estacionamento inspira certo ar de liberdade associado a um sentimento
de segurança.14
Talvez, a sensação de segurança seja decorrente das próprias características físicas do local que impedem, por exemplo, o contato direto com
grupos homofóbicos; por outro lado, essas mesmas características físicas
garantem um quantum de liberdade para pequenas transgressões públicas
que jamais seriam toleradas em outros locais da cidade.
Pois, nesse caso, a idéia de liberdade torna-se implicitamente sinônima de acesso facilitado por uma ampla rede de ruas e avenidas que atravessam a cidade de São Paulo de uma extremidade à outra, de separação das
áreas residências circundantes pela vegetação do Parque que exerce a função de biombo natural e de relativa ausência – ou presença não ostensiva –
dos aparatos institucionais de controle social, sejam estes representados pela
família e pela religião, por exemplo, ou concretamente constituídos e exteriores ao indivíduo, como a administração do Parque, a Prefeitura da cidade
ou a corporação policial, por exemplo.
É-se levado a crer que as confluências dessas três características e as
aparentes paridades de importância entre elas indicam que a ausência ou
parcialidade de qualquer uma delas impediria o surgimento de um território
como o autorama. Claro que isso também afetaria a continuidade da existência do mesmo. O que se quer dizer é que, uma vez sublimada ou alterada
qualquer uma dessas características, o estacionamento gay tenderia a deixar
de existir, visto que, sem o biombo natural, o contato visual com a vizinhança se concretizaria e acirraria o conflito, sem algumas das principais
vias de trânsito o acesso se limitaria, dificultando a presença daqueles que
usam o transporte coletivo ou mesmo daqueles que moram nas regiões mais
periféricas da cidade e, por fim, sem a localidade privilegiada – o Ibirapuera
está quase no centro da grande mancha urbana que se estende sobre São
Paulo e cidades vizinhas – não apenas o acesso seria prejudicado como
também a rede de serviços que circundam o Parque e que, de certo modo,
beneficia os freqüentadores do estacionamento.
3 ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
Daqui por diante tratar-se-á, apesar das formulações serem demasiadamente sucintas para uma ampla exposição do fenômeno, da dinâmica de
interação das forças entre indivíduos, grupos e instituições em jogo no local
14
Segregação: rubrica sociológica – “Processo de dissociação mediante o qual indivíduos e grupos perdem o contato físico e social com outros indivíduos e grupos. Essa separação ou distância social e física é oriunda de fatores
biológicos e sociais: raça, riqueza, educação, religião, profissão, nacionalidade” (fonte: WILLEMS, 1950).
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considerado. A hipótese pode ser melhor expressa e entendida em função da
seguinte abordagem: os fatores que acarretam a alteração de uma determinada norma ou ordenamento socialmente estabelecido, dão provavelmente
origem a um novo arranjo, a uma reacomodação das regras e condutas para
um espaço físico dado.
Examinando as acepções de arranjo e reacomodação, é-se levado a
identificar qual é o elemento motriz dos acontecimentos. Caso o objeto pudesse ser ilustrado por um conjunto de esferas magnéticas, seria absolutamente simples perceber que a aplicação de uma energia exterior – um impacto, por exemplo – bastaria para desestabilizar a inércia do sistema. Imediatamente após o impacto as esferas tenderiam a se reagrupar em função
do próprio magnetismo intrínseco a cada uma delas, a configuração visual
provavelmente seria diferente da anterior, mas a estabilidade voltaria a atuar sobre o conjunto.
O objeto desta investigação comporta-se, conceitualmente, como esse
modelo físico mecânico, porém, com especificidades que lhe são genuínas;
afinal, seria absurdo admitir que a radiação eletromagnética define estados
de propensão atrativa ou repulsiva entre fatores humanos, sejam estes representados por indivíduos, grupos de indivíduos ou instituições. Apenas
se toma de empréstimo esse exemplo enquanto ilustração de uma possibilidade real de afinidades eletivas entre determinadas características urbano
geográficas e determinados comportamentos humanos.
No caso da ocupação de espaços públicos, à semelhança do autorama,
pode-se dizer que a energia que age sobre os fatores humanos concorrentes
é o conflito. Não tão somente como algo desagregador, recorrente à compreensão comum do termo; pelo contrário, é por meio do conflito que o
sistema atinge o equilíbrio. Determinados interesses de determinados grupos podem, quando confrontados, expressar uma contradição mútua, uma
complementação de interesses, ou mesmo uma anulação de forças; restanos especificar quais são as partes envolvidas. Quanto ao autorama, podem-se destacar essencialmente três instâncias sociais de atuação e de interesse pelo estacionamento.
Primeiro, a administração do Parque, a Prefeitura da cidade de São
Paulo e a corporação policial (polícia civil e militar). Segundo, a vizinhança
residencial, com interesses convergentes em relação ao uso do Parque e de
suas áreas anexas, somada àqueles (outros usuários do Ibirapuera) que se
sentem afetados pela presença e pelo comportamento dos homossexuais.
Certamente é imprescindível qualificar esse grupo em categorias mais específicas, por exemplo, os que são a favor e os que são contra a ocupação;
no entanto, sublima-se essa diferença fundamental por aceitar que, no caso
da vizinhança, trata-se de uma instância razoavelmente homogênea e con-
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trária a ocupação do estacionamento.15 Terceiro, os homossexuais (e simpatizantes), que utilizam o lugar como local de socialização.
Vale lembrar que, mesmo dentro de um grupo unificado por interesses em comum, existem divergências, pessoas ou subgrupos internos não
totalmente alinhados com todas ou a maioria das diretrizes comportamentais
e valorativas que identificam o grupo como sendo deste ou daquele tipo. Se
aqui os freqüentadores do autorama são apresentados como um grupo, é
somente porque se adotam duas características como fundamentais: ser homossexual (ou simpatizante) e freqüentador noturno do estacionamento em
questão.
Apesar de as contradições internas tenderem a declinar a força de
atuação dos homossexuais no Ibirapuera, toma-se como certo que a dissidência é sobrepujada pela maioria e não tem, neste caso, força suficiente
para interferir nas demandas desse grupo; posto desse modo pode parecer
que a mobilização interna é fator suficiente para aumentar sua capacidade
de atuação; contudo, mesmo que as contradições e rivalidades internas fossem superadas, isso não implicaria necessariamente um aumento substancial
na força de atuação. O aumento da mobilização organizacional não é causa
primeira de qualquer respectivo aumento de força; um único indivíduo –
um juiz, delegado ou empresário que more nas redondezas, por exemplo –
pode dispor de uma força muito maior que a articulação interna do grupo.
A força de atuação não se define apenas pela mobilização organizacional,
envolve também os papéis políticos e macroeconômicos desempenhados
pelos agentes.
Visto que o caso específico não gerou, no passado e até certo ponto
no presente, uma situação conflituosa desagregadora em todos os seus graus
de existência, o que então tem possibilitado o respectivo grau de equilíbrio,
de tolerância por parte da administração do Parque, da Prefeitura, da policia
e da vizinhança em relação ao reduto gay?16 Apesar de a situação remeter a
um estado de tensão constante, verifica-se que alguns arranjos se formaram
no interior da estrutura de relações sociais em jogo e assim sustentam a
continuidade do processo. Essas regras mínimas parecem se fundir sempre
a partir das proibições, das interdições de condutas e comportamentos tidos
15
Aparentemente, a repulsa contra os homossexuais se processa, também, para além dos limites morais para eles
definidos, estendendo-se sobremaneira a acontecimentos geralmente associados à aglomeração humana. Aludese aqui ao tráfico e consumo de drogas, bebidas, permanência de infantes em espaços alijados de conduta ética,
prostituição, assaltos etc. O que ocorre, então, e de certo modo, é uma associação entre homossexualidade e
criminalidade: os veículos de disseminação dessa idéia são bastante variados, passando desde o mexerico entre
vizinhos até as reportagens em jornais, revistas e televisão.
16
A Prefeitura de São Paulo tarifou os estacionamentos do Parque Ibirapuera ao convertê-los em “zona azul” e,
desde que houve o recapeamento das ruas do estacionamento, todos os pontos fixos de comércio informal (trailers)
foram removidos por tempo indeterminado, assim como também têm aumentado as rondas e batidas policiais. Até
que ponto essas medidas interferem na dinâmica local ainda é difícil de apreender.
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como inaceitáveis até mesmo pelos próprios membros do grupo ao qual
estão ligadas.17 No autorama, constatou-se que ao longo dos anos esses
mínimos sociais avançaram muito em favor dos homossexuais, talvez pelo
baixo interesse das outras instâncias pelo local.18
Nota-se claramente que os limites de conduta se estabelecem, também, na organização e segregação interna do próprio grupo de freqüentadores; como dito antes, apenas foram considerados homogêneos para efeito
analítico, pois em seu interior foram identificados outros processos de separação e classificação em constante conflito.
É certo que os argumentos apresentados neste breve ensaio preliminar
carecem ainda de substancialização teórica maior e não esgotam a elucidação
do problema; entretanto, suscitam a possibilidade de que qualquer perímetro
que conte com características físicas similares a do objeto examinado (e estando dentro de uma grande metrópole) possa ser reestruturado, ter sua finalidade original alterada ou subvertida numa configuração nova e completamente diferente. Os motivos ou causas que levam determinado grupo a se
interessar por determinado interstício físico urbano em detrimento de outro
é algo bastante difícil de ser reconstruído teoricamente; ainda assim, isso
não impede de indagar e buscar respostas. Entre outras questões possíveis
cabem as seguintes: Como e onde o processo acontece ou pode acontecer?
Quais as interações entre os atores envolvidos? Como essa relação estrutura, regulamenta e organiza funcionalmente a nova situação?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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meios de vida. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2001.
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inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
HUMPHREY, L. A transação da sala de chá: sexo impessoal em lugares públicos. In: RILEY, M. W.;
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PARK, R. E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio ambiente
urbano. In: VELHO, G. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. Cap. 2, p. 26-67. Publicado
originalmente no American Journal of Sociology, n. 20, p. 577-612, mar. 1915.
17
Muitos dos entrevistados disseram ser um abuso inaceitável o encontro sexual nas calçadas escuras do bairro
vizinho (Jd. Lusitânia), mesmo que seja dentro de um automóvel; dando a entender que seria fundamental o
respeito aos “limites” do Ibirapuera.
18
Termo tomado de empréstimo do estudo de Antonio Candido sobre os “parceiros” (fazenda Bela Aliança, Bofete SP, por volta de 1950) e adaptado às particularidades do exame aqui empreendido (CANDIDO; 2001).
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PARK, R. E.; BURGESS, E. W. Competição. Cap. 8, p. 504-512.; Conflito. Cap. 9, p. 574-579; Acomodação. Cap. 10, p. 663-671; Assimilação. Cap. 11, p. 734-740. In: —. Introduction to the Science of
Sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1921. [Tradução de Mário A. Eufrasio - Apostilado].
PERLONGHER, N. Territórios marginais. In: GREEN, J. N.; TRINDADE, R. Homossexualismo em
São Paulo. São Paulo: UNESP, 2005.
WILLEMS, E. Dicionário de Sociologia. Porto Alegre: Globo, 1950.
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201
ANEX
OS
ANEXOS
Vista aérea do estacionamento [a entrada está indicada pela seta].
Fonte: Google Earth.
Mapa do Parque Ibirapuera.
Fonte: site da Prefeitura de São Paulo.
A - Pavilhão Manoel da Nóbrega H - Pavilhão Japonês
B – PRODAM
I - Assembléia Legislativa
C – Bienal
J - Monumento às Bandeiras
D – OCA
K - Homenagem a Pedro Álvares Cabral
E - Grande Marquise / MAM-SP
L - Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932
F – DETRAN
M - Viveiro Manequinho Lopes
G – Planetário
N - Monumento Ayrton Senna
Observação: a estrela [
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] marca a localização exata do estacionamento.
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“FAZENDO A LINHA”: MASCULINIDADE(S) E
DESEJO PELO MESMO SEXO NAS EXPERIÊNCIAS
DE VIDA DE HOMENS QUE FAZEM SEXO COM
OUTROS HOMENS EM POUSO ALEGRE, SUL DE
MINAS GERAIS
Eduardo Moreira Assis*
Resumo: De que maneira homens que fazem sexo com outros homens lidam com
diferentes masculinidades, experimentam suas sexualidades e elaboram o conhecimento de si próprios e dos outros? Como essa experiência costura-se ao viver urbano,
considerando-o em uma cidade de pequeno porte? Nas histórias de vida de homens
entre vinte e cinqüenta anos de idade moradores de uma cidade com menos de 120
mil habitantes no sul de Minas Gerais (Pouso Alegre), estas questões permitem apreender e refletir sobre como uma concepção modelar de masculinidade, baseada em
uma referência hétero-normativa, tem perpassado as sociabilidades articuladas em
torno do desejo pelo mesmo sexo.
Palavras-chave: Masculinidades. Desejo pelo mesmo sexo. Teoria queer. História oral.
Abstract: The present article aims to discuss the manners which men that have sex
with other men deal with and evaluate different masculinities, experience their
sexualities and formulate knowledge on themselves and other men wandering how
their life experiences are attached to the urban life experience, considering it in a
small Minas Gerais State town in which live about 120 thousand inhabitants. This
article analyses life histories of men from 20 years old to 50 years old discussing the
straight-based standardizing idea of masculinity that has been present on the social
relationships established amongst men that have sex with other men.
Keywords: Masculinities. Same sex desire. Queer theory. Oral history.
(RE)CORTES
SOBRE
E COSTURAS
A TRAJETÓRIA DA PESQUISA
No início, a pesquisa que originou este artigo pretendia concentrar suas
análises sobre as formas de socialização baseadas no desejo pelo mesmo sexo.
Dentro de toda essa amplitude, o interesse se tornava particular com relação
ao surgimento de ambientes lúdico-festivos articulados em torno desse desejo na cidade-natal do pesquisador, Pouso Alegre, sul de Minas.
*
Doutorando em História pela PUC-SP (2007-2011), com bolsa CAPES, sob orientação da Profª. Drª. Denise
Bernuzzi de Sant’Anna. Contato: [email protected].
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204
ASSIS, Eduardo Moreira. Fazendo a linha”: masculinidade(s) e desejo pelo mesmo sexo...
A primeira história de vida realizada foi com o dono de um brechó da
cidade, chamado Airton. A partir dele e de suas redes de convivência, outros depoentes foram contatados, o número de fontes ganhou corpo rapidamente e a viabilidade da pesquisa tornou-se realidade. Essa foi a fecundação do trabalho.
No doutorado, o retorno às fontes gerou uma série de novas inquietações e gradativamente foi ficando mais claro que o “x da questão” não girava em torno dos ambientes lúdico-festivos. É marcante na fala dos sujeitos
desta pesquisa a presença ora mais sutil, ora mais intensa, de um ideal de
masculinidade conformado por diversos contextos da vida cotidiana – relações de amizade, afetivo-sexuais, de trabalho, familiares, com a cidade. A
partir dessa observação, procurou-se problematizar neste artigo de que forma se dá a relação entre as diferentes masculinidades dos diferentes sujeitos e essa referência de masculinidade que orienta a própria formação viril,
com a qual negociam seu encaixe na realidade social.
MASCULINIDADES, GÊNERO, PERFORMANCE
A noção modelar de masculinidade de que se fala – indivisível, inabalável, única e como será visto adiante, inatingível – tornou-se objeto de
estudos há algumas décadas apenas, originadas pela crítica feminista responsável por problematizar a ordem patriarcal e a dominação masculina
sobre as mulheres, abrindo caminho para que fosse pensada como um fardo
que pesava e dominava igualmente aos homens. Assim, o conceito de “masculinidade” passou por um processo de desconstrução tão intenso de forma
que pensá-lo no singular perdeu sentido, passando a ser entendida como
pluralidade e diversidade.
A crítica a tal tipo de masculinidade não é uma filha pródiga do século XX
como se pode supor pelos parágrafos acima. O ideal viril já havia sido atingido antes por questionamentos variados no Ocidente, marcadamente em
contextos nos quais a emancipação feminina1 foi suficiente para gerar um
grande “mal-estar” conhecido como “crise da masculinidade”. Na segunda
metade do novecentos, a discussão que explode especialmente depois da
Revolução Sexual, fez vir à tona a necessidade de perceber que existiam
diferentes maneiras de ser homem, cultural e historicamente variáveis
(BADINTER, 1993, p. 11-22).
Essa quebra de paradigma que ficou conhecida por “crise da masculinidade” e o surgimento ou percepção dessa pluralidade viril não destruí1
Esses momentos de emancipação feminina nos quais a dominação masculina e o ideal de homem foram questionados ocorrem, segundo Badinter (1993), a princípio, na França dos séculos XVII e XVIII entre as camadas
nobres; na virada do século XIX, com os movimentos por emancipação da mulher; no século XX, com as duas
guerras mundiais.
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ram, porém, a “antiga” noção de homem – patriarcal, solitária, machista,
falocêntrica. Também não é possível afirmar que a noção de masculinidade
modelar tenha se tornado apenas mais uma entre tantas: a pluralidade e a
crise existem porque a noção no singular ainda é forte, porque a negociação
e a legitimação delas se dão em uma esfera relacional, através de lutas no
cotidiano com altos graus de tensão, de maneira silenciosa ou não, interferindo diretamente na construção de subjetividades e na busca por eqüidade
nas relações de gênero.
Entendendo gênero enquanto categoria filosófica e analítica formulada para pensar masculino e feminino como papéis sociais, historicamente
constituídos, culturalmente variáveis e dissociados de sexo biológico (SCOTT,
1990, p. 5-22), o conceito de performance de Butler (2005, p. 315-317) auxilia as reflexões sobre a maneira como essa virilidade modelar é erigida,
exigida e experimentada pelos depoentes.
É importante salientar que a noção de performatividade do gênero
diz respeito às formas pelas quais os conteúdos associados a masculino e
feminino são produzidos, direcionados e, mais ainda, vividos e retro-alimentados pelos sujeitos nas relações sociais das quais fazem parte, percebendo esses conteúdos como destinos aos quais jamais se chega plenamente (BUTLER, 2005, p. 324-325). Por isso, antes de prosseguir, cabe falar
um pouco sobre a história da cidade escolhida para a realização deste estudo de caso, cuja trajetória se cruza às narrativas de vida analisadas.
ONDE?
Pouso Alegre fica às margens da rodovia Fernão Dias e muito provavelmente o leitor já passou por ela em seu trajeto para Belo Horizonte ou
São Paulo. É uma cidade nascida como parte de outro caminho, bem mais
antigo: o que levava à região das jazidas de ouro e pedras preciosas de
Minas Gerais. Isso porque, em meados do século XVIII, os tropeiros que
seguiam para Vila Rica eram obrigados a parar na região onde se desenvolveu Pouso Alegre por alguns dias, até que o nível dos rios baixasse e a
viagem pudesse prosseguir. Em 1755 o pouso de tropas se tornou posto de
fiscalização, ou Registro, criado pela Capitania de Minas Gerais para coibir
o contrabando de metais e pedras preciosas. E foi somente em 1848 que
Pouso Alegre recebeu a denominação de cidade.
Ali, a presença da Igreja Católica é marcante, contribuindo para isso
a referência de letramento para as cidades vizinhas que Pouso Alegre se
tornou, posto que as principais instituições de ensino da cidade foram fundadas por religiosos no começo do século passado.2 Isso sem mencionar
2
Aqui segue uma relação das instituições fundadas no primeiro quartel do século XX em Pouso Alegre e a qual
público se destinava. Ginásio e Seminário Diocesano – que se tornou a Faculdade Católica de Pouso Alegre,
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que a própria criação do Bispado, em 1899, e depois a elevação à categoria de
Diocese, no começo do novecentos, se consolidaram como marcos de progresso pela historiografia tradicional (GOUVÊA, 1998, p. 125-128, 181-187).
Porém, de todas as décadas de sua história é possível notar que nenhuma foi de mudanças tão intensas quanto os anos 1970. Foi nesse período que Pouso Alegre se tornou o que é hoje, por conta de transformações
mais profundas que se fizeram notar em seus limites espaciais e seus modos
de vida, originadas da necessidade de mão-de-obra qualificada, predominantemente paulista, e do crescimento urbano acelerado das décadas de 1970
e 1980 (FREITAS, 2003). Nessas duas décadas em questão, a população
pouso-alegrense praticamente dobrou.3 Desse fenômeno, inclusive, participaram moradores da zona rural municipal e moradores de cidades vizinhas
menores, todos buscando trabalho e melhores condições de vida. Até a década de 1960, contudo, o retrato da cidade não era bem esse.
Muitas ruas em terra batida, bairros sem saneamento, redes de telefonia e de transmissão de energia em condições precárias, a pecuária e a agricultura como pilares da economia municipal: essa era a Pouso Alegre que
se pretendia deixar para trás (ASSIS, 2005). Por isso, no final dos anos
1960, uma série de obras tidas como “modernizadoras” – canalizações de
córregos, implementação de grandes avenidas, de cabos de telefonia, nova
rede de energia, asfaltamento de ruas e a construção das primeiras indústrias – alterariam as feições da cidade intensamente.
Esse boom de desenvolvimento encontrou freio na década de 1990,
quando o fechamento de algumas fábricas no município – que partiram
para outras localidades brasileiras em busca de incentivos fiscais mais vantajosos – gerou um período de estagnação e desemprego (MODESTO, 1997).
Atualmente, o crescimento econômico foi retomado e novas fábricas
foram instaladas na cidade. Sua população estimada é de cento e vinte mil
pessoas e a renda per capta é estimada em mais de sete mil reais. A presença
industrial diversificada faz com que, de acordo com sua administração, a
cidade seja considerada um “pólo industrial multisetorizado”, com indústrias alimentícias, químicas, de peças automotivas e de calçados, para mencionar algumas.4
recentemente, para meninos da elite, e a Casa de Congregação dos Missionários do Sagrado Coração de Maria,
entre 1901 e 1905; em 1911, a instalação da Escola Normal Santa Dorotéia – que não existe mais – para a
formação das meninas da elite da cidade e região; depois, em 1917, a criação da Escola Profissional Delfim
Moreira – ainda em atividade – voltada somente à formação de meninos carentes.
3
Cabe acrescentar as estatísticas do IBGE referentes ao crescimento populacional em quase quarenta anos: na
década de 1970 a população de Pouso Alegre era de 38.070 habitantes, saltando na década de 1980 para a marca
de 57.362 habitantes. Em 1991, a população era de 81.836 habitantes e em 1996, de 93.166 habitantes. No ano
2000, Pouso Alegre contava 106.776 moradores (IBGE, s.d.).
4
De acordo com as informações da Prefeitura Municipal de Pouso Alegre, a cidade constitui um “pólo industrial
multisetorizado” com a presença de empresas brasileiras e multinacionais de grande porte como a Unilever e a
Yoki (alimentos), a USIPARTS, a Johnson Control’s e a Sumidenso (setor automobilístico), a União Química, os
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Além das indústrias, têm expressão na economia local o cultivo de
arroz e de morango e o intenso setor de serviços, responsável por atrair uma
grande quantidade de pessoas vindas de cidades próximas para comprar no
varejo, fazer tratamentos de saúde, resolver problemas legais e bancários,
estudar ou mesmo divertir-se em Pouso Alegre desde que ela se tornou, no
final dos anos 1960, uma referência para cidades menores no sul de Minas
(GOUVÊA, 1998), cujas transformações e possibilidades levaram os depoentes à relacionar-se com a cidade em algum momento de suas vidas.
CAMINHOS
ESCOLHIDOS
A trajetória da cidade nas últimas décadas integra as próprias trajetórias de vida de Airton, Alexandre, José Mário, Lucas, Tony, Vladimir e
Wellington, os protagonistas deste artigo, na medida em que suas narrativas
de Pouso Alegre emergem como lugar de chegada, de partida, de nascimento, de possibilidades, de expectativas.
Utilizando a história oral como metodologia, foi escolhida a técnica
de histórias de vida, considerando que o viés biográfico permite acessar a
trajetória sexual desses homens e o exercício que eles fazem de auto(re)conhecimento e explicação de si e do mundo ao longo da gravação.
Neste artigo são trabalhadas sete narrativas biográficas de homens
entre vinte e cinqüenta anos,5 cujas idades mencionadas no texto são aquelas registradas no momento da gravação. Todas as falas foram autorizadas
pelos depoentes e para referenciar algumas delas recorreu-se ao uso de pseudônimos, já que a maioria concordou com a entrevista desde que nomes
reais não fossem mencionados. Por uma questão ética, não se estabelece
distinção ou esclarecimentos quanto a quais sujeitos são ou não referidos
por seus nomes verdadeiros.
Quanto à heterogeneidade das idades desses homens, não se considerou em momento algum o trabalho sob recorte geracional. Optou-se igualmente por não selecionar uma única faixa etária para estudo por não se
tratar de uma etnografia, mas de um trabalho que se propõe apreender nas
narrativas desses homens que fazem sexo com outros homens rupturas e
permanências nas práticas e representações da experiência do desejo pelo
mesmo sexo e a construção de subjetividades nesse processo, emprestando
algumas categorias das Ciências Sociais, em especial da Antropologia.
Laboratórios Sanobiol e Cimed (farmacêuticas) e a Sobral Invicta (garrafas térmicas). Distâncias: São Paulo, 200
Km; Rio de Janeiro, 360 Km e Belo Horizonte, 384 Km (PREFEITURA MUNICIPAL, s.d.).
5
Foram realizadas vinte e oito entrevistas: vinte e três histórias de vida com homens entre dezessete e cinqüenta
anos, e cinco entrevistas temáticas sobre eventos e patrocínios destinados às festas “gays” da cidade. Todas as
entrevistas foram realizadas entre outubro de 2005 e fevereiro de 2007. A maioria das gravações foi realizada na
casa do pesquisador, tendo sido poucos os ouvidos em suas residências. Também houve quem cedesse depoimento em seus locais de trabalho, por serem donos do próprio negócio, comumente depois do expediente.
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Outra opção adotada foi a ausência de recorte cronológico, preferindo apreender o vai-e-vem da memória dos depoentes e as camadas de passado e interpretação que acumulam, tendo sido selecionados trechos significativos das narrativas, em vez de colocar a pergunta do pesquisador seguida da resposta do depoente. Nesse exercício de interpretação, a transcrição
foi colocada o mais próxima possível da experiência oral, respeitando as
pausas, os silêncios, as rupturas e articulações dos discursos, bem como o
clima descontraído responsável pelas várias risadas que são mencionadas
nas transcrições.
Do conjunto de histórias de vida analisadas, a narrativa de Tony é a
única que tem um tratamento diferenciado, porque sua experiência difere
da experiência dos outros homens ouvidos: até 2001 ele viveu uma identidade transexual.6 Como a pesquisa concentra-se exclusivamente sobre a
experiência de homens que fazem sexo com outros homens,7 e a experiência transexual por si só já compõe outra temática, trabalhei sua fala enquanto conjunto de informações significativas relacionadas ao surgimento dos
ambientes lúdico-festivos articulados em torno do desejo pelo mesmo sexo
em Pouso Alegre.
Enquanto trabalho sobre masculinidades e homens que fazem sexo
com outros homens, obviamente, não se contempla aqui experiência do
desejo pelo mesmo sexo vivida por mulheres. Eleger apenas homens enquanto sujeitos desta pesquisa tem a ver com a experiência socialmente
constituída do que se apresenta como referência de virilidade: máximas
como “homem não chora”, brincadeiras agressivas e ofensivas na época de
escola e depois, mais ainda, como tais valores repercutiam também dentro
de sociabilidades orientadas pelo desejo pelo mesmo sexo funcionaram como
estímulos para que os questionamentos e incômodos do pesquisador fossem transformados no estudo que os parágrafos a seguir apresentam resumidamente, como recorte.8
6
Por fazer parte de uma experiência transgênero, o trabalho com a trajetória de vida de Tony demanda outras
categorias de análise e problematizações, que não cabem neste trabalho. No momento de realização da entrevista,
o depoente estava casado com uma mulher, ele e a esposa morando na casa da mãe de Tony, ambos convertidos a
uma igreja neo-pentecostal.
7
O termo “homens que fazem sexo com outros homens”, ou HSH, foi emprestado da área da Saúde por fazer
referência à prática sexual e não a pressupostos identitários. A referência aos sujeitos será feita através do termo
completo, descartando-se o uso da sigla. “Homossexualidade”, “homossexual”, “heterossexualidade”, “heterossexual e “gay” são termos que não serão empregados no texto senão entre aspas. Em torno dessas categorias paira
uma questão importantíssima na qual se detém todos os estudos que pensam o desejo pelo mesmo sexo exatamente por remeterem a conotações essencialistas da sexualidade. Os sentidos desses termos e os cuidados que eles
suscitam nos pesquisadores da temática das “homossexualidades” serão devidamente problematizados no corpo
do texto páginas adiante.
8
Este texto traz algumas reflexões que são parte da pesquisa de doutorado intitulada provisoriamente como “‘Em
algum lugar além do arco-íris’: masculinidades e sexualidade na trajetória de vida de homens que fazem sexo com
outros homens em Pouso Alegre- sul de Minas Gerais”.
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Por fim, encerrando esta apresentação, vale esclarecer que embora não
seja um militante da “causa homossexual”, o autor encara seu trabalho como
contribuição para se pensar e problematizar a experiência do desejo pelo mesmo
sexo no Brasil. Uma experiência levada a termo, por seu turno, fora do eixo
Rio São Paulo, fora dos contextos metropolitanos sobre os quais a maioria da
produção sobre a temática incidiu até pouco tempo, de modo a acrescentar
outras vozes a uma discussão cuja tendência é aumentar.9
“FAZENDO A LINHA”:
MASCULINIDADE(S) E DESEJO PELO MESMO SEXO NAS EXPERIÊNCIAS DE VIDA DE HOMENS
QUE FAZEM SEXO COM OUTROS HOMENS EM POUSO ALEGRE, SUL DE MINAS GERAIS
“ANTIGAMENTE NÃO TINHA ESSE NEGÓCIO DE GAY, NÃO-GAY”:
DESEJO PELO MESMO SEXO E VIVÊNCIA URBANA
Tony10 morava em sua cidade natal, Caraguatatuba, litoral de São
Paulo, quando foi expulso de casa aos quinze anos por sua mãe, em 1975,
ao revelar à família sentir desejo pelo mesmo sexo. Viveu em algumas cidades do interior paulista como São José dos Campos e Campinas e nessa
época já havia se tornado Tonya.
Na década seguinte, mudou-se para o sul de Minas. Primeiro Poços
de Caldas, onde sua mãe morava; depois, Pouso Alegre no fim dos anos
1980, para trabalhar como cabeleireira a convite do proprietário de um famoso salão de beleza local.
Quando chegou a Pouso Alegre, levou certo tempo até que Tonya se
acostumasse à cidade e vice-versa: fazia-lhe falta a existência de espaços e
redes de sociabilidade articuladas em torno do desejo pelo mesmo sexo com
as quais habituara-se em São José dos Campos e Campinas. Mas não demoraria muito até que ela própria pusesse fim ao incômodo organizando algumas
festas com a intenção de “... ajuntar as bibas11 para que elas mostrassem o que
eram sem medo e sem repressão”. Isso porque, segundo conta,
9
Vem se notando um aumento considerável na produção sobre “homossexualidades”, “transexualidades” etc. que
pode ser acompanhado pela Plataforma Lattes e em diversos eventos que reúnem pesquisadores de várias áreas do
saber voltados para o assunto, dentre os quais se destaca o Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos da Homossexualidade – ABEH. Neste ano, a VI edição do evento (que ocorre de dois em dois anos) foi
realizada na USP entre os dias 09 a 12 de setembro de 2008. Em mesa plenária, chegou-se a discutir as “homossexualidades”, “transexualidades” como campos de saber e não mais como temas de pesquisa, bem como se
contextualizou e se problematizou a produção acadêmica a partir do aumento substancial de trabalhos inscritos no
evento e dentre esses, da quantidade de pesquisas com recortes espaciais distintos do eixo Rio-São Paulo, das
regiões metropolitanas e das grandes cidades brasileiras.
10
TONY – quarenta e cinco anos, casado, esteticista. Entrevista realizada em 18 de novembro de 2005. Aprox. 120
minutos.
11
Termo popular para “homossexual” masculino. É equivalente a “biu”, sinônimo de “bicha”, “viado”, “mona”, e é
muito usado como interpelação dentro das sociabilidades orientadas pelo desejo pelo mesmo sexo, esvaziado da
intenção de insultar e re-significado quase como pronome de tratamento.
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(...) a vida dos homossexuais de Pouso Alegre na época, ou até alguns anos atrás, era
dentro de ambientes hétero, fazendo a linha [grifo meu], de mãos dadas com meninas,
beijando meninas na boca, mas afim dos meninos. Aí rolava as coisas no banheirão,
atrás dos lugares, nas quebradas, campos de futebol...
Tony assinala mais que uma experiência de marginalidade exemplificada por práticas do desejo refletidas nos usos de determinados espaços
da cidade. Permeia sua fala uma experiência de invisibilidade empreendida
pelos sujeitos, uma estratégia de proteção através da qual ora se faz a linha
com as meninas nos “ambientes hétero”, ora se perde a linha com os rapazes em lugares públicos e marginais. E fica expresso igualmente que “fazer
a linha” é o que permite a esses rapazes circularem por uma cidade cujos
espaços, antes de Tony, ainda não eram vivenciados de forma dicotômica
como “hétero” ou “homossexuais”.
José Mário12 conta que nos anos 1970, os bares Samoara e Cabana, e
depois, nos anos 1980, Carlitos e Papillon, eram os principais pontos de
encontro de Pouso Alegre. Era ali que diferentes grupos se reuniam para
colocar a conversa em dia e descontrair. Era a época da zona de prostituição, onde ele e seus amigos também gostavam de se divertir jogando conversa fora e bebendo com as prostitutas, mas, como fez questão de ressaltar:
“... sem envolver sexualmente com elas, porque eu não sou sapatão também! [risadas] Era falta de opção, não tinha muita coisa aqui em Pouso
Alegre...”. Segundo ele explica, “naquele tempo não tinha esse negócio de
gay, não-gay. Os gays iam lá [nos bares], sem dar muita bandeira. Lá dentro
eles se revelavam, bebiam e começavam a dar em cima dos homens e aí...
levavam porrada [risadas]”.
José Mário nasceu em Pouso Alegre em 1956, onde passou toda sua
infância e parte de sua adolescência. Na juventude, a partir de 1974, morou
em várias outras cidades como Juiz de Fora, Palmas e no interior de São
Paulo. Retornou a Pouso Alegre nos anos 1980, graduou-se em Direito em
1987 e desde então trabalha como advogado. Considera-se assumido, embora nunca tenha dito à família gostar de homens por considerar desnecessária essa verbalização.
Filho de uma dona de casa com um capitão do Exército, caçula de
quatro irmãos, duas mulheres e dois homens, sua educação foi bastante
rígida tanto pela formação do pai quanto pela presença do catolicismo em
sua família. E, como Tony, já havia conhecido e circulado por ambientes
articulados pelo desejo pelo mesmo sexo em cidades maiores.
Antes das festas de Tony as estratégias eram outras, o que não quer
dizer que, depois das festas de Tony elas tenham deixado de existir. A questão aqui é compreender que os jogos de sedução encontravam diversas ma12
JOSÉ MARIO, cinqüenta anos, solteiro, advogado. Entrevista realizada em 30 de julho de 2006. Aprox. 50
minutos.
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neiras de serem jogados e em meio a uma presença religiosa tão marcante
na cidade até mesmo as festas católicas, as conhecidas quermesses, se transformavam em lugares de práticas de sedução inventivas, silenciosas e levadas a cabo por diferentes categorias de “homossexuais”,13 conforme emerge no relato de Airton.14
Nascido em Santo André e com formação em Administração de Empresas, Airton trabalhava em São Paulo com feiras de moda quando seu
companheiro faleceu. Decidiu mudar de vida, largou tudo e foi para Pouso
Alegre, aos vinte e oito anos, em 1992.
A escolha da cidade não foi por acaso: seus pais já moravam lá desde
o final da década de 1970, quando seu pai, torneiro mecânico, mudou-se de
Santo André com emprego garantido em uma indústria estabelecida em Pouso
Alegre levando junto sua esposa dona-de-casa, mãe do depoente. Era a época em que a cidade começava a industrializar-se. Nessa mudança seus dois
filhos ficaram no ABC paulista; Airton era o caçula, antes dele, outro rapaz
e depois, já em Minas, seus pais adotaram uma garota.
Airton, que se considera abertamente assumido, mas “discreto”, ganhava a vida na cidade-destino com um brechó, o primeiro pouso-alegrense,
aberto com as roupas que trouxe consigo. Como nem tudo era trabalho não
demorou até que a falta das opções de lazer com as quais estava acostumado em São Paulo – e a solidão – começasse a dar as caras. Foi quando seus
primeiros amigos na cidade o levaram até uma quermesse, ironicamente, a
de Santo Antônio: o objetivo era a paquera, era conseguir um parceiro. Assim, Airton conta:
(...) Eu lembro que naquela época, naquela época tinha aquela festa no [bairro] Santo
Antônio. Tinha aquela quermesse, que hoje eu nem sei se existe mais isso. A gente ia
muito nessas festinhas. Eles iam caçar os bofes deles nessas festas! E eu não entendia
nada, cara! Aí eu falei: ‘junta uma grana, vamos pra São Paulo que eu vou levar vocês
em uma boate’. Levei os dois, eu adorando, encontrando com meus amigos e os dois
sentados lá, assim, no canto. E eles falavam: ‘Mas tudo isso é viado, Airton! Aqui não
tem homem? É tudo viado!’ Aí eu não agüentei. Você vê a diferença? [grifos meus]
Em grandes cidades e capitais, principalmente Rio de Janeiro e São
Paulo, já existia todo um circuito composto por cinemas, ruas, bares, sau13
A expressão “categorias de ‘homossexuais’” faz referência à pluralidade de categorias de homens que fazem sexo
com outros homens, no sentido de que existe uma miríade de tipos que vai bem além do duo bicha-bofe. As
categorias abarcam tanto as representações estereotipadas, presentes no senso comum acerca do sujeito de desejo
pelo mesmo sexo, a que serve de exemplo a figura da “bicha” como referência ao homem afeminado, e o “bofe”,
enquanto “machão”. Só para citar algumas outras categorias, existem os “enrustidos” (não-assumidos), “os ursos” (homens peludos e acima do peso), as “barbies” (homens musculosos), “lolitos” (rapazes), as “irenes” (homens entre quarenta e cinqüenta anos) e as “barrocas” (homens acima dos sessenta anos de idade) entre várias
mais.
14
AIRTON, quarenta e dois anos, solteiro, comerciante; considera-se assumido. Entrevista realizada em 05 de
outubro de 2005. Aprox. 100 minutos.
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nas e boates onde as experiências de desejo pelo mesmo sexo eram exercitadas. Esses espaços ganharam corpo na década de 1970, no contexto da
Ditadura Militar (MACRAE, 2005, p. 292), quando o que viria a ser o
Movimento Homossexual Brasileiro começava ser articulado sob influência direta dos acontecimentos de Stonewall Inn,15 nos Estados Unidos, pelas primeiras paradas gays que aconteceram em países anglo-saxões, pelo
papel dos movimentos contestatórios do Regime Militar brasileiro e, nos
anos 1980, pelo retorno dos anistiados ao país e por toda a efervescência e
esperança provocada pela reabertura política (GREEN, 2000, p. 271-295).
Parte do processo de questionamento das representações pejorativas
da homossexualidade e aumento de sua visibilidade e positivação através
do engajamento político da militância, esses espaços de identidade “homossexual” foram pensados como “guetos”. Não no sentido literal da palavra, mas como ambientes protetores, cuja função maior era política: nesses
espaços o indivíduo testaria sua “identidade homossexual” e assim funcionariam como um estágio que culminaria na assunção pública da “homossexualidade” (MACRAE, 2005, p. 299), parafraseando Tony, “sem medo e
sem repressão”.
Porém, Pouso Alegre estava distante desse contexto. Na cidade sulmineira, no mesmo período, o que mais se fazia notar era o pensamento de
modernização urbana expresso pela tríade “indústrias, crescimento, progresso”. Os maiores choques culturais, reflexos de todas as transformações
resultantes dessa fórmula ficaram bastante evidentes na batalha travada contra
a zona de prostituição no centro da cidade, através da qual se viu lances de
especulação imobiliária, a afirmação a qualquer custo da imagem de cidade
ordeira e promissora e o esgotamento de um modelo de sexualidade baseado no papel social da prostituição como mecanismo de controle da sexualidade feminina e de iniciação sexual dos homens (ASSIS, 2005).
José Mário menciona que “antes não havia esse negócio de gay, nãogay” e Tony, “que a vida dos homossexuais de Pouso Alegre era dentro de
ambientes hétero, fazendo a linha”. Em outro momento de seu depoimento,
por sua vez, explica que a intenção com suas festas era “... ajuntar as bibas
pra que elas mostrassem o que eram, sem medo e sem repressão”. Com o
15
Stonewall Inn era um bar de freqüência “homossexual” bastante conhecido em Nova York, localizado na Rua
Christopher, em Greenwich Village. Na época, a polícia fazia visitas ostensivas ao bar, extorquindo dinheiro de
seus freqüentadores e abusando do poder com perseguições. O que os policiais não esperavam no dia 27 de julho
de 1969, dia do funeral de Judy Garland, um ícone “gay”, era a resistência daqueles homens. Houve choque entre
os policiais e os freqüentadores do bar e confrontos que se estenderam por dias, deixando alguns mortos. Um ano
depois, era realizada a primeira parada do orgulho gay do mundo, em memória dos acontecimentos de Nova York.
A importância de Stonewall Inn fica a cargo do redimensionamento da luta pelos direitos “homossexuais” e da
articulação política que se engendrou através do termo “gay”, que passou a evocar um modo de vida urbano,
metropolitano, legitimado, com padrões estéticos e de consumo, cujo princípio norteador era a assunção pública
do desejo pelo mesmo sexo, considerado um dado biológico, da mesma maneira que “homossexual” (SPENCER,
2002, p. 348-353, TORRÃO FILHO, 2000, p. 205-206), conforme será discutido adiante.
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surgimento de tais ambientes lúdico-festivos foram introduzidas novas leituras da cidade. Nessas leituras, os espaços urbanos passaram a ser vistos
sob novos vieses, particularmente por seus freqüentadores e outros sujeitos
de desejo pelo mesmo sexo que sabem de sua existência, mas não o freqüentam: “hétero” ou “homossexuais”.
A proposição libertária e protetora desses lugares articulados em torno do desejo pelo mesmo sexo, além de incidir sobre a experiência na e da
cidade levada a termo pelos sujeitos, também se estendeu – e o faz até hoje
– à leitura que os sujeitos fazem de si e dos outros, encontrando estreita
relação com as referências de masculinidade e de papéis sexuais dentro
mesmo das sociabilidades organizadas pelo desejo pelo mesmo sexo, como
é possível perceber na fala de Wellington.16 Ele diz:
(...) uma coisa que me espanta muito, me estranha muito, e talvez nisso eu seja careta,
não sei se te interessa saber disso, mas... quando eu comecei a ir em boate aqui os
papéis eram mais definidos, quem é homem... [neste ponto, o depoente interrompe a
narrativa bruscamente e faz uma pausa curta, mudando o tom de voz em seguida]
Quem é ativo e quem é passivo, vamos colocar assim, de uma maneira mais grosseira.
E hoje, não: você vê rapazinhos super-delicadinhos que são ativos e machos que são
super-passivos. E há dez anos atrás isso era mais definido. Você chegava na boate e
você sabia quem era quem. Você não ficava, como diz uma amiga minha, não ficava
dando varada n’água. [risadas] Você sabia... [grifos meus]
Wellington nasceu em uma cidade pequena próxima a Pouso Alegre,
em 1965. Penúltimo de nove irmãos trabalha como professor da rede pública estadual e mora em Pouso Alegre há pouco mais de uma década. A exemplo de Tony, Airton e José Mário, também conheceu diversas cidades maiores antes de estabelecer-se na cidade, tendo saído de sua cidade-natal na
juventude para cursar graduação no interior do estado de São Paulo.
Depois de graduado, morou em várias cidades pequenas do sul mineiro e depois no interior paulista, em Taubaté, São José dos Campos e
Pindamonhangaba. Foi nessas cidades que conheceu as boates e a “vida
gay”. Para ele, muita coisa mudou desde que se estabeleceu em Pouso Alegre e começou a freqüentar a boate “gay” da cidade, lugar o qual, segundo
explicou, deixou de marcar presença, restringindo suas idas a ocasiões isoladas. Considera-se assumido publicamente, mas, segundo afirmou, não é
do tipo que “levanta bandeiras”, considerando-se muito reservado.
A narrativa de Wellington explicita algo presente nas entrelinhas de
todas as outras falas trabalhadas: a concepção binária de sexualidade e a
referência hétero-normativa perpassando a vivência urbana e a construção
de sentido seja para as relações sociais, seja para o entendimento dos próprios sujeitos no mundo.
16
WELLINGTON, quarenta e um anos, solteiro, professor. Entrevista realizada em 16 de novembro de 2005.
Aprox. 60 minutos.
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ASSIS, Eduardo Moreira. Fazendo a linha”: masculinidade(s) e desejo pelo mesmo sexo...
Tal entendimento tem a ver com a complexa relação entre papéis
sexuais e identidade de gênero, colocada em termos diretos pelo depoente
ao estabelecer a associação entre atividade sexual e masculinidade. E mais
ainda, ao pensar essas duas instâncias enquanto sinônimos. Esta concepção
é de extrema evidência pelo modo como a narrativa é organizada: “papéis
mais definidos”, a possibilidade de saber “quem é homem...”, a pausa e a
conexão: “quem é ativo e quem é passivo”, “saber quem é quem”.
Existem outros efeitos produzidos pela referência hétero-normativa
sobre a sexualidade e o entendimento que os sujeitos constroem de si e dos
outros. Aqui, parte-se da dinâmica dos espaços lúdico-festivos e de casos
específicos para chegar à problematização do binarismo da sexualidade,
percebendo na maneira como alguns sujeitos refletem as práticas e as experiências do desejo pelo mesmo sexo sobre o asfalto uma de suas dimensões.
Isso se dá na medida em que são construídas novas significações
para os espaços urbanos e, a partir dessas significações, territorialidades
que imprimem sobre a cidade a referência hétero-normativa – com a qual os
depoentes negociam o tempo todo, através da qual também é possível saber
“quem é quem” de acordo com os lugares que freqüentam.
O fato de que em Pouso Alegre “antes não havia esse negócio de gay,
não-gay” não significa que a referência hétero-normativa não fosse latente.
Pelo contrário. Quando José Mário conta que ia à zona com seus amigos
para se divertir, eles iam a um lugar voltado exclusivamente para a sexualidade masculina, no qual “mulher decente” não entrava.
O uso do espaço da zona por José Mário e seus amigos é diferente. E
ele deixa bem claro essa diferença ao explicar que não havia envolvimento
sexual com as mulheres por não ser “sapatão”. Em um território freqüentado por “homens”, existente por conta dos “homens”, José Mário percebiase como o “outro da masculinidade” (OLIVEIRA, 2002, p. 70) e em sua
narrativa o exprime enquanto tal, já que “sapatão” se enquadra na experiência do desejo pelo mesmo sexo entre mulheres.
Já os amigos de Airton exercitavam suas sexualidades, poderes e jogos de sedução no ambiente das quermesses, em conformação com essa
concepção de si mesmos como “outros da masculinidade” ao procurarem
naquelas festividades sujeitos que encarnassem para eles o sentido “verdadeiro” da virilidade. E este homem para eles, chamado de “bofe”, nada mais
era que aquele homem que faz sexo com outros homens desempenhando o
papel de ativo na relação sexual, mas que não se reconhece “homossexual”.
É alguém “fora do ‘meio’”, expressão que comumente denomina as sociabilidades orientadas pelo desejo pelo mesmo sexo e quem delas não faz
parte. Daí decorre o grande estranhamento com as boates, experimentada
por eles em São Paulo como um lugar no qual não conseguiam encontrar
aquele tipo de homem que procuravam – e que, poucos anos depois, chegaria a Pouso Alegre.
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“QUEM É QUEM”:
DESEJO PELO MESMO SEXO
215
E REFERÊNCIA HÉTERO-NORMATIVA
Embora Tony promovesse um espaço para que as “bibas mostrassem
o que eram sem medo e sem repressão” com suas festas, a censura que
tentava combater ganhou outros contornos dentro das sociabilidades e dos
ambientes lúdico-festivos protetores e libertários originados justamente como
contraponto a ela. No interior das sociabilidades orientadas pelo desejo pelo
mesmo sexo, re-significadas, refinadas, bastante sutis e fortemente baseadas no deboche, essa “censura” orienta uma adequação a um padrão de
comportamento mediado pela referência de masculinidade que emana da
“heterossexualidade”, como se observa na reação de Wellington ao explicar
que antes não se dava “varada n’água”, ou, ainda, introduzir diferentes categorias de “homossexuais” através dos “rapazinhos super-delicadinhos”
que são ativos e dos “machos que são super-passivos”.
A “repressão” referida fica nos termos de uma forma de entendimento que alguns sujeitos têm de uma espécie de “coerência assimétrica” entre
prática sexual e identidade de gênero: afeminamento–passividade, masculinidade–atividade. Assim, mesmo que os ambientes lúdico-festivos17 tenham introduzido novas formas de experimentação identitária, conforme
descortina a fala de Wellington, mesmo que a militância gay brasileira venha discutindo desde as décadas de 1970 e 1980 formas mais igualitárias de
relação entre pessoas de mesmo sexo visando, justamente, minar a
dicotomização “bicha-bofe”, esta dicotomia ainda existe por conta da referência “heterossexual” que valida a explicação da “homossexualidade” como
seu contrário e a referência modelar de masculinidade (FRY e MACRAE,
1991, p. 49-54), com a qual todos os sujeitos negociam suas subjetividades.
Nessa lógica binária, hétero-normativa por excelência, a “heterossexualidade” é pensada como referência, como algo natural, coisa que a sexualidade não é. A sexualidade e as identidades sexuais se enraizaram como
dados da Natureza de uma maneira tal a partir da segunda metade do século
XIX que, no século XX – e neste, conseqüentemente – nem a “homossexualidade” e muitíssimo menos a “heterossexualidade” são pensadas
comumente enquanto construções sociais, enquanto categorias cheias de
história (JAGOSE, 1996, p. 17).
Os termos estão entre aspas por uma questão simples: para desconstruir
e problematizar a história que carregam. Foucault identificou e assinalou a
construção das identidades sexuais no século XIX, quando a sodomia entre
homens deixou de ser uma prática para dar origem a uma série de classifica17
Ambientes lúdico-festivos são formulações pensadas para agrupar bares, boates, festas e quaisquer outros espaços ou eventos cuja proposta seja de divertimentos voltados para os sujeitos de desejo pelo mesmo sexo.
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ASSIS, Eduardo Moreira. Fazendo a linha”: masculinidade(s) e desejo pelo mesmo sexo...
ções produtoras de “espécies sexuais” e da patologização dos sujeitos agrupados sob esses novos rótulos (FOUCAULT, 2001, p. 43-44).
É dessa forma que surge a palavra “homossexual”. Cunhado em 1869,
o termo tinha a intenção de despatologizar o desejo pelo mesmo sexo, mas
caiu nas graças da Medicina Legal e foi difundido principalmente no começo
do século XX enquanto sinônimo de doença, engrossando o caldo das teorias
eugenistas em voga desde o fim do oitocentos. O que o termo tem de tão
questionável é justamente a associação com Natureza (TORRÃO FILHO,
2000, p. 166), usada como argumento de defesa por seu criador, um tiro que
saiu, como se viu, pela culatra, quando a mesma “natureza” serviu para endossar a “heterossexualidade” em detrimento da “homossexualidade”.
Da mesma maneira, a “heterossexualidade” tem uma história bem
parecida com a do termo ao qual serve de contraponto. Como a palavra
“homossexual” surgiu para denominar os homens praticantes da sodomia
entre si, “heterossexual” veio no sentido de classificar o comportamento
sexual excessivo de homens que faziam sexo com mulheres, em 1888
(SPENCER, 1999 ou 2002, p. 12).
Já o triunfo da “heterossexualidade” como norma deveu-se sobremaneira à consolidação dos valores burgueses no oitocentos, cuja moral levou
a preocupação com produtividade para o seio das relações familiares. O
biologicamente reprodutivo foi ligado ao desejo pelo sexo oposto e socialmente sancionado, contribuindo para que o desejo pelo mesmo sexo fosse
declarado ilegítimo e associado à degenerescência, lançando as bases para
que a percepção da “heterossexualidade” como “regra” enraizasse-se no
senso comum, assim como a do desejo pelo mesmo sexo enquanto manifestação “anormal” da sexualidade (MISKOLCI, 2002/2003, p. 110).
Tal concepção hétero-normativa é produtora de desencaixes subjetivos nos sujeitos, já que nessa lógica as sexualidades que não se enquadram,
conforme Butler, numa “inteligibilidade do gênero” pautada pela unidade
entre os gêneros, o sexo biológico, o desejo e a prática sexuais, são colocadas em oposição à “heterossexualidade”, cuja unidade e sentido funcionam
exatamente por esta oposição (BUTLER, 2003, p.38).
O gênero como conjunto de papéis sociais culturalmente constituídos relativos a masculino e feminino precisa ser compatível ao sexo biológico de determinado sujeito enquanto a prática sexual e o desejo deste precisam ser dirigidos a outros sujeitos com gênero e sexo biológico diferentes
dos seus. Colocando de outra forma, o macho precisa ser masculinizado,
sentir desejo por uma mulher e fazer sexo com uma mulher para ser homem
e o mesmo precisa acontecer com uma fêmea para que ela seja considerada
mulher. Esse é o sentido da inteligibilidade do gênero.
Ocorre que, de uma maneira bastante peculiar, essa inteligibilidade,
mesmo que inatingível, é repaginada pelas relações de mesmo sexo quando
o objeto do desejo é o “bofe”. Ou mesmo quando os papéis sexuais são
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“mais definidos”, como comentou Wellington. Existe nessas experiências
de definição a percepção de certo sentido entre prática e papel sexual pelos
sujeitos. Nessas relações faz-se notar uma oposição: os envolvidos na relação sexual não abrem mão de seus papéis e assim a hierarquia sexual é
preservada conservando também a identidade de gênero que os sujeitos
consideram-se detentores: o ativo como o “homem da relação” e o passivo
como a “mulher”, no senso comum.
Como a masculinidade modelar não se dissocia da inteligibilidade
do gênero, posto que a referência de virilidade ideal emane da “heterossexualidade” (BADINTER, 1993, p. 36), colocar-se como o “outro da masculinidade” significa posicionar-se em uma zona cinzenta na qual o sujeito às
vezes não consegue definir sua identidade, confrontando-se com uma subjetividade desencaixada, como é possível apreender no trecho do depoimento de José Mário citado abaixo. Ele fala o seguinte:
(...) É estranho... por que você não sabe se é homem ou mulher. É estranho. É uma coisa
meio surrealista. [risadas] Homem eu não sou. Mulher também não. E eu não vou sair
feito traveco por aí... não cabe... acho isso uma palhaçada. Não que eu tenha preconceito, não censuro, mas é que ao mesmo tempo eu acho engraçado. E por outro lado, ser
homem... Sou homem fisicamente, mas sou mulher psicologicamente! Eu gosto de homem, meus gostos são bem femininos. São detalhes, arrumação, gênio. Homem não tá
nem aí, deixa tudo desarrumado. O que mais? É muito estranho, né? [grifos meus]
Em José Mário, as características que ele relaciona e considera “coisa de mulher” colaboram para que o entendimento que tem de si o posicione
nem como mulher, nem como homem ou, em alguns momentos, as duas
coisas ao mesmo tempo. E vale lembrar que, páginas adiante, ao dizer não
ser “sapatão” por não manter relações sexuais com as prostitutas na zona,
nas entrelinhas, deixou uma representação de si como figura feminina. No
trecho selecionado, no entanto, julga “palhaçada” e “engraçado” alguém
que se veste com roupas femininas, ao mesmo tempo em que avalia para si
esta atitude como algo que “não cabe”.
No meio de toda essa viagem que faz sob sua pele, o questionamento
sobre o que é ser homem emerge – “por outro lado, ser homem...”, ele diz –
e é algo que ele mesmo não consegue responder senão colocando-se em
exterioridade, tanto pelos “atributos femininos” como pelos seus objetos de
desejo e prática sexual, à virilidade. É como se o “psicológico” fizesse dele
tão somente, a despeito de seu corpo, algo que não homem. Como a referência de virilidade da qual parte é idealizada e inatingível, desconsidera a
sua própria masculinidade quando comparada ao modelo. Uma masculinidade que é apenas diferente do modelo no qual o depoente foi criado e no
qual é marginalizado.
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ASSIS, Eduardo Moreira. Fazendo a linha”: masculinidade(s) e desejo pelo mesmo sexo...
“SEM MEDO E SEM REPRESSÃO?”
MASCULINIDADES, POLICIAMENTO, “DISCRIÇÃO”
É palpável que existe um problema nessa referência de masculinidade experimentada pelos sujeitos, a que serve de exemplo o trecho selecionado da fala de José Mário. Essa referência é algo que se aprende desde
muito cedo, porque desde pequenos os meninos são instruídos a ser homens
e a se portarem como “homens” através de um processo caracterizado pela
valorização da agressividade e superação da dor (WELZER-LANG, 2001,
p. 460-482). Em diversas sociedades tribais a dor física é tida como rito de
passagem e a agressividade como orientação comportamental e característica atribuída aos homens. Na cultura ocidental moderna, o esporte assumiu
essa conotação do confronto e da experiência de agressividade e sofrimento, um aprendizado que se inscreve no corpo dos sujeitos (OLIVEIRA, 2002,
p. 245). A introspecção e as atividades tidas como “caseiras”, tranqüilas,
tomadas como atributos destinados à mulher, o “sexo frágil”, a quem se
destina o espaço privado, o cuidado com a casa, com os filhos e o exercício
das prendas domésticas, aparece como contraponto dessa experiência bruta
e embrutecedora.
Perceber-se não contemplado por esses valores, além de uma sensação de deslocamento na identidade de gênero, alimenta um policiamento de
si com relação ao exercício dessa masculinidade – um policiamento que
notado mesmo sobre aqueles que se encaixam na inteligibilidade do gênero, de modo que não fujam da “regra” –, para o que é significativo o depoimento de Vladimir18 quando diz:
(...) todo mundo que me conhece mais um pouco deve desconfiar de alguma coisa,
porque eu tenho todos os dons de uma dona de casa. Cara, eu lavo, passo, cozinho,
cuido das crianças. Quantos homens você conhece que se separaram e ficaram com os
filhos? Nossa Senhora, eu tenho horror quando eu vou numa casa e tem aquele marido machão. Nossa, nada a ver! Você tem que fazer tudo! Mas não por isso eu sou gay.
Não necessariamente isso me caracteriza ser gay. [grifos meus]
Nesse trecho da narrativa de Vladimir o que chamou a atenção foi
tanto a preocupação com a reação ou desconfiança de pessoas de seu círculo com relação a suas preferências sexuais, quanto à necessidade que o depoente tem de se colocar em exterioridade à identificação como “gay”. A
prática de relações sexuais com outros homens em momento nenhum é
mencionada como elemento que possa conduzir ao enquadramento do depoente junto a uma “identidade homossexual” por outrem, mas sim a
somatória dos atributos “femininos”, dentre os quais ele assinala a guarda
18
VLADIMIR – 40 anos, divorciado, micro-empresário. Entrevista realizada em 18 de novembro de 2005. Aprox.
100 minutos.
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de seus filhos quando questiona o pesquisador: “quantos homens você conhece que se separaram e ficaram com os filhos?” [grifo meu].
Existe na experiência de Vladimir algo significativo: no depoimento
ele posiciona essa relação de habilidades que seriam “coisa de mulher” no
âmbito do privado, que é onde a suspeita mencionada por ele ronda. Até
porque, para que faça sentido é preciso que a pessoa que desconfia o conheça “mais um pouco”. Em contrapartida, em seu ambiente de trabalho – uma
loja de acabamentos para construção civil – foi possível observar em que
medida os sinais redundantes de masculinidade emitidos por ele mantêm à
distância qualquer possibilidade de ser percebido como outro da masculinidade: as piadas homofóbicas são constantes com seus funcionários; interpelações como “seu viado”, “sua bicha” e “seu gay” fazem parte do cotidiano na loja, principalmente enquanto seu filho esteve presente.
Nascido em uma cidade vizinha a Pouso Alegre em 1964, Vladimir
viveu boa parte de sua infância na roça da família, junto com sua irmã mais
nova, seu pai e sua mãe, até que aos dez anos mudaram-se todos para Pouso
Alegre para que pudessem estudar em escolas melhores.
Seu pai aposentou-se como técnico da Cemig, a Companhia de Energia do Estado de Minas Gerais, e sua mãe sempre atuou como dona-decasa. Ele concluiu o Ensino Médio, prestou serviço militar por quase um
ano, trabalhou na Prefeitura de Pouso Alegre, depois em um banco privado
que o transferiu para São Paulo. Retornou a Pouso Alegre aos vinte e três
anos, montou uma agência de publicidade, conheceu sua ex-mulher e ficaram casados entre 1991 e 1999. Tiveram dois filhos, uma menina e um
menino, hoje com dezesseis e treze anos respectivamente, dos quais, desde
o divórcio, tem a guarda.
Por conta de toda a vida familiar e da guarda de seus filhos, pensa-se
como “enrustido” e considera uma impossibilidade a assunção pública de
seu desejo pelo mesmo sexo. Tem “medo” que seus filhos saibam de suas
preferências sexuais. Vive, segundo ele, “do trabalho para a casa e da casa
para o trabalho”, “para os filhos”. Dessa forma, quando confrontado com o
desejo, já chegou a recorrer à Internet para conseguir parceiros por conta do
anonimato associado às salas de bate-papo e aos encontros às cegas. Recordando a experiência, ele conta:
(...) eu entrei numa sala de bate-papo aqui. Eu entrei aqui, mas aconteceu em outra
cidade, foi no sul de Minas mesmo. Eu perguntei: “de que cidade você é?”.
“Paraisópolis”. E aí ele disse: “cara, eu sou assim... tô acostumado a dar, pa-pa-pa,
faço isso, faço aquilo”. E você vai fazendo a imagem do cara, né?! Ele perguntou
como eu era, eu falei: “olha, tenho o peito todo cabeludo”. “Nossa, eu adoro homem
peludo”. Eu falei: “escuta, qual o seu telefone, vou ligar aí agora”. Ele deu, eu liguei
e perguntei quantos quilômetros dava de Pouso Alegre a Paraisópolis. 60km. Eu disse: “to indo pr’aí agora”. Desliguei o telefone e fui pra lá. Putz... A hora que o cara
chegou perto do carro não era nada daquilo e eu quis morrer! Primeiro, porque eu não
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gosto de bicha. Você sabe diferenciar, lógico! O cara abria a boca e era só purpurina
que saía. Nossa, meu Deus, eu só pensava “como é que eu vou sair dessa?”. E o pior
é que eu não sei dar o fora... [risadas] [grifos meus]
Vladimir compôs um verdadeiro itinerário de cuidados: desde os
meios pelos quais viabilizar sua experiência sexual até a escolha – idealizada – do parceiro, passando pelo “detalhe” de o encontro ter-se realizado em
outra cidade, próxima de Pouso Alegre.
Tudo teria terminado bem não fosse o candidato a parceiro reunir
uma série de características desprezadas pelo depoente não só por uma questão de desejo, mas também por uma questão de auto-preservação: é preciso
ser exterior a todos os sinais que evoquem a estereotipia do “homossexual”
e o que, grande medida, contrapõem-se a essa representação presente no
senso comum é a masculinização dos comportamentos.
Não se afirma aqui que todo homem que faça sexo com outro homem, masculinizado, seja, como se considera Vladimir, “enrustido”. Nem
que todo “enrustido” tenha um comportamento masculinizado. O que se
observa neste estudo é justamente a função da masculinidade modelar e a
iniciativa de masculinizar-se ou exigir do outro que se masculinize. Esse
processo conforma um mecanismo de proteção, na medida em que, em oposição ao afeminamento é pensada como capaz de afastar os sujeitos de uma
identificação enquanto “bicha”, “viado”, “homossexual”, “gay”, ou qualquer outra forma de denominação chula ou politicamente correta que traduza o aprisionamento em rótulos (OLIVEIRA, 2002, p. 240).
Dentro da concepção idealizada de virilidade, existem coisas que um
rapaz deve aprender para se tornar um homem com êxito. Dor e agressividade
já foram mencionadas. A outra, e esta deve ser olhada atentamente, é
posicionar-se como referência à outridade da masculinidade, expressão do
desejo pelo mesmo sexo. Nessa lógica, um homem que sinta atração sexual
ou faça sexo com outro homem é, senão, um não-homem no senso comum.
Parte desse processo de aprendizado, a homofobia desempenha importante função para a construção do referencial modelar de homem e de sua
outridade. Ela funciona como um processo de discriminação, produtor de
marcações culturais que se dirigem contra aqueles que “... se afastam, ou... se
atribui algumas qualidades (ou defeitos) [marcação presente no texto citado]
atribuídos ao outro gênero” (WELZER-LANG, 2001, p. 465), cuja função é
deixar clara a diferença dentro de um grupo social que espera não haver casos
que se afastem das expectativas de pertencimento e identificação pautadas
em suas características particulares (GOFFMAN, 1988, p.14).
No caso do “ser homem”, esse estigma associam “... aos homossexuais os homens que apresentam sinais de feminilidade (voz, roupas, jeito
corporal) [marcação presente no texto citado]. Os homens que não mostram
sinais redundantes de virilidade [grifo meu] são associados às mulheres e/
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ou a seus equivalentes simbólicos: os homossexuais” (WELZER-LANG,
2001, p. 465).
Quando Vladimir diz “não gostar de bicha”, logo a seguir ele empreende um processo de estigmatização e assinala seu candidato a parceiro
como sua outridade. A estigmatização se dá em duas frentes: primeiro, ao
situar os termos dessa outridade – “você sabe diferenciar, lógico!”; em seguida, através da metáfora, posiciona o sujeito fora do masculino
dimensionando nele o afeminamento – “o cara abria a boca e era só purpurina
que saía”.
Não se trata de um processo simples esse de estigmatização pautado
na masculinidade modelar. Basta observar como essa masculinidade é valorizada, inclusive, por aqueles contra quem a homofobia se dirige com mais
força, quer sejam aqueles homens que fazem sexo com outros homens encarados por outros – e às vezes por eles mesmos, embora seja mais difícil
alguém se admitir enquanto tal, conforme foi possível observar – como
afeminados.
No depoimento de Vladimir, o possível parceiro demonstra um especial fetiche por homens peludos, másculos e ativos, mas não diz a ele sobre
a possibilidade de não corresponder às suas expectativas; no depoimento de
Airton, seus amigos procuram justamente aqueles rapazes que se opõem à
estereotipia do sujeito que deseja o mesmo sexo e se submetem à relação
hierárquica que os usa e depois se volta contra eles.
Dentro das sociabilidades orientadas pelo desejo pelo mesmo sexo,
conforme foi apreendido do conjunto das narrativas biográficas registradas,
o cuidado ou a exterioridade com relação ao afeminamento é medido através da discrição que determinado sujeito consegue ter, uma medição que é
sempre relacional. Lucas19 explica essa relação:
(...) Eu sempre achei que eu era discreto. Isso é o que eu penso. Tem pessoas que me
acham discreto. Outras me acham super discreto em vista de outras pessoas. Não sei
o que querem dizer com isso. Não sei quais pessoas elas conhecem ou que estão se
referindo. Tem pessoas que falam que a minha voz é meio afeminada. E eu me importo um pouco com isso, porque a minha voz não é bem a minha voz. Porque na adolescência, naquele período de transição, eu fiquei com um pouco de medo de ser homossexual e ter uma voz máscula. Então, eu meio que bloqueei psicologicamente pra não
amadurecer muito a voz. Aí, acabei ficando com essa voz meio que de criança, meio
afeminada. Então, o que me incomoda um pouquinho é a voz. Não só pelo que as
pessoas dizem, também porque eu não gosto. Eu acho que eu podia ter um outro
timbre de voz... mas não afeminado como as pessoas falam que é... [grifos meus]
Lucas nasceu em Pouso Alegre em 1985. Filho mais velho de uma
dona de casa e de “um aposentado da área administrativa”, como se restrin19
LUCAS, vinte e um anos, solteiro, estudante universitário. Entrevista realizada em14 de novembro de 2005.
Aprox. 40 minutos.
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ASSIS, Eduardo Moreira. Fazendo a linha”: masculinidade(s) e desejo pelo mesmo sexo...
giu a dizer, tem uma irmã adolescente. Costumava prestar alguns trabalhos
contábeis como office boy na época em que concedeu a entrevista e à noite,
estudava Direito em uma instituição particular, cujas mensalidades eram
pagas pelos pais. Reside em um bairro na periferia da cidade com a mãe,
divorciada de seu pai. Considera-se assumido para si, pois a família não
sabe de suas preferências e não há pretensão por parte dele em contá-las por
considerar, a exemplo de outros depoentes, uma atitude desnecessária.
Como essa “discrição” questionada por Lucas é algo presente em
todas as narrativas colhidas, não somente nas que são trabalhadas neste
texto, observar o grau de discrição de um homem que faz sexo com outros
homens compõe uma estratégia de reconhecimento de um igual e, a partir
daí, de valoração deste sujeito. Estabelecer a comparação é fundamental
para que esses homens possam situar suas próprias referências e empreender negociações junto desses variados graus de invisibilidade que os protege em suas múltiplas relações sociais.
Quando Lucas diz que há pessoas que o acham “discreto” e depois
outras que o acham “super-discreto em vista de outras pessoas”, esfumaçamse os limites dessas comparações. O que está em questão é a valoração de
condutas e corpos através da redundância de sinais de virilidade, cujo impacto sobre o depoente gera uma vontade de ter um timbre de voz mais
grosso, “másculo”, “não afeminado, como as pessoas falam”, e que tem a
ver com o seu “medo de ser homossexual” na adolescência.
Tal “discrição” que incide sobre os sujeitos produzindo neles ansiedades, expectativas e frustrações, igualmente volta-se para o desenho dos
territórios urbanos, na medida em que a capacidade de não ser percebido
também recai sobre os ambientes lúdico-festivos de Pouso Alegre.20
Nos bares dos anos 1970 e 1980, conforme assinalou José Mário, era
preciso não “dar bandeira”, mas a descontração e a bebida acabavam ajudando alguns homens a “se revelarem” quando já estavam “lá dentro”. Com
o risco de agressões físicas, concorria também a possibilidade de agressões
verbais, mais comuns,21 como as dirigidas a Alexandre na época em que ele
e seus amigos freqüentavam um desses bares. Ele diz:
20
De acordo com Tony e depoimentos informais, a primeira boate da cidade foi a de Tony. Em 1999 foi inaugurada
a boate Banana, que se valeu do espaço de uma casa noturna fechada no centro da cidade. Em 2000 o Banana foi
para a rodovia JK, no km 459, onde também funcionou outra casa noturna da cidade. O Banana encerrou suas
atividades em 2004. A partir de então, a boate foi administrada por diversos proprietários e mudou de nome
diversas vezes. Foram organizadas na cidade também, a partir de 2004, festas esporádicas em outros locais fora
da boate. Em 2005 foi inaugurado um bar, na periferia de Pouso Alegre, o Fama. E em 2007 outra boate, a Apple,
foi aberta para não durar um semestre.
21
Dos depoimentos coletados, foram poucas as experiências de agressão que disseram respeito a agressões físicas.
Conforme foi percebido, a maioria dos atos de preconceito foi levada a termo através de insultos, provocações,
piadas ou comentários desdenhosos. Em apenas três histórias de vida, de vinte e três, aparecem menções a agressões físicas.
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(...) Eu lembro uma vez que a gente estava no bar e teve um cara que virou e – a gente
tava muito saliente no bar mesmo – ele virou e falou: ‘Aquele cara lá é viado!’ Aí eu
virei e disse: ‘Você tá falando de mim?’; ‘É! Você é viado!’, na frente de todo mundo. Aí
eu peguei e falei, levantei da mesa e disse assim: ‘Eu provo pra você que eu sou viado,
agora, prova pra mim que você é macho, que você é homem. Vamos ver aqui qual de nós
dois é mais macho. [O rapaz:] ‘Eu posso te encher de porrada!’. [Alexandre:] ‘Eu também posso te encher de porrada! Tudo o que você fizer, eu faço. Agora, faz o que eu
faço, vamos ver quem de nós dois é mais macho’. Aí o povo veio apartar. Ele ficou
desmoralizado, todo mundo começou a rir e a bichaiada aplaudia! [grifos meus]
O depoente descreve a presença dele e de seus amigos no ambiente
com a palavra “saliente”. Saliência como metáfora para afeminamento e
exposição. Lembrando não se tratar de um espaço voltado para sociabilidades articuladas em torno do desejo pelo mesmo sexo, está implícito que a
“boa circulação” dos sujeitos que desejavam o mesmo sexo dependia de
uma capacidade para manterem-se invisíveis, de “fazer a linha”. O que prende
a atenção neste caso é tanto a relação do ocorrido com a trajetória de vida
do narrador, como o desfecho da agressão: a desmoralização do agressor
por não conseguir situar o agredido como sua outridade.
Alexandre tinha, no momento da realização do depoimento quarenta
e sete anos de idade. Não era pouso-alegrense e como outros depoentes,
nasceu e passou a infância em uma pequena cidade do sul de Minas próxima a Pouso Alegre, para onde foi com a família em mudança, aos 15 anos
de idade, para estudar. De lá saiu para fazer graduação em São Paulo.
Um dos vários dilemas que enfrentou nesse período dizia respeito à
escolha de seu curso superior. Considerava sua opção vocacional – voltada
para as Artes – como não sendo “curso de homem”. Começou um curso
distinto, mas desistiu e optou pela vocação. Terminou a graduação, retornou
a Pouso Alegre com vinte e seis anos e depois foi para o Rio de Janeiro,
onde passou alguns anos até voltar novamente a Minas, no começo da década de 1980.
Atualmente, não trabalha diretamente com a área na qual se formou:
é proprietário de uma micro-empresa de eventos. Mora com os pais, que
possuem idade avançada e estão sob seus cuidados. É o quarto irmão de
cinco filhos, os primeiros três, mulheres, depois ele e outro rapaz. Considera-se assumido, mas nunca falou aos pais sobre sua orientação por considerar não haver necessidade de se tornar nada explicito para eles.
Alexandre teve uma relação “difícil” com sua sexualidade no começo de sua adolescência, conforme ressaltou. Na época em que estudava no
Rio, começou a fazer psicoterapia e sentiu que sua vida e sua auto-estima
cresciam a passos largos. Quando voltou a Pouso Alegre, já havia experimentado toda a efervescência da vida “gay” carioca e sentia que a cidade
sul-mineira o aprisionava. Foi quando decidiu, de acordo com suas palavras, “radicalizar”, optando pelo afeminamento como estratégia de agres-
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são, visando devolver todo o preconceito recebido à sociedade. Por essa
razão, ele e um amigo faziam questão de passear pela avenida principal da
cidade quando saiam do curso de balé vestindo malha e sapatilha, com o
intuito de “escandalizar”.
No bar, quando o agressor se dirige a ele, no sentido de humilhá-lo, o
revide é imediato. Alexandre devolve para seu agressor a tarefa de provar o
que fazia dele menos homem que aquele que o insultava. A chave da provocação de Alexandre era mostrar que não era o fato de seu desejo dirigir-se a
outro homem que o fazia menos viril. Muito menos o fato de estar “saliente” no bar, já que aquela condição de nada o impedia de fazer tudo o que seu
agressor fizesse, inclusive partir para o embate físico.
É importante perceber que o afeminamento, da mesma forma que a
masculinização, é uma construção social e uma experiência contextualizada,
nada tendo que ver com natureza. Até porque, em outro momento de sua
narrativa Alexandre assinala que agredir as pessoas com sua “saliência”
deixou de fazer sentido em sua vida, adotando, por sua vez, um estilo mais,
conforme palavra sua, “discreto”. A mesma distinção referida pelos depoentes para preservarem-se.
Essa “discrição” tem servido a Alexandre recentemente em suas estratégias de conquista afetivo-sexuais. Pelo fato de ser muito conhecido na
cidade e trabalhar com uma clientela que ele classifica como “classe A”,
prefere ir para os bairros de periferia para obter parceiros sexuais, já que,
explicou-se, em ambientes centrais não conseguiria nem mesmo sentar-se a
uma mesa por conta dos cumprimentos que dispensaria às pessoas de tão
conhecido que é.
Nos bares de periferia visados pelo depoente os sujeitos abordados
por ele apresentam-se e consideram-se “heterossexuais”, o que não é empecilho, no entanto, para alguma experiência sexual sempre alcançada depois
de uma “boa conversa”, conforme revela:
(...) Eu tenho um segredinho: se a coisa tá muito difícil eu pego e falo assim: ‘escuta,
se eu te cantasse, como que você iria reagir?’. E eu, antes que ele me diga que me
encheria de porrada, eu digo: ‘ó, eu não estou te cantando, eu digo ‘se’’. Aí, pra bom
entendedor, meia palavra basta. Lógico que depois de um bom papo. Tudo depende
da sedução. E é impressionante como muda na hora, porque é assim: essas pessoas
têm convicção que são héteros. Se ela sai com um gay, o viado é sempre o outro. Ele
não consegue assumir que está tendo uma relação homossexual ali na hora. É uma
relação entre dois homens e o que é isso? Então é aquela coisa, assim, batida: viado é
só aquele que tá dando. (...) Mas eu já transei com muita gente, assim, numa boa, eles
virando pra mim [risadas]. Não ligo, até gosto, mas pra eles o viado ali era eu, nunca
eles, sabe? Quando é sexo por sexo, aí acabou, não tem mais nada. [grifos meus]
Através dessas experiências relatadas por Alexandre é possível perceber uma relação complexa estabelecida entre a experimentação de dife-
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rentes territorialidades e os tipos de masculinidade exigidos em cada uma
delas pelos sujeitos envolvidos.
A identificação dos lugares e de seus freqüentadores define os territórios pelos quais os sujeitos deslizam constantemente, ao mesmo tempo
em que existe um cuidado de vários sujeitos para não serem fixados em um
único tipo de território ou identidade, de modo que seguem experimentando diferentes códigos-territórios, de acordo com as redes de sociabilidade
nas quais se inserem (PERLONGHER, 2005, p. 276), tais como família,
trabalho e amigos.
A agressão sofrida por Alexandre no bar é uma forma de marcação
realizada no sentido de assinalar quais sujeitos estão fora ou dentro de seus
lugares. Apontar o outro como “viado”, além de desqualificá-lo enquanto
homem significa, também, excluí-lo de uma experiência na cidade, na medida em que fica subentendido com a “saliência” que a diferença não é bem
vista senão quando invisibilidade.
Décadas depois, Alexandre vem experimentar a invisibilidade não
como pressão, mas como estratégia de conquista, bem como proteção de
suas relações de trabalho. Apesar de explicar que todo o seu círculo social
sabe de suas preferências, ainda assim prefere manter sua “discrição”, exercendo seus jogos de sedução e trocas sexuais na periferia, longe dos olhares
ou da exposição escolhida como afronta.
Esse homem que se pensa “heterossexual”, mas que às vezes se coloca na posição de passivo nesses contatos fortuitos entende o outro da relação como “viado”, conforme relata Alexandre, porque é a obtenção do prazer a única coisa que importa – “quando é sexo por sexo, aí acabou, não tem
mais nada”, diz ele – e atingido o gozo, devolvem-se para a concepção de
masculinidade idealizada que de maneira ambígua permeia a existência de
ambos, mesmo sem perceberem-na.
Na experiência de Alexandre pelos bares de periferia, embora a
homofobia mire o “outro da masculinidade”, não são exatamente as práticas sexuais com outros homens os seus alvos, mas o afeminamento e aqueles sujeitos que o conformam, na medida em que é preciso estar em exterioridade ao feminino para que o risco de ser considerado “homossexual”
não exista. E essa exterioridade é, não raro, manter-se invisível. No contexto da periferia, Alexandre é o “estrangeiro” e essa exterioridade é o que
ajuda a validar, inclusive, a exterioridade do seu parceiro à “identidade homossexual”; no contexto de Alexandre, é melhor que seu parceiro fique
longe do escrutínio de seus círculos, preservando-lhe a discrição.
ARREMATE
Existe uma preocupação muito forte com relação à masculinidade
em si e nos outros presentes na fala dos depoentes. Uma preocupação que
conduz à formulação da “discrição” como mecanismo de proteção e ao
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mesmo tempo como instrumento de avaliação de outros homens que fazem
sexo com outros homens.
O que essa “avaliação” reflete, no entanto, é a multiplicidade das
masculinidades colocadas sob análise e julgamento, até porque, o grau de
discrição obedece a uma escala relacional. E essa relação não tem parâmetro,
pois ao se considerar a masculinidade descolada do ideal de virilidade emerge
distintas maneiras de ser homem e a expressão delas sem o medo e sem a
repressão que partem de dentro para fora e não do sentido contrário.
Como cada depoente traz consigo uma história e um conjunto de
valores e vivências experimentadas não só em Pouso Alegre, mas em diversas outras cidades, é possível apreender os conflitos entre a dinâmica de
vida dos contextos urbanos maiores nos quais viveram e a dinâmica de uma
cidade que somente se industrializa na década de 1970, e que até hoje é
influenciada pelo conservadorismo religioso. É possível apreender ainda
como a formação familiar na qual foram criados contribui para um cuidado
com a imagem de si e aquilo que devem ou não os pais saberem de seus
filhos.
Como a performance dessa masculinidade modelar encontra sempre
alguma razão de ser para funcionar como proteção, mais que como discriminação, cabe aqui questionar a referência hétero-normativa e seus efeitos
sobre a experiência do desejo pelo mesmo sexo, sobre a formação de subjetividades, sobre a existência em constante negociação, sobre, enfim a formação de enredos que se inscrevem sobre os corpos dos sujeitos como formas de relação com o mundo.
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RESENHA
LEMERCIER, C.; ZALC, C. Méthodes quantitatives pour l’historien. Paris: La Découverte, 2008. (Collection Repères).
Maria Helena Rocha Antuniassi*
As autoras são pesquisadoras do CNRS, do Institut d’Histoire
Moderne et Contemporaine e professoras da École Normale Supérieure, da
rua d’Ulm, e da École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris –
França
O objetivo da obra é familiarizar os leitores com os diversos usos da
quantificação na prática da pesquisa histórica, mostrando as possibilidades
e os limites na sua utilização, tendo em vista contribuir para a formação de
leitores críticos das pesquisas quantitativas, sem fetichismo nem fobia aos
números.
As autoras deixam claro que a quantificação não é um fim, mas, sobretudo, um instrumento, entre outros. Consideram que os historiadores
continuam a receber uma formação literária que os afasta da utilização dos
números, mas que está na hora de reverter essa situação, pois a não utilização dos métodos quantitativos deve resultar de uma decisão com conhecimento de causa e não da ignorância. Assim sendo, trazem uma proposta
essencialmente prática, que propõe um diálogo entre problemas concretos
de pesquisa e questões históricas, diálogo originado da experiência adquirida durante vários anos de trabalho. Pretendem mostrar que a aquisição de
uma cultura geral dos problemas de quantificação permite aguçar o senso
crítico do pesquisador para melhor explorar certas fontes e visualizar questões fundamentais da disciplina.
Com base nessas questões, as autoras explicitam em seis capítulos
suas propostas de por que contar e como escolher os métodos quantitativos.
No primeiro capitulo, “A história quantitativa, do apogeu à crise”,
as autoras tecem considerações sobre a utilização do método como moda,
tendo o apogeu nos anos 60 e 70, declinando nos anos 80 a 90 pela
*
Professora titular da UNESP, pesquisadora do NAP/CERU/USP.
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Resenha
banalização de sua utilização ligada apenas à distinção conferida por sua
utilização, muitas vezes, sem conhecimento de causa. É a época do “retorno
ao indivíduo”, em que a narração muitas vezes é vista como antagonista do
quantitativo, em que uma grande parte dos historiadores deseja dar mais
atenção à experiência vivida pelos atores e a suas capacidades de ação. Os
excessos da quantificação acabaram por contribuir para o seu descrédito.
As autoras consideram que, neste momento, caminha-se para uma
renovação “contar para melhor pesquisar”, sendo a quantificação vista como
a possibilidade de afinar uma hipótese, como estratégia para sair de uma
afirmação muito geral, que pode ser vista como uma simples opinião.
No segundo capítulo, “Face às fontes, ao corpus e às amostras”, por
meio de uma série de comentários e exemplos, as autoras discutem:
– a diversidade das fontes quantificáveis,
– biografia e quantificação,
– o questionário e o historiador,
– micro história e fontes nominativas,
– amostra e significação:
quantos casos levar em conta,
amostra e comparação e
como escolher uma amostra.
.
.
.
A discussão de todos esses itens é realizada a partir de exemplos
concretos de pesquisa, mostrando, inclusive, como apresentar resultados
em porcentagens, análise de variância e utilização de que quadrado. (x2)
O terceiro capítulo se refere às fontes e dados. “das fontes aos dados” com uma atenção especial a codificação. Ao discutir a problemática
da fonte e da codificação dos dados, as autoras mostram que a transformação da fonte “bruta” em dados quantificáveis passa por duas grandes etapas: de uma parte o levantamento dos dados que consiste em retranscrever
o arquivo no seio de um documento informatizado, e de outra parte, a
codificação que modifica as informações recolhidas para constituir as categorias, mais ou menos homogêneas, a fim de tornar possível um tratamento
quantificado.
Elas alertam para o fato de que a confusão dessas duas etapas está na
origem de inúmeras criticas à quantificação, portanto é muito importante
distingui-las com clareza.
Assim como no capítulo anterior, toda a discussão do levantamento
de dados, categorização e codificação é realizada em torno de exemplos
concretos de pesquisas de forma bastante esclarecedora.
No quarto capítulo, as autoras se referem ao problema de “contar as
palavras e explorar os textos” e a discussão gira em torno da seguinte questão: Por que contar em vez de interpretar? As autoras consideram que reduzir o sentido de um texto aos efetivos seria realmente um absurdo. Entretan-
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to, o quantitativo pode levar o pesquisador a ler um texto de outra forma,
isto é, de maneira mais controlada e, portanto, formalizar um percurso interpretativo.
Tudo indica que, para as autoras, o importante é fazer uma leitura
controlada. Consideram que, em relação aos modos de leitura e interpretação habituais, a utilização de softwares especializados permite assegurar
que certos resultados poderão ser obtidos de forma idêntica e em tempos
diversos por outros pesquisadores. O grau de certeza dos resultados pode
assim ser mais bem avaliado. Na verdade, não se considera que os resultados obtidos com base em métodos quantitativos sejam mais “verdadeiros”,
o importante é que eles podem ser discutidos sobre bases mais precisas.
Nesse capitulo são particularmente interessantes as observações que as autoras fazem sobre a escolha dos softwares, tendo em vista os objetivos da
pesquisa e o tamanho e tipo de texto a ser trabalhado.
No quinto capítulo, “Das correlações às causalidades”, a discussão
gira em torno da análise fatorial: Análise fatorial de correspondências
Análise em componentes principais
Análise das correspondências múltiplas
As autoras lançam mão de inúmeros exemplos de utilização da análise fatorial, entre eles alguns extraídos das obras de Bourdieu, largamente
conhecidos pelos historiadores. “As representações gráficas da análise
fatorial se harmonizam bem com a idéia de uma estrutura de espaço social,
orientado por dois eixos, por exemplo, segundo o capital econômico e o
capital cultural.”1
No subitem “voltar aos indivíduos”, as autoras chamam a atenção
dos leitores para o fato de que, na sua utilização em história, a análise fatorial,
freqüentemente, tem sido considerada uma técnica de descrição de grandes
estruturas, quando, na realidade, ela permite um vai-e-vem interessante entre uma visão de conjunto e as posições individuais, sobretudo na criação
de tipologias. Nesse caso o software projeta os indivíduos sobre o plano
fatorial, considerando-os como variáveis suplementares.
No capitulo seis, “Quantificação, redes e trajetórias”, amparadas por
um grande número de exemplos, extraídos de obras de autores consagrados, as autoras discutem a questão em dois grandes itens: “rede, indivíduos
e estruturas”, que trata de dados relacionais, e “estudar as trajetórias”, no
qual discutem causalidades e temporalidades (análise de seqüências). Nos
dois itens são apresentados exemplos de tabelas e gráficos bastante
esclarecedores.
As análises estruturais de rede visam iluminar a estrutura das relações de um conjunto pré-determinado de indivíduos e, portanto são particularmente, úteis quando o pesquisador se interessa pelas relações internas de
.
1
Bourdieu, P. La Distinction. Paris: Minuit, 1979.
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um grupo constituído, como uma empresa ou uma associação, por exemplo; enquanto a análise de seqüências permite levar em conta variáveis explicativas que mudam no tempo, por exemplo, os efeitos do casamento sobre a passagem das mulheres do emprego à inatividade, conforme pesquisa
de Grimm e Bonneuil (2001).2
Na conclusão, as autoras reafirmam o otimismo nas possibilidades
do método quantitativo alertando para o fato de que a escolha de escalas e
modelos deve estar ligada a postulados sobre o papel histórico e social das
instituições, das normas dos indivíduos e das classes. Reafirmam que, de
fato, a quantificação não evita erros e manipulações, mas apresentam a vantagem de obrigar o pesquisador a explicitar escolhas e procedimentos, na
medida em que força a explicitação das hipóteses, a tomar consciência dos
limites e a lançar um novo olhar sobre as fontes, sobretudo quando elas
colocam dificuldade para o levantamento de dados e codificação.
Na verdade, o livro não é um manual, é exatamente o que as autoras
salientam, um incentivo à utilização dos métodos quantitativos pelos historiadores, mostrando que a quantificação, longe de impedir a criatividade e a
inventividade do historiador, pode, ao contrário, as estimular.
Nossa experiência e a de nossos estudantes provam que a quantificação
é freqüentemente caminho de trabalho coletivo, de interrogação lúdica, de
verdadeiros momentos de prazer. Esperamos que esse guia, pequeno convite à viagem, tenha proporcionado desejo de se arriscar.
2
GRIMM, M.; BONNEUIL, N. Labour market transition of French women over the life-cycle, 1935-1990. European
Journal of Population, v. 17, n. 3, p. 236-260, 2001.
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RESENHA
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O celeste porvir. 3. ed. São Paulo: EDUSP,
2008. 376 p.
Gladson Pereira da Cunha*
Nas palavras de José de Souza Martins, no prefácio da terceira edição desta obra, Antonio Gouvêa de Mendonça é considerado “o melhor
erudito sobre a história do protestantismo no Brasil” (p. 21). Professor e
pastor, filósofo e teólogo, Mendonça apresenta-se nesta com um colorido
todo especial, que ao mesmo tempo lhe concede a capacidade de enfocar o
seu tema como um perito da academia, com todos os instrumentos que lhe
foram confiados, mas também como um perito da religião, a qual ele mesmo professava.
Falecido recentemente, a Edusp, a editora da Universidade de São
Paulo, presenteou o leitor brasileiro com uma nova edição. Uma forma de
homenagear seu ilustre professor, mas também apresentar ao grande público – uma vez que as edições anteriores estavam disponíveis em editoras
protestantes, portanto de “gueto” – a obra magna de Mendonça. Ela é, antes
de tudo, uma análise do processo de inserção do protestantismo no Brasil
em meados do século XIX. Nela, Mendonça se dispõe a apresentar, além do
contexto sócio-cultural de tal inserção, os pressupostos dogmáticos que
direcionaram o protestantismo de missões em solo brasileiro. Tais pressupostos, conclui Mendonça, podem ser encontrados ainda de forma evidente
no repertório hinográfico de tal protestantismo, sendo o seu referencial o
famoso hinário Salmos e Hinos, o primeiro a ser organizado no Brasil.
Sua obra está dividida em três partes, divididas por sua vez em sete
capítulos. A primeira parte denominada A História, é uma construção do
cenário histórico preparado, no qual se deu a inserção do protestantismo
missionário, trançando uma linha mestra desde o Brasil colônia até o estabelecimento e queda do Império, sendo esse o período tempo-espacial tra*
Bacharel em Teologia e Mestrando em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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Resenha
balhado por Mendonça, concentrando-se mais nesta última fase. No primeiro capítulo, Mendonça faz um apanhado da presença protestante no período acima indicado, chegando a afirmar que, apesar de várias investidas,
“não houve mais protestantes no Brasil [de 1720] até a vinda da Família
Real” (p. 41). De fato, a abertura dos portos às nações amigas é que permitirá a entrada de protestantes no Brasil.
Esta parte também é dedicada à construção paralela do elemento de
inserção: o protestantismo de matizes ingleses. Um protestantismo que ele
resume em três aspectos: pietista, arminiano e milenarista, impulsionado
por aquilo que é chamado de o “Destino Manifesto” do povo americano de
trazer o reino de Deus, por meio do “American way of life”. Mendonça
demonstra um grupo meio bizarro, por que não dizer esquizofrênico, que
queria a todo custo importar, juntamente com a religião, um modo de vida e
uma cultura diferente daquela que existia em seu país. Além disso, as transformações sociais que poderiam ser feitas no Brasil com base no protestantismo foram barradas justamente pelo seu milenarismo, que
“incompatibilizou a Igreja com qualquer atividade de melhoria social” (p.
103). Tal transformação social era de se esperar, uma vez que os países
protestantes davam os seus primeiros passos rumo à industrialização, mas
os olhos dos missionários já estavam no celeste porvir.
Na segunda parte de sua obra, denominada “A Estratégia”, Mendonça avalia aquilo que foram os primeiros instantes da nova religião em solo
tupiniquim: como nos “descobridores e colonizadores”, os olhos dos primeiros missionários estavam focados na religião oficial do Império como
fonte de oposição, no trabalho educacional como ponto-de-contato com os
nativos e para aqueles grupos que se demonstrassem mais simpáticos à nova
doutrina. Algo peculiar nesse trabalho é que até o quarto capítulo o autor se
utiliza de documentos oficiais das igrejas, bem como obras de seus historiadores, que ele sempre faz questão de afirmar, muito empolgados em seus
relatórios e com os avanços do protestantismo. A partir daí, porém, a tentativa de reconstrução contextual e ideológica de Mendonça se fará por meio
de um livro de cânticos litúrgicos, o hinário, o qual confirmará sua tese
acerca das características do protestantismo brasileiro de primeira geração:
pietista, arminiana e milenarista. Embora, possa-se considerar um
reducionismo de Mendonça analisar a teologia missionária implantada no
Brasil por meio de um cancioneiro, é preciso dar-se conta, contudo, que a
música cantada é reflexo emocional daquilo que foi racionalmente absorvido pela pregação dos missionários.
O quadro construído por Mendonça do homem pobre e rural do fim
do século XIX e de sua religiosidade é tão vívida que é impossível, a um
grupo de leitores que conviveram ou convivem em comunidades protestantes em zonas rurais – como é o caso do resenhista – não perceber uma
continuidade ou similaridade na experiência religiosa de alguns. Com as
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poucas opções de legitimação social e outras dificuldades impostas pela
religião oficial, não é difícil de entender porque o protestantismo obteve
sucesso em seus primeiros anos. Ainda mais porque a “nova pregação”
apontava para um mundo melhor e transcendente a realidade sofrida nos
sertões... apontava para o celeste porvir!
A terceira parte do livro, Mendonça confirma a tese do seu livro,
demonstrando que cada um dos elementos da tríade acima apresentada, encontra-se presente no ideário popular protestante desde sua implantação,
confirmada nos sermões de alguns ministros, mas acima de tudo nos hinos
cantados naqueles instantes iniciais. Seus capítulos ganham um colorido
ainda maior ao ser lido por protestantes ou pessoas que tenham algum contato com a hinologia desse grupo; porquanto as letras transcritas unidas às
suas respectivas melodias transmitem a emoção implícita no hino na experiência religiosa do sertanejo do final do século XIX. O sentido
fenomenológico que tomava o crente poder ser considerado como a libertação de suas agruras cotidianas, dos enfrentamentos com a realidade que era
contrária, mas sempre avistando “o Santo país, pela fé na palavra de Deus.
No celeste porvir! Com Jesus no celeste porvir!” (p. 245).
Aqui, creio eu, cabem algumas considerações. Primeiramente, embora faça algumas breves digressões, Mendonça, como mestre e pesquisador que era, conseguiu não divagar por elas, demonstrando objetividade
temática. Tais digressões existem no texto como elemento ilustrativo da sua
tese (p. 211). Outro detalhe que chama a atenção nessa obra é a quantidade
de deixas que Mendonça abre a novas pesquisas. Essa é uma característica
considerada positiva no meio acadêmico, uma vez que ela promove o desdobramento da temática inicial. Isso pode ser verificado quando ele propõe
um estudo da presença protestante na elite dominante no mesmo período
descrito pelo livro, por exemplo, a Srª Maria Antonia, que dá nome a uma
rua próxima à Universidade Presbiteriana Mackenzie (p. 189).
Mais que uma descrição ou uma crítica, Mendonça avaliou o seu
mundo e a sua própria religião, sem, contudo, ser-lhe infame, mas também
sem ser, ele próprio, compassivo. A neutralidade do pesquisador diante do
seu objeto, convenhamos, foi comedida, mas sem tornar-se parcial. Este
livro é uma avaliação crítica do protestantismo que não destrói a religiosidade protestante, antes a chama para uma reflexão sobre si mesma, de cujos
rumos fugiu dantes de alcançar o solo brasileiro. É reducionista qualquer
visão do protestantismo de missão e suas ramificações brasileiras, sem
levar com a máxima consideração este trabalho de Mendonça. Entendo que
ele alcançou seu objetivo neste livro, lançando luz sobre esse tema (p. 363),
às vezes restrito a poucos, mas também alcançou o seu celeste porvir.
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RESENHA
THOMAS, William I.; ZNANIECKI, Florian. El Campesino Polaco en
Europa y en América. Madri: Boletim Oficial del Estado/Centro de
Investigaciones Sociológicas, 2004. 422 pp.
Mário A. Eufrasio *
Para o leitor de língua neolatina, é da maior conveniência e relevância
esta tradução para o espanhol da obra clássica de Thomas e Znaniecki, The
Polish Peasant in Europe and América: monograph of an immigrant group.
Publicada originalmente em cinco volumes entre 1918 e 1920 e republicada
em 1927 em dois volumes, reimpressos em 1958 e 1974, 1 hoje há mais de
trinta anos fora do mercado livreiro em sua versão integral,2 foi relançada
numa abridged edition em 1984, promovida pelo historiador Eli Zaretsky, de
origem familiar polonesa; esgotada essa edição, o mesmo Zaretsky organizou outra breve edição de trechos escolhidos que, decepcionante, não foi
tão bem recebida como foi a anterior. Organizada pelo professor Juan Zarco,
da Universidade Autônoma de Madri, essa edição espanhola não é completa: trata-se de uma seleção de trechos, exatamente a mesma da edição abreviada por Zaretsky de 1984.
Nas duas ou três primeiras décadas do século XX, a maioria das grandes cidades americanas se compunha de uma população em mais da metade
formada por imigrantes estrangeiros e seus descendentes nascidos nos Estados Unidos, constituindo boa parte da classe trabalhadora na indústria e
*
Professor-Doutor do Departamento de Sociologia – FFLCH-USP. E-mail: [email protected].
1
William I. THOMAS & Florian ZNANIECKI - The Polish Peasant in Europe and America: monograph of an
immigrant group - Volume 1: Primary-group organization. Chicago/Boston: The University of Chicago Press/
Badger, 1918, xi + 526 pp.; Volume 2: Primary-group organization. Chicago/Boston: The University of Chicago
Press/Badger, 1918, vi + 589 pp.; Volume 3: Life record of an immigrant. Boston: Badger, 1919, 418 pp.; Volume
4: Disorganization and reorganization in Poland. Boston: Badger, 1920, xiii + 337 pp.; Volume 5: Organization
and disorganization in America. Boston: Badger, 1920, xxi + 345 pp. Reedição em 2 vols. N. York: Knopf, 1927,
2 vols: xv + 1115 + vi + 1135 pp.; reimpressões: N. York: Dover, 1958 e N. York: Octagon, 1974. Edição resumida:
Ely Zaretsky (Ed.) - The Polish Peasant in Europe and America. Urbana: University of Illinois Press, 1984.
2
De fato, a Kessinger Publishing, de Whitefish, em Montana, lançou em 2007 uma reimpressão do vol. 1, de 1918,
em apresentações encadernada e em brochura; esperemos que os demais volumes também apareçam!
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Resenha
outros ramos da economia; entre esses, os poloneses eram um dos grupos
mais numerosos e, entre 1880 e 1910, aproximadamente 2 milhões deles
haviam se fixado no país. A natureza e a intensidade dos problemas sociais
vividos por esses grupos de imigrantes inspiraram muitas das primeiras
pesquisas sociais empíricas americanas; The Polish Peasant destacou-se
por ter sido a primeira obra a combinar a construção da teoria com a pesquisa empírica de maneira integrada e harmônica, sendo saudada como a obra
que marcou o amadurecimento da sociologia americana num patamar que a
sociologia européia já havia atingido.
A distinção entre sociedades tradicionais de grupos primários e sociedades modernas e o ciclo de estágios de organização, desorganização e
reorganização como característicos de toda mudança social constituem os
elementos conceituais mais amplos de um esquema teórico elaborado para
dar conta de relações macro-sociais, complementados por conceitos, classificações e tipologias voltados à abordagem de relações intragrupais e
interindividuais, micro-sociais, numa estratégia de investigação em parte
elucidada na “Nota Metodológica” que inicia a obra. Os capítulos iniciais
da primeira parte trazem uma exposição e análise da fase então contemporânea da sociedade camponesa polonesa em seus aspectos sociais, econômicos e culturais, complementados pela transcrição de uma enorme série
de cartas que ilustravam e comprovavam as situações e relações indicadas e
as interpretações a elas atribuídas – isso tudo compunha os dois primeiros
volumes da obra, que, em 1927, foram fundidos num único grande primeiro
volume. Uma parte intermediária apresenta as situações criadas, no contexto das cidades polonesas, pelos efeitos da sociedade econômica moderna
sobre os indivíduos e grupos familiares oriundos da sociedade camponesa
tradicional, como um processo de desorganização. Como contrapartida, em
termos de novas e adequadas atitudes, desses indivíduos e grupos originava
um processo de reorganização que recompunha a efetividade das regras
sociais de comportamento entre seus membros. A parte seguinte traz a intensidade mais pronunciada que esses processos de desorganização e reorganização assumiam entre os emigrantes que se deslocavam para as grandes cidades norte-americanas; documentos diversos transcritos ao longo do
texto ilustram e comprovam o quadro retratado. A parte final do segundo
volume na edição de 1927, que compunha o volume terceiro na edição original, transcreve uma longa história de vida obtida pelos autores, que conta
mais de 300 páginas, antecedida e complementada por pertinentes e originais interpretações que aduzem. The Polish Peasant é uma das poucas obras
em que uma gama tão grande de problemas sociológicos foi tratada numa
perspectiva integrada e com tão apreciável êxito no tratamento empírico e
teórico – embora, por sua extensão, tenha sido menos lida do que merece.
Possivelmente a obra mais central da Escola de Chicago de Sociologia e talvez aquela que mais lhe infundiu respeitabilidade intelectual, The
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Polish Peasant reforçou o programa de investigação que impulsionou a
escola, desenvolvida a partir de 1918 por Robert E. Park e Ernest W. Burgess.
Foi um dos principais modelos de trabalho sociológico seguido pelas duas
gerações dos alunos cujas pesquisas a constituíram nas décadas de 1920 e
1930 e por muitos anos foi leitura obrigatória no curso de sociologia de
Chicago e de outras universidades em que antigos alunos de Chicago ministravam cursos. Veio a exercer influência duradoura não apenas no campo
da sociologia dos imigrantes mas também em vários autores que mais tarde
vieram a abrir outras frentes de investigação na sociologia americana, tendo sido ainda uma das fontes históricas e intelectuais do interacionismo
simbólico.
Traduções da obra só foram empreendidas depois da década de 1950:
uma tradução integral italiana de 1967 se encontra há muito esgotada, assim como uma tradução polonesa da década de 1980; houve também uma
tradução de trechos selecionados para o japonês. Para o francês foi lançada
em 1998 a tradução quase integral do volume 3 da edição original, que traz
a história de vida de Wladek Wiszniewski – com uma oportuna inclusão de
subtítulos que auxiliam a leitura mas curiosamente omitindo numerosos
trechos da argumentação metateórica; foi seguida em 2000 por outro volume com alguns trechos importantes selecionados (juntamente com o capítulo inicial, sobre a teoria dos quatro desejos, de The Unadjusted Girl, onde
Thomas a expõe com maior detalhe),3 em edição porém menos bem sucedida que a espanhola.
Esta oportuna versão espanhola se diferencia da edição de Zaretisky
de 1984 por trazer integralmente traduzida a “Nota Metodológica”.4 O prólogo de Ken Plummer, da Universidade de Essex, se concentra na relevância da vigorosa inovação introduzida por The Polish Peasant: o uso de documentos pessoais e das histórias de vida na pesquisa empírica sociológica,
listando ao final uma pequena mas bem escolhida bibliografia clássica e
contemporânea sobre o assunto. A introdução de Juan Zarco, com quase
setenta páginas, começa com uma exposição do contexto do Departamento
de Sociologia da Universidade de Chicago e seu desenvolvimento até a
década de 1920, prossegue com a biografia e um breve estudo da obra de
Thomas e de Znaniecki, um relato da pesquisa e da redação de The Polish
Peasant, uma breve caracterização da edição que promoveu e tem como
anexos a bibliografia de Thomas, a de Znaniecki, o índice da obra original –
3
THOMAS, William I. - The Unadjusted Girl: With Cases and Standpoint for Behavior Analysis - Boston: Little,
Brown, 1923; reimpressão: N.: York: Harper, 1967.
4
Existe disponível em português uma edição ainda experimental desse texto: William I. Thomas & Florian Znaniecki
- “Nota Metodológica” - (Capítulo Introdutório de The Polish Peasant in Europe and America) - Organização,
tradução (com a colaboração de Paulo Henrique Pereira) e introdução de Mário A. Eufrasio - Departamento de
Sociologia - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000,
xx + 92 págs.
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Resenha
um ponto alto desta publicação, já que dela não consta menção de quais
foram as páginas originais traduzidas – e por fim quatro páginas de
referencias bibliográficas que visam auxiliar o leitor interessado em
aprofundar o estudo em torno da obra.
Em oito casos de transcrição de documentos, todavia, não fica claro
onde é o início do texto e a numeração de alguns capítulos incluída nesta
edição não corresponde a nenhuma numeração dos textos originais – o que
pode dar a falsa impressão de continuidade entre eles na edição original;
sente-se também a falta de um índice temático e dos nomes citados.
A segunda edição (de fato, a segunda tiragem), em 2006, em brochura, tornou mais acessível a obtenção da obra, recomendável por preencher
requisitos mínimos para fins acadêmicos.
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NORMAS PARA A APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS
PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA CADERNOS CERU
1. Todos os textos propostos para publicação em Cadernos CERU devem
ser enviados ao CERU em duas vias digitadas, acompanhadas de
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publicação recente deverão ter entre 3 e 5 laudas.
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– As remissões bibliográficas deverão figurar no corpo principal do
texto. Da remissão deverá constar, entre parênteses, o sobrenome
do autor seguido de vírgula, da data de publicação da obra e do
número da página. Exemplo: (LANG, 1989, p. 123) ou Lang (1989,
p. 123).
– As referências bibliográficas deverão constituir uma lista única no
final do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor.
EXEMPLOS:
(livro):
SCARANO, J. Cotidiano e solidariedade: vida diária da gente de cor nas Minas Gerais,
século XVIII. São Paulo: Brasiliense, 1994.
(capítulo de livro):
DEMARTINI, Z. B. F. Trabalhando em relatos orais: reflexões a partir de uma trajetória de
pesquisa. In: LANG, A. B. S. G. (Org.). Reflexões sobre a pesquisa sociológica. São Paulo:
CERU/Humanitas, 1992. p. 42-60. (Coleção Textos, série 2, n. 3).
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Normas para a apresentação de artigos
(artigo em periódico):
DEMARTINI, Z. B. F. A procura da escrita e da leitura na Primeira República: recolocando
questões. Cadernos CERU, São Paulo, série 2, n. 9, p. 57-82, 1998.
(tese):
CASTRO, M. C. Migração e desempenho econômico: uma análise empírica. 1975. 123f.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo.
(artigo em jornal):
NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 1999.
Folha Turismo, Caderno 8, p. 13.
(artigo em evento):
BRAYNER, A.; MEDEIROS, O. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos.
In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Anais... São
Paulo: USP, 1994, p. 14-29.
(banco de dados):
BIRDS from Amapá: banco de dados. Disponível em: <http://www.bdt.org/bdt/avifauna/
aves>. Acesso em: 25 nov. 1998.
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CENTRO DE ESTUDOS RURAIS E URBANOS - NAP/CERU
Fundado em 1964 por um grupo de estudiosos brasileiros, funciona
ininterruptamente desde esta data. Trata-se de uma sociedade civil sem
fins lucrativos, reconhecida como de utilidade pública federal e estadual.
Ligado à USP como Núcleo de Apoio à Pesquisa de Estudos Rurais e
Urbanos - NAP/CERU, tem sua sede nas dependências do Departamento
de Sociologia da FFLCH da USP.
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Pesquisas
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Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos
Reunião anual de pesquisadores para apresentação e discussão de trabalhos de pesquisa.
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e estrangeiros. Os associados podem solicitar um seminário para apresentar e discutir
seus trabalhos de pesquisa.
Reuniões e Congressos
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os da SBPC e da ANPOCS.
SERVIÇOS EM FUNCIONAMENTO NO CERU
Biblioteca
Funciona na sede do CERU, sendo especializada em livros e revistas de Sociologia e
ciências afins, à disposição dos interessados. O empréstimo domiciliar é reservado aos
associados. Possui ainda:
Arquivos de documentos compreendendo três sessões: teses universitárias; relatórios de
pesquisa e documentos congêneres; documentos sobre temas específicos (carnaval,
família e USP).
Fichário de separatas contendo bibliografia sobre assuntos diversos, relacionados à
Sociologia Rural e Urbana.
(aberta de segunda à quinta-feira, das 13 às 17 h. e sexta-feira, das 10 às 14 h.)
ASSOCIADOS
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currículo, endereço para correspondência e efetuar o pagamento da anuidade.
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