ANDREI VENTURINI MARTINS
CONTINGÊNCIA E IMAGINAÇÃO EM BLAISE PASCAL
Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências da Religião
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
São Paulo – 2006
ANDREI VENTURINI MARTINS
CONTINGÊNCIA E IMAGINAÇÃO EM BLAISE PASCAL
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da
Religião
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção de título de MESTRE em
Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Doutor Luiz
Felipe Pondé.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
São Paulo – 2006
COMISSÃO JULGADORA:
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_________________________________
Para minha mãe, Maria Geni, minha irmã, Andressa,
meu pai, Dorival, meus amigos
Ricardo e Cesário e minha
menina Vivi.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a minha família: minha mãe, pela confiança na realização deste trabalho,
minha irmã, pelo companheirismo e meu pai, pela amizade. Agradeço minha tia Ivanilde Venturini
Paiva, minha madrinha de batismo. Agradeça ao meu avô Carlos Venturini. Meu muito obrigado a
toda família Venturini e Martins.
Agradeço a meus dois grandes amigos, verdadeiros irmãos: José Cesário da Silva, o teólogo,
e Ricardo Tavares Teves, o matemático.
Agradeço a Viviane, minha menina.
Agradeço a Luciana, Sabrina, Rafael, Carlos Alberto, Max, Robson, Nilda, Arlete, Gabriel e
Daniel.
Agradeço a Lúcia, Augusto e seu filho e amigo Junior.
Agradeço a Rejane, Ricardo e família.
Agradeço a toda comunidade Santa Terezinha do menino Jesus, paróquia onde pude dar
meus primeiros passos na vida Cristã. Agradeço de maneira especial ao Padre João Maria, pelo
cuidado e atenção para com minha família e comunidade. Agradeço à Congregação São Francisco
de Sales pela qual conheci a filosofia.
Agradeço aos mestres Domingos Zamagna, professor da esperança, estimulador das leituras
e grande amigo; Edélcio, pela prontidão e ajuda na fase inicial de leitura das obras de Pascal em
francês, grande amigo; Juvenal Savian Filho, filósofo, teólogo de calibre e grande amigo; Ênio José
da Costa Brito, inspira seus alunos a serem professores, mestre dedicado à pesquisa, grande
resenhista, metódico, filósofo e grande amigo; ao meu orientador Luiz Felipe Pondé, meu mestre
desde o primeiro ano de graduação em filosofia, obrigado pelo exemplo de professor, pelo estímulo
ao debate, pela cobrança quanto às leituras, pelo estilo próprio na missão de orientador deixando o
pesquisador investigar verdadeiramente, montar quebra cabeças conceituais, buscar novas fontes,
escrever artigos e publicá-los.
A todos estes senhores meu muito obrigado!
Agradeço a todo corpo docente do programa de Ciências da Religião, de maneira especial o
professor Frank Usarsk, José J. Queiroz, Fernando Londonõ e Eduardo Cruz.
Agradeço a todos os colegas do programa, de maneira especial a Fernanda, Jorge, Roberto,
Márcia e Ir. Fátima.
Agradeço a todos os componentes do grupo Religião, teoria e experiência, de maneira
especial a Maria José, Cris, Ana, Élcio, Rodrigo, Biatriz, Augusto, Lílian, Reginaldo, Alexandre,
Gabriela, Cecília, Gilberto, Francis, Jacqueline, Márcia, Glória e Luiz.
Agradeço a CAPES pela bolsa concedida, possibilitando a realização deste trabalho.
Agradeço a Maria Gabriela Venturini (in memoriam).
Agradeço a Deus.
RESUMO
Neste trabalho procuraremos corroborar a hipótese geral que sustentamos, a saber, que o
pecado adâmico lança toda humanidade em um estado de contingência, este porém, é
verificado pelos efeitos da imaginação. No primeiro capítulo nossa preocupação é
histórica e, por este motivo, iniciaremos investigando a raiz da polêmica sobre a graça em
meados do século V. Santo Agostinho será nosso objeto de investigação: trataremos de
algumas mudanças comportamentais e textuais do bispo de Hipona em função da sua
conversão ao cristianismo e a sua concepção de livre arbítrio na discussão com os
maniqueus. Depois, trataremos de discernir os conceitos de pecado original e livre arbítrio
em Pelágio e Santo Agostinho, de modo que perceberemos como a concepção
agostiniana de livre arbítrio muda em função dos diferentes contextos que o doutor da
graça esta inserido. Em seguida daremos um salto histórico e analisaremos o surgimento
do jansenismo, tentando identificar como a discussão sobre a graça é retomada no fim do
século XVI e no século XVII, para logo em seguida situar Blaise Pascal, nosso objeto de
estudo nesta querela teológica, assim como a discussão filosófica emergente no século
XVII. No segundo capítulo analisaremos de maneira mais aprofundada o aspecto
teológico da obra de Pascal, o que nos possibilitará descrever a condição humana antes e
depois do pecado adâmico e perceber as conseqüências do pecado para toda
humanidade. Uma delas é a contingência, caracterizada pela falta de discernimento entre
a verdade e a falsidade, de modo que o conhecimento humano do mundo e de si está
imerso na contingência, esta porém, manifestar-se-ia de maneira especial na imaginação,
potência enganosa que não é marca da verdade nem da falsidade. Assim iniciaremos
nosso terceiro e último capítulo, no qual pontuaremos os efeitos da imaginação em
funcionamento e perceberemos que a razão, unida de maneira intrínseca à imaginação,
ao realizar seu trabalho revela a contingência. Todavia, Pascal destaca que alguns
versados em imaginação usam desta potência para persuadir, construir conceitos,
produzir leis e manter o espaço público razoavelmente organizado. É desta maneira que
entendemos que o pecado adâmico transmitido atavicamente a toda humanidade causa a
contingência que se manifesta nos efeitos da potência enganosa da imaginação.
ABSTRACT
In this study we will try to corroborate the general hypothesis that we support, which says
that the Adamic sin launches all humanity in a contingency state, which is, however,
verified by the effects of the imagination. In the first chapter our concern is historical and,
for this reason, we will initiate investigating the beginning of the controversy about the
grace in the middle of century V. Saint Augustine will be our object of inquiry: we will deal
with some mannering and literal changes of the bishop of Hipona in function of his
conversion to the Christianism and his conception of the free will in the discussion with the
Manicheans. Later, we will discern the concepts of the original sin and free will in Pelagio
and Saint Augustine, in such a way to perceive how the Augustinian conception of the free
will changes according to the different contexts that the doctor of grace is inserted. After
that we will have a historical jump and will analyze the sprouting of the Jansenism, trying
to identify how the discussion about the grace is retaken by the end of century XVI and
during century XVII, for soon after that, point out Blaise Pascal, our object of study in this
theological complaint, as well as the emergent philosophical quarrel in century XVII. In the
second chapter we will analyze in a deeper way the theological aspect of Pascal’s work,
what will make possible to us to describe the human condition before and after the Adamic
sin and to perceive the consequences of the sin for all humanity. One of them is the
contingency, characterized by the lack of discernment between the truth and the
falseness, so that the human knowledge of the world and about himself is immersed in the
contingency, which would, however, reveal in a special way in the imagination, deceitful
power that is not a mark of the truth nor of the falseness. Thus we will initiate our third and
last chapter, in which we will punctuate the effects of the functioning imagination and will
perceive that the reason, joined intrinsically to the imagination, when doing its job
discloses the contingency. However, Pascal enhances that some experts in imagination
make use of this power to persuade, to construct concepts, to produce laws and to keep
the public space reasonably organized. That’s the way we understand that the Adamic sin
atavistically transmitted to all humanity causes the contingency that manifests itself in the
effects of the deceitful power of the imagination.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ________________________________________
10
Capítulo I: Contexto histórico: Santo Agostinho e Século XVII...
17
1 – Santo Agostinho: o Doutor da graça....................................................
18
1.1 – A conversão de Santo Agostinho......................................................
22
1.2 – Santo Agostinho contra os maniqueus..............................................
30
1.3 – As controvérsias pelagianas..............................................................
34
1.3.1 – O monge Pelágio............................................................................
38
1.3.2 – Pelágio: pecado original e livre arbítrio.........................................
41
1.3.3 – Santo Agostinho: pecado original e livre arbítrio..........................
48
1.3.4 – O pecado original...........................................................................
49
1.3.5 – O conceito de liberdade na discussão com os maniqueus..............
54
1.3.6 – O conceito de liberdade nas controvérsias pelagianas...................
56
1.3.7
–
O
conceito
livre
arbítrio
na
discussão
com
os
maniqueus...................................................................................................
57
1.3.8 – O conceito de livre arbítrio na discussão com os
pelagianos...................................................................................................
64
2 – O jansenismo........................................................................................
71
3– Pascal: um teólogo entre Deus e o Papa................................................
81
Capítulo II: Pecado Adâmico e Contingência.................................
108
1 – A relação entre o pecado e a contingência...........................................
110
1.1 – Posição de Lutero e Blaise Pascal quanto ao estado de natureza do
homem....................................................................................................................
110
1.2 – Pontuações epistemológicas..............................................................
113
1.3 – Descrição do estado de natureza antes da queda...............................
120
2 – Descrição do estado de natureza depois da queda: análise de Jean
Mesnard, Luiz Felipe Pondé e Catherine Chevalley..............................................
128
2.1 – O atavismo do pecado: a contingência infecta a todos......................
140
2.2 – Primeiro mistério: o estado glorioso de Adão...................................
141
2.3 – Segundo mistério: a natureza do pecado de Adão............................
143
2.4 – Terceiro mistério: a transmissão do pecado.......................................
144
2.5 – Panorama dos três mistérios..............................................................
145
2.6– Medindo a gravidade do pecado.........................................................
145
2.7 – Quarto mistério: a eleição de Deus dos predestinados .....................
148
3 – Os mistérios são traços da contingência...............................................
150
Capítulo III: Os Efeitos da imaginação.................................
155
1 – O conceito imaginação em Descartes...................................................
157
2 – Imaginação e contingência. .................................................................
162
2.1 – Eqüipolência entre verdade e falsidade.............................................
164
2.2 – Engenharia da imaginação: conceitos, realidades e naturezas. ........
175
2.3 – Sentidos e a imaginação. ..................................................................
182
2.4 – Os versados em imaginação. ............................................................
185
2.5 – O juiz e a imaginação........................................................................
194
2.6 – Nas filigranas do conceito: a máquina imaginativa...........................
197
2.7 – Os advogados e a imaginação............................................................
211
2.8 – Construção das aparências e imaginação..........................................
214
2.9 – Os reis e a imaginação.......................................................................
219
CONCLUSÃO..........................................................................
225
BIBLIOGRAFIA.....................................................................
240
“Negar, acreditar e duvidar são para o homem o que correr é para o cavalo.”.
(Blaise Pascal, Pensamentos. Laf. 505, Bru. 260).
10
INTRODUÇÃO
Deus criou o homem sadio, sem mancha, justo e direito, pois nada procede de suas
“mãos” sem que seja puro, santo e perfeito. Mas, a revolta do primeiro homem, traduzida pelo
pecado, é abominável aos olhos de Deus e o homem é, desta maneira, condenado pela infinita
justiça divina à miséria que Pascal chama de segundo estado de natureza. As repercussões do
pecado adâmico, segundo Pascal, permeiam todas as dimensões da existência humana, de
modo que, o leitor do pensamento do autor francês pode observar a maneira como ele assimila
a existência pós-adâmica levando em consideração o pecado original e suas conseqüências à
sua antropologia, bem como a sua psicologia, política/moral e epistemologia. Numa palavra,
Pascal procura explicitar os desdobramentos de sua concepção de queda original mostrando
como o pecado é transmitido atavicamente a toda sua posteridade.
Em função do pecado, a epistemologia pascaliana é impregnada pela contingência que
se manifesta pela imaginação, mergulhando os movimentos cognitivos humanos num estado
de constante mudança, pois este é o estado humano pós-queda. O homem não encontra
suficiência do erro – a possibilidade de somente errar –, nem de verdade, desta forma, não há
critérios absolutos de verdade que possam servir de parâmetros fundacionais de qualquer
teoria científica nem política. Assim, Pascal entende que o homem por estar desprovido da
graça busca o absoluto e encontra o relativo, busca o necessário e encontra o contingente.
Todavia, a falta de fundamentação teórica, para Pascal, não é fator que impede o movimento
do conhecimento, mas garante a infinidade do processo cognitivo. O conhecimento é um
movimento constante. A contingência, marca da ausência de uma verdade absoluta, clara e
distinta, coloca o homem diante de uma tensão cognitiva que faz com que a ciência produza
os critérios na tentativa de mitigar a dúvida e produzir pontos fixos – construir princípios –
que permitam a análise e, na política, a falta de critérios absolutos poderá criar um ethos da
crueldade, portanto, ao iluminar a contingência na política, Pascal produz uma política da
força, esta sendo o fundamento da justiça. A percepção da manifestação da contingência é o
primeiro passo para promover uma ciência da construção de fundamento e uma política da
produção das leis. Na ciência mitigando a dúvida e na política mitigando a violência. Mas ao
encontrar os efeitos da contingência na ciência e na política, Pascal tentará sublinhar qual é a
causa primeira da mesma.
Veremos que o conceito de contingência tem um desdobramento teológico na obra de
Pascal. Este porém, manifesta-se na imaginação que põe em cheque qualquer tentativa de
11
encontrar um ponto fixo absoluto – pressuposto válido em todos os tempos e em todos os
contextos – que sirva como base fundante para uma teoria, desta maneira, será analisando o
conceito imaginação do fragmento 44 (Bru. 82) dos Pensamentos de Pascal que vamos
mostrar como a contingência atua na construção do conhecimento. Veremos que tanto nas
etapas do processo cognitivo, assim como na política através dos magistrados e advogados, a
imaginação com seus sobressaltos faz suas vítimas. A imaginação desloca todo conhecimento
que tem como objetivo ser absoluto. Dentro desta perspectiva, Pascal apresenta-se como um
anti-metafísico. Entretanto, é diante desta dificuldade cognitiva fruto da queda adâmica que
Pascal engendra caminhos para suas reflexões, fazendo-se um pensador na contingência.
Blaise Pascal é um autor contagiante. Partidário da idéia na qual se pensa melhor
quando estamos sendo perseguidos, muitas de minhas convicções filosóficas enquanto
pesquisador ou crenças entraram neste rol persecutório depois da leitura de algumas de suas
obras. Eu não poderia ficar indiferente diante da proliferação de fragmentos que aos poucos
lia estando no penúltimo ano de minha graduação em filosofia: Pascal me fez ver que o
mundo não é este mar calmo de evidências que muitas empresas filosóficas me apresentavam.
A leitura dos Pensamentos foi o ritual iniciático para a compreensão de sua obra. Depois desta
leitura, o oásis de evidências desapareceu. Todavia, depois de uma análise mais atenta, como
eu poderia caracterizar o pensador Pascal? Pensando contra mim e inspirado pelo autor
francês, vejo que Pascal é um pensador na contingência. Diante de um mundo em dissolução,
assim como qualquer sistema filosófico colocado sob o crivo de sua crítica, fazer-se-ia
possível produzir ciência resolvendo problemas e produzir leis tendo como “fundamento” a
força. É neste panorama que resolvi pesquisar como Pascal assimila a causa da contingência e
como ela se manifesta, ou seja, quais são seus efeitos.
O termo contingência não é trabalhado de maneira específica – há outros autores que
trabalham o tema, como Luiz Felipe Pondé, mas não de maneira específica – por boa parte
dos comentadores, com a exceção de Catherine Chevalley em sua obra Pascal, contingence et
probabilités. Nesta obra, ela inicia os primeiros passos neste itinerário. O termo contingência
é trabalhado como chave de leitura de alguns fragmentos, mas não há uma ênfase maior – há
uma ênfase menor – na ligação entre a contingência e a teologia que Pascal assume. O
enfoque de um estado contingente a partir de um desdobramento teológico torna-se a
novidade de nossa pesquisa.
Pascal usa uma vez o termo contingência em uma carta endereçada a Academia
Francesa. Minha construção do termo poderá ajudar os teóricos que se interessam por Pascal a
despertar uma nova leitura de muitos fragmentos de suas reflexões políticas pelo óculos do
12
conceito da contingência. Penso que a teologia de Pascal é pano de fundo para a leitura de sua
obra, de maneira especial, o pecado original e suas conseqüências. Sabemos que nossa
pesquisa ficaria demasiadamente extensa para um trabalho a nível de mestrado se formos
assinalar o conceito de contingência em vários temas na obra de Pascal, como a física ou a
psicologia. Portanto, elucidaremos às conseqüências da teologia de Pascal no conhecimento,
encontrando o conceito de contingência. Em seguida, analisaremos o conceito imaginação,
destacando seus efeitos no processo de produção das leis e na maneira pela qual juízes e
advogados atuam em seus respectivos ofícios. Assim, poderemos verificar se há uma ligação
entre o conceito de contingência e o conceito imaginação, de modo que a primeira se
manifestaria pela segunda.
Nosso objeto de estudo para tal empreitada será os Escritos sobre a graça1, parte II e
os Pensamentos Laf. 44, Bru. 822, ambas as obras de Blaise Pascal. Quanto aos referenciais
teóricos, usaremos Jean Mesnard com seu Essai sur la signification des ‘Ecrits sur la grace’
de Pascal; Luiz Felipe Pondé com suas obras Conhecimento na Desgraça: Ensaio de
epistemologia pascaliana e O Homem insuficiente; Catherine Chevalley com a obra Pascal,
contingence et probabilités; Bras & Cléro com a obra Pascal – Figures de l`imagination;
Gérad Ferreyrolles com sua obra Les reines du monde: L´imagination et la coutume chez
Pascal. O uso de cada obra específica será destacada nas primeiras páginas de cada capítulo.
No entanto, algumas questões a serem discutidas podem ser levantadas:
a) A teologia pascaliana em sua concepção de pecado original descreve o homem como
um ser contingente?
b) Há na obra de Pascal uma relação entre teologia e contingência?
c) A imaginação seria uma das formas de manifestação da contingência?
d) Quais são os efeitos da imaginação?
Tais questões nortearão a nossa pesquisa e algumas hipóteses que levantaremos. Na
hipótese geral do trabalho, sustentamos que o pecado adâmico lança toda humanidade em um
estado de contingência, este porém, é verificado pelos efeitos da imaginação. Entretanto, para
corroborar tal hipótese sublinhamos em cada um dos capítulos uma hipótese específica que
nos auxiliarão, a saber:
1
Lembramos ao leitor que as traduções dos textos originais de Pascal, assim como de seus comentadores, foram
feitas pelo autor deste trabalho.
2
Quando citarmos os Pensamentos de Blaise Pascal, usaremos a abreviação Laf. para indicar o número do
fragmento pela edição Luis Lafuma e a abreviação Bru. indicará o número da edição de Brunschvicg. Quanto às
obras de Santo Agostinho, às citações serão feitas da seguinte maneira: nome do autor, título da obra, número do
livro (por exemplo: V ou X), número do capítulo (por exemplo: X ou XII), número do parágrafo (por exemplo: 3
ou 4) e, por fim, número da página. Lembramos que em algumas citações não há referência ao número dos
livros, pois, neste caso, o autor dividiu a obra somente em capítulos.
13
No primeiro capítulo, afirmamos que as discussões entre Santo Agostinho e Pelágio
sobre a graça são retomadas no final do século XVI e no XVII; Jansenius é um destes
teólogos que assumem as idéias agostinianas, assim como Blaise Pascal. Neste capítulo será
realizada uma análise contextual do final do século IV e início de século V quando inicia-se
as controvérsias pelagianas. Destacaremos de maneira especial a concepção agostiniana de
livre arbítrio e pecado original, visto que nos ajudará a entender qual é a raiz do conceito
pecado original tanto para os jansenistas como para Pascal. No segundo capítulo, afirmamos
que o pecado lança o homem em um estado de contingência. Trabalharemos a concepção
teológica do pecado original em Pascal, assim como sua análise da condição humana antes e
depois da queda, traçando as conseqüências da queda, de maneira especial, no conhecimento,
e o vinculo de tais conseqüências com o conceito de contingência. No terceiro e último
capítulo, afirmamos que a imaginação é a marca da contingência em Pascal. Iremos verificar a
relação entre a contingência e o conceito imaginação em Pascal e sublinhar os efeitos da
imaginação. Salientamos que antes de iniciar à análise do conceito imaginação em Pascal,
faremos uma breve exposição da concepção cartesiana do mesmo conceito, propiciando
salientar as convergências e divergências entre os dois autores naquilo que diz respeito ao
conceito imaginação. Portanto, serão com estas hipóteses específicas em cada capítulo – vale
ressaltar que cada capítulo virá precedido de um introdução específica que ajudará o leitor a
compreender a estrutura do nosso trabalho – que tentaremos corroborar nossa hipótese geral e
alcançar nosso objetivo.
O objetivo de nossa pesquisa é tentar mostrar que a contingência é um conceito fruto
de um desdobramento teológico e manifesto na imaginação, desta maneira, como a
imaginação em Pascal é um recurso para mostrar como o conhecimento da verdade e da
justiça que pensamos ter do mundo é falho e mutável, o teólogo francês tenta construir alguns
recursos que possam manter uma sociedade sem o perigo de guerras civis ou da violência na
medida em que se obedecem às leis não porque elas são justas, mas simplesmente porque são
leis. A tentativa pascaliana de estabilizar as leis é, a meu ver, totalmente pragmática: ou seja,
não há um fundamento absoluto, pois será a eficácia a substância do fundamento. Desta
maneira, percebo uma ligação entre a teologia de Pascal e possíveis danos ao conhecimento,
danos estes manifestos pelos efeitos da imaginação, de maneira especial, quando o
conhecimento tenta legitimar uma lei como absoluta. Diante disso, trabalharei três conceitos
fundamentais para verificar os desdobramentos cognitivos que causa a queda: pecado original
e contingência no segundo capítulo e imaginação no terceiro capítulo. Para melhor situar o
leitor faremos uma prévia sobre estes três conceitos.
14
Desde a juventude, Pascal já apresentava um espírito “científico” genial: no ano de
1640, publicou um pequeno tratado sobre secções cônicas; em 1645, inventou a máquina de
calcular; mas é no ano de 1646 que ele tomou contato com o jansenismo, fato este que o teria
impulsionado a, mais tarde, tornar-se um teólogo de calibre. Em 1657, escreveu os Écrits sur
la grace. Nesta obra, ele discute com Luteranos, Calvinistas e Molinistas questões como: a
predestinação, a possibilidade de se cumprir os mandamentos, o estado do homem antes e
depois do pecado e a graça como dom gratuito de Deus que pode permear o coração do
homem. Para Pascal, é a posição de Santo Agostinho que reflete melhor a condição verdadeira
do homem depois do pecado. A posição agostiniana traduz a revelação da Sagrada Escritura
ao dizer que a natureza humana deve ser considerada em dois estados: antes e depois da
queda. Antes da queda, no estado adâmico, o homem era sadio, sem mancha, justo e direito,
saído das mãos de Deus. O homem era perfeito enquanto criatura, mas dependia de Deus, pois
este era quem lhe concedia a graça contínua para perseverar. A possibilidade de perseverança
era possível, pois, na vontade humana, havia equilíbrio entre o poder de escolha do bem ou do
mal. Mas Adão, tentado pelo diabo, se revolta contra Deus e peca. O pecado de Adão
corrompe toda a natureza, assim como toda a humanidade, que se torna digna de morte eterna.
O equilíbrio da vontade, em querer o bem ou o mal, é esfacelado; dessa maneira, o homem,
abandonado sob seu peso, só quer o mal, atirando-se ao amor à criatura. Ele poderia condenar
o homem pela sua infinita justiça, mas, por causa de sua infinita misericórdia, enviou Jesus
Cristo para salvar aqueles que ele escolheu e predestinou desta massa corrompida.
Diante da concepção agostiniana, Pascal ressalta o efeito de tal pecado. Um deles é a
ignorância. A ignorância, qualidade do homem após o pecado de Adão, atinge, de maneira
direta, o movimento humano de conhecer o mundo e a si mesmo. É dessa forma que a
ignorância, doença causada pelo pecado, inviabiliza o conhecimento direto e absoluto das
coisas e é transmitida à toda a massa corrompida, ignorância esta que se caracteriza por aquilo
que poderíamos chamar de contingência.
Antes do pecado o homem tinha um espírito fortíssimo, justíssimo e esclarecidíssimo,
entretanto, depois do pecado Pascal sustenta a idéia que o espírito humano está na ignorância.
A luz da razão está escurecida, assim como Adão torna-se um ser exilado de certezas. Pascal
nega que o conhecimento da incerteza é uma forma de certeza: o que o filósofo francês chama
de ignorância diz respeito ao conhecimento da verdade absoluta, da falsidade, do que é o
homem, do que é a justiça, da natureza das coisas, da felicidade. Portanto, para Pascal, depois
do pecado de Adão o instrumental cognitivo humano não possui a eficácia para discernir os
limites entre verdade e falsidade. As fronteiras entre verdade e falsidade desaparecem de
15
modo que fica impossível obter o discernimento entre estes dois conceitos: não temos nem
certeza da falsidade, pois a conquista desta seria uma grande vitória. O reconhecimento do
erro constante é um ato de discernimento. Mas a falta do discernimento não implica em dizer
que a verdade não existe em função do pecado de Adão, mas ela é sentida como um buraco no
fundo da alma, uma ausência: o homem não contempla a verdade de forma absoluta como
antes do pecado.
Ausência esta que se faz presente como conseqüência da queda, um resquício vago de
uma natureza santa que se corrompeu, o homem tornar-se-ia um ser isolado da verdade e da
falsidade em função do pecado. É este isolamento que chamaremos de contingência. Portanto,
a contingência epistemológica em Pascal, o desconhecimento da verdade absoluta e da
falsidade, é uma conseqüência da queda adâmica e revelará seus efeitos quando analisarmos
detidamente o conceito imaginação em Blaise Pascal.
O homem, depois da queda, pareceria estar exilado de qualquer critério absoluto de
verdade ou falsidade. A compreensão dessa ausência será iluminada pela teologia, ao dizer
que a falta da graça – estado do homem após a queda – traduz a falta de um critério absoluto
fundante, o que poderíamos chamar de contingência. O homem tem o erro como parte do seu
segundo estado de natureza, assim, é imprescindível o socorro da graça. Esta passaria a ser
critério epistemológico de verdade, mas, pelo pecado de Adão, a humanidade estaria
desprovida de tamanha dádiva concebida por Deus, lançando-se no mundo da contingência,
marca fundamental da ausência de critérios últimos. Diante disto, a imaginação, tema tratado
no fragmento 44 dos Pensamentos, parece ser esta potência capaz de deslocar o
conhecimento. Por meio dela, não se poderia dar uma valoração de verdade, nem falsidade,
àquilo que o homem se propõe a conhecer, já que a imaginação não é regra infalível de
verdade nem de falsidade. Desta forma, veremos que a imaginação ilumina aquilo que
chamamos contingência. A imaginação, porém, não inviabiliza a fundamentação de todo
critério, pois ela constrói a beleza e a justiça do mundo. Veremos que, apesar do problemas
causados pela queda, a imaginação engendra valores e qualidades, mas isso não é garantia de
um fundamento universal e absoluto: a razão, com suas próprias forças, não consegue dar
valor às coisas. A imaginação, parte integrante do instrumento cognitivo humano, submete à
razão, todavia, na guerra entre essas duas potências, veremos as dificuldades que a razão
encontrará nesta batalha. É a imaginação que eleva as pessoas, que mostra a sabedoria dos
escritos de um livro, assim como a necessidade de se cumprirem às leis. Numa palavra, ela
mantém uma certa razoabilidade na medida em que cria fundamentos. Tal é o efeito da
imaginação, dirá Pascal, que inclusive o maior dos filósofos do mundo, se persuadido que,
16
abaixo de uma tábua larga por onde anda, há um abismo, logo se empalideceria e suaria,
mostrando que, na tensão entre a razão e a imaginação, esta última prevalecerá. A imaginação
move a razão em todos os sentidos.
Sendo a contingência marcada por uma ausência de necessidade e de leis absolutas,
aniquilando os critérios em função das “cordas da imaginação” – que será trabalhado no
terceiro capítulo – e estabelecendo que o pensamento humano está exilado da verdade – “a
verdade” pertenceria à 3ª ordem, incompreensível ao crivo da razão, mas não contra ela –,
pareceria que a contingência inviabilizaria todo conhecimento, o que faria de Pascal um
pirrônico radical. Mas em nossa análise veremos que mesmo diante dos danos cognitivos
causados pela queda, Pascal é um pensador na contingência, ou seja, alguém que sabe que o
mundo ainda poderá conter uma razoável “ordem” local e a imaginação será um instrumento
tanto do legislador, quanto do juiz, do advogado, do médico e do filósofo. Portanto, iniciemos
nosso caminho para corroborar nossa hipótese geral destacando, no primeiro capítulo, os
aspectos contextuais que funcionarão como pano de fundo no quadro de nossa pesquisa.
17
CAPÍTULO I
Contexto histórico: Santo Agostinho e Século XVII
“O século XVII é o século de Santo Agostinho.”.3
Blaise Pascal é um “teólogo de calibre”4. O grande teólogo jansenista5 era Arnauld
– le grand Arnauld6 –, este porém, confiou a Pascal o cuidado e a responsabilidade de
defender a graça e a moral evangélica, não somente pelo fato de ser um grande escritor,
mas por ser um teólogo rigoroso. Desta forma, é preciso acabar com a lenda de que Pascal
era um jovem ignorante acerca dos assuntos teológicos7. Percebemos uma reflexão
profunda sobre a teologia da graça de Santo Agostinho no pensamento teológico de Pascal,
de modo que isto “[...] poder-se-ia concluir de sua obstinação em sustentar até a sua morte
que Jansenius = Santo Agostinho = São Paulo.”.8 O século XVII é marcado, de maneira
especial, nas discussões sobre a graça entre os teólogos, pelo pensamento de Santo
Agostinho. Não temos em nossa pesquisa o objetivo de traçar todo percurso entre o
pensamento agostiniano e pascaliano, no entanto, fazer-se-ia necessário algumas
considerações sobre o pensamento de Santo Agostinho para melhor situar a raiz da teologia
de Blaise Pascal.
Tomamos como hipótese principal deste capítulo que as discussões entre Santo
Agostinho e Pelágio sobre a graça são retomadas no fim do século XVI e no XVII;
Jansenius é um destes teólogos que assume as idéias agostinianas, assim como Blaise
Pascal.9 No corpo do capítulo faremos uma tríade: Santo Agostinho – Jansenius – Pascal.
3
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin. Paris: Albin Michel, 1995, p. I. Frase proferida m 1951, por
Jean Dagens, em ocasião de um congresso internacional de estudos franceses.
4
Luiz Felipe PONDÉ, O Homem Insuficiente. São Paulo: Edusp, 2001, p. 49.
5
Abordaremos as idéias jansenistas abaixo.
6
Otto Maria CARPEAUX, História da literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Ed O Cruzeiro, 1960, v. II, p.
1034.
7
Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 16.
8
Ibid., p.14.
9
Ver Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal.
Paris: Editions Champion, 1996, p. 207 – 210. No capítulo III intitulado Pascal Luthérien?, em um anexo
que propõe ressaltar o état de la question entre Pascal e a teologia reformada, a comentadora destaca o
silêncio da influência de Lutero sobre Baius, de Baius sobre Jansenius e deste sobre Pascal. Seria uma nova
forma de construir a história do jansenismo. Os intelectuais de Port-Royal remontam a Santo Agostinho, pois
é a ele que a obra de Jansenius nos convida e não a seus discípulos, como Lutero. Outro ponto que
destacamos é que Port-Royal foi apresentada no decorrer da história como o núcleo de intelectuais do
movimento chamado Contra Reforma. Sabemos das possíveis críticas que nosso trabalho poderia encontrar
dado o caminho histórico que pretendemos fazer, todavia, não sendo a história do jansenismo o objeto da
18
Na primeira parte explicitaremos dois períodos na obra de Santo Agostinho: o primeiro, no
qual discute com os maniqueus; o segundo, as controvérsias com Pelágio sobre a graça.
Neste último ponto trabalharemos o conceito de pecado original e livre arbítrio. Na
segunda parte, faremos um salto histórico, situando como a obra de Santo Agostinho é
retomada no fim do século XVI e no XVII, especialmente por Jansenius. Na terceira parte,
vamos delinear como Pascal – assumindo a leitura de um agostianismo ortodoxo de
Jansenius –, irrompe nas discussões sobre a graça.10
1 – Santo Agostinho: o Doutor da graça.
Santo Agostinho nasceu em 354 d.C em Tagaste, uma cidade pequenina da
Numídia, na África, moderna Ahras, na Argélia.11 Vivia em um mundo de lavradores, não
havia uma distinção estrita entre a cidade e a zona rural, já que a “[...] cidade era um
símbolo de civilização.”.12 Quando jovem, Agostinho perambulava pelos campos à caça de
passarinhos, anos estes que lembraria posteriormente, mas preso em sua escrivaninha pelos
exercícios intelectuais que o polemista enfrentaria.13 A Numídia meridional era coberta de
florestas de oliveiras, algo que possibilitava Agostinho a trabalhar à noite inteira “[...]
abastecendo sua lamparina com um estoque abundante do tosco óleo africano – um
conforto do qual sentiria falta durante sua temporada na Itália.”.14 Seu pai chamava-se
Patrício e era proprietário de terras, homem pobre, chamado de tenuis municeps, um
cidadão de poucos recursos.15 Sua mãe, Mônica, era uma cristã fervorosíssima. Criada em
uma família cristã, era praticante das tradições da igreja africana “[...] que os homens
cultos sempre haviam descartado como primitiva [...]”16, ela jejuava e fazia as refeições
nos túmulos dos mortos, uma tradição da época. Acreditava que uma boa formação
nossa pesquisa, preferimos tomar o mesmo caminho de Philippe Sellier – um dos schollars de Pascal – em
seu livro Pascal et Saint Augustin, no qual remonta Pascal a Jansenius e este a Santo Agostinho.
10
Pascal irá assumir a posição agostiniana naquilo que diz respeito a graça – esta como dom de Deus e fruto
de sua justiça e misericórdia –, ao pecado original e a liberdade. No entanto, este três temas serão trabalhados
no segundo capítulo. Neste momento, vamos nos ater ao contexto histórico que Pascal está inserido e, desta
maneira, marcar como ocorreu seu surgimento na discussão.
11
Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia. 2ªed. trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record,
2005, p. 23.
12
Ibid., p. 24.
13
Ibid., p. 25.
14
Ibid., p. 23 – 24.
15
Cf. Ibid., p. 25.
16
Ibid., p. 34.
19
clássica, incluindo obras pagãs, poderia tornar seu filho um autêntico cristão.17 “Na África,
a educação romana significava status para uma multidão de homens insignificantes.”.18
Agostinho inicia seus estudos em Tagaste. O professor explicava o texto de um
autor palavra por palavra: foi desta forma que Agostinho recebeu suas primeiras lições
sobre Homero.19 Ele era fluente exclusivamente no latim. Virgílio, Cícero, Salústio e
Terêncio eram autores estudados detidamente em seu contexto. O contato de Agostinho
com autores gregos seria não sistemático, ou seja, apenas algumas citações encontradas
aqui e ali em obras latinas.20 Todavia, o foco da educação de Agostinho seria a palavra
falada: sua região era marcada pelo embrutecimento do código penal. Para garantir suas
terras, o bom fazendeiro africano teria que ser um versado nas leis dos tribunais e,
conseqüentemente, na manipulação das formas publicas. Aos 15 anos encontra-se em
Mandaura, cidade universitária que colocava ênfase no ensino de autores pagãos. Volta
com 16 anos para Tagaste, onde espera que seu pai junte dinheiro suficiente para que
Agostinho pudesse concluir seus estudos em Cartago.21 Mais tarde, com 17 anos, vai para
Cartago, onde inicia seus estudos de retórica (371). Neste ano seu pai morre e a educação
de Agostinho estaria nas mãos de Mônica. Nesta mesma época Agostinho tomou uma
concubina – que não sabemos o nome – como sua companheira durante os quinze anos
seguintes. Em seguida nasce seu filho Adeodato. Agostinho torna-se professor e começa a
lecionar em Tagaste (374), depois em Cartargo (375/383), transferindo-se mais tarde para
Roma (384). Neste mesmo ano foi para Milão, assumindo o cargo público de professor de
retórica graças ao apoio dos maniqueus22, a estes porém, Agostinho era seguidor. Será no
período em que permaneceu maniqueu23 que Agostinho entrará em contato com as
escrituras paulinas24, visto que o maniqueísmo era considerado por muitos como uma
heresia paulina. Nesta época ele procurara um casamento, de modo que não seria visto com
17
Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 34.
Ibid., p. 27.
19
Ibid., p. 42.
20
Ibid., p. 42.
21
Ibid., p. 44.
22
Abordaremos as idéias maniqueístas abaixo.
23
G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal. trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995, p. 30.
Agostinho permanece maniqueu por 9 anos.
24
Cf. Marcos Roberto Nunes COSTA, Maniqueísmo – História, Filosofia e Religião. Rio de Janeiro: Vozes,
2003, p. 70 – 71. Ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 254. Sabemos que Agostinho fez
uma leitura profunda e sistemática de São Paulo logo depois de sua ordenação sacerdotal. Em Cacissíaco
estudou São Paulo, entretanto, durante um pequeno retiro que fez depois de sua ordenação como padre,
pedido este concedido por Valério, bispo de Hipona, Agostinho teve a oportunidade de apreciar as lições de
vida atuante daquele que seria chamado como o grande Apóstolo. Nesta leitura o padre Agostinho se
identificaria com o ideal de autoridade exibido nas cartas de São Paulo, ideal que faria parte de toda sua vida
como bispo de Hipona.
18
20
bons olhos um homem com a ambição de Agostinho em conquistar altos cargos continuar
com uma concubina.25 Em Milão mergulha seu espírito em profundas reflexões,
amadurecendo sua conversão para o cristianismo. Como conseqüência disto, demitiu-se do
cargo de professor e retirou-se para Cassicíaco26 (Briância), sendo que neste local levava
uma vida comum com seus amigos, mãe e seu filho Adeodato. “O recolhimento do
pequeno grupo a Cassicíaco foi muito precipitado: em poucos meses, Agostinho
abandonou o casamento, o cargo público e as esperanças de segurança financeira e
prestígio social.”.27 Viveria um momento ímpar de sua vida: um período de retiro
filosófico, aos moldes de uma cidade dos filósofos planejada por Plotino e chamada de
Platópolis em homenagem a Platão. Foi nesta época que Agostinho viveu um período de
especulação filosófica intensa, desmascarando a idéia moderna de que Agostinho fora
somente um controversista.
Uma obra que merece destaque em seu retiro filosófico em Cassicíaco é seus
Solilóquios, na qual Agostinho dialoga com a sua própria razão. “Por serem conversações
a sós entre nós, quero denominá-las e dar-lhes o título de SOLILÓQUIOS, certamente um
título novo e, talvez seco, mas bastante adequado para indicar o nosso estilo.”.28 Nesta obra
são abordados diversos temas: sem a fé, a esperança e o amor não se conhece a Deus29; a
virtude é a razão correta e perfeita30; se é pela razão que se adquire a virtude,
conseqüentemente, viveremos uma vida feliz31; a fé, como um elemento que nos ajuda a
ultrapassar os enganos dos sentidos, a esperança, nos faz acreditar que se pode ver, e o
amor, que nos faz desejar aquilo que se quer ver e ter prazer com isso: fé, esperança e amor
são colocados como fundamentos epistemológicos32; a teoria da iluminação, onde o
conhecimento depende de uma luz especial de Deus33; destaca os erros da imaginação, algo
muito semelhante a concepção pascaliana do conceito34; e enfim, a imortalidade da alma.35
Depois deste período especulativo, em meados de 386, Santo Agostinho converte-se
25
Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 108. “O próprio Agostinho, que não era casado,
mas tinha uma companheira há cerca de quinze anos, não suportava a idéia de viver sem uma mulher.”.
(Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
148).
26
Ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 141 – 156.
27
Ibid., p. 142.
28
Santo AGOSTINHO, Solilóquios. São Paulo: Paulus, 1998, VII, 14, p. 73.
29
Cf. Ibid., VI, 12, p. 30 – 31.
30
Cf. Ibid., VI, 13, p. 31.
31
Cf. Ibid., VI, 13, p. 31.
32
Cf. Ibid., VI, 13, p. 30 – 31.
33
Cf. Ibid., I, 2, p. 15 – 16.
34
Cf. Ibid., III, 3, p. 60; XX, 34, p. 103; XX, 35, p. 105. Não se trata de dizer que o conceito tem o mesmo
sentido nos dois autores, algo que veremos no decorrer do trabalho.
35
Cf. Ibid., XIII, 24, p. 88.
21
totalmente ao cristianismo e vai para Milão, pois no ano seguinte seria batizado pelo bispo
Ambrósio.36 Em 388 volta a Tagaste, vende os bens de seu falecido pai e funda uma
comunidade religiosa em Hipona. No ano de 391, em Hipona, foi agarrado e ordenado
padre37 pelo bispo Valério. Com a morte de Valério, Agostinho é consagrado bispo efetivo
de Hipona no ano 395. A cidade era composta de ruas estreitas e cheia de curvas
pavimentadas pelos fenícios.38 Agostinho vive uma vida na Igreja marcada por dois
trabalhos: a vida pastoral, que tomava quase todas as manhãs dos seus dias, e as
controvérsias com os hereges: a localização de Hipona, uma cidade portuária, propiciava a
comunicação entre a Igreja na África e a Igreja de Roma, facilitando o conhecimento das
novas heresias que surgiam. Desta maneira, será pelas cartas que Agostinho terá
conhecimento de um monge chamado Pelágio, homem que vivia de forma austera sua
religiosidade, apresentando “[...] um outro Paulo radicalmente diferente [...]”39 daquele que
Agostinho conhecia e apresentava a seus amigos. As heresias eram algo de estrema atenção
de um bispo, ao surgirem, elas deveriam ser destruídas: Cristo era exibido nos sarcófagos
da época como um mestre ensinando a seus discípulos.40 O combate às heresias era um dos
alvos dos árduos exercícios intelectuais do bispo de Hipona até a sua morte. Morre em 430
quando os vândalos já haviam cercado a cidade de Hipona.41
Neste pensador, filosofia e teologia possuem uma relação intrínseca; difícil apontar
onde começa o filósofo e termina o teólogo ou vise-versa, mesmo porque ele tentava fazer
uma síntese entre a filosofia e a teologia: a fusão dos dois campos do conhecimento não se
excluem.42 A filosofia, para o bispo de Hipona, oferece um instrumental capaz de
ultrapassar seus próprios limites, desta maneira, muitos não o vêem como um filósofo, mas
como um místico-teólogo. Todavia, sua obra apresenta-se como uma grande e profunda
reflexão sobre o mundo, o homem e Deus, sendo que o seu pensamento por muito tempo
tornou-se point de repère (ponto de referência, marco) da doutrina da Igreja Católica.43
Desenvolveu seus textos em função de diversas contrariedades que, no seu ponto de vista,
36
Ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 95 – 105. Podemos verificar neste capítulo com o
título Ambrósio as influências do bispo de Milão naquele que seria o futuro bispo de Hipona. Sobre ss
pregações de Ambrósio ver G. R. EVANS. Agostinho sobre o mal, p. 38.
37
Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 171.
38
Cf. Ibid., p. 231.
39
Ibid., p. 186.
40
Cf. Ibid., p. 50 e G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 27.
41
Cf. Giovani REALE e Dario ANTISER, História da filosofia. 4ª ed. v. I. São Paulo: Paulus, 2000, p. 428 –
429. Sobre a morte de Santo Agostinho ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 535 – 542.
42
Ver G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 64. “Agostinho sempre se preocupou em reunir o “Deus de
Abraão, Isaac e Jacó” e o “Deus dos filósofos”.”. (Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 212).
43
Cf. José Américo Motta PESSANHA, Santo Agostinho: vida e obra, p. XIII. In: Santo AGOSTINHO,
Confissões. trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural. 1984.
22
ferem a fé cristã. Assim, elabora inúmeras obras que vem a ser respostas à autores
considerados deturpadores da fé. É o caso dos maniqueístas e pelagianos; questões como a
existência do mal como substância absoluta sustentada pelos maniqueus, assim como o
poder da natureza para cumprir os mandamentos de Deus sustentada pelos pelagianos,
foram alguns dos temas que preocuparam aquele que seria considerado no futuro como o
“grande Doutor”44 da graça.
A obra de Santo Agostinho é sinuosa, ou seja, por ter sido construída em diálogo –
com algumas exceções, como vimos acima –, suas opiniões mudam no decorrer de seus
escritos como conseqüência dos problemas que gradativamente eram reportados por seus
opositores. Estas mudanças fazer-se-iam presentes, por exemplo, diante de suas reflexões
sobre o mal e, conseqüentemente, levando as suas construções acerca daquilo que podemos
chamar à doutrina da graça. Na análise de cinco textos – Confissões (397/398) – sua
autobiografia –, O livre-arbítrio (iniciada em 388, terminada em 394/395), O espírito e a
letra (412), Natureza e graça (415) e A graça de Cristo e o pecado original (418) –
podemos verificar tal sinuosidade já referida da obra agostiniana.
Analisaremos em primeiro lugar, a sua conversão, pois a partir dela, declara o
autor, “[...] penetrou-me no coração uma espécie de luz serena e todas as trevas da dúvida
fugiram.”45; em segundo lugar, a mudança de opinião quanto as idéias maniqueístas; por
último, sua doutrina da graça nas controvérsias com os pelagianos.
1.1 – A conversão de Santo Agostinho.
No seu livro Confissões, Santo Agostinho faz uma espécie de descrição da sua vida,
desde sua terna infância, passando por sua adolescência pecaminosa, vida de estudos,
professor de retórica, desaguando na descrição de sua conversão. Nossa hipótese é que há
uma mudança no comportamento e na escrita de Santo Agostinho depois da sua conversão.
Iniciaremos nossa empreitada tentando verificar a mudança comportamental.
Quando, por uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha
miséria e a reuni perante a vista do meu coração, levantou-se enorme
44
45
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 13.
Santo AGOSTINHO, Confissões, VIII, XII, 29, p. 144.
23
tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas. [...] Eis
em que estado me encontrava!46
A mudança que cabe a nós mensurar é comportamental: Santo Agostinho descreve
a si mesmo como alguém em “profunda” transformação. Este olhar introspectivo –
“íntimo” – faz refletir, no “coração” do autor, uma visão de si que clarividência seu estado
de miséria vindo a provocar “lágrimas”. A miséria é vista de maneira total, pois a
afirmação “reuni perante a vista do coração” pareceria evidenciar para ele, na profundidade
de sua reflexão, a reunião plena de seu estado de miséria, vista a partir de um ponto, o
coração, que até então, encontrar-se-ia opaco. O uso deste conceito sempre vem
acompanhado pela idéia de intimidade com Deus, algo que, antes da conversão, era
absolutamente impossível. “Abstinha meu coração de qualquer afirmativa, com medo de
cair no precipício.”.47 Esta afirmação é feita em função das pregações de Santo Ambrósio –
que depois seria responsável pela conversão de Santo Agostinho –; Agostinho resiste às
palavras do pregador, ou seja, resiste à palavra de Deus, conseqüentemente, resiste à fé: eis
o medo de cair no precipício, ou seja, estar possuído pelo Desconhecido e encantado por
Ele. Santo Agostinho queria estar seguro sobre aquilo que crê como dois mais dois são
quatro, no entanto, depois de convertido a entrega é total; a ação de Deus pelo Espírito
Santo em seu coração tornar-se-ia a marca da sua intimidade com Deus. Podemos verificar
isto no texto paulino aos Coríntios, citada por Santo Agostinho em seu livro O Espírito e a
letra: “A letra mata, mas o Espírito comunica a vida.”.48 Este Espírito vivificante é, para
Agostinho, a ação de Deus no coração do homem, pois, “No Sinai, o dedo de Deus agiu em
tábuas de pedra; no Pentecostes, no coração das pessoas”.49. O Espírito de Deus, age no
coração, este seria uma espécie de sensor, capaz de captar a ação Divina, isto porém, faz
brotar a fé. Desta maneira, a fé é fruto da ação de Deus no coração do homem, questão esta
que seria uma das máxima agostiniana contra os pelagianos. Mas como atua o conceito
“coração” na obra do autor?
O uso do conceito de “coração” na descrição agostiniana está intimamente ligado
com à conversão, ou seja, uma mudança repentina de direção. A concepção agostiniana do
conceito vem das escrituras, de maneira especial, dos profetas e dos salmos50, todavia, com
46
Santo AGOSTINHO, Confissões, VIII, XII, 28, p. 143.
Ibid., VI, IV, 6, p. 92.
48
Idem, O espírito e a letra, 2ª ed. trad. Augustinho Belmonte. v. I. São Paulo: Paulus, 1998, IV, 6, p. 21.
49
Ibid., XVII, 29, p. 50.
50
Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 117.
47
24
algumas diferenças que sublinharemos. No hebraico o conceito coração – leb – é usado
nos textos bíblicos em referência ao corpo. Todavia, o termo ganha vários outros sentidos
abstratos: coração é a totalidade da natureza interior do homem; é usado para designar as
diferentes formas de personalidades humanas; há passagens que o conceito é relacionado
às emoções, pensamento – inteligência – e vontade; princípio de vida soprado por Deus51.
Destacamos que não há uma distinção clara entre o corporal e o espiritual nas escrituras52.
Sublinhamos também que ao mesmo tempo que o coração é a faculdade do conhecimento
– inteligência – utilizada pelo homem, nele também conserva-se as informações, ou seja, a
memória. É no coração do homem que Deus escreve seus preceitos e será pelo coração que
o homem orienta sua vontade: é do coração que parte todos os desejos e ações. O coração
do homem pode ser orgulhoso e vão, resistindo a Deus, mas pode converter-se e tornar-se
dócil à ternura de Deus.53 Portanto, o coração também move a função de consciência moral
conhecendo o mal realizado e reprimindo o culpado54. “Assim, o coração bíblico
representa o dinamismo interior da pessoa dentro da multiplicidade de seus atos, sem que
seja estabelecida uma separação clara entre o corporal e o espiritual nem entre as
faculdades.”.55 Corpo, alma e espírito é o próprio homem. Esta tricotomia é usada por
Paulo: para ele o coração é toda vida sensível, intelectual e moral.56 O coração é a unidade
51
Cf. R. Laird Harris (org), Dicionário Internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida
nova, 1998, p. 765 – 767.
52
Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin. Paris: Albin Michel, 1995, p. 118.
53
Cf. Ibid., p. 118 – 119.
54
Cf. Ibid., p. 119.
55
Ibid., p. 120. Antoine Guillaumont escreve um artigo sobre o conceito de coração na antiguidade. (Ver
Antoine GUILLAUMONT, Les sens des noms du coeur dans l’antiquité. In: Swami Addev ANANDA et al,
Le coeur. Bélgica: Société Saint Augustin. 1950, p. 41 – 81). Seu trabalho é dividido em três grandes frentes:
o sentido do nome coração nos antigos Semitas ou, de maneira mais específica, nos Hebreus; na antiguidade
greco-romana; e na antiguidade cristã. Quanto as suas análises pertinentes ao uso do conceito entre os
hebreus ele destaca algumas formas de se usar o conceito coração no antigo testamento: o coração relativo ao
órgão do corpo humano e sua importância para a sustentação vital do indivíduo (cf. Ibid., p. 42); designa o
conjunto do ser humano ou a pessoa propriamente dita (cf. Ibid., p. 42 – 43 e p. 48); lugar onde se
manifestam os sentimentos e a as emoções como a alegria, o orgulho, a compaixão, o amor, a coragem, o
desespero, o terror, o temor, o medo, a angústia, a confiança a esperança (cf. Ibid., p. 43 – 45); orgão da
inteligência (cf. Ibid., p. 45); coração como interioridade (cf. Ibid., p. 46); coração como orgão da atenção e
da memória, receptáculo que alimenta o pensamento (cf. Ibid., p. 47); coração como lugar onde Deus se
mostra (cf. Ibid., p. 47); coração como orgão da ação, seja para adquirir ciência, discernimento ou sabedoria,
ou orgão que medita sobre o caminho a seguir, portanto, o coração torna-se um instrutor, um orientador (cf.
Ibid., p. 47 – 48); coração como a parte mais secreta da pessoa (cf. Ibid., p. 49); coração como consciência
moral (cf. Ibid., p. 50); o coração é por excelência o orgão da experiência de Deus para o judeu. (cf. Ibid., p.
50 – 51). Desta maneira, Antoine Guillaumont conclui : “Assim, a psicologia dos Semitas é, pode-se dizer, de
caráter materialista; ela designa os fatos da vida física pelo nome do órgão que eles consideram mais
importante ou pelo efeito que eles produzem sobre este órgão; e o órgão mais importante é principalmente o
coração, no qual encontra-se por este motivo a sede plena das emoções, dos sentimentos, da inteligência e do
pensamento, da vida moral e religiosa.”. (Ibid., p. 51).
56
Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 120.
25
do homem que procura Deus, crê Nele e busca incessantemente realizar seus preceitos.57
Quando Deus toca o coração do homem toca-o em toda sua totalidade e orienta-o em
direção ao Bem Supremo. Mas Agostinho se apropriará do conceito de outra maneira: o
coração deixa de designar atividade fisiológica do homem.58
O bispo de Hipona separa de maneira nítida o corporal e o espiritual, relacionando
o coração à alma, esta porém, com natureza imaterial na esteira da concepção neoplatônica.
O coração é o órgão pelo qual a alma age: por este motivo ele diferencia a alma e o
coração. Mas estudando as escrituras sagradas ele retoma o sentido bíblico do conceito,
todavia, sem associá-lo a fisiologia, como afirma Sellier.
Desde então, a realidade designada por esta palavra é uma força interior,
um dinamismo complexo da alma, que age com mais ou menos
intensidade, e conforme uma orientação determinada a qual depende a
qualidade moral do homem, sua felicidade e miséria.59
O coração é visto como o cume da alma nas Confissões, onde acontece o drama da
existência, da conversão, da salvação, é a morada interior do homem: “O coração é um
campo onde Deus visita [...].”.60 Por este motivo, manifesta a idéia de intimidade com
Deus. Mas caso esta intimidade não aconteça, o coração é o lugar onde as tempestades da
cobiça assombram o homem. A intimidade com Deus é a re-orientação do homem, a
conversão: “Este coração, Deus o modela pouco a pouco com doçura.”.61 O homem deve
buscar a Deus continuamente assim como o coração que não pára de movimentar-se: um
coração adormecido significaria a morte, as trevas, portanto, a alma age pelo dinamismo
constante do coração que busca seu repouso, não no vazio da vaidade, mas um “[...]
repouso misteriosamente unido a vida mais intensa.”.62 O coração é o homem em sua
unidade viva em direção a Deus.63 Esta unidade quando sofre no processo de conversão e
57
Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 120.
Cf. Ibid., p. 120.
59
Ibid., p. 121.
60
Ibid., p. 122.
61
Ibid., p. 122.
62
Ibid., p. 124.
63
Cf. Ibid., p. 125.
58
26
restauração verte lágrimas64 “[...] que são como o sangue do coração.”.65
Agostinho, depois de usar do conceito “coração” para tentar descrever ao leitor que
ele vivia um momento de intimidade com Deus, mostra as conseqüências desta intimidade,
ou seja, as “lágrimas”. Curiosa afirmação de Santo Agostinho neste trecho, pois o conceito
“lágrimas”, sendo uma descrição comportamental, é posterior a sua afirmação “levantou-se
enorme tempestade”. Pergunto: como ficar parado diante de uma enorme tempestade? Ou
como mostrar-se indiferente diante de tal perturbação? Talvez a atitude de espanto cause
um assombramento tal que o sujeito permanece atônito, no entanto, a indiferença neste
caso não fazer-se-ia presente. Esta tempestade que se refere Santo Agostinho “levanta-se”,
está acima da sua capacidade de controle, pois ao mesmo tempo que se “levanta”, ela
“arrasta”. O autor usa da metáfora para tentar esclarecer ao leitor o que hipoteticamente
achamos que aconteceu na sua interioridade.66 Sabemos que, mesmo diante das metáforas,
não tocamos a vida interior que Santo Agostinho descreve, no entanto, pareceria plausível
supor que depois deste “arrastamento” a idéia que salta a nossos olhos é que Agostinho
entende-se estar sendo levado, ou melhor, arrastado, por uma força maior do que ele, como
uma “chuva torrencial de lágrimas” que emana de dentro para fora. A força é maior do que
ele e incomoda67, pois “levanta-se enorme tempestade”, esta porém, ao arrastar, tira do
lugar sem nenhuma chance de desviar-se. Esta força não deixa como estava, é
transformadora, de maneira que, tal movimento, vem de dentro, de sua profunda reflexão
64
As lágrimas são o resultado do arrependimento do pecador que necessita da efusão da misericórdia de
Deus. Desta forma, escreve Santo Agostinho citando Santo Ambrósio: “São as lágrimas que lavam a culpa.
Portanto, aqueles a quem Jesus olha, choram. Pedro negou a primeira vez e não chorou, porque o Senhor não
o olhara; negou a segunda vez, e não chorou, porque ainda o Senhor não o olhara; negou a terceira vez, Jesus
olhou e ele chorou amargamente”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original. 2ª ed. v. I.
trad. Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, XLV, 49, p. 259).
65
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 123.
66
“Ora, alguém diz, a seu respeito, saber a partir de seu próprio caso o que sejam dores! – Suponhamos que
cada um tivesse uma caixa e que dentro dela tivesse algo que chamamos ‘besouro’. Ninguém pode olhar
dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar o seu besouro. –
Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa.”. (Ludwig WITTGENSTEIN, Investigações
filosóficas. trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, p. 107). Há uma dificuldade de
linguagem para saber quais são as percepções internas de cada pessoa. Wittgenstein mostra a impossibilidade
de saber com toda certeza qualquer enunciado que queira retratar a interioridade de um indivíduo. A
linguagem não é um instrumental capaz de tocar tais sentimentos. “Em que medida minhas sensações são
privadas? – Ora, apenas eu posso saber se realmente tenho dores; o outro pode apenas supor isto.”. (Ibid., p.
99). Desta maneira, poderíamos dizer que se há algo em comum entre aquelas duas pessoas que possuem um
“besouro” em cada uma de suas caixas, este “algo” é somente a palavra “besouro”, pois cada uma delas não
tem acesso à interioridade da caixa da outra. Talvez elas tenham a mesma coisa dentro da caixa, todavia, a
certeza deste argumento não pode ser submetido à prova. Nossa pesquisa não tem o objetivo de descrever os
sentimentos interiores, mas somente mostrar, a partir dos textos, as mudanças comportamentais e textuais em
função de determinados acontecimentos.
67
“Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração.”. (Santo AGOSTINHO, Confissões,
VIII, XII, 29, p. 144). Diante de um coração opaco, a nova luz que brilha causa um mal-estar caracterizado
pela fala e pelo choro, perpetuando um amargor por uma dor jamais sentida.
27
sobre si, não que a reflexão seja a causa de tamanha reviravolta, mas é o olhar de suas
misérias a partir da nova luz que emana do coração, ou seja, da sua intimidade com Deus –
o precipício, falta de referência –, esta porém, causada pelo próprio Deus, pois em suas
antigas reflexões sobre si Deus permanecia opaco ao seu coração.68 O corolário de sua
descrição atinge seu ápice: “Eis em que estado me encontrava!”. Santo Agostinho descreve
seu estado interior como alguém que foi tocado interiormente por uma força que retira
qualquer referência explicativa: diante disto o que lhe resta é chorar. O choro é a mudança
comportamental que queremos detectar, pois, como já foi assinalado, sua intimidade é de
difícil acesso para nossa pesquisa, todavia, o traço comportamental pareceria marcar uma
nova concepção – como cristão convertido e religioso – de Deus, de si mesmo, do mundo e
da religião69. Depois de analisada a mudança comportamental detectada pelo choro fruto
de sua conversão, cabe agora, perseguindo a nossa hipótese, tentarmos encontrar traços de
uma mudança na escrita na obra Confissões de Santo Agostinho. Para realizar tal tarefa,
traremos duas citações de sua obra, na primeira analisaremos como é usado conceito
“Beleza” e, logo depois, faremos outra citação que permitirá ao leitor verificar a diferença
que pretendemos destacar.
Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei. Eis que
habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-vos! Disforme, lançavame sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava
convosco!70
O texto é poético, os termos apresentam uma subjetividade de difícil precisão, a
metáfora ainda fazer-se-ia presente, no entanto, não apresentando termos com precisão
mais objetiva como “lágrimas”, “chuva torrencial”, “arrastamento”, como é o caso da outra
citação. Mesmo a metáfora com um órgão do corpo humano, o “coração”, como o lugar
onde Deus escreve seus preceitos, pareceria ser algo mais apreensível que o conceito
68
“Se não compreendia, portanto, como é que o homem poderia ser imagem vossa, a minha obrigação era
bater na porta e perguntar-Vos como se deveria crer, e não responder com insultos, como se tal crença fosse
como eu supunha.”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, VI, IV, 5, p. 92). Santo Agostinho não compreendia
como a força humana poderia atuar para ascender à crença. Também pareceria absurda a idéia de “imagem”
de Deus gravada no homem, pois, se Deus é atemporal e aespacial, como sua imagem poderia estar em nós,
já que estamos “[...] da cabeça aos pés [...]” (Ibid., VI, III, 4, p. 92) mergulhados no espaço e no tempo? No
entanto, diante destas dúvidas, relatava que seu próprio raciocínio partia do princípio que a crença teria que
obedecer a lógica de seu pensamento e isto era algo contestado por ele mesmo.
69
O mesmo interesse que alguns jovens modernos tem pela política é o que se pode esperar dos jovens do
contexto de Agostinho em relação à religião e às explicações do mal no mundo. (cf. G. R. EVANS,
Agostinho sobre o mal, p. 24).
70
Santo AGOSTINHO, Confissões, X, XXVII, 38, p. 190; grifo meu.
28
Beleza, usado na citação acima, mesmo sabendo que o sentido do conceito coração está
além de uma simples referência literal ao órgão humano. Sabemos também que a
importância dada ao termo coração tem suas origens nas contínuas referências às cartas
paulinas71 como sensor onde Deus atua. Todavia, como poderíamos tratar o conceito de
“Beleza”?
Podemos verificar que, além de uma mudança comportamental mencionada acima,
há algo a destacar em sua escrita depois que o mesmo diz ter sido permeado pela efusão da
graça. Ele usa do conceito de “Beleza” com letra maiúscula e sempre procedendo do
pronome “Vós”. Portanto, não é nenhuma novidade que o poema destina-se ao Deus
cristão. O aspecto da interioridade das duas citações acima também fazer-se-ia manifesto:
tanto a primeira quanto a segunda estão de acordo quanto à ação de Deus que é de dentro
para fora. Na primeira, as “lágrimas” são o resultado de sua “análise profunda” de si
mesmo, reconhecendo suas “misérias” introspectivamente diante de um novo foco de
visão, o “coração”: o movimento é de dentro para fora. Entretanto, nesta última citação,
Santo Agostinho declara seu erro em “lá fora a procurar-Vos”, pois “Eis que habitáveis
dentro de mim”: o movimento é de dentro para fora. Desta maneira, pecebemos que os dois
textos exortam o cristão a voltar-se para dentro e perceber que seu grande inimigo mora
dentro de si e não fora: seus pecados, suas dúvidas.72 Portanto, o caráter introspectivo salta
nos dois textos. As “lágrimas”, causadas pela graça em sua introspecção, mostram que
Deus age de dentro para fora, em um processo pelo qual percebemos as transformações do
comportamento (lágrimas) de Agostinho, assim, a interpretação feita por nossa pesquisa do
termo “lágrima” como uma manifestação da atuação da graça de dentro para fora não
contradiz a citação que fizemos acima, pois nesta última Santo Agostinho afirma
literalmente que Deus estava nele, ou seja, dentro dele, sendo inócua a procura fora de si.
Assim, pecebemos que o conceito “Beleza” é usado para caracterizar Deus, todavia, o
mesmo é vago, assim com a palavra Deus. Cabe agora trazer a segunda citação para
perceber a mudança na escrita de Agostinho.
71
“Os segredos do seu coração ficarão manifestos, e assim, lançando-se sobre o seu rosto, adorará a Deus,
publicando que Deus está verdadeiramente entre vós.”. (I Cor 14, 25, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad.
João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969; grifo do meu); “Porque já é manifesto
que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas, com o Espírito do Deus vivo,
não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração.”. (II Cor 3, 3, Português. In: A Bíblia Sagrada.
trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969; grifo meu).
72
Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 196.
29
Resta-me falar da voluptuosidade destes olhos de minha carne. [...] Os
olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e a amenidade das
cores. Oxalá que tais atrativos não me acorrentassem a alma! Oxalá que só
fosse possuída por aquele Deus que criou estas coisas tão belas.73
Nesta citação podemos verificar uma mudança importante nos escritos de Santo
Agostinho ao compararmos as duas últimas citações: há um contraste entre o conceito
“beleza” com letra minúscula na última citação e “Beleza”, com letra maiúscula, que se
encontram na citação anterior. Verificamos que há duas maneiras de olhar: pelos “olhos da
carne” e daquela que o Santo chama “[...] vista do meu coração [...]”74. A primeira, permite
contemplar uma “variedade de formas”, o “brilho”, as “cores”, fatores externos suscetíveis
à mudança e que encantam os olhos, de tal maneira que amamos a beleza, no entanto, o
grande problema que Agostinho constata é que este amor acorrenta a alma. O homem,
preso nestes atrativos, perde-se ante estes impulsos e esquece de seu criador: “lançava-me
sobre estas formosuras que criastes.”. Assim ele confessa a Deus: “Estáveis comigo, e eu
não estava convosco!”. Os “olhos da carne” apreendem uma beleza que escraviza, ou seja,
pecaminosa.75 A segunda, a verdadeira “Beleza”, sustentamos que é para Agostinho igual
ao próprio Deus. O amor à “Beleza” deve ser possuído pelos olhos do “coração”, ou seja,
visão nova das coisas mediante a fé em Deus. Interessante salientar que a “beleza” que os
“olhos da carne” captam é a criação em geral, esta pareceria ser uma beleza diminuta, pois
o critério de avaliação é sempre Deus e este se identifica com “a Beleza”. As belezas do
mundo são ofuscadas pela Beleza da eternidade. “O amor ao mundo, por exemplo, foi
condenado não porque o “mundo” fosse o antro dos demônios, mas por definição, para o
filósofo neoplatônico, ele era transitório e obscurecido pela eternidade.”.76 O mundo não
seria visto da mesma forma depois de sua conversão, conseqüentemente, o comportamento
do autor e sua forma de escrever também sofreu mudanças: é o novo Agostinho, aquele
que a vida transformou-se em uma gota de chuva em comparação com a eternidade.
73
Santo AGOSTINHO. Confissões, X, XXIV, 51, p. 196; grifo meu.
Ibid., VIII, XII, 28, p. 143.
75
Outros textos de Santo Agostinho, como O espírito e a letra, mostram as diferentes visões de mundo em
função das diferentes formas de olhar: “A interpretação literal seria o mesmo que entender no sentido carnal
o que está escrito no Cântico dos cânticos, o que não levaria ao fruto de um amor cheio de luz, mas a
sentimentos de concupiscência libidinosa.”. (Idem, O espírito e a letra, IV, 6, p. 21). O Cântico dos cânticos
é um texto do antigo testamento com uma coleção de versos amorosos cantados, de maneira especial, em
casamentos. Santo Agostinho ressalta que a interpretação literal do texto poderia levar o leitor a uma
deturpação da palavra de Deus, conduzindo-o a estados libidinosos concupiscentes.
76
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 306.
74
30
Portanto, o uso dos conceitos de “Beleza” e “beleza” mostram estas mudanças
conceituais, assim como as lágrimas de Agostinho, seria uma mudança comportamental
apreensível pelo texto. Desta maneira, estando tais mudanças de acordo com nossa
hipótese, podemos abordar o segundo ponto.
O segundo ponto que propomos abordar – depois de esclarecer que algumas
transformações (comportamentais, textuais) têm como causa o toque de Deus no coração –
será a mudança da sua opinião em debate com os maniqueístas. Nossa hipótese é que a
conversão de Santo Agostinho implica em uma mudança no seu pensamento, ou seja,
crítica às idéias maniqueístas de substancialidade do mal e coação da vontade pelas
partículas más do príncipe das trevas. O Agostinho convertido ao cristianismo sustentará
que o mal não tem substância e que a vontade possui um livre arbítrio flexível ao bem e ao
mal.
1.2 – Santo Agostinho contra os maniqueus.
Destacamos neste primeiro ponto a mudança comportamental e a forma de escrever
de Santo Agostinho em todo processo de sua conversão. Em contrapartida, as mudanças
em relação às idéias maniqueístas dar-se-iam, a nosso ver, em função do seu pensamento
dialógico, ou seja, de leitura e debate contínuo. Desta maneira, tentaria salvaguardar alguns
princípios da religião cristã que aos poucos, mediante as suas contínuas reflexões,
inquietavam e encantavam aquele que seria o futuro bispo de Hipona. Mas o que é o
maniqueísmo?
O maniqueísmo é uma doutrina difundida na Pérsia, Egito, Síria, África do Norte e
Norte da Itália. Ela foi desenvolvida por Maniqueu ou Mani77 que, sendo perseguido pelos
reis da Pérsia, seu país, refugia-se na Mesopotâmia. Ao voltar para sua pátria ele é esfolado
e atirado às feras.78
A doutrina maniqueísta sustentava um profundo racionalismo e materialismo79.
Também eram partidários da existência de dois princípios absolutos: o bem e o mal.80 O
bem era chamado Deus, este tem o domínio da luz; o mal era chamado Satanás, senhor das
trevas, composto por matéria contaminada.
77
Ver Marcos Roberto Nunes COSTA, Maniqueísmo – História, Filosofia e Religião, p. 25.
Sobre a vida de Mani ver Ibid., p. 25 – 39.
79
Cf. Santo AGOSTINHO, Confissões, V, X, p. 82-3.
80
Cf. Ibid., V, X, 20, p. 83.
78
31
Para os maniqueístas, Deus e Satanás comunicam às criaturas suas substâncias, de
maneira que os seres são compostos de uma alma boa e outra má.81 O homem é composto
pelo corpo, que é mal, pelo espírito, que provém de Deus e de alma insensível, esta cheia
de apetites e dominada pelo senhor das trevas: Satanás. Desta maneira, verificamos que a
antropologia maniqueísta tem como marca um pessimismo em relação à condição do
homem na terra: a própria composição do homem possui substâncias más. Deus, sendo as
partículas de luz e as partículas boas que também compõem o homem, não se
desinteressaria pela salvação, pois, ao salvar a criatura, Ele salvaria a si mesmo. Dentro das
várias emanações de Deus, Jesus Cristo é uma delas que tentaria libertar o homem das
partículas das trevas misturadas por Satanás.82
Santo Agostinho foi maniqueísta. “Em Roma, também me juntava com aqueles
‘santos’, fingidos e embusteiros.”.83 Sua obra Confissões revela as dificuldades que o Santo
enfrentou para tentar livrar-se da opinião dos maniqueístas, de maneira especial, a
dificuldade que o problema do mal causava à fé cristã, pois, se Deus é o sumo Bem, quem
seria o criador do mal? Conseqüentemente, se existe o mal como componente do homem,
este porém, não teria responsabilidade por seus atos pecaminosos:84 o homem era coagido
a fazer o mal. Santo Agostinho, ao escrever as suas Confissões já tinha em mente a solução
dos problemas trazidos pelo sistema maniqueísta, no entanto, percebemos que sua
mudança de opinião é gradativa. Veja a descrição de Santo Agostinho enquanto ainda
encontrava-se frente às reflexões turbulentas sobre o maniqueísmo:
Eis Deus, e eis o que Deus criou! Deus é bom e assombroso e
incomparavelmente preferível a tudo isto. Ele é bom e, por conseguinte,
criou boas coisas. E eis com Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto,
o mal? Donde e por onde conseguiu penetrar? Qual é a sua raiz e a sua
semente? Porventura não existe nenhuma? Por que recear muito, então, o
que não existe? E, se é em vão que tememos, o próprio medo
indubitavelmente é o mal que nos tortura e inutilmente nos oprime o
coração. Esse mal é tanto mais compressivo quanto é certo que não existe o
81
Sobre a cosmologia do maniqueísmo ver Marcos Roberto Nunes COSTA, Maniqueísmo – História,
Filosofia e Religião, p. 39 – 87.
82
Ver Ibid., p. 59 – 61 sobre a antropologia pessimista maniqueísta
83
Santo AGOSTINHO, Confissões, V, X, 18, p. 82.
84
“Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que outra natureza, estabelecida
em nós. A minha soberba deleitava-se com não ter responsabilidades da culpa.”. (Ibid., V, X, 18, p. 82). Para
saber mais sobre a moral maniqueísta (selo da boca, das mãos e dos seios) ver Marcos Roberto Nunes
COSTA, Maniqueísmo – História, Filosofia e Religião, p. 88 – 111.
32
que tememos, e nem por isso deixamos de temer. Por conseqüência, ou
existe o mal que tememos, ou esse temor é o mal. 85
Em meio as suas reflexões, a causa do mal lhe parecia nebulosa. Deus é a causa de
tudo que existe e a Bondade também é um atributo de Deus. Portanto, se tudo que existe
provém de Deus e este é o sumo Bem, tudo que existe é bom. Diante deste raciocínio
verificamos as diversas indagações de Santo Agostinho sobre a origem do mal na citação
acima. No final da citação, vemos que Agostinho tenta resolver o problema, estabelecendo
o mal como o nosso próprio temor, desta maneira, ou o mal existe e o problema da causa
continuaria, ou tememos algo que não existe. Nenhuma destas conclusões o satisfaz:
“Resolvia tudo isto dentro do meu peito miserável, oprimido pelos mordazes cuidados do
temor da morte e por não ter encontrado a verdade.”.86 A origem do mal perturbava-o:
“Que tormentos aqueles do meu coração parturiente! Quantos gemidos, meu Deus!”.87 A
resposta em meio as suas reflexões apareceria mais tarde, em seu processo de conversão,
de maneira especial, quando vai para Milão assumir um cargo público e começa a escutar
as pregações de Santo Ambrósio, bispo de Milão.
Para Agostinho, todas as coisas que existem são boas, mesmo as que se corrompem,
de modo que só podem corromper-se por serem boas, pois o poder corromper-se implica
em existir, assim, só poderia corromper aquilo que existe, ou seja, aquilo que é bom. Deus
é o sumo Bem, portanto é incorruptível. A corrupção é vista por Agostinho como algo
nocivo, pois, se Deus, que é o sumo Bem, não se corrompe, a corrupção é a privação de
algum bem.88 Diante destas reflexões, ele estava próximo de resolver o problema do mal:
“Em absoluto o mal não existe nem para Vós, nem para as vossas criaturas, pois nenhuma
coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem que lhe estabelecestes.”.89
O mal não possui uma existência em si como postulava os maniqueus, ele existe enquanto
privação, ou seja, corrupção de um bem. Tal idéia é destacada por Paul Ricoeur, filósofo
que tem como foco de suas especulações o problema do mal na filosofia: “Dos filósofos,
Agostinho sustenta que o mal não pode ser entendido como substância, [...]. Então o
pensar filosófico exclui todo fantasma do mal substancial. Por outro lado nasce uma outra
85
Santo AGOSTINHO, Confissões, VII, V, 7, p. 111.
Ibid., VII, V, 7, p. 111.
87
Ibid., VII, VII, 11, p. 114.
88
Cf. Ibid.,VII, XII, 18, p. 118.
89
Ibid., VII, XII, 19, p. 118.
86
33
idéia de nada [...].”.90 Mas esta privação, este não-ser91 ou “nada”, como diz Paul Ricoeur,
seria obra de Deus? Não na visão de Agostinho, pois se não há uma alma má que corrompe
o homem e o ausenta de toda responsabilidade de seus atos, a causa do mal enquanto
privação só poderia estar no próprio homem. “Procurei o que era a maldade e não encontrei
uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de
Vós, ó Deus – vontade que derrama as suas entranhas e se levanta com intumescências.”.92
A causa do mal era a corrupção da vontade humana em função de um pecado original
cometido pelo próprio homem, assim explicar-se-ia a causa de toda corruptibilidade não só
do homem, mas de toda a natureza. Para Agostinho só existe o mal moral, sendo
descartado como existente o mal físico e metafísico: o homem é responsável pelo mal que
faz.
Portanto, se em um primeiro momento o mal era causa do pecado e possuía
substancialidade, pois esta era posição maniqueísta que tinha a afeição de Agostinho, em
um segundo momento, aprofundando suas reflexões e convertido a fé cristã, ele sustenta a
idéia de que o mal é ausência de bem, ou seja, não possui substancialidade. A ausência de
bem que movimenta a corrupção não está em Deus, mas na vontade do homem por causa
do pecado. Há uma mudança no pensamento do autor quanto a substancialidade do mal: se
enquanto maniqueu sustentava a substancialidade do mal, agora, como convertido, o mal é
uma não-substância.
Além desta primeira mudança, verificamos uma segunda: como maniqueu,
Agostinho isentava o homem da responsabilidade do mal, todavia, depois de convertido,
sua opinião muda, pois o homem é visto com uma vontade pervertida que propicia fazer o
bem e o mal, algo que Agostinho irá afirmar em sua obra O livre arbítrio. É através da
vontade que o homem obtém vida feliz.
Por qual motivo então, nem todos eles a obtém? Porque, como nós o
dissemos e concordamos, é voluntariamente que os homens a merecem. E
acontece que voluntariamente também que tem uma vida de infortúnios. E
assim, recebem o que merecem.93
90
Paul RICOEUR, O mal: um desafio à filosofia e à teologia. trad. Maria da piedade Eça de Almeida.
Campinas: Papirus, 1988, p. 32.
91
Ver Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho,
p. 267 – 275. O mal visto como correspondente ao conceito metafísico de não-ser.
92
Santo AGOSTINHO, Confissões, VII, XVI, 22, p. 120.
93
Idem, O livre-arbítrio, I, XIV, 30, p. 62.
34
O mal realizado pelo homem fá-lo digno de culpa e condenação, o bem, ao
contrário, ao ser realizado por um bem da vontade, fá-lo digno de mérito e garantia da
salvação. O fatalismo maniqueísta de uma vontade coagida pelo mal é criticado,
introduzindo um livre arbítrio da vontade responsável, ou seja, capaz de escolher entre o
bem e o mal. “Estabelecemos ainda que é próprio da vontade escolher o que cada um pode
optar e abraçar.”.94 A vontade é senhora da ação, sustenta Agostinho, contra o fatalismo
maniqueu. Todavia, discutiremos a questão do livre arbítrio em Agostinho mais abaixo.95
Nossa pequena explanação deste tema é útil somente para detectarmos algumas mudanças
entre a concepção maniqueísta, que o bispo de Hipona outrora era partidário, e a concepção
cristã.
Portanto, percebemos duas mudanças no pensamento de Agostinho depois de
abraçar fé cristã: o mal não tem substância e a vontade possui um livre arbítrio flexível ao
bem e ao mal, como afirmou a nossa hipótese.
Diante deste quadro, poderíamos agora descrever o nosso terceiro ponto, a
discussão de Santo Agostinho com Pelágio a respeito da doutrina da graça.
1.3 – As controvérsias pelagianas.
Se Santo Agostinho posteriormente discordava acerca das idéias maniqueístas de
que o homem é coagido a fazer o mal e livre de toda a responsabilidade, verifica-se
também que as idéias agostinianas não convergiriam com a doutrina de Pelágio, pois este,
ao contrário de Agostinho, afirma a capacidade da natureza e mérito humano nas ações
boas do homem. Vemos que as posições extremas dos maniqueístas – não responsabilidade
do homem ao fazer o mal – e pelagianos – responsabilidade e mérito do homem ao fazer o
bem – são rejeitadas por Santo Agostinho. Não é claro, para nossa pesquisa, que Santo
Agostinho tenha superado ou resolvido os problemas com maniqueístas ou pelagianos
chegando à uma opinião que não contenha nenhuma das duas doutrinas: Santo Agostinho é
pelagiano quando discute com os maniqueus, defendendo assim, a atribuição da culpa e do
mérito ao homem, em função de um livre arbítrio que é dado por Deus para fazer o bem,
pois, o mal uso deste caracterizaria o pecado. Ele argumenta desta forma para livrar-se da
idéia maniqueísta que atribui tanto o bem quanto o mal à uma divindade que não é o
94
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, I, XVI, 34, p. 67.
Ver no item 1.3.7 deste capítulo nossa explanação da concepção de livre arbítrio na discussão com os
maniqueus.
95
35
homem, sendo este coagido e, conseqüentemente, livre de toda responsabilidade. No
entanto, quando entra em contato com as idéias de Pelágio, muda radicalmente de opinião
e, mais tarde, radicalizando-a opinião na querela pelagiana, parece argumentar como um
maniqueísta, não atribuindo o mérito ao homem, mas a Deus, radicalizando a ênfase na
predestinação e deixando o livre arbítrio sob jurisdição da graça96 de Cristo. O livre
arbítrio, sem Deus, não é um bem em si, mas só faz o mal, diz Agostinho no contexto da
querela pelagiana, necessitando da ajuda da graça para realizar o bem. Pelágio acusa
Agostinho de maniqueísta, pois ao afirmar que o livre arbítrio só faz o mal sem a graça faz
de Deus causa do pecado, já que tudo, inclusive o livre arbítrio, vem de Deus. Agostinho
retruca; afirma que o mal não provém de Deus, mas do homem e sua vontade pervertida
pelo pecado original, que é transmitido atavicamente à toda humanidade pela alma.97 Mas
hesita em responder até o fim de sua vida a origem da alma. O problema de Agostinho
encontra-se na dificuldade de conciliar livre arbítrio e graça. Desta maneira, faz uma
distinção entre livre arbítrio e liberdade.98 No entanto, poder-se-ia dizer que Pelágio e
Santo Agostinho estão de pleno acordo no que diz respeito à causa do mal, ou seja, o
próprio homem. Outro ponto de convergência seria a condenação da concepção
maniqueísta sobre o mal. Estes, como já vimos, atribuíam ao mal uma substância. Deus,
para Pelágio, assim como para Agostinho, era o sumo Bem, o mal não poderia existir como
96
Enquanto Santo Agostinho declarava-se escravo das coisas da criação, Deus estava com ele, porém, diz o
Santo: “[...] eu não estava convosco!”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, X, XXVII, 38, p. 190). É preciso
libertar-se da escravidão das coisas, no entanto, este ato só é possível se Deus agir e a ação de Deus é sempre
relacionada a graça. Mas o que é a graça? Sabemos que o conceito é de difícil apreensão, no entanto,
salientamos que o conceito poderia ser entendido de duas maneiras: Primeira: graça é a ação de Deus na vida
do homem, é o contato íntimo do Criador com a criatura, é o permear do amor de Deus naquele centro
operativo do homem, o coração. Nele o Espírito Santo “[...] infunde em sua alma a complacência e o amor do
Bem incomunicável, que é Deus, mesmo agora quando ainda caminha pela fé, e não pela visão” (Idem, O
espírito e a letra, II, 3, p. 20. grifo meu). Segunda: a graça é o nome dado a um conceito usado por Santo
Agostinho, de maneira que, ao usá-lo caracteriza uma mudança repentina de comportamento do ser humano,
implicando em uma visão de mundo diferente, esta porém, apreensível por meio de comparações de textos
que, através deles, poder-se-ia captar estas mudanças – textuais, comportamentais. Mas diante da dificuldade
que o conceito graça infunde, nossa pesquisa irá ater-se na segunda definição, no entanto, a primeira evoca o
sentido vertical da graça, este porém, inacessível aos nossos instrumentos mensuráveis, pois, é o próprio
autor quem descreve a sua incomunicabilidade; como nossa pesquisa é absolutamente teórica e comunicável,
ficamos atados em respeito ao próprio relato do autor, como podemos verificar na citação acima.
97
A transmissão do pecado sempre foi um problema que preocupou Agostinho. Uma de suas tentativas de
solucioná-lo foi de vincular o pecado que é transmitido à outras gerações à alma. Em seu livro O livre
arbítrio, III, XX, 57, p. 216 ele ressalta que o pecado é transferido da matéria para a alma, sendo que a alma é
a herança para a posteridade que nasceria com esta mácula primordial. Todavia, uma nova questão
aprofundaria ainda mais o tema: De onde vem a alma? Ela levaria Agostinho à quatro possíveis respostas:
“Há, pois, quatro opiniões sobre a origem da alma: - ou todas ela provêm de uma só, transmitidas por
geração; / - ou bem, a cada nascimento humano, uma nova alma é criada; / - ou então, as almas já existentes
em qualquer outro lugar são enviadas, por Deus, aos corpos daqueles que nascem; / - Ou, enfim, elas descem
por sua própria vontade para os corpos dos que nascem.”. (Ibid., III, XXI, 59, p. 218).
98
Veremos esta questão mais abaixo.
36
substância, mesmo porque este argumento implicaria na limitação de Deus. Desta maneira,
se Deus é onipotente e o mal existe como substância, Ele não poderia querer o mal, pois
isto implica uma limitação de Deus, fator inconcebível para os dois pensadores. “É aí que
erravam os maniqueus, tanto para Agostinho como para os pelagianos, ao postularem que a
infinitude de Deus era limitada pelo mal.”.99 Deus não quer o mal, pois o mal não existe
enquanto substância, argumento comum entre Agostinho e Pelágio quanto à concepção
maniqueísta.
A discussão com Pelágio é precedida pelas controvérsias com os maniqueus. Desta
maneira, sustentamos a hipótese que na obra de Agostinho O livre arbítrio, iniciada em
388 (livro I) e acabada entre 391 – 395 (livro II e III)100, são proposições contra os
maniqueus, sendo que Agostinho tentava atribuir a responsabilidade do mal ao homem, no
entanto, a partir de 411, Agostinho toma conhecimento da suposta heresia pelagiana que
objetiva atribuir ao homem a causa do bem e do mal, negando o pecado original aos
moldes agostiniano, e o bispo de Hipona muda sua concepção de liberdade e livre arbítrio.
Portanto, com esta hipótese tentaremos mostrar a mudança de significado dos conceitos
liberdade e livre arbítrio nos diferentes contextos que Agostinho está inserido: discussão
com os maniqueístas e discussão com os pelagianos.
Diante da hipótese acima assinalada, recorreremos a obra O livre arbítrio para
mostrar os argumentos que Agostinho dirigia aos maniqueístas. Todavia, para entendermos
a querela pelagiana recorreremos as seguintes obras: Carta 188 a Juliana (417-418), O
espírito e a letra (412), Natureza e graça (413 - 415) e A graça de Cristo e o pecado
original (418) e A graça e a liberdade (426 – 427). Tendo estas obras como nosso objeto
de estudo, destacaremos os argumentos que ele constrói contra os maniqueístas e contra os
pelagianos, assim, poderemos sublinhar como autor entendia o conceito de liberdade e
livre arbítrio nos distintos contextos. Veremos que os pelagianos recorrerão às afirmações
da obra O livre arbítrio para dizer que Agostinho sustenta as mesmas idéias de Pelágio, ou
seja, está sob a responsabilidade do homem fazer o bem e o mal, no entanto, ao mudar sua
opinião afirmando a necessidade da graça, é acusado de fatalismo – um outro nome para
maniqueísmo – pelos pelagianos101, pois, defenderá a predestinação, o pecado original e
um livre arbítrio dependente de uma transformação pela graça.
99
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
354.
100
Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 90.
101
Fazendo uma comparação das idéias pelagianas, na qual o homem possui um livre arbítrio flexível ao bem
e ao mal, e os argumentos de Agostinho ao discutir com os maniqueus em sua obra O livre arbítrio,
37
Nas controvérsias contra os maniqueus e pelagianos Santo Agostinho destaca a
origem do mal – pecado original – e qual é o estado do homem depois do pecado,
desencadeando uma discussão sobre o livre arbítrio da vontade. Portanto, segue como será
nossa explanação: destacaremos para o leitor quem foi Pelágio, como o pelagianismo surge
no contexto africano, assim como seu desaparecimento. Em seguida, analisaremos as idéias
de Pelágio, de maneira especial, sua concepção do pecado original e do livre arbítrio. Por
último, analisaremos a concepção dos conceitos de pecado original, liberdade e livre
arbítrio nos diferentes contextos em que Agostinho discute, ou seja, contra os maniqueus e
contra os pelagianos. Desta maneira, poderemos comparar as transformações dos conceitos
de liberdade e livre arbítrio nos diferentes contextos que o bispo de Hipona está inserido.
Lembramos que a análise que pretendemos fazer do conceito pecado original em Pelágio e
verificamos que o bispo de Hipona usa argumentos pelagianos, pois o foco da discussão era destruir a idéia
maniqueísta que o homem era coagido a fazer o mal pela substância má, matéria, e desta forma, sustentavam
os maniqueístas, o homem estaria isento de culpa. Todavia, já na velhice de Agostinho – quando o bispo de
Hipona tinha amadurecido seus argumentos contra o pelagianismo, radicalizando a necessidade da graça para
toda boa obra e afirmando, conseqüentemente, a necessidade do batismo para as crianças, o pecado original
como fonte de todos os males da humanidade e a predestinação, idéias estas que encontramos em obras
posteriores como A graça e a liberdade (427), A correção e a graça (427), A predestinação dos Santos (429)
e O dom da perseverança (429) – verificamos que o exausto bispo pareceria sublinhar vigorosamente a
primazia da graça, deixando a vontade humana sob o comando da vontade de Deus. Por este motivo,
Agostinho teria que enfrentar um forte adversário que o acusaria de maniqueísta: Juliano de Eclano. Vindo de
uma família metropolitana, conhecia muito bem o grego e seu pai fora Bispo de Eclano. “Juliano, futuro
bispo de Eclano, o crítico mais devastador de Agostinho em sua velhice.”. (Peter BROWN, Santo Agostinho:
uma biografia, p. 475). Juliano foi tomado pelas idéias de Pelágio e se tornou aliado de Celéstio, o grande
propagador do pelagianismo. Sendo oficializada a condenação do pelagianismo em 418, Juliano tinha cerca
de 35 anos, era popular entre os monges e liderou um grupo de 18 bispos italianos que resistiam à
condenação papal. Em 419 é forçado a sair da Itália, indo para o leste da Grécia, ambiente que favoreceu a
difusão e desenvolvimento das idéias pelagianas. (Ibid., p. 476). Ele sabia que uma coisa era condenar uma
heresia, outra coisa era suprimi-la. (cf. Ibid., p. 477). Desta maneira, o bispo de Eclano, toca uma ferida
africana: os defensores dos africanos na Itália eram maniqueístas inocentes e que Agostinho “[...] ao “berrar”
a doutrina do pecado original em todas as suas ramificações fantasiosas e repulsivas, meramente resgatava da
memória os ensinamentos que fora impregnado por Mani.”. (Ibid., p. 478). Desta maneira, Agostinho, idoso e
cansado, começou a trabalhar para coibir a tentativa de destruição – por um jovem cheio de vida – de um
trabalho que dedicara boa parte de sua vida. “Seu sucesso, na verdade, dependia de fazer Agostinho parecer
maniqueísta, a fim de demoli-lo com as armas que melhor dominava – a lógica e o conceito de liberdade dos
filósofos.”. (Ibid., p. 479). A formação filosófica de Juliano fazia dele um adversário difícil para Agostinho.
Embora formulasse a acusação que Agostinho era maniqueísta, sabemos que Juliano não conhecia o
maniqueísmo como o bispo de Hipona. Outro elemento que dificultava o estudo de Juliano era que as obras
maniquéias estavam nas estantes de Hipona, não na Grécia, todavia, tal controvérsia foi para Agostinho
esclarecedora: “Ao escrever contra Juliano, Agostinho descobriu-se concordando de bom grado com Mani.”.
(Ibid., p. 487). A existência dos demônios e o destaque que Agostinho concedia aos embuste demoníacos
faziam o mesmo papel que o príncipe das trevas no sistema de Mani: “Quem pode crer estar, por sua
inocência, a salvo das multiformes incursões dos demônios? A fim de ninguém confiar, atormentam, por
permissão de Deus, de maneira cruel as crianças batizadas, as criaturas mais inocentes do mundo.”. (Santo
AGOSTINHO, Cidade de Deus. 4ª ed. v. II. trad. Oscar Paes Leme. São Paulo: Vozes, 1990, XXII, XXII, 3,
p. 569). Coação da graça para fazer o bem, coação dos demônio para fazer o mal, fatalismo que absorvia toda
vontade humana: a conclusão da análise de Juliano não poderia ser outra, ou seja, Agostinho era pior que os
maniqueístas, pois o era sem saber. Sabemos que esta controvérsia é de estrema importância para
compreender o duelo internacional entre os bispos africanos e o pelagianismo, todavia, nossa pesquisa não
tem tal debate como objeto de estudo. Tal trabalho poderá ser realizado em uma outra ocasião.
38
Agostinho será de grande valia, pois ela permitirá que tenhamos uma idéia de como os dois
autores concebem o livre arbítrio do homem depois da queda.
1.3.1 – O monge Pelágio.
Há disparidades de opinião sobre sua pátria. Não sabemos se ele nasceu na Irlanda
ou na Inglaterra.102 Há hipóteses que teria nascido na Inglaterra, no entanto é filho de
família irlandesa; nada se sabe sobre os primeiros anos de sua vida, nem de sua educação,
no entanto, temos conhecimento que sabia ler e falar o grego.103 Seu nome era Morgam,
mais tarde fora chamado de Bretão, depois Brito, e por morar em uma ilha, alguns o
chamavam de Marinho, o que significa no latim Pelagius, homem-do-mar. Não se sabe
precisamente a data que Pelágio chegou a Roma, no entanto, era comum os jovens
migrarem para esta cidade com o objetivo de concluir seus estudos jurídicos. Em 375-380,
foi batizado, iniciando sua vida monástica e pregação daquilo que tornaria sua doutrina.104
“Pelágio pregava uma vida autenticamente cristã.”.105 “Agostinho levara a vida de um sério
leigo batizado por uns quatro anos, enquanto Pelágio o fizera por mais de trinta.”.106 Suas
idéias iriam repercutir no contexto dos intelectuais cristãos de Roma, especialmente com
Hilário de Siracusa e Flávio Marcelino que fizeram chegar até Santo Agostinho as
primeiras informações das suas idéias. Com o saque de Roma, em 410, época na qual as
idéias pelagianas ainda “[...] estavam muito distantes [...]”107 de Agostinho, Pelágio
refugiou-se na África e depois para Jerusalém, onde se estabeleceu e propagou suas
idéias.108
102
“Sabemos muito pouco sobre Pelágio. Como Agostinho, ele vinha de uma província: havia saído da GrãBretanha para Roma exatamente na mesma época em que Agostinho pôs os pés na Itália pela primeira vez,
em busca de sua sorte.”. (Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 425 – 426). Roque Frangiotti
em seu livro História das heresias afirma que Pelágio nasceu na Grã Bretanha. (cf. Roque FRANGIOTTI,
História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995,
p. 113).
103
Angelo PAREDI, Vita de Saint’Agostino. Milano: O. R., 1989, p. 73 apud Marco Roberto Nunes COSTA,
O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 353.
104
Marco Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
352 – 353.
105
Mathijs LAMBEIGTS, O pelagianismo: um movimento ético-religioso que se tornou uma heresia e viceversa, p. 41. In: Concililium – Revista Internacional de Teologia. São Paulo: Vozes, 2003. Assim afirmará
Roque Frangiotti: “[...] antes mesmo de se tornar monge, já era consagrado à vida austera, em busca da
perfeição evangélica [...]”. (Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos
dentro do cristianismo, p. 113).
106
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 426.
107
Ibid., p. 428.
108
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
352.
39
Pelágio e Agostinho se conheceram pessoalmente na Conferência de Cartago no
ano de 411. Mas antes disso, Santo Agostinho já o conhecia em função da repercussão de
sua doutrina relatada por cartas de alguns amigos que reclamavam de suas pregações.
Agostinho e Pelágio chegaram a trocar algumas cartas amigáveis. Mais tarde, Santo
Agostinho iria ler a obra de Pelágio chamada Sobre e Natureza109, que conseqüentemente,
resultaria em uma resposta de Agostinho na sua obra A natureza e a graça, escrita em 413
– 415110, mostrando assim, sua discordância e acusação de heresia à doutrina de Pelágio.
Além da obra de Pelágio acima citada, este escreve outras duas: uma carta à Demetríade
(412) e o Comentário sobre a Epístola de São Paulo, este sendo dirigido ao Papa
Inocêncio I em 417.111
A carta direcionada por Pelágio a Demetríade era do conhecimento de Santo
Agostinho que, preocupado com seus fiéis, escreve uma carta à mãe de Demetríade,
Juliana, para parabenizá-las sobre a decisão cristã da filha de consagrar-se inteiramente a
Deus e preveni-la sobre aquilo que o bispo de Hipona considerava o papel das idéias dos
pelagianos, ou seja, “[...] corromper mesmo os que estão sadios.”.112 Demetríade tinha
consagrado-se a Deus, por este motivo, Juliana, casada com Olíbrio, este porém, filho da
grande matriarca Proba113, comunica este ilustre acontecimento aos grandes escritores
cristãos do momento, desta maneira, não poderiam ficar de fora Agostinho e Pelágio. Na
carta 188 escrita por Agostinho à Juliana, há uma citação da Carta a Demetríade escrita
por Pelágio:
Eis as palavras ditas nesse livro: “Tens aqui pelo que hás de ser posta à
frente de todas as outras, e com razão. Ou melhor, aqui está a tua grandeza.
Pois a nobreza corporal e a opulência pertencem aos teus e não a ti. Mas
109
Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 428.
Ibid., p. 352.
111
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
353. Roque Frangiotti acrescenta, além das obras acima citadas, um tratado Sobre a fé e um escrito
apologético sobre as Testemunhas bíblicas. (cf. Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII:
conflitos ideológicos dentro do cristianismo, p. 113).
112
Santo AGOSTINHO, Carta 188 a Juliana. 2ª ed. trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1987, I,
3, p. 86.
113
Cf. Nair Assis de OLIVEIRA, Comentário e tradução. p. 9 – 10 In: Santo AGOSTINHO, Carta 188 à
Juliana. 2ª ed. trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1987. Proba era uma nobre senhora da Roma
imperial. Foi esposa de Probus, prefeito da cidade, este porém recebeu o batismo no seu leito de morte, onde
se converteu ao cristianismo. Proba e Probus tiveram três filhos, entre eles Olíbrio, que se casou com Juliana.
Esta era uma patrícia e juntos tiveram uma filha chamada Demetríades, a herdeira mais rica de Roma. Olíbrio
vem a falecer, a viúva Juliana é ainda muito jovem. Em 410 os vândalos atacam Roma, desta maneira, a
grande matriarca Proba e toda sua família fogem para Cartago, na África. É aí que conheceriam Santo
Agostinho, este porém, bispo da vizinha Hipona.
110
40
ninguém pode lhe dar riquezas espirituais senão tu mesma. Logo, com
razão, hás de ser louvada por isso, e seres preferida às demais, já que tais
riquezas não podem estar senão em ti, nem proceder senão de ti.114
Na carta, Pelágio confere os louvores à jovem moça em função da sua decisão.
“Grandeza”, “nobreza corporal”, “opulência”, são qualidades que o monge não economiza
ao caracterizar o ato cristão de Demetríade. Mas porque Agostinho faz questão de enfatizar
esta citação da carta de Pelágio? A escrita de Pelágio ressaltaria um aspecto fundamental
da sua doutrina ao dizer que as riquezas de Demetríade somente poderiam “proceder senão
de ti”, ou seja, o livre arbítrio e a própria natureza criada por Deus não foram corrompidos
pelo pecado, desta maneira, a natureza é boa e digna de ser usada para realizar o bem. É
diante desta afirmação que Agostinho continuamente acusará Pelágio: “Se isto foi ou é
possível, eu também afirmo o que o Apóstolo disse a respeito da Lei: Então Cristo morreu
em vão.”.115 A graça, para Agostinho, deve ser a fonte total de qualquer ato bom do ser
humano. Percebemos aqui que há profundas influências daquilo que Santo Agostinho
viveu em relação a sua experiência de conversão, pois, a graça que atuou sobre si arrastava
e restabelecia a vontade, o homem, para Agostinho, deixado sobre suas próprias forças, só
poderia fazer o mal. “Assim, toda a raça humana merece castigo.”.116
Vemos pela carta a Juliana que Pelágio difundia suas idéias e, com o tempo, nada o
impediu de angariar alguns discípulos. Um deles seria Celéstio, que era advogado e mais
tarde fora ordenado sacerdote em Éfeso. Ele foi um dos grandes propagadores do
pelagianismo. “Foi Celéstio quem provocou a crise na África, não Pelágio.”.117 Celéstio era
fiel discípulo de Pelágio, ele seria o futuro sistematizador das idéias do mestre, recebendo
assim, duras críticas de Santo Agostinho. Quando o pelagianismo chegou a Cartago, o
debate em curso, de maneira especial, com os Donatista, teve a intervenção de Celéstio,
pois o pelagianismo tocava em profundos mistérios como a origem da alma, a relação da
condição humana atual e o pecado de Adão e, conseqüentemente, o batismo infantil. Mais
tarde, as idéias de Pelágio ganham fama no oriente, assim, o bispo de Cesáreia, Eutólio,
convocou os bispos da região e realizou um sínodo em Dióspolis, no dia 20 de dezembro
114
Santo AGOSTINHO, Carta 188 a Juliana, II, 4, p. 87.
Idem, A natureza e a graça. 2ª ed. v. I. trad. Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, II, 2, p. 113.
116
Ibid., V, 5, p. 115
117
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 428.
115
41
de 415. Estes não conseguiram refutar as idéias de Pelágio e desta forma, tanto Pelágio,
quanto Celéstio, continuariam em comunhão com a igreja católica.118
Depois de tomar conhecimento do resultado do sínodo de Dióspolis, assustados
com a proliferação do pelagianismo no oriente, Santo Agostinho e outros bispos africanos
assinaram um documento elaborado pelo bispo de Hipona, no qual, condena
veementemente as idéias de Pelágio. Este documento é enviado ao Papa Inocêncio I que no
dia 27 de janeiro de 417 condenaria o pelagianismo. Com a morte do papa Inocêncio, sobe
ao poder o papa Zósimo. Desta maneira, Pelágio e Celéstio aproveitam a oportunidade para
recorrer à sentença e conseguem. O Papa repreende Agostinho e os bispos africanos, mas
posteriormente, ratificaria mais uma vez a condenação a Pelágio e Celéstio. Depois disso,
os dois desaparecem.119
Diante desta breve exposição da vida de Pelágio e algumas de suas idéias,
verificaremos agora qual é a sua120 posição e de Agostinho sobre o pecado original e o
livre arbítrio. Desta maneira, tentaremos detectar as mudanças que ressaltamos em nossa
hipótese.
1.3.2 – Pelágio: pecado original e livre arbítrio.
Pelágio ao chegar a Roma, espanta-se com a vida moral que o povo vinha levando.
A irresponsabilidade do homem frente aos seus atos maléficos não era aceito de maneira
nenhuma pelo monge asceta, desta maneira, “[...]considerava o determinismo maniqueísta
como um perigo para a verdadeira ética cristã, que ao seu ver, somente poderia existir na
medida que salvaguardassem componentes como a liberdade e a responsabilidade.”.121 A
Igreja era considerada por ele como o Corpus Christi e o batismo implicava
necessariamente em um compromisso dos fiéis. “Pelágio nunca duvidou, nem por um
momento, de que a perfeição fosse obrigatória; seu Deus era, acima de tudo, um Deus que
ordenava obediência sem questionamento.”.122 Pelágio defende a tese de uma natureza boa,
pois esta foi criada pelo sumo Bem, que é Deus, origem de todas as coisas. Segue a citação
de Santo Agostinho da obra de Pelágio Sobre a Natureza.
118
Cf. Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho,
p. 353.
119
Cf. Ibid., p. 353.
120
A doutrina de Pelágio será analisada a partir das citações de Santo Agostinho. Nossa pesquisa,
infelizmente, não teve um contato direto com as obras de Pelágio, se é que elas existem.
121
Mathijs LAMBEIGTS, O pelagianismo: um movimento ético-religioso que se tornou uma heresia e viceversa, 42.
122
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 427.
42
A possibilidade de não pecar não reside tanto no poder da vontade, como
na necessidade da natureza. Tudo o que faz parte da natureza, não há
dúvida que pertence ao autor da natureza, ou seja, Deus. [...] Como se há
de considerar alheio a graça de Deus o que se comprova pertencer a
Deus?123
Para Pelágio a natureza não sofre a corrupção do pecado de Adão.124 O pecado é
uma possibilidade inerente ao homem, pois Deus não tira o livre arbítrio125 de maneira
nenhuma, assim, está dentro da possibilidade humana de pecar ou fazer o bem. “Se a
vontade é a causa do pecado, diziam os pelagianos, então por um ato da vontade o homem
pode retornar ao bem.”.126 Pelágio ao sustentar que a natureza é criada por Deus, confere
ao homem uma natureza boa, não corrompida, desta maneira, atribuir ao homem uma
natureza pecaminosa seria, na opinião de Pelágio, dizer que Deus é a causa do mal. O mal
é ausência de substância, logo, não poderia existir, pois Deus somente criou coisas boas.
“E se assim é, como pôde enfraquecer e modificar a natureza o que carece de
substância?”127, dirá Pelágio, usando de um mesmo argumento de Agostinho contra o
maniqueísmo, visto que o mal, por não ser substância, não pode afetar o bem, ou seja, a
substância. A idéia de uma natureza decaída seria maniqueia, ou seja, há uma substância
do mal que corrompe o homem, este porém, não possuiria livre arbítrio, pois, submetido à
uma natureza corrompida, seria sempre coagido a fazer o mal, uma espécie de fatalismo da
vontade contaminada. “Pelágio, junto com seus seguidores, acreditava que no livre arbítrio
da vontade está a chave para a solução de todas as perguntas que envolvem a problemática
do mal.”.128 Mas o que seria o pecado para Pelágio?
O pecado seria um possível mal uso do livre arbítrio mantido incorruptível, ou seja,
flexível ao bem e ao mal, mesmo depois do pecado de Adão. Na obra A Graça de Cristo e
123
Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, LI, 59, p. 168.
Ver Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do
cristianismo, p. 118.
125
“Embora disponhamos do livre-arbítrio tão forte e firme, que foi implantado pelo Criador em toda
natureza, somos fortalecidos ainda todos os dias por sua ajuda em sua inestimável bondade.”. (Santo
AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XXVIII, 29, p. 243). O livre arbítrio, mesmo depois
do pecado, continua “forte” e “firme”, desta forma, o homem é capaz de realizar o bem, assim como o mal,
por suas próprias forças. Deus, mesmo depois do pecado de Adão, não abandona o homem e, por sua
bondade, dá o exemplo de Cristo, a doutrina e a Revelação. Desenvolveremos estes três pontos abaixo.
126
G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 169.
127
Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XIX, 21, p. 130.
128
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
354.
124
43
o Pecado Original, Santo Agostinho cita a sentença pelagiana sobre onde o mal se
manifesta.
Distinguimos assim três elementos e os dividimos em uma ordem como
que determinada. Em primeiro lugar, pomos o poder, em segundo o querer,
em terceiro o ser. Pomos o poder na natureza, o querer na vontade, o ser na
execução. O primeiro, ou seja, o poder, pertence exclusivamente a Deus e
ele o outorgou à sua criatura; os outros dois, ou seja, o querer e o ser,
referem-se ao ser humano, visto que se originam do livre arbítrio. Portanto,
na vontade e na ação, glória é do homem pela prática do bem; ou melhor,
do homem e de Deus, que lhe deu a possibilidade com o auxílio de sua
graça.129
Pelágio faz inicialmente a distinção de três elementos: poder, querer e ser.
A natureza, esta porém, criada por Deus e associada propriamente a graça,
pertenceria exclusivamente ao poder outorgado por Deus e existente no homem, desta
maneira, a graça ou poder de Deus é dada a todos os homens em seu ato criador, pois
Deus, ao criar a natureza boa, insere a graça na criatura; a imagem e semelhança com Deus
é mantida mesmo com o pecado original de Adão, pois “Pelágio não nega que Adão tenha
pecado contra Deus.”.130 No entanto, na concepção de Pelágio, o pecado original não é
transmitido atavicamente a toda criatura. Verificar-se-ia que estando sobre o controle da
natureza humana o poder concedido por Deus, poder-se-ia dizer que a glória e o mérito de
uma ação boa é do “[...] homem pela prática do bem; ou melhor, do homem e de Deus”.
Desta maneira, a graça para Pelágio “[...] não é nada mais do que a confirmação ou
justificação por parte de Deus dos méritos dos homens no uso de sua liberdade.”.131 A ação
da graça não é direta, mas indiretamente, pois ela já está no homem e poderá ser exercida
pelo seu livre arbítrio não corrompido.132 “Não precisa absolutamente da assistência
129
Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, IV, 5, p. 216-217.
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
374
131
Ibid., p. 375.
132
“Grande ajuda da graça divina, sem dúvida, que ele incline nosso coração para onde quiser. Mas esta
grande ajuda nós a merecemos, conforme ele diz na sua loucura, quando, sem outra ajuda que a do livrearbítrio, corremos para o Senhor, desejamos ser dirigidos por ele, submetemos a nossa vontade à dele e,
aderindo-lhe constantemente, constituímos com ele um só espírito.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de
Cristo e o pecado original, XXIII, 24, p. 237). Deus que inclina o nosso coração, não por uma graça que vem
de fora, mas uma graça que já está em nós e que faz parte do homem. Para Pelágio, a graça está presente na
natureza humana criada por Deus. Desta maneira, ao fazermos o bem, temos mérito, pois fazemo-lo por um
bom uso do livre arbítrio que age conforme a vontade de Deus. O desejo de ser dirigido por Deus é o nosso
130
44
divina. A graça não precisa entrar em campo.”.133 A graça não precisará entrar em campo
porque já está em campo deste o ato criador de Deus. Verificar-se-ia na obra A Graça de
Cristo e o Pecado Original de Santo Agostinho qual é a visão que Pelágio tem da graça.
Deus nos ajuda pela sua doutrina e revelação, ao abrir-nos os olhos,
revelar-nos o futuro para não sermos absorvidos pelo presente, descobrirnos as tramas do demônio, iluminarmos com o dom multiforme da graça
celeste. [...] Quem assim afirma, parece-te que nega a graça? Não confessa
o livre-arbítrio e a graça de Deus?134
A graça para Pelágio é intrínseca à natureza humana, pois esta foi criada por Deus
e, caso não esteja no homem, este não teria livre arbítrio, o que seria, na visão de Pelágio,
um absurdo, pois não poderíamos atribuir ao homem a responsabilidade de fazer o mal,
assim, o homem seria coagido, opinião rejeitada por ser maniqueísta. O livre arbítrio, para
Pelágio, possui o poder de fazer o bem e o mal.135 O homem também possui a “doutrina” e
a “revelação” que poderiam ser usados, caso venha a querer, como uma força a mais para
fazer o bem. O poder para fazer o bem, a doutrina da Igreja e a Revelação são atributos da
graça para Pelágio. Desta forma, a graça para não pecar consiste “[...] ou na natureza e no
livre arbítrio, ou na lei e na doutrina.”.136 Para ele, houve humanos que viveram, antes da
vida de Cristo, e são considerados justos, desta maneira, concluir-se-ia que está na
capacidade da natureza humana fazer o bem, todavia, com Jesus Cristo e “[...] com o
auxílio do Espírito Santo, resistamos mais facilmente ao espírito maligno.”.137 Esta é a
análise do poder que Deus concede ao homem.
Já o querer pertenceria a vontade e o ser ao fazer, ou realização do ato. Estes fariam
parte somente do homem, pois são eles que garantem o livre arbítrio. Para Pelágio, o
homem tem o poder ou possibilidade dada por Deus de fazer o bem, conseqüentemente, o
próprio desejo de usar daquilo que Deus nos concedeu, deste modo, formamos com ele um só espírito.
Verificamos que o homem é absolutamente responsável pelo bom ou mal uso do livre arbítrio.
133
G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 169.
134
Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, VII, 8, p. 221.
135
“Para Pelágio, todo cristão está capacitado a praticar as virtudes, a alcançar a santidade. É chamado a
seguir Cristo nas escolhas da virgindade e castidade e a possibilidade de poder fazê-lo se dá na liberdade de
cada um.”. (Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do
cristianismo, p. 118). O compromisso com o evangelho é a pedra angular da espiritualidade de Pelágio. Suas
idéias reivindicavam uma austeridade moral e fraterna aos princípios do evangelho. A cumplicidade
pelagiana influenciou mosteiros e famílias nobres de Roma que, com a invasão de Roma pelos “bárbaros”
liderada por Alarico em 410, refugiam-se na Sicília e na África.
136
Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, III, 3, p. 215.
137
Ibid., XXVII, 28, p. 242.
45
querer o bem e o fazer o bem dependerá da responsabilidade do próprio homem, pois, o
poder, que é de Deus e capacita a criatura a querer o bem e fazer o bem, encontrar-se-ia em
toda humanidade, desta maneira, “[...] não posso deixar de ter a possibilidade do bem”138
dirá Pelágio, já que o contrário disso implicaria na coação e irresponsabilidade na
realização dos atos maléficos. A responsabilidade do mal era um argumento destacado por
Pelágio que trazia problemas para Agostinho, como ressalta G. R. Evans: “Aí está a fonte
do embaraço de Agostinho nos últimos anos. Os pelagianos podiam considerar o De libero
arbitrio como um passo da parte de Agostinho em sua direção.”.139 Na obra de Agostinho
O livre arbítrio encontramos proposições pelagianas lisonjeando a vontade humana em
fazer o bem e o mal. É desta forma que Evans, ao comentar a controvérsia entre Pelágio e
Agostinho, destaca que o último cai no fatalismo maniqueu. Diante deste quadro, no qual o
livre arbítrio continua forte e flexível ao bem e ao mal, o que representa Adão e Jesus
Cristo para Pelágio? Em resposta a esta pergunta o comentador de Santo Agostinho
Marcos Roberto Nunes Costa, resume as idéias pelagianas sobre este tema:
Ou seja, Adão, primeiro pecador, é apenas um exemplo que os homens têm
seguido por livre vontade. O homem aprendeu a pecar a partir de Adão. E
da mesma forma que acontece com o pecado, o mesmo se dá quanto ao
remédio do pecado. Para Pelágio Cristo é apenas um modelo a ser seguido
pelos homens para livrarem-se do pecado.140
Para Pelágio, o pecado é a imitação do modelo adâmico corruptível, ou seja, de um
ser humano que usa mal do livre arbítrio que Deus outorga ao homem. Adão é o mais forte
exemplo de desobediência a Deus e de mal uso da liberdade.141 Jesus Cristo também é
modelo, mas este é totalmente contrário ao de Adão, pois Cristo é um modelo moral e
138
Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, IV, 5, p. 217.
G. R. EVANS. Agostinho sobre o mal, p. 169. Ver as páginas 58 – 59 quanto as idéias desenvolvidas por
Agostinho na discussão com os maniqueus na qual ele afirma o poder, o querer e o fazer como capacidades
intrínsecas à natureza humana depois do pecado. Tal afirmação concorda de bom grado com as afirmações de
Pelágio.
140
Marco Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
374.
141
“O que importa ao assunto em pauta o fato de Pelágio responder a seus discípulos ‘que ele condenou o
que se lhe objetava, se ele mesmo afirma que o primeiro pecado prejudicou não somente o primeiro homem,
mas também os demais seres humanos, não devido a descendência, mas ao exemplo’ [...]”. (Santo
AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XV, 16, p. 280 – 281). Agostinho cita a afirmação de
Pelágio que considera o pecado de Adão um mal exemplo a ser seguido e, por este motivo, prejudica a
humanidade, não por sua transmissão a todo gênero humano, mas a capacidade humana de imitar o exemplo
de Adão.
139
46
integro a ser seguido.142 “Segundo ele, a vontade dos homens podia ser “impactada” a agir
pelo bom exemplo de Cristo e pela terrível sanção do fogo do inferno.”.143 Através deste
elementos, aprendemos a livrar-nos dos pecados e alcançar a perfeição, desta maneira, não
precisaríamos de uma ajuda externa da graça, pois é o uso do livre arbítrio, ou seja, uma
ato deliberado e responsável, a peça chave para a salvação.144
Como muitos reformadores, os pelagianos depositaram no indivíduo o peso
assustador da liberdade completa: ele era responsável por todos seus atos;
portanto, todo pecado só podia ser um ato deliberado de desprezo por
Deus.145
A preocupação com a responsabilidade do homem frente seus atos era o foco de
Pelágio, assim como Santo Agostinho em debate com os maniqueus em sua obra O livre
arbítrio. A natureza é boa, não há transmissão do pecado original, e só depende do homem
fazer bom uso dela.
Sendo o pecado de Adão não transmissível ao resto da humanidade, o batismo para
Pelágio não teria uma importância tão capital, pois, ele tem como função apagar a mancha
do pecado original.146 “Era extensão perfeitamente lógica do ensino de Pelágio. Se não
existe nenhum vício inerente na criança recém-nascida, nada existe para ser purificado pelo
batismo.”.147 Diante disto, para quê o batismo se não nascemos com pecado nenhum? É
uma conseqüência lógica, como afirma Evans, a não necessidade do batismo, pois as
142
“Antes da Lei, como dissemos, e muito antes da vinda de nosso Salvador, consta que alguns viveram na
justiça e na santidade. Com muito mais razão é de se crer que isso nos seja possível pelo esclarecimento
obtido após sua vinda. Após sua vinda, regenerados pela graça, renascemos para nos tornar seres humanos
mais perfeitos; remidos e purificados pelo seu sangue e estimulados à perfeição da justiça pelo seu exemplo,
devemos ser melhores do que aqueles que existiram antes da Lei.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo
e o pecado original, XXXVIII, 42, p. 252 – 253). Esta é uma citação das palavras de Pelágio que considera
Cristo um exemplo a ser seguido para tornar-nos “mais perfeitos”, ou seja, já somos perfeitos em função de
sermos cridos por Deus, desta maneira, Jesus Cristo é uma força a mais – plus – para o homem agir bem.
143
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 463.
144
Cf. Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho,
p. 375.
145
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 434.
146
Agostinho conta a necessidade do batismo sustentada pela igreja católica: “De acordo com esse
ensinamento, ela batiza realmente as crianças para a remissão dos pecados, não os que cometeram seguindo o
exemplo do primeiro pecador, mas o que contraíram, ao nascer, pela origem viciada.”. (Santo AGOSTINHO,
A graça de Cristo e o pecado original, XVI, 17, p. 282). A função do batismo na Igreja católica, descreve
Santo Agostinho, é a remissão do pecado original transmitido pelos pais. Pelágio não nega o batismo, mas
atribui a ele um outro valor, ou seja, uma força que colabora na ação do bem, esta se manifesta frente ao
compromisso do cristão ao ser batizado.
147
G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 182.
47
crianças não cometeram nenhuma infração que as possa corromper.148 No entanto, Pelágio
não nega o batismo das crianças149, mas este tem um outro sentido. Santo Agostinho
verificaria que a posição de Pelágio e Celéstio – este último, como já foi dito, fiel discípulo
de Pelágio – são as mesmas150 e condena as conclusões de suas idéias, estas porém,
manifestas pelos escritos de Celéstio.
Não dissemos que as crianças devem ser batizadas para a remissão dos
pecados, como se estivéssemos ensinando a transmissão do pecado; esta
doutrina é bem contrária ao pensamento católico. Pois o pecado não nasce
com o ser humano, mas é praticado depois; prova-se que o delito não está
entranhado na natureza, mas na vontade. É conveniente confessar o
anterior (o batismo), para não parecer que estamos estabelecendo diversos
gêneros de batismo. É necessário tomar esta precaução para evitar que, em
se tratando de um mistério, se diga com injúria ao Criador, que o mal, antes
de ser praticado pelo homem, é transmitido pela natureza.151
Santo Agostinho afirma que trazemos luz às afirmações de Pelágio por seu
corajoso discípulo Celéstio. Vemos que quando os pelagianos afirmam o batismo conferem
a ele um sentido misterioso152, pois, o Criador pediu para que batizássemos, no entanto,
seria um sacrilégio dizer que este batismo dar-se-ia em função da obliteração da mancha de
um pecado original. “O pecado não nasce com o ser humano”, o homem não é um ser que
nasce corrompido, mas sua vontade que poderá delinear o caminho a seguir. O bom ou mal
uso da vontade por um livre arbítrio não corrompido é a causa do pecado ou mérito das
ações do homem, logo, se não há contaminação da vontade em função do pecado do
primeiro homem, não há necessidade do batismo. Poderíamos dizer que o batismo é o
acréscimo de mais um poder concedido por Deus ao homem, para que este possa fazer bom
uso de seu livre arbítrio e também uma marca da responsabilidade do cristão de viver a
148
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
381.
149
Cf. Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, V, 5, p. 269 – 270.
150
“Mas entendo que, com razão, já se me pede, conforme prometi, não diferir a prova de que Pelágio tem a
mesma opinião de Celéstio.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XIII, 14, p. 278).
151
Ibid., VI, 6, p. 270 – 271.
152
“As crianças que morrem sem batismo, sei aonde não vão; mas não sei aonde vão.”. (Ibid., XXI, 23, p.
287). Esta frase foi atribuída a Pelágio por alguns irmãos de Agostinho. Ele interpreta esta citação como um
mistério acerca do batismo que Pelágio não consegue resolver. Ele diz que Pelágio sustenta que as crianças
não batizadas não vão para o reino dos céus, mas o mistério se estabelece na medida em que não se sabe para
onde estas crianças vão, já que não cometeram nenhum mal nem contraíram a contaminação do pecado
original, portanto, Pelágio não admitia que elas fossem para o inferno e, por este motivo, incomodava
Agostinho.
48
moral evangélica. Esta idéia está de acordo com aquilo que Pelágio considera como graça
de Deus, ou seja, a doutrina da Igreja. Assim, ao fazer uso dela, a ação tornar-se-ia mais
fácil. É uma hipótese que o batismo possa ser visto desta maneira por Pelágio, mas o
caráter misterioso do pedido do Deus cristão para batizar ainda continua sendo uma
incógnita, pois, como o próprio Pelágio afirma, há crianças que não tiveram a oportunidade
de ser batizadas153 e mesmo assim, ele não diz que estas foram, por este motivo,
condenadas ou salvas. O caso das crianças é problemático por se tratar de humanos que, na
visão de Pelágio, não pecaram, todavia, perguntamos: e quando o homem peca, receberá e
redenção ou ela já está nele?
Para Pelágio a oração é algo que o homem pode fazer uso pedindo o perdão de suas
faltas. “Pelágio faz consistir esta misericórdia e esta ajuda medicinal do salvador somente
no perdão dos pecados cometidos e nega a necessidade da ajuda para se evitar os
futuros.”.154 A natureza humana não pode perdoar os pecados humanos, desta maneira
necessitar-se-ia recorrer a Deus.155 No entanto, a oração não serve para prevenir os
pecados, pois isto, certamente, feriria o livre arbítrio.
Em suma, para Pelágio, o pecado de Adão aconteceu e tornou-se modelo do mal
uso da liberdade humana, esta porém, não foi corrompida com o pecado do primeiro
homem e possui o poder outorgado por Deus para fazer o bem, pois a corruptibilidade de
Adão não foi transmitida a toda a humanidade, sendo assim, a natureza é boa. Portanto, o
livre arbítrio continua flexível para o bem e para o mal e cabe ao homem fazer bom uso do
poder de comandar sua vontade e fazer o bem. Veremos agora a doutrina defendida por
Agostinho quanto ao pecado original e o livre-arbítrio
1.3.3 – Santo Agostinho: pecado original e livre-arbítrio.
É no debate com o pelagianismo que Agostinho ganharia fama internacional: a voz
da Igreja não viria de Roma, mas da África, por um grupo de meninos que no passado
desfilavam nas florestas da Numídia caçando passarinhos e que agora, como bispos e
padres, compunham um bloco fortíssimo contra as heresias. Agostinho não tinha dúvida
que Pelágio era um adversário forte, assim como seus argumentos. “Pela primeira vez em
153
Cf. Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, VIII, 9, p. 118 – 9.
Ibid., XXXIV, 39, p. 149.
155
Cf. Ibid., XVIII, 20, p. 129.
154
49
sua carreira de bispo, viu-se confrontado com adversários de calibre igual ao seu [...]”.156
Pelágio e Agostinho foram os atores principais de um debate que um posicionamento
somente da camada intelectual, mas que exigiria uma posição do simples cristão, gerando
uma crise espiritual em todo a Ocidente.157 Neste debate, a origem do mal e sua relação
com a vontade era um ponto importante, por exemplo, para o entendimento do conceito de
livre arbítrio e sua relação com o pecado original. Em nossa análise da concepção de
pecado original em Agostinho, não encontramos mudanças entre a concepção do mesmo
nos diferentes contextos que estamos analisando, ou seja, na discussão com os
maniqueístas e pelagianos. Por este motivo, citaremos passagens de obras referentes aos
dois contextos. Nosso objetivo é mostrar que a concepção de pecado original sempre
esteve no horizonte do Agostinho cristão. Portanto, vejamos a concepção agostiniana.
1.3.4 – O pecado original.
Santo Agostinho também partilha da idéia que Deus é o sumo bem, como já vimos,
e tudo que Deus criou é bom por excelência158, como o homem, que gozava de plena
perfeição e liberdade, flexível ao bem e ao mal, antes do pecado. “A natureza do homem
foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício.”.159 Mas depois da queda, causada
pela desobediência do primeiro homem – Adão – à ordem de Deus160, ele ver-se-ia
156
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 430.
Ibid., p. 460. Afonso M. A. SOARES e Maria Angela VILHENA no livro O mal: como explicá-lo? fazem
uma abordagem acerca do problema do mal em diferentes culturas. Eles sublinham que o homem ao mesmo
tempo que produz cultura também é produzido por ela, desta maneira, a abordagem antropológica nos seus
diferentes contextos traz consigo diferentes resposta para o problema do mal: o mal enquanto expressão
simbólica na babilônia é associado à tempestade; o mal enquanto impureza, pecado ou culpa; as diferentes
configurações divinas do mal, sublinhando que na medida que aumenta a quantidade de males, cresce
proporcionalmente a quantidade de deuses; por último, as manifestações míticas do mal e seus modelos
teogônicos, adâmico, trágico e órfico. Todavia, destacamos a importância que os autores concedem ao
pecado original na tradição cristã fazendo referência a Santo Agostinho: “No Ocidente fomos acostumados a
uma explicação moral para o mal. Sempre foi usual, pelo menos, desde Santo Agostinho, remontar a certa
leitura do mito judaico de Adão. Porque o primeiro casal humano pecou, desde então o alimento tem sido
obtido com o suor da fronte e as mulheres, no mágico momento de trazer à luz uma nova vida, nunca
escapam da dor.”. (Afonso M. A. SOARES e Maria Angela VILHENA, O mal: como explicá-lo? São Paulo:
Paulus, 2003, p. 12). O pecado original com suas raízes semitas é absorvido em todo ocidente e explorado
detidamente por Santo Agostinho. O sistema de sentido produzido pela descrição do Gênesis organiza – ao
mesmo tempo que confere sentido – toda existência do mal em um mundo criado por um Deus bom.
158
“Com a plenitude da vossa Bondade subsistem as criaturas [...].”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, XIII,
II, 2, p. 259). Para Agostinho o Deus cristão é sempre um criador benevolente: “Cada uma das criaturas
separadamente era boa. Porém, consideradas em conjunto, eram não só ‘boas’, mas até ‘muito boas’.”. (Ibid.,
43, p. 283).
159
Idem, A natureza e a graça, III, 3, p. 114.
160
“E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente. Mas da
árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia que comeres, certamente morrerás.”.
(Gên 2, 16-17, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica
157
50
enlanguescido na injustiça, no ódio e longe do Criador.161 Depois da queda o homem
perdeu sua primeira condição santa, justa e forte. Vejamos o que o pecado causou ao
homem na visão de Agostinho.
Mas a atual natureza, com a qual todos vem ao mundo como descendentes
de Adão, tem agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O
sumo Deus é o criador e autor de todos os bens que ela possui em sua
constituição: vida, sentido e inteligência. O vício, no entanto, que cobre de
trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de necessitar de iluminação e
de cura, não foi perpetrado pelo seu criador ao qual não cabe culpa alguma.
Sua fonte é o pecado original que foi cometido por livre vontade no
homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com justiça a
condenação.162
Santo Agostinho faz uma descrição da condição do homem depois do pecado.
Todos os homens são descendentes de Adão, desta forma, assim como Adão é pai de toda
humanidade, pelo seu pecado, torna-se causa de todo pecado. “Por meio de um só homem
o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a todos os
homens, porque todos pecaram.”163 diz São Paulo (Rm 5, 12) citado por Santo Agostinho.
O pecado, desta forma, é transmitido atavicamente à toda criatura e não estamos livres dele
pelas forças da natureza, pois esta está corrompida. A natureza humana encontra-se doente,
agora precisaria de um médico que possa restabelecer a saúde, desta maneira, o remédio
não está no próprio homem. “Assim, para Agostinho, a liberdade só podia ser a culminação
de uma processo de cura.”.164 O Mediador, Jesus Cristo, faria este papel savífico mediante
a sua misericórdia.165 “De quem procede a misericórdia? Não é daquele que enviou Jesus
do Brasil, 1969). Diante desta ordem de Deus, lembramos das citações que Santo Agostinho faz do apóstolo
Paulo na carta aos Romanos, em sua obra O espírito e a letra: “Eu não teria conhecido a concupiscência se a
lei não tivesse dito: Não cobiçarás.”. (Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, IV, 6, p. 22). Para o apóstolo
Paulo, assim como para Santo Agostinho, não há pecado se não há lei, esta tem o objetivo de acusar.
161
“E vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para
dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também ao seu marido, e ele comeu com ela. Então
foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram
para si aventais.”. (Gên 3, 6-7, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1969).
162
Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, III, 3, p. 114.
163
Rm 5,12 apud Santo AGOSTINHO, A natureza e graça, XXXIX, 46, p. 156.
164
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 465.
165
“A intenção do Apóstolo foi ressaltar a graça que veio por Jesus Cristo perante as demais nações. Depois
de dizer que o pecado e a morte contaminaram todo o gênero humano por meio de um só homem e que a
justiça e a vida eterna vieram por um só homem, sendo aquele Adão e insinuando ser este Jesus Cristo [...].”.
(Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, VI, 9, p. 25). Se Adão é visto como causa da morte, Jesus seria o
51
Cristo a este mundo para salvar os pecadores [...]?”.166 Esta porém, destinada àqueles que
Deus predestinou e escolheu por sua infinita justiça e infinita misericórdia, pois, “[...] toda
raça humana merece castigo.”167 Depois do pecado de Adão, “o vício” enfraqueceria a
natureza, cobrindo-a de trevas, sendo o Mediador a luz para as trevas e a cura para uma
natureza doente. Deus não é, para Agostinho, causa do pecado, pois foi o próprio homem
que fez mal uso do livre arbítrio que Deus o concedeu no momento da criação, desta
maneira, a fonte de todos estes males “é o pecado original que foi cometido por livre
vontade do homem”. Antes da queda o livre arbítrio era flexível para o bem e para o mal,
mesmo com o pecado o homem continua com seu livre arbítrio, mas este totalmente
diferente daquele que se encontrava no primeiro homem, agora suas escolhas se restringem
a uma gama de amores viciosos e maléficos. “O meu amor é meu peso. Para onde quer que
eu vá é ele que me leva.”.168 O pecado corromperia a natureza e afastaria o homem do
sumo Bem, Deus. Desta maneira, fazer-se-ia necessário distinguir o que Santo Agostinho
entende por natureza.
Igualmente, quanto ao termo “natureza”. Entendemos de um jeito, quando
falamos em sentido próprio, isto é, a respeito da natureza específica, na
qual o homem foi primeiramente criado no estado de inocência. De modo
diferente, entendemos o termo “natureza” quando tratamos dessa natureza
na qual como conseqüência do castigo imposto ao primeiro homem, após
sua condenação, nascemos mortais, ignorantes e escravos da carne [...].169
remédio regenerador de uma natureza corrompida em função do pecado de um só homem. Por um só homem
veio o pecado e por um só Mediador – Jesus – veio a salvação.
166
Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, V, 5, p. 116.
167
Ibid., V, 5, p. 115.
168
Idem, Confissões, XII, IX, 10, p. 264. Usamos desta citação da obra Confissões para mostrar como o mal
para o homem pecador é preferível ao bem que Deus deseja. Esta obra é escrita antes da querela pelagiana,
todavia, nela já podemos ver como o pecado alicia o homem para Santo Agostinho.
169
Idem, O livre-arbítrio, III, XIX, 54, p. 212. Esta citação, sendo tirada da obra O livre arbítrio, na qual
Agostinho dialoga com os maniqueus, pareceria indicar que o autor intui ou já conhece a heresia pelagiana.
Apesar de ser um forte indício de um argumento contra o pelagianismo, não me parece plausível afirmar
categoricamente tal hipótese. A tentativa de descrição do homem antes e depois da queda nesta obra pode,
sem nenhuma contradição, fazer parte dos argumentos de Agostinho contra os maniqueus. Ele explica a
condição do homem antes e depois do pecado, mas não descreve efetivamente como o livre arbítrio se
encontra depois da queda, o que supomos que o livre arbítrio é como ele sustenta diversas vezes no livro:
“Assim, quando Deus castiga o pecador, o que te parece que ele diz senão estas palavras: “Eu te castigo
porque não usaste de tua vontade livre para aquilo a que eu te concedi a ti”? Isto é, para agires com retidão.”.
(Ibid., II, I, 3, p. 75). A “escravidão da carne” que ele destaca na citação que fizemos no corpo do texto não
impede que Agostinho tenha em mente que o livre arbítrio é a força necessária que o homem possui para
fazer o bem ou o mal conforme a escolha da sua vontade. Portanto, não é mencionada a graça, somente uma
distinção do estado de natureza do homem, distinção esta que será de grande valia para Agostinho nas
discussões pelagianas nas quais, em todo argumento, a hegemonia da graça seria sublinhada veementemente.
52
O termo “natureza”, como relata o próprio autor, pode ser entendido de duas
maneiras específicas. A primeira seria aquela que se refere a uma natureza antes do pecado
de Adão e, a segunda, depois do pecado. O estado que se encontrava e que se encontra o
homem tem como ponto de referência Adão. O primeiro termo natureza é aquele da
inocência, seria o homem saído das mãos de Deus, bom, saudável, forte, sem mácula,
contemplando Deus face a face. Adão era o mais perfeito dos homens e não havia como
superá-lo. O segundo modo, seria aquele que caracterizaria o homem depois do pecado de
Adão, castigado e condenado por Deus à morte, sendo assim, “mortal”, “ignorante” e
“escravo”. Se antes do pecado o homem desfrutava da imortalidade, através da bondade de
Deus em seu ato criador, da sabedoria, por contempla-LO face a face, e liberdade em sua
capacidade de escolha, com o pecado, estes adjetivos tornar-se-iam contrários àqueles do
primeiro estado de natureza, de maneira especial naquilo que diz respeito ao livre arbítrio
na discussão pelagiana, pois este será visto como capaz somente do mal quando deixado
sob o comando de suas próprias forças. “Dessa maneira, aprouve, muito justamente a
Deus, que governa soberanamente todas as coisas, que nascêssemos daquele primeiro
casal, com ignorância e dificuldade no esforço e na mortalidade.”.170 Pela justiça de Deus
os homens são condenados a viver ignorantes e mortais. “Isso porque ao pecarem foram
precipitados no erro, na dor e na morte.”.171 As características do primeiro estado de
natureza em Santo Agostinho são diferentes do segundo estado de natureza, logo a
aplicação dos termos também se diversifica. É importante ressaltar que Santo Agostinho
não fala de duas naturezas, pois, desta maneira, cairia em contradição com a tese de que
Deus não é causa do pecado. Se Deus criasse as duas naturezas, a primeira não haveria
problemas, pois trata-se de uma natureza boa, no entanto, a segunda natureza criada seria
corrompida e Deus não poderia criar nada corrompido, mesmo porque, a corrupção nada
mais é do que a ausência de Deus, ou seja, aquilo que Agostinho chama de mal.172
Diante desta distinção do conceito de natureza construída ainda quando dialoga
com os maniqueus, Santo Agostinho estaria apto para, mais tarde, responder à intervenção
Na obra O livre arbítrio não há menção da graça, o objetivo é responsabilizar o homem pelo mal que faz e
conceder mérito àquele que faz o bem.
170
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, III, XX, 55, p. 212 – 213.
171
Ibid., III, XX, 55, p. 213.
172
Ver no capítulo II, itens 1.1 e 1.2, a concepção agostiniana de Pascal acerca de uma mesma natureza que é
corrompida pelo pecado, ou seja, não se trata de duas naturezas, uma santa e outra pecadora, mas de um
mesmo estado de natureza que era santo e se corrompe.
53
de Pelágio173 que, diante da afirmação de Santo Agostinho que a natureza, depois do
pecado de Adão, é má, acusa-o de substancializar o pecado, o que é o mesmo que
substancializar o mal.
Se dermos por certo que o pecado não é substância, não se diria também
que o não comer, para não falar de outras coisas, não é substância? Dir-seia melhor que é o privar-se da substância, pois o alimento é substância.
Mas o abster-se de alimento não é substância, mas a substância corporal, se
se priva do alimento, de tal modo se enfraquece, deteriora-se pelo
desequilíbrio da saúde, consomem-se suas forças, se extenua e se abate
pela lassidão que, se de algum modo continua vivendo, mal poderá se
acostumar novamente ao alimento, cuja abstenção foi causa de sua ruína.174
O pecado não é substância, assim como o não comer não é substância. Mas o que
é substância para Santo Agostinho? “[...] Deus é substância [...].”.175 O nome “substância”,
que problematiza aquilo que seria o mal, é dado porque, sendo a substância algo que
subsiste por si mesmo, ou seja, Deus, o mal não poderia ser substancializado de maneira
nenhuma, e nisto concordam tanto Agostinho quanto Pelágio. Para sair da acusação da
substâncialidade do mal por Pelágio, Santo Agostinho recorre a uma analogia: “o não
comer”. O não comer não é substância, mas é o “privar-se da substância”, pois neste caso,
o que caracteriza a substancialidade é o alimento. O alimento, para Agostinho, não é Deus
– em um sentido panteísta –, pois, não podemos esquecer que esta passagem é uma
analogia metafórica. Sendo o alimento a substância, privar-se dele deteriorizaria o corpo e,
conseqüentemente, “desequilibraria a saúde” minando as forças e consolidando um estado
de cansaço que causaria a morte.
Mesmo “o não comer” não sendo uma substância, ele é capaz de deteriorar o corpo,
assim como o pecado que, mesmo não sendo uma substância, pode corromper o corpo.
Será necessário o alimento para novamente estabelecer o corpo em seu estado de saúde, da
mesma forma que precisar-se-á, para estabelecer a alma, da cura de seus males. O pecado
original, fonte de todos os males, prejudica ativamente o homem, desta maneira, devemos
temer tudo aquilo que é pecaminoso, pois “[...] com esse nome se expressa o ato de uma
173
“E Pelágio retruca: [...] Como pôde macular tua alma o que carece de substância?”. (Santo AGOSTINHO,
A natureza e a graça, XIX, 21, p. 130).
174
Ibid., XX, 22, p. 131.
175
Ibid., XX, 22, p. 131.
54
má ação.”.176 Santo Agostinho tenta livra-se das acusações de maniqueísta por parte dos
pelagianos, pois, se fosse afirmado uma substancialidade ao mal, conseqüentemente Deus,
que é criador de tudo, seria criador do mal, no entanto, como de Deus nada provém que
não seja bom, o mal existiria per si, como uma entidade absoluta. Sendo o mal manifesto
na corrupção da matéria e esta criada por Deus, poderíamos supor que o mal é transmitido
pela matéria? Vejamos a explicação de Costa.
Logo, o ponto de partida para a explicação de como se deu a transmissão
do pecado original de Adão aos seus descendentes só pode estar na alma, e
o pecado só pode partir da alma para o corpo, uma vez que, [...] o corpo é
um bem neutro, um elemento passivo ou um mero instrumento a serviço da
alma, que pode servir-se dele tanto para o bem como para o mal.177
O corpo em Agostinho é passivo, ele recebe as inerências da alma que o corrompe,
desta maneira, a corrupção atávica dar-se-ia “na alma”, pois ela é infectada pelo pecado de
Adão e transmite este pecado para toda humanidade. Mas de onde vem alma?178 Difícil
resposta. Todavia, uma coisa é certa: o mal tem como causa o pecado original. Mas antes
de tentar resolver o atavismo do mal, Santo Agostinho encontraria um outro problema: o
livre arbítrio. Deus não poderia ser causa da queda, nem o homem coagido a pecar, o
pecado porém, insere-se na alma, desta maneira, qual a origem do pecado de Adão – a
causa é o homem ou há outra causa, perguntará Agostinho – e como ficaria sua capacidade
de escolha depois da queda? Neste momento é necessário ressaltar uma diferença
importante na obra de Santo Agostinho: a diferença entre o livre arbítrio e a liberdade.
Iniciemos esta distinção pelo conceito de liberdade na discussão com os maniqueus.
1.3.5 – O conceito de liberdade na discussão com os maniqueus.
Vejamos a passagem da obra O livre arbítrio que destaca claramente a concepção
agostiniana de liberdade na discussão com os maniqueus.
176
Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XIX, 21, p. 130.
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
368.
178
Podemos dizer que a origem da alma ficaria sem uma resposta definitiva até o final de sua vida, mesmo
sabendo que Agostinho propôs algumas hipóteses do surgimento da alma, como vimos acima.
177
55
Eis no que consiste a nossa liberdade: estarmos submetidos a esta Verdade.
É ela o nosso Deus mesmo, o qual nos liberta da morte, isto é, da condição
de pecado. Pois a própria Verdade que se fez homem, conversando com os
homens, disse àqueles que nela acreditavam: “Se permanecerdes na minha
palavra sereis, em verdade, meus discípulos e conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará.”. (Jo 8, 31.23). Com efeito, nossa alma de nada goza
com liberdade se não goza com segurança.179
A liberdade é definida teologicamente. Deus é a Verdade e somos verdadeiramente
livres quando submetidos à esta Verdade, assim, estamos livres do pecado e,
conseqüentemente, da morte. Esta passagem da sua obra O livre arbítrio é escrita quando o
autor ainda argumentava contra a heresia maniqueísta, desconhecendo os argumentos do
pelagianismo, assim, a liberdade é estar submetido à “Verdade que se fez homem”, ou seja
Cristo. Uma resposta aos maniqueus que diferentemente dos cristão se submetiam às
palavras de Mani. É Cristo que nos liberta da morte, não Mani. A morte é a marca da
condição de pecado do homem, não de uma substância maligna que coage o homem. É
preciso ressaltar que Santo Agostinho concorda com a idéia bíblica que o pecado trouxe ao
gênero humano a morte, algo que será afirmado na discussão com os maniqueus, e com
maior ênfase na querela pelagiana. Assim, no contexto em que escreveu O livre arbítrio, a
referência de Santo Agostinho para definir aquilo que ele entende por liberdade é o
evangelista João; ele ressalta a submissão à palavra de Jesus Cristo como meio de conhecer
a verdade e, assim procedendo, estaríamos libertos. É Cristo que poderia dar total
segurança para obter a liberdade; não se trata de uma liberdade diminuta, mas de uma
liberdade total que não lançaria o homem a morte, ou seja, ao pecado, mas transformaria a
ação do homem encaminhando tais ações para o cumprimento dos preceitos cristãos.
Portanto, no contexto no qual discute com os maniqueus, a liberdade é definida
como submissão a Deus, à palavra de Deus, a Cristo que se encarnou, se fez homem,
promulgou a verdade na qual todo homem deveria se submeter. No entanto, a idéia de uma
liberdade associada a graça seria construída gradativamente no pensamento agostiniano e
se manifestaria em sua discussão com os pelagianos. Vejamos agora a nova concepção do
conceito de liberdade nas controvérsias pelagianas.
179
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, XIV, 37, p. 121.
56
1.3.6 – O conceito de liberdade nas controvérsias pelagianas.
Para o Agostinho que argumentava com os pelagianos, Deus resgataria o homem do
pecado através do seu Espírito Santificador. Desta maneira, ele escreve em sua obra O
espírito e a letra em 412180, primeira obra depois de tomar conhecimento da heresia
pelagiana, em 411 – pelas cartas de Flávio Marcelino, um comissário imperial –, que a
heresia pelagiana estava se espalhando em Cartago181: “Pois o Senhor é Espírito, e onde se
acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade (2Cor 3,17). Este é o Espírito de Deus, cujo
dom nos justifica, que nos leva a ter prazer em nos abstermos do pecado, no qual consiste a
liberdade.”.182 Mudança gradativa de um pensador que exalta a progressão do
pensamento!183 Onde se encontra o Espírito de Deus, a liberdade fazer-se-ia presente
libertando o homem dos grilhões do pecado. O conceito de liberdade está intimamente
ligado com o conceito Deus, desta maneira, estar imerso na liberdade é, para Santo
Agostinho, estar possuído pela graça de Deus. Graça e liberdade passam a ter uma relação
de causa e efeito no sistema Agostiniano contra o pelagianismo. Em uma outra obra
chamada A graça e a liberdade184 (426 – 427)185 escrita para os monges de Hadrumeto, os
quais encontravam problemas na relação entre a graça de Deus e a liberdade, Agostinho
diz: “Portanto, a vitória obtida sobre o pecado é também dom de Deus, o qual neste
combate, vem em auxílio da liberdade.”.186 A capacidade de escolha do homem depois da
queda é mantida, todavia as escolhas que o homem poderá fazer é a que mal ele
escolherá.187 A vitória sobre o pecado é dom de Deus, desta maneira o mérito humano é a
própria glória de Deus que se manifesta no homem. “Portanto, se os teus méritos são dons
de Deus, ele não coroa os méritos como teus, mas como dons que são dele.”.188
Portanto, constatamos, nas diferentes obras analisadas, uma mudança na definição
do conceito de liberdade: Na obra destinada aos maniqueus – O livre arbítrio – a liberdade
é conceituada como submissão à palavra, à Verdade, a Cristo; já nas obras pelagianas a
180
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 352.
Ibid., p. 352.
182
Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, XVI, 28, p. 49.
183
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 441.
184
Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002.
185
O pelagianismo já tinha sido condenado e Agostinho já de idade avançada tinha amadurecido seu
pensamento quanto a querela pelagiana
186
Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade, IV, 8, p. 33.
187
A ação salvífica visa fazer retornar a vontade humana ao seu equilíbrio original, capaz de escolher
livremente entre o bem e o mal. “Depois da queda, só podia escolher o mal.”. (G. R. EVANS, Agostinho
sobre o mal, p. 243; grifo meu).
188
Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade, VI, 15, p. 39.
181
57
liberdade está relacionada à graça de Deus, sempre ligada com a ação de Deus no coração
do homem. Agora faremos uma descrição do conceito de livre arbítrio que apresenta
mudanças que precisam ser consideradas. Procederemos da seguinte maneira: primeiro
mostraremos a concepção de livre arbítrio em Agostinho na discussão com os maniqueus,
depois, na discussão pelagiana, destacando as mudanças existentes.
1.3.7 – O conceito de livre arbítrio na discussão com os maniqueus.
Santo Agostinho, como já foi dito, produz grande parte de obra em diálogo e por
este motivo verificamos diversas contradições. Exemplo disso fazer-se-ia presente em uma
comparação de algumas de suas obras, ressaltando o contexto na qual ela foi produzida e,
conseqüentemente, as idéias nelas proferidas. Em seu livro O livre arbítrio, Agostinho
discute com os maniqueus, desta maneira, podemos perceber na obra inúmeras afirmações
pelagianas: Santo Agostinho engrandece o homem como portador de um livre arbítrio
capaz de escolher entre o bem e o mal. Seu objetivo era afirmar que o homem é causa do
bem e do mal, não sendo coagido a fazer o mal, como pensava os maniqueístas, estes
porém, não responsabilizando o homem pelo mal cometido. Vejamos a afirmação de Santo
Agostinho no segundo livro da obra acima citada, em diálogo com seu discípulo Evódio.
Evódio: [...] Além de que, já o afirmei antes, e tu o aprovaste, todo bem
procede de Deus. Isso nos faz compreender que o homem também procede
de Deus. Porque o próprio homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem
a possibilidade, quando o quer, de viver retamente.
Agostinho: Realmente, e se é essa a questão por ti proposta, já está
claramente resolvida. Pois, se é verdade que o homem em si seja certo
bem, e que não poderia agir bem, a não ser querendo, seria preciso que
gozasse de vontade livre, sem a qual não poderia proceder dessa
maneira.189
Todo bem vem de Deus, afirma Evódio. Logo, se o homem vem de Deus, então ele
é um bem, desta maneira, o homem, “enquanto homem” é um “certo bem”, tendo consigo
a possibilidade de, quando quiser, agir corretamente. Agostinho concorda plenamente com
as idéias de Evódio, afirmando que o homem só poderia agir bem se quisesse e, para tal
189
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, I, 2, p. 74.
58
fato, precisaria de vontade livre. É necessário mais uma vez lembrar que Santo Agostinho
está em discussão com os maniqueus e pretende salvaguardar o livre arbítrio do homem,
desta maneira, faz outras afirmações que poderiam ser consideradas pelagianas.
Assim, quando Deus castiga o pecador, o que te parece que ele diz senão
estas palavras: “Eu te castigo porque não usaste de tua vontade livre para
aquilo a que eu a concedi a ti?” Isto é, para agires com retidão. Por outro
lado, se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia
existir este bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os
pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta deste homem não
seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntário. Igualmente o
castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de
vontade livre.190
O castigo do homem é por merecimento e isto é uma constante em sua obra, no
entanto, o merecimento da salvação, em função de uma boa ação ao homem imputada, é
uma concepção que sofreria mudanças no decorrer de sua obra. Quando Agostinho discute
com os pelagianos verificamos constantes afirmações sobre a condenação justa do homem
e a salvação, não por merecimento, mas gratuitamente.191 Antes disso, percebemos que na
citação acima de seu livro O livre-arbítrio, o homem tem uma vontade livre para decidir
entre fazer o mal e fazer o bem. Santo Agostinho escreve que se o homem não tivesse o
livre arbítrio não poderia manifestar uma ação justa nem pecaminosa, pois, somente Deus
poderia castigar o homem em função do pecado se estivesse no poder do mesmo escolher
entre o bem e o mal; se o homem não tivesse livre arbítrio, como Deus poderia condenar
alguém que é coagido a fazer o mal? A coação divina na ação maléfica era a perspectiva
dos maniqueístas, Santo Agostinho, ao contrário, queria responsabilizar o homem pelo
mal. Mas, ao responsabiliza-lo pelo mal, também o responsabilizaria pelo bem, para que
190
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, I, 3, p. 75.
São inúmeras as passagens nas quais Agostinho ressalta a gratuidade da graça: “Mas esta graça, sem qual
nem as crianças nem os adultos podem ser salvos, não é dada em consideração aos merecimentos, mas
gratuitamente, o que caracteriza a concessão como graça. Justificados gratuitamente pelo sangue.”. (Idem, A
natureza e a graça, IV, 4, p. 115). “Assim, onde superabundou o delito, a graça superabundou não pelos
merecimentos do pecador, mas pela ajuda de quem o socorre.”. (Idem, O espírito e a letra, VI, 9 p. 26). “E
ele estende sobre eles sua justiça, com a qual justifica o ímpio, não porque são retos de coração, mas para que
sejam retos de coração (Rm 4,5).”. (Ibid., VI, 10, p. 27). “Com efeito, por meio da graça é justificado
gratuitamente, ou seja, sem nenhum mérito precedente de suas obras, pois, ao contrário, a graça não é de
graça (Rm 11,6).”. (Ibid., X, 16, p. 34). Na ocasião em que Santo Agostinho escreve a obra O espírito e a
letra ele está em discussão com os pelagianos que afirmam a potência humana para fazer o bem e o mal,
assim, Santo Agostinho contra-ataca dizendo que o mal é fruto de uma natureza decaída do homem, mas o
bem, que o homem faz, é fruto da graça.
191
59
assim, possa “[...] manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações
[...]”.192 Desta maneira, o livre arbítrio nesta obra acima citada foi colocado por Deus – que
só concede coisas boas – na vontade humana. “Estabelecemos ainda que é próprio da
vontade escolher o que cada um pode optar e abraçar.”.193 Santo Agostinho concede, nesta
obra, supremacia da vontade humana e, a graça, é um assunto que não é sequer tocado já
que o objetivo de Santo Agostinho era refutar o fatalismo da vontade sustentada pelso
maniqueístas.194
Logo, que motivo existe para crer que devemos duvidar [...] que é pela
vontade que merecemos e levamos uma vida louvável e feliz; e pela mesma
vontade, que levamos uma vida vergonhosa e infeliz.195
Os pelagianos diziam que esta afirmação de Santo Agostinho não contrariava a sua
doutrina que anelava às forças da natureza a responsabilidade do bem e do mal, ao
contrário, estava de pleno acordo. Entendemos, que na obra O livre-arbítrio, Santo
Agostinho outorga ao livre arbítrio o poder para querer e fazer o bem. O poder é dado por
Deus, mas é o homem que poderá fazer bom uso ou não dele. Assim, o merecimento de
uma vida feliz e sem pecado depende exclusivamente da vontade do homem, argumento
tipicamente pelagiano, pois está no homem o poder e domínio de sua vontade.
Portanto, se por nossa boa vontade amamos e abraçamos essa mesma boa
vontade, preferindo a todas as outras coisas, cuja conservação não depende
de nosso querer, a conseqüência será, como nos indica a razão, que nossa
alma esteja dotada de todas aquelas virtudes cuja posse constitui
precisamente a vida conforme a retidão e a honestidade. De onde se segue
esta conclusão: todo aquele que quer viver conforme a retidão e
honestidade, se quiser pôr esse bem acima de todos os bens passageiros da
192
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, I, 3 p. 75.
Ibid., I, XVI, 34, p. 67.
194
Moacyr Novaes destaca que na obra agostiniana O livre arbítrio continham argumentos que visavam
atacar o maniqueísmo. Vejamos: “Em linhas gerais, devemos assinalar que a afirmação da liberdade,
naqueles texto do final do século IV, tem em vista o combate acirrado que o jovem Agostinho fazia ao
maniqueísmo. O que está em jogo ali é a natureza humana e, particularmente, como se entende a relação, no
homem, entre o corpo e a alma. O maniqueísmo, no final do século IV e início do século V, não era apenas
uma palavra para designar certa mentalidade, certo modo de ver o mundo, mas designa rigorosamente uma
corrente religiosa e filosófica./ Será contra este maniqueísmo, uma forma de cristianismo que representava
um pensamento importante àquela altura da história de Roma, que Agostinho vai dirigir sua artilharia, e vai
afirmar inequivocadamente a liberdade humana.”. (Moacyr NOVAES, Vontade e contravontade, p. 61. In:
Adauto NOVAES, (org).O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 59 – 76).
195
Santo AGOSTINHO,O livre-arbítrio, I, XIII, 28, p. 60.
193
60
vida, realiza conquista tão grande, com tanta facilidade que, para ele, o
querer e o possuir serão um só e mesmo ato.196
Esta afirmação de Santo Agostinho é tipicamente pelagiana, pois é em função da
vontade humana que podemos “abraçar” a boa vontade. Assim, perguntamos: Esta boa
vontade não estaria presente em todo gênero humano, já que sem ela Deus não poderia
condená-los, como afirmou Agostinho na citação acima? E isto, no que contraria a doutrina
pelagiana? A afirmação de Agostinho infere que a conservação das boas coisas (virtudes)
não depende de nós, pareceria plausível supor que depende de Deus. No entanto, que
“nossa alma esteja dotada de todas aquelas virtudes” é uma afirmação que insere na alma
humana toda possibilidade do bem. Desta maneira, quem vive com retidão e honestidade e,
pela sua vontade quer viver assim, poderá realizar tal ato, pois as virtudes estão presentes
na alma humana. No “possuir” encontra-se as virtudes depositadas por Deus em seu ato
criador, no “querer” encontra-se a responsabilidade humana de fazer o bem ou rejeitá-lo,
portanto, o fazer nada mais é senão um bom e responsável uso das virtudes concedidas por
Deus em sua criação. Santo Agostinho, sustentando a responsabilidade do homem em fazer
o mal, precisaria necessariamente postular o bem, ao menos como possibilidade à natureza
humana, competindo assim, ao próprio homem, fazer bom uso desta liberdade.197
Lembremo-nos da afirmação de Evódio acima citada que Santo Agostinho concorda
plenamente. “Porque o próprio homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem a
possibilidade, quando o quer, de viver retamente.”. Cabe ao homem a escolha, pois está
nele a capacidade do bom uso do bem ou do não uso do bem que ele possui em sua
natureza: não usar do bem presente na natureza humana caracterizaria o pecado e a morte.
Seria esta a visão de Agostinho do livre arbítrio em suas discussões com os maniqueus em
sua obra O livre-arbítrio: o homem tem um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal.
Todavia, ainda em sua obra O livre-arbítrio, no livro III – livro que foi escrito mais tarde
(ano 394-395) –, sua concepção de livre arbítrio pareceria sofrer mudanças, mesmo
dialogando ainda com os maniqueus. Seria uma intuição da querela pelagiana? Vejamos:
Nada de espantoso, aliás, se o homem, em conseqüência da ignorância, não
goze do livre arbítrio de sua vontade na escolha do bem que deve praticar.
Ou ainda, se diante da violência de seus maus hábitos carnais tornados, de
196
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, I, XII, 29, p. 61.
Esta visão de Santo Agostinho sofrerá mudanças radicais em obras posteriores em que discutia com os
pelagianos. Elucidaremos estas mudanças mais abaixo.
197
61
certo modo, disposições naturais por efeito do que há de brutal na geração
da vida mortal, o homem veja perfeitamente o bem a ser feito, sem contudo
poder realiza-lo. De fato, essa é a punição muito justa do pecado: fazer
perder aquilo que não foi bem usado, quando seria possível tê-lo feito, sem
dificuldade alguma, caso o quisesse.198
Agostinho cita esta passagem em sua obra Retractationes para demonstrar que ele
já partilhava da idéia do pecado original, antes mesmo da controvérsia pelagiana.199 Na
citação acima pareceria que o livre arbítrio não possui mais a possibilidade de escolha do
bem. O mal é visto como uma disposição do homem em função de “seus maus hábitos
carnais”, desta forma, o mal é atribuído ao homem e, nisto não há mudança nenhuma nas
diferentes concepções do Agostinho cristão. No entanto, pareceria plausível supor que o
livre arbítrio não é mais responsável pelo bem, embora o homem “veja perfeitamente o
bem a ser feito”, ou seja, ele sabe o que deveria ser feito e como deveria agir, sendo que
muitos querem agir como se deve, mas sem “poder realizá-lo”. O querer e o poder
pareceria não estar mais sob o domínio do homem por uma punição do mal uso do seu
livre arbítrio que podendo escolher entre o bem e o mal, escolheu o mal, assim, por uma
punição justa, o homem é condenado. O cumprimento de uma boa ação não procede mais
do homem, mas da ação de Deus no homem. O que era conhecido e fácil de cumprir,
agora, em função do pecado, torna-se desconhecido e dificultoso. “Na verdade, tais são as
duas reais penalidades para toda a alma: a ignorância e a dificuldade. Da ignorância
provém o vexame do erro; e da dificuldade, o tormento que aflige.”.200 Mesmo aquele que
conhece, ao tentar cumprir a lei envergonhar-se-ia em função do fracasso, já aquele que
desconhece, encontra-se sempre no erro, e este tortura. Esta leitura que fizemos na citação
acima poderia ser uma possível interpretação que mostraria um Agostinho, no livro III de
O livre arbítrio, como um polemista contra o pelagianismo? Não acreditamos que
Agostinho neste momento tenha conhecimento da heresia pelagiana, nem que a graça
esteja implícita neste momento do debate, lembrando que a graça como dádiva de Deus era
o argumento mais forte de Agostinho na querela pelagiana. Vejamos a explicação de nossa
posição:
198
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, III, XVIII, 52, p. 209-10.
Nair de Assis OLIVEIRA, Tradução, Organização, introdução e notas, p. 254 In: Santo AGOSTINHO, O
livre-arbítrio. trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995.
200
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, III, XVIII, 52, p. 210.
199
62
Temos conhecimento que as afirmações de Santo Agostinho em seu livro O livrearbítrio, parte I e II, poderiam ser interpretadas como afirmações que caracterizariam o
homem antes do pecado, no entanto, nossa pesquisa discorda de possíveis afirmações deste
tipo, pois, estando Agostinho discutindo com os maniqueus e querendo solapar a idéia
maniqueísta de coação, ele enfoca e caracteriza o livre arbítrio como causa do bem e do
mal, pois em qualquer tipo de coação que Santo Agostinho atribuísse ao homem ele seria
maniqueísta e tiraria deste último a responsabilidade. Outro ponto importante a ressaltar é a
tentativa de Agostinho em descrever a ação do homem cotidianamente e mostrar que ele
pode escolher o que ele poderia fazer. “Pois cada pessoa ao cometê-lo é autor de sua má
ação.”.201 Se o homem é autor de sua má ação, se vê“[...] perfeitamente o bem a ser feito
[...]”202, mas não pode “[...] realizá-lo”203, poderíamos dizer que estes argumentos são
faíscas da grande fogueira da querela pelagiana, não que Agostinho já tenha conhecimento
da heresia pelagiana, muito menos das respostas aos problemas que o pelagianismo iria
trazer. Para Agostinho, diz o biógrafo Peter Brown, “[...] esses debates estavam muito
distantes em 410.”204, visto que a querela pelagiana só chega aos ouvidos de Agostinho em
411, por Flavio Marcelino. Há uma contradição histórica caso seja afirmado que Agostinho
conhecia ou intuía o pelagianismo quando escrevia o livro III de O livre arbítrio em 395.
Brown destaca que Agostinho só poderia ter tido contato com as afirmações pelagianas
depois de 410, após a invasão de Roma pelos bárbaros. Desta maneira, apesar da citação
acima conter fortes indícios de uma discussão com Pelágio, acreditamos que as explicações
de Agostinho em sua obra Retractationes seria uma tentativa desesperada de salvar a obra
O livre arbítrio, sendo este livro o mais citado por Agostinho em suas Retractationes:
A finalidade deste diálogo não obrigava a tratar da graça e de sua
necessidade. Foi ele entabulado por causa dos (maniqueus), que recusavam
ver a origem do mal no livre arbítrio da vontade, e que pretendiam assim
pôr a culpa em Deus, que é o criador de todas as substâncias. Queriam eles,
conforme o erro de sua impiedade, introduzir uma natureza má, imutável e
coeterna a Deus. Quanto à graça de Deus, que predestina seus eleitos de
forma a preparar a vontade mesma daqueles que já se servem do livre
201
Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, I, I, 1, p. 26.
Ibid., III, XVIII, 52, p. 209 – 210.
203
Ibid., III, XVIII, 52, p. 210.
204
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 428.
202
63
arbítrio, não há nesses livros discussões a este respeito, devido a
particularidade da questão que nós não tínhamos proposto a tratar.205
Desta maneira, verificamos que o próprio Agostinho revela que neste momento a
discussão era com os maniqueus, desta maneira, a querela pelagiana que colocaria a graça
como argumento central do debate não estava no horizonte no contexto da obra O livre
arbítrio. Mesmo porque, no livro III, escrito mais tarde, encontramos passagens que os
pelagianos usavam contra Agostinho para acusá-lo de maniqueísta, a saber: a primeira,
Agostinho fala sobre as criaturas de Deus: “Estas Deus as criou não para que pecassem,
mas para que acrescentassem algo à beleza do universo, quer consentindo, quer não, ao
pecado.”.206 Vemos que há uma ênfase consistente de que há no homem possibilidade de
escolha, consentindo ou não ao pecado; a segunda, “Em todo caso, ninguém pode negar
que o pecado existe. Logo, será possível ao homem evitá-lo.”.207 O homem tem a primazia
da vontade, cabe à força humana evitar o pecado. Portanto, o próprio Agostinho estaria de
acordo com nossa hipótese em suas Retractationes, pois, para ele, a discussão era com os
maniqueus. Assim, a leitura histórica de Brown também confirma nossa hipótese: somente
depois de 410 Agostinho toma conhecimento dos argumentos pelagianos. Logo, não há
contradição entre estes dois dados em nossa interpretação. Na obra O livre arbítrio a
concepção do livre arbítrio presente homem é visto como algo flexível ao bem e ao mal, de
forma que a liberdade era o ato de submissão à Verdade que é Cristo, não Mani.
Portanto, depois de esclarecido o que é liberdade para Santo Agostinho, nos
diferentes contextos que discutia com os maniqueus e pelagianos, verificado a definição do
livre arbítrio que se estabiliza no contexto em que discutia com os maniqueus, vejamos
abaixo a nova concepção de livre arbítrio na querela pelagiana e a relação deste com o
conceito liberdade estabilizado no contexto em que Agostinho discute com os pelagianos,
como vimos acima. Vale lembrar que destacaremos, progressivamente, as diferentes
concepções dos dois conceitos – livre arbítrio e liberdade – nos distintos contextos.
1.3.8 – O conceito de livre arbítrio na discussão com os pelagianos.
205
Santo AGOSTINHO, Retractationes, 1, I, 9,1 – 6 apud Nair de Assis OLIVEIRA, Tradução, organização,
introdução e notas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 252 – 253. Ver nota 30.
206
Idem, O livre-arbítrio, III, XI, 32, p. 186.
207
Ibid., III, XVIII, 50, p. 208.
64
Iniciamos nosso trabalho citando o comentador Marcos Roberto Nunes Costa que
destaca as importantes diferenças entre o conceito de livre arbítrio e liberdade na querela
pelagiana.
E tais distinções são de fundamental importância nos embates com
pelagianos, quando, ao refutar as objeções destes de que há contradição
entre livre arbítrio da vontade humana e graça divina, Agostinho diz que o
que o homem perdeu com o pecado original foi a liberdade, ou a
necessidade do bem, e não o livre arbítrio ou a possibilidade do bem. E é
justamente ao livre arbítrio que a graça deve ajudar, fazendo com que este
tenha não somente a possibilidade do bem, mas que lhe restitua a
necessidade do bem, pois quanto ao mal, não existe nenhuma dificuldade
em querê-lo sem nenhuma ajuda. Portanto a graça não anula o livre
arbítrio, mas devolve a este a plena liberdade, que, na sua condição
decaída, só é livre para o mal.208
A preocupação de Santo Agostinho, no debate com Pelágio, é mostrar que a
natureza humana, sem Deus, só faz o mal. O homem quando deixado sobre às forças de
seu livre arbítrio, conseqüentemente, tenderia à gravidade do mal e não teria como escapar
disso. “Para não sucumbir à tentação, não basta o livre arbítrio da vontade humana, se o
Senhor não favorecer a vitória ao que ora.”.209 Depois do pecado o mal toma conta do
homem e o livre arbítrio não basta para fazer o bem.210 A graça não poderia estar, de
maneira nenhuma, contra o livre arbítrio, pois, se a graça não concede a liberdade, não há
livre arbítrio: visão diferente daquele Agostinho em discussão com os maniqueus. O
homem deixado sobre o peso de seu livre arbítrio, depois do pecado, segue a sua vontade
deturpada e má. A vontade regenerada pela graça teria a capacidade de fazer o bem, assim,
verifica-se que há uma necessidade de distinguir o livre arbítrio, este dotado de
possibilidade para fazer o bem, mas não faz por ter uma vontade corrompida, e a liberdade
que, pela operação regenerativa da graça, concede ao livre arbítrio as forças necessárias
para querer e fazer o bem. Ao sustentar que o livre arbítrio não sofreu deturpação por causa
208
Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p.
365 – 366.
209
Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002, IV,
9, p. 33.
210
“Proclamo a necessidade da graça de Deus, sem a qual ninguém alcança a justificação, e que não é
suficiente o livre arbítrio da natureza.”. (Idem, A natureza e a graça, LXII, 73, p. 185).
65
da corrupção da vontade humana, Pelágio é acusado por Agostinho de anular a cruz de
Cristo, pois, se está dentro da vontade humana fazer o bem, qual a necessidade da graça
regeneradora de Cristo? Todavia, os pelagianos acusam Agostinho de maniqueísmo, pois,
ao afirmar que a vontade humana, quando abandonada a seu livre arbítrio só faz o mal, tira
toda responsabilidade humana do mal, pois ele depende de Deus para fazê-lo. É o fatalismo
maniqueísta que, para Pelágio, pareceria um absurdo. Já Agostinho, se defende de tal
acusação dizendo que Pelágio atribui ao homem e a Deus o bem, desta maneira deveria
atribuir ao homem e a Deus o mal, pois, se depende do homem e de Deus o bem, o homem
sempre deveria fazer o bem, já que Deus não deixaria de maneira nenhuma fazer o mal.211
Pelágio e Celéstio acreditam na idéia de que há duas raízes no homem, uma para o bem,
presente na possibilidade dada por Deus de o fazer e, outra para o mal, na qual o homem
faz mal uso de seu livre arbítrio. “Para eles, a diferença entre os homens bons e maus era
muito simples: uns escolhiam o bem, outros, o mal.”.212 O que Santo Agostinho contesta é
o fato de que Deus seria colaborador nas maldades humanas se ele deixasse ao homem a
escolha entre o bem e o mal, pois a criatura só fará o mal, nunca o bem, quando seu livre
arbítrio é deixado sob o comando de suas próprias forças deturpadas pelo pecado. Para
Santo Agostinho, o mal provém do livre arbítrio do homem, nunca de Deus. “Mas, no ser
humano, a concupiscência, que é vício, tem por autor o próprio homem ou o sedutor do
homem, não o criador.”.213 Portanto, o bem, a virtude, a caridade, não provém da criatura,
mas de Deus, àqueles que Ele elegeu por um mistério insondável. O homem submetido à
graça de Deus estaria em plena liberdade, pois a liberdade é a própria graça. “A caridade,
porém, que é virtude, provém-nos de Deus, e não de nós mesmos.”.214 Não estaria o
homem, a partir das afirmações de Agostinho sobre a concessão da liberdade pela graça,
sendo coagido a fazer o bem, assim como a fazer o mal? A resposta de Agostinho seria
não. “Anulamos a liberdade pela graça? De forma alguma; mas consolidamo-la. Assim
como a lei se fortalece pela fé, a liberdade não se anula pela graça.”.215 A graça só faz
ratificar a liberdade e esta torna-se prerrogativa basilar para a salvação. O homem,
permeado e vivificado pela graça e, conseqüentemente, verdadeiramente livre, faz o bem,
mas é Deus quem o faz no homem através da graça, portanto, ela garantiria a verdadeira
211
Cf. Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, p. 232.
Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 464.
213
Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XX, 21, p. 234.
214
Ibid., XXI, 22, p. 234.
215
Idem, O espírito e a letra, XXX, 52, p. 78.
212
66
liberdade. O mal é conseqüência do pecado, de um mal uso do livre arbítrio216, pois este,
diz Costa, “só é livre para o mal”. O livre arbítrio sem a liberdade é a possibilidade do
homem escolher de quem e, do quê, ele vai ser escravo. Desta maneira a graça não anula
liberdade, diz Agostinho, pois só há liberdade onde encontra-se a graça. Mas mesmo diante
da verdadeira liberdade reconhecida como a graça de Deus que regenera a vontade e a
natureza, estas infectadas pelo pecado, podemos perguntar: qual é a parcela humana ou
cooperação no processo salvífico na discussão com Pelágio? Convocamos o bispo de
Hipona para responder tal pergunta:
É claro que nós também fazemos, mas cooperando com a obra daquele que
nos antecede pela sua misericórdia. Ele nos antecede para que sejamos
curados, e nos acompanha para continuarmos são; antecede-nos para que
levemos a vida santamente e acompanha-nos para com ele sempre viver,
porque sem ele, nada podemos fazer (Jo 15,5).217
O homem não é absolutamente passivo naquilo que diz respeito à salvação. Ele
coopera com Deus na obra savífica, todavia, a cooperação humana é antecedida pela
misericórdia de Deus. Como a vontade corrompida do homem está voltada para o mal, o
homem sozinho só poderá fazer o mal, mas quando permeado pela graça de Deus ele faz o
bem. Entendido desta forma, o homem coopera para a salvação. Santo Agostinho somente
consolida a vontade do homem como boa levando em conta sempre a misericórdia de Deus
que concede a graça as suas criaturas. A concessão da graça implica na cura, assim não é
nenhuma novidade que, para Agostinho, o homem doente pelo contágio do pecado original
precisar-se-á ser curado. Nada é mais evidente, para o bispo de Hipona, que a graça age
provocando o efeito curativo pelo Médico Jesus Cristo. Tal remédio é caracterizado pelo
sangue de Cristo na Cruz derramado em quem Ele quiser. O homem precisa
216
Cf. Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, XVII, 30, p. 51. O homem é incapaz pelas suas próprias
forças de realizar o bem depois do pecado de Adão. Assim é a leitura de Santo Agostinho da segunda carta
aos Coríntios do apóstolo São Paulo. Diz Agostinho, a partir desta leitura, em referência a Cristo: “Ele nos
ordena a fim de que nele nos refugiemos, visto sermos incapazes por nossas próprias forças.”. (Santo
AGOSTINHO, O espírito e a letra, XVII, 30, p. 51).
217
Idem, A natureza e a graça, XXXI, 35, p. 145. Mais tarde, em 429, Agostinho escreve um livro chamado
O dom da perseverança. Nele é destacado alguns temas correntes na discussão pelagiana: como é a atuação
da graça do início até a perseverança final; sobre a necessidade do batismo das crianças; a progressão que ele
passara entre a obra presente e a obra O livre arbítrio; a predestinação; e a relação justiça e misericórdia de
Deus: “Apresenta-se agora esta objeção: “Mas por que a graça de Deus não é concebida de acordo com os
merecimentos humanos?” Respondo: Porque Deus é misericordioso. Volta a perguntar: “Por que não é
concedida a todos?” Porque Deus é juiz.”. (Santo AGOSTINHO, O dom da perseverança. 2ª ed. trad.
Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002, VIII, 16, p. 227).
67
necessariamente que o remédio o acompanhe para permanecer são, desta maneira, qualquer
instante sem o sangue regenerador implicará em pecado. O homem coopera e Santo
Agostinho não nega tal prerrogativa, mas implicar-se-á em sérios problemas dentro do
sistema agostiniano uma interpretação que venha a consolidar a boa ação sem graça,
misericórdia ou o sangue regenerador do Cristo derramado sobre o coração do homem,
pois “[...] sem ele, nada podemos fazer”218 diz Agostinho em referência ao livro de São
João.219 Deus concede através da graça o poder necessário para poder fazer a ação boa,
regenerando a vontade de tal modo que a mesma deseje o bem. Assim, o homem coopera
no processo salvífico.
A cooperação implica em três conceitos basilares naquilo que diz respeito a boa
ação do homem. A concepção agostiniana dos conceitos poder, querer e fazer, que fazem
referência à atuação moral do homem, mudam radicalmente. Como foi dito acima, no seu
livro O livre arbítrio, poder e querer estariam dentro das capacidade humanas de fazer
bom uso de sua liberdade e agir de maneira virtuosa; já em suas obras destinadas as
controvérsias pelagianas esta visão de mundo muda.
A graça de Deus deve ser afirmada, como imprescindível para nós, não só
em relação a um dos três fatores, ou seja, à possibilidade da boa vontade e
da ação, mas também à vontade e à boa ação.
[...]
Pois Deus não somente outorga e ajuda nosso poder, mas também opera
em nós o querer e o agir (Fl 2,13). Não porque não queiramos ou não
operemos, mas também porque, sem sua ajuda, não podemos desejar nem
praticar o bem.220
A graça de Deus é “imprescindível”. Esta afirmação resume o ponto crucial da
controvérsia de Agostinho com Pelágio. A graça sempre é a causa do bem, nunca a
natureza, esta sempre faz o mal. Agostinho associa à graça, neste contexto da discussão
com Pelágio, três pontos importantes: o poder, o querer e o fazer. Deus ao conceder a
graça aos seus eleitos pela sua infinita misericórdia capacita o homem, ou seja, lhe dá o
poder para querer o bem. Não sendo suficiente o poder, Deus regenera a vontade do
218
Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XXXI, 35, p. 145.
“Eu sou a videira, vós as varas: quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim nada
podeis fazer.”. (Jo 15,5, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1969).
220
Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XXV, 26, p. 239 – 240.
219
68
homem e faz com que ele queira fazer o bem. Não sendo suficiente o poder e o querer,
Deus opera no homem o fazer, cumprindo na criatura o objetivo da graça, ou seja, curar
uma natureza escrava do mal quando deixada as suas próprias forças, concedendo o
remédio regenerador em três níveis: no querer, no poder e no fazer. Esta nova possição é
totalmente diferente daquela que sustentava contra os maniqueus, na qual poder, querer e
fazer estavam dentro da capacidade humana depois do pecado, como vimos acima.221 Mas
porque Agostinho insiste nestes três pontos na discussão com Pelágio? Isto dar-se-ia em
função de uma radiografia da vontade humana, pois, o poder fazer, não implica em querer
fazer e nem fazer; o querer fazer não implica em poder fazer, muito menos fazer; o fazer
será impossível se o homem não pode e não quer. Desta maneira, preenchendo qualquer
um ou dois destes conceitos no homem por parte de Deus não poderiam ajudá-lo a cumprir
Seu objetivo, ou seja, fazer com que o homem faça o bem; assim, é necessária uma graça
que envolva estes três conceitos e que Deus atue nos três, pois com o pecado, todos estes
conceitos estão corrompidos. A graça de Deus preenche o poder, regenera o querer – que
antes só queria o mal –, e faz no homem aquilo que ele deveria fazer. Esta tríade da
vontade está de acordo com a afirmação paulina: “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em
mim.”.222 Estando morto para sua vontade deturpada e vida no pecado, a graça, para
Agostinho, assim como para São Paulo, concede à origem de uma nova vida, esta porém,
submetida à verdadeira liberdade que é o próprio Deus cristão. O homem, diante disto, é
visto como um morto para o mundo e vivo para Deus. A criatura dependerá totalmente do
Criador para consolidar a salvação, pois, se é Deus quem concede a graça a quem Ele quer,
como poderá o homem com suas próprias forças alcançar o bem supremo, ou seja, a
salvação? Se Santo Agostinho afirma, a partir da carta de São Paulo aos Romanos, que
Deus “[...] conheceu, predestinou, chamou, justificou e glorificou [...]”223 seus eleitos,
como poderá depender do homem a salvação? Concordando com idéia de predestinação224,
221
Ver nas p. 59 – 60 neste capítulo a concepção agostiniana dos conceitos poder, querer e fazer usados na
discussão com os maniqueus. Ver também p. 43 – 45 a concepção pelagiana destes mesmo conceitos.
222
Gl 2,20, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1969.
223
Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, V, 5, p. 116.
224
Há uma obra específica para este conceito presente no sistema agostiniano em discussão com o
pelagianismo. A obra é escrita em 429. Nela há uma passagem na qual Agostinho reconhece seu erro de no
passado atribuir ao homem o início da fé e não a Deus, opinião esta que teria a leitura de São Paulo como
causa da mudança de opinião “Servindo-me principalmente deste testemunho, convenci-me também do erro,
quando nele laborava, julgando que a fé, que nos leva a crer em Deus, não era dom de Deus, mas se originava
em nós por nossa iniciativa, e mediante ela implorávamos os dons de Deus para viver sóbria, justa e
piedosamente neste mundo.” (Idem, A predestinação dos Santos. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo:
Paulus, 2002, III, 7, p. 155). Ele também ressalta claramente nesta obra sua postura em relação à
predestinação: “Todavia entre a graça e a predestinação há apenas esta diferença: a predestinação é a
69
não há justificação da salvação por merecimento, somente misericórdia de Deus pela
concessão da graça. A misericórdia é absolutamente necessária já que o pecado original
corrompeu toda a massa humana e precisaria ser expiado. Para realizar esta purificação,
Santo Agostinho, ao contrário de Pelágio, afirmaria que o batismo é imprescindível.
O que de fato é objeto de acusação é não quererem confessar que as
crianças não batizadas estejam contaminadas pela condenação do primeiro
homem e contrariam o pecado original, necessitando por isso de
regeneração.225
O batismo para Agostinho regenera e limpa a mancha do pecado de Adão, desta
maneira, é absolutamente necessário. Todos que morrem sem a graça do batismo são
condenados, mesmo as criancinhas, pois estas carregam a culpa de seu pai Adão.226 O
banho regenerador ao libertar o homem do pecado em função da misericórdia de Deus faz
brotar um novo homem, não nascido da carne, que foi corrompida pela vontade, mas pelo
Espírito Santo vivificador. Desta maneira, o homem estaria salvo depois do batismo? Para
Agostinho não, pois, dependemos da misericórdia de Deus e pedimo-la pela oração, sendo
que a própria oração já um ato realizado em função da graça. A oração teria a função de
fazer o fiel pedir o perdão dos pecados a Deus, assim como evitar os pecados futuros, ou
seja, solicitar de Deus a graça da perseverança.227 No entanto, se Ele retira a graça o
homem não reza e peca. Sem a graça, a natureza humana não terá forças nem para rezar
sinceramente, nem para perseverar no bem, somente cair na gravidade do mal por seu livre
arbítrio corrompido.228 Mesmo a correção que outro outorga a um fiel Agostinho coloca tal
perspectiva na economia da graça, sabendo que a correção seria a ação da graça naquele
que é corrigido.229
preparação para graça, enquanto a graça é a doação efetiva da predestinação.” (Santo AGOSTINHO, A
predestinação dos Santos. X, 19, p. 174). Portanto, a predestinação é graça gratuita de Deus.
225
Idem, A graça de Cristo e o pecado original, XVIII, 19, p. 284.
226
Ver Idem, A predestinação dos Santos, XIV, 29, p. 186 sobre a necessidade do batismo das crianças.
227
Cf. Idem, A natureza e a graça, XVIII, 20, p. 129. Para Pelágio a oração não pode auxiliar na
perseverança, pois isto implica em coação, no entanto, assim como para Agostinho, ele sustenta a idéia de
que a oração pode fazer fluir a misericórdia de Deus, sendo necessária para absolvição e regeneração do
homem por ter se corrompido pelo pecado.
228
A capacidade de rezar, para Pelágio, já está na natureza humana. Sendo assim, cabe ao homem estar
atento à palavra revelada pelas escrituras, seguir as exortações e direcionamentos espirituais da Igreja
católica e imitar o exemplo de vitude dado por Jesus Cristo. Assim, revelação, doutrina e o modelo do Cristo
como exemplo moral e misericordioso, cooperam como uma força a ser usada pelo homem quando quiser,
algo que já discutimos acima.
229
Há uma obra que trata de maneira específica o tema da correção. Ela foi escrita por Agostinho no ano 427,
devido às novas perturbações no mosteiro de Hadrumeto. Os monges superiores ficariam sem função já que é
70
Portanto, depois de desenvolvido alguns conceitos das controvérsias entre
Agostinho e os maniqueístas, assim como na polêmica sobre a graça no embate com
Pelágio, verificamos que há uma mudança na forma de definir o conceito de livre arbítrio e
liberdade em função do contexto que santo Agostinho está inserido. Em um primeiro
momento, Agostinho, na obra O livre arbítrio, constrói proposições contra os maniqueus
com o objetivo de outorgar a responsabilidade do mal ao homem, assim, o livre arbítrio é
definido como um instrumento flexível para fazer o bem e o mal – proposição pelagiana –
e a liberdade é a submissão da criatura à palavra, à Verdade, a Cristo e não a Mani, como
pensavam os maniqueus. Mais tarde, com o advento do pelagianismo, a partir de 411, o
bispo de Hipona teria construído argumentos contra os pelagianos com o objetivo de
atribuir a Deus a causa do bem: portanto, há uma mudança na sua definição do conceito de
livre arbítrio e liberdade: o livre arbítrio depois do pecado adâmico só faz o mal e há
necessidade da graça para que o homem faça o bem, de modo que a recepção da graça é a
concessão da verdadeira liberdade. É por este motivo que os Pelagianos acusarão
Agostinho de maniqueísta.
Depois de termos destacado que há uma mudança de comportamento – lágrimas –
detectada por nossa pesquisa quando tratamos da conversão de Agostinho; percebido que
sua escrita também se modifica quando tomamos por objeto o conceito de beleza em sua
autobiografia; sublinhado sucintamente que o Agostinho convertido ao cristianismo em
discussão com os maniqueus sustentará que o mal não tem substância e que a vontade
possui um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal; e, enfim, discernido as diferentes
concepções de livre arbítrio e liberdade de Agostinho em discussão com os maniqueus e
em discussão com os pelagianos; veremos que as discussões teológicas dos séculos IV e V
são retomadas nos séculos XVI e XVII. Sendo assim, iremos diretamente para o fim do
século XVI e percorreremos grande parte do século XVII. Verificaremos as influências de
Santo Agostinho na produção teológica da época, assim como o surgimento de novas
correntes de pensamento, como é o caso do jansenismo. Desta maneira, poderemos situar
Blaise Pascal neste contexto.
Deus quem corrige. Por este motivo, Agostinho coloca a correção na economia da graça: “Os homens devem
admitir a necessidade da correção quando pecam. Que a correção não sirva de pretexto com relação à graça
nem a graça no referente a correção.” (Santo AGOSTINHO, A correção e a graça. 2ª ed. trad. Agustino
Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002, XIV, 43, p. 130). Além de garantir a necessidade da correção como à
ação da graça, todavia, a mesma correção não é garantia da graça, pois Agostinho destaca que a graça em um
momento não é garantia de possuí-la em um outro momento. A primazia é sempre a vontade de Deus, nunca
a do homem.
71
2 – O jansenismo.
As controvérsias acerca da graça no embate entre Santo Agostinho e Pelágio são
retomadas no século XVII pela maior parte dos teólogos. Em 1951, Jean Dagens, em
ocasião de um congresso internacional expõe uma curiosa idéia: “O século XVII é o século
de Santo Agostinho.”.230 A teologia da graça agostiniana toca, de maneira especial,
questões antropológicas como: quem é o homem, de onde ele veio, para onde vai, qual o
seu comportamento na relação consigo mesmo, com o outro e com Deus, o que é a
liberdade; todos estes temas ganhariam no século XVII não só uma reflexão antropológica,
mas de identidade doutrinária em função da Reforma protestante.231 O palco religioso no
século XVII é habitado por um furacão de idéias composto por Luteranos, Calvinistas,
Molinistas e Jansenistas. O caráter terrificante deste fenômeno é marcado pela proliferação
de doutrinas que dissipavam cada vez mais a união da Igreja, considerada entre os cristãos
como o corpo místico de Cristo.
Diante do caos doutrinário que era cada vez mais difundido, o apelo ao retorno à
tradição da Igreja tornar-se-ia a principal preocupação nas discussões sobre as
controvérsias doutrinárias.232 Desta forma, a volta às antigas fontes encontra no bispo de
Hipona um ponto de referência, pois trata-se daquele que ficou historicamente consagrado
como o grande Doutor da graça. Os protestantes abriram o caminho na recuperação da
230
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. I.
“A percepção da importância da Queda e das conseqüências do pecado original, do tamanho inteiro do
dano a ser reparado, retornou com o século XVI. Os reformadores descobriram de novo Agostinho [...]. Com
Lutero e Calvino de modo especial, a ênfase foi colocada de novo na impotência do homem e na eficácia da
graça. A doutrina da justificação só pela fé – e da fé como dom de Deus – não constituía nenhuma
especulação mecânica; era o grito apaixonado de homens que, como Agostinho, esforçam-se
desesperadamente em busca de uma solução e cujas tentativas de impor ordem na experiência mantiveram
vivo para o mundo moderno o dilema agostiniano.”. (G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 267). O
retorno à obra do bispo de Hipona é algo que aparece com imensa força no século XVI e, de maneira
especial, no contexto francês do século XVII. Alguns temas agostinianos serão avidamente trabalhados como
a condição do homem antes e depois do pecado, a relação justiça e misericórdia de Deus, a eleição dos
predestinados, à medida do pecado do homem e as controvérsias sobre a graça.
232
Verificamos este retorno à tradição em um texto de Pascal chamado Les écrits des cures de Paris. “Nossa
religião tem os mais firmes fundamentos. Como ela é toda divina, é somente em Deus que ela se apóia, e não
possui nenhuma doutrina que não tenha recebido de Deus pelo canal da tradição que é nossa verdadeira regra,
que nos distingue de todos os hereges do mundo, e nos preserva de todos os erros que nascem dentro da
própria Igreja: por que conforme o pensamento do grande São Basílio, hoje nos só acreditamos nas coisas
que nossos bispos e pastores nos ensinaram, e que estes receberam daqueles que os precederam e dos quais
receberam sua missão: e os primeiros que foram enviados pelos apóstolos, só disseram aquilo que estes
ensinaram. E os apóstolos que foram enviados pelo Santo-Espírito não anunciaram ao mundo senão as
palavras que o Espírito-Santo os tinha confiado: e o Espírito-Santo que foi ensinado pelo Filho recebeu suas
palavras do Filho, como é dito no Evangelho e, enfim, o filho que foi enviado pelo Pai só disse aquilo que ele
tinha ouvido do Pai, como ele propriamente disse.”. (Blaise PASCAL, Les écrits des cures de Paris, p. 481 –
482. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 471 – 484).
231
72
doutrina agostiniana e logo foram seguidos pelos católicos.233 O agostianismo conheceria a
sua idade de ouro com a publicação das obras do bispo de Hipona.
Em 1506, apareceria em Balê a primeira edição das obras completas de Santo
Agostinho, a chamada edition d`Amerbach, sendo ainda um trabalho imperfeito. Mais
tarde, em 1576-1577 é publicada a edition de Louvain, esta porém, entra em cena no fim
do século XVI e prevalece em todo século XVII, sendo substituída somente pela edição
dos Beneditinos de Saint-Maur em meados de 1679-1700.234 Blaise Pascal usava a edition
de Louvain.235 Podemos dizer que a publicação da obra de Agostinho exerce influências
notáveis no século XVII. O livro Confissões é traduzido em 1649 por Arnauld d`Andilly,
irmão do estimado teólogo jansenista Antoine Arnauld, surgindo um exemplo de um novo
gênero literário: a auto-biografia. “Constata-se uma correlação entre a ascensão do
agostianismo na França e o progresso de uma literatura autobiográfica de proporções
religiosas.”.236 A influência auto-biográfica de Santo Agostinho repercutiria prontamente
não só em escritos com foco religioso, pois, é no Discurso do Método (1637) do filósofo
René Descartes que apareceria traços marcantes deste novo gênero literário.237 Descartes
nesta obra produziria uma espécie de auto biografia metodológica.
Diante do novo universo que brilhava na França em função do surgimento das
traduções da obra de Agostinho, não poderíamos deixar de lado suas influências platônicas,
marcada, de maneira especial, pela nostalgia do mundo. O mundo é sombra, nele não
encontramos a Verdade, portanto, resta ao autêntico cristão abandonar tudo aquilo que é
mal, ou seja, abandonar o mundo. Os jansenistas, por exemplo, “[...] estão de acordo em
afirmar que o mundo é mal e que nenhuma ação humana pode transformá-lo antes do juízo
final.”.238 O platonismo cristão de Agostinho vê o mundo como um vale de lágrimas
inconstante, o homem deve libertar-se de suas paixões e somente pensar em uma outra
vida, aquela prometida por Deus a todos os seus eleitos. As reflexões de Agostinho são
absolutamente socráticas naquilo que diz respeito à máxima: Conheça-te a ti mesmo. O
bispo de Hipona volta-se para alma e, em função das influências que exerceria no século
XVII, prepara as futuras reflexões que concederiam grande importância ao retorno a si e o
233
Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 12.
Cf. Ibid., p. 11
235
Cf. Ibid., p. III.
236
Ibid., p. VI.
237
Cf. Ibid., p. VI – VII.
238
Lucien. GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto. trad. J Ramón Capella “Le Dieu caché”. Barcelona:
Ediciones Península, 1968, p. 186.
234
73
apelo ao rompimento com as cobiças, estas sendo consideradas sombras de uma natureza
corruptível e má.
Então, compreende-se melhor, a florescência das reflexões sobre a
imortalidade da alma no século XVII e os traços característicos de análise
‘moral’ clássica: os ‘moralistas’ tendem a inclinar-se sobre a alma
somente, e encobrem a história, a geografia, a sociologia.239
Os moralistas deixam de lado as reflexões historiográficas, geográficas e
sociológicas, no entanto, realizam uma produção teológica que manifesta claramente uma
visão pessimista e sombria do mundo sem Deus. O desejo torna-se um grande mal, este faz
do homem centro, escravo de si e, conseqüentemente, o conduz ao fracasso. O homem
deve abandonar suas inclinações pecaminosas. Diante deste apelo à virtude, surge na
França o ideal não religioso de honnêteté, “[...] ou arte de brilhar em todas as seduções da
vida.”.240 O resultado que este homem honnête produz é bom, mas o que move tais
comportamentos é a corrupção manifesta na vontade de ser amado por todos. Esta é a
acusação dos agostinianos jansenistas ao ideal de honnêteté. Mas quem seriam os
chamados agostinianos?
Lutero era monge agostiniano, Calvino apresentava em suas idéias uma espécie de
“mosaico agostiniano”241, desta maneira, poderíamos dizer que Santo Agostinho exerceu
fortes influências nos reformadores quanto à análise do mundo, do homem e de Deus, pois,
tanto Lutero como Calvino afirmam a miséria do homem sem o Criador quando deixado as
239
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. XI.
Ibid., p. X. Ver Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal. Paris: Ed. Sedes, 1993, p. 105 – 137. A noção
de honnête homme move uma função importante no século XVII. O nome foi empregado pela primeira vez
em uma obra de grande sucesso chamada L´Honnête homme ou l’Art de plaire à la cour de Nicolas Faret, em
1630. O honnête homme é o homem sociável, que revela uma personalidade cortês e civilizada, um homem
de bem provido de virtudes morais. Ele não funda uma moral específica, mas é um mundano que vive uma
vida social de maneira perfeita, mantendo seu temperamento em todas as ações. Para Pascal a palavra chave
para entender tal ideal é agradar. Agradar a todos sempre, todavia, sem se colocar em um nível superior que
não esteja ao alcance de outros. Por exemplo, quando um honnête homme chega em uma conversa que já
havia começado, ele falará daquilo que os personagens já estavam falando, pois, impor outro assunto é
humilhar os interlocutores e condenar o diálogo ao silêncio. A idéia é que o honnête homme deve se
incomodar em favor do outro, sendo uma forma de esquecimento de si em favor ao outro que lembra o ideal
de virtude cristã. Ele é o homem universal por excelência, é aquele que mantêm o meio, não permanecendo
nem no extraordinário nem no ordinário: é o modelo de humanidade querida e desejada por todos. Pascal
critica este modelo: o modelo central que o homem deve se espelhar é Deus não o homem. O honnête homme
é uma manifestação do amor de si bem regrado para que o mesmo possa tirar vantagem com sua postura.
Todavia, dirá Pascal “[...] tenham pelo menos fidalguia se não podem ser cristãos [...]”. (Blaise PASCAL,
Pensamentos, Laf. 427, Bru. 194, p. 171).
241
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. II.
240
74
suas próprias forças e entregue as seus caprichos mundanos. Frente às controvérsias inserese na polêmica Michel de Bay, conhecido pelo nome latino Baïus.
Baïus era professor na universidade de Louvain, especialista em patrística e hostil à
escolástica. Este propõe a redução da liberdade do homem que está absorvido pela graça,
sendo Deus a causa de todas as ações, mesmos das livres. Desta maneira, foi acusado de
negar toda realidade do livre arbítrio e favorecer o calvinismo. Desta forma, o papa Pio V
condena em uma lista de 76 proposições o teólogo Baïus depois de uma extensa
controvérsia acadêmica242 e, mais tarde, em 1580, são novamente condenadas por Gregório
XIII.243 No entanto, o catolicismo reagiria, na figura do jesuíta espanhol Luís Molina244, de
maneira totalmente oposta às idéias dos reformadores protestantes e de Baïus: dar-se-ia o
nome de molinistas aos seus futuros seguidores.
Molina torna-se famoso por escrever uma obra chamada De concórdia liberii
arbitrii cum divinae gratiae donis. (1588). Nela afirmava suas principais idéias como:
substituição da graça eficaz por uma graça suficiente, esta porém, traz consigo tudo aquilo
que é necessário para fazer o bem; o homem, depois do pecado de Adão, possui em sua
natureza o poder de fazer o bem pelo seu livre arbítrio; não há predestinação, a salvação
depende das boas obras do homem.245 Desta maneira, as opiniões de católicos e
protestantes divergiam radicalmente. “Os reformadores, Lutero, Calvino e outros, tinham
posto tanta ênfase na natureza humana desamparadamente pecadora que era inevitável a
reação dar-se em sentido oposto.”.246 Ou seja, se os protestantes cristãos negavam qualquer
possibilidade humana para fazer o bem e agir conforme os mandamentos, Molina, ao
contrário, sustentava a idéia de que o homem poderia através de suas próprias forças
realizar o bem e cumprir os mandamentos. Se em Calvino e Lutero vemos uma teologia
tendo Deus como centro e causa do bom comportamento humano, assim como de sua
salvação, em Molina percebemos uma colocação totalmente contrária. Ele produzia uma
teologia centrada no homem, na qual, o próprio homem através de suas forças poderia
realizar boas obras e merecer a graça de Deus para a salvação. Estas duas posições, além
de retomar as controvérsias internacionais do século V entre Agostinho e Pelágio que
vimos acima, nos parece uma tentativa de identificação religiosa diante da proliferação de
242
Cf. Le COGNET, Le jansénisme. Paris: PUF, 1995, p. 10 – 11.
Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo. v. II. trad.
Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 200.
244
Ibid., p. 200.
245
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 13.
246
Alban KRAILSHEIMER, Pascal. Lisboa: Publicação Dom Quixote, 1983, p. 21.
243
75
opiniões e doutrinas frente à Reforma protestante, desta maneira, o fiel poderia, mediante a
adesão de alguma destas doutrinas, escolher sua denominação religiosa.
Mas mesmo no catolicismo, o humanismo jesuíta não seria soberano, pois, é no
século XVII que apareceria um movimento chamado mais tarde de jansenismo. Mas o que
seria o jansenismo? Jasenismo é o nome dado a uma doutrina que se expandiu, de maneira
especial, na França; este nome dar-se-ia em conseqüência de seu precursor, Jansenius, que
no dia 23 de outubro de 1636 torna-se bispo de Ypes. Em 1640 seu livro intitulado Corneli
Jansenii Episcopi Iprensis Augustinus é colocado à venda. Nele, suas principais idéias
eram desenvolvidas: eficácia infalível da graça no processo salvífico do homem sem
prejudicar a liberdade (graça eficaz); cura da natureza humana e de seu restabelecimento
na liberdade pela graça do Cristo redentor (poder, querer, fazer), havendo necessidade da
mesma para toda boa obra; o homem é livre para fazer o bem, quando permeado por uma
graça eficaz; gratuidade absoluta da predestinação.247
Nascido em 1585, o Flamengo Corneille Jansen, foi muito cedo estudar em
Louvain. Continuou seus estudos em Paris, onde encontrou com Jean Duvergier de
Hauranne, antigo aluno jesuíta, nascido em 1581. Interessante o fato de conviveram juntos
em Louvain de 1600 até 1604, porém, não se conheciam, fato este que mais tarde se
realizaria em função da ida dos dois teólogos a Paris para dar continuidade a seus estudos.
Nesta ocasião estabeleceram grande amizade e estreita colaboração. Diante do desejo de
refletir mais os ensinamentos que receberam, retiraram-se conjuntamente para Camp-dePrats entre os anos de 1611 à 1616. “Por alguns anos, os dois ficaram juntos na casa que
Du Vergier possuía perto de Bayonne; foram anos de intenso estudo [...]”.248 Tal estudo
seria a base das idéias da polêmica obra de Jansenius, o Augustinus, que tinha seu
fundamento cravado nos argumentos de Agostinho contra o pelagianismo e “[...] que
depois deram ensejo a Jansen de se gabar de ter lido dez vezes as obras de Agostinho e
trinta vezes os escritos sobre a graça e sobre o pelagianismo.”.249 Portanto, nesta ocasião,
Jansenius e Jean Duvergier aplicaram-se em vastas leituras patrísticas e escolásticas,
acumulando uma enorme erudição. Neste período não apresentavam nenhuma preocupação
quanto às controvérsias sobre a graça. Em 1616, Jansenius volta para Louvain onde
ingressa na carreira universitária e, em meados de 1619 seu interesse sobre as questões da
graça tornar-se-iam de importância capital em seus estudos, revelando o que seria, para
247
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 32 – 33.
Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 201.
249
Ibid., p. 201.
248
76
Jansenius, a essência do agostianismo.250 O historiador Martina ressalta que o jansenismo
possui duas características importantes para sua definição: “O jansenismo pode ser
considerado, por um lado, como a reação ao laxismo teórico e prático do séc. XVII e, por
outro, como a exacerbação das controvérsias sobre a graça, tão vivas nos sécs. XVI e
XVII.”.251 A crítica ao laxismo moral e supremacia da graça para toda boa ação são duas
idéias que irão nortear os escritos dos seguidores de Jansenius. Em suas descobertas ele
verifica que há uma diferença entre a graça de Adão e a de Jesus Cristo, sendo que a graça
dada a Adão em seu estado de inocência, são e livre, permitiria ao homem escolher entre o
agir bem ou o agir mal, de modo que a graça dada por Jesus Cristo ao homem caído é
totalmente diferente, pois trata-se de uma graça libertadora e redentora que se apropria da
vontade do homem e a submete a vontade regeneradora de Deus. Tais idéias devem a sua
expansão ao seu companheiro de estudo Jean Duvergier, que será conhecido como SaintCyran.
Em 1621, Jean Durvegier torna-se abade de Saint-Cyran em Poitous.252 Fica
conhecido como abade de Saint-Cyran, personalidade que se tornaria o diretor espiritual e
confessor das freiras que moravam no chamado convento de Port-Royal. Este mosteiro foi
reformado por Jacqueline Arnauld, também conhecida por Mère Angélique. Vinda de uma
família nobre, foi posta no convento com 7 anos: Port-Royal-des-Champs, que fica em um
“[...] solitário vale, a cinco quilômetros de Versailles [...]”.253 Com 11 anos de idade recebe
o cargo de abadessa254, fato este que vai contra as normas canônicas. Quatro anos depois
fica gravemente doente e volta para casa de sua família, mas seu pai obriga a filha a voltar
rapidamente para o mosteiro: “A vida de madre Angélica não era evidentemente nem
melhor nem pior que de tantas outras mulheres, forçada como fora a seguir a vida religiosa
sem nenhuma vocação [...].”.255 Sua “conversão” dar-se-ia em função de um despertar
religioso por um monge capuchinho chamado Ange de Pebroke256: depois disso ela propõe
uma reforma na vida espiritual do mosteiro aos moldes da observância integral da regra
cisterciense, ou seja, “[...] vida comum, abstinência, clausura, orações noturnas...”.257 Aos
dezoito anos o mosteiro estava sob a direção espiritual de Francisco de Sales que censurava
250
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 19 – 20.
Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 195.
252
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 20.
253
Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 204.
254
Ibid., p. 204.
255
Ibid., p. 204.
256
Cf. Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética. trad. Éricka Marie Itokazu e Homero
Santiago. São Paulo: Paulus, 2006, P. 14.
257
Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 204.
251
77
Mère Angélique procurando refrear suas intemperanças, mas com a morte deste, a
abadessa trava conhecimento com Saint-Cyran que seria o novo orientador espiritual da
abadia e passaria a exercer grande influência na vida espiritual das moradoras do convento.
Com o aumento da comunidade, o convento de Port-Royal foi transferido, em 1626, para o
subúrbio de Paris, em um mosteiro mais saudável, Port-Royal-Saint-Jacques.258 Todavia, o
antigo mosteiro fora conservado.
Com a transferência do monastério para Paris, o antigo, localizado perto de
Versalhes, passa a ser freqüentado por alguns homens ilustres a partir de 1638. Este local
foi chamado de Port-Royal–des-Champs, lugar onde os chamados “solitários” viviam em
uma vida austera de oração, meditação, estudos da sagrada escritura e dos Santos Padres,
assim como de alguns trabalhos manuais como a jardinagem; na verdade, o modo de vida
dos solitários era quase monástico. Le Maître, Singlin, M. de Sacy, Antoine Arnauld –
irmão mais novo da abadessa Mère Angelique –, Blaise Pascal, são nomes importantes que
passaram temporadas nas dependências deste monastério. Tanto no convento de PortRoyal, assim como Port-Royal-des-Champs, a espiritualidade agostiniana ortodoxa era
praticada como um modo de vida, na qual, pobreza e humildade, juntamente com a fé e
esperança na graça de Jesus Cristo, eram cotidianamente vividas pelos moradores
seguidores dos ideais de Jansenius e, por este motivo são chamados jansenistas.259
Todavia, espiritualidade rigorosa dos mosteiros tinha como seu principal promotor SaintCyran.
Mas por causa de algumas desavenças políticas com o primeiro ministro, o cardeal
Richelieu260, Saint-Cyran é preso na bastilha; na prisão, ele é visto como mártir por todo
povo que era adepto as suas idéias, o chamado partido devoto.261 Já Jansenius, ao tornar-se
258
Cf. Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 204.
Cf. Germano TÜCHLE, Reforma e Contra Reforma. trad. Waldomiro Pires Martins. Rio de Janeiro:
Vozes, 1971, p. 224 – 225.
260
O cardeal Richelieu é um dos promotores da monarquia absoluta na França. Ele via o jansenismo como
um movimento reacionário à monarquia absoluta que se estabilizava gradativamente. Quando Saint-Cyran
sublinha que o autêntico cristão e eclesiástico não devem participar das questões políticas (cf. Lucien.
GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 146), tal idéia é interpretada como um voto ao quietismo
político. A atitude do cardeal foi encarcerar Saint-Cyran na bastilha e este só sairá de lá com a morte do
cardeal. Sabemos que ao movimento jansenista se uniram figuras da alta aristocracia, membros dos tribunais
soberanos e advogados que não gostavam da política da monarquia absoluta. Estes personagens ao se uniram
ao jansenismo formaram um bloco forte contra a monarquia. Interessante é que este bloco estava isolado
depois da Fronda, as guerras civis na França, e o jansenismo reuniu todos estes reacionários dando coesão ao
bloco. Alguns parlamentares chegaram a sustentar que se fosse preciso estavam dispostos a ir contra o rei
para o benefício do jansenismo. Esta construção que revela a força do movimento jansenista em seu viés
materialista-político é realizada por Lucien Goldmann. Para mais informações ver Ibid., p. 133 – 183.
261
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 29. Sobre o título de mártir outorgado a Saint-Cyran pelo povo ver
Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 202.
259
78
bispo de Ypres, tem seu livro Augustinus praticamente terminado; tratava-se de quase 1300
páginas. No entanto, a morte vem ao seu encontro no dia 6 de maio de 1638: morrera
contaminado pela peste. Em seu testamento ele confere à Santa-Sé o julgamento de toda
sua obra.262 Esta é publicada em 1640, portanto, Jansenius não pôde assistir em vida a
publicação de seu livro em meio aos protestos jesuítas, pois, no Augustinus, eram
afirmadas as teses mais fortes do agostianismo, fato este que, diante de uma teologia
humanista dos molinistas, o choque entre as opiniões seria inevitável.
A publicação da obra de Jansenius marca o início das controvérsias sobre a graça.
Os jansenistas trazem a discussão para o meio acadêmico. Porém, em 1642, o papa Urbano
VIII assina no dia 6 de maio a bula In eninenti na qual condena a obra de Jansenius como
uma renovação das heresias de Baius já condenadas pelo papa Pio V .263 Neste mesmo ano,
Saint-Cyram foi libertado da bastilha em função da morte do cadeal Richelieu. Mas,
estando fraco por causa dos 5 anos de prisão, morre dez meses depois, em 11 de outubro de
1643.264 Antes de sua morte, ainda na prisão, teve contato com a obra do amigo Jansenius,
entregando-a a Antoine Arnauld, seu discípulo. Arnauld foi ordenado padre e doutor na
Sorbonne em 19 de dezembro de 1641. Com a morte de Saint-Cyran, Arnauld assume a
batalha na defesa da graça eficaz e da predestinação, compondo em 1643 a chamada
Apologia a Jansenius e, em agosto do mesmo ano um livro intitulado como De la
freqüente communion. “Antonio Arnauld (1612-1694) foi o maior colaborador e
continuador de Saint-Cyran [...].”.265 Neste momento surgiria umas das disputas mais
violentas com os jesuítas molinistas. Arnauld acusava os jesuítas de priorizar o homem
como centro da possibilidade salvífica, ou seja, como promotor de sua própria salvação, e
não a Deus. Acusava-os também de promover o laxismo na teologia moral. Mas o que
seria o laxismo moral? Uma das conquistas do século XVI é a reflexão sobre os princípios
que legitimariam a ação, transformando a dúvida especulativa em certeza prática. Com o
desenvolvimento do probabilismo por Vitória e Medina na escola de Salamanca,
sustentava-se o princípio que não se pode impor uma obrigação cuja a existência não se
tem certeza. O desenvolvimento de tal probabilismo, de modo especial, no século XVII,
levou alguns escritores a não se ater à grandes princípios do probabilismo, mas às
aplicações particulares e contextuais, nascendo a casuística, na qual a ação é legitimada
262
Cf. Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 201.
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 36.
264
Cf. Ibid., p. 41.
265
Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 203.
263
79
pela aplicação de princípios que variam em cada caso específico.266 A casuística era
praticada pelos jesuítas franceses e criticada pelos jansenistas como uma forma de
promover e legitimar ações bizarras. Desta maneira, inicia-se, em 1649, a polêmica das
chamadas Cinco proposições. Os jesuítas sustentavam que elas estariam presentes no
Augustinus de Jansenius.
As cinco proposições são compostas por cinco teses consideradas heréticas, sendo a
última considerada falsa. Na verdade, foram levantadas sete proposições por Nicolas
Cornet, sendo que duas, não foram para julgamento, pois foram reconhecidas como
verdadeiras. Mas quais são as cinco proposições condenadas pelo papa Inocêncio X?
1ª - Os mandamentos são impossíveis aos justos que querem, com sua força
presente, cumpri-los, pois, a graça pela qual tornariam possíveis tais feitos os falta.267
2ª - Com a queda de Adão, não reside mais no homem a graça interior.268
3ª - Para merecer e desmerecer no estado de natureza decaída, não é necessário que
haja no homem uma liberdade que esteja isenta de necessidade: basta que haja uma
liberdade isenta de constrangimento.269
4ª - Os semi-pelagianos admitem a necessidade de uma graça interior ao homem
para cada ação e para o surgimento da fé, no entanto, sua heresia é que a vontade do
homem podia resistir a esta graça ou usá-la como quiser.270
5ª - É um sentimento semi pelagiano e herege dizer que Jesus Cristo está morto e
derramou seu sangue por todos os homens sem exceção.271
Estas cinco proposições272, dizia Arnauld, eram obscuras e teriam que ser
explicadas e bem entendidas no seu sentido ortodoxo. Mas, depois de quatro anos do envio
a Roma das cinco proposições, o papa Inocêncio X, condená-las-iam como heréticas, pois
negam o livre arbítrio e só admitem ser de Deus a vontade restrita de salvar. Tal
266
Cf. Ibid., p. 197 – 198.
Cf. Le COGNET, Le jansénisme , p. 50.
268
Cf. Ibid., p. 50.
269
Ibid., p. 50 – 51.
270
Cf. Ibid., p. 51.
271
Cf. Ibid., p. 51.
272
“As cinco proposições continham o seguinte: 1ª Alguns preceitos de Deus, nem os justos podem cumprilos com suas forças disponíveis, ainda que queiram e tentem fazê-lo. Falta-lhes a graça, pela qual a
observância seria possível. 2ª No estado da natureza decaída, o homem nunca pode resistir a graça interna. 3ª
No estado da natureza decaída, não se requer no homem a isenção da necessidade intrínseca, basta-lhe a
isenção de coação extrínseca. 4ª Os semi-pelagianos admitiam a necessidade da graça preveniente intrínseca
para todo ato humano, inclusive para o início da fé. Incorriam em heresia, por ensinarem que essa graça era
de tal feitio, que a vontade humana podia segui-la ou resistir-lhe. 5ª É semi-pelagianismo afirmar que Cristo
morreu pura e simplesmente por todos os homens, ou que derramou seu sangue por todos eles.”. (Germano
TÜCHLE, Reforma e Contra Reforma, p. 226 – 227). Diante da obscuridade do sentido de tais proposições,
citamos literalmente outra fonte histórica para que ajude ao leitor na compreensão das mesmas condenadas
mais tarde pela Igreja católica.
267
80
condenação foi assinada no dia 31 de maio de 1653 pela bula Cum Occasione.273 “Elas
foram condenadas separadamente: as quatro primeiras eram declaradas heréticas e a última
falsa.”.274 O grande teólogo da Sorbonne, Arnauld, inicialmente, dizia que somente a
primeira proposição poderia ser encontrada no Augustinus.275 Mais tarde relata não
encontrar – depois de ler atentamente a obra de Jansenius – nenhuma das cinco
proposições condenadas por Roma. Desta maneira estabelece uma distinção peculiar de um
espírito jurista: a questão do direito e do fato.
A Igreja é infalível, ela não erra em matéria de fé, sendo esta a questão de direito,
no entanto, Arnauld, ao dizer que as cinco proposições não se encontram no Augustinus,
sustentava a idéia de que na análise do fato, ou seja, na leitura e análise dos textos – Cinco
proposições e Augustinus –, não há nenhum fato objetivo que poderia incriminar Jansenius.
A infabilidade da Igreja atuava em questões de direito, mas não de fato, sendo assim, o
carisma da Igreja só é válido nas questões de fé.276
Entretanto, no dia 15 de fevereiro de 1655, Arnauld foi excluído e afastado da
Sorbonne, pois Roma condena as chamadas cinco proposições, no entanto, hesitam em
atribuí-las a Jansenius. Mas antes de sua condenação definitiva e diante da difícil situação,
Arnauld recorre a um físico recém convertido que, no momento, encontrava-se no
monastério de Port-Royal-des-Champs, seu nome era Blaise Pascal. Este inicia a produção
de algumas cartas que levam a polêmica ao público parisiense. As Les Provinciales escritas
por Pascal ironiza os jesuítas e esclarece aos círculos mundanos as controvérsias sobre a
graça. As 18 cartas publicadas iniciam-se em 23 de janeiro de 1656 e encerram-se em 24
de março de 1657.277
Neste mesmo ano, as cinco proposições são condenadas pelo papa recentemente
eleito Alexandre VII na bula Ad sacran. Nela o papa afirma que as cinco proposições estão
no Augustinus.278 Em 1661, é exigida a assinatura de um formulário pelo qual os
273
Cf. Germano TÜCHLE, Reforma e Contra Reforma, p. 227.
Le COGNET, Le jansénisme, p. 61.
275
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 64.
276
Cf. Guido ZAGHENI, A Idade Moderna: curso de história da Igreja – III. trad. José Maria de Almeida.
São Paulo: Paulus, 1999, p. 291.
277
Ver Blaise PASCAL, Les Provinciales. Paris: Aux Éditions du Seuil, 1963, p. 371 – 382. In: Idem, Ouvres
complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 371 – 469. Nas três primeiras provinciáis Pascal
esclarece de maneira simples e muitas vezes irônica as fronteiras entre Molinistas e Jansenistas. Delimitando
aquilo que cabe a cada grupo, ele tira conseqüências da doutrina Molinista com o intuito de denegrir tal
movimento. O caráter obscuro e equívoco que Pascal quer ressaltar revela contradições entre os próprios
Molinistas. Na terceira Provincial o protesto em função da condenação de Antoine Arnauld é matizado
fortemente. Sustentando que não há diferença entre aquilo que defende Arnauld e o Bispo de Hipona, a
conclusão seria obvia: condenar Arnauld é condenar Santo Agostinho.
278
Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 73.
274
81
jansenistas confirmariam a presença das cinco proposições na obra de Jansenius. Desta
maneira, Pascal, provavelmente, emite em 8 de junho deste mesmo ano, um
“mandamento”279 no qual Arnauld aceita a assinatura, porém, com a distinção do direto e
do fato.280 Assim, a contra gosto, as religiosas de Port-Royal assinam o formulário com
uma clausula explicativa. Este acontecimento causa violenta oposição ao grupo antijansenista que condenam tal assinatura. No dia 31 de outubro publicam um documento
alertando que as assinaturas não podem ter cláusulas, mas foi inócua a exortação:
novamente as religiosas assinam com uma cláusula anexada na qual há uma distinção de
direito e de fato.
O jansenismo continua vivo até o século XVIII, mas a bula Unigenitus Dei Filius
assinada por Inocêncio XI em 8 de setembro de 1713, condena 101 proposições retiradas
da obra Reflexions Morales de Quesnel, teólogo acusado de fazer ressurgir a doutrina
jansenista.
Diante deste breve ensaio histórico, verifica-se, na voz de Lucien Goldmann, que
há quatro características comuns e gerais dentro do jansenismo, este que por mais de um
século foi objeto de discussão de uma maneira especial na França: suportar, mesmo a
contra gosto, o mal e a mentira do mundo; lutar pela verdade e pelo bem; confessar o bem
e a verdade em um mundo radicalmente mal; calar-se diante de um mundo que nem sequer
pode ouvir a palavra do cristão. Nestes quatro pontos há uma característica comum:
condenar o mundo sem nele depositar nenhuma esperança histórica.281 Desta maneira,
visto que as discussões sobre a graça permeiam as controvérsias teológicas do século XVII,
situaremos Blaise Pascal neste contexto, pois, além de suas descobertas em física e
matemática, mostrava-se um teólogo que afirmaria intransigentemente a ortodoxia
agostiniana dos jansenistas.
3 – Pascal: um teólogo entre Deus e o papa.
Blaise Pascal nasceu no dia 19 de junho de 1623 em Clermont, no Auvergne, região
da França, na rue des Grands-Grads, e fora batizado dia 27 de junho, na igreja SaintPierre-de-Clermont.282 Seu pai chamava-se Étiene (1588-1651), era um advogado283 e
279
Le COGNET, Le jansénisme, p.77.
Cf. Ibid., p.77.
281
Cf. Lucien. GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 186 – 187.
282
Henhi GOUHIER. Cronologie, p. 11. In: Blaise PASCAL, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma.
Paris: Seuil, 1963, p. 11 – 15.
280
82
tinha uma condição financeira privilegiada, sem falar que era um exímio conhecedor do
grego e do latim, assim como da matemática. Tornara-se conselheiro eleito do rei.284 Em
1616 casa-se com Antoinette Begon,285 esta porém, morreu três anos286 após o nascimento
de Pascal, ou seja, em 1626, deixando seus filhos sob os cuidados de Étiene287: além de
Pascal, Gilberte, a filha mais velha, e Jacqueline, a caçula da família dos Pascals. Os quatro
pouco tempo depois terão a companhia da governanta Louise Delfaut288 que nunca deixará
a família Pascals, permanecendo com eles até a sua morte.
Étiene, enquanto morava em Clermont, trabalhava como fiscal de impostos, no
entanto, no ano de 1631, abandona a profissão e segue para Paris, ocupando-se da
educação de seus filhos, de maneira especial, Blaise Pascal289: a família vai viver de
renda.290 Em função de sua erudição291, via-se capaz de educar seu filho sem fazer uso de
nenhum mestre escola, pois desta forma, pouparia a saúde precária do menino em meio às
confusões da vida escolar.292 Assim, com 11 anos, a genialidade de Pascal começaria a
despertar, fato este que se manifesta na produção de um texto bem argumentado sobre o
som.293 Inicialmente, Étienne impulsiona Pascal, antes mesmo de completar 12 anos, no
estudo do grego e do latim294, desta maneira, não era deixado na ociosidade, entretinha o
283
Étienne vai para Paris em meados de 1608 para estudar direito e teologia na Sorbonne. Ele é o primeiro
dos Pascals a fazer isso. Paris fascina o jovem por tudo que a capital abriga como os matemáticos, tradutores
de grego, latim e hebreu. Quanto aos ensinamentos da faculdade ele aprende logo a questionar. (cf. Jacques
ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês. trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru: EDUSC, 2003, p. 23).
284
Com a morte de seu pai Martin, Étienne recebeu uma herança a qual possibilitou a compra do posto de
Conselheiro eleito pelo rei na eleição de Bas-Auvergne em Clermont. É um cargo de extrema importância
regional, uma espécie de magistrado que julga pequenos litígios fiscais entre a administração do rei e seus
súditos. (cf. Ibid., p. 23).
285
Cf. Ibid., p. 23.
286
Cf. Ibid., p. 26.
287
Em 1624, Étienne compra um cargo ainda maior: o de vice presidente da cour des aides de Montferrand.
(cf. Ibid., p. 24).
288
Cf. Ibid., p. 26.
289
Ibid., p. 21.
290
Cf. Ibid., p. 35.
291
Ver Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin., p. 13. Étiene Pascal tinha recebido de seu próprio pai o
ensinamento do grego, latim, filosofia, matemática, história, direito canônico e civil, assim como o estímulo
para a leitura da bíblia e dos Santos Padres.
292
Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal. Paris: Aux Éditions du Seuil, 1963, p. 18. In: Blaise
PASCAL, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 17 – 33).
293
Pascal tinha o costume de bater com uma faca nos objetos que estavam sobre a mesa que titilavam de
modo diferente. Não se contentando somente com a diversão, o garoto procurou saber a causa que motivava
os diferentes sons nos distintos objetos tocados. Repete a experiência com outros materiais como a madeira e
o ferro. Alguns sustentam que ele desceu até um poço para gritar. Como seu pai não tinha muito tempo para
responder as suas dúvidas ele escreve as conclusões que chegou, compondo um ensaio que a família Pascals
denominou de Tratado sobre o som. Tal escrito se perdeu. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio
francês, p. 39 – 40).
294
“Antes mesmo de dominar inteiramente o francês, com cerca de sete anos de idade, Blaise começa a
aprender latim.”. (Ibid., p. 27). Parece que Pascal também aprendeu o hebreu, língua que conhecia mal. (cf.
Ibid., p. 42).
83
jovem no ensino das regras da gramática e suas exceções. “Em 1635, Blaise tem doze anos.
Étienne Pascal decide que ele sabe latim suficiente para utilizá-lo. Essa língua será falada
em casa quatro dias por semana: às segundas, terças, quintas e sextas.”.295 Dado o espírito
cuidadoso e curioso do pai, Pascal herda não só a perspicácia científica, mas também a
inquietude do pesquisador, pois, “[...] quando se interessava por alguma coisa, não
abandonava jamais, enquanto não encontrava alguma boa razão que poderia satisfazer.”.296
Mais tarde Pascal tornar-se-ia um dos grandes matemáticos da França, mas antes
disso, Étiene Pascal escondia os livros297 de matemática do jovem e os ensinamentos da
mesma. Alegava que esta ciência satisfaz demasiadamente o espírito, sendo assim, proibia
a qualquer um que dialogasse com o menino sobre tais assuntos. O estudo da matemática
seria uma recompensa depois do aprendizado da língua grega e do latim. No entanto, tal
empreendimento não obteve sucesso, surpreendendo o pai-mestre. Não se sabe se Pascal
lia escondido Euclides ou não, mas o que nos chama a atenção é que nas horas vagas
deleitava-se com figuras geométricas, desenhando-as em ladrilhos e nomeando-as. Nesta
atividade lúdica ele chegaria a trigésima segunda proposição de Euclides.298 Não podemos
dizer que este dado histórico comprova-se, pois trata-se de um relato de sua irmã
preocupada com o sucesso intelectual e religioso de Blaise Pascal depois da sua morte, ou
seja, um relato demasiadamente hagiográfico.299 Talvez Pascal tenha se apropriado da obra
de Euclides e chegado a tais conclusões. Mas mesmo que tal fato proceda desta forma, o
mérito do jovem Pascal não poderia ser diminuído, pois trata-se de uma criança lendo uma
obra que, para compreendê-la, precisaria de um nível intelectual adquirido em uma idade
mais avançada. Surpreende tal fato? Muito mais surpreso e entusiasmado encontrava-se
seu pai: “Não choro de aflição, mas de alegria. Sabeis o cuidado que tomei em evitar a meu
filho o conhecimento da geometria, de medo que isso o desviasse dos outros estudos.
Entretanto vede o que fez”.300 Comunicando tal feito ao amigo, o Sr. Le Pailleur – homem
que tinha reconhecimento dos matemáticos da época, mesmo sem ser um grande
profissional na área –, Étiene acata a sugestão do amigo e, a partir daí, autoriza a leitura da
matemática ao filho.
295
Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 36.
Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 18.
297
“A biblioteca de Étienne, aliás, só contém alfarrábios matemáticos, comentários religiosos, Montaigne por
certo, Rabelais talvez.”. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 27).
298
Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 19.
299
Ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 24.
300
Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 19.
296
84
Na época em que a família permaneceu em Paris, o contato com os melhores
matemáticos, físicos e intelectuais de seu tempo como Fermat, Desargues, Roberval,
Gassendi, Hobbes, foram de grande valia para o jovem. Pai e filho participavam de
encontros de um círculo do padre Mersenne301; este último, fundador da primeira academia
científica da França e principal correspondente de Descartes.302 “Todos, por sua vez,
respeitavam o gênio precoce do jovem amigo e ainda que Blaise pudesse ter perdido algo
por não ir à escola, não lhe faltava o louvor e o encorajamento de mestres
reconhecidos.”.303 Desde os primeiros passos em meio aos profissionais do saber, Pascal já
chamava a atenção para sua capacidade intelectual ímpar. Nesta época, o grupo de
pesquisa que Pascal participava entra em contato com a obra Discurso do Método (1637)
de Descartes, obra esta que não causaria uma impressão muito boa a estes pesquisadores,
de maneira que, a seu tempo, Pascal desafiaria suas idéias diretamente. A relação de Pascal
e Descartes sempre foi marcada pela inveja e pelo ciúmes.304
Estando a família instalada em Paris e aproveitando a riqueza científica da capital
francesa, Étienne começa a ter problemas financeiros. O governo francês comandado por
Luís XIII e o cardeal Richelieu aumenta os impostos para atender sua dificuldades
financeiras por causa da guerra dos trinta anos e no início de 1638 não paga um trimestre
de juros aos detentores de dívidas públicas, ou seja, a renda da família Pascal é reduzida
cada vez mais. Vários segmentos da sociedade se rebelam. Étienne participa da
manifestação de protesto na rua Saint-Antoine, que aconteceu em frente ao palácio daquele
que teria suspendido os pagamentos aos detentores de dívida pública, ou seja, o chanceler
Séguier. Étienne fora identificado como um dos cabeças da manifestação e, por este
motivo, é procurado pela polícia por ordem do cardeal Richelieu, ministro do governo de
Luís XIII. Ele foge de casa e se esconde na casa de amigos que participavam da academia
de Mersenne.305 Sem o Pai, Pascal mergulha seu espírito no estudo da matemática. Mesmo
diante da produtividade científica de Pascal neste momento, sabemos que este fora um
301
“[...] ele (Pascal) compunha e progredia tanto que se encontrava freqüentemente nas conferências que se
fazia todas as semanas onde os homens mais hábeis de Paris se reuniam para levar suas obras e para
examinar as dos outros.”. (Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal p. 19).
302
Cf. Gérard LEBRUN, Blaise Pascal: Voltas, Desvios e Reviravoltas. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 29.
“Na Paris aonde vai morar a família Pascal existem cerca de quinze academias desse tipo. Uma delas, por
carta patente de Luís XII, datada de 29 de janeiro de 1635, se transformará em órgão oficial, com o nome de
Academia Francesa. A que mais atrai Étienne é a mais célebre e a mais ativa de então: a Academia
Parisiensis. Prefiguração da Academia des sciences française e da Royal Society britânica, que serão
fundadas vinte anos depois, e dirigida por Matin Mersenne.”. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio
francês, p. 38).
303
Alban KRAILSHEIMER, Pascal, p. 15.
304
Cf. Jacques ATTALI. Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 51.
305
Cf. Ibid., p. 43 – 45.
85
período difícil para os Pascals. A família de Étienne fica sob os cuidados da senhorita
Delfaut. Em novembro de 1638, Étienne vai para Clermont e volta algumas vezes a Paris
para ver Jacqueline: ela estava com varíola, doença mortal para uma criança. Ela melhora,
mas a doença deixa algumas marcas. Começa o trabalho artístico da jovem para livrar seu
pai da perseguição. Jacqueline tem dotes artísticos: era poetisa e atriz. O duque de
Roannez, pai de Arthus, vizinho da família Pascal, apresenta Jacqueline a Mme de
Morangis, personalidade que tinha acesso à corte. Ela encanta-se com o talento de
Jacqueline e leva a jovem para corte várias vezes. O cardeal Richelieu era fascinado pelo
teatro. Em uma destas visitas à corte, a jovem faria uma apresentação de L’Amour
tiranique, de Georges de Scudéry.306 Ela faria o papel de Cassandra com grande sucesso.
Depois da encenação o cardeal lhe segura no colo e Jacqueline cochicha em seus ouvidos
uns versos que ela já havia preparado. O fato surpreende o cardeal.
O cardeal aplaude. Está estupefato: a mocinha não só é encantadora, como
também é boa atriz e poetiza. Concorda com tudo que ela lhe pede. Está
disposto a anistiar Étienne Pascal desde que este compareça à sua presença
em companhia dos filhos. Quer rever Jacqueline.307
Tal acontecimento dar-se-ia no começo de abril de 1639, assim, no dia 4 do mesmo
mês, a família apresenta-se diante do cardeal com Étenne. A família está mais uma vez
junta em Paris! Étienne viu que Pascal tinha aproveitado bem o tempo em que seu tutor
esteve fora. Em setembro de 1639 Desargues convida Pascal a apresentar um trabalho no
qual aponta para um novo ramo da matemática: a geometria projetiva. “[...] Pascal chega
aos princípios da projeção, sobre um plano, de figuras traçadas no espaço.”.308 Todavia,
apesar da situação de pai e filho rentistas, a situação financeira da família é delicada, pois
os problemas com os pagamentos das rendas ainda não tinham sido resolvidos. O país
enfrentava grande crise e será essa crise que irá tirar a família do problema financeiro:
Étienne é convidado em outubro de 1639 por Richelieu a seguir com Séguier para Rouen
com o título de adjunto do intendente do rei para a Normandia e de comissário
representante de Sua majestade para os impostos e a cobrança da talha, um imposto sobre o
sal.309 Étienne aceita e no dia 2 de janeiro de 1640 os Pascals mudam para Rouen. “Étienne
306
Cf. Jacques ATTALI. Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 45 – 47.
Ibid., p. 49.
308
Ibid., p. 49.
309
Ibid., p. 52.
307
86
vai morar numa boa casa da rua Murs-Saint-Ouen. Agora tem auto nível de vida:
carruagem, cavalos, criados.”.310 Será em Rouen que Pascal verá seu pai comandar
carantonhas311, pois Étienne participa do processo de repressão do governo na cobrança
dos impostos. As atividades científicas de Pascal continuam. Em 1640, aos 16 anos escreve
um Tratado dos Cones, mas este fora perdido, conservando somente alguns traços por
Leibniz e reconhecido por Desargues pelo poder racional e sintético do empreendimento.
No dia 13 de julho de 1641 Gilberte, irmã mais velha de Pascal, casa-se com Florin Périer,
ajudante de Étienne. As duas famílias moram juntas. Neste mesmo ano as dores
constrangeriam Pascal: dor de cabeça e estômago, dores nos dentes, fica paralisado da
cintura para baixo e seus pés frios; passa a andar de muletas e, com dificuldade para
engolir, só ingere líquidos e às vezes desmaia.312 Depois disso, já com 19 anos, no ano de
1642, Pascal alcança glória: inventa a máquina de calcular, sendo construída dois anos
mais tarde.313 Este fato causaria muita admiração por seu pai e uma espécie de obscuridade
ao mal que também lhe causava, relata sua irmã Gilberte:
Meu pai sentia um grande prazer, como se pode acreditar, do progresso do
meu irmão em todas as ciências; mas ele não percebeu que estas grandes e
contínuas aplicações do espírito em uma idade tão tenra podiam
demasiadamente perturbar sua saúde e, com isto, ela começa a ser alterada
desde que ele tinha a idade de dezoito anos. Mas como os incômodos que
sentia neste momento não eram de tão grande força, não impediam de
continuar todas suas ocupações ordinárias, de maneira que, foi neste
tempo, e com a idade de dezenove anos que ele inventa a máquina de
aritmética, pela qual não somente se faz todas as formas de operações sem
a pena e tento, mas sem nenhum conhecimento propriamente da aritmética
e com uma segurança infalível.314
Dois anos depois da invenção, um operário constrói a máquina de calcular sob a
supervisão atenta de Blaise Pascal. A fadiga é conseqüência da produção deste trabalho,
sendo que o cansaço maior não foi na invenção de seu mecanismo, mas o labor de fazer os
operários compreenderem como usar da máquina: esta invenção do lhe renderia mais tarde
310
Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 53.
Uma espécie de tropas.
312
Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 58.
313
Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 18 – 19.
314
Ibid., p. 19.
311
87
(1651) o título de inventor. Não é sem importância o fato de Pascal revelar que suas dores
advinham desde os dezoito anos e, desde esta idade, não passara um dia sem sofrer de seus
males. Todavia, apesar do cansaço e das doenças, inicia seus trabalhos sobre o vácuo
Aos 23 anos, em 1646, inicia suas análises sobre o vácuo depois de ver a
experiência de Torricelli. Escreve em 1647 uma obra chamada Novas experiências sobre o
vácuo. Através dela contesta os argumentos vindos da escolástica na qual, a natureza tem
horror ao vácuo. Talvez para nós, “pós-modernos”, não teríamos nenhum problema em
conceber a idéia da existência do vácuo, no entanto, para o homem do século XVII o vácuo
era visto com horror e temor. Começa aqui um confronto que duraria muitos anos e se
estenderia não só sobre a física, mas também na teologia: o confronto entre Pascal e os
jesuítas. Tal debate é precedido pelo contato de Pascal com o jansenismo que aconteceria
pela visita de dois médicos-pregadores à casa dos Pascals
Em 1646, o pai de Pascal encontra-se doente de uma ferida na perna.315 O socorro
viria de dois irmão, Des Fandese La Bouteille316 que eram jansenistas, que além de servir
Étiene com seus métodos medicinais, pregavam e praticavam a arte medicinal como obra
de caridade. Assim converteram toda a família e os colocaram sob a direção espiritual do
padre local Guillebert. Este momento caracteriza-se pela chamada primeira conversão de
Pascal. “A ‘conversão’ de 1646 só fez reforçar a aplicação de toda família ao estudo da
teologia positiva e daquilo que era considerada a fonte mais rica, a obra agostiniana.”.317 O
pai de Pascal tinha uma formação agostiniana, naquilo que diz respeito a religião, mas é a
faísca lançada pela pregação daqueles irmãos caridosos que faria Pascal dedicar boa parte
de seu tempo na leitura da bíblia, dos Santos Padres e da moral cristã, esta que seria um
objeto a ser alcançado com radicalidade no decorrer da sua vida. Não se sabe precisamente
as disposições religiosas da família antes deste fato, o que se poderia dizer é que com a
conversão da família, assim como de Pascal aos 23 anos, as disposições religiosas da
mesma é transformada, no entanto, seria difícil traçar uma comparação entre o Pascal antes
e depois da primeira conversão, mesmo porque este não é o objetivo desta pesquisa. Mas
seria plausível supor que a primeira conversão implica em um reconhecimento de valores
espirituais e uma exigência na prática destes valores, caracterizados pela fé e de um novo
modo de vida. Entretanto, quanto a Pascal, as dores mais um vez incomodariam o jovem
inventor.
315
Cf. Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 80.
Cf. Ibid., p. 80.
317
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin., p. 13 – 4.
316
88
Em 1647 Pascal encontrava-se doente e acamado, seus males haviam aumentado,
de maneira que não podia mais engolir nem líquidos como no ano que havia passado, a não
ser que eles estejam quentes e com um cuidado especial: gota a gota. Sentia dores de
cabeça e cólicas insuportáveis, de maneira que os médicos lhe receitaram uma gama de
remédios, estes porém, seriam ingeridos depois de aquecidos e como fora recomendado,
gota a gota. Os remédios deram-lhe um alívio, mas não uma saúde perfeita; os médicos
mediante sua saúde precária recomendaram a renúncia de suas ocupações intelectuais e o
deleitamento em algo que fosse agradável e satisfatório, de maneira que Pascal pudesse se
divertir.318 Portanto, nada como a sociedade parisiense para que se pudesse desfrutar de
tranqüilidade. Étienne autoriza Pascal e Jacqueline a irem para Paris acompanhados da
senhorita Delfaut. Neste período, encontrando-se no leito, Pascal recebe a visita de
Descartes319, todavia, as impressões entre os dois não foram muito favoráveis.
Descartes era metódico, acreditava que a razão, de maneira eficaz, era capaz de
compreender todos os princípios da natureza. A grande obra que traduz o método científico
de Descartes foi O Discurso do método320, tendo como subtítulo para bem conduzir a
própria razão e procurar a verdade nas ciências. A verdade pode ser alcançada, basta
fazer bom uso de nossa razão e de um método que esclarecesse e eliminasse toda dúvida.
Descartes tem uma vida de estudos mais equilibrada e regular do que Pascal, pois, devido
aos possíveis problemas com a Igreja – visto que Galileu já havia sido condenado pela
Inquisição em 1633 – migra para Amsterdã, onde pôde com mais tranqüilidade compor
seus pensamentos. Sua aversão à escolástica aparece nas primeiras páginas do Discurso do
método:
Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não
haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter
descoberto cada vez mais minha ignorância. E, no entanto, estivera numa
das mais célebres escolas da Europa, onde pensava que deviam existir
homens sapientes, se é que existiam em algum lugar da terra.321
318
Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 21. “É possível que ele tenha sido intoxicado pelas
emanações do mercúrio que manipulava havia um ano e guardava em seu quarto.”. (cf. Jacques ATTALI,
Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 86).
319
Sobre o encontro de Pascal e Descartes ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 86 –
93.
320
René DESCARTES, Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
321
Ibid., p. 30.
89
Descartes completa seus estudos em La Flèche, colégio dos jesuítas fundado em
1604. Apresenta grande rejeição ao que lhe foi ensinado, de maneira tal que revela sua
insatisfação e repulsa por toda escolástica.322 Os jesuítas tinham a escolástica como um dos
maiores trunfos para a dissolução das heresias, no entanto, a abertura as novidades
científicas da época eram sempre bem vindas, impulsionando o jovem Descartes à ciência
e a matemática. Mas logo percebe o enorme abismo entre a produção científica da época e
a escolástica, assim, indaga-se sobre a produção de um método para se chegar à verdade.
Sabemos que, mesmo criticando a escolástica, Descartes não a abandonaria totalmente.
Para ele, as disputas filosóficas entre os mais doutos levavam somente à dúvida e,
conseqüentemente, à rejeição de todas às opiniões, de maneira que “[...] jamais possa
existir mais de uma que seja verdadeira [...]”323, sendo a verdade uma só. Por este motivo,
sabendo de sua formação cristã e da facilidade com que o pensamento platônico pode
adaptar-se ao cristianismo, seria plausível afirmar que o pensamento cartesiano possui um
veio platônico muito forte.
Reconhecendo a existência da verdade a priori, o problema para conduzir o espírito
à verdade estaria no método. “Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada
qual deve seguir para bem conduzir a razão, mas apenas mostrar de que maneira me
esforcei para conduzir a minha.”.324 Não se trata de elucidar um método que todos
devessem seguir, mesmo sabendo que, para Descartes, o seu método é absolutamente
eficaz para se chegar à verdade, no entanto, a busca da mesma sem um método pareceria
ter como finalidade o fracasso. Mas em que consiste este método? Descartes propõe quatro
regras. A primeira consiste em não aceitar, de forma alguma, como verdadeiro, aquilo que
é passível de dúvida, sendo que os juízos precisam ser claros e distintos ao espírito.325 A
322
Ver René DESCARTES, Discurso do método, p. 29 – 33. Na primeira parte do Discurso do método o
leitor encontrará a repulsa de Descartes aos seus estudos adquiridos em La Flèche, todavia, sabemos que
Descartes deve parte de sua obra a estes estudos.
323
Ibid., p. 31.
324
Ibid., p. 30.
325
Cf. Ibid., p. 37. As idéias claras e distintas são criadas por Deus em nós, ou seja, o conhecimento que uma
idéia deve ser clara e distinta trata-se de uma marca do criador em nós. No entanto uma pergunta se coloca?
Como fazer a distinção entre as idéias claras e distintas e as idéias falsas? Esta pergunta é respondida em seu
livro Meditações (Idem, Meditações, São Paulo: Abril Cultural, 1979), mais precisamente a terceira. Como
Eu – ser pensante – poderia me enganar se Deus é a causa da minha existência e do meu pensamento? Sendo
causa do meu pensamento, Deus, que é sumamente bom e não enganador, não poderia ser a causa de meus
erros, pois isto seria uma imperfeição, logo, não poderia vir de Deus. No entanto, sabemos que erramos. O
que seria o erro então? O erro “[...] é uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria
possuir.” (Ibid., p. 116). O erro para Descartes não provém de Deus, mas é uma ausência de um
conhecimento, pois este está em Deus e o homem não tem acesso em função de sua finitude e imperfeição.
Descartes afirma que, aquilo que parece erro particularmente ou imperfeição, olhando as coisas no conjunto,
nada mais é do que a perfeição da obra de Deus. (cf. Ibid., p. 117). Ele encontra com o mesmo problema de
Santo Agostinho na discussão da origem do mal com os maniqueístas. O curioso é que Descartes usa do
90
segunda regra seria de dividir cada um dos problemas para que cada um deles fossem
examinados quantas vezes fosse possível para melhor resolvê-los.326 A terceira propõe
conduzir os pensamentos por ordem, assim, poderíamos ir dos mais simples para os mais
compostos, subindo de grau em grau o conhecimento.327 A última, seria de fazer uma
revisão tão completa e tão geral, que teríamos a certeza de nada omitir.328 Diante deste
procedimento, o espírito poderia resolver todos os problemas e constituir um saber
universal capaz de compreender todos os segredos da natureza. A esta ciência
completamente nova, Descartes chamava de Mathesis universalis.329
mesmo argumento – que vimos acima – que Agostinho: “E, porque as não criastes todas iguais, por esta
razão, todas elas, ainda que boas em particular, tomadas conjuntamente são muito boas, pois o nosso Deus
criou ‘todas as coisas muito boas’.”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, VII, XII, 18, p. 118). Descartes usa
das distinções entre imperfeito, este sendo as coisas vistas na sua particularidade, e perfeitas em seu conjunto;
Santo Agostinho usa dos termos boas, com referência as coisas particulares e muito boas no seu conjunto.
Assim, tanto um quanto outro tentam retirar de Deus qualquer possibilidade de considerá-lo causador ou
criador do erro, conferindo a este um novo sentido. Descartes chama o erro de privação, Santo Agostinho de
ausência de ser. No entanto, nossa pesquisa não tem como objetivo traçar as raízes do pensamento cartesiano
e nem propor que este argumento de Descartes foi retira de Agostinho, apesar da evidente aparência, mas
vale ressaltar a curiosa analogia argumentativa. Visto que o erro marca uma imperfeição, a possibilidade de
pautar meus juízos de maneira clara e distinta permite que eu não me engane, assim, a “[...] concepção clara e
distinta é sem dúvida algo real e de positivo, e portanto não pode ter sua origem no nada, mas deve ter
necessariamente Deus como autor; Deus, digo, que, sendo soberanamente perfeito, não pode ser causa de
erro algum; e, por conseguinte, é preciso concluir que uma tal concepção ou um tal juízo é verdadeiro.”.
(René DESCARTES, Meditações, p. 122). A metodologia cartesiana apropria-se do critério das idéias claras
e distintas que solapa qualquer dúvida e conduz indubitavelmente à verdade, portanto, a partir disto, concluirse-ia que este critério metodológico só poderia ter Deus como origem e sustentação.
326
Cf. Idem, Discurso do método, p. 38.
327
Cf. Ibid., p. 38.
328
Cf. Ibid., p. 38.
329
Ver Catherine CHEVALLEY, Pascal, contingence et probabilités. Paris: PUF, 1995. p. 11 – 12.
Descartes introduz a idéia de um método único e universal capaz de instituir o saber matemático como o
modelo de todo conhecimento possível. Esta metodologia seria uma teoria geral que, sem importar com o
objeto que se propõe conhecer, poderia fundamentar o conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que estivesse
ao alcance do homem. Ver também Michel PATY, Mathesis Universalis e Inteligibilidade em Descartes.
Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas, s. 3, v. 8, n. 1, p. 9 – 57, jan./jun., 1998. Michel Paty
destaca que o tema fundamental da filosofia de Descartes é a inteligibilidade e a possibilidade de assegurar a
verdade deste conhecimento. A Mathesis Universalis na obra de Descartes enfatiza uma maneira de formular
julgamentos sólidos e seguros a tudo que se apresente ao conhecimento. Trata-se da junção da matemática e a
filosofia, na tentativa de estender a certeza matemática para todos os âmbitos do saber. A Mathesis
Universalis proporcionaria um conhecimento seguro e objetivo, ou seja, um conhecimento fundamentado e
evidente pelos raciocínios do sujeito pensante. As operações metódicas da razão (intuição e dedução)
garantiriam um saber claro e distinto, concepção diametralmente contrária a Pascal: “Um (Descartes) quer
assegurar o conhecimento sobre a certeza que a razão mesma pode fundar de modo absoluto, enquanto o
outro (Pascal) considera o caráter finito da razão e sua incapacidade de fundar a certeza, interrogando
extensivamente nossos saberes e as definições que os sustentam.”. (Ibid., p. 27). Se Descartes afirma a
certeza, Pascal interroga até o silêncio de todas a possibilidades de fundamentar o conhecimento no sentido
cartesiano do termo, ou seja, verdade, evidência. Para saber mais sobre o silêncio em Pascal ver Andrei
Venturini MARTINS, As faces do silêncio em Blaise Pascal. Revista Último Andar: São Paulo: Educ
(Prelo). Quanto a concepção de Pascal acerca do fundamento do conhecimento destacamos as pesquisas de
Hélène MICHON em seu livro L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de
Pascal. Há uma transferência do fundamento na autonomia da razão em matéria de filosofia para a teologia:
“[…] a impossibilidade de encontrarmos no mundo das coisas um ponto fixo, figura a incapacidade
pascaliana de encontrar na filosofia, entendida como o conjunto de conhecimentos humanos, um fundamento.
91
Para a construção deste saber, que poderia chegar a natureza das coisas, isto é, a
verdade que sustenta a totalidade do universo, Descartes recorre inicialmente ao ceticismo,
pois, duvidando de tudo ele poderia, diante dos escombros daquilo que foi derrubado,
reconstruir o edifício do saber e chegar à verdade. A dúvida tornar-se-ia método. No
Discurso do método a dúvida como atributo metodológico aparece na quarta parte da obra.
Ela se ossifica em suas afirmações da falha dos sentidos e no argumento dos sonhos, no
entanto, com o Cogito, Descartes vira a mesa. “Eu penso, logo existo.”.330 Se eram os
princípios que serviam de base para o edifício do saber que não eram claros e distintos,
fazer-se-ia necessário fundamenta-los331 para, a partir deles, construir aquilo que foi
destruído através da dúvida. A certeza do pensamento comprova a existência como ser
pensante, pois, não poderia de maneira alguma conceber o pensamento sem antes
pressupor a existência, assim como o pensamento da não-existência somente serviria para
provar que existo: o homem existe enquanto ser pensante.
A existência é vista como uma perfeição, de modo que o não existente não poderia
ser mais perfeito que o existente. Mas qual é a causa da idéia de perfeição como
característica da existência? A causa só poderia vir de Deus. Todas as idéias de perfeição
provêm de Deus, logo não resta nenhuma dúvida que Ele existe.332 Mas o que é Deus? Para
Descartes, Deus é tudo aquilo de perfeito que se encontra no homem.333 O inatismo
platônico fazer-se-ia presente. Quanto às coisas fora do pensamento, elas são
absolutamente duvidosas e dignas de toda suspeita, porém, a dúvida é garantia do pensar.
O homem é por essência (ou natureza) ser pensante, visto que é isto que difere o homem
dos animais. Mas como saber se não há um Deus enganador ou de um gênio maligno que
faria com que eu pensasse ser verdadeiro que 2+3=5 ou pensar que eu existo?
Este encontra-se em outro lugar que não na filosofia seu centro e seu fundamento.”. (Hélène MICHON,
L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, p. 119). Destituir a filosofia
de todo fundamento e transferir o mesmo para a teologia é fazer desta uma ciência hegemônica, pois só ela
possui fundamento em si mesma. “A teologia é uma ciência, mas ao mesmo tempo quantas ciências há?”.
(Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 65, Bru. 115, p. 24). Pascal quer mostrar que se há uma ciência –
entendida como o conjunto de conhecimentos universais e absolutos – está é a teologia. Portanto, se
Descartes busca uma Mathesis Universalis, Pascal, ao contrário, defende que todo conhecimento humano é
local. Discutiremos no próximo capítulo a questão da transferência do fundamento do conhecimento para a
teologia.
330
René DESCARTES, Discurso do método, p. 46.
331
Cf. Ibid., p. 64.
332
Cf. Ibid., p. 47.
333
“Pois, segundo os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha
o era capaz, bastava considerar, acerca de todas as coisas de que achava em mim qualquer idéia, se era ou
não perfeição possuí-las, e estava seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição
existia nele, mas que todas as outras existiam.”. (Ibid., p. 48).
92
No Discurso do método Deus já é evocado como garantia da verdade. “Donde se
segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e provenientes de Deus em tudo
em que são claras e distintas, só podem por isso ser verdadeiras.”.334 Mas Descartes
responderia a pergunta acima formulada com mais precisão em outra obra: as Meditações:
concernentes a primeira filosofia nas quais a existência de Deus e distinção real entre a
alma e o corpo do homem são demonstradas. Deus, com todos seus atributos – “substância
infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual todas as coisas
são [...], foram criadas e produzidas”335 – não poderia enganar o homem. “Daí é bastante
evidente que ele não é embusteiro, posto que a luz natural nos ensina que o embuste
depende necessariamente de alguma carência.”.336 Deus, sendo infinitamente perfeito, não
poderia enganar o homem. Assim, Deus, como ser existente e não enganador, torna-se
sustentáculo epistemológico das representações da mente pela perfeição metódica dos
atributos doados por Deus – e explicito na geometria – de clareza e distinção.337 Mas como
provar a existência de Deus como realidade diferente de um Eu pensante?
Descartes sustenta que Deus é infinito338, bom, perfeito e existente339, não como
334
René DESCARTES, Discurso do método, p. 50. “[...] mas dita realmente que todas as nossas idéias ou
noções devem ter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e
verídico, as houvesse posto em nós [...]”. (Ibid., p. 51).
335
Ibid., p. 107.
336
Idem, Meditações, p. 107.
337
Na tentativa de afastar a dúvida, Descartes encontra duas verdades indubitáveis: “Mas, a fim de poder
afastá-la inteiramente, devo examinar que há um Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe
um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois sem o conhecimento destas duas verdades, não
vejo como possa jamais estar certo de coisa alguma.”. (Ibid., p. 100). Sem estas duas verdades – que Deus
existe e não me engana – ele não poderia estar certo de coisa alguma, assim, Deus tornar-se, para Descartes,
um argumento absolutamente necessário para a construção de sua filosofia e, depois disso, de sua física.
338
“E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir [...], que Deus existe; pois, ainda que a idéia de
substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser uma substância, eu não teria, todavia, a idéia de uma
substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância
que fosse verdadeiramente infinita.”. (Ibid., p. 107 – 108). A existência é um predicado de Deus, todavia, o
predicado de todos os predicados é a infinitude de Deus: não há como sustentar, para Descartes, que a idéia
de infinitude seja causada por um outro ser que não Deus. A existência de Deus é um atributo que está
diretamente ligado com a noção de perfeição, portanto, se Deus não existisse seria uma carência. Logo, se
tenho em minha mente a idéia de infinito, se tal idéia só poderia ser causada por um ser perfeito e, por este
motivo, existente, a conclusão não poderia ser outra: Deus existe. É desta forma que o filósofo Franklin
Leopoldo e Silva, analisando a obra de Descartes, afirma a infinitude como o atributo dos atributos de Deus:
“Ora, a idéia que em mim representa o infinito é a idéia de Deus, na mediada em que a infinitude é o
predicado de todos os predicados de Deus. Tenho na mente uma noção de Deus como um ser que possui
todos os predicados em grau infinito, e o responsável por existir em mim tal idéia só pode ser o próprio Deus,
que teria, segundo Descartes, deixado impressa em mim a infinitude como a marca do artífice em sua obra.”.
(Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1993, p.
66).
339
Sobre a existência de Deus como um atributo complementar da sua perfeição: “E toda a força do
argumento de que aqui me servi para provar a existência de Deus consiste em que reconheço que seria
impossível que minha natureza fosse tal como é, ou seja, que eu tivesse em mim a idéia de um Deus, se não
existisse verdadeiramente; esse mesmo Deus, digo eu, do qual existe uma idéia em mim, isto é, que possui
todas essas altas perfeições de que nosso espírito pode possuir alguma idéia, sem, no entanto, compreendê-las
93
uma simples idéia que provém de seus raciocínios, mas uma substância diferente e
independente do seu eu pensante, sendo que este, nada mais é do que a marca deste mesmo
Deus criador e incausado.340 Meu eu pensante, destaca Descartes, é imperfeito e finito, de
modo que Deus é perfeito e infinito, desta maneira, não posso ser causa de mim mesmo,
pois não tenho o poder de alcançar estes dois atributos que só poderiam vir de um Deus
único e diferente de mim.341 As perfeições de Deus são todas aquelas que possuímos
apenas fragmentos – Infinito, Eternidade, Imutabilidade, Onisciência, Onipotência –, sendo
que nossas imperfeições excluímos Dele. “Ao passo que, voltando a examinar a idéia que
tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma forma
como na de um triângulo está incluso serem os seus três ângulos iguais a dois retos [...]”.342
Desta maneira, é tão certo que Deus existe quanto a soma dos ângulos de um triângulo
somam 180 graus, pois é Ele quem marca meu espírito, ou alma – o que é a mesma coisa
para Descartes – com suas perfeições. Portanto, concebendo o Eu pensante como existente
em função de uma perfeição de Deus que o mesmo participa343 e, sabendo que Deus, por
ser perfeito, não engana, como poderia Descartes afirmar a existência do mundo e,
conseqüentemente, afirmar o homem como um composto344 (mistura) entre corpo e alma?
Lembramos que Descartes somente concebeu até este momento como existente um eu
pensante e a existência de Deus que não é este “Eu pensante”.
A resposta a tal pergunta encontra-se na sexta Meditação. Descartes faz uma
distinção entre duas faculdades: a passiva, capaz de receber as idéias das coisas sensíveis,
todavia, esta seria inútil se não houvesse outra, a ativa, capaz de formar e de produzir as
idéias. A existência da faculdade ativa não necessita do pensamento, logo ela “[...] não
todas, que não é sujeito a carência alguma e que nada tem de todas as coisas que assinalam alguma
imperfeição.”. (René DESCARTES, Meditações, p. 112).
340
Cf. Ibid., p. 112.
341
Ver Ibid., p. 47 – 48. Sobre os atributos de Deus.
342
Ibid., p. 49.
343
“E quando considero que duvido, isto é, que sou uma coisa incompleta e dependente, a idéia de um ser
completo e independente, ou seja, de Deus, apresenta-se a meu espírito com igual distinção e clareza; e do
simples fato de que essa idéia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que possuo essa idéia, concluo
tão evidentemente a existência de Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de
minha vida, que não penso que o espírito humano possa conhecer algo com maior evidência e certeza.”.
(Idem, Meditações, p. 115). Descartes esclarece, a partir da existência de Deus, a chamada gradação de seres.
O homem possui o ser concedido por Deus, todavia, este possui o ser em si mesmo, logo, poderíamos supor
que o homem tem o ser tanto quanto Deus – algo que Descartes recusa a aceitar – ou tem menos ser que o
próprio doador do ser. A gradação de ser se aplica às idéias também. Sobre este assunto ver Franklin
Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 62 – 63.
344
Cf. René DESCARTES, Discurso do método, p. 48. Sabe-se que a composição implica em dependência,
assim Descartes concebe que Deus é simples, de maneira que o homem, sendo criatura e, participando da
existência por ato onipotente do Criador, é visto como dependente, pelo fato de ser composto por corpo e
alma. Esta dependência implica em imperfeição.
94
pode existir em mim enquanto sou somente uma coisa que pensa.”.345 Descartes destaca
que as idéias produzidas pela faculdade ativa realizam-se sem a contribuição de um eu
pensante, de modo que muitas vezes as idéias aparecem de “[...] mau grado meu.”.346 Ao
concluir a ausência de necessidade do pensamento para a existência da faculdade ativa,
Descartes supõe que ela deva existir em uma substância diferente do eu pensante. Mas do
que se trata esta substância? Descartes sublinha três possibilidades: ou esta substância é um
corpo, ou seja, uma coisa corpórea, ou trata-se do próprio Deus, ou de uma outra criatura,
esta porém, mais nobre do que o corpo. Diante deste quiásmo, qual seria a saída? Deus,
não sendo, de maneira nenhuma, enganador, não me enviaria idéias de corpos sem que os
mesmos existissem como coisa extensa e objetiva, este mesmo Deus porém, não deslocaria
até meu pensamento idéias provenientes de seres nobres e sutis, de modo que meu eu
pensante sempre se enganasse supondo que estas idéias são causadas por seres extensos e
objetivos, portanto, Descartes “[...] tem uma fortíssima inclinação para crer que elas me
são enviadas pelas coisas corporais ou partem destas [...]”347. Desta maneira, a realidade
das coisas corpóreas, visto que não poderiam ser colocados em dúvida por causa de um
Deus sincero e perfeito, faz parte de um conhecimento claro e distinto, portanto,
verdadeiro. Todavia, sabemos que a representação do mundo sensível não é garantia da
existência objetiva do mesmo. Sendo o mundo sensível composto por quantidade e
qualidades – quente e frio; úmido e seco; etc – a dificuldade do idealismo cartesiano se
manifestaria na representação das qualidades como claras e distintas pelo método. A
quantidade é apreensível e julgada pelas noções matemáticas de clareza e distinção, já que
as representações geométricas possuem uma extensão inteligível somente a artificialidade
do argumento do Deus enganador que poderia produzir incerteza.
Só me resta agora examinar se existem coisas materiais: e certamente, ao
menos, já sei que as pode haver, na medida que são consideradas como
objeto das demonstrações de Geometria, visto que, dessa maneira, eu as
concebo mui clara e distintamente.
348
As idéia que concebo claramente através da geometria, como a extensão, são
verdadeiras enquanto representação e objetivamente, pois Deus, como ele não é enganador,
345
René DESCARTES, Meditações, p. 135.
Ibid., p. 135.
347
Ibid., p. 135.
348
Ibid., p. 129.
346
95
garantiria a existência destas idéias no mundo objetivo: desta maneira, a concepção ideal
vem antes que a concepção real, ou seja, em Descartes a essência prescinde a existência.
Mas às coisas não possuem somente quantidade, mas qualidades também. Desta maneira,
vale a indagação: como corroborar as qualidades do mundo objetivo sem se submeter as
oscilações dos sentidos? Descartes afirma que as qualidades “[...] são concebidas menos
claramente e menos distintamente, como a luz, o som, a dor e outras semelhantes [...]”349,
desta maneira, não encontramos a clareza e distinção exigidas pelo método, mas a crença
de que Deus, por ser bom, não nos deixaria enganar ao afirmarmos que tais qualidades
existem no mundo objetivo. O método ver-se-ia impotente diante da apreensão verdadeira
das qualidades. Assim, Franklin Leopoldo e Silva afirma: “Essa massa qualitativa que
atinge imediatamente os meus sentidos me é dada como um bloco indivisível, e o método é
de alguma forma impotente para dividi-la quantitativamente.”.350 A objetividade só poderia
ser totalmente demonstrativa se pudesse ser matemátizada. Como isso não é possível no
nível da qualidade, assim, a demonstração total da realidade objetiva fica embargada.351
Portanto, não há dúvida que tudo que se encontra na natureza contém uma verdade
garantida pela bondade de Deus, pois, a natureza nada mais é do que “[...] o próprio Deus,
ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas.”.352 O homem como
parte da natureza é tudo aquilo que o próprio Deus o concedeu, ou seja, uma alma e um
corpo. Como a ordem construída por Deus não poderia ser algo que me engana e estando o
homem na economia desta ordem, Descartes afirma que o homem tem um corpo, mas a
união entre corpo e alma não pode ser demonstrada pelo método. A substância pensante
pode ser provada pelo rigor do método, mas a substância extensa não, visto que a prova
que temos de sua existência é a manifestação da ordem de Deus que o corpo faz parte.
Todavia, tal ligação é tão intrínseca que este conjunto é um composto indivisível. Sendo
assim, diz Descartes sobre o corpo, “[...] estou conjurado muito estreitamente e de tal
modo confundido e misturado, que componho com ele um todo.”.353 Desta forma,
Descartes sustenta não só a existência de seu corpo, mas de todos os corpos como uma
matéria extensa. O espaço também é visto como matéria, assim, este seria um argumento
direcionado aos resultados das experiências de Pascal sobre o vácuo, pois, se para Pascal o
vácuo não era nem matéria, nem um puro nada, para Descartes, o espaço vazio entre a
349
René DESCARTES, Meditações, p. 135.
Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 81.
351
Sobre os problemas do idealismo ver Ibid., p. 80 – 82.
352
René DESCARTES, Meditações, p. 136.
353
Ibid., p. 136.
350
96
extremidade do tubo de ensaio e o mercúrio era espaço – experiência de Torricelli –,
portanto, era matéria.354
Diante desta pequena explanação do pensamento de Descartes, percebemos que
para ele conhecemos clara e distintamente a existência de Deus, assim como seus atributos
ou natureza, como por exemplo a infinitude, embora não os compreenda na sua totalidade,
pois o homem é um ser finito. Todavia, a posição de Pascal seria diametralmente oposta
em alguns pontos: não sabemos com toda certeza se Deus existe ou não, assim como a sua
natureza, no entanto, sabe-se que existe um infinito, mas não conhecemos a sua natureza, o
homem porém, é um ser finito. O deísmo de Descartes que sustenta a existência de Deus
pela luz natural, ou seja, pela razão, é rejeitado fortemente por Pascal.
Não poso perdoar a Descartes: ele bem que gostaria, em toda a filosofia, de
poder dispensar Deus; mas não pôde evitar de atribuir-lhe um piparote para
colocar o mundo em movimento; depois disso, ele não tem mais o que
fazer de Deus.355
Para Pascal, Descartes faz de Deus um argumento para sustentar sua física, usandoo para compor sua filosofia e dar sustentação a todo edifício do saber por ele construído.
Deus torna-se o princípio que garante a sustentação de todos os outros. Visto como um
cientista obstinado a conceber a verdade e a certeza a partir da certeza metafísica, esta
porém, aplicada a um método que distanciaria o pesquisador de toda dúvida através de
idéias claras e distintas, Descartes precisaria somente de tempo para conhecer todas as
coisas que se apresentam diante de si. Sabendo da proposta cartesiana de universalização
sistemática do conhecimento, Pascal prefere um saber local. Percebemos isto em um de
seus escritos que tem como título Prefácio sobre o tratado do vácuo (1651).
É assim que, quando dizemos que o diamante é o mais duro de todos os
corpos, nós entendemos que se trata de todos os corpos que conhecemos, e
não podemos e nem devemos nisto compreender aqueles que não
conhecemos de modo algum; e quando dizemos que o ouro é o mais
354
“Do mesmo modo, também, embora haja espaço nos quais não encontro nada que provoque e que mova
meus sentidos, não devo concluir daí que estes espaços não contêm em si nenhum corpo [...]”. (René
DESCARTES, Meditações, p. 137). Descartes sustenta o argumento da materialidade de todo espaço, desta
maneira, inviabilizaria toda hipótese de vacuidade, esta porém, sustentada por Pascal.
355
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 1001, p. 431. Trata-se de uma proposição atribuída a Pascal por
Marguerite Périer, filha de sua irmã mais velha, Gilberte Périer. Não temos o número da edição de
Brunschvicg.
97
pesado de todos os corpos, estaríamos temerários de compreender desta
proposição geral àqueles que não estão, de modo algum, ainda em nosso
conhecimento, embora não seja impossível que eles existam na natureza.356
Em física fazer-se-ia necessário à experiência empírica; Pascal rejeita às
experiências metafísicas na formulação de axiomas. Desta maneira, ao formular um
axioma como a dureza de todos os diamantes, será necessário ressaltar que este axioma é
construído a partir de todos os corpos que conhecemos, sendo que, em função das
infinidades de coisas existentes no universo, não poderíamos conhecer às características de
todos os corpos, assim, seu enunciado é valido somente para aqueles corpos cognoscíveis,
submetidos a um determinado local e temporalidade. Da mesma maneira o ouro, sabendo
que possui a qualidade de um metal pesado e inferindo a partir disto que ele caracteriza-se
como o mais pesado de todos os metais, a validade deste enunciado é referente somente
para todos aqueles metais que conheço, mesmo sabendo que poderia haver outro metal na
natureza, ao menos como possibilidade, que superaria o peso do ouro.
Mas não seriam as controvérsias científicas que abalariam profundamente Pascal.
Outro fato marcaria um período muito difícil de sua vida, pois no dia 24 de setembro,
morre Étienne Pascal, pai zeloso e cuidadoso de Blaise.357 A partirdeste fato, ele viveria
anos dificílimos. Nesta época trava contato com a família dos Roannez. Parece que neste
tempo, ele viveria um período mundano, mas o evangelho parecia latente, de tal maneira
que escreve uma carta à família dos Périer em outubro de 1651. Nela ele afirma um
agostianismo ortodoxo digno de um envolvimento muito forte com as idéias jansenistas.
Nesta carta, encaminhada para sua irmã Gilberte Perier em função do falecimento
de “M. Pascal le Père”, Pascal tenta trazer alguma consolação diante da situação aflita da
família. A morte ganharia outro sentido para aqueles agraciados por Deus pelo dom da fé,
ela seria uma etapa indispensável e justa para consolidar uma vida feliz e infinita; assim, o
cristão teria como marca vital a esperança de um dia, superando todas as barreiras do
mundo pelo sustentáculo da graça, poder desfrutar do reino que Deus preparou para
aqueles por Ele pré-destinados. “Portanto, não nos aflijamos como os pagãos que não tem
nenhuma esperança.”.358 A esperança torna-se a marca do cristão diante da morte, esta
356
Blaise PASCAL, Préface sur le traité du vide, p. 232. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis
Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 230 – 232.
357
Sobre a morte de Étienne Pascal ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 123 – 125.
358
Blaise PASCAL, Lettre A M. Et Mme Perier, A Clemont: A l`occasion de la mort de M. Pascal le Père, p.
277. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 275 – 279.
98
porém, aflige a todo instante o ser humano, somente Deus poderia retirar a criatura desta
sentença irrevogável mediante a ressurreição em Cristo: eis o caráter teológico que daria
sentido à morte. Porém esta, sendo encarada numa perspectiva horizontalizante
encaminharia a um sentido absolutamente diverso daquele dito teológico, pois ela levaria
ao fracasso todos os esforços da medicina para salvar a única coisa que realmente poderia
permanecer vivo na concepção médica: o corpo. O homem, preso ao corpo somente, teria
como finalidade a morte. Nesta carta, Pascal começa a manifestar os efeitos literários da
sua primeira conversão.
Estando a família convertida, no dia 4 de janeiro de 1652, sua irmã Jacqueline entra
no convento de Port-Royal e Pascal vê-se inteiramente só, já que sua irmã Gilberte estava
casada. Inicia-se a polêmica sobre o dote de Jacqueline. Com a morte do pai, é necessário
dividir a herança da família. Jacqueline receberia desta herança, a partir de dados
levantados por Jean Mesnard, cerca de 40.000 libras.359 Mas como a jovem resolvera
consagrar-se a Deus, preferia usar tal valor de uma maneira totalmente diferente. O
mosteiro de Port-Royal não exigia o pagamento de nenhuma quantia de qualquer pessoa
que desejasse ser religiosa, mas aconselhava – e isto fazia parte da espiritualidade
jansenista – “[...] que um cristão deve tudo a Deus e nada ao mundo.”.360 Jacqueline ficaria
em meio a um dilema: dar a sua herança paterna aos irmãos – o que seria de grande valia
principalmente para Pascal em suas experiências e empreendimento científicos – ou doar o
dinheiro para o monastério. Em um primeiro momento, pensou em entregar todo dinheiro
ao mosteiro e, desta forma, não ceder às exigências mundanas do irmão e da irmã. Depois,
muda de opinião e resolve dar metade do dinheiro aos irmãos e a outra metade ao
monastério. O dinheiro destinado ao monastério foi deixado em um primeiro momento sob
os cuidados de Pascal, no entanto, Jacqueline não recebeu nenhuma garantia que ele seria
entregue a Port-Royal. Ela pede para que Pascal entregue o dinheiro ao monastério antes
de sua profissão e Pascal nega. Sentindo-se traída, chega a escrever, no ano de 1653, uma
carta à madre priora censurando-se ter sido precipitada empregado mal seu bens, pois
poderia tê-lo feito com mais caridade. Jacqueline cobra a consciência de Pascal
reivindicando o dinheiro do dote; Pascal fica em um dilema: seria necessário escolher entre
sua atividade científica mundana que o dinheiro lhe garantiria um respaldo considerável e a
possibilidade de dificultar a profissão religiosa de sua irmã. O problema é resolvido em 4
359
360
Cf. Lucien GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 246.
Ibid., p. 246.
99
de junho de 1653, pois o dinheiro é devolvido a Jacqueline que o encaminha para o fim que
desejara.361
Neste mesmo ano, Pascal escreve um texto chamado Sobre a conversão do
pecador, descrevendo o comportamento do homem quando permeado pela luz da graça.
“Esta nova luz lhe dá temor, e lhe traz uma perturbação que atravessa o repouso que ela
encontrava nas coisas que faziam suas delícias.”.362 A graça traria um comportamento
completamente novo; em um primeiro momento traria temor, pois trata-se de romper com
uma vida de pecado, depois, aquilo que era temor torna-se prazer, uma espécie satisfação
que elevaria até o “[...] trono de Deus”.363 Neste texto, é claro a luta de uma vontade
mundana atirada aos interesses temporais – prazeres, dinheiro, ciência – e os prazeres
divinos – oração, jejum, adoração.364 Pascal encontrar-se-ia entre Deus e o mundo. Mesmo
assim, continua suas pesquisas e, em 1654, escreve algumas cartas a Fermat, sendo que
uma delas sobre A regra dos partidos.365 Todavia, apesar da vida mundana e dos
descobrimentos matemáticos estaria aberto o caminho para uma vida religiosa mais
austera, caminho este que seria um momento importante na vida de Pascal, tendo como
ponto de partida à noite do 23 de novembro de 1654, uma segunda feira. O fato dura cerca
de duas horas, iniciando-se às dez e meia e terminando meia noite e meia. Era a noite do
memorial.
361
Cf. Lucien GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 246 – 248. Sobre a polêmica do dote ver Jacques
ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 125 – 134.
362
Blaise PASCAL, Sur la conversion du pécheur, p. 290. In: Idem, Ouvres complètes. edição de Louis
Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 290 – 291.
363
Ibid., p. 291.
364
Para saber mais sobre este texto ver Andrei Venturini MARTINS, Sobre a conversão do pecador:
comentário e tradução. Revista Último Andar. São Paulo: Educ, n. 12, p. 145 – 164, jun, 2005.
365
Cf. Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la pensée de Pascal. Paris: J. Vrin,
1991, p. 108 – 112. Pascal escreve esta carta a Fermat por causa dos problemas colocados pelo Chevalier de
Méré. Um jogo de azar é composto de vários lances, como por exemplo, o jogo de dados; cada jogador
aposta uma certa soma, sendo que a totalidade desta soma retorna ao jogador que ganhar o número de lances
fixados no início da partida. Exemplo: dois jogadores apostam 30 reais cada um, ao todo são 60 reais.
Também estabelecem que, o ganhador de três lances leva a quantia. Mas o problema gira em torno do
seguinte fato: como será dividido o dinheiro caso o jogo fosse interrompido antes de um dos jogadores
ganhar os três lances? Como calcular a probabilidade do risco de perda e de ganho de cada um dos jogadores
de maneira que cada um possa receber seu justo valor? O Sr. de Méré sustentava a impossibilidade do
cálculo, mas Pascal, ao contrário, inventa a règles des partis. O termo significa “ajuste de contas”. Efetuar o
parti é fazer a justa distribuição daquilo que se aposta no momento de interrupção de um jogo. No entanto, o
partido só poderia acontecer caso o jogo fosse interrompido, pois se isto não acontecesse, o jogo iria até seu
fim e o ganhador receberia aquilo que lhe é direito. O partido tem o objetivo afastar a probabilidade que o
acaso lança cada jogador, desta maneira, com a interrupção do jogo, cada um poderá receber aquilo que lhe é
direito através do cálculo.
100
Pascal chora muito, o texto apresenta termos de uma subjetividade intensa como:
“Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz.”.366 Mas o que mais nos interessa é que neste
pequeno texto ele parece mostrar uma nova perspectiva com relação à ciência e à fé. “Deus
de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios.”.367 Nesta frase
ciência e fé são vistas como algo distintos, de maneira que a fé não é fruto de raciocínios
lógicos, mas obra da graça de Deus no coração do homem, todavia, a razão não é contra a
fé. Não que esta idéia fosse uma nova descoberta de Pascal, pois ela já fora relatada em
outros escritos como o Prefácio sobre o vácuo368, no entanto, a carta traduz o início de
diversas tentativas de dedicar todo seu tempo a Deus. “Submissão total a Jesus Cristo e a
meu diretor.”.369 Pascal, mesmo enlanguescido pela ciência e preocupações mundanas,
agora se vê desafiado a renunciar tudo. Todavia, se sua irmã apresentava a intenção de
entrar no convento de Port-Royal e consagrar-se a Deus desde 1640 – ato que era impedido
pelo pai –, renunciando o mundo, em prol da caridade e da oração, assim como o corpo e,
se possível, a Igreja para ficar com a verdade, Pascal, ao contrário, ficaria na tensão entre a
Igreja e o mundo, o corpo e a alma, a razão e a fé, Deus e o Papa. Somente Deus poderia
suprir a tensão e Nele o piedoso Pascal encontrava o caminho para a fé que dissolvesse
todo antagonismo presente no convertido. Portanto, fazer-se-ia necessário colocar-se diante
de Deus como um mendigo, sempre a espera de sua graça. Mas qual é a diferença da
primeira conversão, em 1646, para a segunda? Podemos dizer que a tentativa de vivenciar
o evangelho na sua radicalidade é um objetivo buscado com muito mais intensidade depois
do episódio do memorial. “A faísca de 1646 transforma-se em fogo abrasador.”.370
Meses depois da noite de 23 de novembro, em janeiro 1654, Pascal dirige-se para
Port-Royal-des-Champs, onde encontravam-se os solitários, les Messieurs, para fazer um
retiro. Nesta ocasião ele lia a bíblia, o Agustinus, Santo Agostinho, Montaigne, Charron e
Grotius.371 No antigo convento da freiras lideradas por Saint-Cyran, os solitários viviam
uma vida monástica, assim, Pascal coloca-se sob a direção espiritual do Sr. Singlin e se
distraia em conversas com o Sr de Sacy. Uma delas é publicada em 1728, por Desmolets,
366
Blaise PASCAL, Le Memorial, p. 618. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil,
1963, p. 618.
367
Ibid., p. 618.
368
Ver Idem, Préface sur le traité du vide, p. 230 – 231.
369
Blaise PASCAL, Le Memorial, p. 618. Vale lembrar que é mais importante o diretor de consciência para o
jansenismo do que o confessor propriamente. Uma das primeiras providências de um convertido é conseguir
um diretor de consciência.
370
Alban KRAILSHEIMER, Pascal, p. 24.
371
Cf. Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 174.
101
com o título Entretien avec M. de Sacy
372
; este diálogo fora guardado por Fontaine,
secretário do Sr. de Sacy; este último era versado no estudo da patrística, de uma maneira
especial, Santo Agostinho. Ele proporcionava conversas com quem quisesse, falava de
pintura, medicina, agricultura e qualquer outra coisa que lhe fosse proposta. Pascal relata
ao Sr. de Sacy a sua leitura de Epíteto e Montaigne, sendo que o Sr. de Sacy dizia que
aquilo que Pascal reconhece nestes autores, ele já havia encontrado em Santo Agostinho.
“[...] Sr. de Sacy nisto chegando por um só golpe pela clara via do Cristianismo, e o Sr.
Pascal nisto chegando depois de muitos desvios e se agregando aos princípios destes
filósofos.”.373
Nesta obra podemos verificar que Pascal era um assíduo leitor de
Montaigne, este que, mais tarde, o influenciaria em suas reflexões sobre política.374
Sabemos também que boa parte do conhecimento que ele tem dos clássicos se deve à
leitura de Montaigne.
A estadia de Pascal em Port-Royal permite um tempo de reflexão acerca de sua
vida como cristão, ou seja, empenho nas orações, jejuns, e caridades, desta maneira, Pascal
e o Sr. Roannez em abril de 1655 juntam-se para recuperar as áreas pantanosas de Poitou,
usando de seus conhecimentos para favorecer a população pobre do local. Assim, verificase que Pascal não abandona suas atividades científicas, todavia, ele participa do trabalho
indiretamente, de longe. Sabemos porém, que diminui energicamente suas atividades de
física e matemática por um certo período, pois um outro desafio haveria de brilhar aos
olhos deste físico reconhecido e famoso pela construção da máquina de calcular, por suas
experiências sobre o vácuo e peso das massas do ar; agora Pascal tem um outro foco que
pretende emprenhar toda a sua força: trata-se de um pedido de socorro do teólogo da
Sorbonne, Arnauld, que em 1656 é ameaçado de censura, logo, recruta o amigo para que o
ajudasse. Pascal inicia uma série de escritos que somariam o total de dezoito, as chamadas
Les Provinciales.375 Nelas as principais teses jansenistas contra o laxismo da teologia
humanista jesuíta eram sustentadas, sem deixar de lado o rigor e o humor, compondo uma
controvérsia através de panfletos anônimos que seria conhecida por toda população de
Paris. É a tentativa de recorrer à opinião pública, visto que as controvérsias sobre a graça,
no momento, eram de cunho acadêmico. A última carta é publicada em março de 1657,
372
Blaise PASCAL, Entretien avec M. de Sacy. In: Idem, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma. Paris:
Seuil, 1963, p. 291 – 297.
373
Ibid., p. 297. Pascal ressalta a grandeza do homem através de Epíteto e a miséria do homem através de
Montaigne. O erro de cada um deles é destacar um destes pólos e não mencionar o outro, consequentemente,
o primeiro causa orgulho e o segundo, a preguiça. O ideal é ter os dois em mente, algo que o Sr. de Sacy
sustentava constar em um só pensador: Santo Agostinho.
374
Trabalharemos alguns aspectos da política em Pascal no capítulo III.
375
Blaise PASCAL, Les Provinciales, p. 371 – 469.
102
sendo que estas são colocadas no index. Depois disso, Pascal inicia alguns trabalhos sobre
milagres, em função do famoso milacle de la sainte Epine: trata-se de uma cura instantânea
após um espinho – que os jansenistas acreditavam ter feito parte da coroa de Cristo – ter
sido colocado em contato com Marguerite Périer, sobrinha de Pascal, que contava com
uma fístula no olho esquerdo desce os três anos e meio. Os jansenistas viram este milagre
como uma confirmação de Deus da veracidade das suas idéias. Deste momento em diante,
Pascal dedica boa parte de seu tempo à teologia. Sabemos que sua perspicácia científica e
espírito crítico marcaria sua vida como teólogo. Sua obra De l` Esprit Geométrique et de l`
Arte de Persuader, escrita em 1657, é um preâmbulo daquilo que seria seu método como
teólogo.
Neste texto, podemos perceber que se trata de uma obra de filosofia de linguagem
pragmática, na qual, a linguagem não toca o ser, sendo somente a definição arbitrária de
nome e coisa.
Sua utilidade e seu uso são de esclarecer e abreviar o discurso, exprimindo,
pelo único nome que se impõe, aquilo que só poderia se dizer em vários
termos; de maneira que, entretanto, o nome imposto continua privado de
todos os outros sentidos, se o tiver, para só ter aquele o qual destina-se
unicamente.376
A linguagem tem um objetivo que se revela no seu uso, “[...] pois as definições são
feitas para designar às coisas que se nomeia, e não para mostrar a natureza.”.377 Um destes
objetivos é de abreviar o discurso, como é o caso da palavra “par”, pois ela revela um
conjunto específico de números divisíveis por dois, privando de inserir neste conjunto
qualquer outro número que não se enquadre à definição prévia. Sendo as definições livres,
elas podem ser usadas para designar qualquer coisa, mas a definição tem que estar livre de
qualquer outro sentido que não seja aquele especificado. Assim, se definimos a palavra
tempo como “[...] medida do movimento [...]”378, teremos que destituir dele qualquer outra
definição e usá-la como foi definida. Entretanto, poderíamos dizer que se explicou o que é
o termo primitivo tempo? “Pois, não há nada mais fraco do que o discurso daqueles que
376
Blaise PASCAL, De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader, p. 349. In: Idem, Ouvres complètes.
Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 348 – 359.
377
Ibid., p.350.
378
Ibid., p.350.
103
querem definir aquelas palavras primitivas.”.379 Assim, é impossível especificar o
significado da palavra tempo per si, o que podemos fazer é defini-la e usá-la
pragmaticamente. Este método será de grande valia em seus Écrits sur la grace380,
produzida em 1656-1657.381 Mas será em 1657 que ele começará a trabalhar sua obra
chamada Apologia a Religião Cristã, uma obra sobre a condição humana e outros temas
que ganhariam fama como seus Pensamentos.
Pascal não conseguiria terminar esta obra, ela ficaria inacabada, no entanto, trata-se
de um compendio de suas idéias. O intuito principal da obra era mostrar para os libertinos
pagãos que suas asserções racionais sobre as coisas eram tão improváveis quanto a religião
que eles negavam. Pascal usava das próprias teorias pagãs para desdizê-las e reduzi-las à
pó.382 “Eis a guerra aberta entre os homens, na qual é necessário que cada um tome partido
e se coloque necessariamente ou nas fileiras do dogmatismo, ou nas do pirronismo. Porque
quem pensar em permanecer neutro será pirrônico por excelência.”.383 O homem não tem
saída, se ele toma partido em prol dos dogmáticos, somente faz a glória dos pirrónicos,
pois, o que seria dos pirrónicos caso não existissem os dogmáticos. No entanto, se alguém
se posicionasse como pirrônico, Pascal também inviabilizaria seu sucesso, pois, “[...]
nunca houve pirrônico efetivo perfeito.”.384 O homem não consegue duvidar de tudo, sendo
que mesmo ao duvidar de termos primitivos – tempo, espaço, número, movimento –
379
Blaise PASCAL, De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader, p. 350.
Idem, Écrits sur la grace. Paris: Aux Éditions du Seuil, 1963. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis
Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 310 – 348. Este texto será trabalhado no segundo capítulo, desta maneira, não
nos estenderemos em seu comentário neste momento. Tais escritos estão dividido em quatro partes na
Éditions du Seuil, com prefácio de Henri Gouhier, que usaremos para este trabalho.
381
Ver Jean MESNARD, Essai sur la signification des ‘Écrits sur la grace’ de Pascal. In. Blaise PASCAL
Ouvres complètes, OC JM, Paris: DDB, 1991, vol. III, p. 614. Mesnard sublinha a relação entre o De l` Esprit
Geométrique et de l` Arte de Persuader e os Écrits sur la grace.
382
“Mais do que isso, ele tinha seu método próprio e característico que consistia, na sua essência, em utilizar
escolas de pensamento não-cristãs contrárias, a fim de que uma desqualificasse a outra, enquanto, ao mesmo
tempo, enfatizava determinadas verdades aparentemente incompatíveis, para as quais, poderia ser
demonstrado, só o cristianismo faria justiça.”. (Bem ROGERS, Pascal: Elogio do Efêmero. trad. Luiz Felipe
Pondé. São Paulo: Editora Unesp, 2001, p. 21).
383
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 46. Ver também Renato LESSA, Veneno Pirrônico:
Ensaios sobre ceticismo. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1995, p. 26 – 28. O nome pirronismo é
dado em função do filósofo Pirro, que é considerado o fundador da tradição cética, segundo as narrativas de
Sexto Empírico, pois Pirro não escreveu nada, ou pelo menos, nenhum escrito dele chegou até nós
diretamente. Pirro teria sido um moralista que não se preocupava em configurar seus atos em sistemas; sua
filosofia assistemática é uma espécie de modo de vida. “Tais prescrições poderiam ser resumidas na defesa
de uma vida simples, na recusa, através da epoché – suspensão do juízo – , em conceder valor à discussões a
respeito do caráter real ou verdadeiro das coisas, e na busca da ataraxia – imperturbabilidade –, por ele
considerada como o maior dos bens.”. (Ibid., p. 27).
384
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 46.
380
104
sustentados pela natureza, ou melhor, pelo coração385, já faríamos uso destes termos.386 A
razão é um instrumento que Pascal usa dentro da apologia da maneira que lhe aprouver. “A
razão se oferece, mas é flexível a todos os sentidos.”.387 O homem não teria descanso em
qualquer posição que quisesse tomar.
Se ele se gaba, eu o rebaixo.
Se ele se rebaixa, eu o gabo.
E o contradigo sempre.
Até que ele compreenda.
Que é um monstro incompreensível.388
Pascal assumiria qualquer posição filosófica com o intuito de desqualificar um
sistema que sustentasse idéias que se estabelecessem como verdades irrefutáveis. A idéia
era combater ateus e libertinos em seu próprio terreno, para depois defender a religião
cristã como única saída do mar nebuloso que o homem encontra-se depois da queda. Por
este motivo, seria muita presunção de nossa parte sustentar uma hipótese que relata a
posição de Pascal como cético ou dogmático, mesmo sabendo que a neutralidade é um
posicionamento tipicamente cético. Desta maneira, nossa pesquisa prefere qualificar o
Pascal da apologia como um contraditor com uma meta: persuadir o libertino que a única
saída em um mundo despedaçado é a salvação do Deus cristão pela fé em Jesus Cristo. “É
bom ficar lasso e cansado pela inútil busca do verdadeiro bem, a fim de estender os braços
ao Libertador.”.389 Diante do caos mundano coroado pela morte, a saída de Pascal é
pragmática, entregar-se totalmente a Deus, no entanto, o resultado é inútil sabendo-se que a
fé dependerá totalmente de Deus, sendo assim, ela é um dom concedido por Ele para seus
eleitos. Pascal insere na economia da apologia a necessidade da predestinação da criatura
pelo Criador.
385
“O coração sente que existem três dimensões no espaço e que os números são infinitos, e a razão
demonstra depois que não existem dois números quadrados dos quais um seja o dobro do outro.”. (Blaise
PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282, p. 38). O coração é que sustenta os termos primitivos e a razão
usa deles, porém, na medida que a razão pergunta o que são estes princípios, ela já faz uso deles. A operação
da razão ocorre após a apreensão dos princípios pelo coração. Desta maneira, Pascal sustenta que a razão
percebe que qualquer número sendo elevado ao quadrado nunca será o dobro do outro. Por exemplo 2²=4,
3²=9, 4²=16. Portanto, o axioma está construído: nunca haverá um número ao quadrado que venha ser o
dobro de um outro número ao quadrado. Sobre a relação princípio e o coração discutiremos tal tema no
próximo capítulo.
386
“Detenho-me no único ponto forte dos dogmatistas, que consiste em que falando de boa fé e sinceramente,
não se pode duvidar dos princípios naturais.”. (Ibid., Laf. 131, Bru. 434, p. 45).
387
Ibid., Laf. 531, Bru. 85, p. 242.
388
Ibid., Laf. 130, Bru. 420, p. 44.
389
Ibid., Laf. 631, Bru. 422, p. 270.
105
Os Pensamentos compõe uma obra de difícil análise, com idéias em fragmentos
muitas vezes curtos e cheios de lacunas. Pascal escrevia seus fragmentos em pedaços de
papel e amarrava-os em maços; mais tarde foram publicados (1670) por alguns amigos
jansenistas que elaboraram uma primeira edição na esperança de dar alguma coerência à
obra. Muitos de seus fragmentos foram escritos no leito e assolado pelo cansaço de um
corpo doente, por este motivo, alguns foram ditados a um de seus empregados que
copiava-os.
Nos últimos quatro anos de vida as doenças haviam tomado conta de Pascal, este
porém, tinha uma dor de dente insuportável e, conseqüentemente, insônias, sendo que,
mesmo em meio a este estado, produziu, no ano de 1658, novos pensamentos sobre a
roleta. A fadiga causada por estes pensamentos e dedicação as suas descobertas
prejudicaram inteiramente sua saúde. Diante deste quadro, ele escreve em meio às dores
um texto chamado Prière pour demander à Dieu le bom usage des maladies390, em 1659.
Nele Pascal pareceria juntar-se ao sofrimento de Cristo. “Dai-me a graça, Senhor, de unir
vossas consolações a meus sofrimentos, afim de que eu sofra como Cristão. Eu não peço
ser isento das dores; pois esta é a recompensa dos santos [...]”.391 Pascal despoja-se do
mundo e sua relação com o mesmo é totalmente inócua. A preocupação com a
exterioridade está em segundo plano, agora, torna-se uma alma entregue a Deus. Franklin
Leopoldo e Silva comenta este texto: “O enfraquecimento do corpo é signo de anulação da
exterioridade.”.392 Pascal pareceria renunciar todos os ídolos da exterioridade e viver sob
estrema pobreza. Assim, vende suas carroças, cavalos, tapeçarias, seus belos móveis,
prataria e, algo que não se esperava de um intelectual de seu porte, sua biblioteca, com a
exceção da bíblia e de pouquíssimos livros, dando todo seu dinheiro que ainda restava aos
pobres.393
Surpreendentemente sua saúde melhore permitindo que Pascal vá até o Auvergne
(1660) para fazer um tratamento com águas recomendado pelos médicos para amenizar um
pouco suas dores de cabeças. Neste ano escreve Trois Discours sur la condition des
grands394, na qual ficaria expresso suas idéias políticas.395 Em outubro de 1661, sua irmã
390
Blaise PASCAL, Prière pour demander à Dieu le bom usage des maladies. In: Idem, Ouvres complètes.
Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 362 – 365.
391
Ibid., p. 364.
392
Franklin Leopoldo e SILVA, A história e o mal. Síntese Nova Fase: Belo Horizonte. v. 24, n. 79, 1997. p.
454 – 455.
393
BEURRIER, Mémoires, III, ch. 40, n. 7 (citado por Laf., III, 54) apud Philippe SELLIER, Pascal et Saint
Augustin, p. 13.
394
Blaise PASCAL, Trois Discours sur la condition des grands. In: Idem, Ouvres complètes. edição de Louis
Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 366 – 368.
106
Jacqueline morre em meio aos sofrimentos causados pelas perseguições às freiras de PortRoyal por não assinarem o formulário que nega as idéias de Jansenius. Pascal também
censura a assinatura do formulário.
Ora, depois que Roma falou e que se pensa que ele condenou a verdade
(Bula de Alexandre VII condenando Jansenius), e que eles escreveram, e
os livros que disseram o contrário estão censurados, é preciso clamar tanto
mais alto quanto mais injustamente se é censurado e quanto mais
violentamente se quer sufocar a palavra, até que venha um papa que ouça
as duas partes e que consulte a antiguidade para fazer justiça.
Assim os bons papas encontrarão ainda a Igreja em clamores.396
Mesmo sendo partidário à ortodoxia jansenista, Pascal no final da vida dá seu grito
de protesto contra a seguinte afirmação: Roma locuta, causa finita.397 Pascal estaria entre
Deus e o papa. Os jansenistas gostavam de ser reconhecidos como os defensores da
verdade, assim, defender a ortodoxia católica agostiniana era o mesmo que defender o
evangelho de Cristo. Pascal, sem medo de qualquer condenação grita cada vez mais alto as
idéias do Augustinus, desta maneira, os próximos “bons papas” ao recorrer à tradição
reconhecerão que Agostinho é critério de análise da doutrina da Igreja, verão quem está
com a verdade e farão justiça. Os clamores que Pascal defende são as vozes da Igreja à
espera da justiça Divina. Desta maneira, ele escreve um texto sobre a assinatura do
formulário e se retira das controvérsias. Mas logo o ano derradeiro de 1662 chegaria.
Neste ano, mesmo muito doente, Pascal realiza um outro projeto: seria um serviço
de coches – coches à 5 sous.398 Estas seriam as primeiras carruagens de Paris, de modo que
a primeira linha é inaugurada do dia 21 de março. Pascal fica rico, todavia, a renda deste
projeto foi destinada aos pobres de Blois. “E se os médicos dizem a verdade e Deus
permitir minha cura, estou resolvido a não me ocupar de outra coisa, durante o resto de
meus dias, que não seja o serviço dos pobres.”.399 Pascal muda-se para casa de sua irmã
Gilberte, pois tinha acolhido em sua casa uma família pobre que possuía um filho com
395
No terceiro capítulo deste trabalho analisaremos alguns aspectos da política de Pascal.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 916, Bru. 920, p. 373; grifo meu. (cf. ibid., p. 373 nota 8).
397
Roma falou e a questão acabou.
398
Para saber mais sobre a transportadora que Pascal era sócio ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o
gênio francês, p. 277 – 281.
399
Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 32.
396
107
varíola e poderia sofrer o contágio da doença.400 Na casa de Gilberte era constantemente
atacado por cólicas e dores de cabeça. “Não sentem o meu mal, enganam-se; minha dor de
cabeça é uma coisa fora do comum.”.401 Pede para receber a comunhão, mas como os
médicos diagnosticavam que o seu mal estado seria passageiro, negavam-lhe a concessão
da mesma. Sua dor de cabeça aumentou, os médicos receitaram caldos e vapores de água,
estes porém, foram inúteis.
À meia noite do dia 17 de agosto inicia-se uma violenta convulsão, ao terminar
parecia estar morto. Mas com o tempo recuperaria a lucidez e o padre, que fora chamado,
entra em seu quarto com a hóstia santa. Pascal ergue-se um pouco em sinal de respeito,
recebe a comunhão e a extrema unção em prantos, agradecendo ao padre e, logo depois,
exclama suas últimas palavras: “Que jamais Deus me abandone!”.402 Retornando às
convulsões, elas durariam até a sua morte vinte e quatro horas depois, no dia 19 de agosto
de 1662, uma da madrugada, data em que Pascal contava com 39 anos e dois meses.403
Morre aquele que seria um dos físicos e matemáticos mais importantes do século
XVII, assim como um dos maiores defensores da graça de Cristo no sentido agostiniano do
termo. No entanto, seus escritos e idéias despertam ainda hoje o interesse de estudantes do
mundo todo404, de maneira especial, seus fragmentos sobre a condição humana tão
abundantes nos Pensamentos.
O homem sem Deus é visto por Pascal, assim como para Santo Agostinho, como
um ser frágil, sozinho e perdido em meio às trevas. A vida deste teólogo do século XVII é
um grande grito de uma alma dividida entre Deus e o mundo e, mesmo quando escolhe
Deus, o desafio ainda não acaba, é necessário escolher entre Deus e o papa. Assim, todos
os movimentos deste homem clamavam por uma só finalidade, a eleição de um Deus
infinitamente misericordioso. Cabe agora, visto a importância da religião na vida de
Pascal, tentarmos entender a teologia pascaliana para sublinhar as possíveis conseqüências
do pecado em sua antropologia teológica.
400
Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 31.
Ibid., p. 32.
402
Ibid., p. 33.
403
Cf. Ibid., p. 33. Sobre a morte de Pascal ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 281 –
286.
404
“Não foi Pascal, cujo retrato supervisiona a escrivaninha onde trabalho, que escreveu certo dia: ‘Todos os
males dos homens vêm do fato de não saberem ficar sossegados no próprio quarto.’?”. (João PAULO II,
Cruzando o limiar da esperança, trad. Antônio Angonese e Aphraim Ferrera Alves. Rio de Janeiro:
Francisco Alvez, 1994, p. 10). Talvez Pascal ficaria contente em saber que o falecido Papa João Paulo II
tivesse seu retrato em sua escrivaninha de trabalho.
401
108
CAPÍTULO II
Pecado Adâmico e Contingência
Do impuro, o que pode sair de puro? E que verdade se pode tirar da
mentira?405
Os Écrits sur la grace406 é uma obra teológica de Pascal. Nela percebemos que o
teólogo francês foi um leitor atento às controvérsias sobre a graça que se encontravam na
miscelânea de textos que exsudam no século XVII. Os quatro escritos revelam seu caráter
metódico quando o leitor – impenetrável a uma leitura superficial – desta está atento ao
“método” geométrico descrito no De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader.
Metodologicamente, a tentativa de Pascal é mitigar o equívoco da linguagem marcada pelo
processo entrópico que a discussão tomava direção. Ele tenta traçar as fronteiras entre as
diversas escolas: Molinismo, Calvinistas, Luteranos e Jansenistas. Nela está presente uma
espécie de síntese do Augustinus de Jansenius, todavia, não se trata de plagiar o mesmo. A
disposição da matéria é diferente, ou seja, a aplicação de Pascal da teologia de Jansenius é
outra: se Jansenius queria afirmar uma leitura ortodoxa de Santo Agostinho, Pascal, além
disso, executa um trabalho de filosofia da linguagem sobre o debate vigente acerca da graça
para fazer brotar a unidade conceitual. Tal unidade visa vincular à doutrina jansenista o
agostinianismo e a teologia de Paulo sobre a graça. Ao romper com as fronteiras entre estes
três pólos, Pascal endireita o caminho para que as pessoas não errem ao tomar sua decisão.
Desprezar o jansenismo implica renegar o “Doutor da Graça” e o “grande Apóstolo”, ou seja,
negar cruz de Cristo. Desta maneira, nosso trabalho toma como objeto a segunda parte dos
Écrits sur la grace.
Nela Pascal trabalha a doutrina agostiniana da condição humana antes e depois do
pecado adâmico, ou seja, os dois estados de natureza e suas fronteiras limitadas por um
divisor de águas: o pecado original. O homem depois da queda tem um estado de natureza
distinto da criatura adâmica saída das mãos de Deus. Desta maneira, faremos do pecado
original tema deste capítulo. Nosso objetivo é verificar como Pascal concebe esta transposição
405
Eclo 34, 4, Português. In: Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulus, 1990. Ed. Pastoral.
O título desta obra inacabada não é de Pascal, mas foi dado pelos editores que encontraram os Écrits nas
gavetas do aposento do escritor francês. (cf. Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 33).
406
109
entre o antes e depois da queda, tentando verificar quais as conseqüências do pecado. Além
das possíveis conseqüências que encontraremos, objetivamos situar nossa pesquisa nas
mudanças epistemológicas que sofreram o aparelho cognitivo humano. Desta maneira,
indagamos: como o aparelho cognitivo humano apresenta-se depois da queda? Em suma, o
objetivo deste capítulo é descrever a doutrina do pecado original, verificando as
conseqüências em função da queda e, depois disso, deter-se nas possíveis implicações
epistemológicas da queda.
Traçado este mapa pelo qual previamente almejamos percorrer, uma hipótese norteará
nosso capítulo: a contingência epistemológica em Pascal é uma conseqüência da queda
adâmica. Sustentamos que a contingência, conceito que trabalharemos mais abaixo, é um
desdobramento da soberba adâmica, ou seja, do pecado original. Para tal análise contaremos
com três autores que serão nossos referenciais teóricos. O primeiro é Luiz Felipe Pondé, autor
da obra Conhecimento na desgraça. Nela o autor reconhece os danos causados pelo pecado
original e tenta sublinhar as possíveis conseqüências na física pascaliana: o autor detecta que
Pascal produz um conhecimento local criando critérios para a construção do conhecimento. O
segundo é Jean Mesnard, com seu clássico artigo Essai sur la signification des Écrits no qual
comenta a obscuridade cognitiva que permearia o homem depois da queda, trazendo dados
significativos para nossa pesquisa. Finalmente, a comentadora Catherine Chevalley, autora de
Pascal, contingence et probabilités, obra que analisa o conceito de contingência à luz da
física de Pascal, afirmando que a contingência manifesta-se em toda parte, todavia, restringe
sua pesquisa à física. Depois de termos mapeado os objetivos, traçado a hipótese e convocado
os comentadores, nos preparamos para assimilar o percurso de um pensador marcado pelo
sofrimento corpóreo, pelo choque de sua cabeça no muro da razão e no sentimento de
fragilidade frente ao mistério. Este porém, ao mesmo tempo que revela a fé outorgada por
Deus como dádiva ao homem, manifesta também a contingência marcada pela incompreensão
humana dos mistérios que acompanham a doutrina do pecado original. Todavia, veremos que
são os mistérios que explicam o estado do homem depois da queda. Desta maneira, Pascal
revela-se um pensador do homem, da natureza e de Deus, através do mistério. Este, pela sua
incompreensão, manifesta a contingência, logo, a doutrina do pecado original com seus
mistérios e a contingência apresentam-se nas pontas de um mesmo novelo de lã. Cabe ao
nosso capítulo desfazer os nós e aplainar o caminho.
110
1 – A relação entre o pecado e a contingência.
Na esteira de Santo Agostinho, Pascal distingue dois estados de natureza: antes e
depois do pecado.407 No entanto, fazer-se-ia necessário ressaltar – em função das possíveis
conseqüências epistemológicas que estes pormenores poderiam trazer – que para o teólogo
francês não há duas naturezas, uma antes outra depois do pecado, mesmo que muitas vezes ele
se refira assim em outros textos408. Para Pascal o homem adâmico e pós-adâmico possuem
uma mesma natureza quantitativa409, mas divergem qualitativamente410, entretanto, a
divergência não é total, algo que explicaremos abaixo. Mas no que implica ser partidário da
idéia de duas naturezas – uma adâmica e outra pós-adâmica – que compõem o homem, ou
seja, defender o “aumento quantitativo”, e quais as conseqüências ao defender uma mudança
total “qualitativamente”, ou seja, uma diferença radical entre o estado adâmico e o estado pós
adâmico? Quais as implicações epistemológicas disso? Pascal considera um erro sustentar
uma diferença quantitativa da natureza, assim como radicalizar a diferença entre o estado
antes e depois da queda, ou seja, radicalizar a diferença qualitativa. Vejamos as conseqüências
da posição Luterana e de Pascal.
1.1 – Posição de Lutero e Blaise Pascal quanto ao estado de natureza do homem.
A diferença quantitativa – duas naturezas – e a radicalização da mudança qualitativa –
uma natureza totalmente diferente depois da queda – são sustentadas por Lutero. Este, na
ótica de Pascal, ou seja, de seu agostinianismo jansenista, erra ao dizer que com o pecado o
407
“Santo Agostinho distingue os dois estados dos homens antes e depois do pecado e tem dois sentimentos
convenientes a estes dois estados.”. (Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317).
408
“Segui os vossos movimentos. Observai a vós mesmos e vede se não encontrareis aí os caracteres vivos
dessas duas naturezas.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 149, Bru. 430, p. 64). Apesar de Pascal usar do conceito “duas
naturezas” neste fragmento, isto não significa que ele defenda a idéia de que há realmente duas naturezas no
sentido literal do termo. A idéia de duas naturezas é defendida por Lutero, a qual Pascal repudia. Para melhor
estabilizar a linguagem ficaremos com os conceitos usados por Pascal no início do segundo Écrits sur la grace:
“dois estados de natureza”. Assim, o leitor poderá compreender aquilo que chamaremos de mudança qualitativa
da natureza em Pascal, na qual uma natureza santa é corrompida pelo pecado.
409
O conceito “quantitativo” será usado para nos referirmos à quantidade de naturezas que envolvem a teologia
aderida por Pascal e pelos Luteranos. Pascal sustenta a idéia de uma única natureza, antes e depois do pecado,
uma em estado de santidade e depois em estado de corrupção. Já os Luteranos afirmam a existência de duas
naturezas, uma antes e outra depois do pecado.
410
O conceito “qualitativo” será usado para nos referirmos ao estado do homem antes e depois do pecado. Para
Pascal o homem depois do pecado conserva resquícios do período adâmico, já para os Luteranos a primeira
natureza é absolutamente opaca ao homem decaído.
111
homem perde totalmente a primeira natureza e que agora possui uma natureza totalmente411
concupiscente e diferente daquela de Adão – diferença qualitativa radical entre o Adão saído
das mãos de Deus e o Adão pecador. “Com efeito, para os teólogos reformados em geral, e
pelos luteranos em particular, a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado
original [...].”.412 É por este motivo que a graça de Jesus Cristo não regenera a natureza, pois
esta, na visão Luterana, está em um estado tão lastimável que impossibilitaria a ação da graça
eficacíssima no processo regenerativo. Portanto, a graça para Lutero destrói a natureza413 e
concede aos escolhidos uma nova. Esta é a diferença quantitativa414 existente na teologia
Luterana. Assim como o pecado destrói a natureza santa criada por Deus, a graça destrói a
natureza pecaminosa e concede uma nova natureza. Pascal e Luteranos estão de acordo que
Deus é criador de todas as coisas, conseqüentemente, criador de uma natureza boa e sem
mácula. A natureza foi maculada pelo pecado para os Luteranos, assim como para Pascal,
todavia, as conseqüências do pecado adâmico são desastrosas para os Luteranos: não resta
nenhum vestígio do seu estado adâmico. Para os Luteranos, a diferença qualitativa entre o
homem antes e depois da queda é tão radical que a ação da graça precisa destruir a natureza
pecaminosa, pois a graça não consegue fazer com que a criatura rompa com o pecado,
fazendo dos mandamentos preceitos impossíveis415 de ser cumpridos. O homem fica preso à
gravidade do pecado. A graça, para os Luteranos, além de não devolver o livre arbítrio, pois o
homem ainda encontra-se preso a uma natureza corrupta digna de destruição, somente
concede aos escolhidos uma natureza nova, esta porém, concedida somente depois da morte,
pela qual o homem liberta-se do corpo. Pascal concorda que a morte tem um valor
411
Para Pascal, o homem depois do pecado possui marcas de sua natureza antes do pecado de Adão. “Eis aí o
estado em que os homens estão hoje. Resta-lhes um vago instinto impotente da felicidade da sua primeira
natureza, e estão mergulhados na miséria de sua cegueira e de sua concupiscência que se tornou a sua segunda
natureza.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 148, Bru. 430, p. 63). Este “vago instinto” é resquício do
primeiro “estado de natureza” e, desta forma, anula qualquer possibilidade de que para Pascal exista duas
naturezas, como muitas vezes ele se refere. Não há como sustentar a idéia de duas naturezas caso a segunda traz
consigo resquícios da primeira. O homem, para Pascal, não perde a natureza com o pecado, mas mancha a
natureza sem mácula que possuía antes da queda adâmica. A felicidade que está ancorada como um vago instinto
depois do pecado é o suficiente para impulsionar o homem na busca do primeiro estado de natureza. Todavia, a
busca é sempre inócua, pois a distância é grande e o homem, deixado à mercê de suas próprias forças é cego, não
totalmente, como pensa Lutero, mas o suficiente para procurar um bem que não vai encontrar.
412
Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie , théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 191.
413
“De fato, toda teologia reformada, e particularmente luterana, é pensada em termos de oposição: a natureza se
opõe à graça, a inteligência à fé, o homem a Deus.”. (Ibid., p. 195). A natureza corrompida não tem nenhuma
relação com a graça, desta maneira, cabe a graça destruir a natureza.
414
“Tudo aquilo que está em nossa vontade é mal, tudo aquilo que está em nossa inteligência é erro. Isto é
porque em consideração às coisas divinas, o homem só tem pura trevas, erro, malícia, perversidade da vontade e
da inteligência.”. (Luther, Commentaire de l`épître aos Galates, Genève: Labor et Fides, 1958, t. XV, p. 186
apud Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 192). A
pureza da concupiscência é o resquício de um pecado que dilacera toda Imago Dei presente no homem.
415
Ver Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 335 – 348.
112
restaurador, mas discorda naquilo que diz respeito à concessão da parte de Deus de uma nova
natureza, pois isto implica em diminuir o poder da graça, na medida em que ela não pode
restituir a natureza nem devolver o livre arbítrio. Pascal discorda dos Luteranos, para ele o
homem terá sua natureza restituída, assim como seu livre arbítrio416, na medida em que Deus
concede a graça.
Pascal, criticando os Luteranos, insiste que se o homem não tem livre arbítrio não há
porque ter preceitos, ou mandamentos, pois, se a natureza é corrupta e nunca se regenera pela
graça, o homem está determinado a fazer o mal e é coagido a fazê-lo, desta maneira, o teólogo
jansenista em questão acusa os Luteranos de maniqueísmo.417 Ao contrário dos Luteranos,
Pascal defende a idéia de uma graça que cura e regenera uma natureza corrompida pelo
pecado, a graça eficaz funciona como um remédio, desta maneira, não há destruição da
natureza, mas cura da mesma. Portanto, em Pascal não há mudança quantitativa. Outro ponto
que exsuda como um problema na visão de Pascal da doutrina Luterana como conseqüência
do fato de que a natureza é destruída com a graça, é que o homem não seria capax Dei418
(capaz de Deus), eliminando a cooperação – no sentido agostiniano419 –, diminuindo a
eficácia da graça e, conseqüentemente, anulando a cruz de Cristo. Porque Deus haveria de
mandar seu filho muito amado para salvar o homem das garras do pecado através da graça se
a natureza poluída não se regenera? Qual a função da graça se o homem é coagido a fazer o
mal? A conseqüência
416
Pascal não faz muita diferença entre os conceitos de liberdade e livre arbítrio, algo presente em Santo
Agostinho. Para Pascal, o livre arbítrio corrompido garante à possibilidade de escolher o mal que queremos
fazer, já o livre arbítrio concedido pela graça faz com que o convertido cumpra os preceitos designados nas
Escrituras, pois a graça regenera a vontade.
417
“Percebe-se suficientemente por tantas provas que os Maniqueístas e os Luteranos estavam dentro de um erro
parecido naquilo que diz respeito à possibilidade dos preceitos; e que ainda que eles difiram, os Maniqueus
atribuíam uma natureza má e incorrigível, os Luteranos, imputam a corrupção invencível da natureza, eles estão
de acordo, entretanto, dentro das conseqüências, ou seja, que o livre arbítrio não está no homem de maneira
nenhuma; que os homens são constrangidos a pecar por uma necessidade inevitável; e que os preceitos são
absolutamente impossíveis.”. (Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 340). Pascal compara os Maniqueístas aos
Luteranos com o objetivo de associar a heresia maniqueísta à posição Luterana. Os maniqueístas com uma
natureza “má e incorrigível” tem o mal como absoluto e, desta forma, “incorrigível” na medida em que o mal
presente é em si. Já os Luteranos a corrupção invencível diz respeito à natureza, na qual não se regenera com a
graça, mas é destruída, algo que não acontece para os maniqueus. Estes dois pontos fazem parte das
divergências, os maniqueus abolutizando o mal e os Luteranos abolutizando a corrupção. Mas é naquilo que
convergem que Pascal tira conclusões consideráveis para seu objetivo: não há livre arbítrio, desta maneira, os
homens são constrangidos a pecar e, conseqüentemente, os preceitos são impossíveis. Pascal constrói um
silogismo com o intuito de depreciar a doutrina Luterana. “Das duas mais célebres heresias, o maniqueísmo e o
pelagianismo, estas mesmas às quais combateu Santo Agostinho, Pascal vê sempre, em sua época, as vivas
resurgências e estragos. A existência das heresias, a acusação de heresia, são um dos traços dominantes do
espaço espiritual do século XVII.”. (Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal. Paris: Clerf, 1996,
p. 186 – 187).
418
Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 444, Bru. 557, p. 179 e Hélène MICHON, L´ordre du coeur:
philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 271 – 275.
419
Ver p. 66 – 69 do primeiro capítulo deste trabalho. Nela tratamos sobre a cooperação em Santo Agostinho.
113
deste raciocínio é coroada com a afirmação de Pascal que relaciona a época de Santo
Agostinho e as controvérsias sobre a graça que borbulhavam na França como um caldeirão
fervilhante: “[...] os Maniqueus eram os Luteranos de seu tempo, como os Luteranos são os
Maniqueus do nosso.”.420
1.2 – Pontuações epistemológicas.
Não temos o objetivo em nossa pesquisa de nos ater às diferenças quantitativas e
qualitativas entre Pascal e os Luteranos, mas somente destacá-las para verificar algumas das
conseqüências epistemológicas destas diferenças, sendo este último o objetivo principal deste
ítem. A permanência de uma mesma natureza em Pascal nos ajuda a perceber que o estado do
homem depois do pecado ainda preserva “vestígios” de um primeiro estado de natureza que
estão cravados no “fundo da alma”421: um “[...] instinto secreto que restou da grandeza de
nossa natureza primeira [...]”.422 Mas instinto vago do quê? Da verdade e da felicidade: este
instinto quem inspira o homem a buscar tanto a verdade quanto a felicidade423, conceitos que
para Pascal possuem sentido na natureza – relativos e sujeitos a mutações constantes –, mas
sempre relacionados a uma perspectiva sobrenatural.
Para sublinhar as conseqüências
epistemológicas que queremos precisaremos entender a relação entre o instinto e o coração
em Pascal.
Concordamos com Mesnard quanto a sua afirmação que o “ [...] melhor sinônimo da
palavra ‘coração’ é sem dúvida a palavra instinto”.424 Assim, o coração é sensor que apreende
e conserva os vestígios do primeiro estado de natureza, ou seja, tanto àquilo que concebemos
como verdade quanto àquilo que concebemos como felicidade. A visão destes vestígios é
sempre confusa, mas o suficiente para fazer o homem indagar-se sobre eles, buscá-los, ou, até
mesmo, viver como se já tivesse encontrado, mas nunca totalmente, pois, caso encontre um
destes vestígios sofrerá para conservá-los. Para Pascal todos os homens possuem uma opinião
420
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 340.
Cf. Idem, Pensamentos, Laf. 136, Bru. 139, p. 53.
422
Ibid., Laf. 136, Bru. 139, p. 53.
423
“Anelamos pela verdade e só encontramos em nós incerteza. Buscamos a felicidade e só encontramos miséria
e morte. Somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade e somos incapazes de certeza e de felicidade.
Esse desejo nos é deixado tanto para nos punir como para fazer-nos sentir de onde caímos.”. (Ibid., Laf. 401,
Bru. 437, p. 154). A verdade em Pascal faz parte de um desejo que se manifesta pela busca. Todavia, o homem é
incapaz de encontrá-la. A busca da verdade torna-se a via sacra de um homem caído que sente a verdade mas não
tem certeza de estar com ela ou não estar, desta maneira, o que permeia o homem é a incerteza, característica
fundamental da criatura caída. A busca da verdade é o resultado da marca que ainda restou de um estado de
natureza que no momento presente – decaído – é desconhecido.
424
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 94.
421
114
sobre a felicidade, afirmação feita no fragmento 136 (Bru. 139), ou buscam-na, ou
estremecem de medo de poder perdê-la, na medida em que acreditam possuí-la. No fragmento
401 (Bru. 437) também será afirmado um desejo humano em buscar a verdade, tal desejo nos
pune pelo labor da busca e nos faz perceber de onde caímos. Tanto a felicidade quanto a
verdade são desejos misteriosos que o homem concebe em seu coração como vestígios vagos
de uma natureza santa de outrora, sustentará Pascal nos Pensamentos. Mas será também no
coração onde se encontram os chamados primeiros princípios usados pela razão para conduzir
o raciocínio. Vejamos:
Nós sabemos que não estamos sonhando. Por maior que seja a impotência em
que nos encontramos de prová-lo pela razão, essa impotência outra coisa não
concluiu senão a fraqueza de nossa razão, mas não a incerteza de todos os
nossos conhecimentos, como pretendem eles. Pois os conhecimentos dos
primeiros princípios: espaço, tempo, movimento, números, são tão firmes
quanto qualquer daqueles que os nossos raciocínios nos dão e é sobre estes
conhecimentos do coração e do instinto que é necessário que a razão se apóie
e fundamente todo o seu discurso.425
Como o bispo de Hipona, Pascal muitas vezes não diferencia alma e coração.426
“Como o coração agostiniano, o coração pascaliano representa muitas vezes o dinamismo da
alma.”427, dirá Philippe Sellier. Desta maneira, podemos dizer, com Sellier, que o coração é
um dinamismo intrínseco no fundo da alma por fazer parte do mais íntimo do ser humano.
Todavia, encontramos aqui uma diferença capital entre a concepção agostiniana e pascaliana
do conceito coração: se para o Bispo de Hipona o coração envolve as faculdades da razão,
Pascal, diferentemente, separa coração e razão428: “Mas Pascal nos contraria imediatamente
recusando esta bela simplicidade, pois ele não cessa [...] de opor coração à espírito, à razão,
ao raciocínio [...]”.429 Isso não significa que o coração é irracional, mas ele é um modo de
conhecimento diferente da razão. O coração capta os termos primitivos e sustenta os
princípios que a razão irá usar para produzir seus raciocínios e conclusões. Neste momento
teremos quer traçar as diferenças de uso que Pascal faz entre os conceitos termos primitivos,
425
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282, p. 38. Nesta citação há um erro presente em algumas
edições que trazem problemas graves na interpretação do fragmento. Falaremos deste erro abaixo.
426
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 126.
427
Ibid., p. 127.
428
Ver Ibid., p. 135 – 136.
429
Ibid., p. 128.
115
primeiros princípios, luz natural, coração e razão, fazendo menção ao contexto que o
conceitos são usados por Pascal.
Ele usa termo primitivo no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader430 e
primeiros princípios no fragmento 110 dos Pensamentos, como é mostrado na citação que
fizemos acima. Isto não implica dizer que Pascal faz referência aos dois conceitos como se
fossem a mesma coisa. Mas qual é a diferença entre um e outro nos diferentes contextos? Na
tentativa de esclarecer esta diferença, iniciaremos pela análise dos conceitos termos
primitivos, luz natural, coração e razão, sublinhando as mudanças ocorridas entre o contexto
que Pascal escreve as duas obras citadas acima, depois mostraremos a diferença entre termos
primitivos e primeiros princípios.
Na obra De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader os termos primitivos são
nomes que não se pode definir sem obscurecê-los, são palavras conhecidas pela conformidade
das pessoas, por exemplo: tempo, espaço, número e movimento. Estes são sentidos pela luz
natural e sustentam todos os discursos.431 Desta maneira, os termos primitivos são nomes ou
definições. Portando, eles são fundamentais ou fundantes de todo e qualquer raciocínio, desde
do discurso do poeta até o discurso do geômetra. Pascal elogia a geometria como possuidora
de verdades inferiores – ela não prova os termos, mas as verdades inferiores são os próprios
termos primitivos –, mas é eficaz naquilo que diz respeito ao uso dos termos primitivos, ou
seja, depois de definirmos os termos primitivos “a verdade” de um discurso será corroborada
no uso dos termos sem cometer equívocos, ou seja, de modo que as conseqüências estejam de
acordo com as definições não provadas, mas concebidas pela luz natural: “Não define tudo e
não prova tudo, e é nisso que ela (a geometria) fracassa; mas só supõe coisas claras e certas
pela luz natural e, por ser perfeitamente verdadeira, a natureza a sustenta em função do defeito
do discurso.”.432 A natureza sustenta estes termos primitivos e os homens usam deles, pois, na
medida que são submetidos ao discurso, ou na tentativa de explicá-los, causamos mais
confusão do que esclarecimento, nisto Pascal concebe como o fracasso. Entretanto, os termos
primitivos são tão claros pela “luz natural” que a natureza os sustenta.433 É desta forma que
430
“É isto que a geometria ensina perfeitamente. Ela não define nenhuma destas coisas: espaço, tempo,
movimento, número, igualdade [...].”. (Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p.
350).
431
“Não se incorrerá jamais nisto ao seguir a ordem da geometria. Esta judiciosa ciência está bem distante de
definir estas palavras primitivas: espaço, tempo, movimento, igualdade, aumento, diminuição, todo, e as outras
que o mundo entende por si mesmo. Mas, à exceção destes termos, todo o restante dos termos que ela emprega é
esclarecido e definido de tal forma que não necessitamos de dicionário para entender nenhum deles; de maneira
que, em uma palavra, todos estes termos são perfeitamente inteligíveis ou pela luz natural ou pelas definições
que ela (a geometria) fornece.”. (Ibid., p. 351).
432
Ibid., p. 350.
433
Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 129.
116
Pascal usa dos conceitos termos primitivos e luz natural. Agora, vejamos as diferenças entre o
conceitos luz natura e coração nos seus respectivos contextos.
Pascal usa luz natural no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, como
vimos, para referir-se àquilo que chamará de coração nos Pensamentos. Assim afirma
Philippe Sellier: “Mas muito rapidamente Pascal a mis au point uma antropologia mais
precisa e designa a faculdade que se atribui estes conhecimentos imediatos, o coração.”.434
Em função de uma antropologia mais elaborada nos Pensamentos, coração é o conceito
correto que substitui aquilo que Pascal chama luz natural no De l´Esprit Géométrique et De
l`Art de Persuader. Nos Pensamentos o coração sustenta de maneira imediata os termos
primitivos assim como a luz natural no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader.
Diante disso, dirá Mesnard: “A ‘luz natural’, o ‘coração’, fornecem, não idéias inatas, mas
simples produtos de uma experiência humana fundamental.”.435 Mesnard relaciona luz natural
e coração para mostrar que luz natural no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader
tem o mesmo papel que o coração nos Pensamentos. Todavia, também ressalta que não há um
inatismo idealista em Pascal: os termos primitivos são formados na mente humana a partir da
experiência do homem com o mundo. Os termos primitivos, sustentados pelo coração – ou
luzes naturais na obra De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader – através do
sentimento – ato inteligente – não é conteúdo ontológico inato, mas resultado da experiência
humana, pois os homens “[...] exprimem ambos a visão desse mesmo objeto pela mesma
palavra, dizendo um e outro que ele se moveu [...]”436, entretanto, Pascal quer ressaltar que
pelo fato de haver duas pessoas que atribuem um mesmo nome a um mesmo acontecimento,
por exemplo, o movimento, isto não significa que eles estejam em conformidade de idéia. A
tentativa de explicar o que é o movimento implicaria em atribuir outros nomes ainda mais
obscuros. “É pois uma coisa estranha que não possamos definir essas coisas sem obscurecer.
Falamos dela toda hora.”.437 Os termos primitivos aceitos pela razão não são provados por
ela, mas são usados para constituir qualquer discurso. Depois de verificada a diferença entre
os conceitos luz natura e coração nos seus distintos contextos, cabe agora ressaltarmos como
Pascal usará o conceito luz natural nos Pensamentos.
Quando Pascal usa do conceito luz natural nos Pensamentos refere-se à razão. No
fragmento 418 sobre a aposta438, ele faz uso do conceito luz natural para começar argumentar
434
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 129; grifo meu.
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 103.
436
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 109, Bru. 392, p. 37.
437
Ibid., Laf. 109, Bru. 392, p. 37.
438
Cf. Ibid., Laf. 418, Bru. 233, p. 159.
435
117
usando somente de alegações racionais. “Falemos agora segundo as luzes naturais.”.439 A
percepção desta mudança revela que em Pascal há uma diferença clara entre o conhecimento
racional e o conhecimento adquirido pelo sentimento e sustentado pelo coração: o
conhecimento adquirido pelo coração não é provado pela razão e esta depende dele para
sustentar todo o seu discurso. Tais discursos têm como base os termos primitivos ou nomes e,
conseqüentemente, a razão forma os primeiros princípios. Portanto, cabe agora estabilizarmos
o conceito primeiros princípios e traçarmos as diferenças deste e termos primitivos.
Vejamos a visão de Mesnard quanto ao uso que Pascal faz dos chamados primeiros
princípios: “No sentido mais preciso, é sinônimo de axiomas. Designa proposições evidentes
e indemonstráveis que formam o ponto de partida do raciocínio, e que são dados pela
natureza. [...]”440, e acrescenta, “Não são propriamente os termos que são princípios, mas a
afirmação, sob forma de axiomas, que uma realidade lhe corresponde.”.441 Ele ressalta que os
princípios são axiomas, por exemplo: existe o tempo; a reta é a menor distância entre dois
pontos; o todo é maior do que as partes. A estes nomes, uma realidade lhes corresponde. Os
primeiros princípios são proposições indemonstráveis e, assim como termos primitivos, é o
coração que sustenta os princípios.442 Será nos Pensamentos que Pascal usará primeiros
princípios com mais freqüência.443 No fragmento 110 da edição Lafuma há um erro detectado
por Mesnard. Ele acusa algumas edições444 de falsear gravemente o sentido de uma passagem
que se refere aos princípios.445 A passagem, citada acima, diz que os primeiros princípios são:
“[...] espaço, tempo, movimento, números [...]”.446 A omissão de comme qu’il y a antes da
palavra espaço traí o leitor, pois, o sentido da frase seria outro: há o espaço, há o tempo, há o
número, há o movimento. Há dois nomes que se relacionam: o ser e o espaço. A relação de
dois nomes produz um axioma, de forma que os primeiros princípios tem o mesmo
significado que axiomas e não são termos primitivos como a omissão em algumas edições
poderiam nos levar a pensar. Desta maneira, traçamos as diferenças entre os termos primitivos
– nomes ou definições – e os primeiros princípios – axiomas.
439
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 418, Bru. 233, p. 158 – 163.
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 93.
441
Ibid., p. 93.
442
Cf. Ibid., p. 94.
443
Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282 e Laf. 131, Bru. 434.
444
A edição Lafuma. A citação que fizemos acima do fragmento 110, no qual o erro é apontado, é descrita pelo
nosso trabalho com o erro que Mesnard detecta para mostrarmos ao leitor o problema grave que ela propicia na
interpretação do fragmento.
445
Cf. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 93 – 94; ver nota p. 94.
446
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282, p. 38.
440
118
Diante disso, percebermos que Pascal ao afirmar a permanência de vestígios de um
primeiro estado de natureza que estão cravados no fundo da alma e sendo estes vestígios um
instinto – conceito que afirmamos, na esteira de Mesnard, que seria o melhor sinônimo da
palavra coração –, concluímos que tanto a verdade quanto a felicidade também são termos
primitivos indemonstráveis que servem como base para a construção de axiomas também
indemonstráveis, como por exemplo: duas retas paralelas infinitamente nunca vão se
encontrar. Eis um axioma indemonstrável. Desta forma, verdade e felicidade manifestam-se
como um vácuo na teologia pascaliana, visto que há diferentes concepções de verdade, assim
como de felicidade. Tal teologia concebe o homem como alguém colado à gravidade da
queda, sendo que somente a graça pode preencher este vazio no fundo da alma, ou o vazio do
coração humano, órgão que manifesta o dinamismo da alma em constante movimento em
busca de Deus. O coração torna-se para Pascal o órgão máximo no qual Deus toca, ou seja, o
coração é destacado em seu sentido religioso, como dirá Sellier: “Também no domínio do
conhecimento religioso, as certezas do coração provém de uma correspondência profunda
entre a realidade íntima do homem e a revelação que lhe propõe seu Criador.”.447 O coração é
a pedra angular onde Deus manifesta seu amor pelo homem e lugar onde é injetado o sangue
do cordeiro derramado na Cruz, ou seja, a graça. Sem a graça a felicidade e a verdade é um
grande vazio, elas são sentidas como uma falta, um buraco. Para Pascal, a busca da verdade
feita horizontalmente é o motor da curiosidade dos cientistas, por este motivo, tal percurso faz
do pesquisador um ser errante em relação a verdade: a busca contínua é garantia da
permanência de resquícios vagos de um primeiro estado de natureza. Portanto, depois de
traçarmos as diferenças entre os conceitos termos primitivos, primeiros princípios, luz
natural, coração e razão; e percebermos que a verdade e a felicidade, termos primitivos
sustentados pelo coração, são buscadas pelo homem que sem a graça encontra o vazio;
poderemos tirar as conseqüências epistemológicas entre Pascal e os Luteranos que
objetivamos inicialmente.
Pascal dirá para os Luteranos que tornar-se-ia impossível a busca da verdade e da
felicidade, visto que o pecado destrói totalmente a natureza santa de Adão – diferença
qualitativa radical –, assim como a graça dilacera a natureza maculada e lhe concede uma
nova natureza – diferença quantitativa. Verdade e felicidade tornam-se conceitos
absolutamente opacos para os Luteranos, pois, nem a graça pode iluminá-los no coração
corrompido do homem. Todavia, para Pascal, o coração do homem deseja a verdade e isto
447
Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 133.
119
fá-lo buscá-la. Os termos primitivos – tempo, espaço, número e movimento – são, para Pascal,
prerrogativas básicas de qualquer raciocínio, todavia, são sustentados pelo coração, órgão
sensor de Deus e que pode ser permeado pela graça. Desta maneira, Pascal faz todo
conhecimento dependente do coração ao traçar as diferenças entre a teologia jansenista e
Luterana, tirando conclusões epistemológicas que oblitera a teologia Luterana. Pascal
perguntaria a Lutero: quem sustenta os termos primitivos e porque o homem busca a verdade
se a natureza sofre uma corrupção tal que não resta nenhum resquício do estado adâmico? Se
para Lutero a natureza está totalmente corrompida como o homem poderá buscar a verdade e
a felicidade? Se a graça não pode restaurar a natureza radicalmente contaminada, então a
graça não é eficaz, afirmaria Pascal, tirando estas conseqüências das primícias dos Luteranos.
Portanto, se para Lutero a diferença entre o homem antes e depois do pecado é
quantitativa – duas naturezas – e, conseqüentemente, qualitativa, na medida em que o homem
depois da queda não possui nenhum traço do estado adâmico, ressaltamos que em Pascal a
mudança entre o homem antes e depois do pecado não é quantitativa, mas qualitativa, todavia,
diferente dos Luteranos na medida em que, para Pascal, restam resquícios vagos de um
primeiro estado de natureza, algo inexistente para os Luteranos Este é um fator
epistemológico que impulsiona o homem a buscar a verdade e só encontrar vácuo quando sua
busca não é impulsionada pela graça. Há mudança qualitativa para Pascal, mas não total ou
radical como pensam os Luteranos. Dizer que o homem é totalmente corrupto é apagar a
imagem de Deus que permite ao homem perceber de onde ele caiu, buscar a verdade assim
como a felicidade. Diante disso, sendo os termos primitivos e primeiros princípios sustentados
pelo coração, Pascal vincula todo conhecimento ao coração, órgão pelo qual Deus age e
imprime a suas leis, conseqüentemente, todo conhecimento dependerá do coração e a razão
não entenderá os motivos do coração, logo, se há uma ciência, essa é a teologia dirá Pascal:
“A teologia é uma ciência, mas ao mesmo tempo quantas ciências há?”.448 A verdadeira
ciência não pode ser dependente, logo, a única ciência é a teologia, pois esta não depende de
nenhuma outra, sendo autônoma em si mesma. A geometria, ciência infalível449, apóia seus
raciocínios nos termos e princípios concedidos pelo coração – órgão teológico – tirando as
conseqüências das definições estabelecidas, como dirá Mesnard: “[...] trata-se sempre de
colocar os princípios e deles deduzir as conseqüências.”.450 Assim, Pascal coloca todo
conhecimento humano na composição, na dependência do coração, que possui conteúdos
448
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 65, Bru. 115, p. 24.
Ver Idem, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 350.
450
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 96.
449
120
indemonstráveis, e mergulha todo saber na insuficiência da razão em compreender os termos
primitivos pormenorizadamente, visto que a tentativa de compreendê-los causa mais confusão
do que esclarecimento. Eis uma conseqüência epistemológica importante depois que traçamos
as diferenças entre a concepção Luterana e pascaliana do estado de natureza do homem, de
modo que Pascal ao afirmar que ainda restam resquícios divinos na criatura pode construir
toda sua teoria do conhecimento pragmática composta por termos primitivos, princípios e
demonstrações, ou seja, tirar conclusão a partir dos termos e princípios estabelecidos. Os
Luteranos ao negar a verdade que resta no homem como um resquício vago de sua primeira
natureza não explicam como podem negar aquilo que os mesmo não conhecem de forma
alguma por ter uma natureza totalmente corrompida.
Depois de ter analisado as divergências quantitativas e qualitativas do homem em
Pascal e Luteranos fazendo um diálogo entre as duas doutrinas e mostrando algumas
conseqüências epistemológicas das mesmas, discutiremos as implicações qualitativas do
pecado adâmico para Pascal, visto que este sustenta não haver duas naturezas como os
Luteranos, mas dois estados de natureza. Assim, veremos que a diferença qualitativa em
Pascal ilumina o estado de toda humanidade antes e depois da queda, de maneira especial, a
condição humana pós-queda enquanto ser pensante: pensar é fazê-lo na contingência, este
porém, conceito chave que construiremos mais abaixo. Procederemos, assim como o teólogo
francês, descrevendo o estado do homem antes e depois da queda.
1.3 – Descrição do estado de natureza antes da queda.
Dirá Pascal:
Deus criou o primeiro homem, e nele toda a natureza humana.
Ele o criou justo, são e forte.
Sem nenhuma concupiscência.
Com o livre arbítrio igualmente flexível ao bem e ao mal.
Desejando sua beatitude e não podendo não a desejar.
Deus não pôde criar nenhum dos homens com a vontade absoluta de condenálos.
Deus não criou o homem com a vontade absoluta de salvá-los.451
451
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317.
121
Deus é o criador do homem e da natureza que o circunda. Em seu ato criador, três
qualidades caracterizariam as criaturas:o homem é “justo”, “são” e “forte”. Sendo Deus
Perfeito, tanto para Pascal quanto para toda tradição agostiniana, não poderia ser diferente que
Sua obra é o reflexo de um engenheiro competente.452 Desta maneira, Ele não poderia criar
outra coisa senão um homem “justo”, pois este contempla a face de Deus, ouve a sua voz e
seus passos em meio ao jardim do Édem453; “são”, ou seja, não submetido à corrupção da
matéria, doenças, dor, sofrimento e a morte; e “forte”, característica típica de um ser que tem
todo instrumental para viver sua vocação, ou seja, o homem é um ser para Deus. Todas estas
características estão ligadas diretamente com a Perfeição absoluta de Deus. Não se trata de
dizer que o homem possui a mesma Perfeição de Deus ou que sua substância perfeita se
misture com a substância Perfeita Dele, pois isto para um agostiniano seria detestável.454 A
perfeição do homem espelha a Perfeição de Deus na medida que conhecemos suas diferenças
no sentido que apontamos acima, ou seja, o homem adâmico é o homem perfeito criado por
Deus. Lembremos o que Pascal tem em mente: Deus criou o homem e “sem nenhuma
concupiscência”. A concupiscência455 é a marca do pecado caracterizado pelo vício que
escraviza, que impulsiona o homem a repetir a maldade. A maldade, neste contexto, é
entendida como uma corrupção de cunho moral.
A ausência de concupiscência – vício, pecado – ressaltada no texto dos Écrits é uma
forma de solapar qualquer possibilidade de concluir que Deus é Criador de uma natureza
“poluída” pelo mal. Desta maneira, Deus criou o homem com um livre arbítrio flexível ao
452
Ver Susan NEIMAN, O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia, Rio de Janeiro,
Difel, 2003, p. 131 – 224. O capítulo Condenar o Arquiteto destaca alguns pensadores da história da filosofia
que objetivaram caracterizar Deus como um ser incompetente na construção do mundo, na medida em que
permite o mal. Ver também David HUME, Diálogos sobre a religião natural, São Paulo: Martins Fontes, 1992,
p. 145 – 162.
453
“E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim [...]”. (Gên 3, 3, Português, In: A Bíblia Sagrada.
trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969). Percebemos a “intimidade com
Deus” de Adão e Eva antes do pecado nos passeios que Ele fazia no jardim, juntamente com o homem, e de Sua
voz a ressoar em seus ouvidos suavemente. Sabemos que o conceito de “intimidade com Deus” figura a ação da
graça em Santo Agostinho. No entanto, os “passeios de Deus”, assim como as Suas “vozes”, são encaradas de
outra maneira depois da queda. “Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me.”. (Gên
3,10, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil,
1969). O temor em função do pecado faz o homem fugir de Deus, quer ter a sua frente qualquer coisa, contando
que não seja Deus. Desta maneira, a Deidade torna-se objeto de fuga e, a vergonha de sua nudez, revela o horror
de sua condição em relação ao Criador. O homem torna-se absolutamente teófobo.
454
“Se alguns pensam que nossa promoção futura será tão sublime que seremos convertidos em substância de
Deus, chegando a ser o que ele é, vejam como podem defender tal afirmação; de minha parte confesso que não
se deve admiti-la.”. (Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XXXIII, 37, p. 148). Mesmo que nesta citação
o Bispo de Hipona se refere ao homem regenerado pela graça de Cristo, não se pode esquecer que o novo
homem regenerado pela graça é o espelho do Adão saído das mãos de Deus. A Perfeição de Deus é diferente
daquela do homem mesmo em sua condição paradisíaca. Deus é uma Perfeição absolutamente inalcançável, ou
seja, o homem pode ser perfeito dentro dos padrões de perfeição estabelecidos por Deus e nunca igual a Ele.
455
Ver p. 134 – 135 deste capítulo.
122
bem e ao mal, igualmente, sem nenhuma preponderância para nenhum dos lados, ou seja, o
equilíbrio era mantido. Deus desejava a “beatitude” do homem, ou seja, que o homem pudesse
ter a felicidade suprema e a bem-aventurança de contemplar o Bem em si mesmo que, para
Pascal, enquanto teólogo, é o próprio Deus.456 Mas e se Deus não desejasse tal beatitude do
homem? Certamente Pascal discorda desta idéia e quem a sustentasse seria acusado de
Calvinista. Estes eram censurados por fazerem de Deus tanto a causa do bem quanto do
mal.457 Os Discípulos de Santo Agostinho, assim como Pascal, sustentam que Deus em seu
ato criador não tinha uma “vontade absoluta” nem de condenar nem salvar os homens. Para
Pascal, esta vontade absoluta implicaria em um determinismo maniqueísta, pois, não há culpa
e, desta forma, é Deus com sua vontade absoluta de condenar o homem que obriga-o a pecar.
Neste sentido, a cooperação do homem para fazer o bem, algo presente em Santo Agostinho e
456
“Que o homem sem fé não pode conhecer o verdadeiro bem, nem a justiça.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos,
Laf. 147, Bru. 361, p. 59). Tanto o bem como a justiça são conceitos que não podemos conhecer sem o auxílio da
graça. Sustentamos que estes dois conceitos em Pascal são teológicos e somente compreensíveis em seus
aspectos formais, entretanto, não podemos tocar àquilo que eles significam em si, pois, para Pascal, o significado
está além do homem e somente Deus pela sua misericórdia poderia conceder a graça da compreensão. O coração
seria o sensor capaz desta apreensão.
457
“A opinião dos Calvinistas é:/ Que Deus, criando os homens, os criou, uns para condenar e outros para salvar,
por uma vontade absoluta e sem previsão de nenhum mérito./ Assim, para executar esta vontade absoluta, Deus
fez Adão pecar, e não somente permitiu, mas causou sua queda./ Que não há nenhuma diferença em Deus entre
fazer e permitir.”. (Idem, Écrits sur la grace, p. 312). Para Calvino, assim como para Pascal, Deus é o criador
dos homens. A diferença entre os dois diz respeito ao motivo pelo qual uns e outros foram criados: uns foram
criados para serem salvos e outros para serem condenados. Pascal sustenta que a previsão de méritos aconteceu
depois do pecado de Adão, antes disso, Deus tinha uma vontade condicional de salvar a todos. Já Calvino
formulava um decreto de Deus totalmente diferente: Deus tem uma vontade absoluta e superior, desta maneira, o
homem não tem nenhum mérito e, conseqüentemente, não há cooperação da parte humana. O mérito das boas
ações é totalmente de Deus em função de sua vontade suprema e absoluta. Calvino discorda que há uma previsão
dos méritos para o julgamento realizado por Deus, pois isto implicaria em conceder ao homem a salvação pela
previsão de seus méritos, ou seja, Deus conheceria os méritos de cada um em cumprir aquilo que seria concedido
pelas escrituras e a partir disto outorgaria sua sentença. Diante deste quadro, Calvino nega toda salvação pela
previsão, já que a conseqüência disto faria da vontade de Deus dependente da vontade dos homens, algo
incompatível com um teólogo que postula a idéia de uma vontade absoluta de Deus. Calvino sustenta que esta
vontade de Deus age mesmo antes da criação dos homens e, por este motivo, induz o homem a pecar: “Que
Adão, tendo pecado necessariamente por um decreto de Deus [...]”. (Ibid., p. 319). Todavia, a culpa é do homem
e ele merece a condenação. Assim, Pascal lança luz a dois conceitos fundamentais na teologia Calvinista: o
“fazer” e o “permitir”. Para Calvino, não há diferença entre estes conceitos. Como a graça provém de Deus
àqueles a quem Ele bem o quiser e, estando com ela o homem não peca de forma alguma, o pecado somente se
realiza na medida em que o homem está fora dos cuidados da graça. Se a graça não está com o homem isto
acontece porque Deus quer, já que a vontade de Deus é absoluta. Deus é visto como causa da salvação e da
condenação e, conseqüentemente, diz Pascal, “[...] causou sua (do homem) queda”. (Ibid., p. 312; grifo meu).
Diante da onisciência de Deus, o conhecimento do pecado de Adão era algo evidente para Calvino, desta
maneira, se mesmo sabendo do pecado e suas conseqüências horríveis para humanidade, Deus criou o homem,
então Ele permitiu que Adão pecasse. Deus poderia ter impedido se Ele quisesse, mas não o fez, mais uma prova
para Calvino de que Ele não só permitiu, mas causou o pecado. Seria o mesmo que um pai que presenteia o filho
com uma faca bem afiada, não é nenhuma novidade que o filho vai se cortar. O conceder da faca é o mesmo que
permitir o ferimento a um filho que não sabe manuseá-la. A conclusão Calvinista não poderia ser outra: Deus é
causa da salvação e da condenação. Os conceitos destacados por Pascal da teologia Calvinista dilaceram toda
vontade humana, já que Deus tem uma vontade absoluta.
123
aceito por aqueles que se diziam seus discípulos, também é descartada. Mas qual é a vontade
de Deus em relação ao homem para os discípulos de Santo Agostinho? Vejamos:
Deus criou os homens na vontade condicional de salvar a todos
universalmente se eles observassem seus preceitos.
Senão, de prepará-los como senhores, isto é, de condená-los ou de lhes fazer
misericórdia seguindo seu bom prazer.
O homem inocente e saindo das mãos de Deus não podia, embora forte, são e
justo, observar os mandamentos sem a graça de Deus.458
Deus quer salvar a todos, mas não com uma “vontade absoluta”, como pensam os
Calvinistas, mas com uma “vontade condicional”. Diante disso indagamos: o que seria esta
“vontade condicional”? Deus quer salvar a todos universalmente, todavia, para que isto
aconteça é preciso que os homens obedeçam aos preceitos de Deus: esta é a condição,
estabelecida por Deus, para salvá-los.459 A lei serve como modelo regulador daquilo que se
deve fazer usando de um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal. Sem a lei não há pecado, mas
com a lei, dois elementos importantes na dinâmica da teologia de Pascal entram em cena:
Justiça e Misericórdia.460 A condenação e a salvação do homem são permeadas por estes dois
atributos de Deus. Se o homem pecar, ele é justamente condenado, se não, Deus é justo e
misericordioso em salvá-lo. Entretanto, no estado pré–adâmico, Deus preparou os homens de
tal maneira que eles eram “senhores” de suas próprias ações em função de um livre arbítrio
458
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317.
Pascal não queria correr o risco de postular uma vontade absoluta de Deus e cair no erro Calvinista. Ele
defente a idéia de uma vontade condicional para que não seja atribuída a Deus a “culpa” do pecado, fazendo
Dele um monstro. Para a nossa pesquisa, Pascal só concede maior ênfase na onisciência de Deus depois do
pecado para não cair no “erro” Calvinista. Se a onisciência de Deus é absoluta, conseqüentemente, Ele saberia
qual seria as conseqüências da criação do mundo e do homem. Logo, Ele teria permitido o pecado. Para não cair
no espiral deste raciocínio fazer-se-ia necessário não absolutilizar a onisciência de Deus destacando-a somente
depois do pecado de Adão cometido por sua livre e espontânea vontade.
460
Cf. Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 635. Justiça e Misericórdia são dois conceitos
que entram em cena quando se trata das controvérsias sobre a graça no século XVII. As três escolas –
Calvinistas, Molinistas e Jansenistas – estão de acordo que estes dois atributos fazem parte de Deus. Para os
Molinistas, Deus concede uma graça suficiente a todos os homens por Justiça, pois, caso não outorgasse tal
dádiva os pecados não poderiam ser imputados aos homens. Desta maneira, esta escola concede maior ênfase à
Misericórdia de Deus. Os Calvinistas concedem maior ênfase à Justiça divina, pois é Deus que decide quanto a
salvação e a condenação, condenando também os inocentes. Para Pascal, somente os Discípulos de Santo
Agostinho – Jansenistas – consideram os atributos de Deus ao mesmo tempo. Por sua Justiça Deus somente
poderia outorgar ao homem a condenação, mas é pela sua Misericórdia que permite discernir aquele a quem Ele
quer salvar. Henri Gouhier, em seu livro Blaise Pascal: conversão e apologética, salienta a importância do
pecado original para compreender a relação misericórdia e justiça em Blaise Pascal: “Aos olhos de Pascal e dos
teólogos que lêem Santo Agostinho no Augustinus do bispo Jansênio, o pecado original é uma falta tão radical
que a condenação de todos os filhos de Adão é pura justiça e a redenção de alguns, por pequeno que seja o
459
124
flexível tanto ao bem quanto ao mal. Este livre arbítrio capacita-o de escolher entre o
cumprimento ou a transgressão da lei. Mas e a graça de Deus, está excluída desta dinâmica?
Para um jansenista a graça nunca está excluída, somente há exclusão da graça no pecado. O
homem “forte”, “são” e “justo” somente podia fazer o bem enquanto fazia bom uso da graça
de Deus. Um mal uso da graça implica em um não uso da graça. A conseqüência disso, para
Pascal, é o pecado. Desta maneira, Deus age “seguindo o bom prazer” dos homens em fazer
aquilo que lhe convêm. Portanto, para Pascal a graça de Deus e a cooperação de uma vontade
imaculada são prerrogativas basilares para o cumprimento dos preceitos. Aprofundemos
conceitualmente esta graça outorgada – pelo próprio Deus – ao homem antes do pecado.
Deus não podia com justiça impor preceitos a Adão e aos homens inocentes
sem lhes dar sua graça necessária para cumpri-los.
Se os homens em sua criação não tinham tido uma graça suficiente e
necessária para cumprir os preceitos, eles não teriam de forma alguma pecado
transgredindo-os.
Deus concede a Adão uma graça suficiente, isto é, além da qual nenhuma
outra era necessária para cumprir os preceitos e continuar dentro da justiça.
Por meio da qual ele podia perseverar ou não perseverar, seguindo seu bom
prazer.461
Se o pecado não existe enquanto não há lei, a lei não existe se não há a graça. A justiça
da imposição do preceito é adornada com a concessão da graça. Sem a graça não há
transgressão, pois não há lei. A existência desta sem a graça implica em dizer que Deus é
injusto por conceder a lei sem os meios de observá-la. E isto é o mesmo que entregar a
criatura ao pecado, ou, criá-lo para condená-lo, o que faria de Deus, na visão de Pascal, um
demiurgo inescrupuloso. Pascal está intimamente colado com a tradição agostiniana jansenista
no que diz respeito a estas relações entre a graça e a lei. Os Jansenistas são partidários, de
maneira especial, das idéias de Santo Agostinho descritas nas controvérsias pelagianas que
tiveram seu ápice no início do século V. A principal obra de Santo Agostinho que pode
ilustrar a relação entre a graça, figurada na dimensão de um Espírito salvífico, e a lei, como
uma prerrogativa que tem a função maior de acusar do que salvar, é O espírito e a letra.
número, é pura misericórdia; por outro lado, visto que é uma ofensa a Deus, só Deus tem poder de perdoá-la.”.
(Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 32 – 33).
461
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317.
125
Pascal só faz retomar as idéias de Agostinho. A graça é necessária, no entanto, fazerse-ia necessário explicar de que graça se trata, pois há uma diferença capital entre a graça préqueda e pós-queda.462 A graça outorgada por Deus antes da queda chama-se graça suficiente.
Esta graça é chamada suficiente por conter nela tudo aquilo que é necessário para fazer o bem,
mas com uma ressalva, desde que se faça bom uso da mesma por seu livre arbítrio.463 Nada
será necessário, além da graça suficiente, para que o livre arbítrio tenha sucesso no
cumprimento dos preceitos. O “bom prazer” de cada homem, ou seja, sua vontade de
perseverar ou não é fator determinante para responsavelmente usar da graça suficiente que
Deus lhe outorgou. “De maneira que seu livre arbítrio podia, como senhor desta graça
suficiente, a tornar vã ou eficaz, seguindo seu bom prazer.”.464 Jean Mesnard comenta tal
graça suficiente presente em Adão: “Beneficiando-se da justiça no instante de sua criação, o
homem, auxiliado pela graça suficiente, era livre, no decorrer do tempo, de conservá-la ou
perdê-la.”465 A Justiça de Deus é cumprida no momento da criação na medida em que Deus
concede a graça suficiente para que o homem possa agir como melhor lhe aprouver. A
liberdade tem como marca a indiferença tanto para o bem quanto para o mal, ficando sob sua
responsabilidade o uso que se poderia fazer da graça. Deus ao conceder a graça a todos os
homens universalmente, faz revelar sua vontade condicional de salvar a todos desde que não
transgridam os preceitos, entretanto, sabemos que caso venha a pecar, Ele é justo em condenar
e sua misericórdia ainda assim é inviolável, todavia, se não pecar, é a justiça e misericórdia de
462
A graça pós-queda dá-se o nome de graça eficaz, esta porém, será trabalhada mais abaixo quando formos
descrever o homem depois do pecado.
463
“Portanto, eu soube em poucas palavras que sua diferença tocando a graça suficiente é naquilo que os Jesuítas
consideram que há uma graça dada a todos geralmente, submissa de tal forma ao livre arbítrio que a torna eficaz
ou ineficaz a sua escolha, sem nenhum novo socorro de Deus e sem que falte nada de sua parte para agir
efetivamente; isto que faz com que eles a chamem suficiente, porque ela sozinha é suficiente para agir. E os
Jansenistas, ao contrário, sustentam que não haja graça suficiente atualmente e que ela não é, desta maneira,
eficaz, isto é, que todas estas graças que não determinam de modo algum a vontade para agir efetivamente são
insuficientes, porque eles dizem que jamais se age sem a graça eficaz. Eis a diferença entre eles.”. (Blaise
PASCAL, Provinciales, p. 375). Pascal está demarcando a diferença doutrinal entre Jesuítas e Jansenistas. Neste
contexto dos Provinciales a preocupação é tentar “salvar” Arnauld da condenação da Sorbonne, desta maneira,
tenta delimitar as fronteiras entre a teologia Jesuíta e Jansenista. Os primeiros sustentam que mesmo depois do
pecado de Adão a graça possui tudo aquilo que é necessário para salvação, cabe ao homem fazer manifestar a
eficácia desta graça usando-a bem, ou ineficácia, usando-a mal. Já os Jansenistas sustentam que com a queda de
Adão a graça que ele possuía não é mais suficiente para a salvação, já que o homem possui atualmente um livre
arbítrio corrompido e preso na gravidade do mal. Fazer-se-ia necessário uma graça que determine a vontade a
agir para que ela seja eficaz. A graça suficiente poderia ser útil na medida em que a vontade não estivesse
corrompida, desta maneira, confiar nela para realizar o bem depois do pecado é absolutamente inócuo para os
Jansenistas. Para estes a vontade está corrompida e não poderia auxiliá-la no cumprimento dos preceitos,
portanto, a graça suficiente somente atua no homem antes do pecado, pois já que sua vontade não está
corrompida, o homem poderia fazer uso desta graça como melhor lhe aprouver.
464
Idem, Écrits sur la grace, p. 317.
465
Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 596
126
Deus que ratificam a salvação. Diante deste quadro, perguntamos: o homem terá mérito em
sua salvação ao fazer bom uso desta graça? Vejamos a resposta do próprio Pascal:
Deus deixa e permite ao livre arbítrio de Adão o bom ou o mal uso desta
graça.
Se Adão, por meio desta graça, tivesse perseverado, teria merecido a glória,
isto é, de ser eternamente confirmado na graça sem perigo de pecar jamais:
como os bons Anjos a merecem pelo mérito de uma graça parecida.
De maneira que cada um de seus descendentes nasceria dentro da justiça, e
com uma graça suficiente parecida com a sua, pela qual poderiam perseverar
ou não, seguindo seu bom prazer, assim como merecer ou não, a glória eterna,
como Adão.466
A decisão naquilo que diz respeito à utilização da graça cabe a Adão. A graça
suficiente é o equipamento necessário para cumprir os preceitos divinos, contando que se faça
bom uso de tal equipamento. Mas sabendo que o homem tem uma graça suficiente, quais
seriam as conseqüências das ações de Adão, ou seja, quais os desdobramentos postulados por
Pascal quanto à perseverança ou não perseverança? É explicito no texto de Pascal que Adão
teria “merecido a glória” caso fizesse bom uso da graça suficiente. No estado pré-queda o
bom uso da graça está vinculado à virtude ou bem-aventurança, desta maneira, a confirmação
de Adão no bom uso da graça é garantia de não perecer no pecado. Pascal chega a comparar a
vida do homem sem pecado a dos “Anjos” que, fazendo bom uso de “uma graça parecida”
permanecem na glória de Deus e merecem tal dádiva. Percebemos uma ligação causal entre
virtude, em função da graça – e a graça é necessária tanto para os homens quanto para os
Anjos –, e eternidade, pois o virtuoso ao permanecer na graça não corre o risco de “pecar
jamais”. Não seria difícil vincular este conceito de eternidade ao de felicidade, pois o homem
que contempla a face de Deus – em função da glória que lhe é outorgada merecidamente
como prêmio de sua ação virtuosa – só pode ser absolutamente feliz. A ação virtuosa do
primeiro homem implica em conceder as dádivas de tal ação a toda posteridade, desta forma,
cada homem teria nascido “dentro da justiça” e com a mesma graça suficiente concedida a
Adão. Pascal quer deixar claro ao leitor que, assim como Adão tinha todas as condições
necessárias para agir bem, todos os homens mereceriam – caso Adão não tivesse pecado –
esta dádiva: uma graça suficiente, na qual contêm tudo aquilo lhe é necessário para fazer o
466
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317.
127
bem e uma vontade flexível tanto ao bem quanto ao mal. A responsabilidade estaria nas mãos
dos filhos de Adão. Todavia, um fato curioso é que Pascal não esclarece o que poderia
acontecer se Adão não pecasse e um dos descendentes – que receberia as mesmas condições
de Adão para não pecar – viesse a pecar. Talvez somente este homem fosse condenado ou
castigado. Mas se o pecado é realizado pelo pai de todos os homens, a corrupção seria o fruto
outorgado à toda posteridade. Todavia, qual foi a ação de Adão? “Adão tentado pelo Diabo
sucumbiu à tentação, se revoltou contra Deus, infringiu seus preceitos, quisera ser
independente de Deus e igual a Ele.”.467 Adão cedeu à tentação do Diabo. Mesnard faz
menção de tal acontecimento como uma espécie de divisor de águas na obra de Pascal, visto
que depois de tal acontecimento a humanidade nunca mais seria a mesma.
De hoje em diante, a humanidade entrará em um segundo “estado”. A
disposição de um momento, pelo qual Adão tinha preferido a si mesmo do que
a Deus, torna-se uma tendência estável. O homem é permeado pelo “amor da
criatura”, que não difere do amor de si.468
Não se trata de uma posição maniqueísta, pois Adão não é coagido pelo Diabo, mas
tentado. Ele podia ter decidido diferentemente e mudado o curso da história. O homem mostra
sua revolta contra Deus469 em dois pontos: não cumprindo o único preceito que lhe era
cobrado e na tentativa presunçosa “de ser igual a Ele”.470 O pecado adâmico funciona como
um divisor de águas na teologia de Pascal e este fato é ressaltado por Mesnard, pois é a
desobediência de Adão que muda o curso da história. A disposição de um momento foi capaz
de mudar a vida de toda humanidade. O pecado no comentário de Mesnard torna-se uma
“tendência estável”, ou seja, com a queda o pecado sobrepuja com maior força a ação humana
e torna-se a contínua repetição da queda. Ele é um componente preponderante que permeia o
segundo estado de natureza do homem. Portanto, a repetição do mesmo conduz a estabilidade.
Quanto ao mistério que envolve tal disposição momentânea, ou seja, o motivo que fez Adão
pensar poder ser igual a Deus, será discutido mais abaixo. Vale ressaltar que Mesnard, assim
467
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace p. 317.
Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 696
469
“Pois enfim, a razão pelo qual os pecados são pecados, é somente porque eles são contrários à vontade de
Deus: e, desta maneira, a essência do pecado consiste em ter uma vontade oposta àquela que nós conhecemos de
Deus, é visível, me parece, que quando Ele nos revela sua vontade por acontecimentos, seria um pecado não se
conformar.”. (Blaise PASCAL, Lettres aux Roannez, p. 266. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis
Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 265 – 270). Pascal deixa claro que a essência é contrariar a vontade de Deus.
Adão em sua presunção fez justamente isto, desta maneira, ele merece, na visão de Pascal em seu contexto
cristão, morte eterna.
468
128
como nossa pesquisa, usa o termo “segundo estado” para caracterizar o homem depois da
queda – algo que já trabalhamos acima471 –, pois trata-se de uma mesma natureza, só que
agora corrompida. Desta maneira fazer-se-ia necessário descrevermos como o próprio Pascal
relata este segundo estado de natureza e às conseqüências do pecado.
2 – Descrição do estado de natureza depois da queda: análise de Jean Mesnard,
Luiz Felipe Pondé e Catherine Chevalley.
Vejamos como Pascal inicia a descrição do estado de natureza do homem depois da
queda:
Adão tendo pecado e sendo tornado digno de morte eterna,
por punição à sua rebelião,
Deus o deixou no amor da criatura.
E sua vontade, a qual inicialmente não estava de nenhuma forma atirada em
direção à criatura por nenhuma concupiscência, encontra-se cheia de
concupiscência que o Diabo nela semeou, e não Deus.472
Se a virtude em função do bom uso da graça implica em vida eterna, o pecado traz
uma conseqüência totalmente contrária, ou seja, “morte eterna”. Se a vida eterna é merecida
no uso correto do equipamento – graça –, a morte é punição merecida pelo mal uso do
mesmo.473 A graça, antes da queda, funcionava como uma espada que podia auxiliar o homem
a vencer a guerra e afastar-se do mal que o aflige, mas também podia ser usada para trespassar
470
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317.
Ver o item 1.1 e 1.2 deste capítulo.
472
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317.
473
A morte é um dos objetos de reflexão de Pascal. Ela é vista de diferentes pontos de vista no decorrer de sua
obra, sendo que, cada fragmento ou texto, deve ser contextualizado. No fragmento 133 (Bru. 169) dos
Pensamentos, a morte é sentida como uma realidade futura incurável, o que poderia acarretar em uma grande
tristeza para o homem. Entretanto, Pascal descreve que o homem prefere não pensar nela para continuar a ser
feliz. Desta maneira, a vida feliz é atributo de alienação do esfacelamento eminente: a morte. A alienação
também é destacada no fragmento 641: “A nossa natureza está em movimento, o repouso total é a morte.”.
(Idem, Pensamentos, Laf. 641, Bru. 129, p. 272). Pascal entende que o homem precisa estar sempre em
movimento para suportar a vida. Este fragmento resvala na psicologia do divertissement. O homem vive a via
sacra das constantes preocupações que preenchem a sua vida, estas movimentações tem como objetivo o repouso
na conquista do objeto buscado. Mas Pascal associa o repouso a morte. Um homem não agüentaria ficar de
braços cruzados em um quarto sem ser assombrado pelo ennui, tristeza profunda que faz o homem sentir o seu
próprio peso. Já no fragmento 434 (Bru. 199) a morte é vista como um decreto de condenação. Pascal descreve
homens em grilhões conscientes de sua futura e próxima condenação, pois, a cada momento, um deste homens é
degolado na frente de todos os outros condenados que estão presos. A cena é cheia de dor e sem esperança, mas
o que estes condenados poderiam fazer? Nada, simplesmente esperam a sua vez. Pascal termina o fragmento
afirmando que esta é a condição dos homens, ou seja, vêem seus semelhante morrer, sabem que este é seu futuro
471
129
o coração humano, neste caso, fazendo mal uso desta espada. Ainda fazendo uso da metáfora
da espada: ela dava o poder ao homem de romper com o pecado ou com Deus, desta forma,
não implicava em falta de habilidade, mas a própria vontade do portador da espada de fazer
uso da mesma como melhor lhe aprouver. Fazendo mal uso da graça, a morte, conseqüência
do pecado, era justa e inevitável.
Além da morte, encontramos outra conseqüência do pecado ou da “rebelião” do
homem: “o amor pela criatura”.474 A afirmação de Pascal incita à discussão. O homem
sucumbiu a tentação, pecou, é digno de morte eterna e condenado ao amor pela criatura,
todavia, “Deus o deixou”. As conseqüências parecem até uma brincadeira com os conceitos:
Deus é onipotente? Então porque deixou o homem pecar ao se encantar por si mesmo, como
eminente e que não há nada a se fazer. (cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 434, Bru. 199, p. 176). O
fragmento 165 também me parece sugestivo: “O último ato é sempre sangrento, por mais bela que seja a
comédia em todo resto. Lança-se finalmente terra sobre a cabeça e aí está para sempre.” (Ibid., Laf. 165, Bru.
183, p. 70). Pascal não esconde a visão da morte como a etapa derradeira de cada homem. Mas como ele está
escrevendo uma apologia, não devemos deixar de lado esta pergunta: porque ele descreve a morte de maneira tão
trágica? Talvez para que o leitor perceba que ainda há um caminho a seguir pelo qual podemos superar a morte.
“Os médicos não te curarão, pois morrerás por fim, mas sou eu que curo e torno o corpo imortal.” (Ibid., Laf.
919, Bru, 553, p. 378). Pascal neste fragmento concede ao leitor a esperança de saber que há uma forma de livrase da morte eterna na medida em que somos resgatados pelo sangue de Cristo derramado na cruz, todavia, saber
da possibilidade do socorro não é ter certeza dele: é a predestinação que confere tal dádiva. Outro texto que toca
o tema da morte são as Lettres aux Roannez. Logo na primeira carta, Pascal, na esteira de um santo que ele não
menciona o nome, diz: “Não é necessário examinar se temos vocação para sair do mundo, mas somente se temos
vocação para nele continuar, como não se consultaria ninguém se somos chamados a sair de uma casa pestificada
ou em chamas.”. (Idem, Lettres aux Roannez, p. 266). Pascal vê o mundo nesta carta como uma casa em chamas
ou pestificada, a opinião mais plausível é abandoná-la. Não se trata de uma apologia ao suicídio, isto inexiste na
obra de Pascal, mas uma defesa da morte como libertação de uma natureza corrompida pelo pecado e que pela
morte esta natureza recebe o remédio. “Nós temos esta enorme vantagem de reconhecer que verdadeiramente e
efetivamente a morte é uma pena do pecado, imposta ao homem para expiar seu crime, necessário ao homem
para purgar-se do pecado; que é a única que pode libertar a alma da concupiscência dos membros, sem a qual os
santos não vivem de modo algum neste mundo.”. (Idem, Lettre A M. Et Mme Perier, A Clemont: A l`occasion de
la mort de M. Pascal le Père, p. 275 – 276). A morte é vista como decreto de condenação em função do pecado
do primeiro homem, todavia, ela auxilia na purgação do crime cometido contra Deus: a morte é o último suspiro
de doses homeopáticas de sofrimento que permeiam a vida dos mais santos. Ela ela é vista como horrível e
detestável, no entanto, para o cristão a perspectiva é totalmente diferente: Cristo, com seus sofrimentos e morte,
santifica os sofrimentos e a morte, desta maneira, estes deveriam ser vistos pelo cristão como algo doce e
amável. (cf. Ibid., p. 276). Ver também: Idem, Pensamentos, Laf. 29, Bru. 156; Laf. 37, Bru. 158. Também na
obra de Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal. p. 328, o comentador francês ressalta que para Pascal a morte
marca de maneira radical a finitude do homem, sua incapacidade de encontrar a felicidade e sua contínua
insatisfação. A morte revela-se como o ápice da desgraça.
474
“Depois, chegando o pecado, o homem perdeu o primeiro de seus amores; e o amor por si mesmo ficando
sozinho nesta grande alma capaz de um amor infinito, este amor próprio estendeu-se e transbordou no vazio que
o amor de Deus deixou; e assim a alma está sozinha, e todas as coisas por si, isto é, infinitamente.
Eis a origem do amor próprio, era natural a Adão, e justo em sua inocência; mas torna-se criminoso e imoderado,
em conseqüência de seu pecado.”. (Blaise PASCAL, Lettre A M. Et Mme Perier, A Clemont: A l`occasion de la
mort de M. Pascal le Père, p. 277). O homem antes do pecado de Adão possuía dois amores: por Deus, que era
infinito, e por si mesmo, que era finito. Com o pecado, Adão perde seu objeto de amor infinito, ficando errante
seu sentimento “capaz de um amor infinito”, todavia, sem seu objeto de amor. Ficando sozinho, preso no abismo
infinito que ocupa o tamanho de Deus em sua alma, o amor por si mesmo tenta preencher este vazio, mas como o
vazio é infinito e o amor próprio finito, a tentativa de preenchê-lo totalmente está condenada ao fracasso. O
homem, desta maneira, está condenado a amar a si mesmo e nunca estar satisfeito com este amor. Busca nas
coisas finitas seu amor infinito em potência.
130
Narciso, que se deleita ao olhar seu próprio rosto espelhado na margem de um rio? Deus
podia ter-nos livrado de tal ato maléfico. Deus é onisciente? Então porque Ele construiu um
homem dotado de uma graça que, no decorrer dos acontecimentos, iria ser mal usada? Deus é
um engenheiro que, ao construir uma determinada máquina, possui uma idéia oculta na qual
já conhece o fim trágico de seu péssimo funcionamento? Diante destas dificuldades, como
conciliar ainda que o Deus cristão é Bondoso e Generoso? Pascal não é partidário de nenhum
desenvolvimento conceitual que leve a concluir que Deus é um demiurgo incompetente.
Sabemos que diante dos ante os questionamentos que fizemos acima, pareceria um erro lógico
não atribuir ao Deus onipotente e onisciente a permissão do pecado. Todavia, porque Deus
haveria de impedir que o homem pecasse? A resposta seria imediata: porque Ele é Bondoso e
Generoso! Mas obrigar Deus a agir para socorrer o homem não seria de alguma forma limitar
a onipotência de Deus submetendo-a à vontade humana? Interferir na liberdade humana
flexível ao bem ou ao mal não poderia trazer luz a uma configuração de um sistema
maniqueísta, no qual há um Deus que impede o homem de fazer o mal? Dizer que Deus não
pode interferir no seu próprio sistema também não fere a onipotência de Deus? Todas estas
perguntas e respostas somente configuram a concessão de corda para finalizarmos a análise na
forca.475 Todavia, uma questão permanece: como Pascal explica a existência do mal?
O mal é de total responsabilidade do homem para o teólogo francês, mesmo que isso
pareça absurdo por tratar-se de um Deus onisciente, desta maneira, seria muito mais absurdo
supor que Deus é causa do mal. Deus é Bondade eterna, ou seja, Ele é algo absolutamente
distinto do mal. Pascal considera absurdo atribuir a Divindade esta mácula. Ele não enfrenta
muitos problemas como seu mestre Santo Agostinho para “resolver” o problema da origem do
mal. A resposta é clara e sem meias palavras: O homem antes do pecado de Adão possuía um
livre arbítrio flexível ao bem e ao mal, Adão sucumbe a tentação do Diabo, peca, e todo o
amor direcionado a Deus é encaminhado em direção à criatura. A vontade do homem é
corrompida pelo pecado, este porém, estimulado pelo Diabo, é realizado por total
475
“A doutrina é a lógica da onipotência enlouquecida. O Criador é todo poderoso? Mas é claro. Então Ele pode
fazer o que quiser? É justamente esse o significado do poder. Ele pode quebrar todas as leis? Bem, Ele as criou.
As leis da razão? Deveríamos julgá-LO? As leis da justiça? Idem, a mesma coisa. Qualquer justiça? Se ele assim
decidir. Nenhum passo admite exceções, até sermos conduzidos a um sistema engasgado com um mal tão
inescrutável, que nos voltamos para as visões modernas de mundo em busca de alívio.”. (Susan NEIMAN, O mal
no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia, p. 33). Este raciocínio de Suzan Neiman
aproxima-se da maiêutica socrática. Ao atribuir a Deus uma onipotência radical, legitimaríamos injustiças
escandalosas e conduziríamos o interlocutor a forca. Desta maneira, será que Pascal, ao discordar da doutrina
Calvinista que atribui a Deus uma vontade absoluta, não estaria diminuindo a onipotência de Deus para não cair
naquilo que Neiman chama de “onipotência enlouquecida”? Nosso trabalho não tem como objetivo responder à
esta pergunta, já que teríamos que percorrer um grande percurso para analisar tal hipótese. Entretanto, sabemos
131
responsabilidade do homem e não de Deus. Desta maneira, vejamos as conseqüências do
pecado naquilo que diz respeito à vontade:
Portanto, a concupiscência elevou-se nos seus membros, estimula (chatouillé)
e deleita (délecté) sua vontade no mal, e as trevas encheram seu espírito de tal
forma que, sua vontade, inicialmente indiferente pelo bem e o mal, sem
encanto ou estímulo (chatouillement) nem dentro de um, nem de outro, mas
seguindo, sem nenhum apetite preventivo de sua parte, aquilo que Adão (il)
conhecia de mais conveniente para sua felicidade, encontra-se agora atraída
pela concupiscência que se eleva nos seus membros. E seu espírito fortíssimo,
justíssimo, esclarecidíssimo, está escurecido e na ignorância.476
A concupiscência ou vício invadem os membros dos homens, ou seja, tudo aquilo que
compõe o homem. Ela funciona como uma força que estimula (chatouillé) e deleita (délecté) a
vontade no mal. Chatouillé seria uma espécie de comichão, coceira, formigamento que
impulsiona a vontade e o délecté é visto como algo que causa prazer e, ao mesmo tempo,
aprisiona a criatura destas alucinações encantadoras. Chatouillé e délecté funcionam como
uma fórmula eficaz para prender o homem dentro de uma cadeia concupiscente. Se o homem
em um sentido é estimulado – chatouillé – a fazer o mal, ao mesmo tempo está encantado
pelo mal que comete. Assim, aumentando o estímulo há um aumento proporcional ao deleite,
em uma cadeia que, em função da constante repetição, produz aquilo que chamamos de
mecânica concupiscente. Estando a vontade presa ou impregnada – como um vírus que
corrompe a sua própria casa, ou seja, o corpo que lhe serve de abrigo – desta mecânica
concupiscente, a diferença entre a vontade antes e depois do pecado – diferença qualitativa –
para Pascal é gritante, todavia, não se trata de dizer que a diferença é total no sentido
Luterano, algo que já discutimos no início deste capítulo. Se antes do pecado o homem não
era vítima desta mecânica concupiscente, sendo “indiferente” tanto ao bem quanto ao mal, ou
seja, não estava preso na gravidade nem do bem, nem do mal, agora ele está preso no cárcere
do pecado na buscar de sua felicidade mundana. Percebemos através da citação acima que
esta felicidade buscada era conhecida, desta maneira, seguia “aquilo que ele conhecia de mais
conveniente para sua felicidade”. O homem antes do pecado tinha uma faculdade cognitiva
capaz de discernir com clareza a felicidade que buscava, todavia, com o pecado a perspectiva
que atribuir uma onipotência radical a Deus poderia causar alguns danos a outros universais que no universo
cristão estão colados ao conceito “Deus”, como a Bondade e a Justiça.
476
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317; grifo meu.
132
muda diametralmente: a falta adâmica atrai o homem para a gravidade do pecado477,
distanciando-o da felicidade que outrora buscara.
Desta maneira, três pontos citados por Pascal podem nos auxiliar para entender a nova
conexão conceitual postulada. Antes do pecado o homem tinha um espírito “fortíssimo”,
justíssimo” e "esclarecidíssimo”, entretanto, depois do pecado “está escurecido e na
ignorância.”. Pascal resume a mudança das características do espírito – ou razão, conceitos
semelhantes na obra de Pascal – em dois conceitos: escuridão e ignorância. Jean Mesnard
comenta tal obscuridade que permeia o homem depois da queda em seu Essai sur la
signification des Écrits.
Todo seu ser está corrompido, deteriorado pela ignorância e a concupiscência.
Seu espírito, “obscurecido” e mergulhado “nas trevas”, não sabe mais
reconhecer seu verdadeiro bem.478
A luz da razão está escurecida, assim como Adão torna-se um ser exilado de certezas.
Mas conhecer a incerteza não seria uma forma de certeza, pois sabemos que, aquilo que
conhecemos, é incerto? Não poderíamos dizer isto, pois, aquilo que Pascal chama de
ignorância diz respeito ao conhecimento da verdade absoluta479, da falsidade, do que é o
477
“Eis uma imagem das duas liberdades: a primeira, que estava em Adão e era próxima e indiferente às
oposições sem estar ligada nem de um lado nem de outro; mas depois que ela (a liberdade) está caída nas linhas
da concupiscência, está neste momento fora do estado de conduzir a Deus, para isto, somente a linha da graça o
puxando com mais força rompe com a cobiça e lhe faz dizer: Senhor, vós rompestes minhas linhas [Sl. CXV,
16]. Mas se esta suposição metafísica acontece, onde a boa e a má cobiça ligam-se igualmente, quem não vê que,
bem longe de estar em sua primeira indiferença, o homem jamais estará nela; bem longe de ser independente, ele
será totalmente dependente; bem longe de estar livre, ele será escravo dos dois lados; e bem longe de poder se
conduzir as linhas opostas, ele continuará imóvel.”. (Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 332 – 333). A
metáfora de Pascal é sugestiva para trazer luz à diferença entre os dois estados de natureza. Antes do pecado de
Adão ele não está amarrado, desta maneira, é indiferente ao bem e ao mal. Depois do pecado, o homem está
amarrado como um joguete entre duas cordas: a do bem e a do mal. Todavia, a corrente do mal puxa-o com mais
força e rompe com a corrente do bem (graça), deixando sua vontade a deriva no mal. É necessário que a graça de
Deus atue para libertar o homem da gravidade do pecado, esta porém, com uma força muito maior que a corrente
oposta. Vale lembrar que, para Pascal, nesta vida nunca iremos ser libertos totalmente do pecado: “[...]como o
homem jamais estará livre nesta vida de toda concupiscência [...]”. (Ibid., p. 333). A concupiscência é
prerrogativa básica e pedagógica para que o homem não seja invadido pelo orgulho pelo fato de fazer o bem,
esquecendo-se que o bem é a graça agindo em seu coração. Pascal neste sentido é absolutamente agostiniano e,
conseqüentemente, paulino, já que o próprio Paulo nos chama a atenção sobre este assunto: Deus coloca um anjo
para esbofeteá-lo afim de que o apóstolo não venha a fazer seu, o ministério que é de Deus.
478
Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 596.
479
O conhecimento da Verdade tem caráter teológico para Pascal. O homem conhece a verdade na medida em
que ele é tocado pela graça. “Conhecemos a verdade não apenas com a razão mas também pelo coração.”.
(Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 228, p. 38). A verdade pareceria ganhar sentido no momento em
que a graça fecunda o termo. Ela precisa ser amada, depois conhecida. “A verdade está tão obscurecida nos
tempos atuais e a mentira tão estabelecida que, a menos que se ame a verdade, não se consegue conhecê-la.”.
(Ibid., Laf. 739, Bru. 864, p. 298). Amar a verdade implica estar sob a tutela da graça, depois disso, pareceria
plausível a idéia de que a graça fecunda o logos. “Sei que Deus quis que elas (as verdades divinas) entrassem do
133
homem480, do que é a justiça481, da natureza482 das coisas, da felicidade e “seu verdadeiro
bem”, como faz referência Mesnard. Ele ressalta que o ser humano, para Pascal, está
coração para o espírito e não do espírito para o coração, para humilhar esta soberba do poder do raciocínio que se
pretende ser o juiz das coisas que a vontade escolhe e para curar esta vontade enferma, que está totalmente
corrompida por suas imundas afeições. E disto advém que, ao falar de coisas humanas, diz-se que é necessário
conhecê-las antes de amá-las [...]”. (Blaise PASCAL, De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader, p.
355). Depois do pecado de Adão a vontade está corrompida de tal modo que Deus estabelece uma hierarquia do
processo cognitivo da verdade, ou seja, primeiro pelo coração depois para o espírito. Todavia, esta hierarquia
muda naquilo que diz respeito às coisas ou verdades humanas: é preciso conhecê-las antes de amá-las. Desta
maneira, sustentamos que para Pascal a razão não é contra a graça, mas reconhece seus próprios limites pela
força da mesma. “É o coração que sente a Deus e não a razão. Eis o que é a fé. Deus sensível ao coração e não à
razão”. (Idem, Pensamentos, Laf. 424, Bru. 278, p. 164). Neste fragmento parece que Pascal solapa a razão
quando o “sentir Deus” é o foco de seu discurso. A razão não se apresentaria como um instrumento eficaz para
captar Deus. Todavia, sustentamos que Pascal se refere àqueles que querem submeter Deus somente ao crivo da
razão, algo que é melhor explicado por outro fragmento. “Se submetermos tudo à razão, a nossa religião não terá
nada de misterioso e sobrenatural. Se violentarmos os princípios da razão, a nossa religião será ridícula e
absurda.”. (Ibid., Laf. 173, Bru. 273, p. 71). Pascal está preocupado com a radicalidade das afirmações, ou seja,
dizer que a religião não tem nada de misterioso e sobrenatural faria da mesma um mero evento natural, algo que
Pascal discorda como cristão jansenista, todavia, excluir a razão faria da religião algo absurdo. Vemos que o
pensamento pascaliano da relação fé e razão poderia ser entendido como um pêndulo, ou seja, com a metáfora do
pêndulo o leitor poderia perceber que Pascal caminha sobre estes dois pólos – fé e razão – sem desprezar
nenhum nem conceber a primazia a nenhum deles. Desta maneira, não vemos Pascal como um pietista radical,
entretanto, a fé também é um dom de Deus, assim como não o vemos como um teólogo naturalista, mas como
um pensador no qual a fé fecunda o logos. “Os homens têm desprezo pela religião. Têm ódio dela e medo de que
ela seja verdadeira. Para curar isso, é preciso começar por mostrar que a religião não é contrária à razão.” (Ibid.,
Laf. 12, Bru. 187, p. 5). Na “compreensão” do mistério que envolve a religião, a razão nada pode fazer, pois ela
é superada, mas não exterminada. “2. excesso, excluir a razão, não admitir senão a razão.” (Ibid., Laf. 183, Bru.
253, p. 73). Nesta citação percebemos como Pascal se refere ao modo de concebermos a religião, na qual nos
chama atenção sobre os “2 excesso” – o erro de concordância está no texto de Pascal. O que há de mistério na
religião não se submete ao crivo da razão, pois é o homem que deveria submeter-se ao mistério; assim como a
religião não pode ser um ato absolutamente ausente de razão o que faria dela, para Pascal, ridícula e absurda.
“Submissão e uso da razão: em que consiste o verdadeiro cristianismo.” (Ibid., Laf. 167, Bru. 269, p. 70). O
homem não deve se submeter sem razão, assim como não deve somente raciocinar e não se submeter. A graça
poderia ser pedra angular que indicaria ao cristão quando é necessário submeter-se e quando é necessário amar e
raciocinar conjuntamente. Sobre “verdade local” em Pascal ver capítulo III. Para saber mais sobre a relação
razão e fé em Pascal, assim como o caráter redentor da razão pela graça ver Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal
et le mystère du mal, p. 229 – 230.
480
Para responder tal pergunta, precisaríamos saber de qual estado de natureza estamos nos referindo. O homem
é um só, todavia sua condição é dual na medida em que há um divisor de águas chamado pecado original. Já
vimos acima sobre a condição do homem antes do pecado, este seria o verdadeiro homem, saído das mãos de
Deus e, desta maneira, este conceito ganha outro sentido quando a teologia pascaliana entre em jogo. “Conhecei,
pois, soberbo, que paradoxo sois vós mesmo. Humilhai-vos, razão impotente! Calai-vos, natureza imbecil;
aprendei que o homem ultrapassa infinitamente o homem e ouvi de vosso senhor vossa condição verdadeira que
ignorais.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 47). A verdadeira condição do homem é
ignorada em função da obscuridade causada pelo pecado. O homem esqueceu-se de si, algo muito próximo à
filosofia platônica, na qual a metempsicose (reincarnação) acontece depois de bebermos das águas do rio
Ameletes, ou o rio do esquecimento. Se para Platão a noesis acontece pela dialética realizada pelo filósofo, em
Pascal ela dar-se-ia pela graça destinada ao predestinado. Desta maneira, sustentamos que a resposta à esta
pergunta – Quem é o homem? – possui sentido teológico. Fora da teologia a resposta é outra: “Que espécie de
quimera é então o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que fonte de contradições, que prodígio? Juiz
de todas de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro, glória e
rebotalho do universo.”. (Ibid., Laf. 131, Bru. 434, p. 46). O homem é uma quimera, um ser contraditório onde
seres incompatíveis se encontram; nele não se encontra nenhuma novidade; ser de nenhuma espécie – monstro –,
caótico, ou seja, muda constantemente de tal maneira que qualquer juízo que fazemos sobre ele é uma questão de
tempo ou de comparação cultural para dissolver-se; contraditório; nele encontra-se a verdade, porém, também a
incerteza, ou seja, estes conceitos se misturam de tal maneira que o fato de fazer-se juiz de todas as coisas não
implica em dizer que o homem faça juízos claros e distintos, desta maneira, Pascal qualifica o homem como
cloaca de incerteza e de erro, como uma fossa que recebe dejetos de todas as espécies; rebotalho do universo, ser
134
corrompido pelo pecado dando ênfase a dois conceitos: “ignorância” e “concupiscência”.
Desta maneira, vejamos a leitura que o próprio Mesnard faz do termo concupiscência: “O
termo concupiscência designa precisamente este atrativo que, depois do pecado de Adão, é
exercido necessariamente sobre o homem entregue a si mesmo.”.483 A concupiscência mostra
insignificante e sem valor deixado sem referência em um vasto rincão. Toda esta citação tem o objetivo de
dissolver qualquer possibilidade de responder aquela pergunta sem recorrer à teologia, esta porém, torna-se
cânone que, para Pascal, deveríamos recorrer para respondê-la. A comentadora Hélène Michon ressalta que
Pascal ao fazer considerações sobre o homem muda constantemente o ponto de vista sobre o qual faz sua análise.
Tudo dependerá de como será feita a comparação, ou seja, a partir de qual ponto de vista. Se a comparação é
feita entre o estado adâmico e o estado presente, percebemos que depois da queda somos um ser rebaixado:
Pascal descreve o homem como distante de si mesmo. Se é feita entre o homem e o animal, o homem caído é
magnífico. Toda esta transposição tem como objetivo fragilizar qualquer ponto fixo que permita dizer o que é o
homem. (cf. Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal,
47 – 48) Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 117, Bru. 409, p. 40 – 41 e Hélène MICHON, L´ordre du
coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, p. 114 para saber mais sobre a relação
entre o conhecimento de si e o pecado original.
481
Trabalharemos a “justiça” no III capítulo deste trabalho.
482
“Os pais temem que o amor natural dos filhos se apague. Que natureza é essa então, sujeita a ser apagada?/ O
costume é uma segunda natureza que destrói a primeira. Mas o que é a natureza? Por que o costume não é
natural? Temo muito que essa mesma natureza não venha a ser um primeiro costume, como o costume é uma
segunda natureza.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 126, Bru. 93, p. 43). O conceito de natureza em Pascal
está associado à verdade absoluta. Dela só nos resta resquícios vagos no fundo da alma. Pascal escreve este
fragmento dialogando consigo mesmo. Ele afirma que o amor dos pais pelo filhos é natural, ou seja, algo
universal que transcende todos os contextos, ou seja, presente em todos os seres humanos que já existiram e vão
existir. Mas logo coloca em cheque tal afirmação, pois, que amor é este que pode ser apagado a qualquer
momento, já que sabemos que há pais que desprezam seus filhos ou ao menos podem fazer isso. Desta maneira,
aquilo que chamam natureza, Pascal chama costume, ou seja, algo mutável e relativo. Interessante ressaltar que o
costume é parte de uma “segunda natureza” que “destrói a primeira”, ou seja, faz parte do homem depois do
pecado. Neste fragmento Pascal rompe com as fronteiras entre o natural e o costume, sendo que este último
torna-se um hábito seguido de outros dando a impressão de sua imutabilidade e, conseqüentemente, apresenta-se
como natureza. Depois do pecado, costume ou hábito tornam-se sinônimos de natureza concupiscente. Suponho
que para Pascal a única coisa que resta como constante e perene naquilo que diz respeito à natureza depois do
pecado é o estômago, rins, fígado, em suma, o biológico. “Um homem é um suposto, mas, se a gente o
anatomiza, o que passa a ser? A cabeça, o coração, o estômago, as veias, cada veia, cada porção de veia, o
sangue, cada humor do sangue.”. (Ibid., Laf. 65, Bru. 326, p. 24). Isto seria o que Pascal chama de “máquina”,
todavia, ele a vê como descontrolada na medida em que os membros (paixões) não se submetem ao corpo. Neste
sentido, a teologia de Pascal também entra em cena: os homens (membros), não se submetem a Deus (corpo).
(Ver Ibid., Laf. 374, Bru. 475, p. 143). Lane Heller também ressalta esta transposição para a teologia: “Em sua
versão de fábula, aquilo que Pascal chama de “verdade particular” (aquela do homem) deve submeter-se à
“vontade primeira” (aquela de Deus). Desordem e desgraça reinam quando os pés ou as mãos, em revolta,
colocam seu interesse pessoal antes daquele do corpo inteiro e procuram libertar-se e fazer-se independente. A
ordem e a felicidade são restauradas desde que os membros rebeldes vejam que eles só são membros e
dependentes do corpo.”. (Lane HELLER, La perfection chrétienne dans la spiritualité de Pascal, p. 100 In: Lane
M. HELLER & Ian M. RICHMOND (orgs), Pascal – Thématique des Pensées. Paris: J. Vrin, 1998, p. 93 – 104).
483
Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 595. Sobre a definição de concupiscência ver Idem,
Les Pensées de Pascal, p. 150. Mesnard sustenta que a concupiscência é um atrativo irresistível em direção ao
mal. Ver também Ibid., p. 150. A concupiscência é a conseqüência do pecado pelo fato de que o homem está
entregue as suas próprias forças, ou seja, ao amor próprio. Ver Ibid., p. 322 sobre o movimento do ser
concupiscente, ou seja, a concupiscência é o ato humano de fazer de si telos no lugar do Criador. Henri Gouhier
partilha da mesma idéia quando sublinha o termo concupiscência: “[...] é a inclinação que, desde a queda, o
desvia de Deus para ligá-lo às criaturas [...].” (Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 78).
Desta maneira, a concupiscência é a contínua prática humana de repetir o pecado de Adão. Sobre o ódio que o
homem deve destinar a si mesmo por ter lançado seu ser em um estado de natureza concupiscente ver Blaise
PASCAL, Pensamentos, Laf. 618, Bru. 479, p. 267. Ver também Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e
apologética, p. 77 – 83 no qual o autor comenta sobre a necessidade do ódio de si no processo de conversão.
Quanto ao conceito pecado, ligado à concupiscência, recorremos ao próprio Pascal para defini-lo. No dia 1º de
135
que o homem não é mais indiferente entre o bem e o mal, ao contrário, o mal o atrai
infalivelmente e o corrompe. A ignorância é um dos frutos da corrupção pelo pecado. Adão
depois da queda não possui um instrumental cognitivo eficaz para discernir os limites entre
verdade e falsidade fazendo da “ignorância” uma companheira inseparável. As trevas revelam
a perda de referência pela qual permitiria analisar a veracidade de todo e qualquer julgamento.
Uma idéia até pode ser verdadeira, mas como não sabemos o que é a verdade em função do
pecado, os limites entre verdade e falsidade estão borrados. Portanto, não podemos dizer que,
por conhecermos a nossa ignorância isto nos revela a verdade de nossa condição, ou seja,
totalmente ignorante, pois, não temos garantia que a nossa idéia era falsa por não
conhecermos a verdade plenamente (afirmação teológica). Dizer que sempre erramos faria do
homem um ser que consegue discernir o erro da verdade e isto implica no conhecimento da
mesma. Não se trata de dizer que Adão não conhece a verdade, isto precisa ser bem
entendido, pois a verdade é sentida como um buraco no fundo da alma e não vista de forma
absoluta como antes do pecado.
Se antes da queda Adão tinha um espírito esclarecidíssimo em função da verdade que
iluminava suas decisões, agora a verdade é vista como um vazio e isto que faz seu drama,
pois, se fosse somente a certeza da falsidade, esta faria de Adão um sábio. Como este buraco
se faz presente pela queda, podemos dizer que, na visão do Pascal, a verdade no homem é um
abismo do tamanho de Deus. Esta metáfora nos ajuda a entender que a verdade é sentida
como ausência, como resquício vago de uma natureza santa que foi corrompida, como algo
colocado em um lugar onde não podemos alcançar somente com nossas forças. Desta
maneira, o homem é um ser isolado da verdade e da falsidade em função do pecado, este
isolamento chamamos de contingência. Portanto, sustentamos a hipótese que a contingência
epistemológica em Pascal, o desconhecimento da verdade absoluta e da falsidade, é uma
conseqüência da queda adâmica. Assim, vejamos a análise do comentador Luiz Felipe Pondé
acerca da relação que sustentamos entre a queda e a contingência.
abril de 1648, Pascal e Jacqueline redigem uma carta para Gilberte fazendo um esboço sobre a perfeição cristã.
No último parágrafo do documento é sublinhado, entre parênteses, aquilo que podemos entender como pecado:
“[...] que é o verdadeiro nada, porque é contrário a Deus, que é o verdadeiro ser [...].”. (Blaise PASCAL &
Jacqueline PASCAL, Lettre de Pascal et as soeur Jacqueline a Mme Perier, leur soeur. p. 273. In: Blaise
PASCAL, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 272 – 273). Não se trata de uma
afirmação ontológica, mas espiritual: o homem depois do pecado faz de seu ser criado por Deus um nada, ou
seja, totalmente contrário a Deus que é ser em sua plenitude. Desta maneira, Pascal quer mostrar a distância
infinitamente infinita que separa Deus e o homem depois da queda. (cf. Henri GOUHIER, Blaise Pascal:
conversão e apologética, p. 50 – 51).
136
A presença da contingência foi revelada como uma conseqüência direta da
Queda, uma espécie de cegueira cognitiva, assim como uma demanda sobre
nossas virtudes espirituais.484
Pondé partilha da idéia de que a contingência, para Pascal, é a característica que marca
a razão humana depois da queda de Adão. A razão, esclarecida (plena de luz) antes da queda –
o que traz consigo a idéia de uma razão sem mácula e iluminada – agora encontra-se em “uma
espécie de cegueira cognitiva”. Mas cegueira de qual conhecimento Pondé faz referência?
Recorremos à outra obra de Pondé para verificar sua concepção do conceito: “Contingência é
por definição falência de natureza enquanto necessidade – ou ausência de natureza.”.485 É no
conceito de natureza que estão ancorados o conhecimento absoluto da verdade, pois, era desta
maneira que o termo era usado no século XVII. Conhecer a natureza é conhecer a verdade
absoluta, ou seja, que transcende todos os contextos. Sabemos que se Pascal afirma o
conhecimento da cegueira – obscuridade, ignorância, trevas –, é porque conheceu que um dia
houve luz, todavia, esta luz é sentida como um resquício vago no fundo da alma: afirmação
teológica que tem desdobramentos epistemológicos. A cegueira que se refere Pondé diz
respeito a incapacidade de Adão depois da queda de discernir o verdadeiro do falso – ausência
de natureza –, isto é suficiente para que, dentro de qualquer raciocínio, o homem desconheça
as marcas da verdade e da falsidade, desta maneira, o conhecimento torna-se cego – sem
parâmetros ou referências486 –, ou seja, contingente. Sustentamos, assim como o comentador
Pondé, que tal desdobramento na obra de Pascal tem como fonte a teologia e, sendo assim,
trabalhar o conceito de contingência em Pascal negando que este tem origem teológica
pareceria reducionista. Para nossa pesquisa há uma relação entre a teologia da graça de Pascal
e o conceito de contingência que descrevemos acima, desta forma, fazer-se-ia necessário
salientar que trabalharemos tal conceito deixando o leitor de sobreaviso que o mesmo possui
uma raiz de profundidade teológica.
484
Luiz Felipe PONDÉ, Conhecimento na Desgraça: ensaio sobre epistemologia pascaliana, São Paulo: Edusp,
2004, p. 34.
485
Idem, O Homem insuficiente, p. 162.
486
“Não há princípio único de inteligibilidade, logo, não há uma grade única de referências e demonstração da
verdade.”. (Ibid., p. 169). A ausência de uma univocidade é mencionada a partir da diversidade de grades de
referências – métodos –, estas tornam-se motivo de confusão. O método a ser usado para abordar determinado
objeto transforma as conclusões que tiramos do mesmo. Não há o método apropriado, o que encontramos é uma
diversidade deles. A diversidade de conclusões provenientes das possíveis escolhas metodológicas faz do
conhecimento contingente. A contingência se estabiliza no processo cognitivo ante a indeterminação de escolha
do sujeito das possíveis formas de abordagem, ou métodos possíveis de escolha. Esta escolha, para Pascal, é
sempre pragmática.
137
Tal raiz teológica do conceito de contingência não é mencionada por outra
comentadora que trabalharemos em nossa pesquisa. Estamos falando de Catherine Chevalley,
autora do livro Pascal, contingence et probabilités. Nesta obra a autora tenta relacionar a
noção de probalilidade presente na matemática e na filosofia, sendo que o objetivo do livro é
mostrar que foi Pascal, em sua “espistemologia anticartesiana”487, o pioneiro a formular uma
filosofia do probabilismo. Não temos como objetivo entrar nos meandros deste objetivo
postulada pela autora em questão, nem mesmo ressaltar de maneira mais profunda as
controvérsias entre Pascal e Descartes por ela trabalhada, todavia, sabemos que a noção de
probabilismo não difere daquilo que chamamos de contingência, logo, tal obra será de grande
valia para tentarmos analisar como Pascal concebe sua epistemologia. Chevalley interpreta
Pascal como um anti-metafísico, como alguém que não está preocupado com o conhecimento
absoluto e verdadeiro das coisas. “Ele (Pascal) desobstrui a discussão da tarefa da razão de
subordinação total à idéia de uma legalidade universal e necessária da Natureza, no momento
mesmo onde Descartes orienta toda a filosofia para esta via.”.488 Pascal é um pensador que
rema contra a corrente. Se Descartes tem a pretensão de um saber universal, coerente, sem
dúvidas, claro e distinto, ou seja, um saber capaz de permear todas as ciências fazendo brotar
a verdade absoluta daquilo que se pesquisa – mathesis universalis –, Pascal, na leitura de
Chevalley, concebe a natureza como um nome, assim como o conceito de necessidade.
O homem somente pode conhecer aquilo pelo qual ele tem relação, mas
mesmo isto, ele só conhece através do filtro do seu corpo. Enfim, colocando
que a Natureza e a Necessidade somente são nomes, Pascal acaba de se opor à
toda empreitada que consistiria de fundamentar corretamente a certeza do
conhecimento.489
As flutuações de critério permeiam a fisiologia humana, ou seja, para Pascal o corpo é
um contexto, uma espécie de “cachot”490 onde nos encontramos alojados e que enlanguesce o
conhecimento. O homem é visto por Pascal como ser composto de corpo e alma, desta
maneira, conhecer o homem implica em conhecer a relação do corpo com a alma, relação esta
que é incompreensível. Como corpo e alma – “[...] duas naturezas opostas e de gêneros
487
Catherine CHEVALLEY, Pascal, contingence et probabilités, p. 8.
Ibid., p. 112.
489
Ibid., p. 44.
490
Blaise PASCAL, Pensées, Laf. 199, Bru. 72, p. 526. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma.
Paris: Seuil, 1963, p. 493 – 641.
488
138
diversos [...]”491 – podem estar unidos? Esta mistura é tão radical, que se torna impossível
separar a alma do corpo para poder analisar separadamente cada um destes objetos. Se, para
Descartes, a composição do homem não destrói a possibilidade de conhecer o simples, já para
Pascal, a “mistura” é motivo de confusão.492 A composição humana torna todo saber
antropocêntrico; a composição pareceria influenciar de tal maneira o processo cognitivo que
torna-se impossível conhecer de forma evidente – objetiva493 – as coisas. Como poderia um
ser composto conhecer as coisas simples? Porém, por sermos compostos poderíamos conhecer
as coisas compostas? Não para Pascal: precisaríamos saber o que é cada uma das partes que
nos compõem e, depois de tal feito, verificar a relação que há com o todo.494 O homem é visto
como “[...] incapaz de saber com certeza e de ignorar de modo absoluto”495 e isto que o
caracteriza como “ser do meio”496, ou seja, vacilante entre a certeza e a ignorância. Este ponto
ilustra a contingência na qual a criatura está imersa. Desta maneira, qualquer mudança
fisiológica como uma doença poderia trazer uma nova concepção de mundo e deslocar o
conhecimento criando uma nova concepção de natureza e necessidade. Este caráter mutável
da natureza e da necessidade na obra de Pascal faz delas somente nomes. Aquilo que
chamamos natureza Pascal contempla como acaso, já o nome necessidade é substituído pela
idéia probabilística da contingência. Pascal, até onde nossa pesquisa pode aprofundar-se, usa
o conceito de contingência somente uma vez em uma carta endereçada l`Académie Parisiense,
na qual ele menciona suas descobertas sobre as regras dos partidos.497 “Com efeito, os
resultados de maneira ambíguos são justamente atribuídos à contingência fortuita antes que à
necessidade natural.”.498 A ambigüidade é marca da contingência e se opõe à necessidade,
esta porém, vinculada à idéia de natureza e essência das coisas. O conhecimento da essência é
algo que Pascal não simpatiza, destaca Chevalley: “O conhecimento é sempre, em Pascal, um
conhecimento das relações e analogia, e não um conhecimento da essência ou da natureza das
coisas.”.499 As condições iniciais para o conhecimento são fatores importantes para analisar a
relação que há entre o objeto do conhecimento e o conhecedor. O homem, para Pascal,
491
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85.
“Em vez de receber as idéias dessas coisas puras, nós as tingimos com nossas qualidades e impregnamos o
nosso ser composto (de) todas as coisas simples que contemplamos.”. (Catherine CHEVALLEY, Pascal,
contingence et probabilités, p. 85). Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85.
493
Barbara Herrnstein SMITH, Crença e resistência: a dinâmica da controvérsia intelectual contemporânea.
trad. Maria Elisa Marchini Sayeg. São Paulo: Unesp, 2002, p. 31 e 37. Sobre a definição clássica de objetividade.
494
Cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85-86.
495
Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 83.
496
Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 80
497
Ver nota 365 do primeiro capítulo.
498
Blaise PASCAL, Adresse à l`Académie Parisiense, p. 102. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis
Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 101 – 103.
492
139
visualiza o objeto como se estivesse imerso em uma nuvem que impede uma visão pura e
evidente. A nuvem pode ser entendida como todo contexto que envolve a relação entre objeto
e pesquisador. Já que o contexto muda de pesquisador para pesquisador – na medida em que
não ocupamos os mesmos corpos, as mesmas épocas e mesmas visões de mundo – Pascal
descarta qualquer conhecimento da natureza das coisas e de sua essência, ou seja, um
conhecimento claro e distinto como almeja Descartes.
Portanto, se não conhecemos as coisas com evidência, isto implica em dizer que
qualquer saber é válido? Chevalley não partilha desta idéia. “Já que todo saber é contingente,
a ambição de agarrar o objeto é destituída de sentido. Porém, o fato de que todo saber seja
contingente não implica que todas as proposições sejam equivalentes.”.500 Mergulhar o
conhecimento na contingência não anula a possibilidade de conhecer, mas leva em conta as
possibilidades e condições do conhecimento. Dentro de um determinado contexto Pascal tenta
verificar a relação entre as condições iniciais e a coerência das conclusões, entretanto, o que é
radicalmente vetado por Pascal é o conhecimento da verdade absoluta de um determinado
empreendimento. Mas tal impossibilidade vale para Deus também? Vejamos como Chevalley
analisa este ponto. “Deus não tem nenhuma relação com o homem, ele não pode sustentar
nenhum discurso sobre ele, e no mundo humano a contingência está por toda parte, ao mesmo
tempo que na ordem do conhecimento e na política e moral.” 501 Chevalley faz esta afirmação
a partir da física de Pascal. Deus não é objeto da física como é para Descartes. Pascal critica
Descartes por fazer de Deus sustento de um sistema físico-mecanicista. Para Pascal o discurso
sobre Deus está fadado a problemas de linguagem tão radicais que são capazes de trazer uma
enorme confusão. Deus é objeto do coração e o homem deve se submeter ao oásis das
sagradas Escrituras. Pascal acredita que a teologia deve ser o discurso de Deus sobre Deus. Só
Deus fala bem de Deus.502 O mundo é o local da contingência, desta maneira, o homem –
criatura mundana – é incapaz de submeter Deus à linguagem, ou seja, à linguagem não toca a
Divindade.503 Percebemos que a contingência é analisada por Chevalley dentro da
epistemologia tentando entender as possibilidades de conhecimento e como dar-se-ia este
processo. Ela afirma que o conceito contingência pode ser estendido para a política e moral,
mas não é objetivo de seu livro aprofundar-se neste tema: no capítulo III de nossa pesquisa
499
Catherine CHEVALLEY, Pascal, contingence et probabilités, p. 68.
Ibid., p. 112.
501
Ibid., p. 112.
502
Cf. Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 172.
503
“O homem não poderia por si mesmo conhecer Deus, a linguagem humana está inapta para designar Deus.
Desta maneira, este escapa radicalmente ao pensamento humano.”. (Ibid., p. 160). A linguagem não é um
500
140
abordaremos alguns aspectos da política e da moral que estão presentes no fragmento 44
sobre o conceito imaginação, nosso objeto de estudo no próximo capítulo. Entretanto, a autora
Chevalley nos ajuda a conceder maior rigor àquilo que chamamos de contingência, sempre
lembrando ao leitor que para nossa pesquisa o conceito tem origem teológica. O pecado de
Adão é a pedra angular da contingência no mundo. Desta maneira, vejamos o que teólogo
francês tem a nos dizer sobre este atavismo do pecado difusor da contingência.
2.1 – O atavismo do pecado: a contingência afeta a todos os homens.
Pascal destaca que o pecado adâmico é transmitido para toda posteridade de Adão.
Vejamos.
Este pecado passou de Adão a toda sua posteridade – que foi corrompida com
ele como um fruto saindo de uma malvada semente –, assim, todos os homens
saídos de Adão nascem na ignorância, na concupiscência, culpados do pecado
de Adão e dignos de morte eterna.504
O pecado de Adão é transmitido a toda posteridade, a todos os homens, mulheres,
crianças e toda criação. A queda causa efeito em todo cosmos. Se a fonte é suja, o rio é sujo.
A culpa do pecado adâmico corrompe não somente Adão, mas todos seus descendentes. O
pecado pareceria ser um traço, um componente, um ingrediente, que constitui toda
humanidade depois da queda.505 Todos os homens estão na “ignorância”, ou seja, vivem a
mesma situação contingente de Adão. Ele é o modelo de homem-pecador mais conhecido da
humanidade. Todos estão condenados a imitar Adão e viver na gravidade do pecado. A
“concupiscência” traduz o desejo humano de ser mais do que Deus ou igual a Ele e, desta
forma, este desejo torna-se um vício repetido dentro da mecânica concupiscente do estímulo e
do deleite que fecham o homem dentro de uma cadeia pecaminosa, uma espécie de rua sem
saída, ou, para melhor esclarecer, a cobra comendo o próprio rabo. Mas somente Adão tem
culpa de todo este drama cósmico? Não para Pascal, todos pecaram em Adão, todos são
instrumento capaz de apreender a Deus, pois este estaria além da rede de referenciais lingüísticos que
conhecemos.
504
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317.
505
Este caráter claro-escuro que permeia a antropologia teológica de Pascal, uma herança de Santo Agostinho,
não contradiz a antropologia teológica dos maniqueus quanto ao mal erradicável, porém, com uma diferença:
para Pascal, na esteira de Santo Agostinho, a graça é capaz de resgatar o homem do mal concedendo a salvação
aos predestinados, o que faz toda diferença.
141
culpados junto com ele e “dignos de morte eterna.”. Culpa infinita para desobediência tão
horrenda. Tal desobediência é tão grande que nem mesmo a morte a qual o homem está
condenado poderia servir de parâmetro para nos auxiliar a entender qual foi o tamanho do
pecado de Adão. Desta maneira, diante da corrupção atávica de toda humanidade causando
tamanha desproporcionalidade entre o homem e Deus506 e dificultando para entendermos o
tamanho do pecado humano, Pascal irá comparar o tamanho do ultraje com a grandeza da
graça, algo que veremos a no decorrer deste capítulo.507 Todavia, neste momento, recorremos
ao fragmento 431 dos Pensamentos no qual Pascal faz uma análise do pecado original e
algumas de suas conseqüências. Tais conseqüências que pretendemos sublinhar agora
apresenta-se como mistérios.
2.2 – Primeiro mistério: o estado glorioso de Adão.
No fragmento 431 dos Pensamentos encontramos os três primeiros mistérios
506
“A unidade acrescentada ao infinito não o aumenta em nada, não mais do que um pé a uma medida infinita; o
finito se aniquila na presença do infinito e se torna um puro nada. Assim o nosso espírito diante de Deus, assim a
nossa justiça diante da justiça divina. Não há tão grande desproporção entre nossa justiça e a de Deus quanto
entre a unidade e ao infinito.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 418, Bru 233, p. 158). Como Pascal partilha
da idéia de que o coração não é tocado pelos raciocínios e só cabe a Deus esta dádiva, ele tenta “encurtar” o
caminho do futuro convertido (talvez convertido) na medida em que oferece uma explicação racional – porque
os matemáticos são os representantes da 2ª ordem na pessoa de Arquimedes – para salientar a desproporção entre
o homem e Deus. A transposição é feita pela matemática. Um número acrescido ao infinito não muda em nada o
infinito, assim como qualquer medida acrescida a uma medida infinita. Logo depois, Pascal apresenta a
comparação entre o homem e Deus pelo viés da justiça, ou seja, há uma desproporção tão grande entre nossa
justiça e a de Deus que se torna impossível tal comparação. Este ponto do fragmento 418 parece fazer um
pequeno resumo de toda desproporcionalidade entre o homem e Deus. Todavia, outros pontos de sua obra
parecem esclarecer a mesma questão. “A distância infinita entre os corpos e os espíritos figuram a distância
infinitamente mais infinita entre os espíritos e a caridade, porque esta é sobrenatural.”. (Ibid., Laf. 308, Bru 793,
p. 124). O fragmento 308 fala sobre a relação entre as três ordens – corpo, espírito e caridade – e mostrando a
diferença entre elas. Pascal ressalta que há uma infinita distância entre a ordem dos corpos e do espírito, pois
“[...] de todos os corpos juntos não poderia conseguir um pensamentozinho.”. (Ibid., Laf. 308, Bru 793, p. 124).
O “pensamento” pertence a uma outra ordem – do espírito –, todavia, “[...] todas as produções não valem o
menor movimento de caridade.”. (Ibid., Laf. 308, Bru 793, p. 124). A caridade – onde se manifesta o amor de
Deus – ocupa o cume desta hierarquia, logo, “[...] de todos os corpos e espíritos não se poderia tirar um
movimento de verdadeira caridade, isto é impossível, e de uma outra ordem sobrenatural.”. (Ibid., Laf. 308, Bru
793, p. 124). A distância entre corpo e espírito é figurada pelo infinito, já a distância entre o espírito e a caridade
é figurada por dois infinitos que se sobrepõem. Pascal usa de uma comparação mais tangível aos nossos olhos –
através da matemática – e a transpõe para mostrar a desproporção entre o homem e Deus. Jean Mesnard trabalha
em seu artigo Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées dois fragmentos dos Pensamentos (Laf.
308, Bru 793 e Laf. 933, Bru 460) destinados às ordens. Nele ressalta outra transposição matemática para fazer
saltar a desproporção entre o homem e Deus. Um ponto, que é caracterizado por não ter nenhuma largura, não
causa nenhuma mudança na linha quando nela é acrescentado. Uma linha, que não tem espessura, quando
acrescentada a uma plano não produz nenhuma mudança, assim como um plano quando acrescido a um sólido
em nada interfere. Desta maneira, a hierarquia entre as ordens é estabelecida de maneira rigorosa e precisa. (cf.
Jean MESNARD, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 34 In: Lane M. HELLER & Ian M.
RICHMOND (orgs), Pascal – Thématique des Pensées. Paris: J. Vrin, 1998, p. 29 – 55).
142
Não concebemos nem o estado glorioso de Adão, nem a natureza do seu
pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas que
aconteceram no estado de uma natureza totalmente diferente da nossa e que
ultrapassam o estado de nossa capacidade presente.
É inútil sabermos dessas coisas para sair de tudo isso; e tudo que nos importa
conhecer é que somos miseráveis, corruptos, separados de Deus, mas
resgatados por Jesus Cristo; e é disso que temos provas admiráveis sobre a
terra.508
O estado glorioso de Adão nos é desconhecido, desta maneira, o homem não conhece
a si mesmo, ou seja, o seu estado verdadeiro de homem. Ele não pode dizer nem o que é o
homem nem o que ele não é, ficando sob a tutela da contingência qualquer afirmação ou
negação que se levante. A isosthenéia509 seria a “melhor” resposta, ou seja, a resposta é dada
sob o olhar do provável, da contingência. O homem, estando desprovido de uma resposta
satisfatória sobre si mesmo, é visto, na ótica de Pascal, como um ser exilado de si mesmo. A
procura de si está fadada ao fracasso510, todavia, a procura é sinal de que existe resposta,
porém, fora do alcance meramente humano. O pecado de Adão corrompeu toda humanidade e
solapou qualquer possibilidade de resposta perene – não contingente – dentro das reflexões
humanas. O estado glorioso de Adão, no qual se encontra a resposta sobre quem é o homem,
torna-se um mistério511 insondável e o homem como um ser em busca do santo graal, ou seja,
507
Ver item 2.6 deste capítulo.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 431, Bru 506, p. 174 – 175; grifo meu.
509
É um termo grego usado pelos céticos para relativizar dois raciocínios em confronto de tal maneira que a
razão não teria nenhum motivo para pender a nenhum dos lados. Usa-se também o termo eqüipolência para
qualificar tal ocasião. Em suma, a isosthenéia diz respeito a indecisão em meio à argumentos dogmáticos que
não são evidentes e estão em conflito. (cf. Renato LESSA, Veneno Pirrônico: Ensaios sobre ceticismo, p. 34).
510
“É em vão, ó homens, que buscais em vós mesmos os remédios para vossas misérias. Todas as vossas luzes
não podem levar a outra coisa que não seja conhecer que não é em vós mesmos que encontrareis a verdade nem
o bem.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 149, Bru 430, p. 63). O resposta do homem não está no homem,
mas ultrapassa suas limitações. Descrever o biológico não explica tudo que compõe o homem, nele encontramos
marcas do sobrenatural e é a partir destas que a resposta poderá fazer sentido. Entretanto, ressalta o comentador
Pondé, que a miséria humana não deve ser polarizada como única prerrogativa capaz de envolver o homem.
“Não devemos, todavia, assimilar conceitualmente a condição de criatura à miséria, já que, ainda que seja
criatura, o homem tem uma vocação sobrenatural: não confundamos condição com vocação, nem tão pouco
finitude com destino teleológico do homem.”. (Luiz Felipe PONDÉ, O Homem insuficiente, p. 113). Deixar o
homem sobre a gravidade do pecado, este porém, absolutamente vinculado à miséria, é solapar a capacidade da
graça de regenerar a natureza concupiscente. O homem é, para Pascal, um ser teleológicamente destinado a
Deus, desde que Ele o queira. Esta afirmação de Pondé quanto ao telos do homem está de acordo com Mesnard:
“O homem corrompido desvia-se necessariamente de seu fim sobrenatural que ele não pode claramente
perceber.”. (Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 597)
511
“No século XVII, “mistério” e “secreto” são indissociáveis, ponto essencial da perspectiva de Pascal para o
qual Deus se esconde “até” na Eucaristia; mistério além disso, é sinônimo de “sacramento” (...), mas na língua
latina, de onde esta palavra nos é vinda, sacramento nos quer dizer muitas vezes coisa alta, secreta e
impenetrável.”. (Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 42). Pela sua sacralidade, o mistério
508
143
sempre contingente quanto às possibilidade encontrá-lo e, caso encontre, de reconhecê-lo.
Portanto, diante do exílio de seu ser verdadeiro, este porém, apresentando-se como mistério
na antropologia teológica de Pascal, vejamos como Pascal entende o segundo mistério.
2.3 – Segundo mistério: a natureza do pecado de Adão.
Se o estado glorioso de Adão é obscuro, isto não acontece naquilo que diz respeito ao
pecado de Adão. Sabemos qual foi seu pecado, ou seja, sua soberba em querer ser igual ou
mais do que Deus, mas qual a “natureza de seu pecado”, ou o porquê, o motivo daquela
disposição momentânea512 – como ressalta Mesnard – do pecado de Adão? Ele tinha uma
razão esclarecidíssima, contemplava Deus, vivia no paraíso, tinha tudo que lhe era necessário
para viver uma vida santa, justa e feliz, sabia da grandeza de Deus, de Seu poder e de Seu
mandamento, desta maneira, volta a pergunta: O que passou na cabeça de Adão antes do
pecado e que, conseqüentemente, o fez pecar? Todas as respostas parecem insuficientes e
misteriosas para Pascal: a contingência envolve tal fato. Como Adão presumiu poder ser mais
ou igual a Deus? Será que ele realmente acreditava em tal conquista? As perguntas aumentam
em maiores proporções que as respostas, todavia, tal acontecimento pareceria ser mais um
mistério que abraça o tema do pecado original e lança todas nossas respostas a uma floresta
repleta de contingência. Portanto, vejamos agora o que Pascal concebe como o terceiro
mistério.
assume o significado de separado, distinto, ou seja sanctus. Este conceito de santidade revela o abismo entre
Deus e o homem, manifestando a incapacidade de compreendê-lo e penetrá-lo. A submissão pela fé é a melhor
saída, todavia, isto não implica em uma atitude absurda do ponto de vista da razão, mas é a fé satisfazendo a
inteligência, sustenta Denise: “O recurso instrumental às provas encontra sua justificação na idéia de que a fé, na
ordem do coração, satisfaz a inteligência.”. (Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 45).
Mesnard também sublinha o mistério relacionando o conceito como algo que aponta o sentido místico: “[...] nos
parece oportuno de considerar, inicialmente, a mística como a ascensão ao mistério.”. (Jean MESNARD, Les
Pensées de Pascal, p. 332 – 333). O mistério revela a incapacidade humana de conhecer Deus somente pelas vias
racionais, sendo que tal conhecimento é concebido pela via do amor, ou seja, de um ser universal que deve ser
“venerado” e “amado” (cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 12, Bru 187, p. 5) para ser conhecido. Ainda
Mesnard afirma: “Então, nos parece impossível de não descobrir na obra de Pascal um pensamento místico.”.
(Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal. p. 333). Para Mesnard, a mística é um dos modos pelo qual o
pensamento de Pascal apresenta-se: “O Deus escondido só se revela plenamente quando ele está presente
misticamente dentro da alma pela graça.”. (Ibid., p. 359). É Deus quem toma a iniciativa dentro do processo
salvífico, tal procedimento confere conseqüências epistemológicas, já que a fé, para Pascal, não desqualifica a
razão, mas supera. Desta maneira, a fé responde às questões que a razão impõe, visto que a razão não consegue
responder. Portanto, o homem submete-se ao mistério pela fé e compreende tal dádiva de Deus pela razão.
Pascal, neste raciocínio é totalmente agostiniano.
512
Idem, Essai sur la signification des Écrits, p. 696
144
2.4 – Terceiro mistério: a transmissão do pecado.
Diante do mistério em saber o que é o homem e o motivo do pecado de Adão, outro
mistério transparece a nossos olhos: como se dá a transmissão do pecado? Como o pecado de
um só homem pode corromper toda a humanidade e, o que parece ferir ainda mais nossa
razão, como tal pecado é capaz de corromper toda a natureza a ponto de “[...] que nada que
exista na natureza seja capaz de ocupar o seu lugar.”513? E, já que a transmissão acontece,
como ela acontece?514 Desta maneira, Pascal declara que a transmissão do pecado é um
513
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 148, Bru. 425, p. 60.
Será que a genética, marca da ciência médica moderna, poderia dar uma resposta a Pascal, sustentando que o
pecado de Adão é transmitido pelo DNA? Não é objeto de nossa pesquisa responder esta pergunta, mesmo
porque um enunciado como este pareceria fora das possibilidades de falseabilidade. Sabemos também que a
ciência moderna não trabalharia com conceitos teológicos como pecado, pois isto implica em prerrogativas
morais que, para a biologia moderna, os gens não se importam. O etólogo Richard Dawkins descreve o
comportamento animal destituído de qualquer prerrogativa moral que nos impulsionaria a chamar tais selvagens
de “sanguinários” Podemos verificar a ação da natureza de maneira empírica a partir de suas análises. Ele relata
uma série de comportamentos selvagens que nos traria luz ao efeito do pecado de Adão: o louva-a-deus mostrase como um eficiente canibal, já que a fêmea no momento do seu acasalamento espera uma boa oportunidade
para abocanhar a cabeça do macho. Depois disso, a copulação pareceria ter maior desenvoltura, pois a cabeça é
sede de alguns centros nervosos inibidores e, quando retirada, aumenta o desempenho do macho até ele morrer.
Algumas gaivotas, com o intuito de não gastar energia na busca de alimentos e, desta forma, não abandonar seu
ninho desprotegido, devoram os filhotes das vizinhas que foram buscar alimentos, desta maneira, elas
multiplicam-se mais rapidamente que as gaivotas “honestas”. Com o objetivo de se alimentar, os pingüins
empurram-se uns aos outros nas margens do mar, desta maneira, com a queda de algum(s), todos poderão saber
se há focas submersas prontas para os devorá-los. (cf. Richard DAWKINS, O gene egoísta. trad. Geraldo H. M.
Florsheim. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001, p. 25). Com estes exemplos poderíamos supor, partindo da rígida
moral cristã jansenista, que os procedimentos da natureza depois da queda são “sangrentos” e, desta maneira,
submetidos ao acaso. A natureza é impiedosa com a inocente gaivota que constrói seu ninho ao lado da “gaivotacanibal”, aquela porém, sofrerá retaliação por seu ato. Pascal descreve o caráter imoral do homem – por causa do
pecado de Adão – e estende para toda natureza trazendo o acaso para o seio da reflexão: “Só ele é seu verdadeiro
bem. E desde que o abandonou, é uma coisa estranha que nada exista na natureza que seja capaz de ocupar o seu
lugar, astros, céu, terra, elementos, plantas, repolhos, alhos-porós, animais, insetos, novilhos, cobras, febre,
peste, guerra, fome, vícios, adultério, incesto.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 148, Bru. 425, p. 60 – 61).
As coisas não ocupam mais o “seu lugar”, ou seja, perderam seu primeiro estado de natureza e foram também
corrompidas pelo pecado de Adão. O lugar das coisas – sua natureza – está tão distante quanto o homem de si
mesmo. Esta seria a teodicéia de Pascal naquilo que diz respeito ao estado das coisas no tempo presente. O
homem do século XVII tem o mesmo olhar sobre a natureza que o homem do século XIII, ou seja, procura
decifrar seus lugares e funções no universo. Mas o homem do século XVII, de maneira especial, Pascal, não
encontra resposta em suas investidas. A natureza tem sentido ontológico na obra de Pascal e torna-se um segredo
para o homem caído. (cf., Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les
Pensées de Pascal, p. 65). Nossa pesquisa não tem o objetivo de fazer comparações entre a filosofia de Pascal e
as novas correntes darvinistas. Todavia, a idéia de acaso sustentada por neo-darwinistas como Richard Dawins,
analisada sobre a luz da doutrina do pecado original de Pascal, seria vista como conseqüência do pecado
adâmico. O acaso, tanto para Pascal e neo-darwinistas, é um componente que permeia todas as coisas, mas, se
para os neo-darwinistas a origem – se é que há uma origem – do acaso é irrelevante, para Pascal a origem é
teológica: o pecado original. Para saber sobre a concepção de acaso na perspectiva filosófica em Pascal ver
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 68, Bru. 205, p. 25. Para saber mais sobre o assunto ver Andrei Venturini
MARTINS & Gilberto Cabral da SILVA, O pecado de Pascal e o acaso de Darwin. Revista Último Andar. São
Paulo: Educ, n. 10, p. 125 – 144, jun., 2004. Vale salientar que depois de Pascal, com a queda do vocabulário
teológico, as respostas as antigas questões sobre o livre-arbítrio, a responsabilidade de uma ação, a origem do
mal é ampliada. “Depois dele, o debate não cessará de ampliar-se. Serão encontradas outras formas de
514
145
mistério insondável, portanto, é a contingência que permeia o homem quanto ao mal que
todos cometem depois de nascer, sendo contingente o suficiente para fazer deste mistério algo
insondável.
2.5 – Panorama dos três mistérios.
Desta maneira, percebemos que Pascal postula três mistérios no 431 dos Pensamentos,
estes porém, imersos na contingência: o primeiro, que diz respeito ao estado glorioso de
Adão; o segundo, o porque ou a “natureza” de seu pecado; o terceiro, no qual ele indaga-se
sobre o modo pelo qual se deu a transmissão do pecado. Entretanto, mesmo respondendo a
todas estas perguntas, a situação do homem continuaria a mesma; Pascal ressalta que a
resposta destas não livra o homem de sua condição presente. Sabemos que, para Pascal, é a
graça regeneradora que garantiria a libertação do homem deste estado pós-queda. Todas as
tentativas humanas de responder estas perguntas cairiam em um mistério insondável, pois,
quando aconteceram tais fatos estávamos em um estado de natureza diferente do presente, de
modo que a “nossa capacidade” presente, ou seja, contingente, não permite estabilizar
nenhuma resposta que se obteve afirmativamente ou negativamente. Diante destes três
mistérios que envolvem nossa condição em função do pecado, vejamos se podemos medir
qual é a proporção do mesmo.
2.6 – Medindo a gravidade do pecado.
O homem, diante da mecânica concupiscente – alienação – na qual se encontra, não
consegue medir suficientemente o tamanho do pecado somente pela natureza, fazer-se-ia
necessário recorrer à teologia. Fazendo uma análise do pecado pela natureza empírica da
condição presente515, o homem é “miserável”, ou seja, amoral, violento, dependente, sofre
dependência. Outras fontes de liberdade. Filósofos, economistas, juristas, psicanalistas, geneticistas escreverão
milhares de páginas para convencer – convencer-se – de que todo homem, a qualquer instante, é livre para
escolher o curso que dará a sua vida, ou, ao contrário, para explicar que ele está submetido a outras injunções ou
determinismos que não são o julgamento e a vontade de Deus.”. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio
francês, p. 162 –163).
515
“Não é necessário visitar o mito da Queda para se perceber tal realidade, basta olhar ao redor e contemplar
nossa “miséria” cognitiva e noética, realidade absolutamente empírica: quem busca o conhecimento a partir do
campo de procedimentos elaborado pela reflexão epistemológica (isto é, quem se preocupa com a grade de
critérios que legitima sua condição de agente noético) é um exilado da certeza, seu idioma é o da dolorosa busca
das evidências (mal) compartilhadas.”. (Luiz Felipe PONDÉ, Em busca de uma cultura epistemológica, p. 12. In:
Faustino TEIXEIRA (org). A(s) ciências(s) da Religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São
Paulo: Paulinas, 2001). Para Pascal, a queda seria uma explicação da condição humana “miserável”, ou seja,
146
com a corrupção da matéria, doenças e por fim, com a morte; frente ao pecado, somos e
estamos separados de Deus, mas é o próprio Deus que vem em nosso socorro. Ele envia Jesus
Cristo para a salvação do homem. Desta maneira, a medida do nosso pecado é do tamanho da
misericórdia de Deus que envia seu Filho muito amado.
E o pecado de Adão transmitido à toda posteridade é tão grande que ainda que
não se possa conceber a grandeza, basta dizer que precisou, para expiá-lo, que
um Deus se encane e que sofra até a morte para fazer entender a grandeza do
mal o medindo pela grandeza do remédio.516
A graça que é concedida aos predestinados pela morte e ressurreição de Jesus Cristo
não somente descreve a gravidade do pecado, mas mostra que na sua grandeza salutar excede
o pecado e, conseqüentemente, ultrapassa-o. A finitude cósmica do pecado é superada pela
infinitude da graça. Dela temos provas firmes sobre a terra, diz Pascal. Mas quais seriam estas
provas? A escritura, os profetas, os santos, as bulas Papais, os antigos Padres e a Igreja. Para
Pascal, não há provas mais claras do que estas. Não vemos Deus na natureza, todavia, esta é
mais uma prova de Deus, pois Ele é um Deus absconditus. Não conseguir enxergá-Lo na
natureza é somente confirmar aquilo que a escritura nos diz.517 Desta maneira, a visão do
Deus absconditus pela escritura causa vertigem no cristão que, tocado pela grandeza da graça,
sente-se envergonhado frente a Deus pelos males que causou518. É o reconhecimento da
longe de Deus, mesmo frente aos diferentes mistérios que a envolvem. Na análise de Pondé, a queda não é um
ponto central e necessário para contemplar o estado falho (cognitivo, biológico – corrupção da matéria, doenças)
que o homem se encontra. Para evidenciar isto, Pondé chama atenção, focando seu olhar na epistemologia, de
maneira que, qualquer pesquisador sabe que a certeza e evidência das coisas é algo que estamos absolutamente
separados quando este foi bem treinado no crivo da epistemologia. Evidência e certeza é algo que estamos
absolutamente separados. Quando um pesquisador termina um trabalho e se pergunta: Falei tudo sobre meu
objeto? Se a resposta for sim, duvide.
516
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 314.
517
“Sendo Deus assim escondido, toda religião que não diz que Deus é escondido não é verdadeira, e toda
religião que não indica a razão disso não é instrutiva. A nossa faz tudo isso.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 242,
Bru. 585, p. 97). A religião cristã diz que Deus é um Deus absconditus, já que Ele não possui nenhum referencial
mundano que possa evidenciá-Lo senão com a prerrogativa básica da fé dada pela própria deidade. O que Pascal
considera evidencia de Deus? Jesus Cristo, os Profetas, a Sagrada Escritura, os Santos Padres e a Igreja, todavia,
sem a fé, vista por Pascal como um dom de Deus, não há possibilidade de reconhecê-lo. Desta maneira, a não
evidência de Deus fere a razão dos mais sábios e faz com que os mesmos abaixem sua vaidade e abram os braços
para o Criador. O caráter apologético dos Penssés talvez é visto por Pascal como uma forma de “encurtar o
caminho” até Deus, todavia a salvação é dádiva do Criador. Sobre a motivação de Pascal para compor uma obra
apologética em seu contexto jansenista no qual a fé é dádiva de Deus ver Henri GOUHIER, O sentido da
apologética, p. 155 – 181. In: Idem, Blaise Pascal: conversão e apologética. trad. Éricka Marie Itokazu e
Homero Santiago. São Paulo: Paulus, 2006.
518
“Mas a alma encontra mais amargura nos exercícios de piedade do que nas vaidades do mundo. De uma parte,
a presença dos objetos visíveis a toca mais do que a esperança dos invisíveis e, de outra, a solidez dos objetos
invisíveis a toca mais do que a vaidade dos visíveis. E assim a presença de uns e a solidez de outros disputam sua
afeição; e a vaidade de uns e a ausência de outros excitam sua aversão; de maneira que nasce na alma uma
147
miséria pela efusão da graça que se manifesta de maneira mais profunda na grandeza do amor
de Deus que envia seu filho amado para salvação do homem. Deus sofre na cruz as miséria
dos homens. A quem Deus recorrerá neste momento? A ninguém, Ele está só em um universo
surdo que não escuta o seu silêncio. O sentido da miséria humana é proporcional ao mistério
do sacrifício pascal cristão. Vejamos o comentário do filósofo Franklin Leopoldo e Silva do
texto de Pascal O mistério de Jesus519 no qual o comentador em questão destaca a medida ou
proporção do pecado humano:
Jamais esgotaremos o significado da miséria em toda a sua profundidade;
basta, para que se constate esta impossibilidade, observar que o resgate da
miséria humana exigiu que Deus se fizesse mais miserável que o homem. Em
que Cristo se rebaixou mais do que os homens? Não foi através de sofrimento
físico, tortura e morte na cruz. Foi através do sofrimento moral: a angústia
diante da morte, o sentimento de abandono, a distância dos homens e de Deus.
O paradoxo que está envolvido na descrição desta agonia supera a medida de
qualquer compreensão humana da dor: o Filho abandonado pelo Pai é Deus
abandonado por Deus.520
A miséria humana nunca é aquilatada totalmente. A profundidade de tal miséria é
proporcional a grandeza do amor de Deus que envia seu Filho para a salvação do homem.521
Este porém, ser exilado de si, desconhece o mal que compõe seu novo estado de natureza: a
concupiscência. A não percepção do mal que envolve a história condena o homem pela sua
ignorância à danação. Todavia, Cristo assume todas nossas misérias físicas e, como ressalta
Franklin Leopoldo e Silva, moral também. O mal físico sofrido por Deus é uma dor que
somente o próprio Deus poderá suportar, afirmará Pascal: “É um suplício vindo de mão não
humana mas toda poderosa, e é necessário ser todo-poderoso para suportá-lo.”.522 Deus sente
desordem e uma confusão que...”. (Blaise PASCAL, Sur la conversion du pecheur, p. 290). A alma sofre os
sacrilégios do processo de conversão. O pecado está cravado na alma, desta maneira, tal desprendimento é o
motivo da “confusão” que o convertido tem em seu novo caminho. Neste caminho o seu pecado é reconhecido e
a alma sente toda sua fragilidade. Todavia, nos Pensées, Pascal descreve o mal estar do homem em processo de
conversão na medida que conhece o seu pecado. “Se conhecesses os teus pecados desfalecerias.”. (Idem,
Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 378). Ver Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et
mystique dans Pensées de Pascal, p. 191.
519
Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 375 – 379.
520
Franklin Leopoldo e SILVA, O mediador e a solidão. Revista Cult. São Paulo: Editora 17, n. 64, p. 45, s.d.
521
“A gravidade da ofensa se mede pela dignidade do ofendido e não do ofensor: de acordo com tal princípio, a
humanidade, que pecou em Adão, estaria, de maneira inteiramente justa, porque por sua própria escolha,
destinada à danação.” (Idem, Condição trágica e liberdade, p. 101. In: Adauto NOVAES (org), O avesso da
liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 99 – 113).
522
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 375.
148
o peso de sua própria mão. Cristo sofre como um cordeiro para espiar as misérias do homem,
assim, santifica o sofrimento pelo seu sofrimento. Mas o suplício é sofrimento mortal: Cristo
morre como um cordeiro para espiar as miséria humanas, desta maneira, santifica a morte pela
sua morte. Sofrimento de cruz e morte: conseqüência da resposta de Deus às misérias
humanas. A gravidade do pecado tão impenetrável a nossa razão tristemente condenada à
contingência é iluminada, não na sua totalidade, pelo socorro do Pai. Mas o caráter dramático
deste paradoxo no qual Deus sofre o peso da mão de Deus vai além: “[...] a angústia diante da
morte, o sentimento de abandono, a distância dos homens e de Deus.”.523 Seus gritos se
misturam com suas lágrimas no Getsêmani: é a angústia diante da morte. “Minha alma está
triste até a morte.”.524 Não há consolo, há escuridão, dor, abandono: “Ele sofre essa dor e esse
abandono no horror da noite.”.525 Distante dos homens e o abandonado pelo Pai: Cristo está
só; “Jesus ficará em agonia até o fim do mundo.”.526 A dor moral trespassa a dor física:
Cristo, totalidade de ser, sofre as carências demasiadamente humanas divinamente. Portanto, é
o sofrimento que fará o humano ultrapassar aquilo que o faz demasiadamente humano, ou
seja, o pecado. Cristo com sua angústia santifica as angústias, com seu abandono santifica o
abandono e pela sua distância aproxima o homem do Pai. Cabe ao homem reconhecer pela
mediação do Filho a sua miséria: Deus envia seu único Filho para salvar o homem. Mas tal
dádiva não será concedida a todos, o que remete a discussão para o quarto mistério.
2.7 – Quarto mistério: a eleição de Deus dos predestinados.
Vivendo esta vertigem frente a percepção da grandeza do pecado, outro mistério se
impõe, seria o quarto mistério. Encontramo-lo nos Écrits sur la grace. Vejamos.
Todos os homens estão dentro desta massa corrompida igualmente dignos de
morte eterna e da cólera de Deus; Ele podia abandonar a todos sem
misericórdia para condenação.
E, entretanto, agradou a Deus escolher, eleger e discernir desta massa
igualmente corrompida – onde Ele só via maus méritos –, um número de
homens de todos os sexos, idades, condições, temperamentos, de todos os
países, de todos os tempos e, enfim, de todas as formas.
523
Franklin Leopoldo e SILVA, O mediador e a solidão, p. 45.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 376.
525
Ibid., Laf. 919, Bru. 553, p. 376.
526
Ibid., Laf. 919, Bru. 553, p. 376.
524
149
Que Deus discerniu seus eleitos com os outros por razões incognoscíveis aos
homens e aos anjos, por pura misericórdia sem nenhum mérito.527
Pascal inicia a citação declarando que o pecado de Adão outorga a toda humanidade
uma só sentença: todos são dignos de morte eterna. A cólera de Deus é absolutamente justa,
desta maneira, não há nenhuma mácula na bondade de Deus se Ele condenar a todos: Deus
continua sendo bom. O paradoxo entre Justiça e Misericórdia mais uma vez exsuda do texto:
mas como conciliar justiça e misericórdia? Se Deus condena justamente, onde fica a
misericórdia? Ele deixa de ser misericordioso ao condenar? Para Pascal não. A condenação
não fere a misericórdia. Se Deus abandonasse o homem, sua ação seria absolutamente justa e
sua misericórdia continuaria sendo sem fim. A contingência permeia o espírito humano em
suas investidas de compreender Deus conceitualmente. Os conceitos limitam Deus e fazem
dele objeto humano, desta maneira, Ele estaria fora das capacidades humanas de conceituar.
Deus torna-se um atributo do coração. Entretanto, sabemos que seria muito melhor
caracterizá-Lo como justo e misericordioso, apesar dos problemas conceituais, do que um
corrupto demiurgo injusto. Esta última alegação pareceria ferir muito mais a razão no
contexto teológico em que Pascal está inserido. O problema com os conceitos, nada mais é do
que mais um resquício de um pecado original capaz de corromper todo o universo, dele
advém uma crise cósmica, todavia, a mácula é incapaz de atingir a Deus. Entretanto, é a
reação de Deus em função do pecado adâmico que traduz o quarto mistério que queremos
sublinhar, ou seja, a predestinação.
Deus escolhe alguns homens para salvar, ou seja, predestina-os concedendo a graça
eficaz e, desta maneira, revela sua misericórdia. A massa de homens sendo inteiramente
corrompida e sem méritos somente é salva pela misericórdia de Deus, esta porém, concedida a
quem “agradou a Deus escolher”. Pascal relaciona uma gama de pessoas nas diferentes raças,
idades e tempos. Mas qual é o critério usado por Deus para a eleição? É neste ponto que se
encontra o quarto mistério. Este porém, também é mencionado por Mesnard em seu Essai sur
la signification des Écrits no momento em que o comentador fala da graça eficaz e da
predestinação, trazendo considerações epistemológicas que caracterizam a contingência que
permeia o instrumental cognitivo do homem. “Colocam acento sobre a profundidade
insondável do mistério de Deus e incluem além disso a idéia que, pelo pecado, a razão foi
corrompida e torna-se impotente e cega.”.528 A contingência apresenta-se na medida em que o
527
528
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 318.
Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 613.
150
homem desconhece como Deus faz a eleição. A Divindade é a causa da predestinação, não é a
razão humana a causa da mesma. Assim, afirmará Pondé acerca da predestinação: “Essa é a
razão pela qual a predestinação é contingente em termos racionais humanos [...]”.529 As razões
de Deus por ter escolhido a um e não a outro são absolutamente incognoscíveis e os homens
indignos de levantar qualquer credencial moral cobrando a decisão de Deus530: Deus salva
“[...] por pura misericórdia e sem nenhum mérito.”531 As razões, nem os anjos saberiam dizer.
A contingência é a marca daquilo que envolve a predestinação: a razão humana é incapaz de
esclarecer quais serão os critérios usados por Deus para a escolha dos eleitos.
3 – Os mistérios são traços da contingência.
Portanto, o pecado original, coroado por este quarto mistério que relacionamos em
nossa pesquisa, está ilhado pelo mistério, pois envolve acontecimentos relatados pelo viés
teológico que lançam o homem em um estado de contingência tal que as tentativas meramente
humanas de dar sentido àquilo que aparece como mistérios estão fadadas ao incerto. Se os
mistérios são pontos importantes para mostrar que o homem é um ser isolado da verdade e da
falsidade em função do pecado, ou seja, o conhecimento humano sobre si está imerso na
contingência, todavia, podemos dizer que é por causa da contingência que os mistérios
aparecem como tal, todavia, sem os mistérios, o homem seria ainda mais inexplicável. O
fragmento 131 dos Pensées traz luz sobre o caráter inexplicável e misterioso do pecado
original, tema do nosso capítulo.
Coisa espantosa, entretanto, é que o mistério mais distante do nosso
conhecimento, que é o da transmissão do pecado, seja algo sem o que não
podemos ter nenhum conhecimento sobre nós mesmos. Pois não há dúvida de
que não existe nada que choque mais a nossa razão do que dizer que o pecado
do primeiro homem tenha tornado culpados aqueles que, estando tão afastados
dessa origem, parecem incapazes de dele participar. Tal decorrência não nos
parece apenas impossível. Parece-nos mesmo muito injusta, pois existe acaso
mais contrário às regras da nossa miserável justiça do que condenar
eternamente uma criança incapaz de vontade por causa de um pecado de que
parece ter participado tão pouco, cometido que foi seis mil anos antes que ela
529
Luiz Felipe PONDÉ, Conhecimento na Desgraça: ensaio sobre epistemologia pascaliana, p. 31.
Cf. Ibid., p. 31. Pondé ressalta que, para Pascal, a predestinação é feita por Deus sem levar em conta as boas
ações humanas.
530
151
viesse a ser. Nada por certo nos choca mais do que esta doutrina. E no entanto,
sem este mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a
nós mesmos. O enredamento de nossa condição assume as suas implicações e
obras neste abismo. De maneira que o homem é mais inconcebível sem este
mistério do que este mistério é inconcebível para o homem.532
Pascal inicia a citação afirmando que não há nada que fere mais a nossa razão do que a
transmissão do pecado. Este é um mistério distante do nosso conhecimento, ou seja, Pascal
sabe que ele está mergulhado na contingência. Muitas respostas sobre a maneira que dar-se-ia
esta transmissão poderiam ser dadas, como a corrupção pelo social, ou a própria matéria
carregaria, de pai para filho, o pecado; mas cada uma delas ferem a nossa razão. Pois qual é a
relação entre o pecado de Adão e qualquer outra pessoa? Desta maneira, Pascal encontra dois
problemas. O primeiro diz respeito a relação que há entre o pecado de Adão e qualquer outro
ser humano; o segundo, se formula como uma conseqüência do primeiro, pois, se há uma
relação entre o pecado de Adão e a minha condição, como este pecado é transmitido. Relação
e transmissão são pontos cegos para a nossa razão que seria capaz de formular muitas
respostas para o porquê do mal, todavia, a teodicéia de Pascal é simples: o homem é causa do
pecado, logo, ele é causa do mal. Este motivo não parece contingente, todavia, a afirmação de
Pascal está dentro de um contexto teológico que tem a fé como sustento de suas alegações e,
deste forma, a graça auxilia o homem a se ater nas verdades de fé que acredita e mitigar um
pouco da contingência. Mas não totalmente. E para mostrar isso Pascal traz um novo cenário.
Uma criancinha, “incapaz de vontade”, tem culpa de um pecado que ela tenha participado tão
pouco? Um homem, tão distante de Adão, estaria contaminado? Mesmo aqueles nos quais a fé
é sustentáculo de suas afirmações sentiria sua razão ferida ao ver a ternura de uma criança
condenada por um pecado tão distânte. O pecado, que implica em um ato voluntário,
corrompe até a criança que aparentemente não tem vontade. Desta maneira, a doutrina da
predestinação fere a razão dos mais piedosos.
Mesnard ressalta que a predestinação não se trata somente de um mistério, mas um
segredo insondável. Desta maneira, ela não ressalta somente a incapacidade humana de
desvendar o mistério, mas o desejo de Deus em ocultar tal decisão.533 Portanto, a contingência
apresenta-se em meio as tentativas humanas de compreender aquilo que Deus ocultou e choca
a nossa razão. O segredo de Deus quanto à predestinação é o mistério que envolve a
531
532
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 318.
Idem, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 48.
152
espiritualidade cristã dos jansenistas. Mas e se a fé fosse descartada para descrevermos o
estado corrompido e pecaminoso do homem?
Para Pascal, aqueles que não concebem a fé como sustento para a explicação do mal, a
contingência apresenta-se de maneira muito maior na proliferação de doutrinas sobre a origem
do mesmo. Ele não relaciona as diferentes doutrinas sobre a origem do mal, mas menciona a
grande quantidade de explicações àquilo que chamamos de mal. “É preciso ter uma
extraordinária grandeza de alma para se chegar a ele, tanto quanto ao bem.”.534 Alcançar e
apreender aquilo que é o mal é tão difícil quanto apreender aquilo que chamamos bem. O que
é o mal é sempre uma resposta permeada pela contingência. “Existe uma infinidade deles.”.535
A contingência apresenta-se de maneira muito mais evidente fora da teologia, pois, nela, o fiel
poderá recorrer ao cânone das sagradas Escrituras: estas “[...] tem valor de fontes e
provas.”.536 Todavia, do ponto de vista da filosofia, a explicação teológica é mais uma dentre
muitas.
Desta maneira, o que diferencia a explicação teológica de Pascal das várias
explicações existentes? Não podemos esquecer que o teólogo francês está escrevendo uma
Apologia à Religião Cristã; nos Pensamentos, há formulações de raciocínios que se
apresentam de maneira simétrica a outros, dentre esta simetria está a teologia. No fragmento
131, Pascal mostra a simetria das doutrinas quando no começo do fragmento descreve a ação
dos dogmáticos e pirrônicos, todavia, dá o salto qualitativo em prol da teologia no final do
mesmo fragmento, na tentativa de persuadir o leitor537 que a teologia, mesmo cheia de
533
Cf. Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 611.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 526, Bru. 408, p. 241.
535
Ibid., Laf. 526, Bru. 408, p. 241. Nesta citação, Pascal se refere aos males, todavia, ele está convencido que
também há uma grande quantidade de bem nas diferentes doutrinas e filosofias que encontramos no mundo.
536
Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 615.
537
Ver Philippe SELIER, Imaginaire et Rhétorique, p. 115 – 135. In: Lane M. HELLER & Ian M. RICHMOND.
Pascal – Thématique des Pensées. Paris: J. Vrin, 1998. Neste artigo o autor descreve algumas das formas usadas
por Pascal no processo retórico nos Pensées e Provinciales. Vale destacar oito delas: a procura do descontínuo e
da fratura, na qual Pascal refuta e destrói previamente as possíveis objeções do adversário; privilegia uma grande
quantidade de figuras que os teóricos de seu tempo denunciam como excessiva; imitação dos profetas de Israel,
na figura de grandes denúncias, ameaças e profecias; uso das citações como chicotadas, sendo que muitas vezes
ela apresenta-se como uma arma; ironia e riso; matematização das imagens e dos aumentos; a disposição, na qual
deixava o descrente titubear em seus próprios sistemas filosóficos e de falsas religiões; a memória, preocupado
em escrever textos que fiquem impressos na memória do leitor. O “golpe de gênio” (Ibid., p. 115 – 135) da
Apologia pascaliana não é a invenção deste dispositivo retórico, mas a adaptação da sua visão de mundo a
organização do livro de Jó: nesta obra Pascal vê um personagem errar durante trinta capítulos até mergulhar na
incompreensão, “[...] para finalmente escutar, prostrado na poeira e com a mão na boca, a revelação da
Transcendência.”. (Ibid., p. 130). Vale mencionar que a retórica também toca a física de Pascal para o
comentador Luís Felipe Pondé. “Se para Descartes o cientista é alguém que conhece a verdade da natureza, para
Pascal ele é mais alguém que submete os homens às suas verdades (sobre a natureza). Daí Pascal estar tão
próximo da retórica.”. (Luiz Felipe PONDÉ, O Homem insuficiente, p. 164). Para Descartes conhecer é
compreender a natureza das coisas, ou seja, um conhecimento universal, unívoco, puro, objetivo e capaz de
manter sua objetividade em todos os contextos. Pascal, ao contrário, mostra-se um anti-metafísico. Sendo a
534
153
mistérios em sua explicação acerca da origem do mal pela transmissão do pecado, é muito
mais clara do que qualquer outra sem mistério. O homem é, para Pascal, muito mais
compreensível para si mesmo a partir desta explicação do que sem ela. Não se trata de
desvendar o mistério, mas compreender o homem a partir do mistério538, lançando-se no
abismo da contingência que, mesmo fazendo a razão sentir-se ferida ao contemplar uma
criança sem vontade como culpada, saber-se-ia, pela fé do cristão outorgada pela graça, que a
incompreensão vem de um mistério, ou seja, do pecado de Adão.
Pascal sabe que a contingência permeia os quatro mistérios que envolvem a doutrina
do pecado original, de tal maneira que a contingência apresenta-se como conseqüência da
queda. Todavia, este ponto fixo de raiz teológica ou axioma teologal – pecado original – é
sustentado pela graça que faz o fiel recorrer aos livros sagrados e acreditar neles. O ponto fixo
“[...] só vem com a Revelação [...]”.539 Ele funciona como um axioma ou categoria540 que
verdade um conceito que possui sentido com maior desenvoltura dentro do contexto teológico, a verdade
destituída da religião deve ser produzida na relação entre a contingência e os parâmetros pragmaticamente
construídos. Portanto, o caráter retórico na obra pascaliana é de fato muito forte. Construir formalmente uma
teoria é submeter os homens à arbitrariedade da experiência, esta realizada através de parâmetros invariáveis préestabelecidos. Pascal constrói a “natureza” daquilo que quer provar criando verdades provinciais ou locais. Tal
processo tem objetivo persuadir os homens da validade da “verdade construída”.
538
“O ato da criação é, de qualquer maneira, no mundo, aquilo que o pecado original é para o homem: mistério
inconcebível, entretanto, tal ato é a chave de inteligibilidade para toda uma realidade.”. (Hélène MICHON,
L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, p. 63). Hélène Michon, assim
como nossa pesquisa, concebe que a doutrina do pecado original é entendida como um mistério. Em
contrapartida, o mistério torna-se chave de leitura para a condição humana depois da queda. O homem fica mais
perto da verdade sobre si mesmo dentro das afirmações teológicas que envolvem o pecado original. Michon
chega a comparar o mistério que envolve a criação do mundo por Deus ao pecado original presente no homem: a
razão ao perpassar estes mistérios confunde-se, ou seja, revela a contingência no homem – marca da ausência de
referencial para fundamentar a origem do mal e do mundo. Cabe ao fiel ater-se à revelação. Ver também Ibid., p.
220. Ela faz uma análise do pecado original como paradoxo. O fragmento que a autora usa como objeto de seu
comentário é o 809. (Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 809, Bru. 230, p. 320). Michon sustenta que para
Pascal o pecado original é incompreensível se ele existe e se não existe. Se de fato ocorreu um erro nos
primórdios, há uma gama de mistérios que envolvem tal fato como já mencionamos, entretanto, se ele não
aconteceu, é a própria condição humana no tempo presente que se revela misteriosa.
539
Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 47 – 48.
Mesnard também ressalta que se a doutrina é indemonstrável e se a sua única fonte é a revelação divina, esta
última é acompanhada de sinais – profecias, milagres na vinda do Messias – que tem como objetivo garantir sua
autenticidade. Estes sinais servem de provas. Portanto, a razão possui um ponto de referência para afirmar a
verdade. (cf. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 358).
540
“Não há nada, senão a Revelação, que seja capaz de “explicar” aquilo que, sem este recurso, seria mais
inexplicável ainda: a condição humana. A noção de pecado original, por exemplo, conforma-se, neste caso, à
posição de categoria, em função da sua capacidade de ordenar o campo caótico da experiência do mal.”. (Denise
LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 28). A Revelação é o ponto de referência no qual nos
permite apreender a doutrina do pecado original enquanto uma categoria que “explica” a condição humana
miserável – corrupção da matéria, doenças, morte, concupiscência. Tal miséria traduz a falha adâmica e permite
ao homem reconhecer-se como um ser caído e em meio ao caos. Este caos traz luz à contingência no mundo
podendo ser “organizada” ou “justificada” na medida em que o fiel se detém em um ponto fixo – pecado original
– que serve de parâmetro para a inteligibilidade do mundo e de sua condição. “Devemos compreender que o
dogma do pecado original concede a razão da incompreensibilidade da condição humana.”. (Ibid., p. 45). Denise
entende que a tentativa de explicar o que não se pode explicar totalmente mitiga o caos, ou seja, a resposta é
redundante: tratar da condição humana através da categoria “pecado original” mostra a incompreensibilidade da
154
determina as condições iniciais para justificar a condição do homem, entretanto, tal
perspectiva choca a razão, o que a faz contingente. Desta maneira, a contingência é mitigada
pela graça na medida em que esta torna-se sustento para a justificativa da condição humana e
do mundo. Dois pólos estão em jogo: no primeiro, os mistérios são contingentes – ferem a
razão – mas explicam e justificam a condição do homem – esta imersa na contingência; no
segundo, o descrente despreza a fé e a doutrina do pecado original e vive a errância da
procura de um ponto fixo para analisar a condição contingente do homem e do mundo. Para
Pascal, o libertino que não se detém na explicação do cristianismo entra em um abismo de
explicações intermináveis, ao passo que o cristão submete-se à verdade teológica do pecado
original. Esta nos ajuda a compreender que o estado contingente do homem – isolado de
verdade e falsidade, destituído de natureza, ser cheio de trevas e ignorante – está de acordo
com a nossa hipótese: a contingência epistemológica em Pascal é uma conseqüência da queda
adâmica. Pascal pode ser visto como um pensador da condição do homem e do mundo na
contingência. Ele estabiliza as condições iniciais como um axioma, ou seja, pecado original e
todos os mistérios que o envolve, e justifica a condição presente do homem e do mundo. O
método de Pascal está manifesto: manter as condições iniciais como um axioma – pecado
original – e negociar com a contingência – homem e mundo depois da queda. Sendo a
contingência uma conseqüência do pecado, vejamos agora onde ela se manifesta analisando o
conceito imaginação em Pascal.
condição humana. Esta resposta, apesar de frustrar a razão não oferecendo fundamento nela mesma, revela com
maior luminosidade – para o fiel – o estado e o porquê do homem caído. Mesnard também ressalta algumas
considerações acerca da relação fé e racionalidade. “A principal idéia que sobressai é que a razão tem seu
domínio e seu domínio é limitado. Reconhecer seus limites não é para razão renunciar-se, pois ela é conduzida a
isto por suas próprias forças [...] e, aliás, aquilo que a ultrapassa não a contradiz semelhantemente. O mistério é
supra-racional; desta maneira, ele comporta uma parte da iluminação pela razão que, em sua submissão, encontra
resposta a sua própria busca da verdade.”. (Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 318). A razão reconhece
seus limites por suas próprias investidas, mas é a doutrina do pecado original que vem esclarecer a contínua
busca no vazio. A cegueira que tem como causa a queda revela que a razão deve ser superada pela fé, mas não
aniquilada. O mistério – revelado pelas escrituras – vem iluminar o campo da contingência que a criatura está
imersa. Reconhecer isso, para Pascal, é apontar para a veracidade da teologia cristã. Todavia, sabemos que
recitar receitas de bolo para um homem faminto não abranda sua fome, assim como a doutrina do pecado
original não responde à todas as perguntas. Qual cristão não perguntaria a Ele, aos prantos, o “porquê” de ver seu
único filho sendo conduzido a uma câmara de gás pelo exército alemão em pleno século XX? Quem seria capaz
de viver a experiência de Jó e não gritar? Acredito que o Jó paciênte não existe, o que temos é um homem que
cansou de gritar.
155
CAPÍTULO III
Os efeitos da Imaginação
“Ela faz acreditar, duvidar, negar a razão.”.541
Depois de termos estabilizado o conceito de contingência no capítulo anterior,
analisaremos o conceito imaginação em Blaise Pascal. Para realizarmos tal tarefa teremos o
fragmento 44 dos Pensamentos542 como nosso objeto de estudo. Sublinhamos que outros
fragmentos também serão analisados, pois Pascal usa do conceito imaginação em outros
fragmentos que poderão trazer luz ao nosso objeto de estudo proposto. Como norteadora de
nosso capítulo, traçamos a seguinte hipótese: é na imaginação que se manifesta a
contingência. A imaginação, que para Pascal é parte constitutiva do instrumento cognitivo
humano, ao realizar seu trabalho junto à razão manifesta a contingência, ou seja, ela desloca
todo critério último que poderá servir de referência para o discernimento da verdade e da
falsidade. Desta maneira, a imaginação causa efeitos que manifestam a contingência: eis a
motivação do título deste capítulo. Ao mostrarmos como a imaginação funciona, o leitor verá
que seus efeitos são sempre contingentes.
Diante desta agenda que pretendemos cumprir, escolhemos dois autores que serão
nossos referenciais teóricos, a saber: Gérard Ferreyrolles com sua obra Les Reines du monde:
l´imagination et la coutume chez Pascal e Gérard Bras e Jean-Pierre Cléro com a obra Pascal
– Figures de l`imagination. Ferreyrolles reconhece que em outras obras de comentadores de
Pascal sobre política, inclusive a sua com o título Pascal et la raison du politique, os autores
fazem uma ligação entre o costume e o conceito de imaginação assim como entre a política e
a antropologia de Pascal. Todavia, a obra de Ferreyrolles, que usaremos como referencial
teórico para nossa pesquisa, o autor traça como proposta relacionar o costume e a imaginação
para que depois fosse sublinhado os efeitos destes dois princípios de erro, ou seja, o costume e
a imaginação. Desta maneira, nosso trabalho se apropria das investigações de Ferreyrolles
sobre os efeitos específicos da imaginação, algo que o autor faz na segunda parte da obra. Já
Bras e Cléro trabalham com a idéia de que a imaginação não é somente uma faculdade ou
541
542
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12.
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 12 – 16.
156
potência enganadora: ela é tão enganadora quanto os sentidos, a memória, a razão e as
paixões. Os autores destacam os efeitos que a imaginação causa nas três ordens: carne,
espírito e caridade. Assim, sublinham que a imaginação apresenta-se no carrefour de três
questões: a antropológica, na qual aponta para a situação do homem no mundo; na dimensão
epistemológica, que diz respeitos às condições e possibilidades do homem em ter acesso ao
conhecimento; e a ontológica, já que a imaginação impede uma sistematização que possa dar
contar de toda realidade, ou seja, Pascal é um anti-metafísico. Ressaltamos que Ferreyrolles,
Brás e Clero nos auxiliarão a entender os efeitos da imaginação na epistemologia, pois este é
o nosso foco maior. Outro autor que usaremos, entretanto, de maneira mais periférica, é Jean
Mesnard. Em sua obra Le Pensées de Pascal o comentador analisa algumas passagens do
fragmento 44, nosso objeto de estudo, entretanto, não faz uma análise específica do conceito
imaginação. Por este motivo, conscientes do alcance da análise de Mesnard, destacaremos
algumas passagens de sua obra para esclarecer nosso objeto no percurso que faremos.
Neste percurso veremos que a imaginação toca em alguns temas que manifestam a
contingência diretamente, como a eqüipolência entre verdade e falsidade. Desta maneira, a
imaginação poderá apresentar-se como uma potência que impede o discernimento, entretanto,
veremos que ela é engenheira de conceitos, realidades e natureza, coagindo, de maneira
especial, os sentidos, gerando desconfiança e uma possível passividade do homem em relação
aos efeitos da mesma. Todavia, veremos também que o homem não é totalmente passivo aos
solavancos da imaginação, pois, os versados em imaginação fazem bom uso desta potência
intrínseca à razão humana. Tal ação destes versados tem os juízes como vítimas, estes porém,
são influenciados pelos efeitos da imaginação, de modo que Pascal desmistificará a idéia de
que um juiz é absolutamente impassivo em seu julgamento. Ao fazermos uma análise dos
juízes ao julgar destacaremos detalhadamente o funcionamento da imaginação e
construiremos uma grade conceitual que permitirá entender como a imaginação funciona, ou
seja, faremos uma análise das filigranas daquilo que chamaremos de máquina imaginativa.
Em seguida, usaremos da grade conceitual que construímos para entender os efeitos da
imaginação nos advogados, assim, tentaremos verificar se a mesma ausência de impassividade
que Pascal detecta nos juízes ao julgar também é encontrada nos advogados na defesa de uma
determinada causa: veremos se os advogados e juízes julgam aquilo que é essencial pelo
inessencial, ou seja, pelas aparências. Tentaremos entender a importância das aparências para
a construção de uma função ou cargo na sociedade e como elas favorecem os magistrados,
advogados, médicos e doutores, de modo que as respectivas funções destes personagens estão
ligadas as suas aparências, todavia, a aparência, tão necessárias aos profissionais acima não
157
são necessárias aos reis. Veremos que ele tem a força efetiva, mas será a imaginação que irá
inserir a força no mundo social sem constranger demasiadamente ao povo, instituindo um
reino de paz tão querido pelo rei. Diante deste itinerário, observaremos que a contingência
permeará os efeitos da imaginação na medida que os saltos desta potência enganosa
provocarão efeitos que não poderão ser detectados previamente com toda certeza. A
imaginação é a garantia de que seus efeitos contingentes são improváveis antecipadamente, o
que ferirá o discernimento da razão. Mas antes de iniciarmos este extenso trabalho, vale
destacar alguns aspectos do conceito imaginação no sistema cartesiano, o que nos permitiria
averiguar as possíveis diferenças e confluências da concepção do conceito nos dois autores.
Analisaremos a sexta parte da obra Meditações543 de Descartes e teremos como referencial
teórico a obra Descartes: a metafísica da modernidade do filósofo Franklin Leopoldo e Silva.
1 – O conceito imaginação em Descartes.
Descartes inicia a sexta meditação afirmando que só resta examinar uma única coisa
em seu edifício filosófico, a saber: se as coisas materiais existem ou não objetivamente. Para
tal verificação, o raciocínio conduzido por um método bem elaborado poderia proporcionar a
obtenção de idéias claras e distintas. Para obtê-las, a geometria seria o veículo norteador na
elaboração do método.544 Assim, a possibilidade das idéias claras e distintas no nível
intelectual fá-lo conceder a probabilidade que estas idéias tenham algum valor objetivo.
“Juntando-se a possibilidade, dada pela essência, essa probabilidade vem reforçar a crença na
existência do mundo exterior.”.545 Tal transposição entre as idéias claras e distintas de um eu
pensante e a existência do mundo do corpos objetivamente dar-se-ia por outro princípio: Deus
é bom e não me deixa enganar, logo, as idéias inteligíveis clara e distintamente têm a sua
correspondência objetiva garantida por Deus, visto que qualquer dúvida sobre a bondade de
Deus só poderia ser realizada artificialmente pela ficção de um Gênio maligno ou de um Deus
enganador. Mas, no decorrer da obra, antes de conceber este raciocínio como certo e
indubitável – garantia da objetividade do mundo –, Descartes propõe analisar a faculdade da
imaginação. Tal proposta visa verificar se o mundo dos corpos poderá ser concebido
objetivamente ao fazermos uma análise de como a imaginação procede, já que tal faculdade
tem uma ligação tênue com os corpos. Vejamos a análise cartesiana do conceito imaginação.
543
René DESCARTES, Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Cf. Ibid., p. 129.
545
Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 72 – 73.
544
158
Descartes afirma: “[...] a faculdade de imaginar, que existe em mim e da qual vejo por
experiência que me sirvo quando me aplico à consideração das coisas materiais, é capaz de
me persuadir da existência delas [...].”.546 Cabe a nós seguir os passos do filósofo neste
trabalho para verificarmos o que é a imaginação e como ela funciona no sistema cartesiano.
Assim, indagamos: o que é a imaginação para Descartes? Para ele a imaginação é “[...] uma
aplicação da faculdade que conhece ao corpo que lhe é intimamente presente e, portanto, que
existe.”.547 Verificamos que a imaginação é uma faculdade do espírito voltada aos corpos.
“Isso encoraja a hipótese de que a imaginação trabalha com algo mais do que o puro
pensamento, embora seja um modo de pensamento.”.548 Assim, a faculdade da imaginação
obtém alguma intelecção no seu trabalho, pois ela também é uma faculdade ligada ao espírito.
Desta maneira, o cumprimento da proposta cartesiana de verificar a eficácia da imaginação na
demonstração e prova da existência do mundo corpóreo objetivamente é antecedida pela
distinção pontual entre a imaginação e a pura intelecção ou concepção pura549. Vejamos
abaixo as considerações de Descartes acerca desta distinção.
Quando Descartes, absorto em suas especulações, imagina um triângulo, o
entendimento o concebe como uma figura composta e determinada por três linhas, todavia,
pela força da imaginação a imagem de tal figura se apresenta para a intelecção. Mas quando
pensa um quiliógono, figura de mil lados, ou um miriágono, figura de dez mil lados, ou
qualquer outra figura de muitos lados, a imaginação não consegue imaginar tais figuras, ou
seja, vê-las com os olhos do espírito. E, desta maneira, ao conceber uma destas figuras, a
imaginação apresenta uma representação confusa550 e também “[...] ela não serve, de maneira
alguma, para descobrir as propriedades que estabelecem as diferenças entre o quiliógono e os
demais polígonos.”.551 A representação da imaginação de uma figura que apresente um
número maior de lados não é fiel à definição realizada pela pura intelecção: a imaginação
apresenta uma imagem de algo que não existe. Assim, a imaginação “[...] me faz representar
coisas na ausência delas.”.552 Portanto, desde já conhecemos três qualidades da imaginação:
ela é uma aplicação que se volta para os corpos; faz ver de maneira confusa alguns objetos; e
não serve para estabelecer diferenças, esta sendo uma característica da intelecção pura. A
intelecção, ao contrário, não precisa da imaginação para definir os polígonos, pois
546
René DESCARTES, Meditações, p. 129.
Ibid., p. 129 – 130.
548
Franklin Leopoldo e SILVA. Descartes: a metafísica da modernidade, p. 72.
549
René DESCARTES, Meditações, p. 130.
550
Cf. Ibid., p. 130.
551
Ibid., p. 130.
552
Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 72.
547
159
independente dos lados que a figura possui, ela poderá fazer este trabalho sem a necessidade
de traçar nenhuma relação com os corpos. Eis as diferenças destacadas por Descartes entre a
imaginação e a intelecção pura.
A “[...] virtude de imaginar [...]”553 dirá Descartes, difere da intelecção pura na medida
que se apresenta como dependente dos corpos para realizar seu trabalho, ao passo que a
intelecção pura não depende dos corpos, mas possui certa autonomia garantida pelo método
geométrico com seus atributos de clareza e distinção. Além disso, a imaginação “[...] não é de
modo algum necessária a minha natureza, ou a minha essência, isto é, à essência de meu
espírito [...]”.554 Ou seja, o espírito não apresentaria nenhuma transformação que
comprometesse a sua essência não tivesse a faculdade imaginativa: ela não é necessária, é
contingente. Todavia, está presente no eu pensante cartesiano, portanto, cabe agora destacar
as filigranas do seu funcionamento.
E concebo facilmente que, se algum corpo existe ao qual meu espírito esteja
conjugado e unido de tal maneira que ele possa aplicar-se a considerá-lo
quando lhe aprouver, pode acontecer que por este meio ele imagine as coisas
corpóreas: de sorte que esta maneira de pensar difere somente da pura
intelecção no fato que o espírito, concebendo, volta-se de alguma forma para
si mesmo e considera algumas das idéias que ele tem em si; mas, imaginando,
ele se volta para o corpo e considera nele algo de conforme à idéia que formou
de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos. Concebo, digo, facilmente que a
imaginação pode realizar-se dessa maneira, se é verdade que há corpos [...].555
O espírito quando se relaciona com os corpos fá-lo-ia pela via da imaginação, maneira
de pensar diferente da pura intelecção, visto que esta ao conceber fá-lo voltando-se a si
mesma e não aos corpos, todavia, a imaginação ao voltar para os corpos e associar os corpos à
imagem que fez deles realiza este trabalho pela mediação dos sentidos: é desta maneira que
Descartes irá pressupor a provável existência dos corpos através da descrição do
funcionamento da imaginação. Se a imaginação se volta para os corpos, portanto, os corpos
existem objetivamente, pensará Descartes. Assim, a associação de uma imagem – imperfeita
muitas vezes, como é o caso do quiliógono – com o corpo correspondente seria uma prova da
existência das coisas, independente daquilo que a imaginação representa, pois Descartes
553
René DESCARTES, Meditações, p. 130.
Ibid., p. 130.
555
Ibid., p. 131.
554
160
somente tem o objetivo de formular um caminho para provar a existência objetiva dos corpos
pela via da imaginação. Todavia, pondera em aprovar tal possibilidade como efetivamente
possível: a imaginação tem como mediadora a sensibilidade e, para que a afirmação da
existência objetiva dos corpos seja verdadeiramente clara e distinta, fazer-se-ia necessário
uma análise da capacidade humana de sentir o possível mundo existente fora de seu intelecto.
Como a imaginação exerce seu trabalho voltando-se para os corpos e, sabendo que as
informações deste último é concedida pelos sentidos, “[...] vem a propósito examinar ao
mesmo tempo o que é sentir, e ver se, das idéias que recebo em meu espírito por este modo de
pensar, que chamo sentir [...]”556, é prova da existência das coisas corpóreas objetivamente.
Assim, Descartes retoma alguns argumentos favoráveis para a prova da existência das coisas
objetivamente, independente do pensamento, mas logo depois mostra as flutuações dos
sentidos que, conseqüentemente, inviabilizariam a provável existência do mundo objetivo por
meio da imaginação. Vejamos, em um primeiro momento, a retomada cartesiana favorável à
existência do mundo sensível.
1º - Há idéias que se apresentam ao pensamento sem que houvesse consentimento da
minha vontade e, ao contrário disso, acontece que muitas vezes não podemos sentir a presença
de alguns objetos se o mesmo não está presente.557
2º - As idéias adquiridas pelos sentidos parecem ser muito mais vivas do que as que se
encontram na memória.558
3º - Acredito não haver nenhuma idéia em meu espírito que não passe antes pelos
sentidos.559
4º - Pareceria ser evidente que o corpo que chamamos meu me pertence, que não posso
me separar dele, que sinto por ele os afetos e não por outro corpo que acredito estar separado
dele.560
5º - Que tais sentimentos estimula nossa vontade, pois a emoção do estômago, que
chamo fome, me dá vontade de comer e a secura da garganta dá sede; também o meu juízo é
556
René DESCARTES, Meditações, p. 131.
Cf. Ibid., p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 73: ele
chamará este modo de coerção.
558
Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da
modernidade, p. 73: ele chamará este modo de vivacidade.
559
Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da
modernidade, p. 73: ele chamará este modo de prioridade.
560
Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da
modernidade, p. 73: ele chamará este modo de corpo próprio.
557
161
afetado por estes objetos, de modo que ele se formulava sem que pudesse considerá-lo
atentamente.561
É esta a regressão562 que Descartes realiza para tentar mostrar que, da mesma forma
pela qual os possíveis corpos afetam nossa sensibilidade e, por este motivo, me levariam a
crer que existem causas objetivas das minhas representações independente do eu pensante,
tais afetos não são garantias claras e distintas da existência destes corpos: “E, quanto às razões
que me haviam anteriormente persuadido da verdade das coisas sensíveis, não tinha muita
dificuldade em rejeitá-las.”.563 Constata-se que apesar da suposição da existência das coisas
sensíveis que afetam meus sentidos e que são representadas pela imaginação, Descartes
inviabiliza que os cinco modos acima apresentados provariam a existência do mundo sensível,
pois uma faculdade desconhecida também poderia causar efeitos em mim sem que ela
necessariamente exista como é o caso de pessoas que tinham seus braços e pernas dilacerados
e, mesmo assim, continuavam a sentir dores em seus membros amputados. Assim, a
substância pensante poderá ser persuadida por um afeto que o objeto causante possui
existência enquanto substância extensa sem que o mesmo a tenha efetivamente. Portanto,
Descartes sublinha algumas distinções depois das digressões acima: há diferença entre a
substância pensante e a substância extensa – se é que ela existe –, de modo que a substância
pensante poderia existir sem o corpo; a faculdade da imaginação volta-se para os corpos, ao
contrário da intelecção pura que volta-se para si mesma; a faculdade imaginativa e de sentir –
[...] este modo de pensar [...]”564–, apesar de fazerem parte do espírito, ou seja, sendo modos
pelo qual o pensamento se expressa, são distintos da intelecção pura, pois nada muda o
espírito caso a imaginação ou os sentidos venham a faltar, ou falhar. Portanto, percebemos
que a imaginação é um modo de pensar que Descartes concebe ser distinto da intelecção pura:
a imaginação não inviabilizaria o conhecimento na medida que este é analisado
separadamente pela intelecção pura capaz de agir sem sofrer os afetos das falácias criativas e
enganadoras que a imaginação constrói como forma de representar um objeto apreendido pela
sensibilidade. Diante desta breve exposição do conceito imaginação em Descartes, vejamos
como Blaise Pascal trabalha tal conceito em seu sistema.
561
Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132 –133. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica
da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de interação corpo-mente .
562
Descarte já havia tratado destas oscilações dos sentidos no Discurso do método.
563
René DESCARTES, Meditações, p. 133.
564
Ibid., p. 131.
162
2 – Imaginação e contingência.
Para que possamos verificar o funcionamento da imaginação na epistemologia
pascaliana teremos que em um primeiro momento esclarecer quais são as vias pelas quais o
homem recebe as opiniões. Pascal cataloga em seu texto De l`Art de Persuader duas vias:
Ninguém ignora que há duas portas pelas quais às opiniões são recebidas na
alma, que são suas duas principais potências: o entendimento e a vontade. A
mais natural é a do entendimento, pois jamais deveríamos consentir senão nas
verdades demonstradas; mas a mais comum, embora seja contra a natureza, é
aquela da vontade; porque todos os homens que existem são quase sempre
levados a crer, não pela prova, mas pela satisfação.565
Entendimento e vontade são estas duas portas ou “potências”. No século XVII o
conceito potência significa “[...] a capacidade de fazer, de realizar e de produzir efeitos
[...]”566, todavia, este efeito não é determinístico, ou seja, a realização de um fim determinaria
desde a origem todo efeito causado – como a causa final em Aristóteles – , mas é um
movimento, um impulso, uma força em um dado momento. Tal movimento manifesta-se no
entendimento e na vontade. A primeira potência é mais natural, pois é na 2ª ordem, do
espírito, onde o entendimento manifesta sua força. Pascal descreve os procedimentos ou
efeitos desta ordem: definindo os termos ou os nomes através de definições claras; propondo
axiomas ou princípios para provar; e substituindo mentalmente nas demonstrações as
definições no lugar dos definidos.567 Esta é a lógica geométrica naquilo que diz respeito ao
entendimento, visto que não poderíamos consentir nada que não passe por esta lógica, o que
seria contrário à natureza da própria ordem, ou seja, tirânico.568 A segunda potência, ou seja, a
vontade, é contra a natureza e mais comum. Contra a natureza porque pertence a 3ª ordem,
aquela do coração569, tocada pela graça e na qual o raciocínio não tem a supremacia. Impor
565
Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355.
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination. Paris: PUF, 1994, p. 10.
567
Cf. Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 356.
568
“A tirania consiste no desejo de domínio universal e fora da sua ordem.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 58, Bru.
379, p. 20). O querer dominar tudo é, por exemplo, fazer da vontade, uma instância de 3ª ordem, dominadora do
entendimento, instância de 2ª ordem.
569
“Portanto, falo somente das verdades a nosso alcance; e é sobre elas que eu digo que o espírito e o coração
são como portas por onde elas são recebidas dentro da alma, mas muito poucas entram pelo espírito, enquanto
que são introduzidas em massa pelos caprichos temerários da vontade, sem o aconselhamento do raciocínio.”.
(Idem, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355). Enfatizo a mudança conceitual da vontade
566
163
uma verdade à razão pela ordem do coração é ir contra a natureza da ordem do espírito.
Porém, isto é mais comum afirma Pascal, já que o homem está mais inclinado a consentir pela
vontade do que pelo espírito. O motivo pelo qual dar-se-ia tal acontecimento é a corrupção da
ordem da vontade pelo pecado preenchendo-a com a concupiscência, desta maneira, “[...]
acreditamos tão somente naquilo que nos agrada”570, dirá Pascal. Portanto, a arte de persuadir
tem como alvo “[...] tanto os homens que se governam pelos caprichos quanto pela razão!”.571
Entretanto, algo distinto ocorrerá na relação entre entendimento e vontade. Se os
procedimentos, ou efeitos do entendimento podem ser descritos por Pascal – termos, axiomas
e demonstrações –, quanto à vontade tal descrição tornar-se-ia muito mais difícil, talvez
impossível:
“Mas a maneira de agradar é incomparavelmente mais difícil, mais sutil, mais
útil e mais admirável; assim, se não me refiro a ela, é porque não sou capaz
disto; e sinto-me de tal modo em desproporção que creio ser uma coisa
absolutamente impossível.”572.
Pascal ver-se-ia incapaz de catalogar todas as minúcias que envolvem a vontade de
cada homem. O conceito “desproporção” utilizado aqui não é por acaso: ele marca a infinita
distância entre o conhecimento humano e as distintas disposições de cada homem.573 A
instabilidade do homem é o argumento maior de Pascal.574 A criatura, que perdeu sua
natureza pela queda de Adão, tem como motor que a faz consentir o amor instável por si
mesma, o deleitar-se em si mesma, descartando sempre seu objeto de amor primordial: Deus.
para o coração, já que tal mudança confirma minha afirmação acima na qual colocamos a vontade como um
componente da 3ª ordem.
570
Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355.
571
Ibid., p. 356. Vale ressaltar que a persuasão é capaz de fazer o homem consentir às verdades produzidas e
construídas pelo método que Pascal desenvolve no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, todavia,
tal procedimento não é válido para as chamadas verdades divinas, de modo que a Arte de Persuadir não poderá
fazer o sujeito obter a fé, está é uma dádiva de Deus concedida a alguns eleitos. “Não falo aqui das verdades
divinas, que eu não faria cair sob a arte de persuadir, pois elas estão infinitamente acima da natureza: somente
Deus pode instalá-las na alma e da maneira que lhe agradar.”. (Ibid., p. 355).
572
Ibid., p. 356.
573
“A razão desta extrema dificuldade advém do fato de que os princípios do prazer não são firmes e estáveis.
Eles são diversos para todos os homens e variáveis em cada um em particular, com uma tal diversidade que não
há, de modo algum, homem que seja mais diferente de outro do que de si mesmo em épocas diferentes. Um
homem tem prazeres diferentes dos de uma mulher; um rico e um pobre possuem diferentes (prazeres); um
príncipe, um homem de guerra, um comerciante, um burguês, um camponês, os velhos, os jovens, os santos, os
doentes, todos variam; os menores acidentes os modificam.”. (Ibid., p. 356).
574
“[…] seria necessário conhecer tudo aquilo que se passa no mais íntimo do homem e que o próprio homem
quase nunca conhece.”. (Ibid., p. 356).
164
“O conceito de concupiscência pode ser entendido como exclusão de Deus.”575. O princípio
de prazer reina diferentemente em todos os homens, seres que depois da queda foram
corrompidos atavicamente. Portanto, a inviabilidade de catalogar todos os acidentes que
envolvem o homem é a manifestação da medida infinita de todos os males que habitam o
coração humano, estes porém, agindo distintamente em cada homem e em cada contexto que
o mesmo está imerso: desde o rei até o comerciante, do velho ao jovem, do rico ao pobre,
todos apresentam distintos e inumeráveis princípios de prazer.
Diante deste breve sumário sublinhando as duas potências quem funcionam como
porta de entrada de toda opinião, vemos que a 2º e 3ª ordem interagem dentro do processo
cognitivo, sendo que a corrupção da 3ª impulsiona o homem a consentir com mais facilidade a
um saber que lhe cause maior prazer e “satisfação”576 do que aquele que fornece as provas.
Diante disso, sabemos que há uma relação entre as ordens dentro do processo cognitivo e a
imaginação funcionaria como um vetor que permeia as 3 ordens. O fragmento 44 dos Pensées
nos revela este papel da imaginação na 1ª ordem, quando o corpo é afetado pelos devaneios da
imaginação – empalidecendo e fazendo suar o filósofo na prancha –; na 2ª ordem, quando a
imaginação dilacera os critérios últimos que permitiriam um conhecimento claro e distinto – a
imaginação enquanto potência enganosa confunde o discernimento tanto da verdade quanto da
falsidade –; na 3ª ordem, visto que o interesse egóico o homem por si mesmo é uma maneira
de fazer com que ele esteja com os olhos fechados para sua verdadeira vocação: o homem é
um ser para Deus. Assim, veremos que a imaginação causa efeitos nas três ordens.577
Tentaremos trazer luz a estes efeitos e verificar a relação do mesmo com o conceito de
contingência exposto no capítulo anterior.
2.1 – Eqüipolência entre verdade e falsidade.
Logo no início do fragmento encontramos uma característica peculiar da imaginação
que tem uma relação direta com a contingência. A imaginação, agindo no sujeito do
conhecimento – 2ª ordem – , é responsável pelo isolamento do mesmo tanto da verdade
quanto da falsidade:
575
Luiz Felipe PONDÉ, Conhecimento na Desgraça: ensaio sobre epistemologia pascaliana, p. 24.
Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355.
577
Ver Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal. Paris: Honoré
Champion Éditeur, 1995, p. 141; ver também Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de
l`imagination, p. 36. Os dois autores que nos acompanharão nesta análise de maneira mais direta sustentam que a
imaginação exerce um papel dentro das três ordens.
576
165
Imaginação.
É essa parte dominante do homem, essa mestra do erro e da falsidade, e ainda
mais trapaceira porque nem sempre o é; pois ela seria regra infalível de
verdade se fosse regra infalível da mentira. Ainda mais –
Mas, sendo o mais das vezes falsa, ela não mostra nenhum sinal dessa sua
qualidade, marcando com as mesmas características o verdadeiro e o falso.578
A imaginação domina o homem na medida que o submete aos seus efeitos. Tal
domínio e submissão Pascal sublinha um pouco mais à frente no mesmo fragmento: “Jamais
a razão (sobrepuja) totalmente a imaginação, (mas o) contrário é o que costuma
acontecer.”.579 Na guerra entre a imaginação e razão a primeira teria vantagem. O domínio da
imaginação diz respeito à interferência que a mesma causa dentro das operações da razão. Se
a razão tenta ordenar, separar, juntar, regularizar, discernir e medir, a imaginação em sua
radical companhia com a razão produz efeitos completamente distintos e diafônicos: quando a
razão ordena, a imaginação cria infinitas possibilidades de ordem580; quando a razão separa, a
imaginação separa ainda mais até o infinito; quando a razão regulariza, a imaginação
desestabiliza; quando a razão faz o discernimento, a imaginação confunde; quando a razão
mede, a imaginação faz perder a conta. Eis o domínio que a imaginação exerce sobre a razão.
A tentativa humana de aliar a razão e a imaginação é vista com bons olhos por Pascal581, algo
que não poderia ser diferente quando guerreamos com uma adversária mais forte e que
sempre mina nossas forças, “[...] pois na guerra ela leva ampla vantagem ainda mais
completa.”.582 Assim, é melhor aliar a razão e a imaginação, visto que se houver uma guerra a
imaginação prevalecerá. Mas como dar-se-ia este processo de paz, ou seja, como aliar razão e
imaginação? A paz entre as duas dar-se-ia por um efeito que se torna uma constante na
inteiração das mesmas: a imaginação imita a razão.583 Pascal rompe com as fronteiras entre
estas duas potências, contrariando Descartes, que defende uma distinção pontual entre a
imaginação e a intelecção pura, como vimos acima. A razão não é mais o critério do ser para
Pascal, assim, nossa experiência de seres mortais não poderá conceder à medida absoluta da
578
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12.
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14.
580
Ver Ibid., Laf. 696, Bru. 22, p. 285. Há uma diversidade de maneiras de organizar e reorganizar os
pensamentos em um discurso e a partir disso causar diferentes efeitos, ou seja, os mesmo pensamentos
ordenados diferentemente podem produzir um outro discurso. Também as palavras organizadas de formas
diferentes produzem novos pensamentos. Esta infinidade de possibilidades é um efeito da imaginação.
581
“O homem tem razão em aliar essas duas potências [...]”. (Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14).
582
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14.
583
Cf. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 193.
579
166
verdade ou da falsidade: a contingência, que tem como causa o pecado adâmico capaz de
lançar todo conhecimento humano nas trevas, é um efeito da imaginação. Talvez uma
suficiência do erro? Não para Pascal. Se as trevas, o erro, a mentira e a falsidade tivessem a
primazia, esta seria a regra584, pois a imaginação seria a regra que nos orienta em direção à
verdade se seus saltos somente nos conduzissem à falsidade. “Aí está um dos princípios de
erro, mas não é o único.”.585 Quantos são? Em um salto da imaginação veremos uma
infinidades deles. Não há suficiência nem do erro, nem da verdade, ou seja, a imaginação
produz contingência. Ela é “[...] uma faculdade indiferente ao verdadeiro e ao falso.”.586
Verdade e falsidade tornam-se conceitos trespassados de maneira que tal composição não
permitirá à razão discernir, limitar e separar587 tais conceitos.
Diante do efeito da imaginação quanto ao aspecto indiscernível que a mesma causa
aos conceitos de verdade e falsidade, assim como a capacidade de dominar e submeter a
razão, vejamos a análise de Ferreyrolles.
Em primeiro lugar, a imaginação torna indiscerníveis o verdadeiro e o falso. É,
de fato, tão fácil imaginar o erro quanto a verdade, e nada nas imagens que nós
nos formamos vem discriminar a objetividade de seu conteúdo. [...]
Inversamente, imaginar sobre o girar da terra o Santo Ofício decidindo contra
aqueles que consentem que ela gire, poderia ser uma representação da
realidade. A armadilha da imaginação é que ela não engana sempre e não
permite saber quando ela engana.588
A imaginação desqualifica todo juízo que postula pretensões de classificação entre
verdadeiro e falso. É na eqüipolência do juízo que ela apresenta seu aspecto contingente. No
seu funcionamento, tanto o erro quanto a verdade são imaginados sem nenhum discernimento,
desta maneira, a dificuldade do ser pensante é justamente discriminar seu conteúdo, ou seja, a
584
“Quando não se sabe a verdade de uma coisa, é bom que haja um erro comum que fixe o espírito dos homens
[...].”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 744, Bru. 18, p. 298). O ponto fixo de erro é sempre deslocado por
um efeito da imaginação. Ela aumenta o número de erros ao infinito e depois imprime também a marca da
verdade em cada erro. “Nem contradição é marca da falsidade, nem a não contradição é marca da verdade.”.
(Ibid., Laf. 177, Bru. 384, p. 72). Ver também Ibid., Laf. 745, Bru. 18 bis, p. 298.
585
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14.
586
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 187.
587
“Na medida em que se tem mais espírito, acha-se que há mais homens originais. As pessoas comuns não
encontram diferença entre os homens.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 510, Bru. 7, p. 234; grifo meu). A
razão tem como característica sua potência de discernir aquilo que procura, limitar aquilo que encontrou e
separar aquilo que deseja daquilo que não deseja. Desta maneira, Pascal sublinha que os homens de espírito
encontram diferenças entre os homens, algo ausente aos homens comuns.
588
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 162 – 163 .
167
busca da objetividade589. Assim, podemos imaginar algo que nos parece totalmente absurdo
como leões pedindo informações em um banco, mas também podemos utilizar a mesma
imaginação para imaginar coisas não tão absurdas como a terra girando em torno do sol. O
Santo Ofício não foi indiferente a este enunciado contrariando os adeptos à esta afirmação,
visto que o copernicanismo era capaz de fazer as pessoas consentir. A atuação da imaginação
ganha seus contornos persuasivos. Ela traduz aquilo que Pascal ordinariamente qualifica
como razoável, ou seja, ela constrói condições favoráveis para o consentimento. Mas porque
as pessoas têm maior dificuldade de consentir ao exemplo do leão e não ao exemplo
heliocêntrico? A chave da abóbada para responder tal pergunta seria o costume: repetição
contínua de uma ação, comportamento ou pensamento que faz a maior parte se conformar.590
O costume cria e muda nossa forma de percepção do mundo591 e funciona como um
modulador dos nossos juízos. Pascal nos dá um exemplo: “De onde vem que se acredita em
tantos mentirosos que dizem ter visto milagres e que não se acredita em nenhum daqueles que
dizem ter segredos para tornar o homem imortal e para rejuvenescer?”.592 As pessoas
acreditam em mentirosos que se gabam de ter visto milagres, mas não acreditam em homens
que se gabam por ter uma fórmula para o rejuvenescimento ou para a perpétua imortalidade.
A indagação de Pascal está imersa à dinâmica apologética. Ele considera que se há alguns
impostores quanto aos milagres e mesmo assim tantas pessoas que os seguem é possível que
dentre os muitos milagres que dizem acontecer dar-se-iam “[...] alguns verdadeiros [...]”.593.
As pessoas consentem com maior facilidade à afirmação do acontecimento de um milagre do
que a promessa da imortalidade, assim como é muito mais fácil acreditar no movimento
heliocêntrico possível, temível pela Igreja, do que leões pedindo informações em um banco.
Desta maneira, em toda crença verificamos um certo grau de razoabilidade: as pessoas podem
comprar remédios acreditando na cura de uma doença, mas ninguém comprará uma fórmula
que lhe traga a imortalidade. “Da mesma forma, se um homem se gabasse de impedir que se
morresse, ninguém acreditaria nele porque não há nenhum exemplo disso.”.594 O costume
depende da repetição contínua de uma determinado evento para que se possa consentir.
Remédios curando pessoas é um fato que não cessa de acontecer na história de maneira mais
evidente, todavia, em um contexto cristão é muito mais fácil consentir a um milagre do que o
sucesso de uma fórmula da imortalidade. O caráter circunstancial do costume é um fator
589
Ver nota 493 do capítulo anterior: sobre a definição clássica de objetividade.
Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 17.
591
Cf. Ibid., p. 28.
592
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 734, Bru. 817, p. 295.
593
Ibid., Laf. 734, Bru. 817, p. 295.
594
Ibid., Laf. 734, Bru. 817, p. 296.
590
168
substancial para o consentimento. A eqüipolência entre verdade e falsidade não impede de
que homem tome um partido, pois ele poderá decidir pelo costume, como é o caso das curas
pela ingestão de remédios que faz as pessoas acreditar na eficácia dos medicamentos.
Todavia, tal consentimento não está desprovido da potência imaginativa. Portanto, vejamos
como ela atua.
Diante de nossa descrição da função do costume podemos verificar como é a relação
entre costume e imaginação: “Na classificação dos grandes princípios de erro que governam o
homem, Pascal coloca a imaginação entre o costume e o interesse.”.595 O costume, com suas
repetições contínuas que fazem consentir, e o interesse, com seu amor próprio e aspirações
próprias, interagem através da imaginação. Para elucidar o efeito da relação entre costume e
imaginação utilizaremos dois dos exemplos acima.
No primeiro exemplo: o leão pedindo informações em um banco. Temos fatores que
não colaboram para o consentimento das pessoas. Primeiro, quanto ao costume, ninguém
nunca viu um leão fazer isso; segundo, quanto ao interesse, ao consentir com este pensamento
imaginativo a pessoa seria tachada de louca. Pesando os prós e os contras, há uma motivação
maior para não consentir.
No segundo exemplo: quanto ao movimento heliocêntrico. Quanto ao costume, não
termos nenhum motivo para consentir, visto que a nossa experiência comum nos revela o
contrário, é o sol que se movimenta. Quanto ao interesse, duas correntes se movem: o
interesse da Igreja para não ferir afirmações bíblicas como: “Uma geração vai, e outra geração
vem; mas a terra para sempre permanece.”.596 “Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o
Senhor deu os amoreus na mão dos filhos de Israel, e disse aos olhos dos israelitas: Sol,
detém-te em Gibeom, e tu lua, no vale de Ajalom.”.597 E o interesse de Galileu598: dar crédito
a teoria heliocêntrica copernicana. Portanto, Galileu leva desvantagem, pois o costume das
pessoas desqualifica o sistema copernicano. Em contrapartida, a Igreja tem o costume e a
595
Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 17.
Ecles 1,4, Português. In: BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
597
Jos 10, 12, Português. In: BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
598
“Galileu substitui uma interpretação natural por uma interpretação muito diferente e, até aquela data (1630),
pelo menos parcialmente natural. Como procede ele? Como consegue introduzir asserções absurdas e contra
idutivas – tal como a asserção de que a terra se move – conseguindo que mereça consideração ponderada e
atenta? De antemão vale dizer que argumentos não bastam – interessante e importantíssima limitação do
racionalismo – e, com efeito, os pronunciamentos de Galileu só têm a aparência de argumentos. Em verdade,
Galileu recorre à propaganda. Usa artifícios psicológicos, além das eventuais razões que tenha a oferecer. Esses
artifícios alcançam êxito: conduzem-no a vitória.”. (Paul FEYERABEND, Contra o método. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alvez. 1989, p. 121). Feyerabend chega a afirmar que a ignorância da ótica de Kepler foi uma
benção (cf. Ibid., p. 316) para que as experiências de Galileu não imperassem.
596
169
bíblia a seu favor. Mas o que ele faz: “Galileu identifica as interpretações naturais que se
mostram inconsistentes com a doutrina de Copérnico e as substitui por outras.”.599 Galileu
desqualifica a interpretação natural dos sentidos – costume – e constrói uma nova concepção
de experiência em física recorrendo à propaganda ao apresentar seu telescópio a um grupo de
nobres apontando-o para as montanhas, ou seja, para objetos que as pessoas estavam
familiarizadas, logo, se o telescópio é capaz de fazer ver com clareza a paisagem montanhosa,
pensam os nobres, o instrumento também facilitará para ver os fenômenos celestes; recorre
também à teoria da anamnese platônica, na tentativa de explicar a não percepção do
movimento da terra e a experiências imaginativas como a do mastro de um navio em
movimento. Nesta porém, o início da fala de Galileu no personagem Salviati é sugestivo “[...]
imagine-se em um navio, com os olhos fixos em um ponto da verga da embarcação.”.600 O
olho não percebe o movimento do mastro que se move com o navio se o observador estiver
dentro do mesmo e com os olhos fixos na ponta do mastro. A nova concepção de experiência
é capaz de gerar novos costumes e, como afirma Ferreyrolles em seus estudos sobre o mesmo
na obra de Pascal, o costume cria e muda nossa forma de percepção do mundo. A vitória de
Galileu deve-se a uma mudança do costume por uma criação da imaginação. Mudando o
costume o cientista italiano vira a mesa e coloca seu interesse em vantagem. Os próprios
adversários de Galileu tentam denigrir a maneira pela qual Galileu sustenta a veracidade do
sistema copernicano acusando de falsário. “Lançam obscuridade sobre o fato de que a
experiência em que Galileu deseja fundamentar a concepção de Copérnico nada mais é que o
resultado de sua fértil imaginação, ou seja, que essa experiência foi inventada.”.601 Todavia, a
imaginação sobrepuja a razão e em seu lugar, entre o interesse e o costume, produz certa
razoabilidade fazendo as pessoas consentir. E desta maneira que ela faz suas presas: diante da
posição da Igreja e de Galileu, a imaginação faz seu trabalho, mergulhando o saber na
contingência. Galileu, assim como Pascal, é alguém que faz bom uso da imaginação para
persuadir. Poderíamos dizer, que Galileu e Pascal sabem usar dos efeitos que a imaginação
oferece para persuadir seus adversários.
Além da capacidade de persuasão, um outro efeito da imaginação é ressaltado pelo
comentador Jean Mesnard:
599
Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 101.
Galilleu GALILEI, De Motu apud Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 123.
601
Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 121.
600
170
Podemos dizer inicialmente que a imaginação é a faculdade do imaginário,
oposta à faculdade do real que é a razão; e, mais rigorosamente, que a
imaginação procura a opinião do verdadeiro, e a opinião da verdade efetiva.
[...] Porém, e este é o nó da análise, o movimento da imaginação é
indiscernível daquele da razão. [...] Ela interfere a razão, ela comanda suas
operações. [...] A imaginação deveria ser a referência permitindo efetuar a
separação entre o real e o imaginário, mas esta referência se esconde sempre.
A conseqüência é que só há opiniões no mundo. Das opiniões entre as quais
algumas são verdadeiras, mas sem que seja possível de as distinguir das
outras.602
As malhas da razão objetivam àquilo que é real, já a imaginação é a potência do
imagináriol. Assim, o quiásmo se apresenta: como diferenciar razão e imaginação? Onde
começa a imaginação e termina a razão e vice-versa? Não se trata de dizer o que é a razão e o
que é a imaginação. Vale ressaltar a afirmação de Bras e Cléro: “Uma potência é sempre
tomada dentro de uma relação e não pode ser suposta isoladamente, na sua pureza.”.603 A
impossibilidade de naturalizar potências dar-se-ia pelo fato de Pascal fazer um carrefour da
imaginação e da razão, assim, coloca a possível essência de tais potências na relação. É o
mesmo procedimento de Pascal no fragmento Desproporção do homem604 quanto à tentativa
de responder a pergunta: o que é o homem? Para Pascal, o homem é um ser composto de
corpo e alma; porém, esta mistura é tão radical que se torna impossível de separá-la. Desta
maneira, tornar-se-ia impossível conhecer a natureza do homem, pois para este conhecimento
seria necessário separar cada uma das partes e discernir a natureza delas. Para Pascal, tal
procedimento não obtém sucesso e a essência do homem baseada na relação é uma forma de
silenciar o discurso. Todavia, para Descartes, a composição do homem não destrói a
possibilidade de conhecer o simples, já para Pascal, a “mistura” é motivo de confusão. Quanto
às potências o processo é o mesmo: Descartes separa imaginação de intelecção pura de
maneira clara e distintamente; para Pascal, contrariando tal tarefa, tal discernimento é
impossível. Quando a razão atua a imaginação acompanha e vise versa. Diante disso, Mesnard
nos traz um novo dado: a imaginação sobrepuja a verdade. Ela faz de si mesmo verdade, ela
veste a carapuça do nome verdade: eis um outro efeito da imaginação. Sendo a verdade
volúvel de acordo com as disposições das pessoas, a imaginação molda a verdade de acordo
602
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 193 – 194.
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 11.
604
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 78 – 86.
603
171
com estas disposições contextuais. “Verdade aquém dos Pirineus, erro além.”.605 É desta
forma que a imaginação procura a opinião do verdadeiro. As pessoas não querem consentir
àquilo que é duvidoso, mas somente à verdade. Tomando a carapuça da verdade, a
imaginação comanda sempre as operações da razão impossibilitando o discernimento entre o
verdadeiro e o falso, lançando o conhecimento nos mares revoltos da contingência. Se a
imaginação pudesse ser naturalizada, ou seja, identificada na sua pureza, ela seria a referência
entre o real e o imaginário: o real é da alçada da razão e o fantástico é da alçada da
imaginação. Mas o trabalho da imaginação é justamente o contrário, ela esconde a referência,
sobrepuja a razão e sustenta diversas opiniões no mundo sem podermos discernir entre as
verdadeiras e as falsas:
Mas, sendo o mais das vezes falsa, ela não mostra nenhum sinal dessa sua
qualidade, marcarndo com as mesmas características o verdadeiro e o falso.
Não estou falando dos loucos, e sim dos mais cordatos, e é entre eles que a
imaginação assume o grande direito de persuadir os homens. Por mais que a
razão grite, não consegue dar o devido valor às coisas.606
Afirmando a ausência de discernimendo entre o verdadeiro e o falso podemos então, a
partir do conceito de contingência do capítulo anterior, afirmar que a imaginação é uma
manifestação da contingência. Mas poderíamos também, contrariando tal hipótese, supor que
a imaginação antes de ser a marca da contingência é a manifestação da loucura? No contexto
de Pascal, afirmará Henri Gouhier607, o conceito loucura era usado em três sentidos: o
primeiro, “[...] ele designa o estado daquele que está privado da sabedoria sobrenatural
[...]”608, ou seja, todo homem pecador é um louco, visto que o pecado corrompeu a todos609; o
segundo, faz referência à loucura das coisas de Deus para o homem pecador, como afirmará
São Paulo: “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos
salvos, é o poder de Deus.”610; o terceiro, “[...] designa o estado daquele que está privado da
sabedoria natural [...]”.611 Este último, afirma Gouhier, é importante para entendermos a
605
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 60, Bru. 294, p. 21.
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 12.
607
Ver Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 144 – 153. Sobre a relação existente entre o
conceito de loucura e sabedoria, assim como as maneiras que Pascal relaciona os conceitos nos seus respectivos
contextos.
608
Ibid., p. 151
609
Cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 412, Bru. 414, p. 156.
610
I Cor 1, 17, Português. In: BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
611
Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 151.
606
172
maneira que Pascal usa o conceito no contexto do fragmento sobre a imaginação: “Pascal vai
mesmo servir-se da palavra em seu sentido mais banal no interior do longo texto
cuidadosamente redigido que expõe sua psicologia da imaginação.”.612 A idéia é que o ser
racional é sábio, de modo que a ausência da racionalidade é o estado próprio da loucura, ou,
em uma linguagem mais moderna, um estado de descompensamento mental. Assim, Pascal é
categórico para com aqueles que desejam atribuir a potência imaginativa somente aos homens
que possuem um descompensamento mental libertando o chamados racionais das agruras da
imaginação: “Não estou falando dos loucos, e sim dos mais cordatos”. Todavia, ele sabe da
flexibilidade do conceito de loucura: “Os homens são tão necessariamente loucos que seria ser
louco, de um outro jeito de loucura, não ser louco.”.613 Diante destas duas últimas passagens
chegamos a um paradoxo tipicamente pascaliano frente à seguinte pergunta: O homem é
louco? A resposta de Pascal é sim e não. Sim, porque o homem é um ser errante e solitário em
um universo infinito e silêncioso, perdido no vazio da referencia depois da falta adâmica. “O
silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.”. 614 A imagem pascaliana é típica de um
homem em surto catatônico. E não, pois há como limitar o mal que causa as loucuras dos
homens, empreendimentos realizados desde a antiguidade tanto por Platão quanto por
Aristóteles: “Se escreveram sobre política, foi como para regulamentar um hospital de
loucos.”.615 Diminuir os males entre os homens estabelecendo leis eficazes não eliminamos a
loucura, porém, abrandamos suas conseqüências destruidoras. Pascal tenta impedir a
afirmação de que a imaginação só atua nos considerados loucos – por uma convenção social
qualquer – para que não sejam subtraídos os efeitos nefastos da mesma em boa parte da
humanidade. Portanto, ela atua em todos os homens, tanto nos considerados “loucos” pelo
contexto vigente quanto “não-loucos”. Assim, a imaginação produz seus efeitos naqueles
considerados como os mais qualificados, mais prudentes, mais ajuízados, em suma, nos
doutos. Um deles é o chevalier de Méré. Em uma carta endereçada a Fermat, matemático
conceituado, Pascal discute a regra dos partidos, entretanto, se espanta com o não
consentimento do chevalier de Méré quanto à divisibilidade de uma linha ao infinito.
Vejamos a passagem, já que a partir dela constataremos os efeitos da imaginação.
612
Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 150.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 412, Bru. 414, p. 156.
614
Ibid., Laf. 201, Bru. 206, p. 86.
615
Ibid., Laf. 533, Bru. 331, p. 243.
613
173
Eu não tenho tempo de vos enviar a demonstração de uma dificuldade que
espantava muito M..., pois ele tem um bom espírito, mas não é geômetra616
(isto é, como sabeis, um grande defeito) e não compreende que uma linha
matemática seja divisível ao infinito e acredita muito bem entender que ela é
composta de pontos em número finito, e jamais pude tirar isso dele.617
Para um geômetra a infinita divisibilidade de uma linha reta é razoável, assim como a
do número, da matéria, do movimento e do espaço. Tal afirmação geométrica Pascal faz
questão de enfatizar: “Assim, um espaço, por menor que seja, não pode ser dividido em dois,
e estas metades divididas ainda mais? E como poderia ocorrer que estas metades fossem
indivisíveis, sem extensão alguma, elas que juntas, formavam a primeira extensão?”.618 O
argumento de Pascal é simples. Por exemplo, na divisão da matéria ao infinito nunca
poderíamos chegar ao fim, pois se chegássemos encontraríamos dois pedaços de matéria e
seria inviável que duas partes formasse um todo. Se encontrassemos, por exemplo, dois nadas
de matéria, o raciocínio seria o mesmo: dois nadas de matéria não poderão formar um todo. A
surpresa de Pascal é a impossibilidade de fazer Méré consentir com este raciocínio.619 Pascal e
Méré possuem dois sentimentos – ato inteligente na 2ª ordem – acerca de um mesmo assunto:
a divisibilidade de uma reta. Pascal diz que a divisibilidade é infinita, Méré diz que é finita. A
imaginação revela seu efeito na sua relação com o sentimento:
Todo o nosso raciocínio se reduz a ceder ao sentimento.
Mas a fantasia é semelhante e contrária ao sentimento; de modo que não se
pode distinguir sob estes dois contrários. Um diz que meu sentimento é
fantasia, o outro que sua fantasia é sentimento. Seria preciso ter uma regra. A
razão se oferece, mas é flexível a todos os sentidos.
E assim não existe nenhuma.620
O caso acima entre Pascal e Mére é um exemplo no qual a razão é flexível em todos os
sentidos para fazer consentir: tanto Pascal quanto Méré reduzem seu raciocínio ao sentimento,
ou seja, sentem a veracidade de suas afirmações, mas não conseguem deduzir toda a cadeia de
616
“[...] pois, pode-se facilmente ser um homem muito hábil e péssimo geómetra.”. (Blaise PASCAL, De
l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 354).
617
Idem, Lettre de Pascal a Fermat: le 29 juillet 1654, p. 43. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis
Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 43 – 46.
618
Idem, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 352.
619
Ver Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 163.
620
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 530, Bru. 284, p. 242.
174
causa e efeito que provaria o enunciado sustentado por cada um. Não há objetividade em
nenhum dos enunciados, porém, a motivação de Pascal é a razoabilidade, ou seja, as
condições favoráveis que o motivam a consentir, por exemplo, que a linha reta é divisível ao
infinito, como vimos acima. Todavia, dirá Pascal, quando o raciocínio cede ao sentimento
corremos o risco de que o sentimento ceder a fantasia: um outro nome para a imaginação. A
fantasia ao mesmo tempo que é semelhante ao sentimento é contrária. Outro paradoxo
pascaliano. O objetivo desta afirmação é simples: incapacitar o agente cognitivo a discernir
aquilo que é fantasia daquilo que não é. A aporia ganha seu ar polêmico na medida que “[...]
um diz que meu sentimento é fantasia, o outro que sua fantasia é sentimento.”, ou seja, não há
critério último para analisar a veracidade dos argumentos, somente motivos que concedem
certa razoabilidade ao consentimento de cada argumento. Tal controvérsia poderia ser
dissolvida por uma regra construída pela razão, mas esta mesma razão imersa na contingência
tem sua operação regida pelo império da imaginação que a sobrepuja e aniquila tanto o
critério de verdade quanto de falsidade, produzindo regras que balançam com o tempo,
circunstâncias ou com as disposições acidentais da vontade de cada um. A razão, e sua
intrinseca relação com a imaginação, não é point de repére de nenhuma regra clara e distinta.
Com um simples solavanco da imaginação, a razão, ao tentar criar uma regra para discernir
sentimento e fantasia, poderá depara-se com uma infinidade delas. Em qual delas deveríamos
consentir? A idéia oferece aqui uma grande generalidade: as opiniões humanas podem entrar
sob a rubrica seja do “sentimento”, seja da “fantasia”621, não havendo regra infalível para
discernir um e outro. A cadeia dedutiva que usa do sentimento para produzir seus axiomas –
existe o tempo, existe o movimento, ou que uma reta pode ser dividida ao infinito, etc – verse-ia destruída. Como saberei se dentro do processo dedutivo uso das fantasias ou do
sentimento? A aporia pascaliana sempre coloca a imaginação como uma potência que impede
o discernimento, ou seja, sempre se apresenta como contingência. “Por mais que a razão grite,
não consegue dar o devido valor as coisas.”.622 Esta dificuldade da razão de fornecer o devido
valor às coisas nos faz afirmar que é a imaginação que engendra o real valor das coisas que as
pessoas consentem. Como afirma os comentadores Bras e Cléro, “[...] seus efeitos não são
conceitos, mas aquilo que nós poderíamos chamar de realidades.”623. Mas a potência
imaginativa estaria limitada à produção de realidades somente?
621
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 123.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12.
623
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 16.
622
175
2.2 – Engenharia da imaginação: conceitos, realidades e naturezas.
A afirmação de Brás e Cléro que a imaginação tem como efeito a produção de
realidades e não de conceitos me parece pertinente quanto à produção de realidades, todavia,
discordamos da posição dos autores quanto à desqualificação da imaginação enquanto
produtora de conceitos. Diante disso, em um primeiro momento, analisaremos estes dois
pontos, depois veremos a importância da imaginação na construção das naturezas.
Primeiro: quanto a produção de conceitos. Em uma carta ao Sr. Pailleur, um geômetra
da época, Pascal descreve a sua resposta à algumas considerações do padre Noel sobre as
controvérsias acerca do vácuo. Uma das críticas entrepostas por Pascal é a proliferação de
conceitos.
Escrevendo estas palavras, acabo de receber um bilhete deste Padre, que muda
a maior parte de seu livro: ele revoga a leveza movente do éter, invocando o
peso do ar exterior para sustentar o mercúrio. De maneira que eu acho muito
difícil de refutar os pensamentos deste Padre, já que ele é o primeiro a mudálos rapidamente, antes que se possa responder-lhe; e começo a ver que a sua
maneira de agir é bem diferente da minha, porque ele produz suas opiniões à
medida que as concebe; mas suas próprias contrariedades bastam para mostrar
a falta de solidez, visto que o poder com o qual ele dispõe esta matéria
testemunha suficientemente que ele é seu autor e, portanto, que ela só subsiste
na sua imaginação.624
Pascal sustenta que o espaço entre o cûme do tubo de ensaio e o mercúrio é vazio até
que alguém mostre que há alguma matéria que o preencha.625 Padre Noel, contrariando
Pascal, sustenta que o espaço em questão não está vazio, mas há matéria: inicialmente “ar
sutil”626, depois muda para “éter”627. Tal nome não durará muito, visto que antes da resposta
de Pascal outras considerações e outros nomes criados pelo padre Noel já rondavam o debate.
Estas afirmações nos fazem supor que a imaginação também é produtora de conceitos, de
modo que o efeito da mesma faz o sujeito produzir conceitos em demasia tornando o discurso
equívoco. Eis o problema detectado por Pascal nos escritos do padre Noel: proliferação de
624
Blaise PASCAL, Lettre de Pascal a M. Le Pailleur: au sujeit du Père Noel, Jésuite, p. 214. In: Idem, Ouvres
complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 208 – 215.
625
Cf. Ibid., p. 209.
626
Ibid., p. 213.
627
Ibid., p. 214.
176
conceitos pelos solavancos da imaginação e, conseqüentemente, equivocidade do discurso.
Pascal desqualifica o pensamento do jesuíta em questão como fruto da sua imaginação, visto
que ele “[...] não conhece as experiências senão por escrito [...].”.628 Não adianta dar o nome
de corpo a uma substância que Noel sublinha ser imperceptível, mas detectar tal realidade é
de extrema importância em física
629
: Noel diz que não podemos negar a materialidade
daquele espaço, “[...] embora os olhos nos façam ver o contrário.”.630 Depois de citar as
inconcruências conceituais imaginadas pelo padre Noel, Pascal também destaca as
controvérsias entre aqueles que sustentam que o espaço vazio possui matéria, censurando a
outra quantidade de nomes e idéias que surgem: cada cientista concebe um tipo de
susbstância. Ele não se dá o trabalho de combater estes pensadores, visto que basta abandonálos em seus próprios labirintos de obscuridades. Portanto, sustentamos que a imaginação é
uma potência geradora de conceitos contrariando a afirmação acima dos comentadores Bras e
Cléro, assim, como o sofista Górgias afirmava, os conceitos engenhosamente imaginados
sempre causam efeitos: seu uso poderá ser persuasivo.
Segundo: quanto à produção de realidades. Toda realidade possui uma relação com o
eu. É o eu que concede o “prix” às coisas. Não existe realidade se o eu não a reconhece. Desta
maneira, o mundo exterior – realidade – é sempre algo em relação com um eu que o
reconhece. O eu se faz centro de tudo631 e concede o valor às coisas, ou seja, às realidades.632
Logo, a realidade se apresenta na relação com o eu, mediada pela imaginação, como sustenta
Bras e Cléro: “A potência própria da imaginação é, portanto, de se apresentar como realidade
– ao meio da experiência e do costume – um mundo de existência possível.”.633 Verificamos
que a imaginação se move entre a experiência – que é sempre a experiência de um eu que se
faz centro de tudo e concede valor às coisas visando aquilo que é do seu interesse – e o
costume, ou seja, repetição contínua de uma mesma experiência. A repetição de uma
experiência de maneira contínua produz o costume que o eu concebe, construindo assim a
628
Blaise PASCAL, Lettre de Pascal a M. Le Pailleur: au sujeit du Père Noel, Jésuite, p. 214.
Ver René GIRARD, O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004, p. 8 – 10. Diante da peste que assola a
Europa no século XVI a mudança conceitual do nome peste para epidemia pareceria diminuir o caos.
Destacamos tal procedimento porque da mesma maneira que a criação de nomes pode ser prejudicial, como é o
caso descrito acima dentro do contexto da física, em outras situações poderá ser de extrema importância. “Uma
doença bem nomeada parece meia cura e, para se dar uma falsa impressão de controle, freqüentemente se
rebatizam os fenômenos que não são controláveis.”. (René GIRARD, O bode expiatório, p. 9). Um exemplo de
mudança conceitual que proporcionou grandes mudanças na física é dado pela descrição dos procedimentos de
Galileu para sustentar a não operatividade – não percepção – do movimento recorrendo ao conceito platônico de
anamnese. (Ver Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 129).
630
Blaise PASCAL, Lettre de Pascal a M. Le Pailleur: au sujeit du Père Noel, Jésuite, p. 214.
631
Ver Idem, Pensamentos, Laf. 597, Bru. 455, p. 260.
632
Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 18.
633
Ibid., p. 18.
629
177
realidade para o eu: tal procedimento é mediado pela imaginação. Diante disso, é a
composição destes elementos, costume, imaginação e experiência, que construirá aquilo que
chamamos realidades, ou seja, a realidade que o eu concebe é a fusão destes três elementos.
Todavia, sabemos que o costume possui uma ligação muito tênue com o interesse, sendo que
o costume muda caso o interesse apresente mudanças. Desta maneira, percebemos que além
dos três conceitos acima que constroem a realidade, o interesse, pela ligação que possui com o
costume, também é importante na composição da realidade. Assim, destacamos que a posição
de Bras e Cléro é a mesma daquela de Ferreyrolles quanto à atuação da imaginação entreposta
entre costume e interesse.634 Tal afirmação dos comentadores está de acordo com uma
passagem mais ao final do fragmento 44: “Nosso interesse próprio é também um maravilhoso
instrumento para nos furar os olhos de maneira agradável.”.635 A constituição da realidade tem
seu “fundamento” no costume, imaginação e experiência, mas o primeiro, como está
intimamente ligado ao interesse do eu, e como este é sempre flutuante no homem, a realidade
será resultado da contingência, ou seja, a visão da mesma é sempre contingente, sujeita a
mudança com um simples princípio de prazer diferente em cada homem ou em uma
determinada circunstância em um mesmo homem. Mas será a imaginação que se interpõe na
composição da realidade, ela não é uma irrealidade, mas é ela quem dá consistência àquilo
que concebemos como real. A imaginação muda o interesse do eu, que altera o costume, que
faz o eu experimentar o mundo de maneira diferente e construir uma nova visão do real. Por
exemplo, eu tenho o costume de ver o sol nascer e experimentamos tal fato todos os dias,
logo, a imaginação sustenta a certeza da crença na continuidade deste evento para o futuro e a
razão não duvidará que o sol nascerá amanhã; também sabemos que é de vital interesse
humano o nascimento do sol, pois ele garante o calor suficiente para nossa sobrevivência:
vemos que os cinco conceitos estão ligados na composição da realidade. Portanto, eis o
sistema pascaliano da construção da realidade: a experiência contínua do nascimento do sol
produz o costume de que o mesmo vai nascer sempre, costume este que se relaciona com o
interesse do eu de sobreviver, de maneira que a imaginação sustenta tal realidade. Através
deste exemplo podemos ver como a imaginação atua na estabilização do costume pela
repetição da experiência e reforça a crença do nascimento do sol pelo interesse vital do eu em
se preservar.
634
Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 18. Os autores usam do
conceito desejo e costume, mediado pela imaginação.
635
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12.
178
Diante da afirmação do papel da imaginação enquanto construtora da realidade, Bras e
Cléro destacam três princípios de funcionamento da imaginação nesta operação. O primeiro é
de fazer-nos critério, centro e norma de tudo que queremos conhecer, sem levar em conta a
desproporção – distância – entre o mundo e o sujeito que quer conhecer636: “Em vez de
receber as idéias dessas coisas puras, nós as tingimos com nossas qualidades e impregnamos o
nosso ser composto (de) todas as coisas simples que contemplamos.”.637 As idéias que
concebemos das coisas são filtradas pela particularidade que o sujeito recebe tais idéias.
Pascal coloca a essência na relação entre objeto e sujeito e como cada sujeito pode conceber
de uma forma determinado objeto, esta relação é sempre contingente. Tal efeito da
imaginação nos faz lembrar a máxima protagórica na qual o homem é medida de todas as
coisas que são e que não são.638 O segundo é de projetar nosso ser onde não estamos, tanto
temporalmente como espacialmente, entre dois nadas.639 “Quase não pensamos no presente, e
se nele pensamos é somente para nele buscar a luz para dispormos do futuro. O presente
nunca é o nosso fim.”.640 O homem é descrito como um ser entre dois nadas, ou seja, entre um
passado que já se foi e desapareceu, mas que ocupa nosso pensamento, e um futuro que não
temos certeza que vamos alcançar. O único tempo que é nosso, o presente, preferimos não
ver: “É que, em geral, o presente nos fere.”.641 Passado e futuro estão ligados a contingência
de nossos pensamentos, ou seja, o passado depende de uma memória que poderá desaparecer,
o futuro depende do curso da vida que poderá encerrar-se com a morte, mas também de um
conjunto de acontecimentos para que o futuro esperado aconteça. Portanto, nunca vivemos o
tempo presente, vivemos as lembranças do passado e o medo de um futuro incerto: a
contingência ligada ao passado e ao futuro acompanha nosso presente que é sempre uma
projeção, realizada pela imaginação, para o passado ou para o futuro. Por exemplo: sabendo
que o homem sempre morreu e que continua a morrer, conseqüentemente – e é aí que está a
projeção –, acredita-se que os homens sempre morrerão. A imaginação projeta a
contemplação do passado e do presente para o futuro incerto. O último é o deslocamento, ou
636
Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 19.
Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85.
638
“Sócrates – Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a definição de Protágoras; por outras
palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a medida de todas as coisas, da existência das que
existem e da não existência das que não existem. Decerto já leste isto?”. (PLATÃO, Teeteto. 3ªed. trad. Carlos
Alberto Nunes. Belém: Universitária UFPA, 2001, p. 49). Também Montaigne traz em seus Ensaios a máxima
protagórica: “Na verdade, Protágoras mostrava-se fantasista escolher o homem para medida de todas as coisas, o
homem que jamais conheceu sua própria medida.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond,
II, 12, p. 466. In: Idem, Ensaios. trad. Sérgio Milliet. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 370 – 504).
639
Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 19.
640
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 47, Bru. 172, p. 17 – 18.
641
Ibid., Laf. 47, Bru. 172, p. 17.
637
179
seja, quando um objeto é captado pelos sentidos ele está acompanhado de outros objetos que
se ligam ao objeto primeiro e modificam nossos sentidos, ou seja, nossa forma de conceber as
coisas. Esta capacidade de associação da imaginação desloca o essencial para o
circunstancial642, o absoluto para o relativo e o necessário para o contingente. É o caso dos
médicos, por exemplo, que são pensados sempre com seu aparato augusto, seus instrumento e
roupas que parecem trazer em si a cura. Nunca um médico é pensado sem estes elementos,
algo que discutiremos mais abaixo. A imaginação desloca a idéia objetiva de um objeto
associando outros objetos à esta idéia. Em suma, para Bras e Cléro a imaginação faz do
homem critério de análise, ela projeta nosso ser e desloca o conhecimento objetivo das coisas,
associando outros objetos ao primeiro.
Tais efeitos ressaltam a guerra entre a razão – responsável pelo conhecimento objetivo
e verdadeiro das coisas – e a imaginação, que sobrepuja a razão e ironicamente produz
natureza. É a imaginação que impedirá que a razão formule um enunciado necessário e
absoluto que transcenda todos os tempos e contextos. Diante disso, depois de analisarmos a
função da imaginação na construção dos conceitos e das realidades, vejamos o papel da
imaginação na construção da natureza:
Essa soberba potência inimiga da razão, que se compraz em controlá-la e em
dominá-la, para mostrar quanto poder tem em todas as coisas, estabeleceu no
homem uma segunda natureza. Ela tem seus felizes, seus infelizes, seus
sadios, seus doentes, seus ricos, seus pobres. Ela faz acreditar, duvidar, negar
a razão. Suspende os sentidos, fá-los sentir. Tem seus loucos e seus sábios. E
nada nos deixa mais desarvorados do que ver que ela cumula os seus hóspedes
de uma satisfação muito mais plena e inteira do que o faz a razão.643
A capacidade de dominação da imaginação sobre a razão faz dela imperatriz do
espírito. A relação entre estas duas potências é marcada pela assimetria dominadora da
imaginação, a guerra é sempre vencida e a razão ver-se-ia acuada e incapaz de realizar seu
trabalho: conceder o valor objetivo, necessário e absoluto das coisas. Diante disso destacamos
quatro efeitos da relação de submissão entre imaginação e razão. O primeiro é a contingência
entre a proposta teórica da razão e seu funcionamento real. A imaginação mergulha a razão na
contingência, de modo que a razão é incapaz de funcionar, a nível experimental, como ela se
642
643
Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 20.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12 – 13.
180
propõe a nível intelectual, ou seja, a razão estabelece teoricamente sua função de buscar a
objetividade, o universal e a natureza das coisas, mas quando realmente exerce seu trabalho a
imaginação dilacera sua busca de um ponto fixo que possa traduzir o ser do objeto. “Nada
existe tão conforme à razão quanto desmentir a razão.”.644 A razão exercendo sua função se
movimenta como um pêndulo de um relógio sem ponto fixo: a imaginação com seus saltos é
responsável por estes descontínuos deslocamentos. O segundo é a contingência da razão na
sua irascível relação com a imaginação. A imaginação só permite que a razão fale das
aparências645 e circunstâncias que a afetam: nenhum enunciado racional poderá abraçar toda
cadeia de causa e efeito que rodeia um fato. Um enunciado sempre estará sujeito à
contingência imaginativa do sujeito, ser capaz de imaginar muitas explicações e opiniões
sobre um mesmo evento ou tema: “280 variedades de soberano bem em Montaigne.”.646 O
terceiro é a contingência em um mesmo sujeito. A contingência circunstancial que envolve o
sujeito no tempo, espaço, humor e nos acontecimentos inesperados, faz do homem “[...]
dependente e, por toda parte, sujeito a ser perturbado por mil acidentes [...]”.647 Mas porque
dependente? A imaginação interfere no tempo, este poderá ser mais rápido em uma situação
prazerosa e mais lento em um momento de tortura; interfere na organização legal do espaço,
pois “[...] três graus de aproximação do pólo invertem toda jurisprudência [...]”648; interfere no
humor, pois “[...] prazer demais incomoda, consonâncias demais desagradam na música, e
benefícios demais irritam”649; e nos acontecimentos inesperados como uma possível morte
eterna, capaz de fazer o interlocutor de Pascal no final do fragmento da aposta650 declarar em
desespero: “Que quereis então que eu faça.”.651 O quarto efeito é a contingência dos fatos ou
eventos naturais, pois aquilo que era contínuo como o dia e a noite poderá desaparecer:
“Quando vemos acontecer sempre a mesma coisa, concluímos que existe uma necessidade
natural, como que amanhã fará dia etc., mas muitas vezes a natureza nos desmente e não se
644
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 182, Bru. 272, p. 73.
“Não procuremos, portanto, segurança e firmeza; nossa razão está sempre decepcionada pela inconstância das
aparências [...]”. (Ibid., Laf. 199 , Bru. 72, p. 83).
646
Ibid., Laf. 408, Bru. 74, p. 155.
647
Ibid., Laf. 132, Bru. 170, p. 49.
648
Ibid., Laf. 60, Bru. 294, p. 21.
649
Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 82 – 83. Ver também Ibid., Laf. 705, Bru. 180, p. 287. Pascal sublinha que as
pessoas podem possuir os mesmos acidentes como aborrecimentos e paixões, mas um poderá sentir mais do que
o outro os mesmos afetos. Para explicar tal idéia ele concede uma metáfora: dois homens amarrados em uma
roda, sendo que um deles está preso na extremidade mais alta e o outro mais próximo do centro. Quando a roda
movimenta-se, um agita-se mais do que o outro. Assim se manifestam os afetos que envolvem os homens: um
mesmo afeto (o giro da roda), manifesta-se em cada indivíduo diferentemente.
650
Ibid., Laf. 418 , Bru. 233, p. 158 – 163.
651
Ibid., Laf. 418 , Bru. 233, p. 162.
645
181
sujeita as suas próprias regras.”.652 Assim, o costume – e o interesse – de ver sempre um
mesmo evento é transformada em lei natural pela nossa imaginação construindo aquilo que
Pascal chama de uma segunda natureza, ou seja, a realidade de concebemos.
A segunda natureza é criada pela imaginação e não deixa de ter uma conotação
irônica, destaca Ferreyrolles: “O conceito de natureza não é suscetível senão de um uso
irônico.”.653 Sua capacidade criadora654 produz homens felizes, infelizes, seus doentes, ricos e
pobres. Pascal sublinha que a imaginação é capaz de produzir divagações de humores como o
riso e o choro por uma mesma coisa: “Daí vem que se chora e se ri de uma mesma coisa.”.655
Seus ricos e pobres também entram na dinâmica imaginativa, visto que um rei com todos os
requintes de seu cargo poderá sentir-se mais infeliz do que o menor de seus súditos656 se ele
ceder as “[...] circunstâncias que o ameaçam, revoltas que podem acontecer e finalmente à
morte e doenças que são inevitáveis [...]”.657 É na constância dos acontecimentos que a
capacidade naturalizadora da imaginação se impõe. Basta que todos os dias na vida de um
homem sejam felizes para que os dias felizes se tornem um tédio, ou seja, a imaginação
naturaliza o ennui por meio da sua capacidade repetidora. Um rei triste é um rei tão pobre
quanto o seu menor súdito que possui a certeza do caráter divino658 do rei. Portanto, a
imaginação enquanto potência é capaz de criar crenças, duvidar delas, negar a razão que
imperou por tanto tempo659. “Desta maneira, o costume encontra-se perfeitamente substituído
pela natureza. Como esta mudança tornou-se possível? Pela operação inversa. A natureza só
identificável ao costume porque o costume foi inicialmente identificado hiperbolicamente à
natureza.”.660 Ferreyrolles sustenta que a capacidade imaginativa de constituir-se como
natureza foi a superabundância da repetição do costume, sendo que aquilo que era costume
agora ganha seus contornos naturais de universalidade e necessidade. Aquele que vê um
acontecimento repetir-se defende a sua constância que supera o tempo e o espaço. Há uma
mudança de pontos de vista que os comentadores Bras e Cléro chamam a atenção: “Há uma
disponibilidade e uma propensão à mudança de pontos de vista que faz a essência mesma da
652
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 660, Bru. 91, p. 276.
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 45.
654
Ver Ibid., p. 172. O homem é um ser desprovido da graça e permeado por um figmentum malum. Figmentum
vem do verbo fingo que significa criar e pode significar aquilo que compõe o homem – estrutura pecaminosa
depois da queda – ou as criações fingidas da imaginação.
655
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 54, Bru. 112, p. 19.
656
Ver Ibid., Laf. 136, Bru. 139, p. 51.
657
Ibid., Laf. 136, Bru. 139, p. 51.
658
Ver Ibid., Laf. 26, Bru. 330, p. 8.
659
Ver Ibid., Laf. 182, Bru. 272, p. 73.
660
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 47.
653
182
imaginação e que se não é o pensamento exato das coisas, é ao menos sua condição.”.661 A
imaginação transforma a maneira de conceber o mundo, muda nossa concepção e faz da
repetição circunstancial do costume uma lei natural. As ilusões da imaginação tornam-se a
consistência que sustenta o real e organiza localmente nossa forma de ver o mundo. A razão é
coagida pelas ilusões das repetições apreendidas pelos sentidos e constâncias produzidas pela
imaginação, assim como a não repetição e inconstância. Da mesma maneira que a imaginação
pode fazer alguém conceber um mesmo pensamento mil vezes sobre determinado fato, ela
também poderá trazer mil pensamentos diferenciados sobre um mesmo fato. Constância e
inconstância, repetição e não repetição, são efeitos desta potência enganadora que ao
relacionar-se com qualquer coisa sempre produz contingência. Depois de sublinharmos as
capacidades construtoras da engenhosa imaginação na proliferação de conceitos, realidades e
naturezas, vejamos os efeitos desta potência enganosa em sua relação com os sentidos.
2.3 – Sentidos e a imaginação.
Os sentidos também são afetados pelos efeitos contingentes da imaginação, pois ela é
capaz de suspendê-los ou nos fazer senti-los. Analisaremos uma passagem célebre do
fragmento 44 dos Pensées para verificarmos os efeitos da imaginação nos sentidos.
O maior filósofo do mundo em cima de uma tábua mais larga do que o
necessário, se houver abaixo dele um precipício, por mais que a razão o
convença que está em segurança, a sua imaginação prevalecerá. Alguns nem
podem pensar nisso sem empalidecer e suar.662
O caso acima destacado por é um exemplo claro dos efeitos da imaginação nos
sentidos. Sabemos que tal passagem é resultado das leituras da obra de Montaigne663, mas a
661
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 16.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13.
663
“Ponha-se um filósofo em uma gaiola de arame fino e pendure-se no alto das torres de Notre-Dame. Verá de
maneira evidente que não pode cair e apesar disso, a menos de estar familiarizado com o ofício de pedreiro, não
evitará o medo, transido de pavor pela vista da altura. [...] Jogue-se entre as torres da catedral uma tábua
suficientemente larga para passarmos; não haverá sabedoria filosófica, por mais admirável que seja, capaz de nos
infundir a coragem de andar em cima dela como o faríamos se a tábua assentasse no chão.”. (Michel de
MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 496 – 497). Michel de Montaigne no capítulo XXI do
livro I dos Ensaios escreve um texto com o título A força da imaginação. É bem provável que Pascal tenha
refletido muito acerca deste texto, pois alguns dos temas do mesmo são ressaltados no fragmento 44 dos
Pensées. Vejamos alguns dos efeitos da imaginação aquilatados por Montaigne: uma imaginação que muito
preocupa-se com um acontecimento qualquer poderá provocá-lo; o sofrimento de pessoas causados por sentir
que um outro ser sofre; um pesquisador adquire uma doença que estuda pelo fato de refletir muito acerca de tal
662
183
disposição do conteúdo nos Pensées não deixará de sublinhar seus contornos apologéticos.
Um filósofo, o maior do mundo, em cima de uma tábua larga é a descrição de alguém que tem
razão suficiente para entender que está em perfeitas condições de segurança, mas diante do
abismo que se encontra debaixo da tábua, a segurança racionalmente objetiva se dissolve
dando lugar à imaginação que com seus solavancos faz o filósofo empalidecer e suar. A
imaginação engana os sentidos causando efeitos dispares mesmo nos homens mais doutos. O
maior filósofo do mundo é um termo indeterminado, mas destaca alguém que confia na razão
como fator preponderante para uma decisão, mas ao contrário disso, a imaginação se agita e
causa medo, este porém, capaz de mudar comportamentos e fazer o filósofo não arriscar em
tal empreitada. A confiança na razão é disseminada pela imaginação e a dúvida quanto a
segurança da tábua prevalece. Sendo a dúvida uma manifestação da contingência, já que
haverá possíveis respostas para uma mesma pergunta, o filósofo caminhando na tábua é figura
da queda de Adão: esta será a leitura de Ferreyrolles. Vejamos :
A imaginação estabelece em nós “uma segunda natureza”664 – a natureza
caída. Isto é porque o filósofo vertiginoso cuja razão bate em retirada diante
da imaginação de seu corpo precipitado representa toda a humanidade: a
apreensão (nos dois sentidos) de sua queda física metaforiza a queda
objeto; a imaginação provoca febre e até a morte em quem não consegue controlá-la; um doente visitado por
outrem melhora ao contemplar a alegria daquele que visita; o estudo da loucura fez com que um estudioso ficase louco por excesso de sabedoria; o pavor de um condenado diante do carrasco provoca antecipadamente a
morte; os jovens satisfazem seus desejo amorosos pelo sonho; a beleza de alguém provoca a febre de outrem; a
mudança de sexo como um efeito dos sobressaltos da imaginação; a imaginação provoca estigmas como é o caso
de São Francisco; o corpo ergue-se do seu lugar pela força da imaginação; as pessoas vêem coisas que na
verdade não vêem; provoca ejaculações precoces; ajuda um homem a confiar em um talismã que impedirá que
ele mostre-se impotente durante um ato sexual; excita de forma inoportuna o órgão fálico do homem e em outras
ocasiões impede a excitação do mesmo colocando-se em oposição a vontade humana; mostra que cada parte do
corpo possui seus impulsos próprios, por exemplo, movimentos involuntários do rosto revelam pensamentos que
gostaríamos de conservá-los secretos; independência de outros órgãos como o coração, pulmão, pulso; a vista de
um objeto agradável ascende em nós uma emoção febril; o cabelo arrepia-se sem o controle de nossa vontade,
assim como nossa pele em ocasiões de desejo ou medo; movimento involuntário das mãos; paralisação da voz e
da língua em determinadas situações; quando não temos o que comer o apetite sobrevém e nos incomoda, tal
apetite também acalma-se e irrita-se quando bem quer; a imaginação causa evacuações sonoras, diferentes tons
nestas evacuações, descontrole e contenções das mesmas podendo causar a morte; doentes que saram ao ver
apetrechos operatórios; relatos de dor provocados por objetos cortantes que não existem; mentiras que provocam
descontroles estomacais, por exemplo, um jovem ofereceu um jantar de ovelhas, mas depois, mentindo, disse a
todos que a carne era de gato e algumas pessoas manifestaram disfunções estomacais; olhos saudáveis que ao
olhar outros olhos doentes adoecem; animais que ficam brancos por viverem em um ambiente no qual
contemplam constantemente a neve; o olhar de um gato é capaz de derrubar um pássaro do galho de uma árvore
e fazê-lo cair nas presas do gato. Estes são alguns efeitos que a imaginação provoca não só no homem, mas em
outros seres como afirma Montaigne. (cf. Michael de MONTAIGNE, A força da imaginação, I, 21, p. 105 – 114.
In: Idem, Ensaios. trad. Sérgio Milliet. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 105 – 114).
664
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12.
184
metafísica da espécie, pois se ele tem medo de cair sem razão, é que ele já
está, enquanto homem, “caído de seu lugar”665. 666
A segunda natureza, ironia de Pascal, é a natureza caída: imersa na contingência e
desprovida de verdade. Ferreyrolles destaca que o filósofo andando na tábua e afetado pela
vertigem da queda representa toda humanidade. Sua queda se divide em duas partes: uma
queda real ao realizar uma experiência concreta deste tipo e uma queda metafórica, visto que
o filósofo não encontra fundamento racional para seu medo, já que a tábua larga é garantia de
sua segurança, desta maneira, o medo que o afeta é o pavor de um homem que já caiu há
muito tempo: “[...] ele está decaído de uma natureza melhor que lhe era própria anteriormente
[...]”.667 A ligação entre o pecado original e a experiência/metáfora da tábua no fragmento da
imaginação sustenta a hipótese deste capítulo na qual a contingência – neste caso dos
sentidos, pois a imaginação suspende os sentidos ou fá-los sentir –, conseqüência da queda
adâmica, manifesta-se na imaginação. A contingência, sendo uma conseqüência do pecado
original, foi nosso objeto de análise no capítulo anterior, neste capítulo estabelecemos como
hipótese de trabalho que é na imaginação que se manifesta a contingência. Portanto, o medo
causado pela imaginação é figura – termo pascaliano – de uma queda causada por um pecado
realizado nos primórdios, afirma Ferreyrolles. Tal afirmação que faz uma ligação entre o
pecado e o modo como a imaginação atua também é sustentada pelos comentadores Bras e
Cléro: “Portanto, a imaginação é incompreensível se não se refere à queda original que lhe dá
razão.”.668 A imaginação tem como causa a queda. É pela queda que entendemos os
procedimentos da imaginação: eqüipolência da verdade, produção de conceitos, realidades e
naturezas, faz de cada homem critério de julgamento, projeção do nosso ser na concepção de
um objeto, deslocamento das qualidades de outros objetos que se associam ao objeto
primeiro. Tanto Ferreyrolles como Bras e Cléro fazem uma ligação direta entre a queda e a
imaginação. Nossa pesquisa interpõe entre a queda e a imaginação o conceito de contingência
que aponta ao mesmo tempo para o homem caído e os efeitos da imaginação. Visto o aspecto
teológico da passagem acima, Ferreyrolles estende o exemplo não só para o homem de fé,
mas para um simples leitor da passagem. O filósofo que negligencia fazer uma experiência
física como a da tábua não está isento dos afetos da imaginação, “[...] pois um grande número
daqueles que lêem aquela narração se põem incontinente, mesmo sem ter a necessidade de ver
665
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 430, Bru. 431, p. 174.
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 172.
667
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 117, Bru. 409, p. 40.
668
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 22.
666
185
a cena com seus olhos, a ‘empalidecer e a suar’.”.669 A imaginação persuade tanto no nível
físico quanto naquele de domínio estritamente intelectual. O filósofo sente na carne os
movimentos da imaginação que afetam o espírito. Tanto a primeira ordem como a segunda
são atingidas. No caso do filósofo na tábua. a primeira ordem é afetada causando
empalidecimento e suor. Todavia, Pascal nos dá um outro exemplo no fragmento 803 no qual
a imaginação causa prazer e satisfação: um artesão seria tão feliz quanto um rei se tivesse a
certeza que todas as noites sonhasse por doze horas que era rei, dirá Pascal.670 Neste exemplo,
diferentemente do filósofo que fica empalidecido e suado diante do descontrole da razão
frente a desconfiança que a imaginação produz, percebemos que a ficção imaginativa de um
sonho é capaz de produzir o prazer de ser rei em um artesão.
Portanto, diante do exemplo da tábua verificamos a capacidade da potência
imaginativa em fazer-nos sentir o desprazer de uma situação que é racionalmente segura,
todavia, se torna altamente arriscada pela insegurança que a imaginação submete o filósofo; o
exemplo do artesão revela a capacidade da imaginação de gerar prazer pela ficção: Tanto um
exemplo quanto o outro mostram que o homem seria vítima passiva dos efeitos da
imaginação, já que o filósofo tem sua razão confundida sem consentimento da vontade e o
artesão sonha sem o consentimento da vontade também. Entretanto, a imaginação é algo que
faz do homem totalmente passivo em relação a ela? Acreditamos não ser esta essa a posição
de Pascal: o homem pode usar da imaginação.
2.4 - Os versados em imaginação.
O uso da imaginação feita por alguns homens é destacado por Pascal. Vejamos como o
autor analisa o procedimento destes homens.
Os versados por imaginação se comprazem muito mais do que podem
comprazer-se razoavelmente os prudentes. Eles olham as pessoas com
domínio, disputam com audácia e confiança – e aquela alegria estampada no
rosto lhes dá muitas vezes vantagem na opinião dos ouvintes, de tal modo os
sábios imaginários desfrutam de favor junto aos juízes de mesma natureza.671
669
Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 145.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 803, Bru. 386, p. 317
671
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 13.
670
186
Tal passagem à primeira vista parece obscura e os comentadores não se debruçam
sobre ela para destrinchá-la. Algumas perguntas poderiam ser levantadas e as mesmas seriam
norteadoras para nossa leitura. 1ª) Quem são os versados em imaginação? 2ª) Quem são os
prudentes e porque os versados em imaginação disputam com domínio, audácia e confiança?
3ª) Qual natureza é essa que possui um juiz, que um sábio imaginário desfruta a seu favor?
1ª) Quem são os versados em imaginação?
Um versado em imaginação é um perito nos possíveis efeitos da imaginação e no uso
que poderiam fazer destes efeitos. Não adianta conhecer os efeitos e não fazer uso desta
potência enganosa. Conhecer os efeitos implica conhecer suas disposições teóricas, enquanto
fazer uso de tal potência é utilizá-la para um fim determinado e construído pelo perito.
Podemos destacar dois nomes que são peritos na arte de fazer uso da imaginação: Galileu e
Pascal. O primeiro usa da imaginação para construir suas experiências e colocar em xeque o
geocentrismo em favor de um heliocentrismo sem recursos, visto que apontar o telescópio ao
céu não era garantia de corroboração de sua teoria. Galileu não tinha recursos para demonstrar
a não-operatividade do movimento, ou seja, que um copo que possui um movimento igual a
outro não percebe o movimento de ambos. Galileu usa da imaginação para construir
experiências fictícias, imaginárias. O resultado de tal procedimento é persuasivo: anos depois
o heliocentrismo se estabiliza, desta maneira, Galileu vence a batalha. O segundo, Pascal, que
além de transformar uma ação segura em sofrimento que faz empalidecer, como é o caso do
filósofo que anda sobre a tábua, também transforma a maneira de nossos órgãos do sentido
captar o mundo. O caso é descrito no fragmento 199672 com o título Desproporção do homem.
Dois abismos são sublinhados: o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. No
infinitamente grande ele sugere que ao contemplarmos a natureza inteira, nos afastando dos
objetos mais baixos, e olhemos aquela luz ofuscante que ilumina o universo e toda a grandeza
de sua órbita. Diante deste quadro, visualizamos a terra como um ponto bem pequeno. Mas a
comparação não pára por aqui, pois esta mesma luz ofuscante a qual nos dirigimos para
contemplar a terra torna-se um ponto pequeníssimo em relação a outros astros que giram no
universo.673 Diante deste exercício a vista se cansa e é a imaginação que o versado Pascal
convoca para auxiliá-lo. A imaginação ultrapassa e rompe as fronteiras de nossas
potencialidades visuais com grandiosa rapidez, mas tal rapidez é proporcional ao seu
672
673
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 79 – 80.
Cf. Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 79.
187
cansaço.674 A natureza concebe conteúdo suficiente para a ação da imaginação, entretanto, ela
não consegue imaginar tudo. O movimento imaginativo é produtor de “átomos” se levarmos
em contra a infinita realidade das coisas existentes na natureza. Do mesmo modo que a visão
das coisas existentes é pequena em relação à amplitude dos movimentos da imaginação,
assim, esta se revela como um instrumento capaz de captar “átomos” se levarmos em conta a
grandiosidade da natureza. Sempre podemos conceber algo maior, e infinitamente. Portanto, o
homem poderá fazer uso de sua capacidade máxima de visão até que esta se canse, poderá
imaginar até que a fadiga absorva seu corpo, e olhando depois para si ele saberá que por mais
que estenda os braços nunca alcançará o teto. “Que é um homem dentro do infinito?”.675 Mas
se a imaginação tem um papel importante na extensão da grandeza dos espaços infinitos,
quanto à pequenez destes espaços ela também revelará seus efeitos. Pascal convida o leitor a
vislumbrar outro abismo: o infinitamente pequeno. O objeto de análise será um ácaro que em
sua pequenez revela outras partes ainda menores: pernas, estas possuem veias, nas veias
sangue, nele humores, seguidos por vapores ainda menores e assim infinitamente. O discurso
é tudo que resta: a vista ver-se-á enfraquecida por não poder visualizar estas pequeníssimas
partes que compõe um ácaro. Mas, diante do cansaço e impotência da visão, a imaginação
abrirá um buraco ainda mais profundo, ou seja, surgem universos ainda menores: eles
apresentam-se com seus planetas, sua Terra, animais nessa Terra, ácaros, e isto “[...] sem fim
e sem descanso.”.676 É um abismo profundo sem fundo. Pascal nos apresenta as maravilhas da
infinita pequenez: “Inversão contínua do pró ao contra.”.677 Logo, o minúsculo corpo humano
diante da grandeza do universo torna-se um “colosso”678 frente à pequenez do universo
infinitamente pequeno. O corpo é um mundo neste caso: “É um nada que a nossa imaginação
aumenta transformando em montanha [...]”.679 Portanto, diante dos dois abismos que Pascal
faz o leitor contemplar uma imagem exsuda: o homem ergue as mãos para o céu e não alcança
674
Ver também Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 113. Na direção do
infinitamente grande toda visão é um ponto de vista que ao ser estendido até ao horizonte é suscetível de ser
ampliado além dos seus limites factuais. Basta fazer uso da imaginação para conceber a extensão infinita do
espaço, de modo que o mundo terrestre visto da órbita solar seria “um ponto muito delicado.”. Em análise ao
fragmento 199, Bras e Cléro sublinham o poder que Pascal concede à imaginação de ultrapassar a realidade
sensível e colocar o homem diante do abismo vertiginoso do infinitamente grande e do infinitamente pequeno. É
o ponto de vista do observador o critério decisivo para a análise, por exemplo: em relação à órbita do sol a Terra
é minúscula. Em contrapartida, a órbita do sol é minúscula ao ser comparada às órbitas de outros astros. Ao nos
afastarmos das órbitas mais grandiosas elas tornam-se um ponto. O movimento contrário será sempre uma
contemplação da pequenez do nosso ponto de vista, ou seja, se contemplo as órbitas de outros sistemas solares, o
ponto de onde realizo tal observação será visto como minúsculo. Mas a imaginação é capaz de colocar-nos fora
do universo?
675
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 79.
676
Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 80.
677
Ibid., Laf. 93, Bru. 328, p. 33.
678
Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 80.
679
Ibid., Laf. 531, Bru. 85, p. 243.
188
o teto e estica as pernas e não encontra chão. Pascal sublinha até onde vai a capacidade da
visão e a superação desta pela imaginação: conhecer como se pode produzir tal efeito é uma
característica típica de um versado no uso da imaginação. Esta potência enganosa, ao
mergulhar o homem no infinito, desqualifica a tentativa da razão de produzir leis universais
necessárias. Como produzir leis que sejam válidas para todo espaço infinito? Pascal entende
que a imaginação é responsável por levar as impressões dos sentidos para a razão que
entende, organiza, associa a uma linguagem e explica. Todavia, verificamos que a mais
prejudicada nesta inteiração é a razão. A relação entre o sentido, a imaginação e a razão
produzem efeitos capazes de levar “[...] a razão para fora de seus gonzos”680, enchendo de
admiração o leitor pelo quadro que vislumbra e pavor por não poder compreender o todo: “O
silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.”.681 O silêncio da razão na tentativa de
produzir leis universais e necessárias que possam organizar o espaço infinito é o efeito da
relação entre sentido, imaginação e razão: a razão produz leis naturais que balançam com o
tempo, ou seja, o tempo dissolve as investidas da razão e a tira dos seus gonzos, ou seja, a
imaginação mergulha a razão na contingência. Levar a razão para fora de seus gonzos é tirá-la
dos trilhos, desqualificando sua atividade cosmológica.682 Desta maneira, encontramos o lugar
da imaginação dentro da epistemologia pascaliana: a imaginação é a potência que se encontra
entre os sentidos e a razão. “Mas a mais engraçada entre as causas dos seus erros é a guerra
que fica entre os sentidos e a razão.”.683 Tal guerra é mediada pela imaginação que
desqualifica a razão ou a submete, como destaca o comentador Ferreyrolles:
Essa inversão de apreciação que a imaginação induz é, portanto, ao mesmo
tempo, o indício e o efeito da inversão original, pela qual a razão é encontrada
680
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14.
Ibid., Laf. 201, Bru. 206, p. 86.
682
Ver Marilena CHAUÍ, Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática. 2001, p. 25. A filosofia nasce como uma
tentativa de conhecimento racional da ordem do mundo. Seria um conhecimento desprovido de qualquer
revelação divina ou mistério. Os primeiros filósofos são conhecidos como filósofos da natureza, o trabalho que
exerciam era de compreender os acontecimentos naturais em sua totalidade usando da razão, com sua capacidade
de teorizar, e o contato com a empiria, de modo que recorriam aos órgãos dos sentidos como fator corroborador
de suas teorias. Mesnard, todavia, faz uma comparação entre a cosmologia medieval e da modernidade:
“Desaparecido o mundo harmonioso e pleno de sentido da visão antiga e medieval; de hoje em diante, reina o
pavor diante do ‘silêncio eterno desses espaços infinitos’.”. (Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 89). O
pavor que Mesnard destaca é a incapacidade da razão humana de compreender tudo aquilo que o cerca. A
contingência da razão neste caso é vista na perspectiva da quantidade, ou seja, há mais coisas no mundo do que o
homem é capaz de imaginar: a razão é incapaz de organizar um universo infinito e descrever todas as relações de
causa e efeito que constituem o universo.
683
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14.
681
189
submissa ao magistério das faculdades inferiores que são os sentidos e a
imaginação.684
A capacidade de inversão de pontos de vista é o efeito induzido pela imaginação que
desloca todo critério absoluto de análise, ou seja, há infinitos pontos do universo e cada um
deles poderá ser tomado pela razão como parâmetro de análise deste mesmo universo e como
conseqüência de tais mudanças haverá possibilidade de diferentes modos de organização do
cosmos. Assim, a razão não produz cosmologia, mas cosmologias. Mas qual é a causa de tal
efeito? Ferreyrolles afirma que essa inversão de pontos de vista tem como causa a “inversão
original”. O pecado adâmico é a causa de todos os problemas que a imaginação traz para a
razão e para os sentidos. Os sentidos e sua relação com a imaginação causam efeitos danosos
à razão, de modo que as faculdades chamadas inferiores submetem a razão aos seus efeitos
contingentes como descrevemos no exemplo do filósofo que caminha sobre a tábua. A razão
que tem como característica a autonomia685 encontra-se submetida, de maneira que seu desejo
de atingir o universal faz o homem reproduzir o pecado original: Adão e Eva deixaram-se
levar pelo desejo de serem onipotentes, do mesmo modo que a imaginação. Esta ao revelar
todo o seu poder no homem caído ao mesmo tempo em que sublinha o orgulho humano de
compreender o todo, também mostra sua perda de poder686: ela fracassa como mostra o
fragmento 199. Assim, a imaginação fere a 3ª ordem, ou seja, o ato imaginativo e sua relação
com a onipotência é figura do pecado adâmico. O tour da imaginação é a maior característica
sensível da onipotência de Deus687, pois ela pode imaginar muitas coisas – onipotência –, mas
não pode imaginar tudo – fracasso. Imaginar tudo é conhecer as partes, o todo e a relação
entre ambos. Desta maneira, Pascal coloca o conhecimento universal na relação e isto
impossibilita o homem de obter um conhecimento universal e necessário. “A justiça e a
verdade são duas pontas tão sutis que os nossos instrumentos são demasiadamente cegos para
nelas tocar com exatidão.”.688 Verdade e justiça são colocadas sobre dois extremos com
pontas sutis, ou seja, qualquer relação que tivermos com ela contaminamos a objetividade de
684
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 171.
“[...] a filosofia grega é investigação racional, isto é, autônoma, que não assenta numa verdade já manifestada
ou revelada mas somente na força da razão e nesta reconhece o seu único guia.”. (Nicola ABBAGNANO,
História da filosofia. 2ª ed. v .I. Lisboa: Editorial Presença, 1970, p. 22).
686
Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 171.
687
“Enfim, é a maior característica sensível da onipotência de Deus que a nossa imaginação se perca neste
pensamento.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 79). Pascal neste contexto faz referência à
célebre imagem pascaliana da esfere infinita cujo centro esta em toda parte e a circunferência em parte alguma,
todavia, é o movimento da imaginação se perdendo na compreenção desta imagem que Pascal caracterizará
coma maior característica sensível da onipotência de Deus.
688
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 16.
685
190
tais realidades correndo o risco de firmar-se mais sobre o falso do que sobre o verdadeiro. “Se
conseguirem, vão achatar-lhes a ponta e apoiar à volta toda mais sobre o falso que sobre o
verdadeiro.”.689 Achatar a ponta é a contaminação presente na relação entre o homem e a
verdade/justiça. Mas porque tal relação significa apoiar mais sobre o falso do que sobre o
verdadeiro, visto que a imaginação desqualifica todo critério e submete a razão? Sendo a
razão a faculdade da autonomia, ao ser submetida pelas faculdades inferiores – sentido e
imaginação – perde sua capacidade de discernimento e, diante disso, os enunciados da razão
terão maior probabilidade de serem falsos devido as possibilidades de infinitas respostas para
uma mesma questão, como é o caso do bem: “Para os filósofos, duzentos e oitenta soberanos
bens”.690 Ou seja, há diversas formas de responder uma mesma pergunta e a capacidade
humana de discernimento ver-se-ia submetida às potências que impedem o conhecimento
objetivo. “O homem foi fabricado com tanto esmero que não tem nenhum princípio exato da
verdade, e tem vários excelentes da falsidade.”.691 Pascal não diz que o homem não possui
verdade, pois isso seria um dogma que vai de encontro com a contingência presente no
sistema cognitivo humano, mas diz que ele não possui nenhum princípio exato, ou seja, há
uma dificuldade de discernir tal princípio. Quanto à afirmação de que temos vários princípios
de falsidade, ela até poderia parecer um trabalho de discernimento da razão, todavia, tal idéia
é conseqüência de uma quantidade enorme de princípios, de modo que a maioria
provavelmente devem ser falsos já que a imaginação coopera para tal resultado.
Provavelmente não é certeza, é contingência. Mas o que impede a imaginação de imaginar o
verdadeiro? Nada, pode ser que ela o faça, mas o problema é detectar isso. Portanto, os
versados em imaginação, assim como Galileu e Pascal, não estão preocupados em discernir a
verdade da falsidade ou encontrar a natureza das coisas, mas têm como foco fazer uso da
imaginação para persuadir. Galileu na ciência, Pascal na ciência e na apologia à religião
cristã. Desta maneira, caminhamos em direção à segunda questão que diferenciará os versados
em imaginação e os prudentes.
2ª) Quem são os prudentes e porque os versados em imaginação disputam com
domínio, audácia e confiança?
Os prudentes são aqueles que não fazem uso da imaginação em seus discursos, desta
maneira, agem com temor e desconfiança, pois desconhecem os desta potência enganosa e os
possíveis resultados de tal uso. O temor e a desconfiança é o comportamento daquele que
689
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16.
Ibid., Laf. 479, Bru. 74bis, p. 196.
691
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 16.
690
191
desconhece os efeitos de seu discurso, algo contrário aos versados em imaginação. Estes
olham as pessoas com domínio, audácia e confiança. Domínio daquilo que falam, domínio do
efeito daquilo que falam, domínio da situação e do povo, este porém, vítima de um versado
em imaginação. Audácia nos discursos, no uso das palavras, na mudança de pontos de vista e
no uso do interesse daquele que escuta para estabilizar seu discurso. Confiança na capacidade
preparatória da imaginação para associar um discurso à “verdade” que o versado quer
estabelecer. Ferreyrolles destaca esta capacidade preparatória como algo presente em Pascal:
[...] Pascal não sugere que Adão tenha sido criado desprovido da imaginação,
e como nada pode sair das mãos de Deus que não seja “puro, santo e
perfeito”692, resta que a imaginação, a instar de outras faculdades, é boa por
natureza. Mas depois da queda, será possível fazer bom uso dela? Certamente,
sabemos que ela diz algumas vezes a verdade, mas como distinguir entre
fantasia e fantasia? Na ausência de critério, uma solução se oferece, que
consiste justamente de não esperar da imaginação aquilo que ela não possa dar
– a determinação da verdade – mas utilizá-la, mesmo em sua indiferença do
verdadeiro e do falso, como puro instrumento a serviço da razão para preparála para descobrir o verdadeiro e torná-lo comunicável uma vez descoberto.
Assim, se delimita um espaço onde o imaginário não é mais antagônico com o
racional.693
Ferreyrolles afirma que a imaginação estava presente no homem antes do pecado e
como Deus criou homem bom na sua integridade, a imaginação faz parte desta criação
perfeita e boa. Depois da queda diríamos que ela torna-se a faculdade da contingência,
colocando tanto o conhecimento do verdadeiro quanto do falso em um quadro de eqüipolência
dissolvendo todo critério absoluto de análise. Mas a pergunta capital de Ferreyrolles é a
seguinte: podemos fazer um bom uso da imaginação? Sua resposta é categórica: a solução é
usar da imaginação como um instrumento capaz de preparar para descobrir o verdadeiro e
torná-lo comunicável. Portanto, devemos subtrair a esperança de encontrar a verdade ou a
falsidade pela imaginação, mas usar dela em favor da razão. Transformar a imaginação em
um instrumento que coopera com a razão é dar maior prioridade à atividade persuasiva com
todos os seus contornos que são o domínio, a disputa e a confiança. Preparar para a verdade
não significa que encontraremos a mesma no sentido metafísico do termo, mas trata-se de
692
693
Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 312.
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 187 – 188.
192
estabelecer verdades que os versados em imaginação querem fazer consentir e, a partir disso,
preparar as pessoas para aprovarem tais idéias. Assim, não devemos esquecer que “[...] a
imaginação assume o grande direito de persuadir os homens.”.694 Portanto, os hábeis em
imaginação, ao contrário dos prudentes, agradam a si mesmos, por fazerem as pessoas
consentir com suas idéias, e o efeito de tal agrado é a alegria no rosto dos versados em
imaginação, que agradam os outros exercendo tal ofício pela persuasão695 e tirando vantagem
ante a opinião dos ouvintes. Percebemos que a imaginação exerce seu papel pelo uso e
resultado de seus efeitos, algo que os versados em imaginação sabem manejar. Desta maneira,
procurando descrever tais efeitos, destacamos a nossa terceira pergunta.
3ª) Qual natureza é essa que possui os juízes, que um sábio imaginário desfruta a seu
favor?
Um sábio imaginário desfruta de favor junto aos juízes na medida em que ele usa da
imaginação para persuadi-los. A mesma natureza que tem o povo que é persuadido pelo sábio
imaginário também tem os juízes, ou seja, há uma grande quantidade de elementos
circunstanciais que podem persuadir o juiz. A julgamento de uma causa irá depender destas
vãs circunstâncias: como a voz rouca de um pregador ou a sua aparência. O caráter
circunstancial de um julgamento desqualifica a objetividade do mesmo e coloca qualquer
juízo sob o crivo da desconfiança, pois, mudando a circunstância, muda-se o julgamento.
Pascal concede um exemplo do problema de circunstancializar o julgamento em suas Lettres
Provinciales: os jesuítas sublinham que quando os termos não estão claros para uma decisão
quanto à moral, eles se servem das “circunstâncias favoráveis”.696 Por exemplo: os papas
excomungam um religioso que abandona seu hábito, mas os jesuítas sustentam que em
algumas ocasiões os religiosos são autorizados a proceder desta forma, ou seja, por motivo de
uma causa vergonhosa como furtar ou a ir à lugares de libertinagem. Desta maneira, se três
papas dão o mesmo parecer afirmativo sobre um determinado assunto, os jesuítas sustentam
que a opinião destes três papas é provável assim como a opinião oposta, ou seja, todas as
opiniões são prováveis. Tal procedimento dos jesuítas é chamado de método da probabilidade.
Assim, deixando toda a opinião dentro da esfera da probabilidade, “[...] não deixa de dizer
que o contrário é também provável.”.697 Pascal considera tal procedimento em teologia um ato
que aprovará qualquer tipo de libertinagem. Dizer que um acontecimento é circunstancial em
teologia é aderir ao paganismo, em contra partida, tal procedimento fora do domínio teológico
694
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12.
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 171.
696
Blaise PASCAL, Les Provinciales, p. 393.
697
Ibid., p. 393.
695
193
é uma constante, de maneira que o homem está embarcado a agir desta forma.698 Trocar o
essencial pelo circunstancial em teologia é aprovar a supremacia humana sobre Deus, algo
desaprovado por Pascal e pelo jansenistas. Portanto, assim como os jesuítas produzem
julgamentos circunstanciais em teologia, o juiz também está encarcerado na dinâmica
circunstancial e impossibilitado de conceder um juízo claro e distinto. É da imaginação, com
sua capacidade persuasiva, que provém os sobressaltos distintos diante das novas
circunstâncias. “Quem confere a reputação, quem dá o respeito e a veneração às pessoas, aos
livros, às leis, aos grandes, senão esta faculdade imaginária. Todas as riquezas da terra são
insuficientes sem o seu consentimento.”.699 Em suma, a imaginação é uma faculdade da
construção ou criação, sem ela a maior riqueza do mundo não teria valor nenhum: ela constrói
respeito, a veneração entre as pessoas, a veneração aos livros, aos grandes, às leis, de modo
que tais construções possuem uma relação com as circunstâncias tanto do indivíduo quanto do
contexto que envolve o indivíduo e o objeto, de modo que a imaginação será sempre
mediadora dos diferentes contextos. Diante desta atuação intermediária da imaginação, Pascal
quando fala das leis chega a ser mais enfático acerca desta relação entre o circunstancial e o
essencial: “Quem obedece a elas porque elas são justas, obedece à justiça que imagina, mas
não a essência da lei.”.700 Percebemos que a essência da lei e as leis são diferentes. Entre a
essência da lei e as circunstâncias reais que as leis se apresentam há um abismo de
sobressaltos dirigidos pela imaginação, o que dificulta discernir o essencial do circunstancial.
Caso venhamos a conhecer a essência da lei saberemos como praticar a justiça absoluta – o
que não é garantia de obedecê-las –, mas como somente temos acesso à justiça que
imaginamos, o que obedecemos são as condições circunstanciais que alguns homem criaram e
chamaram de leis.701 Os comentadores Bras e Cléro também concordam com este caráter
698
Em um debate entre Alexandre Magno e um pirata capturado, Alexandre interroga o pirata sobre o que lhe
fazia atormentar os mares com seus roubos. Diante disso o pirata responde: “O mesmo que te parece o manteres
perturbada a Terra toda, com a diferença apenas de que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte, me
chamam ladrão e a ti, que fazes com enorme esquadra, imperador.”. (Santo AGOSTINHO, Cidade de Deus. v. I.
São Paulo: Vozes, 1990, IV, IV, p. 153). Santo Agostinho está relativizando a justiça humana e mostrando que
aquele que detém a força determina a justiça em uma determinada circunstância.
699
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13.
700
Ibid., Laf. 60, Bru. 294, p. 22.
701
Um retorno às origens da leis nos mostra a fragilidade da lei e de sua construção, já que sua estabilidade
dependerá de inúmeros acontecimentos que se encontram ao acaso. Tal fragilidade é destacada por Michael de
Montaigne: “A autoridade das leis provém de existirem e terem passado para o costume; é perigoso fazê-las
retornarem à sua origem. Como os rios que se avolumam com o rolar das águas, elas adquirem importância e
consideração em se aplicando. Remontai-lhe o curso até a nascente e vereis um insignificante filete de água.
Investigai os motivos que no início deram impulso a essa torrente de leis e costumes, hoje considerável e cheio
de dignidade, temor e veneração. Vós os achareis tão frágeis, tão pequenos, que não é estranho que esses
filósofos que tudo perscrutam, que tudo submetem ao exame da razão, nada admitindo sem autoridade, os
julgarem tão diferentemente do resto do mundo.” (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II,
12, p. 488).
194
depreciativo da circunstância para o conhecimento da verdade. “As circunstâncias são
inseparavelmente as condições de possibilidade de julgamento e que por isso compromete a
justeza.”.702 Diante destes problemas acima, destacamos que os juízes são homens que além
de serem persuadidos ou vítimas das circunstâncias que os afetam no ato de julgar, também
são persuadidos, pela ação da imaginação, que as leis que balizam as ações são leis essências.
Para Pascal tanto o ato de julgar como as leis que balizam tal julgamento são contingentes, ou
seja, sujeitas à mudança em qualquer momento histórico.703 “Assim, a imaginação nos leva a
confundir aquilo que é essencial e aquilo que é acidental.”704, destaca Bras e Cléro. Portanto,
os juízes são persuadidos que a lei é justa na sua essência e os versados em imaginação,
conhecendo o caráter circunstancial tanto da lei como da interpretação da lei pelos juízes,
usam de tais conhecimentos para produzir argumentos a seu favor. Assim fazer-se-ia
necessária uma análise da ação efetiva de um juiz em seu trabalho para destacarmos como a
imaginação atuará.
2.5 - O juiz e a imaginação.
Depois de analisada esta relação entre o essencial e o circunstancial a nível teórico,
vejamos como Pascal descreverá os elementos que os ouvintes acreditam determinar um
juízo, a ação do juiz no julgamento de uma dada sentença, qual o efeito da imaginação neste
processo, ou seja, como a imaginação atua em um juiz.
Não direis que aquele magistrado, cuja velhice venerável impõe o respeito a
todo um povo, se pauta por uma razão pura e sublime e que julga as coisas por
sua natureza sem se deter naquelas vãs circunstâncias que só ferem a
imaginação dos fracos. Vede-o entrar em um sermão, em que coloca um zelo
devotíssimo reforçando a solidez de sua razão com o ardor de sua caridade; lá
está ele pronto para ouvi-lo com um respeito exemplar. Apareça o pregador: se
a natureza lhe deu uma voz rouquenta e feições estranhas, se o barbeiro não o
barbeou direito, se além disso o acaso o salpicou de manchas, por maiores que
702
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 14.
“O furto, o incesto, o assassínio das crianças e dos pais, tudo teve seu lugar entre as ações virtuosas.”. (Blaise
PASCAL, Pensamentos, Laf. 60, Bru. 294, p. 22). Pascal historiciza a legitimidade das ações, de modo que a
conseqüência disso é circunstanciar tanto as ações virtuosas quanto legitimar os mais horrendos crimes.
704
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 13.
703
195
sejam as verdades que ele esteja pregando, eu aposto na perda da gravidade do
nosso senador.705
Antes de descrever a ação dos juízes Pascal destaca alguns elementos que os ouvintes
acreditam serem necessários e essenciais para os juízes, de modo que tais elementos causam
confiança às pessoas. São eles: a velhice, a razão, o julgamento pela natureza, e as impassíveis
circunstâncias. A velhice é garantia de confiança na medida que a idéia de experiência em um
assunto está ligada ao tempo de vida: a idade de um juiz está associada a sua autoridade, ou
seja, a idade é diretamente proporcional à confiabilidade. Quando Pascal fala de “velhice”
sustentamos que mais dois conceitos estão encadeados ao mesmo: autoridade e confiança. A
velhice é venerável porquê impõe respeito. Tal respeito também tem como ingrediente
colaborador a razão. Ela garante, para os ouvintes, a objetividade do julgamento. É ela que
consegue, pensam os ouvintes, aproximar os parâmetros legais constituídos e a ação a ser
julgada. Aproximando a lei da ação é possível discernir se a ação está dentro dos padrões
legais ou se a mesma destoa. A razão, pensam aqueles que veneram os juízes, é vista como a
faculdade que garante a justeza de um julgamento. Este porém, está de acordo com a natureza:
ou seja, a lei é justa na sua essência. “Em todos os casos, o julgamento humano acredita
encontrar a essência naquilo que só é acidente.”706, dirá Mesnard analisando alguns aspectos
da miséria humana em Pascal. Os ouvintes pensam que a lei traduz a realidade última e
necessária daquilo que os homens devem fazer. Uma lei é natural porque espelha o dever e o
telos de cada homem no mundo. Assim, conhecer a natureza de uma lei é estar livre de todo
aspecto circunstancial que poderia afetar um julgamento. Portanto, os ouvintes acreditam na
autoridade daquele que julga. Tal autoridade manifesta-se de quatro maneiras: 1) na velhice
do juiz; 2) na sua razão suficiente, presente na sua capacidade de aproximar os parâmetros
legais às ações e, depois disso, julgar, discernindo o que é certo e errado; 3) na natureza da lei,
manifesta na orientação do papel do homem no mundo de maneira necessária e objetiva; 4)
acreditam que a capacidade racional do juiz está além das circunstâncias que poderiam afetar
seu discurso. Eis a visão que o ouvinte tem do magistrado. Agora, vamos descrever como o
juiz efetivamente age diante de um julgamento, ou seja, qual é o efeito da imaginação na ação
desta autoridade.
705
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13. As vírgulas desta passagem foram colocadas pelo
escritor deste trabalho, visto que as mesmas facilitam a compreensão do texto.
706
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 191.
196
Estando o magistrado pronto para ouvir, aparece o pregador. Mas como tal pregador se
apresenta? Pascal descreve: voz rouca, feições estranhas, barba mal feita e manchas na pele. E
qual é a atitude do impassível magistrado? Pascal na passagem acima aposta na “perda da
gravidade do nosso senador.” Quem seria este senador? Tal senador é o próprio juiz, pois
diante de tal cena tudo aquilo que era garantia de sua eqüidade e justeza desabam no riso,
como afirma Mesnard: “É a onipotência da imaginação que faz tomar o acessório por
essencial, que faz o magistrado rir da audição de um importante sermão porquê o pregador
está mal barbeado.”.707 Por maiores que sejam as verdades que o pregador descreve o juiz será
incapaz de apresentar um comportamento que supera tal circunstância. A manifestação do riso
é o efeito da imaginação que supera a autoridade da “velhice”, impede o discernimento da
“razão” para um julgamento claro e distinto, desqualifica a lei que tem pretensões naturalistas
e essenciais e submete o juiz à circunstância que se apresenta: “por maiores que sejam as
verdades que o esteja pregando”708 o pregador tem seu discurso desqualificado por vãs e
superficiais circunstâncias que desqualificam seu discurso A atitude do juiz é o riso causado
pela imaginação. O riso não é transparente no fragmento, porém, tal atitude está implícita na
descrição do fragmento. Pascal entende que o riso do magistrado é o mesmo riso que causa no
leitor quando lê tal fragmento. Mesnard, como já vimos, destaca tal riso, assim como
Ferreyrolles. Este afirma que o personagem mais sério e impassível de uma assembléia, o juiz,
diante de um pregador “careteiro”709, perde a seriedade e apresenta-se como alguém que está
“estourando”710 de tanta vontade de rir. O povo, ao constatar a hilária cena do aparecimento
do pregador e o juiz afetado por esta vã circunstância, se coloca a rir. O juiz também é afetado
pelo riso do povo e liberta o riso. Portanto, o riso volta para sua fonte: o próprio juiz. A
imaginação através do riso produz seu efeito. Mas o efeito poderia ser outro? Para Pascal
poderia, e é aí que a contingência fazer-se-ia manifesta, como vemos no fragmento 54 dos
Pensées: “Daí vem que se chora e se ri de uma mesma coisa.”.711 Os efeitos da imaginação
flutuam de pessoa para pessoa, assim a imaginação revela seus contornos gestalticos: sob uma
mesma imagem e estímulos os sujeitos possuem diferentes reações ou um mesmo sujeito
possui reações diferentes frente a um mesmo acontecimento visto em tempos distintos. Eis
uma foto da contingência: a incapacidade da razão de determinar com toda certeza a
previsibilidade de uma reação. Neste sentido os versados em imaginação ao pressupor os
707
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 194.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13.
709
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 145. Que faz
caretas.
710
Ibid., p. 145.
711
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 54, Bru. 112, p. 19.
708
197
efeitos contingentes da imaginação poderiam fracassar na sua empreitada, todavia, tentar
entender estes efeitos e compreender minimamente as possíveis efeitos é fazer-se pensador na
contingência, como o faz Pascal. Assim, Ferreyrolles também admite tal imprevisibilidade das
vãs circunstancias que nos afetam: “A oposição pascaliana do fragmento 44 [...] entre a
“natureza” das coisas e as “vãs circunstancias que ferem a imaginação define suficientemente
o lugar de sua pertença: ela é uma faculdade dos acidentes sensíveis.”. 712 A imaginação é
considerada aquela faculdade que acarreta uma infinidade de acidentes sensíveis, ou seja, a
recepção dos sentido é sempre contingente visto que muda pela distância que se tem do
objeto, o tempo que o sujeito interage com ele, a posição com que o mesmo se encontra: todos
estes pontos impedem o discernimento da natureza do objeto.713 Cada sensação é um acidente.
Assim, depois que verificamos os elementos que os ouvintes acreditam determinar um juízo, a
ação efetiva do juiz no momento de um julgamento e o efeito da imaginação na relação
ouvinte e juiz, tentaremos descrever com detalhes como a imaginação produz seus efeitos.
2.6 - Nas filigranas do conceito: a máquina imaginativa.
Em seu livro Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal,
Ferreyrolles faz a descrição da ação da imaginação, ou seja, não se trata somente de perceber
o riso do juiz como fizemos acima, mas de sublinhar as filigranas da atuação da imaginação.
Vejamos:
A aparência apreendia impressiona, com efeito, a imaginação, que retornando,
comunica sua perturbação ao corpo; um outro corpo percebe tal perturbação e,
por intermédio da imaginação que o habita, encontra-se a seu tour afetado:
assim inicia-se uma seqüência cujo fim não é sempre assinalável. Um traço
próprio da imaginação revela-se aqui, a saber, sua contagiosidade. 714
Um fato apresenta-se aos sentidos. Tal fato impressiona a imaginação e
conseqüentemente, a razão; visto que razão e imaginação estão intrinsecamente ligadas. A
razão interpreta e, junto com a imaginação devolve tal impressão interpretada ao corpo, ou
712
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 142.
Estes diferentes elementos acidentais que interferem no julgamento do essencial é destacada por Michael de
Montaigne. As circunstâncias de um julgamento muda a sentença de um mesmo tribunal: “Por isso não há
processo, por mais claro que seja, cujo respeito as opiniões não variem. O que julga um tribunal é por outro
reformado. Acontece até que o mesmo tribunal, julgando de novo, julgue diferentemente da primeira vez.”.
(Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 487).
714
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 145.
713
198
seja, para os sentidos. Desta maneira, o corpo reage em decorrência de tal retorno e manifesta
um efeito que chamamos efeito da imaginação. Assim, a máquina imaginativa, nome que
designamos ao procedimento da imaginação, apresenta 5 etapas:
1ª etapa: O corpo (sentidos) é afetado.
2ª etapa: A imaginação é impressionada, assim como a razão, pois ambas estão
ligadas.
3ª etapa: A razão interpreta, junto à imaginação.
4ª etapa: A imaginação e a razão devolvem a interpretação da razão ao corpo.
5ª etapa: O corpo produz um efeito.
Mas vejamos como tal procedimento se aplica no caso do juiz impassível que está
pronto para receber o pregador rouquenho.
1ª etapa: O juiz tem os sentido afetado por um acontecimento: o aparecimento do
pregador.
2ª etapa: A imaginação capta as impressões junto à razão: voz rouca, feições estranhas,
barba mal feita e manchas na pele
3ª etapa: A razão do juiz junto à imaginação interpreta a impressão do pregador.
4ª etapa: Depois de interpretada a imaginação e a razão devolvem a interpretação que
fizeram ao corpo.
5ª etapa: O corpo manifesta a ação da imaginação e da razão: o riso.
Descrito os procedimentos daquilo que chamamos de máquina imaginativa,
Ferreyrolles continua sua análise e sublinha que se inicia uma seqüência de acontecimentos
que fazem parte desta máquina imaginativa – Ferreyrolles não usa deste slogam, nós que o
criamos – que são difíceis de assinalar, detectar e discernir em sua totalidade suas causas e
seus efeitos, ou seja, seu contágio. Mas que contagiosidade é esta? O fragmento 828 poderá
nos ajudar a responder tal questão. Vejamos:
As cordas que amarram o respeito de uns para com os outros em geral são
cordas de necessidade; pois é preciso que haja diferentes graus, por quererem
todos os homens dominar e nem todos o poderem, mas apenas alguns
poderem. [...] Ora, essas cordas que amarram, pois o respeito a tal ou tal
particular são cordas de imaginação.715
715
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 828, Bru. 304, p. 328; grifo meu.
199
Neste fragmento Pascal expõe aquilo que ele chama de cordas de imaginação. Tal
conceito é importante para nós porque esclarece como a máquina imaginativa continua
funcionando, ou seja, seu contágio. Ele inicia falando sobre o respeito entre os homens, tal
respeito é amarrado por cordas de necessidade, ou seja, um juiz é necessariamente respeitado
por todos. Só um louco desrespeitaria um juiz. Para Pascal é a imaginação que constrói tal
respeito de forma tão bem elaborada que as pessoas imaginam ser uma verdade incontestável
o respeito e a veneração aos juízes. Pascal sabe que tal efeito da imaginação ao naturalizar o
respeito é digno de contestação. Assim ele afirma fazendo referência aos juízes: “Que deus
engraçado, esse. O ridicolosissime herói!”.716 Pascal é irônico ao considerar os juízes, mas
não nega a necessidade do respeito salientando que é preciso que o tenhamos uns pelos outros
em diferentes graus, pois todos os homens tem uma ânsia de dominar. A motivação do
filósofo francês é desconstruir esta idéia de que um juiz é uma espécie de deus na terra e ao
mesmo tempo mostrar a necessidade do respeito. Essa é a radiografia que faço do fragmento.
Mas no que ele é interessante pra nós? Na verdade, as cordas de imaginação produzem um
efeito dominó nos corpos como é o caso da cena do juiz e do pregador. A vontade de rir do
juiz está ligada com o riso do povo, tal riso do povo esta ligado pelas cordas de imaginação ao
mesmo juiz que ao contemplar o povo rindo liberta seu riso que estava preso. Há uma ligação
de causa e efeito entre todos os comportamentos desta cena, entretanto, isto não significa que
será sempre assim. Em uma outra situação as cordas de imaginação poderão agir
necessariamente de outra forma. Assim, as cordas de imaginação tem como marca o contágio,
pois elas distribuem seus efeitos nos corpos estabelecendo uma rede de relações contingentes,
pois não temos garantia que estas cordas funcionarão sempre da mesma maneira, ou seja,
necessariamente da mesma maneira. A necessidade que Pascal associa a estas cordas é sempre
circunstancial. Eis mais um efeito da imaginação: ela tenta estabelecer como ligação
necessária aquilo que é contingente. Como? Estabelecendo ligações necessárias em um
mundo cheio de contingência, a imaginação será a produtora de uma rede de leis e
comportamentos de uma determinada região ou acontecimento – circunstância – que permitirá
organizar as relações sociais. Portanto, da mesma maneira que a imaginação, no caso do juiz,
construiu uma rede de ligações causais manifestas nas reações tanto do juiz como do povo que
pareceriam necessárias, ela também constrói uma rede de relações que parecem necessárias e
universais na organização da vida em sociedade. Mesnard destaca esta interferência na
contingência quando se introduz uma lei, uma regra, uma ordem: “Na desordem e na
716
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 48, Bru. 366, p. 18
200
contingência, uma ordem, uma solidez são introduzidas.”.717 A introdução de uma lei que
regula as relações sociais é produzida pela imaginação que estabelece a ordem construída
como lei natural. Mas quem faz este papel ao persuadir as pessoas? Os versados em
imaginação usam da potência enganosa para estabelecer relações sociais que possam mitigar a
contingência. Vimos que Pascal e Galileu são estes homens versados em imaginação na
ciência, todavia, destacamos que o próprio Pascal indica quem são estes homens versados em
imaginação na política: “Se escreveram sobre política, foi para regulamentar um hospital de
loucos.”718, fazendo referência aos escritos políticos de Platão e Aristóteles. E ele explica:
“Entram nos princípios destes para limitar sua loucura ao menor mal possível.”.719 Tal
comentário de Pascal está de acordo com nossa posição: a imaginação, construtora da rede de
relações entre os homens pelas cordas de imaginação, tenta limitar a loucura – contingência,
na medida que Pascal se refere ao caos de uma cidade – ao menor mal possível, ou seja,
mitigar a contingência. As cordas de imaginação auxiliam o versado em imaginação a
construir uma rede de relações relativamente estáveis que permitiria a vida em sociedade. A
estabilidade da vida social é mais um efeito da imaginação, todavia, não é o único. Uma outra
organização destas cordas da imaginação poderá estabilizar o caos diferetemente. Mas então
quantos efeitos a imaginação é capaz de produzir? Recorremos ao fragmento 44 que
propomos analisar detidamente para responder esta pergunta: “Não quero fazer um relatório
de todos os efeitos da imaginação [...]”.720
Pascal não tem como proposta descrever todos os efeitos da imaginação, todavia, esta
afirmação traz luz à posição do autor em relação aos efeitos da imaginação: há uma infinidade
deles. As infinitas possibilidades de efeitos que a imaginação pode causar é também um traço
da contingência que impede de determinar com toda certeza o que uma causa poderá
necessariamente construir em seu efeito. Alguns destes efeitos contingentes discutimos acima
quando descrevemos que o juiz não é um sujeito impassível ao julgar e como se dá a
construção de uma lei estando ela sujeita a imaginação das pessoas que somente obedecem a
justiça que imaginam. Mas podemos constatar outros efeitos nos quais a imaginação também
tem o seu papel. Eles estão em duas obras de Pascal: nos Pensamentos e nos e Trois discours
sur la condition des grands.721 Nelas, verificamos a ação da imaginação e seus efeitos
contingentes, a saber: 1º) na herança de um cargo político; 2º) na herança de uma fortuna; 3º)
717
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 207.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 532, Bru. 373, p. 243.
719
Ibid., Laf. 532, Bru. 373, p. 243
720
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 13.
721
Idem, Trois discours sur la condition des grands, p. 366 – 368.
718
201
na escolha de uma profissão; 4ª) na confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação
com a instrução.
1º) Quanto à herança de um cargo, Pascal afirma que o mesmo é fruto da contingência,
ou seja, das infinitas possibilidades para se herdar um cargo, uma regra se estabiliza, de tal
forma que um determinado grupo de pessoas são beneficiadas. Vejamos a imagem pascaliana
que ilustra tal procedimento:
Um homem é lançado pela tempestade a uma ilha desconhecida, na qual os
habitantes tinham dificuldade de encontrar seu rei que estava perdido; e, tendo
muita semelhança de corpo e de rosto com este rei, ele é confundido, e
reconhecido como rei por todo o povo. Inicialmente ele não sabia qual partido
tomar; mas resolveu, enfim, a consentir com sua boa fortuna. Ele recebeu
todas as homenagens que lhe quiseram prestar e deixou que o tratassem como
rei.722
Um homem enfrenta uma tempestade e é lançado a uma ilha. Chegando na ilha o que
ele encontra? Um povo que procura seu rei desaparecido. Mas o que este povo encontra? Um
homem que tem as mesmas características de seu rei, assim, são confundidos pelos sentidos e
acreditam que tal homem é o verdadeiro rei que havia desaparecido. O náufrago sentia-se
confuso no início, mas aceita as honras a ele atribuídas. Eis como dar-se-ia a herança de um
cargo. A imagem acima descrita poderá ser analisada em três momentos: em primeiro lugar as
infinitas possibilidades de herdar um cargo; em segundo lugar, uma destas possibilidades se
estabiliza pelo costume723; e a terceira, uma pessoa é beneficiada.
Primeiro momento. A tempestade atinge o barco do navegante, entretanto, poderia não
tê-lo atingido. O homem é lançado – ele não se lança, mas é lançado – a uma ilha, mas
poderia ter morrido ou ter sido lançado a uma outra ilha. O povo da região procura seu rei que
desapareceu, mas poderia acontecer que o rei estivesse presente. O homem que naufragou tem
as mesmas características do rei procurado, mas poderia não ter. O povo associa a imagem do
rei ao náufrago, mas poderia não apresentar este erro nos sentidos, de tal forma que
conseguissem discernir corretamente. Ao homem é concedida a coroa de rei, todavia, ele
722
Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 366.
“A estupefaciente eficácia do costume é escandalosa.”. (Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le
modele du jeu dans la pensée de Pascal, p. 19). Esta afirmação destaca o costume como ferramenta útil para a
estabilização das normas de uma sociedade.
723
202
poderia aceitar ou não. O homem aceita o cargo permanecendo em silêncio e é favorecido
pelas seqüências de fatos contingentes que contribuíram para a herança do seu novo cargo.
Segundo momento: Diante do conjunto de possibilidades acima, quatro princípios
incontestáveis faziam parte do costume do povo que procurava seu rei. O rei verdadeiro
estava perdido, vivo, tem uma fisionomia única que podemos reconhecer infalivelmente e
quando for encontrado voltará a assumir sua função de rei imediatamente.724
Terceiro momento: O náufrago atende a todas as demandas necessárias para ser rei.
Ele estava perdido, vivo, tinha semelhanças físicas com o rei e toma seu posto imediatamente
consentindo com as homenagens que lhe foram prestadas.
Diante destes três momentos podemos verificar que a imaginação e a contingência
criam uma ordem em um determinado contexto social na medida que estabelece as funções e
cargos de cada um. No primeiro momento a contingência dos fatos lança as possibilidades do
povo encontrar seu rei e do náufrago assumir tal posto ao acaso. Em um segundo momento a
imaginação frente às inúmeras possibilidades de princípios estabiliza quatro deles como certos
e indubitáveis. No terceiro, há um encontro contingente entre as características do náufrago e
os princípios estabelecidos no imaginário do povo, de modo que a imaginação não cria
nenhuma possibilidade de dúvida e o novo rei assume o risco de tomar para si o reinado. A
grandeza do cargo do naufrago é proporcional ao risco que ele corre de ser descoberto.725
Portanto, nesta passagem do náufrago, eis um efeito da imaginação que auxiliou um povo
preencher o posto de rei em seu contexto. Todavia, sabemos que se o povo buscasse um
assassino e o náufrago tivesse as mesmas características deste assassino a história poderia ser
outra. Reconhecido as dificuldades e a função da imaginação para a posse ou herança de um
cargo, vejamos como a imaginação atua para a herança de uma fortuna.
2º) Sustentamos com Pascal que a imaginação também exerce seu papel na herança
das riquezas. “Não imagineis que seja por um acaso menor que possuís as riquezas as quais
vos achais senhor, do que aquele acaso pelo qual aquele homem se achava rei.”.726 As
riquezas que um homem possui dependerá da vontade dos legisladores, visto que não há
nenhuma lei natural que garanta que um bem poderá ser herdado de pai para filho. Os três
momentos que descrevemos iluminam como dar-se-ia a posse das riquezas. Primeiro, as
724
Estes três elementos formam uma espécie de carga-meta-teórica-latente, ou seja, um conhecimento prévio que
permitirá o juízo do povo ser favorável ou não ao náufrago. A idéia de carga-meta-teórica é destacada por
Thomas S. Kuhn: “O que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência
visual-conceitual prévia o ensinou a ver.”. (Thomas S. KUHN, A estrutura das revoluções científicas. 6ª ed. trad.
Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora perspectiva, 2001, p. 148).
725
Cf. Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la pensée de Pascal, p. 14.
726
Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 366.
203
possibilidades pelas quais alguém pode herdar um bem são infinitas: “Se fosse do agrado dos
legisladores ordenar que estes bens, depois de terem sido possuídos pelos pais durante a vida,
retornariam à república depois da morte deles, vós não teríeis nenhuma razão para se
lamentar.”727; segundo, a imaginação estabiliza algum(s) princípio, dentre muitos por suas
cordas de necessidade, por exemplo: é justo que uma herança seja dada ao filho do
moribundo; o terceiro, conseqüentemente, alguns são beneficiados. Tal procedimento também
é destacado por Pascal na escolha de uma profissão.
3º) Pascal sustenta que a escolha de uma profissão é sempre feita ao acaso, ou seja, há
uma quantidade de elementos que interagem para que as pessoas escolham o que elas
desejarão fazer por toda vida.
Salto de sapato.
Como é uma peça trabalhada! Aí está um operário habilidoso! Como esse
soldado é audaz! Eis aí a fonte de nossas tendências e da escolha das
condições. Que fulano bebe bem, que sicrano bebe pouco: eis o que faz as
pessoas serem sóbrias e beberronas, soldados, poltrões etc...728
O elogio talvez seja o motivo pelo qual uma pessoa escolhe uma profissão. Sendo o
salto do sapato digno de admiração, tal admiração poderá concorrer para que um homem
sinta-se chamado a ser um sapateiro. A contingência aparece na medida que uma pessoa sai
de casa e encontra um sapateiro sendo elogiado: tal circunstância o motiva a construir peças
de sapato dignas de serem elogiadas. Thirouin destaca que a contingência na escolha de uma
profissão é um contraponto à noção de vocação natural: “A profissão é o símbolo de uma
contingência verdadeiramente atrás daquilo que se acredita ser a natureza de um homem.”.729
A circunstância contingente capaz de motivar um homem a uma determinada escolha revela
que Pascal entende que o homem é um ser altamente influenciável. A escolha de uma
profissão, assim como o trabalho que se aperfeiçoa a cada dia, estabelece um julgamento
naturalista: o homem é um ser que tem uma vocação empregatícia no mundo. Diante disso,
verificamos os três momentos que contribuíram para a escolha de uma profissão e sua relação
com a imaginação. No primeiro, há uma quantidade de profissões e possibilidades
contingentes de escolhas; no segundo, a imaginação estabelece o princípio de que é a
admiração que as outras pessoas tem por uma determinada profissão que será o critério para a
727
Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 366.
Idem, Pensamentos, Laf. 35, Bru. 117, p. 11.
729
Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la penseé de Pascal, p. 19.
728
204
escolha da mesma; no terceiro, um homem sai na rua em busca de uma profissão digna de sua
escolha e encontra um sapateiro sendo elogiado. Tal circunstância é o suficiente para sua
decisão: vou ser um sapateiro!730
4º) Por último, tentaremos detectar o papel da imaginação no confronto sempre
problemático entre a confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação com a
educação. Vejamos.
As impressões antigas não são as únicas capazes de nos enganar; os encantos
da novidade têm o mesmo poder. Daí vem toda disputa dos homens que se
censuram quer por seguir as suas falsas impressões da infância, quer por
temerariamente correrem atrás das novas. Quem mantém o meio termo
apareça e prove. Não há princípio, por mais natural que possa ser, mesmo
desde a infância, (que não se) faça passar por uma falsa impressão, seja de
instrução seja de sentidos.731
Na passagem acima há dois ítens que concorrem para a formação do erro: as
impressões antigas e as novas impressões. As impressões antigas dizem respeito à educação e
as novas impressões à ciência. Pascal destaca que a luta entre os homens na ciência é marcada
pela contínua censura entre os que acusam uns aos outros ou de seguir a tradição ou de criar
novidades que outorgam maior inteligibilidade a um fato. Pascal pontua esta discussão entre
autoridade da tradição e novidades na ciência no Préface sur le traité du vide, texto que já
apresentamos sucintamente no primeiro capítulo deste trabalho. Sabemos que Pascal acredita
que a tradição em teologia é de grande valia, sendo que para ele o retorno às origens é uma
forma de mitigar a entropia da mensagem cristã, mas em física o procedimento é totalmente
contrário, ou seja, será a novidade dos raciocínios que prevalecerá. Na citação acima a
teologia não está em questão, mas somente a ciência. A discussão sobre o vácuo entre Pascal
e os jesuítas esclarece esta polêmica: Pascal defendendo o raciocínio para sustentar seus
argumentos e os jesuítas citando Aristóteles. A dúvida que Pascal coloca é que não há
nenhum critério que possa validar com toda certeza qual seria o procedimento verdadeiro.
Conhecer um método verdadeiro é conhecer o meio termo, ou seja, é conhecer um ponto fixo
que sirva como critério último de análise. Encontrar tal ponto é um desafio que Pascal propõe
a qualquer um que tenha pretensões de buscá-lo. Depois de propor tal desafio ele descreve sua
730
731
Ver Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la penseé de Pascal, p. 18 – 19.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15 – 16.
205
opinião: um princípio, por mais natural que ele pareça ser – como por exemplo, que duas retas
paralelas nunca irão se encontrar – poderá passar por uma falsa impressão. Esta falsa
impressão poderá ser fruto ou dos sentidos – da experiência do cientista –, ou da instrução –
educação e repetição contínua de um professor de que duas retas paralelas nunca irão se
encontrar ou que (-1) x (-1) = +1. Sabemos que tanto a ciência e a instrução possuem um
vínculo com o costume. Desta maneira, a imaginação é que estabiliza o costume do cientista
de assentir a novidade que ele prega, assim como é a imaginação que produz o costume do
aluno de assentir ao enunciado ensinado pelo professor. Esta repetição produzida pela
imaginação poderá tender tanto do lado daquele que pensa dever buscar uma novidade sobre
um determinado assunto – Pascal defendia esta perspectiva em se tratando de física –, ou para
o lado daquele que se fixa na instrução de outrem – como é o caso de alguns jesuítas que para
defender suas idéias em física usavam de argumentos de autoridade: a contingência apresentase, no entanto, a imaginação fixa tais sujeitos em um destes pólos e os mesmos acreditam que
suas opiniões são naturalmente claras e distintas. Diante disso, o comentador Ferreyrolles
acredita que o costume tem uma função importante para compor a opinião dos homens: “[...]
visto que a duração é que faz sua essência, isto é dizer igualmente que o costume é razoável
por definição.”.732 Como sabemos, razoável quer dizer condições favoráveis, ou seja, o
costume com sua duração produz condições favoráveis para o assentimento. Assim, é a
imaginação que constrói um costume e o conhecimento torna-se um costume que se
estabilizou. Portanto, diante deste embate entre ciência e educação mediado pela ação
criadora da imaginação e a estabilização de uma certa razoabilidade pelo costume, vejamos
um exemplo que Pascal concede.
Porque acreditaste desde a infância, dizem alguns, que um cofre estava vazio,
quando nele nada víeis, acreditastes ser possível o vazio. É uma ilusão dos
vossos sentidos, fortalecida pelo costume, que precisa ser corrigida pela
ciência. E outros dizem que, porque vos foi dito na escola que não existe o
vácuo, corromperam o vosso senso comum que o entendia tão claramente
antes dessa má impressão, que é preciso corrigir recorrendo a vossa primeira
natureza.733
732
733
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 86.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16.
206
Mais uma vez ciência e instrução – ou educação – se chocam. Pascal descreve dois
grupos de pessoas: uns que acreditam desde a infância que um cofre é vazio porque nunca
viram nada dentro dele. Este é um argumento insuficiente, pois tanto a ilusão dos vossos
sentidos como o costume de não ver nada podem colaborar com o erro destes sujeitos. Tal
erro poderá ser corrigido pela ciência. Assim, não se trata de recorrer a uma simples
experiência comum para resolver um problema de física. Em contrapartida, outros escutaram
na escola que o vácuo não existe e assim tiveram seu senso comum corrompido, assim, eles
precisam recorrer àquela primeira natureza infantil, na qual acreditavam não haver nada no
cofre por não conseguirem ver nada dentro dele. Portanto, pode ser que os primeiros tenham
sido enganados pelos sentidos e os últimos o foram pela instrução. Diante da dúvida Pascal
faz duas perguntas: “Quem então enganou? Os sentidos ou a instrução?”.734 Ferreyrolles nos
ajudará a responder a primeira pergunta.
Ora, sobre esta questão precisa da possibilidade do vazio, temos a resposta da
física pascaliana. Entre as duas proposições que desmistificam, os sentidos
ligados ao costume, e a outra a instrução, a balança não é igual: o sentido e o
costume dizem a verdade”735
Ele sublinha que para Pascal o erro está naqueles que tomam os obstinados
argumentos de seus tutores como verdades irrefutáveis. A verdade de um argumento
prevalecerá quando o físico recorre à experiência. Lembramos que verdade para Pascal é
conciliar as regras de um método estabelecido com as conseqüências da experiência realizada.
Tal experiência sempre irá recorrer aos sentidos, pois para Pascal “[...] as percepções dos
sentidos são sempre verdadeiras.”.736 Não se trata de dizer que Pascal é um positivista
dogmático, sua afirmação é de um físico que não nega que um pesquisador deverá recorrer à
experiência, todavia, a “natureza” desta experiência é a imaginação, com seu papel mediador
entre os sentidos e a razão, que irá determinar. O método é uma tentativa de amenizar os
sobressaltos da imaginação. Em contrapartida, criando novas formas de experiência, ou
matematizando as experiências pelo método, a imaginação sempre fará o homem delirar. Ou
ele delira criando um método, ou delira detendo-se em um método, pois quantas
possibilidades de métodos há? O que faz um pesquisador deter-se em um só? Se para
Descartes a verdade é alcançada com o uso de um método que permitirá um conhecimento
734
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16.
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 56.
736
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 702, Bru. 507, p. 287.
735
207
claro e distinto, para Pascal o método coage o resultado da análise: cada método escolhido
terá um resultado diferente. A contingência poderá ser mitigada, mas nunca expulsa do
horizonte humano. Da mesma forma na teologia: o pecado poderá ser amenizado, mas é
pedagógico que os mais santos pequem para que não sejam invadidos pelo orgulho.
Verificamos uma sintonia entre a ciência e a teologia de Pascal, mas se na teologia a instrução
dos Pais da Igreja é o método, na ciência será o raciocínio: os sentidos e o costume que
estabilizarão um argumento. Os sentidos são as experiências que o cientista constrói e o
costume envolverá outros fatores como as imagens que o sujeito recebeu desde os primeiros
anos de sua vida, sua formação intelectual, os costumes nacionais de pesquisa, as reflexões
que o sujeito julgou entender e os argumentos que o impressionaram.737 Mas o que seria um
costume sem experiência? Na verdade é isso que compõe a instrução: “Uma opinião é
considerada como válida simplesmente porque ela já foi válida, e a sucessão do
consentimento acrescenta ainda sua autoridade: o costume não tem outra justificação senão
ele mesmo.”.738 Se a experiência com todos os seus problemas é critério para corroborar uma
teoria em física, a falta da experiência é uma típica repetição de um argumento que tem
validade em si mesmo pela autoridade daquele que é citado, ou seja, do tutor. A foz da relação
conturbada entre a posição do cientista que recorre a experiência e daquele que se instrui por
outrem é a manifestação do espanto de Pascal no fragmento 129: “Quantas errâncias! E por
que acaso cada um toma, geralmente, aquilo que ouviu ser estimado. Salto bem torneado.”.739
Aquilo que se ouviu estimar, como um salto torneado de um sapato é critério para a escolha
de uma profissão como vimos acima, assim como será critério para alguns darem
consentimento a obstinação de alguns pensadores. Desta maneira, podemos verificar os três
momentos que descreveram a ação da imaginação e seus efeitos contingentes tanto na herança
de um cargo político, assim como na herança de uma fortuna, escolha de uma profissão e,
neste agora, a confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação com a instrução.
Em um primeiro momento, há diferentes possibilidades de consentir, ou pela
experiência (sentidos) e costume, ou pelo costume da instrução; no segundo momento a
imaginação estabiliza um dos dois; e no último, o assentimento que um sujeito outorga a um
determinado raciocínio dependerá daquilo que a imaginação estabilizou como princípio: se foi
o costume da instrução, o agente do conhecimento irá repetir um argumento famoso de um
pensador aceito por um determinado contexto de intelectuais; se foi o raciocínio pela
737
Ver Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la pensée de Pascal, p. 18.
Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 23.
739
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 129, Bru. 116, p. 44.
738
208
experiência, o pensador construirá um método que será aplicado em um determinado fato e a
partir daí o cientista tirará conseqüências desta aplicação.
Portanto, estes quatro efeitos da imaginação que descrevemos manifestam a
contingência em ítens de grande importância para o consentimento, ou seja, na herança de um
cargo político e fortuna, na escolha de uma profissão e na relação ciência e instrução, todavia,
se a imaginação é capaz de construir princípios que se manifestam claramente e determinam
nossos juízos, Pascal também descreve outros efeitos mais tênues que são causados pela
imaginação e que são capazes de contribuir no processo de transfiguração das decisões, a
saber:
[...] quem não sabe que a vista dos gatos, dos ratos, o esmagamento de uma
brasa etc. levam a razão para fora dos gonzos. O tom de voz se impõe aos
mais sábios e muda a força de um discurso e de um poema.740
Se uma nova organização das leis realizada pelo legislador poderá determinar como
acontecerá o processo de herança dos bens de uma família, também um gato, um rato ou o
esmagamento de uma brasa poderá atrapalhar o julgamento da razão e lançá-la para fora dos
seus trilhos, ou seja, destituir a razão dos critérios previamente estabelecidos para o
julgamento. O olhar de um gato e de um rato poderá causar fobias no sujeito que faz um
discurso, assim, uma causa tão quimérica como o olhar de um gato ou rato seria capaz de
prejudicar um pregador por mais equânime que seja as verdades por ele promulgadas.
Ferreyrolles constata tais fobias visuais analisando a passagem acima e acrescenta um outro
dado: “As fobias visuais, como a visão dos gatos e dos ratos, tem seu deferente auditivo com
‘o som de um parafuso’ ou ‘o esmagamento de uma brasa’.”.741 Além das fobias visuais, ele
destaca as fobias auditivas que podem ser causadas pelo esmagamento de uma brasa ou o som
estridente e incômodo de um parafuso sendo apertado em uma parede ou friccionado em uma
mesa metálica. Desta maneira, a imaginação é capaz de descontrolar a razão e desfazer os
critérios. Como dar-se-ia este processo? As cinco etapas que compõem a máquina imaginativa
nos trará luz.
740
Blaise PASCAL, Pensamentos Laf. 44, Bru. 82, p. 13 – 14. Destacamos que Montaigne também sublinha os
efeitos da imaginação em sua relação com a vista, tanto de homens como animais. É bem provável que Pascal
tenha apropriado-se da reflexão de Montaigne no trecho acima. Vejamos o que Montaigne diz: “Viu-se há
tempos em minha casa um gato à espreita de um pássaro empoleirado no alto de uma árvore; olharam-se
fixamente com intensidade durante alguns momentos e em seguida o pássaro deixou-se cair, como se tivesse
morrido, entre as patas do gato, o que se explica ou pela força do olhar deste ou por um efeito da própria
imaginação do pássaro.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 113).
741
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 142.
209
O corpo (sentidos) é afetado pelo barulho estridente de um parafuso (1ª etapa); a
imaginação é impressionada, assim como a razão, pois ambas estão ligadas (2ª etapa); a razão
interpreta o barulho produzido, junto à imaginação (3ª etapa); a imaginação e a razão
devolvem a interpretação da razão ao corpo (4ª etapa); o corpo produz um efeito, ou seja, um
mal estar capaz de fazer o pregador ou um professor que ministra sua aula se deter (5ª etapa).
Também o poeta terá seu discurso prejudicado se sua voz apresentar-se de maneira diafônica
aos ouvidos daqueles que escutam um recital de poesias: o tom da voz colabora com a
expressão poética, ao passo que, se ela apresenta-se como um ruído, as fobias auditivas serão
os efeitos que a imaginação causará. A razão se descontrola com um simples ruído – ela saí
dos gonzos, dos trilhos – que é levado pela imaginação. Assim, a imaginação, sublinha
Ferreyrolles, “[...] é o sofista da alma.”742 Esta atividade sofistica da imaginação prejudicando
a razão por causas quiméricas também é sublinhada por Pascal no fragmento 48 dos
Pensamentos: “O espírito daquele soberano juiz do mundo não é tão independente que não
esteja suspeito a ser perturbado pela primeira barulheira que se faça ao seu redor.”.743 Mesmo
aquele juiz impassível se rende aos ruídos estridentes e incômodos. Ele seria perturbado por
uma barulheira, esta porém, não precisa ser o barulho de um canhão para colocar sua razão
para fora de seus gonzos, mas será suficiente “[...] o barulho de uma ventoinha ou de uma
polia.”.744 Causas quiméricas como o barulho de uma ventoinha, polia ou até mesmo uma
mosca bastarão para que o mesmo juiz não raciocine com a impassibilidade que o povo
acredita que ele tem. “Não vos espantei se ele não raciocina bem agora, uma mosca está
zumbindo em seus ouvidos: basta isso para torná-lo incapaz de um bom conselho.”.745 O juiz
é coagido por um ruído que causará um efeito: ele será incapaz de um bom conselho. Assim
como o conselho do juiz é coagido pelo ruído, Pascal destaca que também o amor, que tem
como causa pequenos detalhes, pode mudar toda história: “O nariz de Cleópatra, se tivesse
sido mais curto, toda face da terra teria mudado.”.746 Sendo o império romano dividido,
Marco Antônio apaixonou-se por Cleópatra e ficou com o Egito. Por ter se apossado do Egito,
Otávio, sobrinho do falecido César, acusou Marco Antônio como fora da lei e iniciou uma
campanha para derrotá-lo. Na batalha de Actium, Marco Antônio é derrotado, por este
motivo, suicidou-se. Cleópatra tenta em vão aliar-se a Otávio, desta maneira, também se
742
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 161.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 48, Bru. 366, p. 18.
744
Ibid., Laf. 48, Bru. 366, p. 18.
745
Ibid., Laf. 48, Bru. 366, p. 18.
746
Ibid., Laf. 413, Bru. 162, p. 157.
743
210
suicidou e Otávio torna-se o imperador absoluto de Roma.747 Pascal analisando esta história
supõe que se o nariz de Cleópatra tivesse sido maior, talvez Marco António não se
apaixonaria por ela e a história do ocidente seria outra. Se a causa do amor é um simples
nariz, as conseqüências deste amor custaram a vida de Marco Antônio, assim como de sua
amada, e a história do ocidente acabou tomando outro rumo: a contingência produz a história
da humanidade. Discernir toda relação de causa e efeito do movimento histórico é sublinhar
as causas mais evidentes e incontestáveis, como a morte do imperador César, assim como as
causas mais quiméricas748, ou seja, um simples nariz que poderia ser a causa do amor de
Marco Antônio por Cleópatra. Assim, da mesma maneira que a imaginação é capaz de
construir uma grade de leis para a manutenção da ordem social, ordem esta que uma
sociedade chama de justiça, ela também pode construir a história, assim como a beleza e a
felicidade, dirá Pascal: “A imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e a felicidade que
é tudo no mundo.”749 A beleza de Cleópatra imaginada por Marco Antônio estava associada a
sua felicidade. A imaginação com a sua capacidade de associação liga a justiça à beleza,
sendo que estas estão associadas à felicidade que todos os homens buscam, “[...] todos tendem
para este fim [...] até aqueles que vão se enforcar.”.750 A construção da felicidade tem como
ouvrier a imaginação. Os comentadores Bras e Cléro destacam esta capacidade da
imaginação:
A busca da felicidade supõe o desejo, não é a falta de um objeto determinado,
mas falta essencial que nenhum objeto poderia preencher, e anima a
imaginação, potência da apresentação de um objeto de substituição, na ilusão
de uma possível apropriação.751
747
Cf. Heródoto BARBEIRO, História geral. São Paulo: Ed. Moderna, 1976, p. 79.
Montaigne em seu Ensaios destaca diversas causas quiméricas capazes de destruir e perturbar grandiosas
potências. Vejamos alguns exemplos: “[...] um animalzinho qualquer, um verme, pode comer ao almoço o
coração e a vida de um imperador no apogeu de sua glória.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond
Sebond, II, 12, p. 389); um pequeno peixe chamado rêmora gruda nos cascos dos navios e os destroem: “Esse
mesmo peixe sustou repentinamente a marcha da galera de Calígula que vogava com uma grande frota pelas
costas da România.”. (Ibid., II, 12, p. 394); as abelhas são capazes de deter grandes exércitos: “Este viu-se
forçado a desistir do empreendimento, não podendo suportar as picadas.”. (Ibid., II, cap. 12, p. 399); um raio é
capaz de ofuscar os olhos e uma pequena quantidade de poeira, sendo agitada pelo vento, ao tocar os olhos de
um homem, é capaz de deixar um inimigo desorientado. (cf. Ibid., II, 12, p. 399). Diante destes pequenos seres e
objeto que causam efeitos devassos em imponentes exércitos e personalidades importantes, percebemos a
fragilidade humana na descrição de Montaigne: “Não são apenas as febres, a bebida, os acidentes graves que nos
abalam o juízo; as coisas mais insignificantes o perturbam [...].”. (Ibid., II, 12, p. 472).
749
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15.
750
Ibid., Laf. 148, Bru. 425, p. 60 – 61.
751
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 22.
748
211
A busca da felicidade tem como pressuposto o desejo. Tal desejo será sempre por um
objeto infinito, Deus, todavia, aquilo que o desejo encontra para preencher este vazio são
sempre objetos finitos, de modo que nenhum poderá preenchê-lo. Assim a imaginação faz seu
papel e constrói objetos para ocupar este vazio de modo que o sujeito se apropria dos objetos
ou das idéias destes objetos como um porto seguro no qual se encontra a felicidade. É desta
forma que a imaginação, potência enganosa, trabalha na construção de objetos e idéias de
objetos de desejo que lançam o sujeito a buscar sem encontrar a felicidade, a perseguir sem
achar, pois achando aquilo que é procurado o vazio continua e a imaginação produz outros
objetos, visto que ela é força criadora. A contingência que se manifesta pela imaginação é a
incapacidade humana de discernir com toda certeza aquilo que a fará feliz, pois, a imaginação
liga o conceito de felicidade aos objetos que ela mesma produz, de modo que o sujeito
encontrar-se-ia na dependência dos saltos da imaginação para construção dos objetos que
serão perseguidos. A imaginação coloca o homem em movimento, ou seja, ela é uma espécie
de divertissement do espírito, no qual o objetivo não é encontrar o objeto visado, mas colocar
o espírito em movimento. Portanto, se a imaginação constrói a justiça de um povo e a
felicidade de cada homem, veremos adiante que a justiça para cada homem é parte de um
construto imaginativo, assim como a motivação ou empenho em defender uma causa. Neste
momento, analisaremos a relação entre a imaginação e os advogados.
2.7 - Os advogados e a imaginação.
A relação entre a idéia de justiça e empenho para se defender uma causa é explorada
por Pascal no fragmento 44 dos Pensamentos. Se um juiz revela os elementos que coagem seu
julgamento, como um pregador mal barbeado e com uma voz rouquenha, um advogado
também possui elementos que deslocam seus critérios de análise. Vejamos:
A afeição e o ódio mudam a face da justiça, e quanto um advogado bem pago
adiantadamente acha mais justa a causa que defende. Como o seu gesto audaz
a faz parecer melhor aos juízes enganados por essa aparência. Razão
engraçada essa que um vento pode manejar, e em todos os sentidos. Eu
relataria quase todas as ações dos homens que só se abalam pelos solavancos
dela. Porque a razão foi obrigada a ceder, e a mais sábia toma como princípios
212
seus aqueles que a imaginação dos homens temerariamente introduziu em
cada lugar.752
A subjetividade no julgamento de uma causa exaspera seus pólos extremos. Afeição e
ódio colaboram ativamente no juízo. No caso descrito acima o elemento que coage o
julgamento tirando a objetividade do mesmo é o dinheiro. Um advogado bem pago considera
sua causa mais justa, ou seja, o fundamento de sua ação dependerá da quantia que lhe for
paga. É esta quantia que motivará o advogado diante do juiz: o advogado fará gestos capazes
de convencer os juízes que a causa que ele defende é verdadeiramente digna, ou seja, justa. A
roupagem da justiça passa a ser a aparência dos gestos de um advogado audaz. A
impassividade do advogado, ser de uma racionalidade tida como autônoma na defesa de um
caso, “balança” com o primeiro vento que aparece aos olhos, ou seja, a riqueza. Assim, o
afeto pela riqueza maneja a motivação do mesmo e o faz conceber que uma causa é mais justa
do que a outra por um elemento vão em relação à nobreza da justiça. Mas vejamos como a
imaginação faz seu papel neste processo.
Os sentidos são afetados pela idéia de uma causa associada a uma quantidade
estabelecida de dinheiro (1ª etapa) – sabemos que a potência imaginativa tem esta capacidade
de associação, como destacou Bras e Cléro nas linhas precedentes –; a imaginação é
impressionada, assim como a razão, pois ambas estão ligadas (2ª etapa); a razão interpreta,
junto à imaginação (3ª etapa); a imaginação e a razão devolvem a interpretação da razão ao
corpo (4ª etapa); o corpo produz um efeito (5ª etapa), ou seja, os gestos audazes do advogado
que impressionam os juízes. Os efeitos da imaginação encontram sua vítima tanto nos
advogados quanto nos juízes: nos advogados a imaginação faz a sua ação direta e desloca seus
referenciais de justiça construindo novos referencias; nos juízes são as cordas de imaginação
que perpetuam seu efeito, pois aquilo que é aparência, ou seja, os gestos do advogado, tornase o essencial em um julgamento.
Tal relação entre o essencial e o acidental nesta passagem específica do fragmento 44
é comentada por Jean Mesnard: “O ardor do advogado ao litigar é inspirado pela perspectiva
do ganho que ele vai receber, e é este dado inessencial que lhe faz, com toda boa fé, julgar o
752
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14. Esta passagem é inspirada por Michael de Montaigne:
“Expomos uma questão a um advogado; sentimo-lo hesitante e sem convicção: é-lhe indiferente defender esta ou
aquela causa. Se o pagamos bem para se colocar do nosso lado, começa a interessar-se. E se sua vontade se
aquece, eis que se aquecem ao mesmo tempo sua razão e seu saber e a verdade aparente deixa de lhe inspirar a
menor dúvida. Persuade-se de que assim é, e o crê.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond,
II, 12, p. 474).
213
essencial, isto é, a justiça da causa que ele pleiteia.”.753 Quanto maior o ganho, maior a
motivação do advogado, todavia, o que nos chama à atenção é a afirmação de Mesnard de que
um dado inessencial é critério para julgamento do dado essencial. A imaginação cria critérios
circunstanciais como a quantia a ser paga por um causa que motiva o advogado a sustentar
ardorosamente que a sua causa é mais justa, ou seja, a razão é obrigada a ceder, sustenta
Pascal. Tal procedimento da imaginação não poderia deixar de causar efeitos danosos àqueles
que julgam: “Reciprocamente, o juiz se deixa levar pela mímica apaixonada do advogado,
esta que é inessencial para apreciação da justiça.”.754 Assim, junto com Mesnard, sustentamos
que a imaginação causa seus efeitos tanto nos advogados e juízes, fazendo passar como
critério avaliativo do essencial aquilo que é inessencial. A contingência desta ação manifestase na medida que se faz a seguinte pergunta: Qual é a quantidade de dinheiro necessária para
motivar um advogado? Um advogado não poderia interpretar que seu cliente ao oferecer
muito dinheiro para custear sua defesa estaria sendo injusto? Neste caso a imaginação em vez
de causar gestos audazes poderá motivar o advogado a abandonar o caso: o advogado neste
caso considerará a justiça estabelecida mais nobre do que a quantia de dinheiro oferecida para
defender um litígio. Entretanto, caso o advogado aceite a causa, um juiz não poderia
desconfiar dos gestos “audazes” do advogado? Assim, a imaginação poderá criar aparências
que influenciarão na decisão tanto dos advogados, motivando-os na defesa de uma causa ou
fazendo-os odiar ou repudiar a mesma, quanto dos juizes, persuadidos ou desconfiados acerca
dos gestos dos advogados. Vemos que a razão, neste caso, é manejada pelos sopros da
imaginação e seu resultado é sempre uma foz na contingência. Portanto, se a contingência
manifesta-se diante dos possíveis efeitos que a imaginação, vinculada à razão, é capaz de
causar na concepção de justiça de um advogado ou juiz, assim como na motivação da
apologia de uma causa ou julgamento da mesma, vejamos outros efeitos da imaginação
quando a causa em questão diz respeito ao próprio defensor da causa.
Não é permitido ao mais equânime homem do mundo ser juiz em causa
própria. Conheço alguns que, para não caírem nesse amor próprio, acabaram
sendo os mais injustos do mundo por reação contrária. O meio mais seguro de
perder uma causa totalmente justa era fazer com que algum seu parente
próximo a recomendasse junto a eles.755
753
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 194.
Ibid., p. 194.
755
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16.
754
214
O que Pascal destaca aqui é o que poderíamos chamar de dogma da neutralidade: um
homem que estivesse defendendo em causa própria estaria coagido pela motivação de safar-se
de uma pena. Mas Pascal relativiza tal dogma e sublinha que alguns tentando fugir de um
julgamento que se fundamenta no dogma da neutralidade foram absolutamente injustos. A
pergunta a se fazer é a seguinte: qual é o critério que fundamenta a afirmação que um
julgamento deverá ser totalmente neutro naquilo que diz respeito aos interesses dos sujeitos
em causa? Pascal sabe que se quisermos perder uma causa fazer-se-ia necessário recomendar
um parente nosso para defender-nos, ou seja, ele sabe que a imaginação cria critérios de
análise de uma sentença que estão mais estabilizados, como o dogma da neutralidade que
garantiria a justiça com mais eficácia aos olhos da maioria. Todavia, mais uma vez o
inessencial julga o essencial: a imaginação cria uma rede de causa e efeito na qual os sujeitos
em causa julgam que uma pessoa que será afetada com uma dada sentença de um juízo não
apresenta confiabilidade cabível para fazer sua própria defesa. A imaginação revela sua face
contingente, pois qual é garantia de que o sujeito que defende em causa própria não fará uma
defesa verdadeiramente justa? O dogma da neutralidade tão reivindicado para a defesa de
uma causa tem como fundamento o vazio, ou seja, não há fundamento evidente.
Portanto, diante da relação de necessidade que a imaginação constrói entre o dinheiro
a ser pago e a motivação de uma causa que o advogado acreditar ser mais justa, da
conseqüência de tal relação entre os juízes que são persuadidos pelos audazes movimentos
dos advogados, e na perspicaz construção de critérios como o dogma da neutralidade usado
em um combate judicial, todavia, criticado por Pascal, vemos mais uma vez que o inessencial
é critério de avaliação para o essencial, ou seja, a objetividade da causa: aparência é
construída pelos solavancos da imaginação, de modo que só nos resta aparências em um
mundo que tem a objetividade perdida – não discernida. Cabe agora a verificarmos a relação
das aparências com a imaginação.
2.8 – Construção das aparências e a imaginação.
A relação entre aparência e imaginação é bem tênue na medida em que a imaginação
cria aparências que causam efeitos persuasivos nas pessoas que são afetadas pelos solavancos
da imaginação. Pascal sublinha elementos externos ou inessenciais criados pela imaginação
que colaboram no processo de persuasão.
215
As suas togas vermelhas, os arminhos com que se acalentam, os palácios onde
julgam, as flores-de-liz, todo esse aparato augusto era bem necessário, e se os
médicos não tivessem batas e mulas, e se os doutores não tivessem barretes
quadrados e roupas muito amplas de quatro partes, jamais teriam podido
enganar o povo que não pode resistir a essa exibição tão autêntica. Se tivessem
a verdadeira justiça, e se os médicos tivessem a verdadeira arte de curar, não
teria o que fazer com seus barretes quadrados. A majestade dessas ciências
seria bastante venerável por si mesma, mas só possuindo ciências imaginárias
é necessário que lancem mão desses vãos instrumentos que tocam a
imaginação a que eles fazem apelo e mediante isso, de fato, provocam
respeito.756
Pascal inicia a passagem catalogando alguns elementos externos usados por
magistrados, médicos e doutores e que fazem parte da dinâmica persuasiva comandada pela
potência enganosa da imaginação: togas vermelhas, arminhos, palácios onde julgam, floresde-lis, batas, barretes quadrados, roupas amplas de quatro partes. Todos estes elementos
persuasivos Pascal chama em suma de “aparato augusto”. Estes elementos associados à
pessoa do juiz, do médico e do doutor tem um alvo: persuadir o povo. O conhecimento dos
efeitos da imaginação, auxiliado por tais elementos, Pascal chama de ciências imaginárias.
Estas ciências têm seu fundamento em si mesmas na medida em que usam de instrumentos
periféricos que são deslocados, ou seja, associados ao usuário dos instrumentos e produzem
um efeito: o respeito. É no uso deste aparato augusto que o povo se curva diante da
impassividade do juiz, do diagnóstico do médico e do discurso de um doutor. O respeito ao
juiz está associado ao seu vestuário e o local onde julga; os médicos persuadem pelas suas
batas; e os doutores com seus barretes e pelas vestes divididas em quatro partes. Cada
profissão tem seu respectivo traje ou elemento que previamente persuade o povo. Isto dar-seia na medida em que o povo acredita que tais personalidades projetam aquilo que se espera
deles: os magistrados projetam justiça; os médicos, saúde; os doutores, entendimento. O povo
percebe a projeção e associa a justiça, a saúde e o entendimento, a seus respectivo projetores.
Todavia, sem os elementos persuasivos “[...] jamais teriam podido enganar o povo que não
756
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14 – 15. A descrição de Pascal quanto aos elementos que
envolvem a aparência dos médicos é bem provável que seja uma reflexão a partir de Montaigne: “Por que os
médicos, antes de operar, procuram convencer o doente da excelência de uma terapêutica em que eles próprios
não acreditam, se não é para que a imaginação supra a ineficiência prevista do remédio? Não esquecem o que
disse um de seus mestres, a saber, que certos doentes saram à simples vista dos apetrechos operatórios.”. (Michel
de MONTAIGNE, Ensaios, II, 21, p. 111).
216
pode resistir e essa exibição tão autêntica.”. 757 Assim, depois de detectar tais elementos que
fazem parte da dinâmica persuasiva da imaginação, Pascal desconfia e critica a relação
construída entre a profissão e seus aparatos augustos pela capacidade associativa da
imaginação: se os magistrados tivessem a verdadeira justiça, os médicos a verdadeira cura e
os doutores o entendimento da verdade, não teriam necessidade de associar a sua aparência
tais realidades, todavia, a falta do essencial faz com que os mesmos construam suas
aparências com instrumentos ou elementos vãos, ou inessenciais. Diante disso Pascal afirma:
“Nossos magistrados conheceram bem esse mistério.”.758 Mas porque mistério? Mistério no
século XVII é visto como um conhecimento caché. Neste caso o uso da palavra significa que
o conhecimento desta ciência imaginaria é escondido do povo para que o resultado seja eficaz,
pois o povo acredita que a justiça do magistrado é impassível e justa, que a cura e a saúde está
no médico e que o conhecimento é desvelado pelo discernimento do doutor. Os sinais da
justiça, cura e do conhecimento têm seus respectivos correspondentes, a saber: o magistrado,
o médico e o doutor. A construção da aparência destes personagens dar-se-ia por símbolos
habitualmente significativos, entretanto, em uma análise mais detida destes símbolos
detectaríamos uma relação necessária entre o símbolo – justiça, saúde, entendimento – e seu
significado – magistrado, médico e doutor? Sabemos que Pascal contesta tal relação
necessária, assim como Ferreyrroles em comentário a esta passagem:
No limite, os sinais podem não mais reenviar a nenhum significado, eles
mesmos criam seu significado na imaginação que os acolhe, como o exterior
do médico restitui a saúde sem que manifeste, portanto, um poder real de
curar. A imaginação marca bem “com o mesmo caractere” [...] o verdadeiro
poder e o poder vão, dando aos dois o poder de exercer realmente.759
Os sinais neles mesmos não enviam a significado nenhum, mas é a imaginação que
constrói uma relação causal entre o médico e a saúde. O médico sempre será pensado
associado aos seus respectivos acessórios de modo que os mesmos manifestam o poder
“natural” de curar. É neste sentido que a imaginação, potência enganosa que manifesta a
contingência, exerce seu papel: ela marca com o mesmo traço o poder de curar presente no
médico, pois este é o seu oficio, e o poder vão, ou seja, a relação de uma garantia de cura pelo
arsenal augusto com o qual o médico se apresenta. A imaginação mitiga a dúvida do povo de
757
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14 – 15.
Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14-15.
759
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 151 – 152.
758
217
que o médico não trará a cura, entretanto, mitigar a contingência não é garantia de cura
efetiva, logo, a imaginação borra como elemento progenitor da saúde tanto aquilo que cura,
ou seja, o entendimento e a ação eficaz do médico, quanto aquilo que não cura, ou seja, seus
acessórios externos. Ferreyrroles destaca que o caráter vazio do símbolo é preenchido quando
a imaginação realiza seu trabalho: ela transforma aquilo que é inessencial e acidental em
essencial. O vestuário do médico é marca de sua eficácia aos olhos do povo, assim como o
vestuário do advogado é garantia da justiça, como afirmará Mesnard:
A justiça estando fora da nossa apreensão, senão em imaginação, os
magistrados, que deveriam ser respeitáveis pela própria justiça, se fazem
respeitar por acessórios, os quais cercam o exercício de seus cargos: togas
vermelhas, camisas, palácios, flores-de-liz – contribuidores que eles são para
uma comédia de justiça e não de uma justiça verdadeira.760
Mesnard faz uma distinção entre a verdadeira justiça e aquela postulada por acessórios
acidentais e aparentes. Estes são considerados como uma comédia de justiça, algo tão frágil
que causa riso depois que a associação entre a justiça e a toga do magistrado é detidamente
analisada. Uma comédia de justiça que tem pretensões de enquadrar-se como a justiça
verdadeira só faz mostrar sua temeridade, na medida que almeja uma condição que não é
digna de sua potência. Assim, o advogado bem vestido e, conseqüentemente, desinformado,
revelará sua arrogância, pois não percebe que a justiça que ele defende está associada ao um
determinado contexto que associa a justiça aos elementos acidentais de sua aparência. Pascal
faz referência a tal arrogância no fragmento 44: “Não podemos sequer ver um advogado
togado e com o barrete na cabeça sem uma opinião favorável de sua arrogância.”.761 A
arrogância do advogado está em entender como essencial aquilo que é acidental, ou seja, um
advogado bem vestido acredita possuir a verdadeira justiça e, por este motivo, age
arrogantemente como se o mesmo fosse critério último daquilo que é justo ou não. Desta
maneira, Pascal revela que a imaginação foi capaz de persuadir até aqueles que fazem o uso
dos elementos persuasivos da imaginação. O advogado persuadido pela imaginação torna-se
vítima desta potência enganosa e cego na medida em que não percebe que sua arrogância tem
outra causa. Mas que quem causou esta cegueira no advogado e o fez vítima da imaginação?
Vejamos a opinião de Denise Leduc Fayete para que depois possamos responder esta
760
761
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 194.
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15.
218
pergunta. “A ostentação, o prazer de “mostrar” [...], a mostra tão bem fustigada no fragmento
[...] 44 [...] procura mascarar o nada do estado de natureza decaída, gangrenada pelo pecado
original.”.762 Ela ressalta que o prazer de serem vistos pelo povo como alguém que possui a
verdadeira justiça, no caso do advogado e dos magistrados, o prazer de serem vistos como
portadores da cura, no caso do médicos, e o prazer de serem vistos como capazes de discernir
racionalmente tudo aquilo que lhes vem à mente, como os doutores, é a máscara que revela o
estado de natureza decaída do homem, uma natureza corrompida, ou como afirma Denise
Leduc Fayete, “gangrenada” pelo pecado. Se a arrogância dos magistrados ou advogados,
médicos e doutores é a manifestação de um pecado primordial, a construção da arrogância
tem a imaginação como arquiteta. A contingência manifesta-se na medida em que um
magistrado e um advogado poderá agir justamente ou não, um médico poderá curar ou não,
um doutor poderá discursar objetivamente ou não, entretanto, o que falta para que seja
confirmada qual dos pólos tais personalidades verdadeiramente estão é o discernimento, ou
seja, qualquer ação que eles venham a executar não é garantia da objetividade e certeza do
resultado de sua ação. Quem garante que o magistrado e o advogado agiram justamente, que o
médico vai curar e que o doutor fala a verdade objetiva de um determinado fato? Estando a
garantia perdida pelo erro de Adão, a contingência torna-se senhora do mundo gangrenado.
Desta maneira, o que resta a estes personagens é usar de elementos acidentais para curvar a
opinião do povo, ou seja, seus papéis são rebaixados à ordem do corpo como afirmará
Mesnard: “Os magistrados, que não podem estabelecer sua justiça na ordem da verdade,
impõe por toda parte um “aparato augusto” que os rebaixa à ordem do corpo.”.763 Assim,
aquilo que deveria manter uma relação racional de causa e efeito na segunda ordem na qual
permitiria o discernimento e entendimento da ação tanto de magistrados e advogados, assim
como de médicos e doutores, é associada ao mundo das aparências e nele exerce sua força.
Todavia, Mesnard afirma que quando se trata do rei e seu papel na manutenção da ordem de
uma determinada região, ou seja, seu reino, a força não precisa ser adornada para que se faça
manifesta: “Ao contrário, o rei, que dispõe da força, não tem necessidade destes disfarces.”.764
Portanto, vejamos como Pascal relaciona a força ao rei, subtraindo os disfarces aparentes
presentes em outras profissões e como a imaginação exerce seu papel.
762
Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 127.
Jean MESNARD, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 49.
764
Ibid., p. 49.
763
219
2.9 – Os reis e a imaginação.
A imaginação sendo uma potência criadora manifesta sua potência na construção das
aparências como vimos acima. Mas ela efetua seu papel confirmando aquilo que efetivamente
muda o comportamento humano: a força.765 A força apresentada pelos magistrados ou
advogados, médicos e doutores está associada ao aparato augusto que a sustenta manifestando
o respeito do povo como efeito. Todavia os reis não precisam destes elementos acidentais que
manifestam a força: o rei a possui efetivamente, como afirma Pascal:
Só os homens de guerra não se fantasiaram dessa forma porque, realmente, a
parte que lhes toca é mais essencial. Eles se impõem pela força; os outros, por
suas caretas.
Foi por isso que os nossos reis não procuraram essas fantasias. Não se
disfarçaram com roupas extraordinárias para parecerem tais. Mas se fazem
acompanhar por guardas, por homens com cicatrizes (?). Essas tropas armadas
que só tem mãos e força para eles, os trombetas e os tambores que marcham à
frente e essas legiões que o cercam fazem tremer os mais firmes. Eles não têm
a roupa, mas têm a força. Seria necessário ter uma razão muito depurada para
encarar como outro homem qualquer o grande senhor cercado de seu soberbo
serralho de quarenta mil janízaros.766
A força é associada pela imaginação ou àquilo que é acidental ou àquilo que é
essencial. Quando falamos dos reis, Pascal, sem capricho, sustenta que os mesmo possuem a
força efetivamente, daí a não necessidade de disfarces nem de caretas. “O chanceler é sério e
revestido de ornamentos. Pois o seu cargo é falso e não é o rei. Este tem a força, não precisa
da imaginação. Os juízes, médicos etc. só têm a imaginação.”.767 Um rei é acompanhado por
seus guardas que salpicados por suas cicatrizes e acompanhados por homens com trombetas e
tambores fazem a todos tremer. Assim, ele pode sorrir generosamente para o seu povo, algo
que o chanceler está impedido: este se impõe por suas caretas, ou seja, por uma aparência da
sua força que não é força efetiva. O rei tem a força efetiva independente da sua aparência.
Não é a roupa do rei que persuade o povo768, mas é a força efetiva que tal procissão manifesta
765
“[...] o temor determina um comportamento [...]”. (Jean MESNARD, Thème des trois orders dans
l’organisation des Pensées, p. 37).
766
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15.
767
Ibid., Laf. 87, Bru. 307, p. 31.
768
Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 150.
220
que curva o povo ao respeito769, como afirma Ferreyrolles: “A pompa ameaçadora do cortejo
real, que trespassa nosso corpo de terror a cada aparição, arrasta nosso espírito ao respeito
sem que se pense nisso.”.770 Alguém que se coloca defronte a tal arsenal bélico afim de
enfrentar um rei como se enfrenta um homem qualquer não teria uma “razão muito depurada”,
ou seja, somente alguém descompensado mentalmente teria a coragem de enfrentar o rei
rodeado da sua força efetiva. Não se trata de dizer que os soldados são as vestes do rei, ou
seja, uma força aparente do rei: os soldados estão prontos para agir efetivamente com a força
que não é uma aparência, mas uma realidade. Em uma guerra a vestimenta de um soldado de
nada adiantaria, desta maneira, é a força efetiva o ponto mais importante em um combate.
Assim, a imaginação não exerce um papel específico nesta cena da procissão real quando
focamos o tema da força, ou seja, a imaginação não simula a força nesta cena, nem cria a
força nesta cena, pois a força está no exército do rei.771 Quando falamos do tema força não se
trata de ciências imaginarias capazes de persuadir, mas de uma realidade, não se trata de um
símbolo da força, mas a força efetiva pronta para atuar. Dizer que a imaginação não exerce
um efeito é afirmar a realidade da 1ª ordem em seu fundamento: a força é fundamento de si
mesma. Tal afirmação garante a supremacia da força sem apresentá-la de forma velada, ou
seja, a força manifesta a si mesma. Fundamentando e manifestando a si mesma, ela age
independente da imaginação e estabelece sua função: ela estabelece uma relação necessária
mitigando a contingência manifesta pelos saltos da imaginação. Todavia, a relação entre a
força e a imaginação é analisada pelos comentadores Bras e Cléro:
“Se a política efetiva é affaire de liens, então estamos totalmente na esfera da
necessidade e não naquela da liberdade. Mas é preciso distinguir duas espécies
de “cordas”: aquelas que provém da força e aquelas que provém da
imaginação, a qual nós dissemos que é potência.”772
769
“O costume de ver os reis acompanhados de guardas, de tambores, de oficiais e de todas as coisas que
inclinam a máquina na direção do respeito e do terror faz com que o seu rosto, quando às vezes está só e sem
acompanhamentos, imprima nos súditos o respeito e o terror porque em pensamento, não se separam as suas
pessoas dos seus séqüitos, que se costumam ver juntos.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 25, Bru. 127, p.
8). Inclinar a máquina ao respeito é coagir o corpo humano a realizar necessariamente ações que estão dentro dos
parâmetros das leis estabelecidas.
770
Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 28.
771
A imaginação não cria a força na cena da procissão real, pois a força já está presente, quer a imaginação atue
ou não. Todavia, no caso dos magistrado ou advogados, médicos e doutores, a imaginação quem cria a força
específica de cada um.
772
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 29.
221
A política efetiva é a força efetiva. Uma política sem o sustento da força é o estopim
para um guerra civil, que para Pascal é o “[...] maior dos males [...]”.773 Assim, a política vista
como um affaire de liens é a tentativa de mitigar a contingência pela construção de relações
sociais sustentadas pela força. É desta maneira que uma política produzida nestes moldes
vincula as relações sociais à necessidade, solapando a liberdade. Conceder liberdade é apostar
em uma sociedade construída no fundamento da confiança no ser humano, algo inadmissível
para Pascal, pensador que tem como pano de fundo desta desconfiança o pecado original que
gangrena o homem. Fundamentar um estado na confiança é um risco que os reis não desejam
correr, visto que é a força quem estabelece relações sociais com sucesso pela construção das
leis e estabelecimento das punições. Portanto, os comentadores Brás e Cléro fazem uma
distinção bem específica do conceito “cordas”: as cordas que provém da força e que não
necessita da imaginação para causar temor e respeito ao povo e as cordas que provém da
imaginação. Mas se a força possui sustento em si mesma, como vimos acima, qual seria a
importância e o efeito que a imaginação poderia causar nas relações sociais de um povo em
uma determinada região? Esta pergunta norteará nossa busca, na qual procuraremos entender
como a força depende da imaginação para que ela possa exercer seu papel na construção de
uma sociedade. A força, que até agora pareceria soberana, aparecerá entregue a uma outra
força ainda mais possante, a saber: a imaginação.
“Portanto, é a imaginação que permite à força de continuar no seio do mundo
social, que a integra no mundo que ela constitui, que é um mundo simbólico
onde os sinais dispõem dos indivíduos mais do que os indivíduos dominam os
sinais.”774
Um rei que exercesse seu reinado somente com a força agiria de maneira tirânica. A
imaginação é que permitirá que a força do rei continue a atuar, mas agora de forma velada. A
imaginação integra a força no mundo com uma sutileza que faz com que o povo não sinta o
peso da força. Mas como dar-se-ia tal procedimento? Pascal explica a relação entre força e
imaginação no terceiro discurso do texto Trois discours sur la condition des grands. Nele
Pascal sublinha que um grande senhor é alguém que tem em seu poder vários objetos de
concupiscência, ou seja, objetos de desejo dos homens. Tais objetos atraem os homens junto
ao rei, pois será ele quem decidirá o que cabe a cada um. O rei poderia atuar pelos meios que
773
774
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 94, Bru. 313, p. 33.
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 31.
222
o fizeram rei, ou seja, pelos atributos da força, todavia, ele age de outra forma, contentando
seus súditos com seus desejos, aliviando suas necessidades e fazendo esforço para ser
generoso.775 A força que o rei possui é transformada em contentamento gerenciado dos
desejos dos súditos, alivio das necessidades e esforço para generosidade. A força é integrada
no mundo social ganhando uma roupagem nova. Não se trata de dizer que a força não está
presente, ela é uma realidade presente, ao contrário do médico que disfarça a cura em
acessórios acidentais. Os soldados, afirma Mesnard, possuem a força, “[...] mas eles
impressionam também a imaginação. De maneira que a imaginação pode servir-se da garantia
da força: [...]”.776 A força é usada pela imaginação para garantir o seu efeito. Se a força é
soberana em um combate efetivo, tal soberania desaparece quando se trata estabelecer as
diretrizes de um reino: a força torna-se instrumento da imaginação. A força ganha contornos
mais aceitáveis e dóceis na medida que o procedimento do rei agrada o povo, surgindo um
clima de paz tão desejado pelo soberano. Assim, o rei exerce seu papel pela força, porém,
disfarçada ou transfigurada777 pela imaginação. Bras e Cléro afirmam: “Não somente a força
não tem mais necessidade de se exercer, mas ela é transfigurada.”.778 Ela ainda exerce seu
papel, mas ela é velada sob o véu da generosidade, o que impede um reinado tirânico e
consolida a instituição e manutenção de um estado de paz: eis o efeito e a importância da
imaginação. Assim, aquilo que a imaginação estabelece é aceito pelo povo que, com o passar
do tempo, legitima as prescrições do rei como verdadeiramente justas.779 É desta forma que a
força, transfigurada pela imaginação, é estabelecida, dirá Bras e Clero.
Portanto, todas as instituições políticas e jurídicas revelam “grandezas de
estabelecimento” que não poderiam ser justificadas por qualquer ato jurídico
que seja. O poder político não tem, deste ponto de vista, nenhum fundamento
superior a faticidade de seu estabelecimento: a relatividade histórica e
geográfica dos sistemas judiciários bastam para anular toda a empreitada de
racionalização do direito.780
775
Cf. Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 367 – 378.
Jean MESNARD, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 49 – 50.
777
Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 31.
778
Ibid., p. 30 – 31.
779
Cf. Ibid., p. 30 – 31.
780
Ibid., p. 31.
776
223
Caracterizar todas a instituições políticas, ou seja, os órgãos que organizam o espaço
físico onde dar-se-ia as relações humanas, como “grandezas de estabelecimento”781 como o
faz Pascal, é destituir toda a naturalidade daquilo que foi construído pelo homem, já que tais
grandezas “[...] dependem da vontade dos homens, que acreditam com razão dever honrar
certos estados e lhe atribuir certas honras [...]”.782 As “grandezas de estabelecimentos” estão
sujeitas as flutuações inconstantes da vontade humana. O uso que Bras e Cléro fazem do
termo é para evidenciar algo que absorve a política na obra de Pascal: um ato jurídico, como
uma lei, norma, resolução ou concessão de cargo, não possui nenhuma justificação, ou seja,
fundamento último. É desta forma que a contingência se apresenta. A imaginação – ao
transfigurar a força e inseri-la no seio da vida social – mitiga a contingência que a força tenta
a todo tempo apaziguar. Mas o que seria a contingência na vida política? As guerras civis, as
lutas por uma nova lei mais justa na concessão de um cargo, os roubos, as mortes, as
destruições em massa: todos estes eventos caracterizam-se pela falta de um parâmetro
absoluto e necessário, de tal forma que a imaginação com seus solavancos constroe outros
parêmetros que são contraposições aos existentes e assim, se institui o caos. Portanto, a
imaginação tornar-se-ia a potência produtora da paz e do caos pelo costume e a opinião, como
afirma Mesnard: “Mas o que são o costume e a opinião, opostas à natureza, à justiça, senão o
contingente, oposto ao necessário.”.783 A imaginação constrói o costume e submete a ação dos
homens à opinião que se estabelece, assim a paz se constrói “docemente”784 pela imaginação,
como é o caso do rei que age generosamente transfigurando a força, atributo do soberano
rodeado por seu exército, em paz. Da mesma forma, a imaginação constrói a guerra na medida
que ela contesta o que foi estabelecido, constrói novos costumes submetendo os homens as
suas novas opiniões que entram em choque com o que era estabelecido e a luta torna-se o
status quo da vida social. Cada grupo terá suas motivações produzidas pela imaginação, visto
que não há discernimento, nem parâmetros da causa verdadeiramente justa: eis a manifestação
da contingência! A vitória será sempre do mais forte, mas este será a contingência quem
decidirá com seus possíveis e prováveis acasos. O resultado será uma nova ordem social. A
imaginação, potência enganosa e criadora, constrói e destrói as ordens sociais que ela mesma
estabelece.
Portanto, diante do processo constitutivo e destrutivo de uma ordem social pela
imaginação, sabemos que a força é fundamento em si mesmo quando precisa ser usada
781
Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 367.
Ibid., p. 367.
783
Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 305.
784
Idem, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 49 – 50.
782
224
efetivamente em um combate – cordas da força –, de modo que a imaginação nada influi,
todavia, a imaginação mostra a sua importância quando transfigura a força e a insere nas
relações da vida social: a força é usada pela imaginação para garantir aquilo que ela
estabeleceu, produzindo um reinado generoso e pacífico.
225
CONCLUSÃO
A tríade entre Santo Agostinho, Jansenius e Pascal foi o ponto de partida de nossa
reflexão. Tentamos destacar alguns aspectos de Santo Agostinho, do jansenismo e de Pascal
que permitiriam que o leitor verificasse a ligação existente entre estes três ícones da tríade
acima.
Em Santo Agostinho analisamos três pontos de sua obra: o primeiro, as
transformações comportamentais e gráficas de sua obra depois de um contato mais íntimo
com Deus que denominamos conversão; o segundo ponto, sua mudança de opinião quanto ao
maniqueísmo; e o terceiro tocando as controvérsias pelagianas.
No primeiro, vimos que Santo Agostinho gradativamente converte-se ao cristianismo.
Não se trata de uma ruptura instantânea com suas antigas crenças, mas refletida e esclarecida.
Verificamos tal gradatividade em algumas passagens que propomos analisar de sua obra
denominada Confissões. O bispo de Hipona nos revelou detalhes de sua conversão que nos
permitiram pontuar duas mudanças importantes: a primeira, diz respeito a algumas
transformações comportamentais pela efusão da graça reveladas pelas lágrimas, desta
maneira, sublinhamos o caráter intimista e introspectivo do agostianismo; a segunda,
verificamos que a escrita também sofre transformações contundentes quando analisamos o
conceito Beleza, sendo este identificado com o próprio Deus.
No segundo ponto, percebemos sua mudança de opinião quanto ao maniqueísmo, ou
seja, verificamos que o cordão umbilical com o maniqueísmo é rompido, pois, como
maniqueísta, ele sustentava que o mal era causa do pecado e possuía substancialidade, mas
depois de convertido a fé cristã o mal é concebido como ausência de bem, ou seja, não possui
substancialidade, e a ausência de bem que movimenta a corrupção não está em Deus, mas no
homem por causa do pecado, portanto, o homem não é coagido a fazer o mal e livre de toda a
responsabilidade, todavia, faz o mal pelo uso inadequado de seu livre arbítrio flexível tanto ao
bem quanto ao mal.
No terceiro ponto, tentamos mostrar que na obra O livre arbítrio de Agostinho são
construídas proposições contra os maniqueus [388 (livro I) e acabada entre 391 – 395 (livro II
e III]. Os argumentos de Agostinho visam atribuir a responsabilidade do mal ao homem, no
entanto, a partir de 411, quando ele toma conhecimento da idéias pelagianas, seus escritos
mostram a primazia da graça para toda boa obra com o objetivo de atribuir a Deus a causa do
226
bem, sendo que o mal era mantido como ação concupiscente de um livre arbítrio manchado
pelo pecado original, desta maneira, verificamos uma mudança no conceito de livre arbítrio e
de liberdade na transição entre o Agostinho que discute com os maniqueus e o Agostinho que
discute com os pelagianos a partir de 411. Sublinhamos que o embate internacional entre
Santo Agostinho e Pelágio vislumbra o ápice das controvérsias sobre a graça: Pelágio – não
podemos esquecer de Celéstio, seguidor e propagador do pelagianismo – sustentando que a
graça está presente na natureza do homem pelo ato criador de Deus, ao contrário de Santo
Agostinho, pois para este a graça é dádiva de Deus para seus escolhidos e predestinados.
Neste embate dois conceitos foram analisados nos dois autores: o livre arbítrio e o pecado
original.
Em Pelágio, vimos que Adão tornou-se o modelo do homem pecador, ou seja, de
alguém que fez mal uso da liberdade humana. Todavia, o livre arbítrio não foi corrompido
pelo pecado adâmico, de maneira que este possui o poder outorgado por Deus para fazer o
bem e o mal, já que a corrupção de Adão não foi transmitida a toda a humanidade. A graça é
algo que já está embutida na natureza humana, cabe ao homem fazer bom uso da mesma.
Jesus Cristo é o modelo que revela como devemos agir, assim como a doutrina da Igreja. O
homem tinha uma grande responsabilidade como batizado já que a Igreja era o Corpus de
Cristo. Portanto, a natureza do homem criada por Deus é boa, o exemplo do Cristo e doutrina
da Igreja são vistos como componentes auxiliares para prover o homem de maiores forças –
além da natureza – no processo salvífico. O livre arbítrio continua flexível tanto para fazer o
bem quanto o mal no estado atual, outorgando ao homem fazer bom uso do poder de
comandar sua vontade e fazer o bem. A preocupação de Pelágio era atribuir responsabilidade
ao homem em meio ao contexto de perversidade que o monge encontra em Roma. Quanto a
Santo Agostinho, percebemos que o pecado original mancha e denigre toda a massa humana
de maneira atávica. Tal mácula feriu a vontade, desta maneira, o homem depois do pecado de
Adão está preso na gravidade do mal, já que seu livre arbítrio foi danificado. Cristo é aquele
que derramou seu sangue para a salvação dos escolhidos e predestinados, de modo que o
batismo é fator imprescindível, assim como a oração, para fazer as boas obras. Somente a
graça pode regenerar a vontade e conceder a verdadeira liberdade. Santo Agostinho destaca
que a graça não danifica a liberdade, mas esta é restabelecida pela graça. Todavia, detectamos
mudanças entre os conceitos de liberdade e livre arbítrio e diferentes contextos que Agostinho
está discutindo.
Na discussão com os maniqueus, vimos que a liberdade do homem era o ato de
submissão à palavra de Deus, à Verdade e a Cristo. Desta maneira, bastaria fazer bom uso de
227
um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal, pois, se houver qualquer coação para fazer o mal,
Deus não poderia condenar e, se houvesse qualquer coação para o bem, o homem não teria
mérito na salvação. Destacamos que tais definições do conceito de liberdade e livre arbítrio
mudariam na discussão do bispo de Hipona com os pelagianos. A economia da graça entra em
ação: o homem pecou, tal pecado corrompeu sua natureza santa e sua vontade, fato este que é
passado atavicamente a toda sua posteridade. O livre arbítrio, flexível ao bem e ao mal no
paraíso adâmico agora está acorrentado aos prazeres temporais da carne, o homem é livre para
escolher o mal que deverá fazer. Somente uma força maior poderia resgatar o homem da
escravidão do pecado: a graça de Deus quando outorgada pela divindade ao eleito concederia
a verdadeira liberdade, o que deixaria o eleito imune do pecado. “Para não sucumbir à
tentação, não basta o livre arbítrio da vontade humana, se o Senhor não favorecer a vitória ao
que ora.”.785 É de Deus a supremacia e o motor da vontade restaurada pela ação da graça.
Portanto, verificamos duas concepções de livre arbítrio em Agostinho, uma na discussão com
os maniqueus e uma na discussão com os pelagianos; e duas concepções de liberdade, uma na
discussão com os maniqueus e uma na discussão com os pelagianos.
Vimos que na querela pelagiana, Agostinho acusa Pelágio de anular a cruz de Cristo
ao sustentar que o livre arbítrio não sofreu a corrupção do pecado. Todavia, Pelágio acusa
Agostinho de maniqueísmo – algo que Juliano de Eclano fará maior ênfase mais tarde – ao
afirmar que a vontade humana abandonada às forças de seu livre arbítrio sofre a ação da
gravidade em direção ao mal depois do pecado. Assim, pensa Pelágio, o bispo de Hipona
retiraria toda responsabilidade humana das ações maléficas, pois o homem dependerá de Deus
para fazer o bem. Percebemos que a guerra entre o bem e o mal continua na obra de Santo
Agostinho, algo muito próximo ao maniqueísmo que se envolvera outrora. Mas é nas
controvérsias sobre a graça na França do século XVI e XVII que a obra de Agostinho seria
sublinhada com grandioso destaque. Nosso trabalho fez um salto histórico de Agostinho a
Jansenius, visto que já tínhamos matizado o conceito de pecado original e livre arbítrio que
será retomado por Jansenius.
Percebemos que o jansenismo reafirma alguns pontos cruciais da doutrina da graça de
Santo Agostinho do final do século IV e início do V. Temas como a predestinação, graça,
livre arbítrio e pecado original são retomados. O palco da discussão envolve jansenistas,
calvinistas, molinistas e luteranos. O caráter dialógico da obra de Agostinho e seu estilo
literário influência muitos autores do século XVII. Baïus e Molina abrem a discussão, mas é
785
Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade, IV, 9, p. 33.
228
Jansenius que a intensifica com a publicação do Augustinus. Vimos que esta obra faz um
compêndio das principais idéias de Santo Agostinho em sua discussão com Pelágio: eficácia
infalível da graça sem prejudicar a liberdade (graça eficaz), cura da natureza humana e de seu
restabelecimento na liberdade pela graça do Cristo redentor (poder, querer, fazer),
necessidade da graça para toda boa obra, a graça como fator preponderante para fazer o bem
e, por fim, crença na predestinação. Com a morte de Jansenius destacamos que Saint-Cyran
assume a tarefa de propagador da doutrina jansenista. Com o envolvimento deste com a vida
espiritual das freiras de Port-Royal o jansenismo ganha maiores proporções. Assim, vimos
que um grupo de intelectuais aderem ao jansenismo e passam a viver a espiritualidade
ascética de um agostianismo ortodoxo. Mas com a prisão de Saint-Cyran na bastilha, a defesa
do jansenismo no palco acadêmico é confiado ao teólogo Arnauld. Este está prestes a ser
condenado pela Igreja por heresia e a apelação a um recém convertido, Blaise Pascal, foi a
saída mais sensata. É neste período bélico que Pascal assume a causa jansenista com grande
força. Assim, encaminhamos o leitor para nosso último ponto da tríade acima.
Vimos que a história de Pascal é marcada por um homem que viveu em seus primeiros
passos o sofrimento. As doenças permeavam sua carne desde a juventude. Filho de um
intelectual preocupado com a saúde fragilizada do filho, o pai fez questão de conceder ele
mesmo a educação intelectual que o jovem precisara: em um primeiro momento nas línguas e
depois na matemática. A curiosidade científica do pai impulsionaria, mais tarde, o jovem
Pascal às reuniões dos grandes intelectuais da França. É neste grupo que a obra de Descartes é
minuciosamente analisada e, no futuro, criticada. Vimos que Pascal vislumbrou Descartes
como alguém que faz de Deus um argumento para sustentar sua física, filosofia e todo edifício
do saber por ele construído. Deus tornar-se-ia pedra angular de raciocínios. Descartes é
obstinado a conceber a verdade e a certeza a partir da certeza metafísica, Pascal, ao contrário,
é um anti-metafísico; Descartes quer um método universal, Pascal prefere um conhecimento
local. Sabemos que Descartes pôde propiciar a Pascal reflexões importantes em sua obra, mas
é evidente o antagonismo deste embate. Desta maneira, percebemos que as controvérsias
pulsavam dia a dia nas veias de Pascal desde suas primeiras reflexões com o grupo de
pesquisadores de Paris, ou seja, não é nenhuma novidade que este caráter dialógico em
ciência ao encontrar-se com um agostianismo também dialógico fariam de Pascal um grande
interlocutor. Arnauld fez bom uso disso convocando Pascal para defender a graça evangélica
– e também seu título de doutor na Sorbonne –, algo que nos faz lembrar o doutor da graça
africano.
229
Antes de tal missão seu primeiro contato com dois jansenistas reforçou seu estudo da
teologia, todavia, Pascal era alguém entranhado entre o mundo e a religião, ou seja, entre suas
ocupações científicas e a leitura das escrituras. Todavia, vimos que é difícil traçar com toda
certeza as disposições religiosas da família Pascal antes deste período. Sabemos que depois do
contato com os jansenistas, Jacqueline manifesta o interesse de consagrar-se como religiosa,
fato que era impedido pelo pai Étiene. Mas com a morte deste, Jacqueline entra para o
convento e Pascal vê-se inteiramente só, pois sua irmã Gilberte havia se casado. Inicia-se a
polêmica sobre o dote, algo que acentua um Pascal dividido entre o mundo e a religião. Mais
tarde, Pascal cede, e a chamada segunda conversão traduz um momento ímpar na vida do
filósofo francês.
A tensão entre a Igreja e o mundo, o corpo e a alma, a razão e a fé só poderia ser
dissolvida pelo criador ao qual tudo se converge. O caráter cristocêntrico em Agostinho é
retomado ao pé da letra: em meio as contradições tudo converge para o Cristo mediador. A
segunda conversão é um fator que estimula Pascal a escrever diversos textos que revelam tal
centralidade na imagem do Cristo: Écrits sur la grace, Lettres Provinciales. Tal
preponderância de escritos teológicos depois da conversão não podem ser desprezados como
um fator periférico assim como as mudanças que afirmamos encontrar na obra de Santo
Agostinho. Nestas obras de Pascal, a doutrinas da predestinação, graça eficaz, pecado original
e livre arbítrio são expressamente retomadas do agostinianismo ortodoxo de Jansenius. Nos
Provinciales a tentativa de evitar a condenação de Arnauld pela Sorbonne fracassa. Começa a
perseguição dos jansenistas que calhou em sua condenação pelo papado, de forma que os
hereges deveriam assinar um formulário que funcionaria como um reconhecimento de seus
erros. Mas isso não acontece.
A recusa da assinatura do formulário que condenava o jansenismo como doutrina
herética seria o último grito daquele que procurou defender a graça evangélica aos moldes
agostinianos. Pascal agora não se encontra entre a religião e o mundo, mas entre Deus e o
Papa. Portanto, depois de termos contextualizado e matizado a concepção teológica
agostiniana e jansenista, sublinharmos aspectos importantes da vida de Pascal, assim como a
sua conversão e espírito dialógico, procuramos entender o Pascal teólogo e as possíveis
implicações teológicas em sua obra, analisando a teologia pascaliana expressa nos Écrits sur
la grace.
Ao relacionarmos o pecado adâmico e a condição contingente do conhecimento
humano mostramos que há um elo entre a teologia de Pascal e sua epistemologia. Vimos que
o conceito de contingência em Pascal aponta para a ausência de verdade e falsidade, falta de
230
parâmetros que possibilitam um conhecimento puro e objetivo, ausência de natureza e
desconhecimento das essências. Naturalizar para um pensador do século XVII é fazer
manifesta a verdade pura, clara e distinta, no sentido cartesiano. Pascal rema contra a corrente
na medida que introduz a noção matemática de probabilidade nas ciências, ao passo que
estende esta noção para todas as áreas do saber. Provável e contingente são faces de uma
mesma moeda: é desta forma que a nossa hipótese geral mencionada na introdução de nosso
trabalho começa a ser corroborada, pois, no segundo capítulo, destacamos que a contingência
fazer-se-ia presente depois da queda de Adão, dado que o pecado adâmico apresentou-se
como causa da contingência.
A contingência revela a incapacidade humana frente ao seu atributo mais notável: o
conhecimento. Se os homens buscam a verdade, a contingência permeia tal projeto e impede a
certeza de apreensão da mesma. A busca é sempre um caminhar em círculos entre a verdade e
a falsidade, mas sem ter a certeza de tocar nem uma nem outra. A explicação deste estado
para Pascal é teológica: a incapacidade do homem de conhecer a verdade e a falsidade, assim
como a natureza de si mesmo e das coisas, são conseqüências da queda adâmica. A teodicéia
da condição humana em Pascal mostra-se ligada à teologia pela doutrina do pecado original
revelando suas conseqüências epistemológicas: a contingência apresenta-se na errância da
verdade e da falsidade e na ausência de natureza, como afirma o comentador Luiz Felipe
Pondé. Desta maneira, para entender o motivo desta condição contingente assumida por
Pascal, mostramos a necessidade compreendermos a sua teologia.
Descrevemos a posição de Lutero naquilo que diz respeito ao estado de natureza do
homem antes e depois da queda para delimitar as fronteiras entre Luteranos e Pascal. A partir
disto, verificarmos às implicações epistemológicas entre as duas fronteiras: dizer que a
natureza depois da queda está totalmente corrompida – diferença qualitativa do homem antes
e depois da queda – no sentido Luterano é apagar os vestígios de um primeiro estado de
natureza que sustenta os termos primitivos – base e fundamento para a epistemologia de
Pascal – e os axiomas, já que é pelo coração que sentimos, por exemplo que duas retas
paralelas nunca vão se encontrar. É a partir destes dois elementos que o homem começa a
raciocinar, afirma Pascal. A posição dos Luteramos dilacera a idéia de que os termos
primitivos são sustentados pelo coração, fazendo da base do nosso raciocínio uma incógnita;
também não explica o motivo pelo qual o homem tem uma idéia da verdade e da felicidade,
visto que estas centelhas de verdade e felicidade servem de motor para a busca das mesmas.
Pascal, desta maneira, fundamenta a filosofia e toda ciência na teologia, fazendo do logos
prisioneiro da fé, visto que os termos primitivos e axiomas são sustentados pelo coração.
231
Assim, se há uma ciência, ela é a teologia, pois não depende de nenhuma outra, visto que seus
termos e princípios são sustentados pelo coração, órgão pelo qual Deus age e,
conseqüentemente, transforma-o com sua graça; entretanto, como vimos, Pascal não exclui
nem logos nem fé. A razão depende da fé nos princípios e a fé entende, não como a razão,
nem contra a razão, mas com o coração, lembrando a célebre frase de Pascal: “O coração tem
razões que a razão desconhece; sabe-se disso em mil coisas.”.786 O conhecimento racional
apresenta sua face contingente na incapacidade de compreender o que é da alçada do
sentimento do coração, ato inteligente que supera a razão. Sublinhada as diferenças entre
Pascal e Lutero e as possíveis conseqüências epistemológicas desta análise, descrevemos a
concepção pascaliana do homem antes e depois da queda, pois é no pecado original, um
divisor de águas em sua obra, que a contingência se manifestaria como conseqüência da
desobediência adâmica. Verificamos que depois da queda a contingência apresenta-se
fortemente nos textos de Pascal. Luiz Felipe Pondé e Jean Mesnard também concordam com a
nossa hipótese de que a contingência é conseqüência da queda. Entretanto, Catherine
Chevalley não trabalha a contingência como um desdobramento teológico, todavia, a
contingência é vista como componente que permeia o mundo humano. Vimos que, para ela, o
homem é um ser exilado de verdade e falsidade, pois a contingência é a companheira do
homem. Ressaltamos os dois primeiros comentadores para revelar ao leitor que não estamos
sozinhos em nossa hipótese, entretanto, Catherine Chevalley é alguém capaz de mostrar que a
contingência na obra de Pascal, de maneira especial, na física, é algo muito forte, pois está
presente em tudo aquilo que é humano. Não entramos nos meandros da física pascaliana que a
autora analisa, todavia, a conclusão da comentadora em seu percurso não poderia ser diferente
da nossa: o homem é incapaz de obter a certeza (verdade) do conhecimento, assim, conhecer,
para Pascal, implicaria conhecer localmente, ao contrário de Descartes. A verdade passa a ser
um nome. Ela torna-se uma teoria construída na relação entre princípios estabelecidos, ou
seja, definições ou axiomas, e a tentativa de explicar a contingência – desorganização do
mundo – a partir da rede de definições previamente construídas.
Concluímos que o pecado original é um destes pontos fixos ou axiomas que nos
permite analisar a condição humana contingente depois da queda, todavia, com um adendo:
sublinhamos que o fundamento de tal doutrina, para Pascal, está além do limites humanos. É a
graça que atua no coração – órgão da vontade e sensor de Deus – que pode fazer o homem
sentir a fé e depois compreendê-la pela razão, iluminando, conseqüentemente, sua condição
786
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 423, Bru. 277, p. 164.
232
contingente, já que não compreende o mistério que é sua própria condição. A incompreensão
do mistério ilumina o estado contingente do homem. Crer para depois compreender é traço de
um típico agostiniano. Desta maneira, é na trama entre a fé e a compreensão, que permeia o
pecado original, que a contingência se manifestaria. A fé faz o homem submeter-se a doutrina
do pecado original e os mistérios que a envolvem, todavia, vimos que para ter fé é preciso ser
eleito por Deus. Já que o homem não sabe quem será eleito ou não, a contingência já está
atuando. Destacamos que esta doutrina funciona como um axioma. O homem deve submeterse pela fé – posição de humildade – e compreender-se como um ser contingente depois da
queda, esta que é apontada por quatro mistérios incompreensíveis: o estado glorioso de Adão,
a natureza do pecado de Adão, a transmissão do mesmo e a eleição são. O pecado atinge
níveis cósmicos, ou seja, toda natureza está corrompida. As Escrituras, cânone da verdade,
estabelecem o ponto fixo, um princípio, um axioma, ou seja, a doutrina do pecado original,
sendo os mistérios aqueles que revelam a contingência humana, sua miséria, fazendo o
homem submeter-se. Passo a passo Pascal constrói uma pedagogia da salvação. Princípio –
doutrina do pecado original – e contingência – estado humano depois da queda vislumbrado
pela incompreensão dos mistérios – interagem na teologia de Pascal: se por um lado a graça
traz temor e o homem conhece de onde ele caiu – pecado original –, por outro, o mistério
revela o tremor, ou seja, a incapacidade da razão humana de compreender o mistério. O
homem depois da queda está imerso na contingência: conceber a doutrina do pecado original
é conhecer a contingência a partir de um ponto fixo com fundamento teológico. Entretanto,
vimos que Pascal é categórico: o homem seria muito mais incompreensível para si mesmo
sem a doutrina do pecado original. Na verdade, seria a contingência – procura de uma teoria
plausível sem nenhum critério de análise que pudesse ser verdadeiro, diversidade de teorias
das escolas filosóficas – e sua relação consigo mesma – condição do homem e do mundo
depois da queda para Pascal. Portanto, destacamos a metodologia de Pascal: mantendo as
condições iniciais de maneira axiomática com o auxílio da fé outorgada por Deus na doutrina
do pecado original, ele tenta justificar a contingência do homem e do mundo depois da queda
mitigando a contingência e compreendendo a condição humana. Porém, a contingência nunca
o abandona, visto que por mais que o cristão tenha fé, a doutrina do pecado original sempre
fere a sua razão já que criancinhas de colo poderão ser condenadas ao fogo eterno.
Partimos teologia, mostrando os desdobramentos da queda, dando maior ênfase à
contingência. A contingência foi trabalhada como um conceito que se aplica ao homem
enquanto busca conhecer o mundo e a si mesmo. Mas, naquilo que diz respeito à
epistemologia, é na imaginação que ela manifesta seus contornos. Ela é um componente do
233
homem, uma potência enganosa na qual a contingência destaca-se claramente. Desta maneira,
fizemos da imaginação nosso objeto do último capítulo. Neste último nossa hipótese geral foi
cumprida. Verificamos que quando a razão começa a trabalhar os efeitos da imaginação se
manifestam.
Antes de analisar o conceito imaginação em Pascal, sublinhamos, de maneira sucinta,
a concepção cartesiana do conceito. Vimos que para Descartes a imaginação também é uma
potência enganosa, todavia, ele acredita que podemos discernir o que é o trabalho da
imaginação e o que é o trabalho da razão. A primeira traz contingência, todavia, a razão,
quando usada de maneira adequada e sob as diretrizes de um método, pode discernir a
verdade que apareceria clara e distintamente sem ser corrompida pelos embustes da
imaginação. Todavia, vimos que para Pascal a imaginação atua no sistema cognitivo do
homem de outra maneira: não se pode discernir aquilo que é da imaginação e aquilo que é da
razão. Imaginação e razão atuam conjuntamente e as inconveniências da imaginação
produzem contingência quando o homem procura conhecer. Portanto, dirigimos nossa análise
ao fragmento 44 dos Pensamentos..
Verificamos que o homem, na tentativa de conhecer o mundo e a si mesmo, possui
duas portas que permitem-no receber as opiniões: o entendimento e a vontade. A primeira,
Pascal destaca através do seu método geométrico composto por definições de nomes, axioma
e demonstrações. Todavia, vimos que ele tem consciência que a construção do método é
contingente: podemos construir uma diversidade de métodos. A segunda, Pascal considera a
mais importante, visto que os homens estão mais próximos de consentir a uma opinião pela
satisfação do que pelo entendimento. Mas quanto a esta segunda porta, destacamos que há
uma desproporção grande entre o conhecimento humano e as distintas disposições de cada
homem. Assim, a contingência aparece de forma mais direta, ou seja, para que um homem
seja persuadido dependerá das filigranas das suas disposições pessoais. Portanto, Pascal
mergulha o conhecimento na contingência na medida em que há uma diversidade de métodos
e serem conhecidos e uma diversidade de sutilezas que fazem o homem consentir. Vimos que
a dificuldade do homem em conhecer manifesta-se nas três ordens tendo a imaginação como
causa e criadora de muitos efeitos.
Destacamos que a imaginação por seus efeitos manifesta a contingência. O isolamento
tanto da verdade quanto da falsidade é um deles. Assim, Pascal considera viável a tentativa de
aliar a imaginação e a razão, visto que na guerra entre estas duas potências a imaginação
sempre vence, sobrepujando a razão com maior força. Mas como a imaginação realiza tal
papel? Vimos que Jean Mesnard afirma que a imaginação imita a razão interferindo em suas
234
operações e não permitindo discernir o real do imaginário, de modo que o mundo está
condenado a proferir opiniões sem o esclarecimento se as mesmas são verdadeiras ou falsas.
Acentuamos também que Ferreyrolles sustenta que imaginação não engana sempre e,
portanto, não permite discernir quando engana: é desta forma que ela funciona como uma
armadilha. Assim, diante da relação razão e imaginação, esta última confere razoabilidade, ou
seja, constrói condições favoráveis para o consentimento das pessoas, criando, por seu efeito
repetitivo, o hábito ou costume. Condições favoráveis e costume fazem as pessoas consentir,
fato este que faz Ferreyrolles sustentar que a imaginação é uma potência que se encontra entre
o interesse, circunstancial em cada ser humano, e o costume, tendo como efeito a persuasão.
Já Bras e Cléro entendem que a imaginação por ser uma potência causa dificuldades na
definição de sua natureza, assim como a razão, pois imaginação e razão estão intrinsecamente
ligadas e para que possamos defini-las teríamos que separá-las, discerni-las enquanto
potências na sua singularidade e depois traçar toda a cadeia de causa e efeito que compõe a
relação entre as duas potências. Desta maneira, Pascal constrói uma relação entre a
imaginação e a razão, associando tanto a essência da imaginação quanto da razão de maneira
tão intrínseca que impossibilita o discernimento. É neste sentido que Pascal se diferencia de
Descartes. A falta de discernimento é uma forma de subtrair o conceito de imaginação a uma
associação ordinária ao conceito de loucura, destituindo os homens mais cordatos ou doutos
dos efeitos da imaginação. Um exemplo de Pascal para esclarecer a atuação da imaginação
nos mais cordatos tem como objeto o chevalier de Méré: diante da subjetividade do
sentimento, ato inteligente que permite conhecer, a imaginação e a razão criam condições
favoráveis para o discernimento, desta maneira, Pascal e Méré sustentam sentimentos
distintos sobre um mesmo assunto – divisibilidade da matéria ao infinito –, de modo que a
razão, afirma Pascal, não apresentaria uma regra que pudesse discernir com toda certeza a
verdade. É neste sentido que a imaginação, potência enganosa que sobrepuja a razão, causa
como efeito contingente a eqüipolência entre verdade e falsidade. Os comentadores Bras e
Cléro também afirmam que a imaginação é uma potência criadora de realidades, afirmação
que concordamos, todavia, sustentam que a imaginação não é uma potência produtora de
conceitos, algo que discordamos.
Sustentamos que imaginação é uma potência produtora de conceitos, realidades e
natureza. Em uma polêmica sobre o vácuo com o padre Noel, um jesuíta, vimos que Pascal
detecta que ele muda continuamente os conceitos de seus argumentos criando e imaginando
novos. Este ato produtor de conceitos pela imaginação causa como efeito, sustenta Pascal, um
discurso equívoco. Quanto à idéia de Bras e Cléro de que a imaginação produz realidades,
235
vimos que eles destacam que toda realidade tem uma relação com o eu mediada pela
imaginação. Vimos que tal posição está de acordo com a idéia de Ferreyrolles de que a
imaginação é uma potência entre o costume – realidade – e o interesse – atributo do eu. Mas
foram os comentadores Brás e Cléro que aprofundaram a relação entre a imaginação e a
composição da realidade sublinhando três efeitos da imaginação: ela se faz critério de análise,
ela projeta nosso ser onde não estamos e desloca o conhecimento por sua capacidade de
associação. Quanto à produção de natureza, detectamos quatro efeitos da imaginação na sua
relação de submissão com a razão. O primeiro é a contingência entre a proposta teórica da
razão e seu funcionamento real, o segundo é a contingência da razão na sua irascível relação
com a imaginação, o terceiro é a contingência em um mesmo sujeito e o quarto efeito é a
contingência dos fatos ou eventos naturais. Desta maneira, vimos que os efeitos da relação de
submissão entre imaginação e razão constroem aquilo que Pascal chama de natureza. Tal
conceito, destaca Ferreyrolles, é usado ironicamente, pois o sujeito do conhecimento passa a
chamar de natureza aquilo que é um repetição contínua de um humor ou fato, ou seja,
costume. Diante disso, vimos que a imaginação produz natureza. É neste sentido que Bras e
Cléro ressaltam que a imaginação é uma potência que proporciona uma mudança de ponto de
vista, pois o que era costume passa a ser natureza. Tal mudança de ponto de vista poderá
conceder como efeito uma constância ou inconstância, repetição ou não-repetição de uma
opinião. Como vimos, a contingência manifesta-se como efeito desta potência enganosa
criando conceitos, realidades e naturezas, mas também causa seus efeitos nos sentidos.
O exemplo que Pascal usou para mostrar os efeitos da imaginação nos sentidos foi a
cena do célebre filósofo andando na tábua. O filósofo é alguém apto a entender que está em
perfeitas condições de segurança, mas a imaginação dissolve a segurança e causa como efeito
o empalidecer e o suor: é por este motivo que Pascal afirmaria que a imaginação suspende os
sentidos e fá-los sentir. A potência enganosa causa no filósofo uma desconfiança da razão,
algo totalmente contrário à perspectiva filosófica que surge como um empreendimento grego
que tem o recurso à razão como fator preponderante em um discurso. O comentador
Ferreyrolles sublinha que esta passagem do filósofo na táboa é uma figura da queda. Assim, a
imagem permeia a terceira ordem ao apontar a queda, a segunda ordem ao fazer os leitores
tremerem com tal cena e a primeira ordem ao fazer o filósofo suar. Ressaltamos que Bras e
Cléro também defendem que há uma ligação entre a queda e a imaginação, de modo que a
imaginação é incompreensível se não se refere à queda. Portanto, Ferreyrolles, Bras e Cléro
estão de acordo quanto à relação entre imaginação e queda. Nossa pesquisa, como vivos, traz
como novidade o conceito de contingência que se insere entre a queda e a imaginação. A
236
queda causa contingência que se manifesta pela imaginação. A imaginação permeia a vida
humana fazendo do homem um ser na contingência, entretanto, vimos que o homem não é
totalmente passivo aos embustes da imaginação, pois alguém que é versado em imaginação
poderá fazer bom uso dos efeitos dela, visto que ele é um sábio nesta arte.
Destacamos que Galileu e Pascal são exemplos de versados em imaginação: Galileu
no uso de experiências imaginárias para sustentar a não-operatividade do movimento e Pascal
transformando a maneira de nossos órgãos dos sentidos captar o mundo, como vimos no
fragmento 199 dos Pensamentos sobre os abismos do infinitamente grande e infinitamente
pequeno. Para Pascal, se a vista cansa, conseqüentemente, a imaginação atua, de modo que
podemos imaginar muitas coisas, mas não podemos imaginar tudo. Ferreyrolles destaca que
os sentidos e a imaginação, vistos como faculdades inferiores, submetem a razão, de modo
que a imaginação quer fazer-se onipotente. Ele destaca que o desejo de onipotência é causa do
pecado de Adão e Eva e a imaginação aponta para o pecado quando persuade as pessoas dos
seus efeitos poderosos. Um versado em imaginação é alguém que faz bom uso destes efeitos,
ao contrário dos prudentes que, como vimos, são aqueles que não fazem uso da imaginação
em seus discursos, não conhecem os efeitos da imaginação e os possíveis resultados de seu
uso. Os versados em imaginação usam da imaginação, por exemplo, para persuadir um juiz,
pois ele sabe que há uma grande quantidade de elementos circunstanciais que podem coagir
sua sentença, como a voz rouca de um pregador ou sua aparência. Desta maneira, a
imaginação com seus efeitos circunstanciais desloca a objetividade e o essencial. Ela coage o
julgamento construindo o respeito, a veneração entre as pessoas, a veneração dos livros, aos
grandes e a leis. Vimos que Pascal sublinha uma diferença capital entre a essência da lei e a
lei: o que conhecemos são as condições circunstanciais que alguns homens imaginam e
determinam como leis. Os comentadores Bras e Cléro sustentam que este é o argumento
maior para compreender a justeza da justiça em Pascal. Os juízes acreditam que as leis são
essenciais ao passo que a imaginação leva a confundir o essencial e o acidental. Os versados
em imaginação usam da crença dos juízes de que a lei é justa essencialmente e dos elementos
circunstanciais que persuadem os juízes para produzir seus argumentos. Diante disso,
tentamos identificar como Pascal descreve a ação dos juízes. Três ítens contribuíram para esta
busca. Descrição dos elementos que contribuem para o julgamento do juiz, descrição da ação
efetiva do juiz quando o pregador aparece e, por último, constatação do efeito que a
imaginação causa.
1º) Os elementos que integram o julgamento do juiz foram descritos por Pascal: a
velhice, que causa confiança aos ouvintes, a razão, que garante a justeza de um julgamento, o
237
julgamento pela natureza, sinônimo de uma lei justa em sua essência, e as circunstâncias que
os ouvintes acreditam não afetar o julgamento do impassível juiz. 2º) A ação do juiz quando o
pregador aparece: o pregador apresenta-se com voz rouca, feições estranhas, barba mal feita e
manchas na pele e Pascal afirma a perda da gravidade do juiz, ou seja, ele não é impassível
em seu julgamento. 3º) Tais acidentes totalmente contingentes causam um efeito, afirma
Mesnard e Ferreyrolles: o riso. O juiz desaba no riso por causa dos elementos circunstanciais
que compõe a cena, assim, o riso é o terceiro ítem que diz respeito ao efeito da imaginação.
Depois de identificado estas três etapas, tentamos destacar como a imaginação atua
detalhadamente. A idéia foi de sublinhar a ação da máquina imaginativa nas filigranas do
conceito.
A partir de uma citação de Ferreyrolles construímos a seguinte grade conceitual que
permitiu analisar a ação da máquina imaginativa: o corpo (sentidos) é afetado; a imaginação é
impressionada, assim como a razão, pois ambas estão ligadas; a razão interpreta, junto à
imaginação; a imaginação e a razão devolvem a interpretação da razão ao corpo; o corpo
produz um efeito. Em seguida, aplicamos tal grade à ação do juiz: o juiz tem os sentidos
afetados por um acontecimento: o aparecimento do pregador; a imaginação capta as
impressões junto à razão: voz rouca, feições estranhas, barba mal feita e manchas na pele; a
razão do juiz junto à imaginação interpreta a impressão do pregador; depois de interpretada a
imaginação e a razão devolvem a interpretação que fizeram ao corpo; o corpo manifesta a
ação da imaginação e da razão: o riso. Esta relação contagiosa Pascal chama de cordas da
imaginação. São elas que constroem o respeito. A imaginação tenta estabelecer como
essencial àquilo que é contingente. Assim, vemos que a potência enganosa cria uma rede de
relações que permeiam o julgamento do juiz. Tal rede também manifesta-se na produção de
uma ordem social. Mesnard afirma que na desordem e na contingência uma ordem é
introduzida: a imaginação constrói uma rede de relações sociais que legislam um determinado
contexto. A contingência apresenta-se na medida que uma outra organização destas cordas
imaginativas poderá estabilizar outras leis ou o caos. Todavia, sublinhamos que Pascal não
tem o objetivo de descrever todos os efeitos da imaginação, assim, nossa pesquisa se deteve
em esclarecer alguns deles que Pascal menciona: a herança de um cargo político, como vimos
no caso do homem perdido na ilha; a herança de uma fortuna, esta que dependerá da vontade
do legislador; a escolha de uma profissão, dependente do elogio ou não elogio de outrem; a
confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação com a instrução, visto que a
imaginação que constrói o costume, desta maneira, o conhecimento torna-se um costume
estabilizado; as vertigens causados pelos olhares dos gatos e dos ratos; o julgamento de um
238
juiz que é afetado pelo barulho de uma ventoinha, uma polia ou uma mosca. Assim,
Ferreyrolles afirma que a imaginação é o sofista da alma e Bras e Cléro afirmam que, assim
como a imaginação constrói o respeito, ela constrói a felicidade na medida que associa a
posse da felicidade a um objeto ou idéia, todavia, na medida que o sujeito possui o objeto ou a
idéia a imaginação cria outros objetos ou outras idéias dos mesmos para serem buscados. Em
seu ato construtor a imaginação constrói também a justiça para cada homem, motiva um
julgamento ou o empenho na defesa de uma causa. Portanto, analisamos o procedimentos dos
advogados e de sua relação com a imaginação.
Vimos que os advogados, assim como os juízes, também possuem elementos que
deslocam seus critérios de análise e os fazem consentir que um caso é mais justo que o outro,
motivando-se mais para um do que para outro. A afeição à causa, o ódio e o dinheiro são
elementos que motivam ainda mais o advogado e fazem com que o mesmo produza gestos
eloqüentes que persuadem os juízes. Mesnard afirma que mais uma vez o critério de avaliação
do essencial é o inessencial: por exemplo, quantidade de dinheiro, elemento contingente e
vão, que determinaria o julgamento. Outro fator destacado por Pascal é o que chamamos de
dogma da neutralidade: a contingência daqueles que são parciais ou não o são em um
julgamento poderá determinar a justiça de um caso, todavia, vimos que a falta de
discernimento quanto a eficácia do resultado é a marca daqueles que são neutros ou não: a
neutralidade pode construir um julgamento justo ou injusto, assim como a não-neutralidade
poderá construir um julgamento justo ou injusto. A contingência apresenta-se na falta de
discernimento e mergulha o julgamento nos efeitos aparentes que afetam os advogados e
juizes. Assim, a imaginação cria aparências que causam efeitos persuasivos nas pessoas que
são afetadas por seus solavancos.
Destacamos que Pascal cataloga alguns elementos externos usados pelos magistrados,
médicos e doutores: togas vermelhas, arminhos, palácios onde julgam, flores-de-lis, batas,
barretes quadrados, roupas amplas de quatro partes. Estes elementos são denominados por
Pascal como um “aparato augusto”. Eles são associados aos magistrados, aos médicos e aos
doutores curvando a opinião do povo ao respeito: Pascal sublinha que se os magistrados
tivessem a verdadeira justiça, os médicos a garantia da cura e os doutores o entendimento da
verdade, tais acessórios seriam inócuos. Assim, a falta daquilo que é essencial faz com que os
mesmos construam o inessencial. Ao contrário disso, afirma Pascal, os reis não necessitam
destes disfarces.
O rei possui a força efetivamente. Seus guardas e todo cortejo real que o acompanham
fazem a todos tremer. Assim, percebemos que a imaginação não exerce o seu papel em um
239
primeiro momento. É a força que mitiga a contingência. Todavia, vimos que a força depende
da imaginação em um segundo momento para que ela possa exercer seu papel na sociedade. A
imaginação integra a força no mundo e não permite que o povo sinta-se acuado pela
brutalidade. É desta maneira que o rei, contentando seus súditos ao gerenciar o desejo de cada
um, aliviando a necessidade dos mesmos e esforçando-se para ser generoso, persuade o povo
pela imaginação e subtrai seu reino da tenção causada por um reinado estabelecido pela força.
Desta maneira, a força torna-se instrumento da imaginação. A imaginação estabelece um
estado de paz tão desejado pelo soberano e, portanto, mitiga a contingência. As instituições
políticas tornam-se órgãos que organizam o espaço físico e as relações sociais que dar-se-iam
através das grandezas de estabelecimento: é desta maneira que Pascal destitui toda a
naturalidade de um construto social do homem. As grandezas de estabelecimento estão
condenadas a contingência da vontade humana e da instituição das mesmas pela imaginação.
Terminamos nosso trabalho salientando que, para Pascal, a queda causa a
contingência, eqüipolência entre verdade e falsidade, e a imaginação manifesta-se com efeitos
capazes de fazer-nos visualizar a contingência em um mundo em que todos nossos esforços,
polêmicas, descobertas, amores, sofrimentos, fracassos, doenças e morte só terão sentido se
estiverem voltados para o Criador: “É bom ficar lasso e cansado pela inútil busca do
verdadeiro bem, a fim de estender os braços ao Libertador.”.787
787
Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 631, Bru. 422, p. 270.
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ANDREI VENTURINI MARTINS CONTINGÊNCIA E IMAGINAÇÃO