ANDREI VENTURINI MARTINS CONTINGÊNCIA E IMAGINAÇÃO EM BLAISE PASCAL Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo – 2006 ANDREI VENTURINI MARTINS CONTINGÊNCIA E IMAGINAÇÃO EM BLAISE PASCAL Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção de título de MESTRE em Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Doutor Luiz Felipe Pondé. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo – 2006 COMISSÃO JULGADORA: _________________________________ _________________________________ _________________________________ Para minha mãe, Maria Geni, minha irmã, Andressa, meu pai, Dorival, meus amigos Ricardo e Cesário e minha menina Vivi. AGRADECIMENTOS Quero agradecer a minha família: minha mãe, pela confiança na realização deste trabalho, minha irmã, pelo companheirismo e meu pai, pela amizade. Agradeço minha tia Ivanilde Venturini Paiva, minha madrinha de batismo. Agradeça ao meu avô Carlos Venturini. Meu muito obrigado a toda família Venturini e Martins. Agradeço a meus dois grandes amigos, verdadeiros irmãos: José Cesário da Silva, o teólogo, e Ricardo Tavares Teves, o matemático. Agradeço a Viviane, minha menina. Agradeço a Luciana, Sabrina, Rafael, Carlos Alberto, Max, Robson, Nilda, Arlete, Gabriel e Daniel. Agradeço a Lúcia, Augusto e seu filho e amigo Junior. Agradeço a Rejane, Ricardo e família. Agradeço a toda comunidade Santa Terezinha do menino Jesus, paróquia onde pude dar meus primeiros passos na vida Cristã. Agradeço de maneira especial ao Padre João Maria, pelo cuidado e atenção para com minha família e comunidade. Agradeço à Congregação São Francisco de Sales pela qual conheci a filosofia. Agradeço aos mestres Domingos Zamagna, professor da esperança, estimulador das leituras e grande amigo; Edélcio, pela prontidão e ajuda na fase inicial de leitura das obras de Pascal em francês, grande amigo; Juvenal Savian Filho, filósofo, teólogo de calibre e grande amigo; Ênio José da Costa Brito, inspira seus alunos a serem professores, mestre dedicado à pesquisa, grande resenhista, metódico, filósofo e grande amigo; ao meu orientador Luiz Felipe Pondé, meu mestre desde o primeiro ano de graduação em filosofia, obrigado pelo exemplo de professor, pelo estímulo ao debate, pela cobrança quanto às leituras, pelo estilo próprio na missão de orientador deixando o pesquisador investigar verdadeiramente, montar quebra cabeças conceituais, buscar novas fontes, escrever artigos e publicá-los. A todos estes senhores meu muito obrigado! Agradeço a todo corpo docente do programa de Ciências da Religião, de maneira especial o professor Frank Usarsk, José J. Queiroz, Fernando Londonõ e Eduardo Cruz. Agradeço a todos os colegas do programa, de maneira especial a Fernanda, Jorge, Roberto, Márcia e Ir. Fátima. Agradeço a todos os componentes do grupo Religião, teoria e experiência, de maneira especial a Maria José, Cris, Ana, Élcio, Rodrigo, Biatriz, Augusto, Lílian, Reginaldo, Alexandre, Gabriela, Cecília, Gilberto, Francis, Jacqueline, Márcia, Glória e Luiz. Agradeço a CAPES pela bolsa concedida, possibilitando a realização deste trabalho. Agradeço a Maria Gabriela Venturini (in memoriam). Agradeço a Deus. RESUMO Neste trabalho procuraremos corroborar a hipótese geral que sustentamos, a saber, que o pecado adâmico lança toda humanidade em um estado de contingência, este porém, é verificado pelos efeitos da imaginação. No primeiro capítulo nossa preocupação é histórica e, por este motivo, iniciaremos investigando a raiz da polêmica sobre a graça em meados do século V. Santo Agostinho será nosso objeto de investigação: trataremos de algumas mudanças comportamentais e textuais do bispo de Hipona em função da sua conversão ao cristianismo e a sua concepção de livre arbítrio na discussão com os maniqueus. Depois, trataremos de discernir os conceitos de pecado original e livre arbítrio em Pelágio e Santo Agostinho, de modo que perceberemos como a concepção agostiniana de livre arbítrio muda em função dos diferentes contextos que o doutor da graça esta inserido. Em seguida daremos um salto histórico e analisaremos o surgimento do jansenismo, tentando identificar como a discussão sobre a graça é retomada no fim do século XVI e no século XVII, para logo em seguida situar Blaise Pascal, nosso objeto de estudo nesta querela teológica, assim como a discussão filosófica emergente no século XVII. No segundo capítulo analisaremos de maneira mais aprofundada o aspecto teológico da obra de Pascal, o que nos possibilitará descrever a condição humana antes e depois do pecado adâmico e perceber as conseqüências do pecado para toda humanidade. Uma delas é a contingência, caracterizada pela falta de discernimento entre a verdade e a falsidade, de modo que o conhecimento humano do mundo e de si está imerso na contingência, esta porém, manifestar-se-ia de maneira especial na imaginação, potência enganosa que não é marca da verdade nem da falsidade. Assim iniciaremos nosso terceiro e último capítulo, no qual pontuaremos os efeitos da imaginação em funcionamento e perceberemos que a razão, unida de maneira intrínseca à imaginação, ao realizar seu trabalho revela a contingência. Todavia, Pascal destaca que alguns versados em imaginação usam desta potência para persuadir, construir conceitos, produzir leis e manter o espaço público razoavelmente organizado. É desta maneira que entendemos que o pecado adâmico transmitido atavicamente a toda humanidade causa a contingência que se manifesta nos efeitos da potência enganosa da imaginação. ABSTRACT In this study we will try to corroborate the general hypothesis that we support, which says that the Adamic sin launches all humanity in a contingency state, which is, however, verified by the effects of the imagination. In the first chapter our concern is historical and, for this reason, we will initiate investigating the beginning of the controversy about the grace in the middle of century V. Saint Augustine will be our object of inquiry: we will deal with some mannering and literal changes of the bishop of Hipona in function of his conversion to the Christianism and his conception of the free will in the discussion with the Manicheans. Later, we will discern the concepts of the original sin and free will in Pelagio and Saint Augustine, in such a way to perceive how the Augustinian conception of the free will changes according to the different contexts that the doctor of grace is inserted. After that we will have a historical jump and will analyze the sprouting of the Jansenism, trying to identify how the discussion about the grace is retaken by the end of century XVI and during century XVII, for soon after that, point out Blaise Pascal, our object of study in this theological complaint, as well as the emergent philosophical quarrel in century XVII. In the second chapter we will analyze in a deeper way the theological aspect of Pascal’s work, what will make possible to us to describe the human condition before and after the Adamic sin and to perceive the consequences of the sin for all humanity. One of them is the contingency, characterized by the lack of discernment between the truth and the falseness, so that the human knowledge of the world and about himself is immersed in the contingency, which would, however, reveal in a special way in the imagination, deceitful power that is not a mark of the truth nor of the falseness. Thus we will initiate our third and last chapter, in which we will punctuate the effects of the functioning imagination and will perceive that the reason, joined intrinsically to the imagination, when doing its job discloses the contingency. However, Pascal enhances that some experts in imagination make use of this power to persuade, to construct concepts, to produce laws and to keep the public space reasonably organized. That’s the way we understand that the Adamic sin atavistically transmitted to all humanity causes the contingency that manifests itself in the effects of the deceitful power of the imagination. ÍNDICE INTRODUÇÃO ________________________________________ 10 Capítulo I: Contexto histórico: Santo Agostinho e Século XVII... 17 1 – Santo Agostinho: o Doutor da graça.................................................... 18 1.1 – A conversão de Santo Agostinho...................................................... 22 1.2 – Santo Agostinho contra os maniqueus.............................................. 30 1.3 – As controvérsias pelagianas.............................................................. 34 1.3.1 – O monge Pelágio............................................................................ 38 1.3.2 – Pelágio: pecado original e livre arbítrio......................................... 41 1.3.3 – Santo Agostinho: pecado original e livre arbítrio.......................... 48 1.3.4 – O pecado original........................................................................... 49 1.3.5 – O conceito de liberdade na discussão com os maniqueus.............. 54 1.3.6 – O conceito de liberdade nas controvérsias pelagianas................... 56 1.3.7 – O conceito livre arbítrio na discussão com os maniqueus................................................................................................... 57 1.3.8 – O conceito de livre arbítrio na discussão com os pelagianos................................................................................................... 64 2 – O jansenismo........................................................................................ 71 3– Pascal: um teólogo entre Deus e o Papa................................................ 81 Capítulo II: Pecado Adâmico e Contingência................................. 108 1 – A relação entre o pecado e a contingência........................................... 110 1.1 – Posição de Lutero e Blaise Pascal quanto ao estado de natureza do homem.................................................................................................................... 110 1.2 – Pontuações epistemológicas.............................................................. 113 1.3 – Descrição do estado de natureza antes da queda............................... 120 2 – Descrição do estado de natureza depois da queda: análise de Jean Mesnard, Luiz Felipe Pondé e Catherine Chevalley.............................................. 128 2.1 – O atavismo do pecado: a contingência infecta a todos...................... 140 2.2 – Primeiro mistério: o estado glorioso de Adão................................... 141 2.3 – Segundo mistério: a natureza do pecado de Adão............................ 143 2.4 – Terceiro mistério: a transmissão do pecado....................................... 144 2.5 – Panorama dos três mistérios.............................................................. 145 2.6– Medindo a gravidade do pecado......................................................... 145 2.7 – Quarto mistério: a eleição de Deus dos predestinados ..................... 148 3 – Os mistérios são traços da contingência............................................... 150 Capítulo III: Os Efeitos da imaginação................................. 155 1 – O conceito imaginação em Descartes................................................... 157 2 – Imaginação e contingência. ................................................................. 162 2.1 – Eqüipolência entre verdade e falsidade............................................. 164 2.2 – Engenharia da imaginação: conceitos, realidades e naturezas. ........ 175 2.3 – Sentidos e a imaginação. .................................................................. 182 2.4 – Os versados em imaginação. ............................................................ 185 2.5 – O juiz e a imaginação........................................................................ 194 2.6 – Nas filigranas do conceito: a máquina imaginativa........................... 197 2.7 – Os advogados e a imaginação............................................................ 211 2.8 – Construção das aparências e imaginação.......................................... 214 2.9 – Os reis e a imaginação....................................................................... 219 CONCLUSÃO.......................................................................... 225 BIBLIOGRAFIA..................................................................... 240 “Negar, acreditar e duvidar são para o homem o que correr é para o cavalo.”. (Blaise Pascal, Pensamentos. Laf. 505, Bru. 260). 10 INTRODUÇÃO Deus criou o homem sadio, sem mancha, justo e direito, pois nada procede de suas “mãos” sem que seja puro, santo e perfeito. Mas, a revolta do primeiro homem, traduzida pelo pecado, é abominável aos olhos de Deus e o homem é, desta maneira, condenado pela infinita justiça divina à miséria que Pascal chama de segundo estado de natureza. As repercussões do pecado adâmico, segundo Pascal, permeiam todas as dimensões da existência humana, de modo que, o leitor do pensamento do autor francês pode observar a maneira como ele assimila a existência pós-adâmica levando em consideração o pecado original e suas conseqüências à sua antropologia, bem como a sua psicologia, política/moral e epistemologia. Numa palavra, Pascal procura explicitar os desdobramentos de sua concepção de queda original mostrando como o pecado é transmitido atavicamente a toda sua posteridade. Em função do pecado, a epistemologia pascaliana é impregnada pela contingência que se manifesta pela imaginação, mergulhando os movimentos cognitivos humanos num estado de constante mudança, pois este é o estado humano pós-queda. O homem não encontra suficiência do erro – a possibilidade de somente errar –, nem de verdade, desta forma, não há critérios absolutos de verdade que possam servir de parâmetros fundacionais de qualquer teoria científica nem política. Assim, Pascal entende que o homem por estar desprovido da graça busca o absoluto e encontra o relativo, busca o necessário e encontra o contingente. Todavia, a falta de fundamentação teórica, para Pascal, não é fator que impede o movimento do conhecimento, mas garante a infinidade do processo cognitivo. O conhecimento é um movimento constante. A contingência, marca da ausência de uma verdade absoluta, clara e distinta, coloca o homem diante de uma tensão cognitiva que faz com que a ciência produza os critérios na tentativa de mitigar a dúvida e produzir pontos fixos – construir princípios – que permitam a análise e, na política, a falta de critérios absolutos poderá criar um ethos da crueldade, portanto, ao iluminar a contingência na política, Pascal produz uma política da força, esta sendo o fundamento da justiça. A percepção da manifestação da contingência é o primeiro passo para promover uma ciência da construção de fundamento e uma política da produção das leis. Na ciência mitigando a dúvida e na política mitigando a violência. Mas ao encontrar os efeitos da contingência na ciência e na política, Pascal tentará sublinhar qual é a causa primeira da mesma. Veremos que o conceito de contingência tem um desdobramento teológico na obra de Pascal. Este porém, manifesta-se na imaginação que põe em cheque qualquer tentativa de 11 encontrar um ponto fixo absoluto – pressuposto válido em todos os tempos e em todos os contextos – que sirva como base fundante para uma teoria, desta maneira, será analisando o conceito imaginação do fragmento 44 (Bru. 82) dos Pensamentos de Pascal que vamos mostrar como a contingência atua na construção do conhecimento. Veremos que tanto nas etapas do processo cognitivo, assim como na política através dos magistrados e advogados, a imaginação com seus sobressaltos faz suas vítimas. A imaginação desloca todo conhecimento que tem como objetivo ser absoluto. Dentro desta perspectiva, Pascal apresenta-se como um anti-metafísico. Entretanto, é diante desta dificuldade cognitiva fruto da queda adâmica que Pascal engendra caminhos para suas reflexões, fazendo-se um pensador na contingência. Blaise Pascal é um autor contagiante. Partidário da idéia na qual se pensa melhor quando estamos sendo perseguidos, muitas de minhas convicções filosóficas enquanto pesquisador ou crenças entraram neste rol persecutório depois da leitura de algumas de suas obras. Eu não poderia ficar indiferente diante da proliferação de fragmentos que aos poucos lia estando no penúltimo ano de minha graduação em filosofia: Pascal me fez ver que o mundo não é este mar calmo de evidências que muitas empresas filosóficas me apresentavam. A leitura dos Pensamentos foi o ritual iniciático para a compreensão de sua obra. Depois desta leitura, o oásis de evidências desapareceu. Todavia, depois de uma análise mais atenta, como eu poderia caracterizar o pensador Pascal? Pensando contra mim e inspirado pelo autor francês, vejo que Pascal é um pensador na contingência. Diante de um mundo em dissolução, assim como qualquer sistema filosófico colocado sob o crivo de sua crítica, fazer-se-ia possível produzir ciência resolvendo problemas e produzir leis tendo como “fundamento” a força. É neste panorama que resolvi pesquisar como Pascal assimila a causa da contingência e como ela se manifesta, ou seja, quais são seus efeitos. O termo contingência não é trabalhado de maneira específica – há outros autores que trabalham o tema, como Luiz Felipe Pondé, mas não de maneira específica – por boa parte dos comentadores, com a exceção de Catherine Chevalley em sua obra Pascal, contingence et probabilités. Nesta obra, ela inicia os primeiros passos neste itinerário. O termo contingência é trabalhado como chave de leitura de alguns fragmentos, mas não há uma ênfase maior – há uma ênfase menor – na ligação entre a contingência e a teologia que Pascal assume. O enfoque de um estado contingente a partir de um desdobramento teológico torna-se a novidade de nossa pesquisa. Pascal usa uma vez o termo contingência em uma carta endereçada a Academia Francesa. Minha construção do termo poderá ajudar os teóricos que se interessam por Pascal a despertar uma nova leitura de muitos fragmentos de suas reflexões políticas pelo óculos do 12 conceito da contingência. Penso que a teologia de Pascal é pano de fundo para a leitura de sua obra, de maneira especial, o pecado original e suas conseqüências. Sabemos que nossa pesquisa ficaria demasiadamente extensa para um trabalho a nível de mestrado se formos assinalar o conceito de contingência em vários temas na obra de Pascal, como a física ou a psicologia. Portanto, elucidaremos às conseqüências da teologia de Pascal no conhecimento, encontrando o conceito de contingência. Em seguida, analisaremos o conceito imaginação, destacando seus efeitos no processo de produção das leis e na maneira pela qual juízes e advogados atuam em seus respectivos ofícios. Assim, poderemos verificar se há uma ligação entre o conceito de contingência e o conceito imaginação, de modo que a primeira se manifestaria pela segunda. Nosso objeto de estudo para tal empreitada será os Escritos sobre a graça1, parte II e os Pensamentos Laf. 44, Bru. 822, ambas as obras de Blaise Pascal. Quanto aos referenciais teóricos, usaremos Jean Mesnard com seu Essai sur la signification des ‘Ecrits sur la grace’ de Pascal; Luiz Felipe Pondé com suas obras Conhecimento na Desgraça: Ensaio de epistemologia pascaliana e O Homem insuficiente; Catherine Chevalley com a obra Pascal, contingence et probabilités; Bras & Cléro com a obra Pascal – Figures de l`imagination; Gérad Ferreyrolles com sua obra Les reines du monde: L´imagination et la coutume chez Pascal. O uso de cada obra específica será destacada nas primeiras páginas de cada capítulo. No entanto, algumas questões a serem discutidas podem ser levantadas: a) A teologia pascaliana em sua concepção de pecado original descreve o homem como um ser contingente? b) Há na obra de Pascal uma relação entre teologia e contingência? c) A imaginação seria uma das formas de manifestação da contingência? d) Quais são os efeitos da imaginação? Tais questões nortearão a nossa pesquisa e algumas hipóteses que levantaremos. Na hipótese geral do trabalho, sustentamos que o pecado adâmico lança toda humanidade em um estado de contingência, este porém, é verificado pelos efeitos da imaginação. Entretanto, para corroborar tal hipótese sublinhamos em cada um dos capítulos uma hipótese específica que nos auxiliarão, a saber: 1 Lembramos ao leitor que as traduções dos textos originais de Pascal, assim como de seus comentadores, foram feitas pelo autor deste trabalho. 2 Quando citarmos os Pensamentos de Blaise Pascal, usaremos a abreviação Laf. para indicar o número do fragmento pela edição Luis Lafuma e a abreviação Bru. indicará o número da edição de Brunschvicg. Quanto às obras de Santo Agostinho, às citações serão feitas da seguinte maneira: nome do autor, título da obra, número do livro (por exemplo: V ou X), número do capítulo (por exemplo: X ou XII), número do parágrafo (por exemplo: 3 ou 4) e, por fim, número da página. Lembramos que em algumas citações não há referência ao número dos livros, pois, neste caso, o autor dividiu a obra somente em capítulos. 13 No primeiro capítulo, afirmamos que as discussões entre Santo Agostinho e Pelágio sobre a graça são retomadas no final do século XVI e no XVII; Jansenius é um destes teólogos que assumem as idéias agostinianas, assim como Blaise Pascal. Neste capítulo será realizada uma análise contextual do final do século IV e início de século V quando inicia-se as controvérsias pelagianas. Destacaremos de maneira especial a concepção agostiniana de livre arbítrio e pecado original, visto que nos ajudará a entender qual é a raiz do conceito pecado original tanto para os jansenistas como para Pascal. No segundo capítulo, afirmamos que o pecado lança o homem em um estado de contingência. Trabalharemos a concepção teológica do pecado original em Pascal, assim como sua análise da condição humana antes e depois da queda, traçando as conseqüências da queda, de maneira especial, no conhecimento, e o vinculo de tais conseqüências com o conceito de contingência. No terceiro e último capítulo, afirmamos que a imaginação é a marca da contingência em Pascal. Iremos verificar a relação entre a contingência e o conceito imaginação em Pascal e sublinhar os efeitos da imaginação. Salientamos que antes de iniciar à análise do conceito imaginação em Pascal, faremos uma breve exposição da concepção cartesiana do mesmo conceito, propiciando salientar as convergências e divergências entre os dois autores naquilo que diz respeito ao conceito imaginação. Portanto, serão com estas hipóteses específicas em cada capítulo – vale ressaltar que cada capítulo virá precedido de um introdução específica que ajudará o leitor a compreender a estrutura do nosso trabalho – que tentaremos corroborar nossa hipótese geral e alcançar nosso objetivo. O objetivo de nossa pesquisa é tentar mostrar que a contingência é um conceito fruto de um desdobramento teológico e manifesto na imaginação, desta maneira, como a imaginação em Pascal é um recurso para mostrar como o conhecimento da verdade e da justiça que pensamos ter do mundo é falho e mutável, o teólogo francês tenta construir alguns recursos que possam manter uma sociedade sem o perigo de guerras civis ou da violência na medida em que se obedecem às leis não porque elas são justas, mas simplesmente porque são leis. A tentativa pascaliana de estabilizar as leis é, a meu ver, totalmente pragmática: ou seja, não há um fundamento absoluto, pois será a eficácia a substância do fundamento. Desta maneira, percebo uma ligação entre a teologia de Pascal e possíveis danos ao conhecimento, danos estes manifestos pelos efeitos da imaginação, de maneira especial, quando o conhecimento tenta legitimar uma lei como absoluta. Diante disso, trabalharei três conceitos fundamentais para verificar os desdobramentos cognitivos que causa a queda: pecado original e contingência no segundo capítulo e imaginação no terceiro capítulo. Para melhor situar o leitor faremos uma prévia sobre estes três conceitos. 14 Desde a juventude, Pascal já apresentava um espírito “científico” genial: no ano de 1640, publicou um pequeno tratado sobre secções cônicas; em 1645, inventou a máquina de calcular; mas é no ano de 1646 que ele tomou contato com o jansenismo, fato este que o teria impulsionado a, mais tarde, tornar-se um teólogo de calibre. Em 1657, escreveu os Écrits sur la grace. Nesta obra, ele discute com Luteranos, Calvinistas e Molinistas questões como: a predestinação, a possibilidade de se cumprir os mandamentos, o estado do homem antes e depois do pecado e a graça como dom gratuito de Deus que pode permear o coração do homem. Para Pascal, é a posição de Santo Agostinho que reflete melhor a condição verdadeira do homem depois do pecado. A posição agostiniana traduz a revelação da Sagrada Escritura ao dizer que a natureza humana deve ser considerada em dois estados: antes e depois da queda. Antes da queda, no estado adâmico, o homem era sadio, sem mancha, justo e direito, saído das mãos de Deus. O homem era perfeito enquanto criatura, mas dependia de Deus, pois este era quem lhe concedia a graça contínua para perseverar. A possibilidade de perseverança era possível, pois, na vontade humana, havia equilíbrio entre o poder de escolha do bem ou do mal. Mas Adão, tentado pelo diabo, se revolta contra Deus e peca. O pecado de Adão corrompe toda a natureza, assim como toda a humanidade, que se torna digna de morte eterna. O equilíbrio da vontade, em querer o bem ou o mal, é esfacelado; dessa maneira, o homem, abandonado sob seu peso, só quer o mal, atirando-se ao amor à criatura. Ele poderia condenar o homem pela sua infinita justiça, mas, por causa de sua infinita misericórdia, enviou Jesus Cristo para salvar aqueles que ele escolheu e predestinou desta massa corrompida. Diante da concepção agostiniana, Pascal ressalta o efeito de tal pecado. Um deles é a ignorância. A ignorância, qualidade do homem após o pecado de Adão, atinge, de maneira direta, o movimento humano de conhecer o mundo e a si mesmo. É dessa forma que a ignorância, doença causada pelo pecado, inviabiliza o conhecimento direto e absoluto das coisas e é transmitida à toda a massa corrompida, ignorância esta que se caracteriza por aquilo que poderíamos chamar de contingência. Antes do pecado o homem tinha um espírito fortíssimo, justíssimo e esclarecidíssimo, entretanto, depois do pecado Pascal sustenta a idéia que o espírito humano está na ignorância. A luz da razão está escurecida, assim como Adão torna-se um ser exilado de certezas. Pascal nega que o conhecimento da incerteza é uma forma de certeza: o que o filósofo francês chama de ignorância diz respeito ao conhecimento da verdade absoluta, da falsidade, do que é o homem, do que é a justiça, da natureza das coisas, da felicidade. Portanto, para Pascal, depois do pecado de Adão o instrumental cognitivo humano não possui a eficácia para discernir os limites entre verdade e falsidade. As fronteiras entre verdade e falsidade desaparecem de 15 modo que fica impossível obter o discernimento entre estes dois conceitos: não temos nem certeza da falsidade, pois a conquista desta seria uma grande vitória. O reconhecimento do erro constante é um ato de discernimento. Mas a falta do discernimento não implica em dizer que a verdade não existe em função do pecado de Adão, mas ela é sentida como um buraco no fundo da alma, uma ausência: o homem não contempla a verdade de forma absoluta como antes do pecado. Ausência esta que se faz presente como conseqüência da queda, um resquício vago de uma natureza santa que se corrompeu, o homem tornar-se-ia um ser isolado da verdade e da falsidade em função do pecado. É este isolamento que chamaremos de contingência. Portanto, a contingência epistemológica em Pascal, o desconhecimento da verdade absoluta e da falsidade, é uma conseqüência da queda adâmica e revelará seus efeitos quando analisarmos detidamente o conceito imaginação em Blaise Pascal. O homem, depois da queda, pareceria estar exilado de qualquer critério absoluto de verdade ou falsidade. A compreensão dessa ausência será iluminada pela teologia, ao dizer que a falta da graça – estado do homem após a queda – traduz a falta de um critério absoluto fundante, o que poderíamos chamar de contingência. O homem tem o erro como parte do seu segundo estado de natureza, assim, é imprescindível o socorro da graça. Esta passaria a ser critério epistemológico de verdade, mas, pelo pecado de Adão, a humanidade estaria desprovida de tamanha dádiva concebida por Deus, lançando-se no mundo da contingência, marca fundamental da ausência de critérios últimos. Diante disto, a imaginação, tema tratado no fragmento 44 dos Pensamentos, parece ser esta potência capaz de deslocar o conhecimento. Por meio dela, não se poderia dar uma valoração de verdade, nem falsidade, àquilo que o homem se propõe a conhecer, já que a imaginação não é regra infalível de verdade nem de falsidade. Desta forma, veremos que a imaginação ilumina aquilo que chamamos contingência. A imaginação, porém, não inviabiliza a fundamentação de todo critério, pois ela constrói a beleza e a justiça do mundo. Veremos que, apesar do problemas causados pela queda, a imaginação engendra valores e qualidades, mas isso não é garantia de um fundamento universal e absoluto: a razão, com suas próprias forças, não consegue dar valor às coisas. A imaginação, parte integrante do instrumento cognitivo humano, submete à razão, todavia, na guerra entre essas duas potências, veremos as dificuldades que a razão encontrará nesta batalha. É a imaginação que eleva as pessoas, que mostra a sabedoria dos escritos de um livro, assim como a necessidade de se cumprirem às leis. Numa palavra, ela mantém uma certa razoabilidade na medida em que cria fundamentos. Tal é o efeito da imaginação, dirá Pascal, que inclusive o maior dos filósofos do mundo, se persuadido que, 16 abaixo de uma tábua larga por onde anda, há um abismo, logo se empalideceria e suaria, mostrando que, na tensão entre a razão e a imaginação, esta última prevalecerá. A imaginação move a razão em todos os sentidos. Sendo a contingência marcada por uma ausência de necessidade e de leis absolutas, aniquilando os critérios em função das “cordas da imaginação” – que será trabalhado no terceiro capítulo – e estabelecendo que o pensamento humano está exilado da verdade – “a verdade” pertenceria à 3ª ordem, incompreensível ao crivo da razão, mas não contra ela –, pareceria que a contingência inviabilizaria todo conhecimento, o que faria de Pascal um pirrônico radical. Mas em nossa análise veremos que mesmo diante dos danos cognitivos causados pela queda, Pascal é um pensador na contingência, ou seja, alguém que sabe que o mundo ainda poderá conter uma razoável “ordem” local e a imaginação será um instrumento tanto do legislador, quanto do juiz, do advogado, do médico e do filósofo. Portanto, iniciemos nosso caminho para corroborar nossa hipótese geral destacando, no primeiro capítulo, os aspectos contextuais que funcionarão como pano de fundo no quadro de nossa pesquisa. 17 CAPÍTULO I Contexto histórico: Santo Agostinho e Século XVII “O século XVII é o século de Santo Agostinho.”.3 Blaise Pascal é um “teólogo de calibre”4. O grande teólogo jansenista5 era Arnauld – le grand Arnauld6 –, este porém, confiou a Pascal o cuidado e a responsabilidade de defender a graça e a moral evangélica, não somente pelo fato de ser um grande escritor, mas por ser um teólogo rigoroso. Desta forma, é preciso acabar com a lenda de que Pascal era um jovem ignorante acerca dos assuntos teológicos7. Percebemos uma reflexão profunda sobre a teologia da graça de Santo Agostinho no pensamento teológico de Pascal, de modo que isto “[...] poder-se-ia concluir de sua obstinação em sustentar até a sua morte que Jansenius = Santo Agostinho = São Paulo.”.8 O século XVII é marcado, de maneira especial, nas discussões sobre a graça entre os teólogos, pelo pensamento de Santo Agostinho. Não temos em nossa pesquisa o objetivo de traçar todo percurso entre o pensamento agostiniano e pascaliano, no entanto, fazer-se-ia necessário algumas considerações sobre o pensamento de Santo Agostinho para melhor situar a raiz da teologia de Blaise Pascal. Tomamos como hipótese principal deste capítulo que as discussões entre Santo Agostinho e Pelágio sobre a graça são retomadas no fim do século XVI e no XVII; Jansenius é um destes teólogos que assume as idéias agostinianas, assim como Blaise Pascal.9 No corpo do capítulo faremos uma tríade: Santo Agostinho – Jansenius – Pascal. 3 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin. Paris: Albin Michel, 1995, p. I. Frase proferida m 1951, por Jean Dagens, em ocasião de um congresso internacional de estudos franceses. 4 Luiz Felipe PONDÉ, O Homem Insuficiente. São Paulo: Edusp, 2001, p. 49. 5 Abordaremos as idéias jansenistas abaixo. 6 Otto Maria CARPEAUX, História da literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Ed O Cruzeiro, 1960, v. II, p. 1034. 7 Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 16. 8 Ibid., p.14. 9 Ver Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal. Paris: Editions Champion, 1996, p. 207 – 210. No capítulo III intitulado Pascal Luthérien?, em um anexo que propõe ressaltar o état de la question entre Pascal e a teologia reformada, a comentadora destaca o silêncio da influência de Lutero sobre Baius, de Baius sobre Jansenius e deste sobre Pascal. Seria uma nova forma de construir a história do jansenismo. Os intelectuais de Port-Royal remontam a Santo Agostinho, pois é a ele que a obra de Jansenius nos convida e não a seus discípulos, como Lutero. Outro ponto que destacamos é que Port-Royal foi apresentada no decorrer da história como o núcleo de intelectuais do movimento chamado Contra Reforma. Sabemos das possíveis críticas que nosso trabalho poderia encontrar dado o caminho histórico que pretendemos fazer, todavia, não sendo a história do jansenismo o objeto da 18 Na primeira parte explicitaremos dois períodos na obra de Santo Agostinho: o primeiro, no qual discute com os maniqueus; o segundo, as controvérsias com Pelágio sobre a graça. Neste último ponto trabalharemos o conceito de pecado original e livre arbítrio. Na segunda parte, faremos um salto histórico, situando como a obra de Santo Agostinho é retomada no fim do século XVI e no XVII, especialmente por Jansenius. Na terceira parte, vamos delinear como Pascal – assumindo a leitura de um agostianismo ortodoxo de Jansenius –, irrompe nas discussões sobre a graça.10 1 – Santo Agostinho: o Doutor da graça. Santo Agostinho nasceu em 354 d.C em Tagaste, uma cidade pequenina da Numídia, na África, moderna Ahras, na Argélia.11 Vivia em um mundo de lavradores, não havia uma distinção estrita entre a cidade e a zona rural, já que a “[...] cidade era um símbolo de civilização.”.12 Quando jovem, Agostinho perambulava pelos campos à caça de passarinhos, anos estes que lembraria posteriormente, mas preso em sua escrivaninha pelos exercícios intelectuais que o polemista enfrentaria.13 A Numídia meridional era coberta de florestas de oliveiras, algo que possibilitava Agostinho a trabalhar à noite inteira “[...] abastecendo sua lamparina com um estoque abundante do tosco óleo africano – um conforto do qual sentiria falta durante sua temporada na Itália.”.14 Seu pai chamava-se Patrício e era proprietário de terras, homem pobre, chamado de tenuis municeps, um cidadão de poucos recursos.15 Sua mãe, Mônica, era uma cristã fervorosíssima. Criada em uma família cristã, era praticante das tradições da igreja africana “[...] que os homens cultos sempre haviam descartado como primitiva [...]”16, ela jejuava e fazia as refeições nos túmulos dos mortos, uma tradição da época. Acreditava que uma boa formação nossa pesquisa, preferimos tomar o mesmo caminho de Philippe Sellier – um dos schollars de Pascal – em seu livro Pascal et Saint Augustin, no qual remonta Pascal a Jansenius e este a Santo Agostinho. 10 Pascal irá assumir a posição agostiniana naquilo que diz respeito a graça – esta como dom de Deus e fruto de sua justiça e misericórdia –, ao pecado original e a liberdade. No entanto, este três temas serão trabalhados no segundo capítulo. Neste momento, vamos nos ater ao contexto histórico que Pascal está inserido e, desta maneira, marcar como ocorreu seu surgimento na discussão. 11 Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia. 2ªed. trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 23. 12 Ibid., p. 24. 13 Ibid., p. 25. 14 Ibid., p. 23 – 24. 15 Cf. Ibid., p. 25. 16 Ibid., p. 34. 19 clássica, incluindo obras pagãs, poderia tornar seu filho um autêntico cristão.17 “Na África, a educação romana significava status para uma multidão de homens insignificantes.”.18 Agostinho inicia seus estudos em Tagaste. O professor explicava o texto de um autor palavra por palavra: foi desta forma que Agostinho recebeu suas primeiras lições sobre Homero.19 Ele era fluente exclusivamente no latim. Virgílio, Cícero, Salústio e Terêncio eram autores estudados detidamente em seu contexto. O contato de Agostinho com autores gregos seria não sistemático, ou seja, apenas algumas citações encontradas aqui e ali em obras latinas.20 Todavia, o foco da educação de Agostinho seria a palavra falada: sua região era marcada pelo embrutecimento do código penal. Para garantir suas terras, o bom fazendeiro africano teria que ser um versado nas leis dos tribunais e, conseqüentemente, na manipulação das formas publicas. Aos 15 anos encontra-se em Mandaura, cidade universitária que colocava ênfase no ensino de autores pagãos. Volta com 16 anos para Tagaste, onde espera que seu pai junte dinheiro suficiente para que Agostinho pudesse concluir seus estudos em Cartago.21 Mais tarde, com 17 anos, vai para Cartago, onde inicia seus estudos de retórica (371). Neste ano seu pai morre e a educação de Agostinho estaria nas mãos de Mônica. Nesta mesma época Agostinho tomou uma concubina – que não sabemos o nome – como sua companheira durante os quinze anos seguintes. Em seguida nasce seu filho Adeodato. Agostinho torna-se professor e começa a lecionar em Tagaste (374), depois em Cartargo (375/383), transferindo-se mais tarde para Roma (384). Neste mesmo ano foi para Milão, assumindo o cargo público de professor de retórica graças ao apoio dos maniqueus22, a estes porém, Agostinho era seguidor. Será no período em que permaneceu maniqueu23 que Agostinho entrará em contato com as escrituras paulinas24, visto que o maniqueísmo era considerado por muitos como uma heresia paulina. Nesta época ele procurara um casamento, de modo que não seria visto com 17 Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 34. Ibid., p. 27. 19 Ibid., p. 42. 20 Ibid., p. 42. 21 Ibid., p. 44. 22 Abordaremos as idéias maniqueístas abaixo. 23 G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal. trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995, p. 30. Agostinho permanece maniqueu por 9 anos. 24 Cf. Marcos Roberto Nunes COSTA, Maniqueísmo – História, Filosofia e Religião. Rio de Janeiro: Vozes, 2003, p. 70 – 71. Ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 254. Sabemos que Agostinho fez uma leitura profunda e sistemática de São Paulo logo depois de sua ordenação sacerdotal. Em Cacissíaco estudou São Paulo, entretanto, durante um pequeno retiro que fez depois de sua ordenação como padre, pedido este concedido por Valério, bispo de Hipona, Agostinho teve a oportunidade de apreciar as lições de vida atuante daquele que seria chamado como o grande Apóstolo. Nesta leitura o padre Agostinho se identificaria com o ideal de autoridade exibido nas cartas de São Paulo, ideal que faria parte de toda sua vida como bispo de Hipona. 18 20 bons olhos um homem com a ambição de Agostinho em conquistar altos cargos continuar com uma concubina.25 Em Milão mergulha seu espírito em profundas reflexões, amadurecendo sua conversão para o cristianismo. Como conseqüência disto, demitiu-se do cargo de professor e retirou-se para Cassicíaco26 (Briância), sendo que neste local levava uma vida comum com seus amigos, mãe e seu filho Adeodato. “O recolhimento do pequeno grupo a Cassicíaco foi muito precipitado: em poucos meses, Agostinho abandonou o casamento, o cargo público e as esperanças de segurança financeira e prestígio social.”.27 Viveria um momento ímpar de sua vida: um período de retiro filosófico, aos moldes de uma cidade dos filósofos planejada por Plotino e chamada de Platópolis em homenagem a Platão. Foi nesta época que Agostinho viveu um período de especulação filosófica intensa, desmascarando a idéia moderna de que Agostinho fora somente um controversista. Uma obra que merece destaque em seu retiro filosófico em Cassicíaco é seus Solilóquios, na qual Agostinho dialoga com a sua própria razão. “Por serem conversações a sós entre nós, quero denominá-las e dar-lhes o título de SOLILÓQUIOS, certamente um título novo e, talvez seco, mas bastante adequado para indicar o nosso estilo.”.28 Nesta obra são abordados diversos temas: sem a fé, a esperança e o amor não se conhece a Deus29; a virtude é a razão correta e perfeita30; se é pela razão que se adquire a virtude, conseqüentemente, viveremos uma vida feliz31; a fé, como um elemento que nos ajuda a ultrapassar os enganos dos sentidos, a esperança, nos faz acreditar que se pode ver, e o amor, que nos faz desejar aquilo que se quer ver e ter prazer com isso: fé, esperança e amor são colocados como fundamentos epistemológicos32; a teoria da iluminação, onde o conhecimento depende de uma luz especial de Deus33; destaca os erros da imaginação, algo muito semelhante a concepção pascaliana do conceito34; e enfim, a imortalidade da alma.35 Depois deste período especulativo, em meados de 386, Santo Agostinho converte-se 25 Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 108. “O próprio Agostinho, que não era casado, mas tinha uma companheira há cerca de quinze anos, não suportava a idéia de viver sem uma mulher.”. (Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 148). 26 Ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 141 – 156. 27 Ibid., p. 142. 28 Santo AGOSTINHO, Solilóquios. São Paulo: Paulus, 1998, VII, 14, p. 73. 29 Cf. Ibid., VI, 12, p. 30 – 31. 30 Cf. Ibid., VI, 13, p. 31. 31 Cf. Ibid., VI, 13, p. 31. 32 Cf. Ibid., VI, 13, p. 30 – 31. 33 Cf. Ibid., I, 2, p. 15 – 16. 34 Cf. Ibid., III, 3, p. 60; XX, 34, p. 103; XX, 35, p. 105. Não se trata de dizer que o conceito tem o mesmo sentido nos dois autores, algo que veremos no decorrer do trabalho. 35 Cf. Ibid., XIII, 24, p. 88. 21 totalmente ao cristianismo e vai para Milão, pois no ano seguinte seria batizado pelo bispo Ambrósio.36 Em 388 volta a Tagaste, vende os bens de seu falecido pai e funda uma comunidade religiosa em Hipona. No ano de 391, em Hipona, foi agarrado e ordenado padre37 pelo bispo Valério. Com a morte de Valério, Agostinho é consagrado bispo efetivo de Hipona no ano 395. A cidade era composta de ruas estreitas e cheia de curvas pavimentadas pelos fenícios.38 Agostinho vive uma vida na Igreja marcada por dois trabalhos: a vida pastoral, que tomava quase todas as manhãs dos seus dias, e as controvérsias com os hereges: a localização de Hipona, uma cidade portuária, propiciava a comunicação entre a Igreja na África e a Igreja de Roma, facilitando o conhecimento das novas heresias que surgiam. Desta maneira, será pelas cartas que Agostinho terá conhecimento de um monge chamado Pelágio, homem que vivia de forma austera sua religiosidade, apresentando “[...] um outro Paulo radicalmente diferente [...]”39 daquele que Agostinho conhecia e apresentava a seus amigos. As heresias eram algo de estrema atenção de um bispo, ao surgirem, elas deveriam ser destruídas: Cristo era exibido nos sarcófagos da época como um mestre ensinando a seus discípulos.40 O combate às heresias era um dos alvos dos árduos exercícios intelectuais do bispo de Hipona até a sua morte. Morre em 430 quando os vândalos já haviam cercado a cidade de Hipona.41 Neste pensador, filosofia e teologia possuem uma relação intrínseca; difícil apontar onde começa o filósofo e termina o teólogo ou vise-versa, mesmo porque ele tentava fazer uma síntese entre a filosofia e a teologia: a fusão dos dois campos do conhecimento não se excluem.42 A filosofia, para o bispo de Hipona, oferece um instrumental capaz de ultrapassar seus próprios limites, desta maneira, muitos não o vêem como um filósofo, mas como um místico-teólogo. Todavia, sua obra apresenta-se como uma grande e profunda reflexão sobre o mundo, o homem e Deus, sendo que o seu pensamento por muito tempo tornou-se point de repère (ponto de referência, marco) da doutrina da Igreja Católica.43 Desenvolveu seus textos em função de diversas contrariedades que, no seu ponto de vista, 36 Ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 95 – 105. Podemos verificar neste capítulo com o título Ambrósio as influências do bispo de Milão naquele que seria o futuro bispo de Hipona. Sobre ss pregações de Ambrósio ver G. R. EVANS. Agostinho sobre o mal, p. 38. 37 Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 171. 38 Cf. Ibid., p. 231. 39 Ibid., p. 186. 40 Cf. Ibid., p. 50 e G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 27. 41 Cf. Giovani REALE e Dario ANTISER, História da filosofia. 4ª ed. v. I. São Paulo: Paulus, 2000, p. 428 – 429. Sobre a morte de Santo Agostinho ver Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 535 – 542. 42 Ver G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 64. “Agostinho sempre se preocupou em reunir o “Deus de Abraão, Isaac e Jacó” e o “Deus dos filósofos”.”. (Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 212). 43 Cf. José Américo Motta PESSANHA, Santo Agostinho: vida e obra, p. XIII. In: Santo AGOSTINHO, Confissões. trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural. 1984. 22 ferem a fé cristã. Assim, elabora inúmeras obras que vem a ser respostas à autores considerados deturpadores da fé. É o caso dos maniqueístas e pelagianos; questões como a existência do mal como substância absoluta sustentada pelos maniqueus, assim como o poder da natureza para cumprir os mandamentos de Deus sustentada pelos pelagianos, foram alguns dos temas que preocuparam aquele que seria considerado no futuro como o “grande Doutor”44 da graça. A obra de Santo Agostinho é sinuosa, ou seja, por ter sido construída em diálogo – com algumas exceções, como vimos acima –, suas opiniões mudam no decorrer de seus escritos como conseqüência dos problemas que gradativamente eram reportados por seus opositores. Estas mudanças fazer-se-iam presentes, por exemplo, diante de suas reflexões sobre o mal e, conseqüentemente, levando as suas construções acerca daquilo que podemos chamar à doutrina da graça. Na análise de cinco textos – Confissões (397/398) – sua autobiografia –, O livre-arbítrio (iniciada em 388, terminada em 394/395), O espírito e a letra (412), Natureza e graça (415) e A graça de Cristo e o pecado original (418) – podemos verificar tal sinuosidade já referida da obra agostiniana. Analisaremos em primeiro lugar, a sua conversão, pois a partir dela, declara o autor, “[...] penetrou-me no coração uma espécie de luz serena e todas as trevas da dúvida fugiram.”45; em segundo lugar, a mudança de opinião quanto as idéias maniqueístas; por último, sua doutrina da graça nas controvérsias com os pelagianos. 1.1 – A conversão de Santo Agostinho. No seu livro Confissões, Santo Agostinho faz uma espécie de descrição da sua vida, desde sua terna infância, passando por sua adolescência pecaminosa, vida de estudos, professor de retórica, desaguando na descrição de sua conversão. Nossa hipótese é que há uma mudança no comportamento e na escrita de Santo Agostinho depois da sua conversão. Iniciaremos nossa empreitada tentando verificar a mudança comportamental. Quando, por uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria e a reuni perante a vista do meu coração, levantou-se enorme 44 45 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 13. Santo AGOSTINHO, Confissões, VIII, XII, 29, p. 144. 23 tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas. [...] Eis em que estado me encontrava!46 A mudança que cabe a nós mensurar é comportamental: Santo Agostinho descreve a si mesmo como alguém em “profunda” transformação. Este olhar introspectivo – “íntimo” – faz refletir, no “coração” do autor, uma visão de si que clarividência seu estado de miséria vindo a provocar “lágrimas”. A miséria é vista de maneira total, pois a afirmação “reuni perante a vista do coração” pareceria evidenciar para ele, na profundidade de sua reflexão, a reunião plena de seu estado de miséria, vista a partir de um ponto, o coração, que até então, encontrar-se-ia opaco. O uso deste conceito sempre vem acompanhado pela idéia de intimidade com Deus, algo que, antes da conversão, era absolutamente impossível. “Abstinha meu coração de qualquer afirmativa, com medo de cair no precipício.”.47 Esta afirmação é feita em função das pregações de Santo Ambrósio – que depois seria responsável pela conversão de Santo Agostinho –; Agostinho resiste às palavras do pregador, ou seja, resiste à palavra de Deus, conseqüentemente, resiste à fé: eis o medo de cair no precipício, ou seja, estar possuído pelo Desconhecido e encantado por Ele. Santo Agostinho queria estar seguro sobre aquilo que crê como dois mais dois são quatro, no entanto, depois de convertido a entrega é total; a ação de Deus pelo Espírito Santo em seu coração tornar-se-ia a marca da sua intimidade com Deus. Podemos verificar isto no texto paulino aos Coríntios, citada por Santo Agostinho em seu livro O Espírito e a letra: “A letra mata, mas o Espírito comunica a vida.”.48 Este Espírito vivificante é, para Agostinho, a ação de Deus no coração do homem, pois, “No Sinai, o dedo de Deus agiu em tábuas de pedra; no Pentecostes, no coração das pessoas”.49. O Espírito de Deus, age no coração, este seria uma espécie de sensor, capaz de captar a ação Divina, isto porém, faz brotar a fé. Desta maneira, a fé é fruto da ação de Deus no coração do homem, questão esta que seria uma das máxima agostiniana contra os pelagianos. Mas como atua o conceito “coração” na obra do autor? O uso do conceito de “coração” na descrição agostiniana está intimamente ligado com à conversão, ou seja, uma mudança repentina de direção. A concepção agostiniana do conceito vem das escrituras, de maneira especial, dos profetas e dos salmos50, todavia, com 46 Santo AGOSTINHO, Confissões, VIII, XII, 28, p. 143. Ibid., VI, IV, 6, p. 92. 48 Idem, O espírito e a letra, 2ª ed. trad. Augustinho Belmonte. v. I. São Paulo: Paulus, 1998, IV, 6, p. 21. 49 Ibid., XVII, 29, p. 50. 50 Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 117. 47 24 algumas diferenças que sublinharemos. No hebraico o conceito coração – leb – é usado nos textos bíblicos em referência ao corpo. Todavia, o termo ganha vários outros sentidos abstratos: coração é a totalidade da natureza interior do homem; é usado para designar as diferentes formas de personalidades humanas; há passagens que o conceito é relacionado às emoções, pensamento – inteligência – e vontade; princípio de vida soprado por Deus51. Destacamos que não há uma distinção clara entre o corporal e o espiritual nas escrituras52. Sublinhamos também que ao mesmo tempo que o coração é a faculdade do conhecimento – inteligência – utilizada pelo homem, nele também conserva-se as informações, ou seja, a memória. É no coração do homem que Deus escreve seus preceitos e será pelo coração que o homem orienta sua vontade: é do coração que parte todos os desejos e ações. O coração do homem pode ser orgulhoso e vão, resistindo a Deus, mas pode converter-se e tornar-se dócil à ternura de Deus.53 Portanto, o coração também move a função de consciência moral conhecendo o mal realizado e reprimindo o culpado54. “Assim, o coração bíblico representa o dinamismo interior da pessoa dentro da multiplicidade de seus atos, sem que seja estabelecida uma separação clara entre o corporal e o espiritual nem entre as faculdades.”.55 Corpo, alma e espírito é o próprio homem. Esta tricotomia é usada por Paulo: para ele o coração é toda vida sensível, intelectual e moral.56 O coração é a unidade 51 Cf. R. Laird Harris (org), Dicionário Internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida nova, 1998, p. 765 – 767. 52 Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin. Paris: Albin Michel, 1995, p. 118. 53 Cf. Ibid., p. 118 – 119. 54 Cf. Ibid., p. 119. 55 Ibid., p. 120. Antoine Guillaumont escreve um artigo sobre o conceito de coração na antiguidade. (Ver Antoine GUILLAUMONT, Les sens des noms du coeur dans l’antiquité. In: Swami Addev ANANDA et al, Le coeur. Bélgica: Société Saint Augustin. 1950, p. 41 – 81). Seu trabalho é dividido em três grandes frentes: o sentido do nome coração nos antigos Semitas ou, de maneira mais específica, nos Hebreus; na antiguidade greco-romana; e na antiguidade cristã. Quanto as suas análises pertinentes ao uso do conceito entre os hebreus ele destaca algumas formas de se usar o conceito coração no antigo testamento: o coração relativo ao órgão do corpo humano e sua importância para a sustentação vital do indivíduo (cf. Ibid., p. 42); designa o conjunto do ser humano ou a pessoa propriamente dita (cf. Ibid., p. 42 – 43 e p. 48); lugar onde se manifestam os sentimentos e a as emoções como a alegria, o orgulho, a compaixão, o amor, a coragem, o desespero, o terror, o temor, o medo, a angústia, a confiança a esperança (cf. Ibid., p. 43 – 45); orgão da inteligência (cf. Ibid., p. 45); coração como interioridade (cf. Ibid., p. 46); coração como orgão da atenção e da memória, receptáculo que alimenta o pensamento (cf. Ibid., p. 47); coração como lugar onde Deus se mostra (cf. Ibid., p. 47); coração como orgão da ação, seja para adquirir ciência, discernimento ou sabedoria, ou orgão que medita sobre o caminho a seguir, portanto, o coração torna-se um instrutor, um orientador (cf. Ibid., p. 47 – 48); coração como a parte mais secreta da pessoa (cf. Ibid., p. 49); coração como consciência moral (cf. Ibid., p. 50); o coração é por excelência o orgão da experiência de Deus para o judeu. (cf. Ibid., p. 50 – 51). Desta maneira, Antoine Guillaumont conclui : “Assim, a psicologia dos Semitas é, pode-se dizer, de caráter materialista; ela designa os fatos da vida física pelo nome do órgão que eles consideram mais importante ou pelo efeito que eles produzem sobre este órgão; e o órgão mais importante é principalmente o coração, no qual encontra-se por este motivo a sede plena das emoções, dos sentimentos, da inteligência e do pensamento, da vida moral e religiosa.”. (Ibid., p. 51). 56 Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 120. 25 do homem que procura Deus, crê Nele e busca incessantemente realizar seus preceitos.57 Quando Deus toca o coração do homem toca-o em toda sua totalidade e orienta-o em direção ao Bem Supremo. Mas Agostinho se apropriará do conceito de outra maneira: o coração deixa de designar atividade fisiológica do homem.58 O bispo de Hipona separa de maneira nítida o corporal e o espiritual, relacionando o coração à alma, esta porém, com natureza imaterial na esteira da concepção neoplatônica. O coração é o órgão pelo qual a alma age: por este motivo ele diferencia a alma e o coração. Mas estudando as escrituras sagradas ele retoma o sentido bíblico do conceito, todavia, sem associá-lo a fisiologia, como afirma Sellier. Desde então, a realidade designada por esta palavra é uma força interior, um dinamismo complexo da alma, que age com mais ou menos intensidade, e conforme uma orientação determinada a qual depende a qualidade moral do homem, sua felicidade e miséria.59 O coração é visto como o cume da alma nas Confissões, onde acontece o drama da existência, da conversão, da salvação, é a morada interior do homem: “O coração é um campo onde Deus visita [...].”.60 Por este motivo, manifesta a idéia de intimidade com Deus. Mas caso esta intimidade não aconteça, o coração é o lugar onde as tempestades da cobiça assombram o homem. A intimidade com Deus é a re-orientação do homem, a conversão: “Este coração, Deus o modela pouco a pouco com doçura.”.61 O homem deve buscar a Deus continuamente assim como o coração que não pára de movimentar-se: um coração adormecido significaria a morte, as trevas, portanto, a alma age pelo dinamismo constante do coração que busca seu repouso, não no vazio da vaidade, mas um “[...] repouso misteriosamente unido a vida mais intensa.”.62 O coração é o homem em sua unidade viva em direção a Deus.63 Esta unidade quando sofre no processo de conversão e 57 Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 120. Cf. Ibid., p. 120. 59 Ibid., p. 121. 60 Ibid., p. 122. 61 Ibid., p. 122. 62 Ibid., p. 124. 63 Cf. Ibid., p. 125. 58 26 restauração verte lágrimas64 “[...] que são como o sangue do coração.”.65 Agostinho, depois de usar do conceito “coração” para tentar descrever ao leitor que ele vivia um momento de intimidade com Deus, mostra as conseqüências desta intimidade, ou seja, as “lágrimas”. Curiosa afirmação de Santo Agostinho neste trecho, pois o conceito “lágrimas”, sendo uma descrição comportamental, é posterior a sua afirmação “levantou-se enorme tempestade”. Pergunto: como ficar parado diante de uma enorme tempestade? Ou como mostrar-se indiferente diante de tal perturbação? Talvez a atitude de espanto cause um assombramento tal que o sujeito permanece atônito, no entanto, a indiferença neste caso não fazer-se-ia presente. Esta tempestade que se refere Santo Agostinho “levanta-se”, está acima da sua capacidade de controle, pois ao mesmo tempo que se “levanta”, ela “arrasta”. O autor usa da metáfora para tentar esclarecer ao leitor o que hipoteticamente achamos que aconteceu na sua interioridade.66 Sabemos que, mesmo diante das metáforas, não tocamos a vida interior que Santo Agostinho descreve, no entanto, pareceria plausível supor que depois deste “arrastamento” a idéia que salta a nossos olhos é que Agostinho entende-se estar sendo levado, ou melhor, arrastado, por uma força maior do que ele, como uma “chuva torrencial de lágrimas” que emana de dentro para fora. A força é maior do que ele e incomoda67, pois “levanta-se enorme tempestade”, esta porém, ao arrastar, tira do lugar sem nenhuma chance de desviar-se. Esta força não deixa como estava, é transformadora, de maneira que, tal movimento, vem de dentro, de sua profunda reflexão 64 As lágrimas são o resultado do arrependimento do pecador que necessita da efusão da misericórdia de Deus. Desta forma, escreve Santo Agostinho citando Santo Ambrósio: “São as lágrimas que lavam a culpa. Portanto, aqueles a quem Jesus olha, choram. Pedro negou a primeira vez e não chorou, porque o Senhor não o olhara; negou a segunda vez, e não chorou, porque ainda o Senhor não o olhara; negou a terceira vez, Jesus olhou e ele chorou amargamente”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original. 2ª ed. v. I. trad. Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, XLV, 49, p. 259). 65 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 123. 66 “Ora, alguém diz, a seu respeito, saber a partir de seu próprio caso o que sejam dores! – Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela tivesse algo que chamamos ‘besouro’. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar o seu besouro. – Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa.”. (Ludwig WITTGENSTEIN, Investigações filosóficas. trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, p. 107). Há uma dificuldade de linguagem para saber quais são as percepções internas de cada pessoa. Wittgenstein mostra a impossibilidade de saber com toda certeza qualquer enunciado que queira retratar a interioridade de um indivíduo. A linguagem não é um instrumental capaz de tocar tais sentimentos. “Em que medida minhas sensações são privadas? – Ora, apenas eu posso saber se realmente tenho dores; o outro pode apenas supor isto.”. (Ibid., p. 99). Desta maneira, poderíamos dizer que se há algo em comum entre aquelas duas pessoas que possuem um “besouro” em cada uma de suas caixas, este “algo” é somente a palavra “besouro”, pois cada uma delas não tem acesso à interioridade da caixa da outra. Talvez elas tenham a mesma coisa dentro da caixa, todavia, a certeza deste argumento não pode ser submetido à prova. Nossa pesquisa não tem o objetivo de descrever os sentimentos interiores, mas somente mostrar, a partir dos textos, as mudanças comportamentais e textuais em função de determinados acontecimentos. 67 “Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração.”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, VIII, XII, 29, p. 144). Diante de um coração opaco, a nova luz que brilha causa um mal-estar caracterizado pela fala e pelo choro, perpetuando um amargor por uma dor jamais sentida. 27 sobre si, não que a reflexão seja a causa de tamanha reviravolta, mas é o olhar de suas misérias a partir da nova luz que emana do coração, ou seja, da sua intimidade com Deus – o precipício, falta de referência –, esta porém, causada pelo próprio Deus, pois em suas antigas reflexões sobre si Deus permanecia opaco ao seu coração.68 O corolário de sua descrição atinge seu ápice: “Eis em que estado me encontrava!”. Santo Agostinho descreve seu estado interior como alguém que foi tocado interiormente por uma força que retira qualquer referência explicativa: diante disto o que lhe resta é chorar. O choro é a mudança comportamental que queremos detectar, pois, como já foi assinalado, sua intimidade é de difícil acesso para nossa pesquisa, todavia, o traço comportamental pareceria marcar uma nova concepção – como cristão convertido e religioso – de Deus, de si mesmo, do mundo e da religião69. Depois de analisada a mudança comportamental detectada pelo choro fruto de sua conversão, cabe agora, perseguindo a nossa hipótese, tentarmos encontrar traços de uma mudança na escrita na obra Confissões de Santo Agostinho. Para realizar tal tarefa, traremos duas citações de sua obra, na primeira analisaremos como é usado conceito “Beleza” e, logo depois, faremos outra citação que permitirá ao leitor verificar a diferença que pretendemos destacar. Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei. Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-vos! Disforme, lançavame sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!70 O texto é poético, os termos apresentam uma subjetividade de difícil precisão, a metáfora ainda fazer-se-ia presente, no entanto, não apresentando termos com precisão mais objetiva como “lágrimas”, “chuva torrencial”, “arrastamento”, como é o caso da outra citação. Mesmo a metáfora com um órgão do corpo humano, o “coração”, como o lugar onde Deus escreve seus preceitos, pareceria ser algo mais apreensível que o conceito 68 “Se não compreendia, portanto, como é que o homem poderia ser imagem vossa, a minha obrigação era bater na porta e perguntar-Vos como se deveria crer, e não responder com insultos, como se tal crença fosse como eu supunha.”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, VI, IV, 5, p. 92). Santo Agostinho não compreendia como a força humana poderia atuar para ascender à crença. Também pareceria absurda a idéia de “imagem” de Deus gravada no homem, pois, se Deus é atemporal e aespacial, como sua imagem poderia estar em nós, já que estamos “[...] da cabeça aos pés [...]” (Ibid., VI, III, 4, p. 92) mergulhados no espaço e no tempo? No entanto, diante destas dúvidas, relatava que seu próprio raciocínio partia do princípio que a crença teria que obedecer a lógica de seu pensamento e isto era algo contestado por ele mesmo. 69 O mesmo interesse que alguns jovens modernos tem pela política é o que se pode esperar dos jovens do contexto de Agostinho em relação à religião e às explicações do mal no mundo. (cf. G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 24). 70 Santo AGOSTINHO, Confissões, X, XXVII, 38, p. 190; grifo meu. 28 Beleza, usado na citação acima, mesmo sabendo que o sentido do conceito coração está além de uma simples referência literal ao órgão humano. Sabemos também que a importância dada ao termo coração tem suas origens nas contínuas referências às cartas paulinas71 como sensor onde Deus atua. Todavia, como poderíamos tratar o conceito de “Beleza”? Podemos verificar que, além de uma mudança comportamental mencionada acima, há algo a destacar em sua escrita depois que o mesmo diz ter sido permeado pela efusão da graça. Ele usa do conceito de “Beleza” com letra maiúscula e sempre procedendo do pronome “Vós”. Portanto, não é nenhuma novidade que o poema destina-se ao Deus cristão. O aspecto da interioridade das duas citações acima também fazer-se-ia manifesto: tanto a primeira quanto a segunda estão de acordo quanto à ação de Deus que é de dentro para fora. Na primeira, as “lágrimas” são o resultado de sua “análise profunda” de si mesmo, reconhecendo suas “misérias” introspectivamente diante de um novo foco de visão, o “coração”: o movimento é de dentro para fora. Entretanto, nesta última citação, Santo Agostinho declara seu erro em “lá fora a procurar-Vos”, pois “Eis que habitáveis dentro de mim”: o movimento é de dentro para fora. Desta maneira, pecebemos que os dois textos exortam o cristão a voltar-se para dentro e perceber que seu grande inimigo mora dentro de si e não fora: seus pecados, suas dúvidas.72 Portanto, o caráter introspectivo salta nos dois textos. As “lágrimas”, causadas pela graça em sua introspecção, mostram que Deus age de dentro para fora, em um processo pelo qual percebemos as transformações do comportamento (lágrimas) de Agostinho, assim, a interpretação feita por nossa pesquisa do termo “lágrima” como uma manifestação da atuação da graça de dentro para fora não contradiz a citação que fizemos acima, pois nesta última Santo Agostinho afirma literalmente que Deus estava nele, ou seja, dentro dele, sendo inócua a procura fora de si. Assim, pecebemos que o conceito “Beleza” é usado para caracterizar Deus, todavia, o mesmo é vago, assim com a palavra Deus. Cabe agora trazer a segunda citação para perceber a mudança na escrita de Agostinho. 71 “Os segredos do seu coração ficarão manifestos, e assim, lançando-se sobre o seu rosto, adorará a Deus, publicando que Deus está verdadeiramente entre vós.”. (I Cor 14, 25, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969; grifo do meu); “Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas, com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração.”. (II Cor 3, 3, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969; grifo meu). 72 Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 196. 29 Resta-me falar da voluptuosidade destes olhos de minha carne. [...] Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e a amenidade das cores. Oxalá que tais atrativos não me acorrentassem a alma! Oxalá que só fosse possuída por aquele Deus que criou estas coisas tão belas.73 Nesta citação podemos verificar uma mudança importante nos escritos de Santo Agostinho ao compararmos as duas últimas citações: há um contraste entre o conceito “beleza” com letra minúscula na última citação e “Beleza”, com letra maiúscula, que se encontram na citação anterior. Verificamos que há duas maneiras de olhar: pelos “olhos da carne” e daquela que o Santo chama “[...] vista do meu coração [...]”74. A primeira, permite contemplar uma “variedade de formas”, o “brilho”, as “cores”, fatores externos suscetíveis à mudança e que encantam os olhos, de tal maneira que amamos a beleza, no entanto, o grande problema que Agostinho constata é que este amor acorrenta a alma. O homem, preso nestes atrativos, perde-se ante estes impulsos e esquece de seu criador: “lançava-me sobre estas formosuras que criastes.”. Assim ele confessa a Deus: “Estáveis comigo, e eu não estava convosco!”. Os “olhos da carne” apreendem uma beleza que escraviza, ou seja, pecaminosa.75 A segunda, a verdadeira “Beleza”, sustentamos que é para Agostinho igual ao próprio Deus. O amor à “Beleza” deve ser possuído pelos olhos do “coração”, ou seja, visão nova das coisas mediante a fé em Deus. Interessante salientar que a “beleza” que os “olhos da carne” captam é a criação em geral, esta pareceria ser uma beleza diminuta, pois o critério de avaliação é sempre Deus e este se identifica com “a Beleza”. As belezas do mundo são ofuscadas pela Beleza da eternidade. “O amor ao mundo, por exemplo, foi condenado não porque o “mundo” fosse o antro dos demônios, mas por definição, para o filósofo neoplatônico, ele era transitório e obscurecido pela eternidade.”.76 O mundo não seria visto da mesma forma depois de sua conversão, conseqüentemente, o comportamento do autor e sua forma de escrever também sofreu mudanças: é o novo Agostinho, aquele que a vida transformou-se em uma gota de chuva em comparação com a eternidade. 73 Santo AGOSTINHO. Confissões, X, XXIV, 51, p. 196; grifo meu. Ibid., VIII, XII, 28, p. 143. 75 Outros textos de Santo Agostinho, como O espírito e a letra, mostram as diferentes visões de mundo em função das diferentes formas de olhar: “A interpretação literal seria o mesmo que entender no sentido carnal o que está escrito no Cântico dos cânticos, o que não levaria ao fruto de um amor cheio de luz, mas a sentimentos de concupiscência libidinosa.”. (Idem, O espírito e a letra, IV, 6, p. 21). O Cântico dos cânticos é um texto do antigo testamento com uma coleção de versos amorosos cantados, de maneira especial, em casamentos. Santo Agostinho ressalta que a interpretação literal do texto poderia levar o leitor a uma deturpação da palavra de Deus, conduzindo-o a estados libidinosos concupiscentes. 76 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 306. 74 30 Portanto, o uso dos conceitos de “Beleza” e “beleza” mostram estas mudanças conceituais, assim como as lágrimas de Agostinho, seria uma mudança comportamental apreensível pelo texto. Desta maneira, estando tais mudanças de acordo com nossa hipótese, podemos abordar o segundo ponto. O segundo ponto que propomos abordar – depois de esclarecer que algumas transformações (comportamentais, textuais) têm como causa o toque de Deus no coração – será a mudança da sua opinião em debate com os maniqueístas. Nossa hipótese é que a conversão de Santo Agostinho implica em uma mudança no seu pensamento, ou seja, crítica às idéias maniqueístas de substancialidade do mal e coação da vontade pelas partículas más do príncipe das trevas. O Agostinho convertido ao cristianismo sustentará que o mal não tem substância e que a vontade possui um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal. 1.2 – Santo Agostinho contra os maniqueus. Destacamos neste primeiro ponto a mudança comportamental e a forma de escrever de Santo Agostinho em todo processo de sua conversão. Em contrapartida, as mudanças em relação às idéias maniqueístas dar-se-iam, a nosso ver, em função do seu pensamento dialógico, ou seja, de leitura e debate contínuo. Desta maneira, tentaria salvaguardar alguns princípios da religião cristã que aos poucos, mediante as suas contínuas reflexões, inquietavam e encantavam aquele que seria o futuro bispo de Hipona. Mas o que é o maniqueísmo? O maniqueísmo é uma doutrina difundida na Pérsia, Egito, Síria, África do Norte e Norte da Itália. Ela foi desenvolvida por Maniqueu ou Mani77 que, sendo perseguido pelos reis da Pérsia, seu país, refugia-se na Mesopotâmia. Ao voltar para sua pátria ele é esfolado e atirado às feras.78 A doutrina maniqueísta sustentava um profundo racionalismo e materialismo79. Também eram partidários da existência de dois princípios absolutos: o bem e o mal.80 O bem era chamado Deus, este tem o domínio da luz; o mal era chamado Satanás, senhor das trevas, composto por matéria contaminada. 77 Ver Marcos Roberto Nunes COSTA, Maniqueísmo – História, Filosofia e Religião, p. 25. Sobre a vida de Mani ver Ibid., p. 25 – 39. 79 Cf. Santo AGOSTINHO, Confissões, V, X, p. 82-3. 80 Cf. Ibid., V, X, 20, p. 83. 78 31 Para os maniqueístas, Deus e Satanás comunicam às criaturas suas substâncias, de maneira que os seres são compostos de uma alma boa e outra má.81 O homem é composto pelo corpo, que é mal, pelo espírito, que provém de Deus e de alma insensível, esta cheia de apetites e dominada pelo senhor das trevas: Satanás. Desta maneira, verificamos que a antropologia maniqueísta tem como marca um pessimismo em relação à condição do homem na terra: a própria composição do homem possui substâncias más. Deus, sendo as partículas de luz e as partículas boas que também compõem o homem, não se desinteressaria pela salvação, pois, ao salvar a criatura, Ele salvaria a si mesmo. Dentro das várias emanações de Deus, Jesus Cristo é uma delas que tentaria libertar o homem das partículas das trevas misturadas por Satanás.82 Santo Agostinho foi maniqueísta. “Em Roma, também me juntava com aqueles ‘santos’, fingidos e embusteiros.”.83 Sua obra Confissões revela as dificuldades que o Santo enfrentou para tentar livrar-se da opinião dos maniqueístas, de maneira especial, a dificuldade que o problema do mal causava à fé cristã, pois, se Deus é o sumo Bem, quem seria o criador do mal? Conseqüentemente, se existe o mal como componente do homem, este porém, não teria responsabilidade por seus atos pecaminosos:84 o homem era coagido a fazer o mal. Santo Agostinho, ao escrever as suas Confissões já tinha em mente a solução dos problemas trazidos pelo sistema maniqueísta, no entanto, percebemos que sua mudança de opinião é gradativa. Veja a descrição de Santo Agostinho enquanto ainda encontrava-se frente às reflexões turbulentas sobre o maniqueísmo: Eis Deus, e eis o que Deus criou! Deus é bom e assombroso e incomparavelmente preferível a tudo isto. Ele é bom e, por conseguinte, criou boas coisas. E eis com Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto, o mal? Donde e por onde conseguiu penetrar? Qual é a sua raiz e a sua semente? Porventura não existe nenhuma? Por que recear muito, então, o que não existe? E, se é em vão que tememos, o próprio medo indubitavelmente é o mal que nos tortura e inutilmente nos oprime o coração. Esse mal é tanto mais compressivo quanto é certo que não existe o 81 Sobre a cosmologia do maniqueísmo ver Marcos Roberto Nunes COSTA, Maniqueísmo – História, Filosofia e Religião, p. 39 – 87. 82 Ver Ibid., p. 59 – 61 sobre a antropologia pessimista maniqueísta 83 Santo AGOSTINHO, Confissões, V, X, 18, p. 82. 84 “Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que outra natureza, estabelecida em nós. A minha soberba deleitava-se com não ter responsabilidades da culpa.”. (Ibid., V, X, 18, p. 82). Para saber mais sobre a moral maniqueísta (selo da boca, das mãos e dos seios) ver Marcos Roberto Nunes COSTA, Maniqueísmo – História, Filosofia e Religião, p. 88 – 111. 32 que tememos, e nem por isso deixamos de temer. Por conseqüência, ou existe o mal que tememos, ou esse temor é o mal. 85 Em meio as suas reflexões, a causa do mal lhe parecia nebulosa. Deus é a causa de tudo que existe e a Bondade também é um atributo de Deus. Portanto, se tudo que existe provém de Deus e este é o sumo Bem, tudo que existe é bom. Diante deste raciocínio verificamos as diversas indagações de Santo Agostinho sobre a origem do mal na citação acima. No final da citação, vemos que Agostinho tenta resolver o problema, estabelecendo o mal como o nosso próprio temor, desta maneira, ou o mal existe e o problema da causa continuaria, ou tememos algo que não existe. Nenhuma destas conclusões o satisfaz: “Resolvia tudo isto dentro do meu peito miserável, oprimido pelos mordazes cuidados do temor da morte e por não ter encontrado a verdade.”.86 A origem do mal perturbava-o: “Que tormentos aqueles do meu coração parturiente! Quantos gemidos, meu Deus!”.87 A resposta em meio as suas reflexões apareceria mais tarde, em seu processo de conversão, de maneira especial, quando vai para Milão assumir um cargo público e começa a escutar as pregações de Santo Ambrósio, bispo de Milão. Para Agostinho, todas as coisas que existem são boas, mesmo as que se corrompem, de modo que só podem corromper-se por serem boas, pois o poder corromper-se implica em existir, assim, só poderia corromper aquilo que existe, ou seja, aquilo que é bom. Deus é o sumo Bem, portanto é incorruptível. A corrupção é vista por Agostinho como algo nocivo, pois, se Deus, que é o sumo Bem, não se corrompe, a corrupção é a privação de algum bem.88 Diante destas reflexões, ele estava próximo de resolver o problema do mal: “Em absoluto o mal não existe nem para Vós, nem para as vossas criaturas, pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem que lhe estabelecestes.”.89 O mal não possui uma existência em si como postulava os maniqueus, ele existe enquanto privação, ou seja, corrupção de um bem. Tal idéia é destacada por Paul Ricoeur, filósofo que tem como foco de suas especulações o problema do mal na filosofia: “Dos filósofos, Agostinho sustenta que o mal não pode ser entendido como substância, [...]. Então o pensar filosófico exclui todo fantasma do mal substancial. Por outro lado nasce uma outra 85 Santo AGOSTINHO, Confissões, VII, V, 7, p. 111. Ibid., VII, V, 7, p. 111. 87 Ibid., VII, VII, 11, p. 114. 88 Cf. Ibid.,VII, XII, 18, p. 118. 89 Ibid., VII, XII, 19, p. 118. 86 33 idéia de nada [...].”.90 Mas esta privação, este não-ser91 ou “nada”, como diz Paul Ricoeur, seria obra de Deus? Não na visão de Agostinho, pois se não há uma alma má que corrompe o homem e o ausenta de toda responsabilidade de seus atos, a causa do mal enquanto privação só poderia estar no próprio homem. “Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus – vontade que derrama as suas entranhas e se levanta com intumescências.”.92 A causa do mal era a corrupção da vontade humana em função de um pecado original cometido pelo próprio homem, assim explicar-se-ia a causa de toda corruptibilidade não só do homem, mas de toda a natureza. Para Agostinho só existe o mal moral, sendo descartado como existente o mal físico e metafísico: o homem é responsável pelo mal que faz. Portanto, se em um primeiro momento o mal era causa do pecado e possuía substancialidade, pois esta era posição maniqueísta que tinha a afeição de Agostinho, em um segundo momento, aprofundando suas reflexões e convertido a fé cristã, ele sustenta a idéia de que o mal é ausência de bem, ou seja, não possui substancialidade. A ausência de bem que movimenta a corrupção não está em Deus, mas na vontade do homem por causa do pecado. Há uma mudança no pensamento do autor quanto a substancialidade do mal: se enquanto maniqueu sustentava a substancialidade do mal, agora, como convertido, o mal é uma não-substância. Além desta primeira mudança, verificamos uma segunda: como maniqueu, Agostinho isentava o homem da responsabilidade do mal, todavia, depois de convertido, sua opinião muda, pois o homem é visto com uma vontade pervertida que propicia fazer o bem e o mal, algo que Agostinho irá afirmar em sua obra O livre arbítrio. É através da vontade que o homem obtém vida feliz. Por qual motivo então, nem todos eles a obtém? Porque, como nós o dissemos e concordamos, é voluntariamente que os homens a merecem. E acontece que voluntariamente também que tem uma vida de infortúnios. E assim, recebem o que merecem.93 90 Paul RICOEUR, O mal: um desafio à filosofia e à teologia. trad. Maria da piedade Eça de Almeida. Campinas: Papirus, 1988, p. 32. 91 Ver Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 267 – 275. O mal visto como correspondente ao conceito metafísico de não-ser. 92 Santo AGOSTINHO, Confissões, VII, XVI, 22, p. 120. 93 Idem, O livre-arbítrio, I, XIV, 30, p. 62. 34 O mal realizado pelo homem fá-lo digno de culpa e condenação, o bem, ao contrário, ao ser realizado por um bem da vontade, fá-lo digno de mérito e garantia da salvação. O fatalismo maniqueísta de uma vontade coagida pelo mal é criticado, introduzindo um livre arbítrio da vontade responsável, ou seja, capaz de escolher entre o bem e o mal. “Estabelecemos ainda que é próprio da vontade escolher o que cada um pode optar e abraçar.”.94 A vontade é senhora da ação, sustenta Agostinho, contra o fatalismo maniqueu. Todavia, discutiremos a questão do livre arbítrio em Agostinho mais abaixo.95 Nossa pequena explanação deste tema é útil somente para detectarmos algumas mudanças entre a concepção maniqueísta, que o bispo de Hipona outrora era partidário, e a concepção cristã. Portanto, percebemos duas mudanças no pensamento de Agostinho depois de abraçar fé cristã: o mal não tem substância e a vontade possui um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal, como afirmou a nossa hipótese. Diante deste quadro, poderíamos agora descrever o nosso terceiro ponto, a discussão de Santo Agostinho com Pelágio a respeito da doutrina da graça. 1.3 – As controvérsias pelagianas. Se Santo Agostinho posteriormente discordava acerca das idéias maniqueístas de que o homem é coagido a fazer o mal e livre de toda a responsabilidade, verifica-se também que as idéias agostinianas não convergiriam com a doutrina de Pelágio, pois este, ao contrário de Agostinho, afirma a capacidade da natureza e mérito humano nas ações boas do homem. Vemos que as posições extremas dos maniqueístas – não responsabilidade do homem ao fazer o mal – e pelagianos – responsabilidade e mérito do homem ao fazer o bem – são rejeitadas por Santo Agostinho. Não é claro, para nossa pesquisa, que Santo Agostinho tenha superado ou resolvido os problemas com maniqueístas ou pelagianos chegando à uma opinião que não contenha nenhuma das duas doutrinas: Santo Agostinho é pelagiano quando discute com os maniqueus, defendendo assim, a atribuição da culpa e do mérito ao homem, em função de um livre arbítrio que é dado por Deus para fazer o bem, pois, o mal uso deste caracterizaria o pecado. Ele argumenta desta forma para livrar-se da idéia maniqueísta que atribui tanto o bem quanto o mal à uma divindade que não é o 94 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, I, XVI, 34, p. 67. Ver no item 1.3.7 deste capítulo nossa explanação da concepção de livre arbítrio na discussão com os maniqueus. 95 35 homem, sendo este coagido e, conseqüentemente, livre de toda responsabilidade. No entanto, quando entra em contato com as idéias de Pelágio, muda radicalmente de opinião e, mais tarde, radicalizando-a opinião na querela pelagiana, parece argumentar como um maniqueísta, não atribuindo o mérito ao homem, mas a Deus, radicalizando a ênfase na predestinação e deixando o livre arbítrio sob jurisdição da graça96 de Cristo. O livre arbítrio, sem Deus, não é um bem em si, mas só faz o mal, diz Agostinho no contexto da querela pelagiana, necessitando da ajuda da graça para realizar o bem. Pelágio acusa Agostinho de maniqueísta, pois ao afirmar que o livre arbítrio só faz o mal sem a graça faz de Deus causa do pecado, já que tudo, inclusive o livre arbítrio, vem de Deus. Agostinho retruca; afirma que o mal não provém de Deus, mas do homem e sua vontade pervertida pelo pecado original, que é transmitido atavicamente à toda humanidade pela alma.97 Mas hesita em responder até o fim de sua vida a origem da alma. O problema de Agostinho encontra-se na dificuldade de conciliar livre arbítrio e graça. Desta maneira, faz uma distinção entre livre arbítrio e liberdade.98 No entanto, poder-se-ia dizer que Pelágio e Santo Agostinho estão de pleno acordo no que diz respeito à causa do mal, ou seja, o próprio homem. Outro ponto de convergência seria a condenação da concepção maniqueísta sobre o mal. Estes, como já vimos, atribuíam ao mal uma substância. Deus, para Pelágio, assim como para Agostinho, era o sumo Bem, o mal não poderia existir como 96 Enquanto Santo Agostinho declarava-se escravo das coisas da criação, Deus estava com ele, porém, diz o Santo: “[...] eu não estava convosco!”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, X, XXVII, 38, p. 190). É preciso libertar-se da escravidão das coisas, no entanto, este ato só é possível se Deus agir e a ação de Deus é sempre relacionada a graça. Mas o que é a graça? Sabemos que o conceito é de difícil apreensão, no entanto, salientamos que o conceito poderia ser entendido de duas maneiras: Primeira: graça é a ação de Deus na vida do homem, é o contato íntimo do Criador com a criatura, é o permear do amor de Deus naquele centro operativo do homem, o coração. Nele o Espírito Santo “[...] infunde em sua alma a complacência e o amor do Bem incomunicável, que é Deus, mesmo agora quando ainda caminha pela fé, e não pela visão” (Idem, O espírito e a letra, II, 3, p. 20. grifo meu). Segunda: a graça é o nome dado a um conceito usado por Santo Agostinho, de maneira que, ao usá-lo caracteriza uma mudança repentina de comportamento do ser humano, implicando em uma visão de mundo diferente, esta porém, apreensível por meio de comparações de textos que, através deles, poder-se-ia captar estas mudanças – textuais, comportamentais. Mas diante da dificuldade que o conceito graça infunde, nossa pesquisa irá ater-se na segunda definição, no entanto, a primeira evoca o sentido vertical da graça, este porém, inacessível aos nossos instrumentos mensuráveis, pois, é o próprio autor quem descreve a sua incomunicabilidade; como nossa pesquisa é absolutamente teórica e comunicável, ficamos atados em respeito ao próprio relato do autor, como podemos verificar na citação acima. 97 A transmissão do pecado sempre foi um problema que preocupou Agostinho. Uma de suas tentativas de solucioná-lo foi de vincular o pecado que é transmitido à outras gerações à alma. Em seu livro O livre arbítrio, III, XX, 57, p. 216 ele ressalta que o pecado é transferido da matéria para a alma, sendo que a alma é a herança para a posteridade que nasceria com esta mácula primordial. Todavia, uma nova questão aprofundaria ainda mais o tema: De onde vem a alma? Ela levaria Agostinho à quatro possíveis respostas: “Há, pois, quatro opiniões sobre a origem da alma: - ou todas ela provêm de uma só, transmitidas por geração; / - ou bem, a cada nascimento humano, uma nova alma é criada; / - ou então, as almas já existentes em qualquer outro lugar são enviadas, por Deus, aos corpos daqueles que nascem; / - Ou, enfim, elas descem por sua própria vontade para os corpos dos que nascem.”. (Ibid., III, XXI, 59, p. 218). 98 Veremos esta questão mais abaixo. 36 substância, mesmo porque este argumento implicaria na limitação de Deus. Desta maneira, se Deus é onipotente e o mal existe como substância, Ele não poderia querer o mal, pois isto implica uma limitação de Deus, fator inconcebível para os dois pensadores. “É aí que erravam os maniqueus, tanto para Agostinho como para os pelagianos, ao postularem que a infinitude de Deus era limitada pelo mal.”.99 Deus não quer o mal, pois o mal não existe enquanto substância, argumento comum entre Agostinho e Pelágio quanto à concepção maniqueísta. A discussão com Pelágio é precedida pelas controvérsias com os maniqueus. Desta maneira, sustentamos a hipótese que na obra de Agostinho O livre arbítrio, iniciada em 388 (livro I) e acabada entre 391 – 395 (livro II e III)100, são proposições contra os maniqueus, sendo que Agostinho tentava atribuir a responsabilidade do mal ao homem, no entanto, a partir de 411, Agostinho toma conhecimento da suposta heresia pelagiana que objetiva atribuir ao homem a causa do bem e do mal, negando o pecado original aos moldes agostiniano, e o bispo de Hipona muda sua concepção de liberdade e livre arbítrio. Portanto, com esta hipótese tentaremos mostrar a mudança de significado dos conceitos liberdade e livre arbítrio nos diferentes contextos que Agostinho está inserido: discussão com os maniqueístas e discussão com os pelagianos. Diante da hipótese acima assinalada, recorreremos a obra O livre arbítrio para mostrar os argumentos que Agostinho dirigia aos maniqueístas. Todavia, para entendermos a querela pelagiana recorreremos as seguintes obras: Carta 188 a Juliana (417-418), O espírito e a letra (412), Natureza e graça (413 - 415) e A graça de Cristo e o pecado original (418) e A graça e a liberdade (426 – 427). Tendo estas obras como nosso objeto de estudo, destacaremos os argumentos que ele constrói contra os maniqueístas e contra os pelagianos, assim, poderemos sublinhar como autor entendia o conceito de liberdade e livre arbítrio nos distintos contextos. Veremos que os pelagianos recorrerão às afirmações da obra O livre arbítrio para dizer que Agostinho sustenta as mesmas idéias de Pelágio, ou seja, está sob a responsabilidade do homem fazer o bem e o mal, no entanto, ao mudar sua opinião afirmando a necessidade da graça, é acusado de fatalismo – um outro nome para maniqueísmo – pelos pelagianos101, pois, defenderá a predestinação, o pecado original e um livre arbítrio dependente de uma transformação pela graça. 99 Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 354. 100 Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 90. 101 Fazendo uma comparação das idéias pelagianas, na qual o homem possui um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal, e os argumentos de Agostinho ao discutir com os maniqueus em sua obra O livre arbítrio, 37 Nas controvérsias contra os maniqueus e pelagianos Santo Agostinho destaca a origem do mal – pecado original – e qual é o estado do homem depois do pecado, desencadeando uma discussão sobre o livre arbítrio da vontade. Portanto, segue como será nossa explanação: destacaremos para o leitor quem foi Pelágio, como o pelagianismo surge no contexto africano, assim como seu desaparecimento. Em seguida, analisaremos as idéias de Pelágio, de maneira especial, sua concepção do pecado original e do livre arbítrio. Por último, analisaremos a concepção dos conceitos de pecado original, liberdade e livre arbítrio nos diferentes contextos em que Agostinho discute, ou seja, contra os maniqueus e contra os pelagianos. Desta maneira, poderemos comparar as transformações dos conceitos de liberdade e livre arbítrio nos diferentes contextos que o bispo de Hipona está inserido. Lembramos que a análise que pretendemos fazer do conceito pecado original em Pelágio e verificamos que o bispo de Hipona usa argumentos pelagianos, pois o foco da discussão era destruir a idéia maniqueísta que o homem era coagido a fazer o mal pela substância má, matéria, e desta forma, sustentavam os maniqueístas, o homem estaria isento de culpa. Todavia, já na velhice de Agostinho – quando o bispo de Hipona tinha amadurecido seus argumentos contra o pelagianismo, radicalizando a necessidade da graça para toda boa obra e afirmando, conseqüentemente, a necessidade do batismo para as crianças, o pecado original como fonte de todos os males da humanidade e a predestinação, idéias estas que encontramos em obras posteriores como A graça e a liberdade (427), A correção e a graça (427), A predestinação dos Santos (429) e O dom da perseverança (429) – verificamos que o exausto bispo pareceria sublinhar vigorosamente a primazia da graça, deixando a vontade humana sob o comando da vontade de Deus. Por este motivo, Agostinho teria que enfrentar um forte adversário que o acusaria de maniqueísta: Juliano de Eclano. Vindo de uma família metropolitana, conhecia muito bem o grego e seu pai fora Bispo de Eclano. “Juliano, futuro bispo de Eclano, o crítico mais devastador de Agostinho em sua velhice.”. (Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 475). Juliano foi tomado pelas idéias de Pelágio e se tornou aliado de Celéstio, o grande propagador do pelagianismo. Sendo oficializada a condenação do pelagianismo em 418, Juliano tinha cerca de 35 anos, era popular entre os monges e liderou um grupo de 18 bispos italianos que resistiam à condenação papal. Em 419 é forçado a sair da Itália, indo para o leste da Grécia, ambiente que favoreceu a difusão e desenvolvimento das idéias pelagianas. (Ibid., p. 476). Ele sabia que uma coisa era condenar uma heresia, outra coisa era suprimi-la. (cf. Ibid., p. 477). Desta maneira, o bispo de Eclano, toca uma ferida africana: os defensores dos africanos na Itália eram maniqueístas inocentes e que Agostinho “[...] ao “berrar” a doutrina do pecado original em todas as suas ramificações fantasiosas e repulsivas, meramente resgatava da memória os ensinamentos que fora impregnado por Mani.”. (Ibid., p. 478). Desta maneira, Agostinho, idoso e cansado, começou a trabalhar para coibir a tentativa de destruição – por um jovem cheio de vida – de um trabalho que dedicara boa parte de sua vida. “Seu sucesso, na verdade, dependia de fazer Agostinho parecer maniqueísta, a fim de demoli-lo com as armas que melhor dominava – a lógica e o conceito de liberdade dos filósofos.”. (Ibid., p. 479). A formação filosófica de Juliano fazia dele um adversário difícil para Agostinho. Embora formulasse a acusação que Agostinho era maniqueísta, sabemos que Juliano não conhecia o maniqueísmo como o bispo de Hipona. Outro elemento que dificultava o estudo de Juliano era que as obras maniquéias estavam nas estantes de Hipona, não na Grécia, todavia, tal controvérsia foi para Agostinho esclarecedora: “Ao escrever contra Juliano, Agostinho descobriu-se concordando de bom grado com Mani.”. (Ibid., p. 487). A existência dos demônios e o destaque que Agostinho concedia aos embuste demoníacos faziam o mesmo papel que o príncipe das trevas no sistema de Mani: “Quem pode crer estar, por sua inocência, a salvo das multiformes incursões dos demônios? A fim de ninguém confiar, atormentam, por permissão de Deus, de maneira cruel as crianças batizadas, as criaturas mais inocentes do mundo.”. (Santo AGOSTINHO, Cidade de Deus. 4ª ed. v. II. trad. Oscar Paes Leme. São Paulo: Vozes, 1990, XXII, XXII, 3, p. 569). Coação da graça para fazer o bem, coação dos demônio para fazer o mal, fatalismo que absorvia toda vontade humana: a conclusão da análise de Juliano não poderia ser outra, ou seja, Agostinho era pior que os maniqueístas, pois o era sem saber. Sabemos que esta controvérsia é de estrema importância para compreender o duelo internacional entre os bispos africanos e o pelagianismo, todavia, nossa pesquisa não tem tal debate como objeto de estudo. Tal trabalho poderá ser realizado em uma outra ocasião. 38 Agostinho será de grande valia, pois ela permitirá que tenhamos uma idéia de como os dois autores concebem o livre arbítrio do homem depois da queda. 1.3.1 – O monge Pelágio. Há disparidades de opinião sobre sua pátria. Não sabemos se ele nasceu na Irlanda ou na Inglaterra.102 Há hipóteses que teria nascido na Inglaterra, no entanto é filho de família irlandesa; nada se sabe sobre os primeiros anos de sua vida, nem de sua educação, no entanto, temos conhecimento que sabia ler e falar o grego.103 Seu nome era Morgam, mais tarde fora chamado de Bretão, depois Brito, e por morar em uma ilha, alguns o chamavam de Marinho, o que significa no latim Pelagius, homem-do-mar. Não se sabe precisamente a data que Pelágio chegou a Roma, no entanto, era comum os jovens migrarem para esta cidade com o objetivo de concluir seus estudos jurídicos. Em 375-380, foi batizado, iniciando sua vida monástica e pregação daquilo que tornaria sua doutrina.104 “Pelágio pregava uma vida autenticamente cristã.”.105 “Agostinho levara a vida de um sério leigo batizado por uns quatro anos, enquanto Pelágio o fizera por mais de trinta.”.106 Suas idéias iriam repercutir no contexto dos intelectuais cristãos de Roma, especialmente com Hilário de Siracusa e Flávio Marcelino que fizeram chegar até Santo Agostinho as primeiras informações das suas idéias. Com o saque de Roma, em 410, época na qual as idéias pelagianas ainda “[...] estavam muito distantes [...]”107 de Agostinho, Pelágio refugiou-se na África e depois para Jerusalém, onde se estabeleceu e propagou suas idéias.108 102 “Sabemos muito pouco sobre Pelágio. Como Agostinho, ele vinha de uma província: havia saído da GrãBretanha para Roma exatamente na mesma época em que Agostinho pôs os pés na Itália pela primeira vez, em busca de sua sorte.”. (Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 425 – 426). Roque Frangiotti em seu livro História das heresias afirma que Pelágio nasceu na Grã Bretanha. (cf. Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 113). 103 Angelo PAREDI, Vita de Saint’Agostino. Milano: O. R., 1989, p. 73 apud Marco Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 353. 104 Marco Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 352 – 353. 105 Mathijs LAMBEIGTS, O pelagianismo: um movimento ético-religioso que se tornou uma heresia e viceversa, p. 41. In: Concililium – Revista Internacional de Teologia. São Paulo: Vozes, 2003. Assim afirmará Roque Frangiotti: “[...] antes mesmo de se tornar monge, já era consagrado à vida austera, em busca da perfeição evangélica [...]”. (Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do cristianismo, p. 113). 106 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 426. 107 Ibid., p. 428. 108 Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 352. 39 Pelágio e Agostinho se conheceram pessoalmente na Conferência de Cartago no ano de 411. Mas antes disso, Santo Agostinho já o conhecia em função da repercussão de sua doutrina relatada por cartas de alguns amigos que reclamavam de suas pregações. Agostinho e Pelágio chegaram a trocar algumas cartas amigáveis. Mais tarde, Santo Agostinho iria ler a obra de Pelágio chamada Sobre e Natureza109, que conseqüentemente, resultaria em uma resposta de Agostinho na sua obra A natureza e a graça, escrita em 413 – 415110, mostrando assim, sua discordância e acusação de heresia à doutrina de Pelágio. Além da obra de Pelágio acima citada, este escreve outras duas: uma carta à Demetríade (412) e o Comentário sobre a Epístola de São Paulo, este sendo dirigido ao Papa Inocêncio I em 417.111 A carta direcionada por Pelágio a Demetríade era do conhecimento de Santo Agostinho que, preocupado com seus fiéis, escreve uma carta à mãe de Demetríade, Juliana, para parabenizá-las sobre a decisão cristã da filha de consagrar-se inteiramente a Deus e preveni-la sobre aquilo que o bispo de Hipona considerava o papel das idéias dos pelagianos, ou seja, “[...] corromper mesmo os que estão sadios.”.112 Demetríade tinha consagrado-se a Deus, por este motivo, Juliana, casada com Olíbrio, este porém, filho da grande matriarca Proba113, comunica este ilustre acontecimento aos grandes escritores cristãos do momento, desta maneira, não poderiam ficar de fora Agostinho e Pelágio. Na carta 188 escrita por Agostinho à Juliana, há uma citação da Carta a Demetríade escrita por Pelágio: Eis as palavras ditas nesse livro: “Tens aqui pelo que hás de ser posta à frente de todas as outras, e com razão. Ou melhor, aqui está a tua grandeza. Pois a nobreza corporal e a opulência pertencem aos teus e não a ti. Mas 109 Cf. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 428. Ibid., p. 352. 111 Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 353. Roque Frangiotti acrescenta, além das obras acima citadas, um tratado Sobre a fé e um escrito apologético sobre as Testemunhas bíblicas. (cf. Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do cristianismo, p. 113). 112 Santo AGOSTINHO, Carta 188 a Juliana. 2ª ed. trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1987, I, 3, p. 86. 113 Cf. Nair Assis de OLIVEIRA, Comentário e tradução. p. 9 – 10 In: Santo AGOSTINHO, Carta 188 à Juliana. 2ª ed. trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1987. Proba era uma nobre senhora da Roma imperial. Foi esposa de Probus, prefeito da cidade, este porém recebeu o batismo no seu leito de morte, onde se converteu ao cristianismo. Proba e Probus tiveram três filhos, entre eles Olíbrio, que se casou com Juliana. Esta era uma patrícia e juntos tiveram uma filha chamada Demetríades, a herdeira mais rica de Roma. Olíbrio vem a falecer, a viúva Juliana é ainda muito jovem. Em 410 os vândalos atacam Roma, desta maneira, a grande matriarca Proba e toda sua família fogem para Cartago, na África. É aí que conheceriam Santo Agostinho, este porém, bispo da vizinha Hipona. 110 40 ninguém pode lhe dar riquezas espirituais senão tu mesma. Logo, com razão, hás de ser louvada por isso, e seres preferida às demais, já que tais riquezas não podem estar senão em ti, nem proceder senão de ti.114 Na carta, Pelágio confere os louvores à jovem moça em função da sua decisão. “Grandeza”, “nobreza corporal”, “opulência”, são qualidades que o monge não economiza ao caracterizar o ato cristão de Demetríade. Mas porque Agostinho faz questão de enfatizar esta citação da carta de Pelágio? A escrita de Pelágio ressaltaria um aspecto fundamental da sua doutrina ao dizer que as riquezas de Demetríade somente poderiam “proceder senão de ti”, ou seja, o livre arbítrio e a própria natureza criada por Deus não foram corrompidos pelo pecado, desta maneira, a natureza é boa e digna de ser usada para realizar o bem. É diante desta afirmação que Agostinho continuamente acusará Pelágio: “Se isto foi ou é possível, eu também afirmo o que o Apóstolo disse a respeito da Lei: Então Cristo morreu em vão.”.115 A graça, para Agostinho, deve ser a fonte total de qualquer ato bom do ser humano. Percebemos aqui que há profundas influências daquilo que Santo Agostinho viveu em relação a sua experiência de conversão, pois, a graça que atuou sobre si arrastava e restabelecia a vontade, o homem, para Agostinho, deixado sobre suas próprias forças, só poderia fazer o mal. “Assim, toda a raça humana merece castigo.”.116 Vemos pela carta a Juliana que Pelágio difundia suas idéias e, com o tempo, nada o impediu de angariar alguns discípulos. Um deles seria Celéstio, que era advogado e mais tarde fora ordenado sacerdote em Éfeso. Ele foi um dos grandes propagadores do pelagianismo. “Foi Celéstio quem provocou a crise na África, não Pelágio.”.117 Celéstio era fiel discípulo de Pelágio, ele seria o futuro sistematizador das idéias do mestre, recebendo assim, duras críticas de Santo Agostinho. Quando o pelagianismo chegou a Cartago, o debate em curso, de maneira especial, com os Donatista, teve a intervenção de Celéstio, pois o pelagianismo tocava em profundos mistérios como a origem da alma, a relação da condição humana atual e o pecado de Adão e, conseqüentemente, o batismo infantil. Mais tarde, as idéias de Pelágio ganham fama no oriente, assim, o bispo de Cesáreia, Eutólio, convocou os bispos da região e realizou um sínodo em Dióspolis, no dia 20 de dezembro 114 Santo AGOSTINHO, Carta 188 a Juliana, II, 4, p. 87. Idem, A natureza e a graça. 2ª ed. v. I. trad. Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, II, 2, p. 113. 116 Ibid., V, 5, p. 115 117 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 428. 115 41 de 415. Estes não conseguiram refutar as idéias de Pelágio e desta forma, tanto Pelágio, quanto Celéstio, continuariam em comunhão com a igreja católica.118 Depois de tomar conhecimento do resultado do sínodo de Dióspolis, assustados com a proliferação do pelagianismo no oriente, Santo Agostinho e outros bispos africanos assinaram um documento elaborado pelo bispo de Hipona, no qual, condena veementemente as idéias de Pelágio. Este documento é enviado ao Papa Inocêncio I que no dia 27 de janeiro de 417 condenaria o pelagianismo. Com a morte do papa Inocêncio, sobe ao poder o papa Zósimo. Desta maneira, Pelágio e Celéstio aproveitam a oportunidade para recorrer à sentença e conseguem. O Papa repreende Agostinho e os bispos africanos, mas posteriormente, ratificaria mais uma vez a condenação a Pelágio e Celéstio. Depois disso, os dois desaparecem.119 Diante desta breve exposição da vida de Pelágio e algumas de suas idéias, verificaremos agora qual é a sua120 posição e de Agostinho sobre o pecado original e o livre arbítrio. Desta maneira, tentaremos detectar as mudanças que ressaltamos em nossa hipótese. 1.3.2 – Pelágio: pecado original e livre arbítrio. Pelágio ao chegar a Roma, espanta-se com a vida moral que o povo vinha levando. A irresponsabilidade do homem frente aos seus atos maléficos não era aceito de maneira nenhuma pelo monge asceta, desta maneira, “[...]considerava o determinismo maniqueísta como um perigo para a verdadeira ética cristã, que ao seu ver, somente poderia existir na medida que salvaguardassem componentes como a liberdade e a responsabilidade.”.121 A Igreja era considerada por ele como o Corpus Christi e o batismo implicava necessariamente em um compromisso dos fiéis. “Pelágio nunca duvidou, nem por um momento, de que a perfeição fosse obrigatória; seu Deus era, acima de tudo, um Deus que ordenava obediência sem questionamento.”.122 Pelágio defende a tese de uma natureza boa, pois esta foi criada pelo sumo Bem, que é Deus, origem de todas as coisas. Segue a citação de Santo Agostinho da obra de Pelágio Sobre a Natureza. 118 Cf. Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 353. 119 Cf. Ibid., p. 353. 120 A doutrina de Pelágio será analisada a partir das citações de Santo Agostinho. Nossa pesquisa, infelizmente, não teve um contato direto com as obras de Pelágio, se é que elas existem. 121 Mathijs LAMBEIGTS, O pelagianismo: um movimento ético-religioso que se tornou uma heresia e viceversa, 42. 122 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 427. 42 A possibilidade de não pecar não reside tanto no poder da vontade, como na necessidade da natureza. Tudo o que faz parte da natureza, não há dúvida que pertence ao autor da natureza, ou seja, Deus. [...] Como se há de considerar alheio a graça de Deus o que se comprova pertencer a Deus?123 Para Pelágio a natureza não sofre a corrupção do pecado de Adão.124 O pecado é uma possibilidade inerente ao homem, pois Deus não tira o livre arbítrio125 de maneira nenhuma, assim, está dentro da possibilidade humana de pecar ou fazer o bem. “Se a vontade é a causa do pecado, diziam os pelagianos, então por um ato da vontade o homem pode retornar ao bem.”.126 Pelágio ao sustentar que a natureza é criada por Deus, confere ao homem uma natureza boa, não corrompida, desta maneira, atribuir ao homem uma natureza pecaminosa seria, na opinião de Pelágio, dizer que Deus é a causa do mal. O mal é ausência de substância, logo, não poderia existir, pois Deus somente criou coisas boas. “E se assim é, como pôde enfraquecer e modificar a natureza o que carece de substância?”127, dirá Pelágio, usando de um mesmo argumento de Agostinho contra o maniqueísmo, visto que o mal, por não ser substância, não pode afetar o bem, ou seja, a substância. A idéia de uma natureza decaída seria maniqueia, ou seja, há uma substância do mal que corrompe o homem, este porém, não possuiria livre arbítrio, pois, submetido à uma natureza corrompida, seria sempre coagido a fazer o mal, uma espécie de fatalismo da vontade contaminada. “Pelágio, junto com seus seguidores, acreditava que no livre arbítrio da vontade está a chave para a solução de todas as perguntas que envolvem a problemática do mal.”.128 Mas o que seria o pecado para Pelágio? O pecado seria um possível mal uso do livre arbítrio mantido incorruptível, ou seja, flexível ao bem e ao mal, mesmo depois do pecado de Adão. Na obra A Graça de Cristo e 123 Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, LI, 59, p. 168. Ver Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do cristianismo, p. 118. 125 “Embora disponhamos do livre-arbítrio tão forte e firme, que foi implantado pelo Criador em toda natureza, somos fortalecidos ainda todos os dias por sua ajuda em sua inestimável bondade.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XXVIII, 29, p. 243). O livre arbítrio, mesmo depois do pecado, continua “forte” e “firme”, desta forma, o homem é capaz de realizar o bem, assim como o mal, por suas próprias forças. Deus, mesmo depois do pecado de Adão, não abandona o homem e, por sua bondade, dá o exemplo de Cristo, a doutrina e a Revelação. Desenvolveremos estes três pontos abaixo. 126 G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 169. 127 Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XIX, 21, p. 130. 128 Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 354. 124 43 o Pecado Original, Santo Agostinho cita a sentença pelagiana sobre onde o mal se manifesta. Distinguimos assim três elementos e os dividimos em uma ordem como que determinada. Em primeiro lugar, pomos o poder, em segundo o querer, em terceiro o ser. Pomos o poder na natureza, o querer na vontade, o ser na execução. O primeiro, ou seja, o poder, pertence exclusivamente a Deus e ele o outorgou à sua criatura; os outros dois, ou seja, o querer e o ser, referem-se ao ser humano, visto que se originam do livre arbítrio. Portanto, na vontade e na ação, glória é do homem pela prática do bem; ou melhor, do homem e de Deus, que lhe deu a possibilidade com o auxílio de sua graça.129 Pelágio faz inicialmente a distinção de três elementos: poder, querer e ser. A natureza, esta porém, criada por Deus e associada propriamente a graça, pertenceria exclusivamente ao poder outorgado por Deus e existente no homem, desta maneira, a graça ou poder de Deus é dada a todos os homens em seu ato criador, pois Deus, ao criar a natureza boa, insere a graça na criatura; a imagem e semelhança com Deus é mantida mesmo com o pecado original de Adão, pois “Pelágio não nega que Adão tenha pecado contra Deus.”.130 No entanto, na concepção de Pelágio, o pecado original não é transmitido atavicamente a toda criatura. Verificar-se-ia que estando sobre o controle da natureza humana o poder concedido por Deus, poder-se-ia dizer que a glória e o mérito de uma ação boa é do “[...] homem pela prática do bem; ou melhor, do homem e de Deus”. Desta maneira, a graça para Pelágio “[...] não é nada mais do que a confirmação ou justificação por parte de Deus dos méritos dos homens no uso de sua liberdade.”.131 A ação da graça não é direta, mas indiretamente, pois ela já está no homem e poderá ser exercida pelo seu livre arbítrio não corrompido.132 “Não precisa absolutamente da assistência 129 Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, IV, 5, p. 216-217. Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 374 131 Ibid., p. 375. 132 “Grande ajuda da graça divina, sem dúvida, que ele incline nosso coração para onde quiser. Mas esta grande ajuda nós a merecemos, conforme ele diz na sua loucura, quando, sem outra ajuda que a do livrearbítrio, corremos para o Senhor, desejamos ser dirigidos por ele, submetemos a nossa vontade à dele e, aderindo-lhe constantemente, constituímos com ele um só espírito.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XXIII, 24, p. 237). Deus que inclina o nosso coração, não por uma graça que vem de fora, mas uma graça que já está em nós e que faz parte do homem. Para Pelágio, a graça está presente na natureza humana criada por Deus. Desta maneira, ao fazermos o bem, temos mérito, pois fazemo-lo por um bom uso do livre arbítrio que age conforme a vontade de Deus. O desejo de ser dirigido por Deus é o nosso 130 44 divina. A graça não precisa entrar em campo.”.133 A graça não precisará entrar em campo porque já está em campo deste o ato criador de Deus. Verificar-se-ia na obra A Graça de Cristo e o Pecado Original de Santo Agostinho qual é a visão que Pelágio tem da graça. Deus nos ajuda pela sua doutrina e revelação, ao abrir-nos os olhos, revelar-nos o futuro para não sermos absorvidos pelo presente, descobrirnos as tramas do demônio, iluminarmos com o dom multiforme da graça celeste. [...] Quem assim afirma, parece-te que nega a graça? Não confessa o livre-arbítrio e a graça de Deus?134 A graça para Pelágio é intrínseca à natureza humana, pois esta foi criada por Deus e, caso não esteja no homem, este não teria livre arbítrio, o que seria, na visão de Pelágio, um absurdo, pois não poderíamos atribuir ao homem a responsabilidade de fazer o mal, assim, o homem seria coagido, opinião rejeitada por ser maniqueísta. O livre arbítrio, para Pelágio, possui o poder de fazer o bem e o mal.135 O homem também possui a “doutrina” e a “revelação” que poderiam ser usados, caso venha a querer, como uma força a mais para fazer o bem. O poder para fazer o bem, a doutrina da Igreja e a Revelação são atributos da graça para Pelágio. Desta forma, a graça para não pecar consiste “[...] ou na natureza e no livre arbítrio, ou na lei e na doutrina.”.136 Para ele, houve humanos que viveram, antes da vida de Cristo, e são considerados justos, desta maneira, concluir-se-ia que está na capacidade da natureza humana fazer o bem, todavia, com Jesus Cristo e “[...] com o auxílio do Espírito Santo, resistamos mais facilmente ao espírito maligno.”.137 Esta é a análise do poder que Deus concede ao homem. Já o querer pertenceria a vontade e o ser ao fazer, ou realização do ato. Estes fariam parte somente do homem, pois são eles que garantem o livre arbítrio. Para Pelágio, o homem tem o poder ou possibilidade dada por Deus de fazer o bem, conseqüentemente, o próprio desejo de usar daquilo que Deus nos concedeu, deste modo, formamos com ele um só espírito. Verificamos que o homem é absolutamente responsável pelo bom ou mal uso do livre arbítrio. 133 G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 169. 134 Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, VII, 8, p. 221. 135 “Para Pelágio, todo cristão está capacitado a praticar as virtudes, a alcançar a santidade. É chamado a seguir Cristo nas escolhas da virgindade e castidade e a possibilidade de poder fazê-lo se dá na liberdade de cada um.”. (Roque FRANGIOTTI, História das heresias: séculos I-VII: conflitos ideológicos dentro do cristianismo, p. 118). O compromisso com o evangelho é a pedra angular da espiritualidade de Pelágio. Suas idéias reivindicavam uma austeridade moral e fraterna aos princípios do evangelho. A cumplicidade pelagiana influenciou mosteiros e famílias nobres de Roma que, com a invasão de Roma pelos “bárbaros” liderada por Alarico em 410, refugiam-se na Sicília e na África. 136 Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, III, 3, p. 215. 137 Ibid., XXVII, 28, p. 242. 45 querer o bem e o fazer o bem dependerá da responsabilidade do próprio homem, pois, o poder, que é de Deus e capacita a criatura a querer o bem e fazer o bem, encontrar-se-ia em toda humanidade, desta maneira, “[...] não posso deixar de ter a possibilidade do bem”138 dirá Pelágio, já que o contrário disso implicaria na coação e irresponsabilidade na realização dos atos maléficos. A responsabilidade do mal era um argumento destacado por Pelágio que trazia problemas para Agostinho, como ressalta G. R. Evans: “Aí está a fonte do embaraço de Agostinho nos últimos anos. Os pelagianos podiam considerar o De libero arbitrio como um passo da parte de Agostinho em sua direção.”.139 Na obra de Agostinho O livre arbítrio encontramos proposições pelagianas lisonjeando a vontade humana em fazer o bem e o mal. É desta forma que Evans, ao comentar a controvérsia entre Pelágio e Agostinho, destaca que o último cai no fatalismo maniqueu. Diante deste quadro, no qual o livre arbítrio continua forte e flexível ao bem e ao mal, o que representa Adão e Jesus Cristo para Pelágio? Em resposta a esta pergunta o comentador de Santo Agostinho Marcos Roberto Nunes Costa, resume as idéias pelagianas sobre este tema: Ou seja, Adão, primeiro pecador, é apenas um exemplo que os homens têm seguido por livre vontade. O homem aprendeu a pecar a partir de Adão. E da mesma forma que acontece com o pecado, o mesmo se dá quanto ao remédio do pecado. Para Pelágio Cristo é apenas um modelo a ser seguido pelos homens para livrarem-se do pecado.140 Para Pelágio, o pecado é a imitação do modelo adâmico corruptível, ou seja, de um ser humano que usa mal do livre arbítrio que Deus outorga ao homem. Adão é o mais forte exemplo de desobediência a Deus e de mal uso da liberdade.141 Jesus Cristo também é modelo, mas este é totalmente contrário ao de Adão, pois Cristo é um modelo moral e 138 Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, IV, 5, p. 217. G. R. EVANS. Agostinho sobre o mal, p. 169. Ver as páginas 58 – 59 quanto as idéias desenvolvidas por Agostinho na discussão com os maniqueus na qual ele afirma o poder, o querer e o fazer como capacidades intrínsecas à natureza humana depois do pecado. Tal afirmação concorda de bom grado com as afirmações de Pelágio. 140 Marco Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 374. 141 “O que importa ao assunto em pauta o fato de Pelágio responder a seus discípulos ‘que ele condenou o que se lhe objetava, se ele mesmo afirma que o primeiro pecado prejudicou não somente o primeiro homem, mas também os demais seres humanos, não devido a descendência, mas ao exemplo’ [...]”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XV, 16, p. 280 – 281). Agostinho cita a afirmação de Pelágio que considera o pecado de Adão um mal exemplo a ser seguido e, por este motivo, prejudica a humanidade, não por sua transmissão a todo gênero humano, mas a capacidade humana de imitar o exemplo de Adão. 139 46 integro a ser seguido.142 “Segundo ele, a vontade dos homens podia ser “impactada” a agir pelo bom exemplo de Cristo e pela terrível sanção do fogo do inferno.”.143 Através deste elementos, aprendemos a livrar-nos dos pecados e alcançar a perfeição, desta maneira, não precisaríamos de uma ajuda externa da graça, pois é o uso do livre arbítrio, ou seja, uma ato deliberado e responsável, a peça chave para a salvação.144 Como muitos reformadores, os pelagianos depositaram no indivíduo o peso assustador da liberdade completa: ele era responsável por todos seus atos; portanto, todo pecado só podia ser um ato deliberado de desprezo por Deus.145 A preocupação com a responsabilidade do homem frente seus atos era o foco de Pelágio, assim como Santo Agostinho em debate com os maniqueus em sua obra O livre arbítrio. A natureza é boa, não há transmissão do pecado original, e só depende do homem fazer bom uso dela. Sendo o pecado de Adão não transmissível ao resto da humanidade, o batismo para Pelágio não teria uma importância tão capital, pois, ele tem como função apagar a mancha do pecado original.146 “Era extensão perfeitamente lógica do ensino de Pelágio. Se não existe nenhum vício inerente na criança recém-nascida, nada existe para ser purificado pelo batismo.”.147 Diante disto, para quê o batismo se não nascemos com pecado nenhum? É uma conseqüência lógica, como afirma Evans, a não necessidade do batismo, pois as 142 “Antes da Lei, como dissemos, e muito antes da vinda de nosso Salvador, consta que alguns viveram na justiça e na santidade. Com muito mais razão é de se crer que isso nos seja possível pelo esclarecimento obtido após sua vinda. Após sua vinda, regenerados pela graça, renascemos para nos tornar seres humanos mais perfeitos; remidos e purificados pelo seu sangue e estimulados à perfeição da justiça pelo seu exemplo, devemos ser melhores do que aqueles que existiram antes da Lei.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XXXVIII, 42, p. 252 – 253). Esta é uma citação das palavras de Pelágio que considera Cristo um exemplo a ser seguido para tornar-nos “mais perfeitos”, ou seja, já somos perfeitos em função de sermos cridos por Deus, desta maneira, Jesus Cristo é uma força a mais – plus – para o homem agir bem. 143 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 463. 144 Cf. Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 375. 145 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 434. 146 Agostinho conta a necessidade do batismo sustentada pela igreja católica: “De acordo com esse ensinamento, ela batiza realmente as crianças para a remissão dos pecados, não os que cometeram seguindo o exemplo do primeiro pecador, mas o que contraíram, ao nascer, pela origem viciada.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XVI, 17, p. 282). A função do batismo na Igreja católica, descreve Santo Agostinho, é a remissão do pecado original transmitido pelos pais. Pelágio não nega o batismo, mas atribui a ele um outro valor, ou seja, uma força que colabora na ação do bem, esta se manifesta frente ao compromisso do cristão ao ser batizado. 147 G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 182. 47 crianças não cometeram nenhuma infração que as possa corromper.148 No entanto, Pelágio não nega o batismo das crianças149, mas este tem um outro sentido. Santo Agostinho verificaria que a posição de Pelágio e Celéstio – este último, como já foi dito, fiel discípulo de Pelágio – são as mesmas150 e condena as conclusões de suas idéias, estas porém, manifestas pelos escritos de Celéstio. Não dissemos que as crianças devem ser batizadas para a remissão dos pecados, como se estivéssemos ensinando a transmissão do pecado; esta doutrina é bem contrária ao pensamento católico. Pois o pecado não nasce com o ser humano, mas é praticado depois; prova-se que o delito não está entranhado na natureza, mas na vontade. É conveniente confessar o anterior (o batismo), para não parecer que estamos estabelecendo diversos gêneros de batismo. É necessário tomar esta precaução para evitar que, em se tratando de um mistério, se diga com injúria ao Criador, que o mal, antes de ser praticado pelo homem, é transmitido pela natureza.151 Santo Agostinho afirma que trazemos luz às afirmações de Pelágio por seu corajoso discípulo Celéstio. Vemos que quando os pelagianos afirmam o batismo conferem a ele um sentido misterioso152, pois, o Criador pediu para que batizássemos, no entanto, seria um sacrilégio dizer que este batismo dar-se-ia em função da obliteração da mancha de um pecado original. “O pecado não nasce com o ser humano”, o homem não é um ser que nasce corrompido, mas sua vontade que poderá delinear o caminho a seguir. O bom ou mal uso da vontade por um livre arbítrio não corrompido é a causa do pecado ou mérito das ações do homem, logo, se não há contaminação da vontade em função do pecado do primeiro homem, não há necessidade do batismo. Poderíamos dizer que o batismo é o acréscimo de mais um poder concedido por Deus ao homem, para que este possa fazer bom uso de seu livre arbítrio e também uma marca da responsabilidade do cristão de viver a 148 Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 381. 149 Cf. Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, V, 5, p. 269 – 270. 150 “Mas entendo que, com razão, já se me pede, conforme prometi, não diferir a prova de que Pelágio tem a mesma opinião de Celéstio.”. (Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XIII, 14, p. 278). 151 Ibid., VI, 6, p. 270 – 271. 152 “As crianças que morrem sem batismo, sei aonde não vão; mas não sei aonde vão.”. (Ibid., XXI, 23, p. 287). Esta frase foi atribuída a Pelágio por alguns irmãos de Agostinho. Ele interpreta esta citação como um mistério acerca do batismo que Pelágio não consegue resolver. Ele diz que Pelágio sustenta que as crianças não batizadas não vão para o reino dos céus, mas o mistério se estabelece na medida em que não se sabe para onde estas crianças vão, já que não cometeram nenhum mal nem contraíram a contaminação do pecado original, portanto, Pelágio não admitia que elas fossem para o inferno e, por este motivo, incomodava Agostinho. 48 moral evangélica. Esta idéia está de acordo com aquilo que Pelágio considera como graça de Deus, ou seja, a doutrina da Igreja. Assim, ao fazer uso dela, a ação tornar-se-ia mais fácil. É uma hipótese que o batismo possa ser visto desta maneira por Pelágio, mas o caráter misterioso do pedido do Deus cristão para batizar ainda continua sendo uma incógnita, pois, como o próprio Pelágio afirma, há crianças que não tiveram a oportunidade de ser batizadas153 e mesmo assim, ele não diz que estas foram, por este motivo, condenadas ou salvas. O caso das crianças é problemático por se tratar de humanos que, na visão de Pelágio, não pecaram, todavia, perguntamos: e quando o homem peca, receberá e redenção ou ela já está nele? Para Pelágio a oração é algo que o homem pode fazer uso pedindo o perdão de suas faltas. “Pelágio faz consistir esta misericórdia e esta ajuda medicinal do salvador somente no perdão dos pecados cometidos e nega a necessidade da ajuda para se evitar os futuros.”.154 A natureza humana não pode perdoar os pecados humanos, desta maneira necessitar-se-ia recorrer a Deus.155 No entanto, a oração não serve para prevenir os pecados, pois isto, certamente, feriria o livre arbítrio. Em suma, para Pelágio, o pecado de Adão aconteceu e tornou-se modelo do mal uso da liberdade humana, esta porém, não foi corrompida com o pecado do primeiro homem e possui o poder outorgado por Deus para fazer o bem, pois a corruptibilidade de Adão não foi transmitida a toda a humanidade, sendo assim, a natureza é boa. Portanto, o livre arbítrio continua flexível para o bem e para o mal e cabe ao homem fazer bom uso do poder de comandar sua vontade e fazer o bem. Veremos agora a doutrina defendida por Agostinho quanto ao pecado original e o livre-arbítrio 1.3.3 – Santo Agostinho: pecado original e livre-arbítrio. É no debate com o pelagianismo que Agostinho ganharia fama internacional: a voz da Igreja não viria de Roma, mas da África, por um grupo de meninos que no passado desfilavam nas florestas da Numídia caçando passarinhos e que agora, como bispos e padres, compunham um bloco fortíssimo contra as heresias. Agostinho não tinha dúvida que Pelágio era um adversário forte, assim como seus argumentos. “Pela primeira vez em 153 Cf. Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, VIII, 9, p. 118 – 9. Ibid., XXXIV, 39, p. 149. 155 Cf. Ibid., XVIII, 20, p. 129. 154 49 sua carreira de bispo, viu-se confrontado com adversários de calibre igual ao seu [...]”.156 Pelágio e Agostinho foram os atores principais de um debate que um posicionamento somente da camada intelectual, mas que exigiria uma posição do simples cristão, gerando uma crise espiritual em todo a Ocidente.157 Neste debate, a origem do mal e sua relação com a vontade era um ponto importante, por exemplo, para o entendimento do conceito de livre arbítrio e sua relação com o pecado original. Em nossa análise da concepção de pecado original em Agostinho, não encontramos mudanças entre a concepção do mesmo nos diferentes contextos que estamos analisando, ou seja, na discussão com os maniqueístas e pelagianos. Por este motivo, citaremos passagens de obras referentes aos dois contextos. Nosso objetivo é mostrar que a concepção de pecado original sempre esteve no horizonte do Agostinho cristão. Portanto, vejamos a concepção agostiniana. 1.3.4 – O pecado original. Santo Agostinho também partilha da idéia que Deus é o sumo bem, como já vimos, e tudo que Deus criou é bom por excelência158, como o homem, que gozava de plena perfeição e liberdade, flexível ao bem e ao mal, antes do pecado. “A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício.”.159 Mas depois da queda, causada pela desobediência do primeiro homem – Adão – à ordem de Deus160, ele ver-se-ia 156 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 430. Ibid., p. 460. Afonso M. A. SOARES e Maria Angela VILHENA no livro O mal: como explicá-lo? fazem uma abordagem acerca do problema do mal em diferentes culturas. Eles sublinham que o homem ao mesmo tempo que produz cultura também é produzido por ela, desta maneira, a abordagem antropológica nos seus diferentes contextos traz consigo diferentes resposta para o problema do mal: o mal enquanto expressão simbólica na babilônia é associado à tempestade; o mal enquanto impureza, pecado ou culpa; as diferentes configurações divinas do mal, sublinhando que na medida que aumenta a quantidade de males, cresce proporcionalmente a quantidade de deuses; por último, as manifestações míticas do mal e seus modelos teogônicos, adâmico, trágico e órfico. Todavia, destacamos a importância que os autores concedem ao pecado original na tradição cristã fazendo referência a Santo Agostinho: “No Ocidente fomos acostumados a uma explicação moral para o mal. Sempre foi usual, pelo menos, desde Santo Agostinho, remontar a certa leitura do mito judaico de Adão. Porque o primeiro casal humano pecou, desde então o alimento tem sido obtido com o suor da fronte e as mulheres, no mágico momento de trazer à luz uma nova vida, nunca escapam da dor.”. (Afonso M. A. SOARES e Maria Angela VILHENA, O mal: como explicá-lo? São Paulo: Paulus, 2003, p. 12). O pecado original com suas raízes semitas é absorvido em todo ocidente e explorado detidamente por Santo Agostinho. O sistema de sentido produzido pela descrição do Gênesis organiza – ao mesmo tempo que confere sentido – toda existência do mal em um mundo criado por um Deus bom. 158 “Com a plenitude da vossa Bondade subsistem as criaturas [...].”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, XIII, II, 2, p. 259). Para Agostinho o Deus cristão é sempre um criador benevolente: “Cada uma das criaturas separadamente era boa. Porém, consideradas em conjunto, eram não só ‘boas’, mas até ‘muito boas’.”. (Ibid., 43, p. 283). 159 Idem, A natureza e a graça, III, 3, p. 114. 160 “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente. Mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia que comeres, certamente morrerás.”. (Gên 2, 16-17, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica 157 50 enlanguescido na injustiça, no ódio e longe do Criador.161 Depois da queda o homem perdeu sua primeira condição santa, justa e forte. Vejamos o que o pecado causou ao homem na visão de Agostinho. Mas a atual natureza, com a qual todos vem ao mundo como descendentes de Adão, tem agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O sumo Deus é o criador e autor de todos os bens que ela possui em sua constituição: vida, sentido e inteligência. O vício, no entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu criador ao qual não cabe culpa alguma. Sua fonte é o pecado original que foi cometido por livre vontade no homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com justiça a condenação.162 Santo Agostinho faz uma descrição da condição do homem depois do pecado. Todos os homens são descendentes de Adão, desta forma, assim como Adão é pai de toda humanidade, pelo seu pecado, torna-se causa de todo pecado. “Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram.”163 diz São Paulo (Rm 5, 12) citado por Santo Agostinho. O pecado, desta forma, é transmitido atavicamente à toda criatura e não estamos livres dele pelas forças da natureza, pois esta está corrompida. A natureza humana encontra-se doente, agora precisaria de um médico que possa restabelecer a saúde, desta maneira, o remédio não está no próprio homem. “Assim, para Agostinho, a liberdade só podia ser a culminação de uma processo de cura.”.164 O Mediador, Jesus Cristo, faria este papel savífico mediante a sua misericórdia.165 “De quem procede a misericórdia? Não é daquele que enviou Jesus do Brasil, 1969). Diante desta ordem de Deus, lembramos das citações que Santo Agostinho faz do apóstolo Paulo na carta aos Romanos, em sua obra O espírito e a letra: “Eu não teria conhecido a concupiscência se a lei não tivesse dito: Não cobiçarás.”. (Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, IV, 6, p. 22). Para o apóstolo Paulo, assim como para Santo Agostinho, não há pecado se não há lei, esta tem o objetivo de acusar. 161 “E vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também ao seu marido, e ele comeu com ela. Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.”. (Gên 3, 6-7, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969). 162 Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, III, 3, p. 114. 163 Rm 5,12 apud Santo AGOSTINHO, A natureza e graça, XXXIX, 46, p. 156. 164 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 465. 165 “A intenção do Apóstolo foi ressaltar a graça que veio por Jesus Cristo perante as demais nações. Depois de dizer que o pecado e a morte contaminaram todo o gênero humano por meio de um só homem e que a justiça e a vida eterna vieram por um só homem, sendo aquele Adão e insinuando ser este Jesus Cristo [...].”. (Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, VI, 9, p. 25). Se Adão é visto como causa da morte, Jesus seria o 51 Cristo a este mundo para salvar os pecadores [...]?”.166 Esta porém, destinada àqueles que Deus predestinou e escolheu por sua infinita justiça e infinita misericórdia, pois, “[...] toda raça humana merece castigo.”167 Depois do pecado de Adão, “o vício” enfraqueceria a natureza, cobrindo-a de trevas, sendo o Mediador a luz para as trevas e a cura para uma natureza doente. Deus não é, para Agostinho, causa do pecado, pois foi o próprio homem que fez mal uso do livre arbítrio que Deus o concedeu no momento da criação, desta maneira, a fonte de todos estes males “é o pecado original que foi cometido por livre vontade do homem”. Antes da queda o livre arbítrio era flexível para o bem e para o mal, mesmo com o pecado o homem continua com seu livre arbítrio, mas este totalmente diferente daquele que se encontrava no primeiro homem, agora suas escolhas se restringem a uma gama de amores viciosos e maléficos. “O meu amor é meu peso. Para onde quer que eu vá é ele que me leva.”.168 O pecado corromperia a natureza e afastaria o homem do sumo Bem, Deus. Desta maneira, fazer-se-ia necessário distinguir o que Santo Agostinho entende por natureza. Igualmente, quanto ao termo “natureza”. Entendemos de um jeito, quando falamos em sentido próprio, isto é, a respeito da natureza específica, na qual o homem foi primeiramente criado no estado de inocência. De modo diferente, entendemos o termo “natureza” quando tratamos dessa natureza na qual como conseqüência do castigo imposto ao primeiro homem, após sua condenação, nascemos mortais, ignorantes e escravos da carne [...].169 remédio regenerador de uma natureza corrompida em função do pecado de um só homem. Por um só homem veio o pecado e por um só Mediador – Jesus – veio a salvação. 166 Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, V, 5, p. 116. 167 Ibid., V, 5, p. 115. 168 Idem, Confissões, XII, IX, 10, p. 264. Usamos desta citação da obra Confissões para mostrar como o mal para o homem pecador é preferível ao bem que Deus deseja. Esta obra é escrita antes da querela pelagiana, todavia, nela já podemos ver como o pecado alicia o homem para Santo Agostinho. 169 Idem, O livre-arbítrio, III, XIX, 54, p. 212. Esta citação, sendo tirada da obra O livre arbítrio, na qual Agostinho dialoga com os maniqueus, pareceria indicar que o autor intui ou já conhece a heresia pelagiana. Apesar de ser um forte indício de um argumento contra o pelagianismo, não me parece plausível afirmar categoricamente tal hipótese. A tentativa de descrição do homem antes e depois da queda nesta obra pode, sem nenhuma contradição, fazer parte dos argumentos de Agostinho contra os maniqueus. Ele explica a condição do homem antes e depois do pecado, mas não descreve efetivamente como o livre arbítrio se encontra depois da queda, o que supomos que o livre arbítrio é como ele sustenta diversas vezes no livro: “Assim, quando Deus castiga o pecador, o que te parece que ele diz senão estas palavras: “Eu te castigo porque não usaste de tua vontade livre para aquilo a que eu te concedi a ti”? Isto é, para agires com retidão.”. (Ibid., II, I, 3, p. 75). A “escravidão da carne” que ele destaca na citação que fizemos no corpo do texto não impede que Agostinho tenha em mente que o livre arbítrio é a força necessária que o homem possui para fazer o bem ou o mal conforme a escolha da sua vontade. Portanto, não é mencionada a graça, somente uma distinção do estado de natureza do homem, distinção esta que será de grande valia para Agostinho nas discussões pelagianas nas quais, em todo argumento, a hegemonia da graça seria sublinhada veementemente. 52 O termo “natureza”, como relata o próprio autor, pode ser entendido de duas maneiras específicas. A primeira seria aquela que se refere a uma natureza antes do pecado de Adão e, a segunda, depois do pecado. O estado que se encontrava e que se encontra o homem tem como ponto de referência Adão. O primeiro termo natureza é aquele da inocência, seria o homem saído das mãos de Deus, bom, saudável, forte, sem mácula, contemplando Deus face a face. Adão era o mais perfeito dos homens e não havia como superá-lo. O segundo modo, seria aquele que caracterizaria o homem depois do pecado de Adão, castigado e condenado por Deus à morte, sendo assim, “mortal”, “ignorante” e “escravo”. Se antes do pecado o homem desfrutava da imortalidade, através da bondade de Deus em seu ato criador, da sabedoria, por contempla-LO face a face, e liberdade em sua capacidade de escolha, com o pecado, estes adjetivos tornar-se-iam contrários àqueles do primeiro estado de natureza, de maneira especial naquilo que diz respeito ao livre arbítrio na discussão pelagiana, pois este será visto como capaz somente do mal quando deixado sob o comando de suas próprias forças. “Dessa maneira, aprouve, muito justamente a Deus, que governa soberanamente todas as coisas, que nascêssemos daquele primeiro casal, com ignorância e dificuldade no esforço e na mortalidade.”.170 Pela justiça de Deus os homens são condenados a viver ignorantes e mortais. “Isso porque ao pecarem foram precipitados no erro, na dor e na morte.”.171 As características do primeiro estado de natureza em Santo Agostinho são diferentes do segundo estado de natureza, logo a aplicação dos termos também se diversifica. É importante ressaltar que Santo Agostinho não fala de duas naturezas, pois, desta maneira, cairia em contradição com a tese de que Deus não é causa do pecado. Se Deus criasse as duas naturezas, a primeira não haveria problemas, pois trata-se de uma natureza boa, no entanto, a segunda natureza criada seria corrompida e Deus não poderia criar nada corrompido, mesmo porque, a corrupção nada mais é do que a ausência de Deus, ou seja, aquilo que Agostinho chama de mal.172 Diante desta distinção do conceito de natureza construída ainda quando dialoga com os maniqueus, Santo Agostinho estaria apto para, mais tarde, responder à intervenção Na obra O livre arbítrio não há menção da graça, o objetivo é responsabilizar o homem pelo mal que faz e conceder mérito àquele que faz o bem. 170 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, III, XX, 55, p. 212 – 213. 171 Ibid., III, XX, 55, p. 213. 172 Ver no capítulo II, itens 1.1 e 1.2, a concepção agostiniana de Pascal acerca de uma mesma natureza que é corrompida pelo pecado, ou seja, não se trata de duas naturezas, uma santa e outra pecadora, mas de um mesmo estado de natureza que era santo e se corrompe. 53 de Pelágio173 que, diante da afirmação de Santo Agostinho que a natureza, depois do pecado de Adão, é má, acusa-o de substancializar o pecado, o que é o mesmo que substancializar o mal. Se dermos por certo que o pecado não é substância, não se diria também que o não comer, para não falar de outras coisas, não é substância? Dir-seia melhor que é o privar-se da substância, pois o alimento é substância. Mas o abster-se de alimento não é substância, mas a substância corporal, se se priva do alimento, de tal modo se enfraquece, deteriora-se pelo desequilíbrio da saúde, consomem-se suas forças, se extenua e se abate pela lassidão que, se de algum modo continua vivendo, mal poderá se acostumar novamente ao alimento, cuja abstenção foi causa de sua ruína.174 O pecado não é substância, assim como o não comer não é substância. Mas o que é substância para Santo Agostinho? “[...] Deus é substância [...].”.175 O nome “substância”, que problematiza aquilo que seria o mal, é dado porque, sendo a substância algo que subsiste por si mesmo, ou seja, Deus, o mal não poderia ser substancializado de maneira nenhuma, e nisto concordam tanto Agostinho quanto Pelágio. Para sair da acusação da substâncialidade do mal por Pelágio, Santo Agostinho recorre a uma analogia: “o não comer”. O não comer não é substância, mas é o “privar-se da substância”, pois neste caso, o que caracteriza a substancialidade é o alimento. O alimento, para Agostinho, não é Deus – em um sentido panteísta –, pois, não podemos esquecer que esta passagem é uma analogia metafórica. Sendo o alimento a substância, privar-se dele deteriorizaria o corpo e, conseqüentemente, “desequilibraria a saúde” minando as forças e consolidando um estado de cansaço que causaria a morte. Mesmo “o não comer” não sendo uma substância, ele é capaz de deteriorar o corpo, assim como o pecado que, mesmo não sendo uma substância, pode corromper o corpo. Será necessário o alimento para novamente estabelecer o corpo em seu estado de saúde, da mesma forma que precisar-se-á, para estabelecer a alma, da cura de seus males. O pecado original, fonte de todos os males, prejudica ativamente o homem, desta maneira, devemos temer tudo aquilo que é pecaminoso, pois “[...] com esse nome se expressa o ato de uma 173 “E Pelágio retruca: [...] Como pôde macular tua alma o que carece de substância?”. (Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XIX, 21, p. 130). 174 Ibid., XX, 22, p. 131. 175 Ibid., XX, 22, p. 131. 54 má ação.”.176 Santo Agostinho tenta livra-se das acusações de maniqueísta por parte dos pelagianos, pois, se fosse afirmado uma substancialidade ao mal, conseqüentemente Deus, que é criador de tudo, seria criador do mal, no entanto, como de Deus nada provém que não seja bom, o mal existiria per si, como uma entidade absoluta. Sendo o mal manifesto na corrupção da matéria e esta criada por Deus, poderíamos supor que o mal é transmitido pela matéria? Vejamos a explicação de Costa. Logo, o ponto de partida para a explicação de como se deu a transmissão do pecado original de Adão aos seus descendentes só pode estar na alma, e o pecado só pode partir da alma para o corpo, uma vez que, [...] o corpo é um bem neutro, um elemento passivo ou um mero instrumento a serviço da alma, que pode servir-se dele tanto para o bem como para o mal.177 O corpo em Agostinho é passivo, ele recebe as inerências da alma que o corrompe, desta maneira, a corrupção atávica dar-se-ia “na alma”, pois ela é infectada pelo pecado de Adão e transmite este pecado para toda humanidade. Mas de onde vem alma?178 Difícil resposta. Todavia, uma coisa é certa: o mal tem como causa o pecado original. Mas antes de tentar resolver o atavismo do mal, Santo Agostinho encontraria um outro problema: o livre arbítrio. Deus não poderia ser causa da queda, nem o homem coagido a pecar, o pecado porém, insere-se na alma, desta maneira, qual a origem do pecado de Adão – a causa é o homem ou há outra causa, perguntará Agostinho – e como ficaria sua capacidade de escolha depois da queda? Neste momento é necessário ressaltar uma diferença importante na obra de Santo Agostinho: a diferença entre o livre arbítrio e a liberdade. Iniciemos esta distinção pelo conceito de liberdade na discussão com os maniqueus. 1.3.5 – O conceito de liberdade na discussão com os maniqueus. Vejamos a passagem da obra O livre arbítrio que destaca claramente a concepção agostiniana de liberdade na discussão com os maniqueus. 176 Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XIX, 21, p. 130. Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 368. 178 Podemos dizer que a origem da alma ficaria sem uma resposta definitiva até o final de sua vida, mesmo sabendo que Agostinho propôs algumas hipóteses do surgimento da alma, como vimos acima. 177 55 Eis no que consiste a nossa liberdade: estarmos submetidos a esta Verdade. É ela o nosso Deus mesmo, o qual nos liberta da morte, isto é, da condição de pecado. Pois a própria Verdade que se fez homem, conversando com os homens, disse àqueles que nela acreditavam: “Se permanecerdes na minha palavra sereis, em verdade, meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”. (Jo 8, 31.23). Com efeito, nossa alma de nada goza com liberdade se não goza com segurança.179 A liberdade é definida teologicamente. Deus é a Verdade e somos verdadeiramente livres quando submetidos à esta Verdade, assim, estamos livres do pecado e, conseqüentemente, da morte. Esta passagem da sua obra O livre arbítrio é escrita quando o autor ainda argumentava contra a heresia maniqueísta, desconhecendo os argumentos do pelagianismo, assim, a liberdade é estar submetido à “Verdade que se fez homem”, ou seja Cristo. Uma resposta aos maniqueus que diferentemente dos cristão se submetiam às palavras de Mani. É Cristo que nos liberta da morte, não Mani. A morte é a marca da condição de pecado do homem, não de uma substância maligna que coage o homem. É preciso ressaltar que Santo Agostinho concorda com a idéia bíblica que o pecado trouxe ao gênero humano a morte, algo que será afirmado na discussão com os maniqueus, e com maior ênfase na querela pelagiana. Assim, no contexto em que escreveu O livre arbítrio, a referência de Santo Agostinho para definir aquilo que ele entende por liberdade é o evangelista João; ele ressalta a submissão à palavra de Jesus Cristo como meio de conhecer a verdade e, assim procedendo, estaríamos libertos. É Cristo que poderia dar total segurança para obter a liberdade; não se trata de uma liberdade diminuta, mas de uma liberdade total que não lançaria o homem a morte, ou seja, ao pecado, mas transformaria a ação do homem encaminhando tais ações para o cumprimento dos preceitos cristãos. Portanto, no contexto no qual discute com os maniqueus, a liberdade é definida como submissão a Deus, à palavra de Deus, a Cristo que se encarnou, se fez homem, promulgou a verdade na qual todo homem deveria se submeter. No entanto, a idéia de uma liberdade associada a graça seria construída gradativamente no pensamento agostiniano e se manifestaria em sua discussão com os pelagianos. Vejamos agora a nova concepção do conceito de liberdade nas controvérsias pelagianas. 179 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, XIV, 37, p. 121. 56 1.3.6 – O conceito de liberdade nas controvérsias pelagianas. Para o Agostinho que argumentava com os pelagianos, Deus resgataria o homem do pecado através do seu Espírito Santificador. Desta maneira, ele escreve em sua obra O espírito e a letra em 412180, primeira obra depois de tomar conhecimento da heresia pelagiana, em 411 – pelas cartas de Flávio Marcelino, um comissário imperial –, que a heresia pelagiana estava se espalhando em Cartago181: “Pois o Senhor é Espírito, e onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade (2Cor 3,17). Este é o Espírito de Deus, cujo dom nos justifica, que nos leva a ter prazer em nos abstermos do pecado, no qual consiste a liberdade.”.182 Mudança gradativa de um pensador que exalta a progressão do pensamento!183 Onde se encontra o Espírito de Deus, a liberdade fazer-se-ia presente libertando o homem dos grilhões do pecado. O conceito de liberdade está intimamente ligado com o conceito Deus, desta maneira, estar imerso na liberdade é, para Santo Agostinho, estar possuído pela graça de Deus. Graça e liberdade passam a ter uma relação de causa e efeito no sistema Agostiniano contra o pelagianismo. Em uma outra obra chamada A graça e a liberdade184 (426 – 427)185 escrita para os monges de Hadrumeto, os quais encontravam problemas na relação entre a graça de Deus e a liberdade, Agostinho diz: “Portanto, a vitória obtida sobre o pecado é também dom de Deus, o qual neste combate, vem em auxílio da liberdade.”.186 A capacidade de escolha do homem depois da queda é mantida, todavia as escolhas que o homem poderá fazer é a que mal ele escolherá.187 A vitória sobre o pecado é dom de Deus, desta maneira o mérito humano é a própria glória de Deus que se manifesta no homem. “Portanto, se os teus méritos são dons de Deus, ele não coroa os méritos como teus, mas como dons que são dele.”.188 Portanto, constatamos, nas diferentes obras analisadas, uma mudança na definição do conceito de liberdade: Na obra destinada aos maniqueus – O livre arbítrio – a liberdade é conceituada como submissão à palavra, à Verdade, a Cristo; já nas obras pelagianas a 180 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 352. Ibid., p. 352. 182 Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, XVI, 28, p. 49. 183 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 441. 184 Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002. 185 O pelagianismo já tinha sido condenado e Agostinho já de idade avançada tinha amadurecido seu pensamento quanto a querela pelagiana 186 Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade, IV, 8, p. 33. 187 A ação salvífica visa fazer retornar a vontade humana ao seu equilíbrio original, capaz de escolher livremente entre o bem e o mal. “Depois da queda, só podia escolher o mal.”. (G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 243; grifo meu). 188 Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade, VI, 15, p. 39. 181 57 liberdade está relacionada à graça de Deus, sempre ligada com a ação de Deus no coração do homem. Agora faremos uma descrição do conceito de livre arbítrio que apresenta mudanças que precisam ser consideradas. Procederemos da seguinte maneira: primeiro mostraremos a concepção de livre arbítrio em Agostinho na discussão com os maniqueus, depois, na discussão pelagiana, destacando as mudanças existentes. 1.3.7 – O conceito de livre arbítrio na discussão com os maniqueus. Santo Agostinho, como já foi dito, produz grande parte de obra em diálogo e por este motivo verificamos diversas contradições. Exemplo disso fazer-se-ia presente em uma comparação de algumas de suas obras, ressaltando o contexto na qual ela foi produzida e, conseqüentemente, as idéias nelas proferidas. Em seu livro O livre arbítrio, Agostinho discute com os maniqueus, desta maneira, podemos perceber na obra inúmeras afirmações pelagianas: Santo Agostinho engrandece o homem como portador de um livre arbítrio capaz de escolher entre o bem e o mal. Seu objetivo era afirmar que o homem é causa do bem e do mal, não sendo coagido a fazer o mal, como pensava os maniqueístas, estes porém, não responsabilizando o homem pelo mal cometido. Vejamos a afirmação de Santo Agostinho no segundo livro da obra acima citada, em diálogo com seu discípulo Evódio. Evódio: [...] Além de que, já o afirmei antes, e tu o aprovaste, todo bem procede de Deus. Isso nos faz compreender que o homem também procede de Deus. Porque o próprio homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem a possibilidade, quando o quer, de viver retamente. Agostinho: Realmente, e se é essa a questão por ti proposta, já está claramente resolvida. Pois, se é verdade que o homem em si seja certo bem, e que não poderia agir bem, a não ser querendo, seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a qual não poderia proceder dessa maneira.189 Todo bem vem de Deus, afirma Evódio. Logo, se o homem vem de Deus, então ele é um bem, desta maneira, o homem, “enquanto homem” é um “certo bem”, tendo consigo a possibilidade de, quando quiser, agir corretamente. Agostinho concorda plenamente com as idéias de Evódio, afirmando que o homem só poderia agir bem se quisesse e, para tal 189 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, I, 2, p. 74. 58 fato, precisaria de vontade livre. É necessário mais uma vez lembrar que Santo Agostinho está em discussão com os maniqueus e pretende salvaguardar o livre arbítrio do homem, desta maneira, faz outras afirmações que poderiam ser consideradas pelagianas. Assim, quando Deus castiga o pecador, o que te parece que ele diz senão estas palavras: “Eu te castigo porque não usaste de tua vontade livre para aquilo a que eu a concedi a ti?” Isto é, para agires com retidão. Por outro lado, se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir este bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta deste homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntário. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade livre.190 O castigo do homem é por merecimento e isto é uma constante em sua obra, no entanto, o merecimento da salvação, em função de uma boa ação ao homem imputada, é uma concepção que sofreria mudanças no decorrer de sua obra. Quando Agostinho discute com os pelagianos verificamos constantes afirmações sobre a condenação justa do homem e a salvação, não por merecimento, mas gratuitamente.191 Antes disso, percebemos que na citação acima de seu livro O livre-arbítrio, o homem tem uma vontade livre para decidir entre fazer o mal e fazer o bem. Santo Agostinho escreve que se o homem não tivesse o livre arbítrio não poderia manifestar uma ação justa nem pecaminosa, pois, somente Deus poderia castigar o homem em função do pecado se estivesse no poder do mesmo escolher entre o bem e o mal; se o homem não tivesse livre arbítrio, como Deus poderia condenar alguém que é coagido a fazer o mal? A coação divina na ação maléfica era a perspectiva dos maniqueístas, Santo Agostinho, ao contrário, queria responsabilizar o homem pelo mal. Mas, ao responsabiliza-lo pelo mal, também o responsabilizaria pelo bem, para que 190 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, I, 3, p. 75. São inúmeras as passagens nas quais Agostinho ressalta a gratuidade da graça: “Mas esta graça, sem qual nem as crianças nem os adultos podem ser salvos, não é dada em consideração aos merecimentos, mas gratuitamente, o que caracteriza a concessão como graça. Justificados gratuitamente pelo sangue.”. (Idem, A natureza e a graça, IV, 4, p. 115). “Assim, onde superabundou o delito, a graça superabundou não pelos merecimentos do pecador, mas pela ajuda de quem o socorre.”. (Idem, O espírito e a letra, VI, 9 p. 26). “E ele estende sobre eles sua justiça, com a qual justifica o ímpio, não porque são retos de coração, mas para que sejam retos de coração (Rm 4,5).”. (Ibid., VI, 10, p. 27). “Com efeito, por meio da graça é justificado gratuitamente, ou seja, sem nenhum mérito precedente de suas obras, pois, ao contrário, a graça não é de graça (Rm 11,6).”. (Ibid., X, 16, p. 34). Na ocasião em que Santo Agostinho escreve a obra O espírito e a letra ele está em discussão com os pelagianos que afirmam a potência humana para fazer o bem e o mal, assim, Santo Agostinho contra-ataca dizendo que o mal é fruto de uma natureza decaída do homem, mas o bem, que o homem faz, é fruto da graça. 191 59 assim, possa “[...] manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações [...]”.192 Desta maneira, o livre arbítrio nesta obra acima citada foi colocado por Deus – que só concede coisas boas – na vontade humana. “Estabelecemos ainda que é próprio da vontade escolher o que cada um pode optar e abraçar.”.193 Santo Agostinho concede, nesta obra, supremacia da vontade humana e, a graça, é um assunto que não é sequer tocado já que o objetivo de Santo Agostinho era refutar o fatalismo da vontade sustentada pelso maniqueístas.194 Logo, que motivo existe para crer que devemos duvidar [...] que é pela vontade que merecemos e levamos uma vida louvável e feliz; e pela mesma vontade, que levamos uma vida vergonhosa e infeliz.195 Os pelagianos diziam que esta afirmação de Santo Agostinho não contrariava a sua doutrina que anelava às forças da natureza a responsabilidade do bem e do mal, ao contrário, estava de pleno acordo. Entendemos, que na obra O livre-arbítrio, Santo Agostinho outorga ao livre arbítrio o poder para querer e fazer o bem. O poder é dado por Deus, mas é o homem que poderá fazer bom uso ou não dele. Assim, o merecimento de uma vida feliz e sem pecado depende exclusivamente da vontade do homem, argumento tipicamente pelagiano, pois está no homem o poder e domínio de sua vontade. Portanto, se por nossa boa vontade amamos e abraçamos essa mesma boa vontade, preferindo a todas as outras coisas, cuja conservação não depende de nosso querer, a conseqüência será, como nos indica a razão, que nossa alma esteja dotada de todas aquelas virtudes cuja posse constitui precisamente a vida conforme a retidão e a honestidade. De onde se segue esta conclusão: todo aquele que quer viver conforme a retidão e honestidade, se quiser pôr esse bem acima de todos os bens passageiros da 192 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, II, I, 3 p. 75. Ibid., I, XVI, 34, p. 67. 194 Moacyr Novaes destaca que na obra agostiniana O livre arbítrio continham argumentos que visavam atacar o maniqueísmo. Vejamos: “Em linhas gerais, devemos assinalar que a afirmação da liberdade, naqueles texto do final do século IV, tem em vista o combate acirrado que o jovem Agostinho fazia ao maniqueísmo. O que está em jogo ali é a natureza humana e, particularmente, como se entende a relação, no homem, entre o corpo e a alma. O maniqueísmo, no final do século IV e início do século V, não era apenas uma palavra para designar certa mentalidade, certo modo de ver o mundo, mas designa rigorosamente uma corrente religiosa e filosófica./ Será contra este maniqueísmo, uma forma de cristianismo que representava um pensamento importante àquela altura da história de Roma, que Agostinho vai dirigir sua artilharia, e vai afirmar inequivocadamente a liberdade humana.”. (Moacyr NOVAES, Vontade e contravontade, p. 61. In: Adauto NOVAES, (org).O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 59 – 76). 195 Santo AGOSTINHO,O livre-arbítrio, I, XIII, 28, p. 60. 193 60 vida, realiza conquista tão grande, com tanta facilidade que, para ele, o querer e o possuir serão um só e mesmo ato.196 Esta afirmação de Santo Agostinho é tipicamente pelagiana, pois é em função da vontade humana que podemos “abraçar” a boa vontade. Assim, perguntamos: Esta boa vontade não estaria presente em todo gênero humano, já que sem ela Deus não poderia condená-los, como afirmou Agostinho na citação acima? E isto, no que contraria a doutrina pelagiana? A afirmação de Agostinho infere que a conservação das boas coisas (virtudes) não depende de nós, pareceria plausível supor que depende de Deus. No entanto, que “nossa alma esteja dotada de todas aquelas virtudes” é uma afirmação que insere na alma humana toda possibilidade do bem. Desta maneira, quem vive com retidão e honestidade e, pela sua vontade quer viver assim, poderá realizar tal ato, pois as virtudes estão presentes na alma humana. No “possuir” encontra-se as virtudes depositadas por Deus em seu ato criador, no “querer” encontra-se a responsabilidade humana de fazer o bem ou rejeitá-lo, portanto, o fazer nada mais é senão um bom e responsável uso das virtudes concedidas por Deus em sua criação. Santo Agostinho, sustentando a responsabilidade do homem em fazer o mal, precisaria necessariamente postular o bem, ao menos como possibilidade à natureza humana, competindo assim, ao próprio homem, fazer bom uso desta liberdade.197 Lembremo-nos da afirmação de Evódio acima citada que Santo Agostinho concorda plenamente. “Porque o próprio homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem a possibilidade, quando o quer, de viver retamente.”. Cabe ao homem a escolha, pois está nele a capacidade do bom uso do bem ou do não uso do bem que ele possui em sua natureza: não usar do bem presente na natureza humana caracterizaria o pecado e a morte. Seria esta a visão de Agostinho do livre arbítrio em suas discussões com os maniqueus em sua obra O livre-arbítrio: o homem tem um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal. Todavia, ainda em sua obra O livre-arbítrio, no livro III – livro que foi escrito mais tarde (ano 394-395) –, sua concepção de livre arbítrio pareceria sofrer mudanças, mesmo dialogando ainda com os maniqueus. Seria uma intuição da querela pelagiana? Vejamos: Nada de espantoso, aliás, se o homem, em conseqüência da ignorância, não goze do livre arbítrio de sua vontade na escolha do bem que deve praticar. Ou ainda, se diante da violência de seus maus hábitos carnais tornados, de 196 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, I, XII, 29, p. 61. Esta visão de Santo Agostinho sofrerá mudanças radicais em obras posteriores em que discutia com os pelagianos. Elucidaremos estas mudanças mais abaixo. 197 61 certo modo, disposições naturais por efeito do que há de brutal na geração da vida mortal, o homem veja perfeitamente o bem a ser feito, sem contudo poder realiza-lo. De fato, essa é a punição muito justa do pecado: fazer perder aquilo que não foi bem usado, quando seria possível tê-lo feito, sem dificuldade alguma, caso o quisesse.198 Agostinho cita esta passagem em sua obra Retractationes para demonstrar que ele já partilhava da idéia do pecado original, antes mesmo da controvérsia pelagiana.199 Na citação acima pareceria que o livre arbítrio não possui mais a possibilidade de escolha do bem. O mal é visto como uma disposição do homem em função de “seus maus hábitos carnais”, desta forma, o mal é atribuído ao homem e, nisto não há mudança nenhuma nas diferentes concepções do Agostinho cristão. No entanto, pareceria plausível supor que o livre arbítrio não é mais responsável pelo bem, embora o homem “veja perfeitamente o bem a ser feito”, ou seja, ele sabe o que deveria ser feito e como deveria agir, sendo que muitos querem agir como se deve, mas sem “poder realizá-lo”. O querer e o poder pareceria não estar mais sob o domínio do homem por uma punição do mal uso do seu livre arbítrio que podendo escolher entre o bem e o mal, escolheu o mal, assim, por uma punição justa, o homem é condenado. O cumprimento de uma boa ação não procede mais do homem, mas da ação de Deus no homem. O que era conhecido e fácil de cumprir, agora, em função do pecado, torna-se desconhecido e dificultoso. “Na verdade, tais são as duas reais penalidades para toda a alma: a ignorância e a dificuldade. Da ignorância provém o vexame do erro; e da dificuldade, o tormento que aflige.”.200 Mesmo aquele que conhece, ao tentar cumprir a lei envergonhar-se-ia em função do fracasso, já aquele que desconhece, encontra-se sempre no erro, e este tortura. Esta leitura que fizemos na citação acima poderia ser uma possível interpretação que mostraria um Agostinho, no livro III de O livre arbítrio, como um polemista contra o pelagianismo? Não acreditamos que Agostinho neste momento tenha conhecimento da heresia pelagiana, nem que a graça esteja implícita neste momento do debate, lembrando que a graça como dádiva de Deus era o argumento mais forte de Agostinho na querela pelagiana. Vejamos a explicação de nossa posição: 198 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, III, XVIII, 52, p. 209-10. Nair de Assis OLIVEIRA, Tradução, Organização, introdução e notas, p. 254 In: Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio. trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. 200 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, III, XVIII, 52, p. 210. 199 62 Temos conhecimento que as afirmações de Santo Agostinho em seu livro O livrearbítrio, parte I e II, poderiam ser interpretadas como afirmações que caracterizariam o homem antes do pecado, no entanto, nossa pesquisa discorda de possíveis afirmações deste tipo, pois, estando Agostinho discutindo com os maniqueus e querendo solapar a idéia maniqueísta de coação, ele enfoca e caracteriza o livre arbítrio como causa do bem e do mal, pois em qualquer tipo de coação que Santo Agostinho atribuísse ao homem ele seria maniqueísta e tiraria deste último a responsabilidade. Outro ponto importante a ressaltar é a tentativa de Agostinho em descrever a ação do homem cotidianamente e mostrar que ele pode escolher o que ele poderia fazer. “Pois cada pessoa ao cometê-lo é autor de sua má ação.”.201 Se o homem é autor de sua má ação, se vê“[...] perfeitamente o bem a ser feito [...]”202, mas não pode “[...] realizá-lo”203, poderíamos dizer que estes argumentos são faíscas da grande fogueira da querela pelagiana, não que Agostinho já tenha conhecimento da heresia pelagiana, muito menos das respostas aos problemas que o pelagianismo iria trazer. Para Agostinho, diz o biógrafo Peter Brown, “[...] esses debates estavam muito distantes em 410.”204, visto que a querela pelagiana só chega aos ouvidos de Agostinho em 411, por Flavio Marcelino. Há uma contradição histórica caso seja afirmado que Agostinho conhecia ou intuía o pelagianismo quando escrevia o livro III de O livre arbítrio em 395. Brown destaca que Agostinho só poderia ter tido contato com as afirmações pelagianas depois de 410, após a invasão de Roma pelos bárbaros. Desta maneira, apesar da citação acima conter fortes indícios de uma discussão com Pelágio, acreditamos que as explicações de Agostinho em sua obra Retractationes seria uma tentativa desesperada de salvar a obra O livre arbítrio, sendo este livro o mais citado por Agostinho em suas Retractationes: A finalidade deste diálogo não obrigava a tratar da graça e de sua necessidade. Foi ele entabulado por causa dos (maniqueus), que recusavam ver a origem do mal no livre arbítrio da vontade, e que pretendiam assim pôr a culpa em Deus, que é o criador de todas as substâncias. Queriam eles, conforme o erro de sua impiedade, introduzir uma natureza má, imutável e coeterna a Deus. Quanto à graça de Deus, que predestina seus eleitos de forma a preparar a vontade mesma daqueles que já se servem do livre 201 Santo AGOSTINHO, O livre-arbítrio, I, I, 1, p. 26. Ibid., III, XVIII, 52, p. 209 – 210. 203 Ibid., III, XVIII, 52, p. 210. 204 Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 428. 202 63 arbítrio, não há nesses livros discussões a este respeito, devido a particularidade da questão que nós não tínhamos proposto a tratar.205 Desta maneira, verificamos que o próprio Agostinho revela que neste momento a discussão era com os maniqueus, desta maneira, a querela pelagiana que colocaria a graça como argumento central do debate não estava no horizonte no contexto da obra O livre arbítrio. Mesmo porque, no livro III, escrito mais tarde, encontramos passagens que os pelagianos usavam contra Agostinho para acusá-lo de maniqueísta, a saber: a primeira, Agostinho fala sobre as criaturas de Deus: “Estas Deus as criou não para que pecassem, mas para que acrescentassem algo à beleza do universo, quer consentindo, quer não, ao pecado.”.206 Vemos que há uma ênfase consistente de que há no homem possibilidade de escolha, consentindo ou não ao pecado; a segunda, “Em todo caso, ninguém pode negar que o pecado existe. Logo, será possível ao homem evitá-lo.”.207 O homem tem a primazia da vontade, cabe à força humana evitar o pecado. Portanto, o próprio Agostinho estaria de acordo com nossa hipótese em suas Retractationes, pois, para ele, a discussão era com os maniqueus. Assim, a leitura histórica de Brown também confirma nossa hipótese: somente depois de 410 Agostinho toma conhecimento dos argumentos pelagianos. Logo, não há contradição entre estes dois dados em nossa interpretação. Na obra O livre arbítrio a concepção do livre arbítrio presente homem é visto como algo flexível ao bem e ao mal, de forma que a liberdade era o ato de submissão à Verdade que é Cristo, não Mani. Portanto, depois de esclarecido o que é liberdade para Santo Agostinho, nos diferentes contextos que discutia com os maniqueus e pelagianos, verificado a definição do livre arbítrio que se estabiliza no contexto em que discutia com os maniqueus, vejamos abaixo a nova concepção de livre arbítrio na querela pelagiana e a relação deste com o conceito liberdade estabilizado no contexto em que Agostinho discute com os pelagianos, como vimos acima. Vale lembrar que destacaremos, progressivamente, as diferentes concepções dos dois conceitos – livre arbítrio e liberdade – nos distintos contextos. 1.3.8 – O conceito de livre arbítrio na discussão com os pelagianos. 205 Santo AGOSTINHO, Retractationes, 1, I, 9,1 – 6 apud Nair de Assis OLIVEIRA, Tradução, organização, introdução e notas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 252 – 253. Ver nota 30. 206 Idem, O livre-arbítrio, III, XI, 32, p. 186. 207 Ibid., III, XVIII, 50, p. 208. 64 Iniciamos nosso trabalho citando o comentador Marcos Roberto Nunes Costa que destaca as importantes diferenças entre o conceito de livre arbítrio e liberdade na querela pelagiana. E tais distinções são de fundamental importância nos embates com pelagianos, quando, ao refutar as objeções destes de que há contradição entre livre arbítrio da vontade humana e graça divina, Agostinho diz que o que o homem perdeu com o pecado original foi a liberdade, ou a necessidade do bem, e não o livre arbítrio ou a possibilidade do bem. E é justamente ao livre arbítrio que a graça deve ajudar, fazendo com que este tenha não somente a possibilidade do bem, mas que lhe restitua a necessidade do bem, pois quanto ao mal, não existe nenhuma dificuldade em querê-lo sem nenhuma ajuda. Portanto a graça não anula o livre arbítrio, mas devolve a este a plena liberdade, que, na sua condição decaída, só é livre para o mal.208 A preocupação de Santo Agostinho, no debate com Pelágio, é mostrar que a natureza humana, sem Deus, só faz o mal. O homem quando deixado sobre às forças de seu livre arbítrio, conseqüentemente, tenderia à gravidade do mal e não teria como escapar disso. “Para não sucumbir à tentação, não basta o livre arbítrio da vontade humana, se o Senhor não favorecer a vitória ao que ora.”.209 Depois do pecado o mal toma conta do homem e o livre arbítrio não basta para fazer o bem.210 A graça não poderia estar, de maneira nenhuma, contra o livre arbítrio, pois, se a graça não concede a liberdade, não há livre arbítrio: visão diferente daquele Agostinho em discussão com os maniqueus. O homem deixado sobre o peso de seu livre arbítrio, depois do pecado, segue a sua vontade deturpada e má. A vontade regenerada pela graça teria a capacidade de fazer o bem, assim, verifica-se que há uma necessidade de distinguir o livre arbítrio, este dotado de possibilidade para fazer o bem, mas não faz por ter uma vontade corrompida, e a liberdade que, pela operação regenerativa da graça, concede ao livre arbítrio as forças necessárias para querer e fazer o bem. Ao sustentar que o livre arbítrio não sofreu deturpação por causa 208 Marcos Roberto Nunes COSTA, O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho, p. 365 – 366. 209 Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002, IV, 9, p. 33. 210 “Proclamo a necessidade da graça de Deus, sem a qual ninguém alcança a justificação, e que não é suficiente o livre arbítrio da natureza.”. (Idem, A natureza e a graça, LXII, 73, p. 185). 65 da corrupção da vontade humana, Pelágio é acusado por Agostinho de anular a cruz de Cristo, pois, se está dentro da vontade humana fazer o bem, qual a necessidade da graça regeneradora de Cristo? Todavia, os pelagianos acusam Agostinho de maniqueísmo, pois, ao afirmar que a vontade humana, quando abandonada a seu livre arbítrio só faz o mal, tira toda responsabilidade humana do mal, pois ele depende de Deus para fazê-lo. É o fatalismo maniqueísta que, para Pelágio, pareceria um absurdo. Já Agostinho, se defende de tal acusação dizendo que Pelágio atribui ao homem e a Deus o bem, desta maneira deveria atribuir ao homem e a Deus o mal, pois, se depende do homem e de Deus o bem, o homem sempre deveria fazer o bem, já que Deus não deixaria de maneira nenhuma fazer o mal.211 Pelágio e Celéstio acreditam na idéia de que há duas raízes no homem, uma para o bem, presente na possibilidade dada por Deus de o fazer e, outra para o mal, na qual o homem faz mal uso de seu livre arbítrio. “Para eles, a diferença entre os homens bons e maus era muito simples: uns escolhiam o bem, outros, o mal.”.212 O que Santo Agostinho contesta é o fato de que Deus seria colaborador nas maldades humanas se ele deixasse ao homem a escolha entre o bem e o mal, pois a criatura só fará o mal, nunca o bem, quando seu livre arbítrio é deixado sob o comando de suas próprias forças deturpadas pelo pecado. Para Santo Agostinho, o mal provém do livre arbítrio do homem, nunca de Deus. “Mas, no ser humano, a concupiscência, que é vício, tem por autor o próprio homem ou o sedutor do homem, não o criador.”.213 Portanto, o bem, a virtude, a caridade, não provém da criatura, mas de Deus, àqueles que Ele elegeu por um mistério insondável. O homem submetido à graça de Deus estaria em plena liberdade, pois a liberdade é a própria graça. “A caridade, porém, que é virtude, provém-nos de Deus, e não de nós mesmos.”.214 Não estaria o homem, a partir das afirmações de Agostinho sobre a concessão da liberdade pela graça, sendo coagido a fazer o bem, assim como a fazer o mal? A resposta de Agostinho seria não. “Anulamos a liberdade pela graça? De forma alguma; mas consolidamo-la. Assim como a lei se fortalece pela fé, a liberdade não se anula pela graça.”.215 A graça só faz ratificar a liberdade e esta torna-se prerrogativa basilar para a salvação. O homem, permeado e vivificado pela graça e, conseqüentemente, verdadeiramente livre, faz o bem, mas é Deus quem o faz no homem através da graça, portanto, ela garantiria a verdadeira 211 Cf. Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, p. 232. Peter BROWN, Santo Agostinho: uma biografia, p. 464. 213 Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XX, 21, p. 234. 214 Ibid., XXI, 22, p. 234. 215 Idem, O espírito e a letra, XXX, 52, p. 78. 212 66 liberdade. O mal é conseqüência do pecado, de um mal uso do livre arbítrio216, pois este, diz Costa, “só é livre para o mal”. O livre arbítrio sem a liberdade é a possibilidade do homem escolher de quem e, do quê, ele vai ser escravo. Desta maneira a graça não anula liberdade, diz Agostinho, pois só há liberdade onde encontra-se a graça. Mas mesmo diante da verdadeira liberdade reconhecida como a graça de Deus que regenera a vontade e a natureza, estas infectadas pelo pecado, podemos perguntar: qual é a parcela humana ou cooperação no processo salvífico na discussão com Pelágio? Convocamos o bispo de Hipona para responder tal pergunta: É claro que nós também fazemos, mas cooperando com a obra daquele que nos antecede pela sua misericórdia. Ele nos antecede para que sejamos curados, e nos acompanha para continuarmos são; antecede-nos para que levemos a vida santamente e acompanha-nos para com ele sempre viver, porque sem ele, nada podemos fazer (Jo 15,5).217 O homem não é absolutamente passivo naquilo que diz respeito à salvação. Ele coopera com Deus na obra savífica, todavia, a cooperação humana é antecedida pela misericórdia de Deus. Como a vontade corrompida do homem está voltada para o mal, o homem sozinho só poderá fazer o mal, mas quando permeado pela graça de Deus ele faz o bem. Entendido desta forma, o homem coopera para a salvação. Santo Agostinho somente consolida a vontade do homem como boa levando em conta sempre a misericórdia de Deus que concede a graça as suas criaturas. A concessão da graça implica na cura, assim não é nenhuma novidade que, para Agostinho, o homem doente pelo contágio do pecado original precisar-se-á ser curado. Nada é mais evidente, para o bispo de Hipona, que a graça age provocando o efeito curativo pelo Médico Jesus Cristo. Tal remédio é caracterizado pelo sangue de Cristo na Cruz derramado em quem Ele quiser. O homem precisa 216 Cf. Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, XVII, 30, p. 51. O homem é incapaz pelas suas próprias forças de realizar o bem depois do pecado de Adão. Assim é a leitura de Santo Agostinho da segunda carta aos Coríntios do apóstolo São Paulo. Diz Agostinho, a partir desta leitura, em referência a Cristo: “Ele nos ordena a fim de que nele nos refugiemos, visto sermos incapazes por nossas próprias forças.”. (Santo AGOSTINHO, O espírito e a letra, XVII, 30, p. 51). 217 Idem, A natureza e a graça, XXXI, 35, p. 145. Mais tarde, em 429, Agostinho escreve um livro chamado O dom da perseverança. Nele é destacado alguns temas correntes na discussão pelagiana: como é a atuação da graça do início até a perseverança final; sobre a necessidade do batismo das crianças; a progressão que ele passara entre a obra presente e a obra O livre arbítrio; a predestinação; e a relação justiça e misericórdia de Deus: “Apresenta-se agora esta objeção: “Mas por que a graça de Deus não é concebida de acordo com os merecimentos humanos?” Respondo: Porque Deus é misericordioso. Volta a perguntar: “Por que não é concedida a todos?” Porque Deus é juiz.”. (Santo AGOSTINHO, O dom da perseverança. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002, VIII, 16, p. 227). 67 necessariamente que o remédio o acompanhe para permanecer são, desta maneira, qualquer instante sem o sangue regenerador implicará em pecado. O homem coopera e Santo Agostinho não nega tal prerrogativa, mas implicar-se-á em sérios problemas dentro do sistema agostiniano uma interpretação que venha a consolidar a boa ação sem graça, misericórdia ou o sangue regenerador do Cristo derramado sobre o coração do homem, pois “[...] sem ele, nada podemos fazer”218 diz Agostinho em referência ao livro de São João.219 Deus concede através da graça o poder necessário para poder fazer a ação boa, regenerando a vontade de tal modo que a mesma deseje o bem. Assim, o homem coopera no processo salvífico. A cooperação implica em três conceitos basilares naquilo que diz respeito a boa ação do homem. A concepção agostiniana dos conceitos poder, querer e fazer, que fazem referência à atuação moral do homem, mudam radicalmente. Como foi dito acima, no seu livro O livre arbítrio, poder e querer estariam dentro das capacidade humanas de fazer bom uso de sua liberdade e agir de maneira virtuosa; já em suas obras destinadas as controvérsias pelagianas esta visão de mundo muda. A graça de Deus deve ser afirmada, como imprescindível para nós, não só em relação a um dos três fatores, ou seja, à possibilidade da boa vontade e da ação, mas também à vontade e à boa ação. [...] Pois Deus não somente outorga e ajuda nosso poder, mas também opera em nós o querer e o agir (Fl 2,13). Não porque não queiramos ou não operemos, mas também porque, sem sua ajuda, não podemos desejar nem praticar o bem.220 A graça de Deus é “imprescindível”. Esta afirmação resume o ponto crucial da controvérsia de Agostinho com Pelágio. A graça sempre é a causa do bem, nunca a natureza, esta sempre faz o mal. Agostinho associa à graça, neste contexto da discussão com Pelágio, três pontos importantes: o poder, o querer e o fazer. Deus ao conceder a graça aos seus eleitos pela sua infinita misericórdia capacita o homem, ou seja, lhe dá o poder para querer o bem. Não sendo suficiente o poder, Deus regenera a vontade do 218 Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XXXI, 35, p. 145. “Eu sou a videira, vós as varas: quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim nada podeis fazer.”. (Jo 15,5, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969). 220 Santo AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, XXV, 26, p. 239 – 240. 219 68 homem e faz com que ele queira fazer o bem. Não sendo suficiente o poder e o querer, Deus opera no homem o fazer, cumprindo na criatura o objetivo da graça, ou seja, curar uma natureza escrava do mal quando deixada as suas próprias forças, concedendo o remédio regenerador em três níveis: no querer, no poder e no fazer. Esta nova possição é totalmente diferente daquela que sustentava contra os maniqueus, na qual poder, querer e fazer estavam dentro da capacidade humana depois do pecado, como vimos acima.221 Mas porque Agostinho insiste nestes três pontos na discussão com Pelágio? Isto dar-se-ia em função de uma radiografia da vontade humana, pois, o poder fazer, não implica em querer fazer e nem fazer; o querer fazer não implica em poder fazer, muito menos fazer; o fazer será impossível se o homem não pode e não quer. Desta maneira, preenchendo qualquer um ou dois destes conceitos no homem por parte de Deus não poderiam ajudá-lo a cumprir Seu objetivo, ou seja, fazer com que o homem faça o bem; assim, é necessária uma graça que envolva estes três conceitos e que Deus atue nos três, pois com o pecado, todos estes conceitos estão corrompidos. A graça de Deus preenche o poder, regenera o querer – que antes só queria o mal –, e faz no homem aquilo que ele deveria fazer. Esta tríade da vontade está de acordo com a afirmação paulina: “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim.”.222 Estando morto para sua vontade deturpada e vida no pecado, a graça, para Agostinho, assim como para São Paulo, concede à origem de uma nova vida, esta porém, submetida à verdadeira liberdade que é o próprio Deus cristão. O homem, diante disto, é visto como um morto para o mundo e vivo para Deus. A criatura dependerá totalmente do Criador para consolidar a salvação, pois, se é Deus quem concede a graça a quem Ele quer, como poderá o homem com suas próprias forças alcançar o bem supremo, ou seja, a salvação? Se Santo Agostinho afirma, a partir da carta de São Paulo aos Romanos, que Deus “[...] conheceu, predestinou, chamou, justificou e glorificou [...]”223 seus eleitos, como poderá depender do homem a salvação? Concordando com idéia de predestinação224, 221 Ver nas p. 59 – 60 neste capítulo a concepção agostiniana dos conceitos poder, querer e fazer usados na discussão com os maniqueus. Ver também p. 43 – 45 a concepção pelagiana destes mesmo conceitos. 222 Gl 2,20, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. 223 Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, V, 5, p. 116. 224 Há uma obra específica para este conceito presente no sistema agostiniano em discussão com o pelagianismo. A obra é escrita em 429. Nela há uma passagem na qual Agostinho reconhece seu erro de no passado atribuir ao homem o início da fé e não a Deus, opinião esta que teria a leitura de São Paulo como causa da mudança de opinião “Servindo-me principalmente deste testemunho, convenci-me também do erro, quando nele laborava, julgando que a fé, que nos leva a crer em Deus, não era dom de Deus, mas se originava em nós por nossa iniciativa, e mediante ela implorávamos os dons de Deus para viver sóbria, justa e piedosamente neste mundo.” (Idem, A predestinação dos Santos. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002, III, 7, p. 155). Ele também ressalta claramente nesta obra sua postura em relação à predestinação: “Todavia entre a graça e a predestinação há apenas esta diferença: a predestinação é a 69 não há justificação da salvação por merecimento, somente misericórdia de Deus pela concessão da graça. A misericórdia é absolutamente necessária já que o pecado original corrompeu toda a massa humana e precisaria ser expiado. Para realizar esta purificação, Santo Agostinho, ao contrário de Pelágio, afirmaria que o batismo é imprescindível. O que de fato é objeto de acusação é não quererem confessar que as crianças não batizadas estejam contaminadas pela condenação do primeiro homem e contrariam o pecado original, necessitando por isso de regeneração.225 O batismo para Agostinho regenera e limpa a mancha do pecado de Adão, desta maneira, é absolutamente necessário. Todos que morrem sem a graça do batismo são condenados, mesmo as criancinhas, pois estas carregam a culpa de seu pai Adão.226 O banho regenerador ao libertar o homem do pecado em função da misericórdia de Deus faz brotar um novo homem, não nascido da carne, que foi corrompida pela vontade, mas pelo Espírito Santo vivificador. Desta maneira, o homem estaria salvo depois do batismo? Para Agostinho não, pois, dependemos da misericórdia de Deus e pedimo-la pela oração, sendo que a própria oração já um ato realizado em função da graça. A oração teria a função de fazer o fiel pedir o perdão dos pecados a Deus, assim como evitar os pecados futuros, ou seja, solicitar de Deus a graça da perseverança.227 No entanto, se Ele retira a graça o homem não reza e peca. Sem a graça, a natureza humana não terá forças nem para rezar sinceramente, nem para perseverar no bem, somente cair na gravidade do mal por seu livre arbítrio corrompido.228 Mesmo a correção que outro outorga a um fiel Agostinho coloca tal perspectiva na economia da graça, sabendo que a correção seria a ação da graça naquele que é corrigido.229 preparação para graça, enquanto a graça é a doação efetiva da predestinação.” (Santo AGOSTINHO, A predestinação dos Santos. X, 19, p. 174). Portanto, a predestinação é graça gratuita de Deus. 225 Idem, A graça de Cristo e o pecado original, XVIII, 19, p. 284. 226 Ver Idem, A predestinação dos Santos, XIV, 29, p. 186 sobre a necessidade do batismo das crianças. 227 Cf. Idem, A natureza e a graça, XVIII, 20, p. 129. Para Pelágio a oração não pode auxiliar na perseverança, pois isto implica em coação, no entanto, assim como para Agostinho, ele sustenta a idéia de que a oração pode fazer fluir a misericórdia de Deus, sendo necessária para absolvição e regeneração do homem por ter se corrompido pelo pecado. 228 A capacidade de rezar, para Pelágio, já está na natureza humana. Sendo assim, cabe ao homem estar atento à palavra revelada pelas escrituras, seguir as exortações e direcionamentos espirituais da Igreja católica e imitar o exemplo de vitude dado por Jesus Cristo. Assim, revelação, doutrina e o modelo do Cristo como exemplo moral e misericordioso, cooperam como uma força a ser usada pelo homem quando quiser, algo que já discutimos acima. 229 Há uma obra que trata de maneira específica o tema da correção. Ela foi escrita por Agostinho no ano 427, devido às novas perturbações no mosteiro de Hadrumeto. Os monges superiores ficariam sem função já que é 70 Portanto, depois de desenvolvido alguns conceitos das controvérsias entre Agostinho e os maniqueístas, assim como na polêmica sobre a graça no embate com Pelágio, verificamos que há uma mudança na forma de definir o conceito de livre arbítrio e liberdade em função do contexto que santo Agostinho está inserido. Em um primeiro momento, Agostinho, na obra O livre arbítrio, constrói proposições contra os maniqueus com o objetivo de outorgar a responsabilidade do mal ao homem, assim, o livre arbítrio é definido como um instrumento flexível para fazer o bem e o mal – proposição pelagiana – e a liberdade é a submissão da criatura à palavra, à Verdade, a Cristo e não a Mani, como pensavam os maniqueus. Mais tarde, com o advento do pelagianismo, a partir de 411, o bispo de Hipona teria construído argumentos contra os pelagianos com o objetivo de atribuir a Deus a causa do bem: portanto, há uma mudança na sua definição do conceito de livre arbítrio e liberdade: o livre arbítrio depois do pecado adâmico só faz o mal e há necessidade da graça para que o homem faça o bem, de modo que a recepção da graça é a concessão da verdadeira liberdade. É por este motivo que os Pelagianos acusarão Agostinho de maniqueísta. Depois de termos destacado que há uma mudança de comportamento – lágrimas – detectada por nossa pesquisa quando tratamos da conversão de Agostinho; percebido que sua escrita também se modifica quando tomamos por objeto o conceito de beleza em sua autobiografia; sublinhado sucintamente que o Agostinho convertido ao cristianismo em discussão com os maniqueus sustentará que o mal não tem substância e que a vontade possui um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal; e, enfim, discernido as diferentes concepções de livre arbítrio e liberdade de Agostinho em discussão com os maniqueus e em discussão com os pelagianos; veremos que as discussões teológicas dos séculos IV e V são retomadas nos séculos XVI e XVII. Sendo assim, iremos diretamente para o fim do século XVI e percorreremos grande parte do século XVII. Verificaremos as influências de Santo Agostinho na produção teológica da época, assim como o surgimento de novas correntes de pensamento, como é o caso do jansenismo. Desta maneira, poderemos situar Blaise Pascal neste contexto. Deus quem corrige. Por este motivo, Agostinho coloca a correção na economia da graça: “Os homens devem admitir a necessidade da correção quando pecam. Que a correção não sirva de pretexto com relação à graça nem a graça no referente a correção.” (Santo AGOSTINHO, A correção e a graça. 2ª ed. trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2002, XIV, 43, p. 130). Além de garantir a necessidade da correção como à ação da graça, todavia, a mesma correção não é garantia da graça, pois Agostinho destaca que a graça em um momento não é garantia de possuí-la em um outro momento. A primazia é sempre a vontade de Deus, nunca a do homem. 71 2 – O jansenismo. As controvérsias acerca da graça no embate entre Santo Agostinho e Pelágio são retomadas no século XVII pela maior parte dos teólogos. Em 1951, Jean Dagens, em ocasião de um congresso internacional expõe uma curiosa idéia: “O século XVII é o século de Santo Agostinho.”.230 A teologia da graça agostiniana toca, de maneira especial, questões antropológicas como: quem é o homem, de onde ele veio, para onde vai, qual o seu comportamento na relação consigo mesmo, com o outro e com Deus, o que é a liberdade; todos estes temas ganhariam no século XVII não só uma reflexão antropológica, mas de identidade doutrinária em função da Reforma protestante.231 O palco religioso no século XVII é habitado por um furacão de idéias composto por Luteranos, Calvinistas, Molinistas e Jansenistas. O caráter terrificante deste fenômeno é marcado pela proliferação de doutrinas que dissipavam cada vez mais a união da Igreja, considerada entre os cristãos como o corpo místico de Cristo. Diante do caos doutrinário que era cada vez mais difundido, o apelo ao retorno à tradição da Igreja tornar-se-ia a principal preocupação nas discussões sobre as controvérsias doutrinárias.232 Desta forma, a volta às antigas fontes encontra no bispo de Hipona um ponto de referência, pois trata-se daquele que ficou historicamente consagrado como o grande Doutor da graça. Os protestantes abriram o caminho na recuperação da 230 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. I. “A percepção da importância da Queda e das conseqüências do pecado original, do tamanho inteiro do dano a ser reparado, retornou com o século XVI. Os reformadores descobriram de novo Agostinho [...]. Com Lutero e Calvino de modo especial, a ênfase foi colocada de novo na impotência do homem e na eficácia da graça. A doutrina da justificação só pela fé – e da fé como dom de Deus – não constituía nenhuma especulação mecânica; era o grito apaixonado de homens que, como Agostinho, esforçam-se desesperadamente em busca de uma solução e cujas tentativas de impor ordem na experiência mantiveram vivo para o mundo moderno o dilema agostiniano.”. (G. R. EVANS, Agostinho sobre o mal, p. 267). O retorno à obra do bispo de Hipona é algo que aparece com imensa força no século XVI e, de maneira especial, no contexto francês do século XVII. Alguns temas agostinianos serão avidamente trabalhados como a condição do homem antes e depois do pecado, a relação justiça e misericórdia de Deus, a eleição dos predestinados, à medida do pecado do homem e as controvérsias sobre a graça. 232 Verificamos este retorno à tradição em um texto de Pascal chamado Les écrits des cures de Paris. “Nossa religião tem os mais firmes fundamentos. Como ela é toda divina, é somente em Deus que ela se apóia, e não possui nenhuma doutrina que não tenha recebido de Deus pelo canal da tradição que é nossa verdadeira regra, que nos distingue de todos os hereges do mundo, e nos preserva de todos os erros que nascem dentro da própria Igreja: por que conforme o pensamento do grande São Basílio, hoje nos só acreditamos nas coisas que nossos bispos e pastores nos ensinaram, e que estes receberam daqueles que os precederam e dos quais receberam sua missão: e os primeiros que foram enviados pelos apóstolos, só disseram aquilo que estes ensinaram. E os apóstolos que foram enviados pelo Santo-Espírito não anunciaram ao mundo senão as palavras que o Espírito-Santo os tinha confiado: e o Espírito-Santo que foi ensinado pelo Filho recebeu suas palavras do Filho, como é dito no Evangelho e, enfim, o filho que foi enviado pelo Pai só disse aquilo que ele tinha ouvido do Pai, como ele propriamente disse.”. (Blaise PASCAL, Les écrits des cures de Paris, p. 481 – 482. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 471 – 484). 231 72 doutrina agostiniana e logo foram seguidos pelos católicos.233 O agostianismo conheceria a sua idade de ouro com a publicação das obras do bispo de Hipona. Em 1506, apareceria em Balê a primeira edição das obras completas de Santo Agostinho, a chamada edition d`Amerbach, sendo ainda um trabalho imperfeito. Mais tarde, em 1576-1577 é publicada a edition de Louvain, esta porém, entra em cena no fim do século XVI e prevalece em todo século XVII, sendo substituída somente pela edição dos Beneditinos de Saint-Maur em meados de 1679-1700.234 Blaise Pascal usava a edition de Louvain.235 Podemos dizer que a publicação da obra de Agostinho exerce influências notáveis no século XVII. O livro Confissões é traduzido em 1649 por Arnauld d`Andilly, irmão do estimado teólogo jansenista Antoine Arnauld, surgindo um exemplo de um novo gênero literário: a auto-biografia. “Constata-se uma correlação entre a ascensão do agostianismo na França e o progresso de uma literatura autobiográfica de proporções religiosas.”.236 A influência auto-biográfica de Santo Agostinho repercutiria prontamente não só em escritos com foco religioso, pois, é no Discurso do Método (1637) do filósofo René Descartes que apareceria traços marcantes deste novo gênero literário.237 Descartes nesta obra produziria uma espécie de auto biografia metodológica. Diante do novo universo que brilhava na França em função do surgimento das traduções da obra de Agostinho, não poderíamos deixar de lado suas influências platônicas, marcada, de maneira especial, pela nostalgia do mundo. O mundo é sombra, nele não encontramos a Verdade, portanto, resta ao autêntico cristão abandonar tudo aquilo que é mal, ou seja, abandonar o mundo. Os jansenistas, por exemplo, “[...] estão de acordo em afirmar que o mundo é mal e que nenhuma ação humana pode transformá-lo antes do juízo final.”.238 O platonismo cristão de Agostinho vê o mundo como um vale de lágrimas inconstante, o homem deve libertar-se de suas paixões e somente pensar em uma outra vida, aquela prometida por Deus a todos os seus eleitos. As reflexões de Agostinho são absolutamente socráticas naquilo que diz respeito à máxima: Conheça-te a ti mesmo. O bispo de Hipona volta-se para alma e, em função das influências que exerceria no século XVII, prepara as futuras reflexões que concederiam grande importância ao retorno a si e o 233 Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 12. Cf. Ibid., p. 11 235 Cf. Ibid., p. III. 236 Ibid., p. VI. 237 Cf. Ibid., p. VI – VII. 238 Lucien. GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto. trad. J Ramón Capella “Le Dieu caché”. Barcelona: Ediciones Península, 1968, p. 186. 234 73 apelo ao rompimento com as cobiças, estas sendo consideradas sombras de uma natureza corruptível e má. Então, compreende-se melhor, a florescência das reflexões sobre a imortalidade da alma no século XVII e os traços característicos de análise ‘moral’ clássica: os ‘moralistas’ tendem a inclinar-se sobre a alma somente, e encobrem a história, a geografia, a sociologia.239 Os moralistas deixam de lado as reflexões historiográficas, geográficas e sociológicas, no entanto, realizam uma produção teológica que manifesta claramente uma visão pessimista e sombria do mundo sem Deus. O desejo torna-se um grande mal, este faz do homem centro, escravo de si e, conseqüentemente, o conduz ao fracasso. O homem deve abandonar suas inclinações pecaminosas. Diante deste apelo à virtude, surge na França o ideal não religioso de honnêteté, “[...] ou arte de brilhar em todas as seduções da vida.”.240 O resultado que este homem honnête produz é bom, mas o que move tais comportamentos é a corrupção manifesta na vontade de ser amado por todos. Esta é a acusação dos agostinianos jansenistas ao ideal de honnêteté. Mas quem seriam os chamados agostinianos? Lutero era monge agostiniano, Calvino apresentava em suas idéias uma espécie de “mosaico agostiniano”241, desta maneira, poderíamos dizer que Santo Agostinho exerceu fortes influências nos reformadores quanto à análise do mundo, do homem e de Deus, pois, tanto Lutero como Calvino afirmam a miséria do homem sem o Criador quando deixado as 239 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. XI. Ibid., p. X. Ver Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal. Paris: Ed. Sedes, 1993, p. 105 – 137. A noção de honnête homme move uma função importante no século XVII. O nome foi empregado pela primeira vez em uma obra de grande sucesso chamada L´Honnête homme ou l’Art de plaire à la cour de Nicolas Faret, em 1630. O honnête homme é o homem sociável, que revela uma personalidade cortês e civilizada, um homem de bem provido de virtudes morais. Ele não funda uma moral específica, mas é um mundano que vive uma vida social de maneira perfeita, mantendo seu temperamento em todas as ações. Para Pascal a palavra chave para entender tal ideal é agradar. Agradar a todos sempre, todavia, sem se colocar em um nível superior que não esteja ao alcance de outros. Por exemplo, quando um honnête homme chega em uma conversa que já havia começado, ele falará daquilo que os personagens já estavam falando, pois, impor outro assunto é humilhar os interlocutores e condenar o diálogo ao silêncio. A idéia é que o honnête homme deve se incomodar em favor do outro, sendo uma forma de esquecimento de si em favor ao outro que lembra o ideal de virtude cristã. Ele é o homem universal por excelência, é aquele que mantêm o meio, não permanecendo nem no extraordinário nem no ordinário: é o modelo de humanidade querida e desejada por todos. Pascal critica este modelo: o modelo central que o homem deve se espelhar é Deus não o homem. O honnête homme é uma manifestação do amor de si bem regrado para que o mesmo possa tirar vantagem com sua postura. Todavia, dirá Pascal “[...] tenham pelo menos fidalguia se não podem ser cristãos [...]”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 427, Bru. 194, p. 171). 241 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. II. 240 74 suas próprias forças e entregue as seus caprichos mundanos. Frente às controvérsias inserese na polêmica Michel de Bay, conhecido pelo nome latino Baïus. Baïus era professor na universidade de Louvain, especialista em patrística e hostil à escolástica. Este propõe a redução da liberdade do homem que está absorvido pela graça, sendo Deus a causa de todas as ações, mesmos das livres. Desta maneira, foi acusado de negar toda realidade do livre arbítrio e favorecer o calvinismo. Desta forma, o papa Pio V condena em uma lista de 76 proposições o teólogo Baïus depois de uma extensa controvérsia acadêmica242 e, mais tarde, em 1580, são novamente condenadas por Gregório XIII.243 No entanto, o catolicismo reagiria, na figura do jesuíta espanhol Luís Molina244, de maneira totalmente oposta às idéias dos reformadores protestantes e de Baïus: dar-se-ia o nome de molinistas aos seus futuros seguidores. Molina torna-se famoso por escrever uma obra chamada De concórdia liberii arbitrii cum divinae gratiae donis. (1588). Nela afirmava suas principais idéias como: substituição da graça eficaz por uma graça suficiente, esta porém, traz consigo tudo aquilo que é necessário para fazer o bem; o homem, depois do pecado de Adão, possui em sua natureza o poder de fazer o bem pelo seu livre arbítrio; não há predestinação, a salvação depende das boas obras do homem.245 Desta maneira, as opiniões de católicos e protestantes divergiam radicalmente. “Os reformadores, Lutero, Calvino e outros, tinham posto tanta ênfase na natureza humana desamparadamente pecadora que era inevitável a reação dar-se em sentido oposto.”.246 Ou seja, se os protestantes cristãos negavam qualquer possibilidade humana para fazer o bem e agir conforme os mandamentos, Molina, ao contrário, sustentava a idéia de que o homem poderia através de suas próprias forças realizar o bem e cumprir os mandamentos. Se em Calvino e Lutero vemos uma teologia tendo Deus como centro e causa do bom comportamento humano, assim como de sua salvação, em Molina percebemos uma colocação totalmente contrária. Ele produzia uma teologia centrada no homem, na qual, o próprio homem através de suas forças poderia realizar boas obras e merecer a graça de Deus para a salvação. Estas duas posições, além de retomar as controvérsias internacionais do século V entre Agostinho e Pelágio que vimos acima, nos parece uma tentativa de identificação religiosa diante da proliferação de 242 Cf. Le COGNET, Le jansénisme. Paris: PUF, 1995, p. 10 – 11. Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo. v. II. trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 200. 244 Ibid., p. 200. 245 Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 13. 246 Alban KRAILSHEIMER, Pascal. Lisboa: Publicação Dom Quixote, 1983, p. 21. 243 75 opiniões e doutrinas frente à Reforma protestante, desta maneira, o fiel poderia, mediante a adesão de alguma destas doutrinas, escolher sua denominação religiosa. Mas mesmo no catolicismo, o humanismo jesuíta não seria soberano, pois, é no século XVII que apareceria um movimento chamado mais tarde de jansenismo. Mas o que seria o jansenismo? Jasenismo é o nome dado a uma doutrina que se expandiu, de maneira especial, na França; este nome dar-se-ia em conseqüência de seu precursor, Jansenius, que no dia 23 de outubro de 1636 torna-se bispo de Ypes. Em 1640 seu livro intitulado Corneli Jansenii Episcopi Iprensis Augustinus é colocado à venda. Nele, suas principais idéias eram desenvolvidas: eficácia infalível da graça no processo salvífico do homem sem prejudicar a liberdade (graça eficaz); cura da natureza humana e de seu restabelecimento na liberdade pela graça do Cristo redentor (poder, querer, fazer), havendo necessidade da mesma para toda boa obra; o homem é livre para fazer o bem, quando permeado por uma graça eficaz; gratuidade absoluta da predestinação.247 Nascido em 1585, o Flamengo Corneille Jansen, foi muito cedo estudar em Louvain. Continuou seus estudos em Paris, onde encontrou com Jean Duvergier de Hauranne, antigo aluno jesuíta, nascido em 1581. Interessante o fato de conviveram juntos em Louvain de 1600 até 1604, porém, não se conheciam, fato este que mais tarde se realizaria em função da ida dos dois teólogos a Paris para dar continuidade a seus estudos. Nesta ocasião estabeleceram grande amizade e estreita colaboração. Diante do desejo de refletir mais os ensinamentos que receberam, retiraram-se conjuntamente para Camp-dePrats entre os anos de 1611 à 1616. “Por alguns anos, os dois ficaram juntos na casa que Du Vergier possuía perto de Bayonne; foram anos de intenso estudo [...]”.248 Tal estudo seria a base das idéias da polêmica obra de Jansenius, o Augustinus, que tinha seu fundamento cravado nos argumentos de Agostinho contra o pelagianismo e “[...] que depois deram ensejo a Jansen de se gabar de ter lido dez vezes as obras de Agostinho e trinta vezes os escritos sobre a graça e sobre o pelagianismo.”.249 Portanto, nesta ocasião, Jansenius e Jean Duvergier aplicaram-se em vastas leituras patrísticas e escolásticas, acumulando uma enorme erudição. Neste período não apresentavam nenhuma preocupação quanto às controvérsias sobre a graça. Em 1616, Jansenius volta para Louvain onde ingressa na carreira universitária e, em meados de 1619 seu interesse sobre as questões da graça tornar-se-iam de importância capital em seus estudos, revelando o que seria, para 247 Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 32 – 33. Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 201. 249 Ibid., p. 201. 248 76 Jansenius, a essência do agostianismo.250 O historiador Martina ressalta que o jansenismo possui duas características importantes para sua definição: “O jansenismo pode ser considerado, por um lado, como a reação ao laxismo teórico e prático do séc. XVII e, por outro, como a exacerbação das controvérsias sobre a graça, tão vivas nos sécs. XVI e XVII.”.251 A crítica ao laxismo moral e supremacia da graça para toda boa ação são duas idéias que irão nortear os escritos dos seguidores de Jansenius. Em suas descobertas ele verifica que há uma diferença entre a graça de Adão e a de Jesus Cristo, sendo que a graça dada a Adão em seu estado de inocência, são e livre, permitiria ao homem escolher entre o agir bem ou o agir mal, de modo que a graça dada por Jesus Cristo ao homem caído é totalmente diferente, pois trata-se de uma graça libertadora e redentora que se apropria da vontade do homem e a submete a vontade regeneradora de Deus. Tais idéias devem a sua expansão ao seu companheiro de estudo Jean Duvergier, que será conhecido como SaintCyran. Em 1621, Jean Durvegier torna-se abade de Saint-Cyran em Poitous.252 Fica conhecido como abade de Saint-Cyran, personalidade que se tornaria o diretor espiritual e confessor das freiras que moravam no chamado convento de Port-Royal. Este mosteiro foi reformado por Jacqueline Arnauld, também conhecida por Mère Angélique. Vinda de uma família nobre, foi posta no convento com 7 anos: Port-Royal-des-Champs, que fica em um “[...] solitário vale, a cinco quilômetros de Versailles [...]”.253 Com 11 anos de idade recebe o cargo de abadessa254, fato este que vai contra as normas canônicas. Quatro anos depois fica gravemente doente e volta para casa de sua família, mas seu pai obriga a filha a voltar rapidamente para o mosteiro: “A vida de madre Angélica não era evidentemente nem melhor nem pior que de tantas outras mulheres, forçada como fora a seguir a vida religiosa sem nenhuma vocação [...].”.255 Sua “conversão” dar-se-ia em função de um despertar religioso por um monge capuchinho chamado Ange de Pebroke256: depois disso ela propõe uma reforma na vida espiritual do mosteiro aos moldes da observância integral da regra cisterciense, ou seja, “[...] vida comum, abstinência, clausura, orações noturnas...”.257 Aos dezoito anos o mosteiro estava sob a direção espiritual de Francisco de Sales que censurava 250 Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 19 – 20. Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 195. 252 Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 20. 253 Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 204. 254 Ibid., p. 204. 255 Ibid., p. 204. 256 Cf. Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética. trad. Éricka Marie Itokazu e Homero Santiago. São Paulo: Paulus, 2006, P. 14. 257 Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 204. 251 77 Mère Angélique procurando refrear suas intemperanças, mas com a morte deste, a abadessa trava conhecimento com Saint-Cyran que seria o novo orientador espiritual da abadia e passaria a exercer grande influência na vida espiritual das moradoras do convento. Com o aumento da comunidade, o convento de Port-Royal foi transferido, em 1626, para o subúrbio de Paris, em um mosteiro mais saudável, Port-Royal-Saint-Jacques.258 Todavia, o antigo mosteiro fora conservado. Com a transferência do monastério para Paris, o antigo, localizado perto de Versalhes, passa a ser freqüentado por alguns homens ilustres a partir de 1638. Este local foi chamado de Port-Royal–des-Champs, lugar onde os chamados “solitários” viviam em uma vida austera de oração, meditação, estudos da sagrada escritura e dos Santos Padres, assim como de alguns trabalhos manuais como a jardinagem; na verdade, o modo de vida dos solitários era quase monástico. Le Maître, Singlin, M. de Sacy, Antoine Arnauld – irmão mais novo da abadessa Mère Angelique –, Blaise Pascal, são nomes importantes que passaram temporadas nas dependências deste monastério. Tanto no convento de PortRoyal, assim como Port-Royal-des-Champs, a espiritualidade agostiniana ortodoxa era praticada como um modo de vida, na qual, pobreza e humildade, juntamente com a fé e esperança na graça de Jesus Cristo, eram cotidianamente vividas pelos moradores seguidores dos ideais de Jansenius e, por este motivo são chamados jansenistas.259 Todavia, espiritualidade rigorosa dos mosteiros tinha como seu principal promotor SaintCyran. Mas por causa de algumas desavenças políticas com o primeiro ministro, o cardeal Richelieu260, Saint-Cyran é preso na bastilha; na prisão, ele é visto como mártir por todo povo que era adepto as suas idéias, o chamado partido devoto.261 Já Jansenius, ao tornar-se 258 Cf. Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 204. Cf. Germano TÜCHLE, Reforma e Contra Reforma. trad. Waldomiro Pires Martins. Rio de Janeiro: Vozes, 1971, p. 224 – 225. 260 O cardeal Richelieu é um dos promotores da monarquia absoluta na França. Ele via o jansenismo como um movimento reacionário à monarquia absoluta que se estabilizava gradativamente. Quando Saint-Cyran sublinha que o autêntico cristão e eclesiástico não devem participar das questões políticas (cf. Lucien. GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 146), tal idéia é interpretada como um voto ao quietismo político. A atitude do cardeal foi encarcerar Saint-Cyran na bastilha e este só sairá de lá com a morte do cardeal. Sabemos que ao movimento jansenista se uniram figuras da alta aristocracia, membros dos tribunais soberanos e advogados que não gostavam da política da monarquia absoluta. Estes personagens ao se uniram ao jansenismo formaram um bloco forte contra a monarquia. Interessante é que este bloco estava isolado depois da Fronda, as guerras civis na França, e o jansenismo reuniu todos estes reacionários dando coesão ao bloco. Alguns parlamentares chegaram a sustentar que se fosse preciso estavam dispostos a ir contra o rei para o benefício do jansenismo. Esta construção que revela a força do movimento jansenista em seu viés materialista-político é realizada por Lucien Goldmann. Para mais informações ver Ibid., p. 133 – 183. 261 Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 29. Sobre o título de mártir outorgado a Saint-Cyran pelo povo ver Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 202. 259 78 bispo de Ypres, tem seu livro Augustinus praticamente terminado; tratava-se de quase 1300 páginas. No entanto, a morte vem ao seu encontro no dia 6 de maio de 1638: morrera contaminado pela peste. Em seu testamento ele confere à Santa-Sé o julgamento de toda sua obra.262 Esta é publicada em 1640, portanto, Jansenius não pôde assistir em vida a publicação de seu livro em meio aos protestos jesuítas, pois, no Augustinus, eram afirmadas as teses mais fortes do agostianismo, fato este que, diante de uma teologia humanista dos molinistas, o choque entre as opiniões seria inevitável. A publicação da obra de Jansenius marca o início das controvérsias sobre a graça. Os jansenistas trazem a discussão para o meio acadêmico. Porém, em 1642, o papa Urbano VIII assina no dia 6 de maio a bula In eninenti na qual condena a obra de Jansenius como uma renovação das heresias de Baius já condenadas pelo papa Pio V .263 Neste mesmo ano, Saint-Cyram foi libertado da bastilha em função da morte do cadeal Richelieu. Mas, estando fraco por causa dos 5 anos de prisão, morre dez meses depois, em 11 de outubro de 1643.264 Antes de sua morte, ainda na prisão, teve contato com a obra do amigo Jansenius, entregando-a a Antoine Arnauld, seu discípulo. Arnauld foi ordenado padre e doutor na Sorbonne em 19 de dezembro de 1641. Com a morte de Saint-Cyran, Arnauld assume a batalha na defesa da graça eficaz e da predestinação, compondo em 1643 a chamada Apologia a Jansenius e, em agosto do mesmo ano um livro intitulado como De la freqüente communion. “Antonio Arnauld (1612-1694) foi o maior colaborador e continuador de Saint-Cyran [...].”.265 Neste momento surgiria umas das disputas mais violentas com os jesuítas molinistas. Arnauld acusava os jesuítas de priorizar o homem como centro da possibilidade salvífica, ou seja, como promotor de sua própria salvação, e não a Deus. Acusava-os também de promover o laxismo na teologia moral. Mas o que seria o laxismo moral? Uma das conquistas do século XVI é a reflexão sobre os princípios que legitimariam a ação, transformando a dúvida especulativa em certeza prática. Com o desenvolvimento do probabilismo por Vitória e Medina na escola de Salamanca, sustentava-se o princípio que não se pode impor uma obrigação cuja a existência não se tem certeza. O desenvolvimento de tal probabilismo, de modo especial, no século XVII, levou alguns escritores a não se ater à grandes princípios do probabilismo, mas às aplicações particulares e contextuais, nascendo a casuística, na qual a ação é legitimada 262 Cf. Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 201. Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 36. 264 Cf. Ibid., p. 41. 265 Giacomo MARTINA, História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do absolutismo, p. 203. 263 79 pela aplicação de princípios que variam em cada caso específico.266 A casuística era praticada pelos jesuítas franceses e criticada pelos jansenistas como uma forma de promover e legitimar ações bizarras. Desta maneira, inicia-se, em 1649, a polêmica das chamadas Cinco proposições. Os jesuítas sustentavam que elas estariam presentes no Augustinus de Jansenius. As cinco proposições são compostas por cinco teses consideradas heréticas, sendo a última considerada falsa. Na verdade, foram levantadas sete proposições por Nicolas Cornet, sendo que duas, não foram para julgamento, pois foram reconhecidas como verdadeiras. Mas quais são as cinco proposições condenadas pelo papa Inocêncio X? 1ª - Os mandamentos são impossíveis aos justos que querem, com sua força presente, cumpri-los, pois, a graça pela qual tornariam possíveis tais feitos os falta.267 2ª - Com a queda de Adão, não reside mais no homem a graça interior.268 3ª - Para merecer e desmerecer no estado de natureza decaída, não é necessário que haja no homem uma liberdade que esteja isenta de necessidade: basta que haja uma liberdade isenta de constrangimento.269 4ª - Os semi-pelagianos admitem a necessidade de uma graça interior ao homem para cada ação e para o surgimento da fé, no entanto, sua heresia é que a vontade do homem podia resistir a esta graça ou usá-la como quiser.270 5ª - É um sentimento semi pelagiano e herege dizer que Jesus Cristo está morto e derramou seu sangue por todos os homens sem exceção.271 Estas cinco proposições272, dizia Arnauld, eram obscuras e teriam que ser explicadas e bem entendidas no seu sentido ortodoxo. Mas, depois de quatro anos do envio a Roma das cinco proposições, o papa Inocêncio X, condená-las-iam como heréticas, pois negam o livre arbítrio e só admitem ser de Deus a vontade restrita de salvar. Tal 266 Cf. Ibid., p. 197 – 198. Cf. Le COGNET, Le jansénisme , p. 50. 268 Cf. Ibid., p. 50. 269 Ibid., p. 50 – 51. 270 Cf. Ibid., p. 51. 271 Cf. Ibid., p. 51. 272 “As cinco proposições continham o seguinte: 1ª Alguns preceitos de Deus, nem os justos podem cumprilos com suas forças disponíveis, ainda que queiram e tentem fazê-lo. Falta-lhes a graça, pela qual a observância seria possível. 2ª No estado da natureza decaída, o homem nunca pode resistir a graça interna. 3ª No estado da natureza decaída, não se requer no homem a isenção da necessidade intrínseca, basta-lhe a isenção de coação extrínseca. 4ª Os semi-pelagianos admitiam a necessidade da graça preveniente intrínseca para todo ato humano, inclusive para o início da fé. Incorriam em heresia, por ensinarem que essa graça era de tal feitio, que a vontade humana podia segui-la ou resistir-lhe. 5ª É semi-pelagianismo afirmar que Cristo morreu pura e simplesmente por todos os homens, ou que derramou seu sangue por todos eles.”. (Germano TÜCHLE, Reforma e Contra Reforma, p. 226 – 227). Diante da obscuridade do sentido de tais proposições, citamos literalmente outra fonte histórica para que ajude ao leitor na compreensão das mesmas condenadas mais tarde pela Igreja católica. 267 80 condenação foi assinada no dia 31 de maio de 1653 pela bula Cum Occasione.273 “Elas foram condenadas separadamente: as quatro primeiras eram declaradas heréticas e a última falsa.”.274 O grande teólogo da Sorbonne, Arnauld, inicialmente, dizia que somente a primeira proposição poderia ser encontrada no Augustinus.275 Mais tarde relata não encontrar – depois de ler atentamente a obra de Jansenius – nenhuma das cinco proposições condenadas por Roma. Desta maneira estabelece uma distinção peculiar de um espírito jurista: a questão do direito e do fato. A Igreja é infalível, ela não erra em matéria de fé, sendo esta a questão de direito, no entanto, Arnauld, ao dizer que as cinco proposições não se encontram no Augustinus, sustentava a idéia de que na análise do fato, ou seja, na leitura e análise dos textos – Cinco proposições e Augustinus –, não há nenhum fato objetivo que poderia incriminar Jansenius. A infabilidade da Igreja atuava em questões de direito, mas não de fato, sendo assim, o carisma da Igreja só é válido nas questões de fé.276 Entretanto, no dia 15 de fevereiro de 1655, Arnauld foi excluído e afastado da Sorbonne, pois Roma condena as chamadas cinco proposições, no entanto, hesitam em atribuí-las a Jansenius. Mas antes de sua condenação definitiva e diante da difícil situação, Arnauld recorre a um físico recém convertido que, no momento, encontrava-se no monastério de Port-Royal-des-Champs, seu nome era Blaise Pascal. Este inicia a produção de algumas cartas que levam a polêmica ao público parisiense. As Les Provinciales escritas por Pascal ironiza os jesuítas e esclarece aos círculos mundanos as controvérsias sobre a graça. As 18 cartas publicadas iniciam-se em 23 de janeiro de 1656 e encerram-se em 24 de março de 1657.277 Neste mesmo ano, as cinco proposições são condenadas pelo papa recentemente eleito Alexandre VII na bula Ad sacran. Nela o papa afirma que as cinco proposições estão no Augustinus.278 Em 1661, é exigida a assinatura de um formulário pelo qual os 273 Cf. Germano TÜCHLE, Reforma e Contra Reforma, p. 227. Le COGNET, Le jansénisme, p. 61. 275 Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 64. 276 Cf. Guido ZAGHENI, A Idade Moderna: curso de história da Igreja – III. trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1999, p. 291. 277 Ver Blaise PASCAL, Les Provinciales. Paris: Aux Éditions du Seuil, 1963, p. 371 – 382. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 371 – 469. Nas três primeiras provinciáis Pascal esclarece de maneira simples e muitas vezes irônica as fronteiras entre Molinistas e Jansenistas. Delimitando aquilo que cabe a cada grupo, ele tira conseqüências da doutrina Molinista com o intuito de denegrir tal movimento. O caráter obscuro e equívoco que Pascal quer ressaltar revela contradições entre os próprios Molinistas. Na terceira Provincial o protesto em função da condenação de Antoine Arnauld é matizado fortemente. Sustentando que não há diferença entre aquilo que defende Arnauld e o Bispo de Hipona, a conclusão seria obvia: condenar Arnauld é condenar Santo Agostinho. 278 Cf. Le COGNET, Le jansénisme, p. 73. 274 81 jansenistas confirmariam a presença das cinco proposições na obra de Jansenius. Desta maneira, Pascal, provavelmente, emite em 8 de junho deste mesmo ano, um “mandamento”279 no qual Arnauld aceita a assinatura, porém, com a distinção do direto e do fato.280 Assim, a contra gosto, as religiosas de Port-Royal assinam o formulário com uma clausula explicativa. Este acontecimento causa violenta oposição ao grupo antijansenista que condenam tal assinatura. No dia 31 de outubro publicam um documento alertando que as assinaturas não podem ter cláusulas, mas foi inócua a exortação: novamente as religiosas assinam com uma cláusula anexada na qual há uma distinção de direito e de fato. O jansenismo continua vivo até o século XVIII, mas a bula Unigenitus Dei Filius assinada por Inocêncio XI em 8 de setembro de 1713, condena 101 proposições retiradas da obra Reflexions Morales de Quesnel, teólogo acusado de fazer ressurgir a doutrina jansenista. Diante deste breve ensaio histórico, verifica-se, na voz de Lucien Goldmann, que há quatro características comuns e gerais dentro do jansenismo, este que por mais de um século foi objeto de discussão de uma maneira especial na França: suportar, mesmo a contra gosto, o mal e a mentira do mundo; lutar pela verdade e pelo bem; confessar o bem e a verdade em um mundo radicalmente mal; calar-se diante de um mundo que nem sequer pode ouvir a palavra do cristão. Nestes quatro pontos há uma característica comum: condenar o mundo sem nele depositar nenhuma esperança histórica.281 Desta maneira, visto que as discussões sobre a graça permeiam as controvérsias teológicas do século XVII, situaremos Blaise Pascal neste contexto, pois, além de suas descobertas em física e matemática, mostrava-se um teólogo que afirmaria intransigentemente a ortodoxia agostiniana dos jansenistas. 3 – Pascal: um teólogo entre Deus e o papa. Blaise Pascal nasceu no dia 19 de junho de 1623 em Clermont, no Auvergne, região da França, na rue des Grands-Grads, e fora batizado dia 27 de junho, na igreja SaintPierre-de-Clermont.282 Seu pai chamava-se Étiene (1588-1651), era um advogado283 e 279 Le COGNET, Le jansénisme, p.77. Cf. Ibid., p.77. 281 Cf. Lucien. GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 186 – 187. 282 Henhi GOUHIER. Cronologie, p. 11. In: Blaise PASCAL, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 11 – 15. 280 82 tinha uma condição financeira privilegiada, sem falar que era um exímio conhecedor do grego e do latim, assim como da matemática. Tornara-se conselheiro eleito do rei.284 Em 1616 casa-se com Antoinette Begon,285 esta porém, morreu três anos286 após o nascimento de Pascal, ou seja, em 1626, deixando seus filhos sob os cuidados de Étiene287: além de Pascal, Gilberte, a filha mais velha, e Jacqueline, a caçula da família dos Pascals. Os quatro pouco tempo depois terão a companhia da governanta Louise Delfaut288 que nunca deixará a família Pascals, permanecendo com eles até a sua morte. Étiene, enquanto morava em Clermont, trabalhava como fiscal de impostos, no entanto, no ano de 1631, abandona a profissão e segue para Paris, ocupando-se da educação de seus filhos, de maneira especial, Blaise Pascal289: a família vai viver de renda.290 Em função de sua erudição291, via-se capaz de educar seu filho sem fazer uso de nenhum mestre escola, pois desta forma, pouparia a saúde precária do menino em meio às confusões da vida escolar.292 Assim, com 11 anos, a genialidade de Pascal começaria a despertar, fato este que se manifesta na produção de um texto bem argumentado sobre o som.293 Inicialmente, Étienne impulsiona Pascal, antes mesmo de completar 12 anos, no estudo do grego e do latim294, desta maneira, não era deixado na ociosidade, entretinha o 283 Étienne vai para Paris em meados de 1608 para estudar direito e teologia na Sorbonne. Ele é o primeiro dos Pascals a fazer isso. Paris fascina o jovem por tudo que a capital abriga como os matemáticos, tradutores de grego, latim e hebreu. Quanto aos ensinamentos da faculdade ele aprende logo a questionar. (cf. Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês. trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru: EDUSC, 2003, p. 23). 284 Com a morte de seu pai Martin, Étienne recebeu uma herança a qual possibilitou a compra do posto de Conselheiro eleito pelo rei na eleição de Bas-Auvergne em Clermont. É um cargo de extrema importância regional, uma espécie de magistrado que julga pequenos litígios fiscais entre a administração do rei e seus súditos. (cf. Ibid., p. 23). 285 Cf. Ibid., p. 23. 286 Cf. Ibid., p. 26. 287 Em 1624, Étienne compra um cargo ainda maior: o de vice presidente da cour des aides de Montferrand. (cf. Ibid., p. 24). 288 Cf. Ibid., p. 26. 289 Ibid., p. 21. 290 Cf. Ibid., p. 35. 291 Ver Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin., p. 13. Étiene Pascal tinha recebido de seu próprio pai o ensinamento do grego, latim, filosofia, matemática, história, direito canônico e civil, assim como o estímulo para a leitura da bíblia e dos Santos Padres. 292 Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal. Paris: Aux Éditions du Seuil, 1963, p. 18. In: Blaise PASCAL, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 17 – 33). 293 Pascal tinha o costume de bater com uma faca nos objetos que estavam sobre a mesa que titilavam de modo diferente. Não se contentando somente com a diversão, o garoto procurou saber a causa que motivava os diferentes sons nos distintos objetos tocados. Repete a experiência com outros materiais como a madeira e o ferro. Alguns sustentam que ele desceu até um poço para gritar. Como seu pai não tinha muito tempo para responder as suas dúvidas ele escreve as conclusões que chegou, compondo um ensaio que a família Pascals denominou de Tratado sobre o som. Tal escrito se perdeu. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 39 – 40). 294 “Antes mesmo de dominar inteiramente o francês, com cerca de sete anos de idade, Blaise começa a aprender latim.”. (Ibid., p. 27). Parece que Pascal também aprendeu o hebreu, língua que conhecia mal. (cf. Ibid., p. 42). 83 jovem no ensino das regras da gramática e suas exceções. “Em 1635, Blaise tem doze anos. Étienne Pascal decide que ele sabe latim suficiente para utilizá-lo. Essa língua será falada em casa quatro dias por semana: às segundas, terças, quintas e sextas.”.295 Dado o espírito cuidadoso e curioso do pai, Pascal herda não só a perspicácia científica, mas também a inquietude do pesquisador, pois, “[...] quando se interessava por alguma coisa, não abandonava jamais, enquanto não encontrava alguma boa razão que poderia satisfazer.”.296 Mais tarde Pascal tornar-se-ia um dos grandes matemáticos da França, mas antes disso, Étiene Pascal escondia os livros297 de matemática do jovem e os ensinamentos da mesma. Alegava que esta ciência satisfaz demasiadamente o espírito, sendo assim, proibia a qualquer um que dialogasse com o menino sobre tais assuntos. O estudo da matemática seria uma recompensa depois do aprendizado da língua grega e do latim. No entanto, tal empreendimento não obteve sucesso, surpreendendo o pai-mestre. Não se sabe se Pascal lia escondido Euclides ou não, mas o que nos chama a atenção é que nas horas vagas deleitava-se com figuras geométricas, desenhando-as em ladrilhos e nomeando-as. Nesta atividade lúdica ele chegaria a trigésima segunda proposição de Euclides.298 Não podemos dizer que este dado histórico comprova-se, pois trata-se de um relato de sua irmã preocupada com o sucesso intelectual e religioso de Blaise Pascal depois da sua morte, ou seja, um relato demasiadamente hagiográfico.299 Talvez Pascal tenha se apropriado da obra de Euclides e chegado a tais conclusões. Mas mesmo que tal fato proceda desta forma, o mérito do jovem Pascal não poderia ser diminuído, pois trata-se de uma criança lendo uma obra que, para compreendê-la, precisaria de um nível intelectual adquirido em uma idade mais avançada. Surpreende tal fato? Muito mais surpreso e entusiasmado encontrava-se seu pai: “Não choro de aflição, mas de alegria. Sabeis o cuidado que tomei em evitar a meu filho o conhecimento da geometria, de medo que isso o desviasse dos outros estudos. Entretanto vede o que fez”.300 Comunicando tal feito ao amigo, o Sr. Le Pailleur – homem que tinha reconhecimento dos matemáticos da época, mesmo sem ser um grande profissional na área –, Étiene acata a sugestão do amigo e, a partir daí, autoriza a leitura da matemática ao filho. 295 Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 36. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 18. 297 “A biblioteca de Étienne, aliás, só contém alfarrábios matemáticos, comentários religiosos, Montaigne por certo, Rabelais talvez.”. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 27). 298 Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 19. 299 Ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 24. 300 Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 19. 296 84 Na época em que a família permaneceu em Paris, o contato com os melhores matemáticos, físicos e intelectuais de seu tempo como Fermat, Desargues, Roberval, Gassendi, Hobbes, foram de grande valia para o jovem. Pai e filho participavam de encontros de um círculo do padre Mersenne301; este último, fundador da primeira academia científica da França e principal correspondente de Descartes.302 “Todos, por sua vez, respeitavam o gênio precoce do jovem amigo e ainda que Blaise pudesse ter perdido algo por não ir à escola, não lhe faltava o louvor e o encorajamento de mestres reconhecidos.”.303 Desde os primeiros passos em meio aos profissionais do saber, Pascal já chamava a atenção para sua capacidade intelectual ímpar. Nesta época, o grupo de pesquisa que Pascal participava entra em contato com a obra Discurso do Método (1637) de Descartes, obra esta que não causaria uma impressão muito boa a estes pesquisadores, de maneira que, a seu tempo, Pascal desafiaria suas idéias diretamente. A relação de Pascal e Descartes sempre foi marcada pela inveja e pelo ciúmes.304 Estando a família instalada em Paris e aproveitando a riqueza científica da capital francesa, Étienne começa a ter problemas financeiros. O governo francês comandado por Luís XIII e o cardeal Richelieu aumenta os impostos para atender sua dificuldades financeiras por causa da guerra dos trinta anos e no início de 1638 não paga um trimestre de juros aos detentores de dívidas públicas, ou seja, a renda da família Pascal é reduzida cada vez mais. Vários segmentos da sociedade se rebelam. Étienne participa da manifestação de protesto na rua Saint-Antoine, que aconteceu em frente ao palácio daquele que teria suspendido os pagamentos aos detentores de dívida pública, ou seja, o chanceler Séguier. Étienne fora identificado como um dos cabeças da manifestação e, por este motivo, é procurado pela polícia por ordem do cardeal Richelieu, ministro do governo de Luís XIII. Ele foge de casa e se esconde na casa de amigos que participavam da academia de Mersenne.305 Sem o Pai, Pascal mergulha seu espírito no estudo da matemática. Mesmo diante da produtividade científica de Pascal neste momento, sabemos que este fora um 301 “[...] ele (Pascal) compunha e progredia tanto que se encontrava freqüentemente nas conferências que se fazia todas as semanas onde os homens mais hábeis de Paris se reuniam para levar suas obras e para examinar as dos outros.”. (Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal p. 19). 302 Cf. Gérard LEBRUN, Blaise Pascal: Voltas, Desvios e Reviravoltas. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 29. “Na Paris aonde vai morar a família Pascal existem cerca de quinze academias desse tipo. Uma delas, por carta patente de Luís XII, datada de 29 de janeiro de 1635, se transformará em órgão oficial, com o nome de Academia Francesa. A que mais atrai Étienne é a mais célebre e a mais ativa de então: a Academia Parisiensis. Prefiguração da Academia des sciences française e da Royal Society britânica, que serão fundadas vinte anos depois, e dirigida por Matin Mersenne.”. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 38). 303 Alban KRAILSHEIMER, Pascal, p. 15. 304 Cf. Jacques ATTALI. Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 51. 305 Cf. Ibid., p. 43 – 45. 85 período difícil para os Pascals. A família de Étienne fica sob os cuidados da senhorita Delfaut. Em novembro de 1638, Étienne vai para Clermont e volta algumas vezes a Paris para ver Jacqueline: ela estava com varíola, doença mortal para uma criança. Ela melhora, mas a doença deixa algumas marcas. Começa o trabalho artístico da jovem para livrar seu pai da perseguição. Jacqueline tem dotes artísticos: era poetisa e atriz. O duque de Roannez, pai de Arthus, vizinho da família Pascal, apresenta Jacqueline a Mme de Morangis, personalidade que tinha acesso à corte. Ela encanta-se com o talento de Jacqueline e leva a jovem para corte várias vezes. O cardeal Richelieu era fascinado pelo teatro. Em uma destas visitas à corte, a jovem faria uma apresentação de L’Amour tiranique, de Georges de Scudéry.306 Ela faria o papel de Cassandra com grande sucesso. Depois da encenação o cardeal lhe segura no colo e Jacqueline cochicha em seus ouvidos uns versos que ela já havia preparado. O fato surpreende o cardeal. O cardeal aplaude. Está estupefato: a mocinha não só é encantadora, como também é boa atriz e poetiza. Concorda com tudo que ela lhe pede. Está disposto a anistiar Étienne Pascal desde que este compareça à sua presença em companhia dos filhos. Quer rever Jacqueline.307 Tal acontecimento dar-se-ia no começo de abril de 1639, assim, no dia 4 do mesmo mês, a família apresenta-se diante do cardeal com Étenne. A família está mais uma vez junta em Paris! Étienne viu que Pascal tinha aproveitado bem o tempo em que seu tutor esteve fora. Em setembro de 1639 Desargues convida Pascal a apresentar um trabalho no qual aponta para um novo ramo da matemática: a geometria projetiva. “[...] Pascal chega aos princípios da projeção, sobre um plano, de figuras traçadas no espaço.”.308 Todavia, apesar da situação de pai e filho rentistas, a situação financeira da família é delicada, pois os problemas com os pagamentos das rendas ainda não tinham sido resolvidos. O país enfrentava grande crise e será essa crise que irá tirar a família do problema financeiro: Étienne é convidado em outubro de 1639 por Richelieu a seguir com Séguier para Rouen com o título de adjunto do intendente do rei para a Normandia e de comissário representante de Sua majestade para os impostos e a cobrança da talha, um imposto sobre o sal.309 Étienne aceita e no dia 2 de janeiro de 1640 os Pascals mudam para Rouen. “Étienne 306 Cf. Jacques ATTALI. Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 45 – 47. Ibid., p. 49. 308 Ibid., p. 49. 309 Ibid., p. 52. 307 86 vai morar numa boa casa da rua Murs-Saint-Ouen. Agora tem auto nível de vida: carruagem, cavalos, criados.”.310 Será em Rouen que Pascal verá seu pai comandar carantonhas311, pois Étienne participa do processo de repressão do governo na cobrança dos impostos. As atividades científicas de Pascal continuam. Em 1640, aos 16 anos escreve um Tratado dos Cones, mas este fora perdido, conservando somente alguns traços por Leibniz e reconhecido por Desargues pelo poder racional e sintético do empreendimento. No dia 13 de julho de 1641 Gilberte, irmã mais velha de Pascal, casa-se com Florin Périer, ajudante de Étienne. As duas famílias moram juntas. Neste mesmo ano as dores constrangeriam Pascal: dor de cabeça e estômago, dores nos dentes, fica paralisado da cintura para baixo e seus pés frios; passa a andar de muletas e, com dificuldade para engolir, só ingere líquidos e às vezes desmaia.312 Depois disso, já com 19 anos, no ano de 1642, Pascal alcança glória: inventa a máquina de calcular, sendo construída dois anos mais tarde.313 Este fato causaria muita admiração por seu pai e uma espécie de obscuridade ao mal que também lhe causava, relata sua irmã Gilberte: Meu pai sentia um grande prazer, como se pode acreditar, do progresso do meu irmão em todas as ciências; mas ele não percebeu que estas grandes e contínuas aplicações do espírito em uma idade tão tenra podiam demasiadamente perturbar sua saúde e, com isto, ela começa a ser alterada desde que ele tinha a idade de dezoito anos. Mas como os incômodos que sentia neste momento não eram de tão grande força, não impediam de continuar todas suas ocupações ordinárias, de maneira que, foi neste tempo, e com a idade de dezenove anos que ele inventa a máquina de aritmética, pela qual não somente se faz todas as formas de operações sem a pena e tento, mas sem nenhum conhecimento propriamente da aritmética e com uma segurança infalível.314 Dois anos depois da invenção, um operário constrói a máquina de calcular sob a supervisão atenta de Blaise Pascal. A fadiga é conseqüência da produção deste trabalho, sendo que o cansaço maior não foi na invenção de seu mecanismo, mas o labor de fazer os operários compreenderem como usar da máquina: esta invenção do lhe renderia mais tarde 310 Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 53. Uma espécie de tropas. 312 Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 58. 313 Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 18 – 19. 314 Ibid., p. 19. 311 87 (1651) o título de inventor. Não é sem importância o fato de Pascal revelar que suas dores advinham desde os dezoito anos e, desde esta idade, não passara um dia sem sofrer de seus males. Todavia, apesar do cansaço e das doenças, inicia seus trabalhos sobre o vácuo Aos 23 anos, em 1646, inicia suas análises sobre o vácuo depois de ver a experiência de Torricelli. Escreve em 1647 uma obra chamada Novas experiências sobre o vácuo. Através dela contesta os argumentos vindos da escolástica na qual, a natureza tem horror ao vácuo. Talvez para nós, “pós-modernos”, não teríamos nenhum problema em conceber a idéia da existência do vácuo, no entanto, para o homem do século XVII o vácuo era visto com horror e temor. Começa aqui um confronto que duraria muitos anos e se estenderia não só sobre a física, mas também na teologia: o confronto entre Pascal e os jesuítas. Tal debate é precedido pelo contato de Pascal com o jansenismo que aconteceria pela visita de dois médicos-pregadores à casa dos Pascals Em 1646, o pai de Pascal encontra-se doente de uma ferida na perna.315 O socorro viria de dois irmão, Des Fandese La Bouteille316 que eram jansenistas, que além de servir Étiene com seus métodos medicinais, pregavam e praticavam a arte medicinal como obra de caridade. Assim converteram toda a família e os colocaram sob a direção espiritual do padre local Guillebert. Este momento caracteriza-se pela chamada primeira conversão de Pascal. “A ‘conversão’ de 1646 só fez reforçar a aplicação de toda família ao estudo da teologia positiva e daquilo que era considerada a fonte mais rica, a obra agostiniana.”.317 O pai de Pascal tinha uma formação agostiniana, naquilo que diz respeito a religião, mas é a faísca lançada pela pregação daqueles irmãos caridosos que faria Pascal dedicar boa parte de seu tempo na leitura da bíblia, dos Santos Padres e da moral cristã, esta que seria um objeto a ser alcançado com radicalidade no decorrer da sua vida. Não se sabe precisamente as disposições religiosas da família antes deste fato, o que se poderia dizer é que com a conversão da família, assim como de Pascal aos 23 anos, as disposições religiosas da mesma é transformada, no entanto, seria difícil traçar uma comparação entre o Pascal antes e depois da primeira conversão, mesmo porque este não é o objetivo desta pesquisa. Mas seria plausível supor que a primeira conversão implica em um reconhecimento de valores espirituais e uma exigência na prática destes valores, caracterizados pela fé e de um novo modo de vida. Entretanto, quanto a Pascal, as dores mais um vez incomodariam o jovem inventor. 315 Cf. Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 80. Cf. Ibid., p. 80. 317 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin., p. 13 – 4. 316 88 Em 1647 Pascal encontrava-se doente e acamado, seus males haviam aumentado, de maneira que não podia mais engolir nem líquidos como no ano que havia passado, a não ser que eles estejam quentes e com um cuidado especial: gota a gota. Sentia dores de cabeça e cólicas insuportáveis, de maneira que os médicos lhe receitaram uma gama de remédios, estes porém, seriam ingeridos depois de aquecidos e como fora recomendado, gota a gota. Os remédios deram-lhe um alívio, mas não uma saúde perfeita; os médicos mediante sua saúde precária recomendaram a renúncia de suas ocupações intelectuais e o deleitamento em algo que fosse agradável e satisfatório, de maneira que Pascal pudesse se divertir.318 Portanto, nada como a sociedade parisiense para que se pudesse desfrutar de tranqüilidade. Étienne autoriza Pascal e Jacqueline a irem para Paris acompanhados da senhorita Delfaut. Neste período, encontrando-se no leito, Pascal recebe a visita de Descartes319, todavia, as impressões entre os dois não foram muito favoráveis. Descartes era metódico, acreditava que a razão, de maneira eficaz, era capaz de compreender todos os princípios da natureza. A grande obra que traduz o método científico de Descartes foi O Discurso do método320, tendo como subtítulo para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. A verdade pode ser alcançada, basta fazer bom uso de nossa razão e de um método que esclarecesse e eliminasse toda dúvida. Descartes tem uma vida de estudos mais equilibrada e regular do que Pascal, pois, devido aos possíveis problemas com a Igreja – visto que Galileu já havia sido condenado pela Inquisição em 1633 – migra para Amsterdã, onde pôde com mais tranqüilidade compor seus pensamentos. Sua aversão à escolástica aparece nas primeiras páginas do Discurso do método: Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais minha ignorância. E, no entanto, estivera numa das mais célebres escolas da Europa, onde pensava que deviam existir homens sapientes, se é que existiam em algum lugar da terra.321 318 Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 21. “É possível que ele tenha sido intoxicado pelas emanações do mercúrio que manipulava havia um ano e guardava em seu quarto.”. (cf. Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 86). 319 Sobre o encontro de Pascal e Descartes ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 86 – 93. 320 René DESCARTES, Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 321 Ibid., p. 30. 89 Descartes completa seus estudos em La Flèche, colégio dos jesuítas fundado em 1604. Apresenta grande rejeição ao que lhe foi ensinado, de maneira tal que revela sua insatisfação e repulsa por toda escolástica.322 Os jesuítas tinham a escolástica como um dos maiores trunfos para a dissolução das heresias, no entanto, a abertura as novidades científicas da época eram sempre bem vindas, impulsionando o jovem Descartes à ciência e a matemática. Mas logo percebe o enorme abismo entre a produção científica da época e a escolástica, assim, indaga-se sobre a produção de um método para se chegar à verdade. Sabemos que, mesmo criticando a escolástica, Descartes não a abandonaria totalmente. Para ele, as disputas filosóficas entre os mais doutos levavam somente à dúvida e, conseqüentemente, à rejeição de todas às opiniões, de maneira que “[...] jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira [...]”323, sendo a verdade uma só. Por este motivo, sabendo de sua formação cristã e da facilidade com que o pensamento platônico pode adaptar-se ao cristianismo, seria plausível afirmar que o pensamento cartesiano possui um veio platônico muito forte. Reconhecendo a existência da verdade a priori, o problema para conduzir o espírito à verdade estaria no método. “Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir a razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei para conduzir a minha.”.324 Não se trata de elucidar um método que todos devessem seguir, mesmo sabendo que, para Descartes, o seu método é absolutamente eficaz para se chegar à verdade, no entanto, a busca da mesma sem um método pareceria ter como finalidade o fracasso. Mas em que consiste este método? Descartes propõe quatro regras. A primeira consiste em não aceitar, de forma alguma, como verdadeiro, aquilo que é passível de dúvida, sendo que os juízos precisam ser claros e distintos ao espírito.325 A 322 Ver René DESCARTES, Discurso do método, p. 29 – 33. Na primeira parte do Discurso do método o leitor encontrará a repulsa de Descartes aos seus estudos adquiridos em La Flèche, todavia, sabemos que Descartes deve parte de sua obra a estes estudos. 323 Ibid., p. 31. 324 Ibid., p. 30. 325 Cf. Ibid., p. 37. As idéias claras e distintas são criadas por Deus em nós, ou seja, o conhecimento que uma idéia deve ser clara e distinta trata-se de uma marca do criador em nós. No entanto uma pergunta se coloca? Como fazer a distinção entre as idéias claras e distintas e as idéias falsas? Esta pergunta é respondida em seu livro Meditações (Idem, Meditações, São Paulo: Abril Cultural, 1979), mais precisamente a terceira. Como Eu – ser pensante – poderia me enganar se Deus é a causa da minha existência e do meu pensamento? Sendo causa do meu pensamento, Deus, que é sumamente bom e não enganador, não poderia ser a causa de meus erros, pois isto seria uma imperfeição, logo, não poderia vir de Deus. No entanto, sabemos que erramos. O que seria o erro então? O erro “[...] é uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria possuir.” (Ibid., p. 116). O erro para Descartes não provém de Deus, mas é uma ausência de um conhecimento, pois este está em Deus e o homem não tem acesso em função de sua finitude e imperfeição. Descartes afirma que, aquilo que parece erro particularmente ou imperfeição, olhando as coisas no conjunto, nada mais é do que a perfeição da obra de Deus. (cf. Ibid., p. 117). Ele encontra com o mesmo problema de Santo Agostinho na discussão da origem do mal com os maniqueístas. O curioso é que Descartes usa do 90 segunda regra seria de dividir cada um dos problemas para que cada um deles fossem examinados quantas vezes fosse possível para melhor resolvê-los.326 A terceira propõe conduzir os pensamentos por ordem, assim, poderíamos ir dos mais simples para os mais compostos, subindo de grau em grau o conhecimento.327 A última, seria de fazer uma revisão tão completa e tão geral, que teríamos a certeza de nada omitir.328 Diante deste procedimento, o espírito poderia resolver todos os problemas e constituir um saber universal capaz de compreender todos os segredos da natureza. A esta ciência completamente nova, Descartes chamava de Mathesis universalis.329 mesmo argumento – que vimos acima – que Agostinho: “E, porque as não criastes todas iguais, por esta razão, todas elas, ainda que boas em particular, tomadas conjuntamente são muito boas, pois o nosso Deus criou ‘todas as coisas muito boas’.”. (Santo AGOSTINHO, Confissões, VII, XII, 18, p. 118). Descartes usa das distinções entre imperfeito, este sendo as coisas vistas na sua particularidade, e perfeitas em seu conjunto; Santo Agostinho usa dos termos boas, com referência as coisas particulares e muito boas no seu conjunto. Assim, tanto um quanto outro tentam retirar de Deus qualquer possibilidade de considerá-lo causador ou criador do erro, conferindo a este um novo sentido. Descartes chama o erro de privação, Santo Agostinho de ausência de ser. No entanto, nossa pesquisa não tem como objetivo traçar as raízes do pensamento cartesiano e nem propor que este argumento de Descartes foi retira de Agostinho, apesar da evidente aparência, mas vale ressaltar a curiosa analogia argumentativa. Visto que o erro marca uma imperfeição, a possibilidade de pautar meus juízos de maneira clara e distinta permite que eu não me engane, assim, a “[...] concepção clara e distinta é sem dúvida algo real e de positivo, e portanto não pode ter sua origem no nada, mas deve ter necessariamente Deus como autor; Deus, digo, que, sendo soberanamente perfeito, não pode ser causa de erro algum; e, por conseguinte, é preciso concluir que uma tal concepção ou um tal juízo é verdadeiro.”. (René DESCARTES, Meditações, p. 122). A metodologia cartesiana apropria-se do critério das idéias claras e distintas que solapa qualquer dúvida e conduz indubitavelmente à verdade, portanto, a partir disto, concluirse-ia que este critério metodológico só poderia ter Deus como origem e sustentação. 326 Cf. Idem, Discurso do método, p. 38. 327 Cf. Ibid., p. 38. 328 Cf. Ibid., p. 38. 329 Ver Catherine CHEVALLEY, Pascal, contingence et probabilités. Paris: PUF, 1995. p. 11 – 12. Descartes introduz a idéia de um método único e universal capaz de instituir o saber matemático como o modelo de todo conhecimento possível. Esta metodologia seria uma teoria geral que, sem importar com o objeto que se propõe conhecer, poderia fundamentar o conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que estivesse ao alcance do homem. Ver também Michel PATY, Mathesis Universalis e Inteligibilidade em Descartes. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas, s. 3, v. 8, n. 1, p. 9 – 57, jan./jun., 1998. Michel Paty destaca que o tema fundamental da filosofia de Descartes é a inteligibilidade e a possibilidade de assegurar a verdade deste conhecimento. A Mathesis Universalis na obra de Descartes enfatiza uma maneira de formular julgamentos sólidos e seguros a tudo que se apresente ao conhecimento. Trata-se da junção da matemática e a filosofia, na tentativa de estender a certeza matemática para todos os âmbitos do saber. A Mathesis Universalis proporcionaria um conhecimento seguro e objetivo, ou seja, um conhecimento fundamentado e evidente pelos raciocínios do sujeito pensante. As operações metódicas da razão (intuição e dedução) garantiriam um saber claro e distinto, concepção diametralmente contrária a Pascal: “Um (Descartes) quer assegurar o conhecimento sobre a certeza que a razão mesma pode fundar de modo absoluto, enquanto o outro (Pascal) considera o caráter finito da razão e sua incapacidade de fundar a certeza, interrogando extensivamente nossos saberes e as definições que os sustentam.”. (Ibid., p. 27). Se Descartes afirma a certeza, Pascal interroga até o silêncio de todas a possibilidades de fundamentar o conhecimento no sentido cartesiano do termo, ou seja, verdade, evidência. Para saber mais sobre o silêncio em Pascal ver Andrei Venturini MARTINS, As faces do silêncio em Blaise Pascal. Revista Último Andar: São Paulo: Educ (Prelo). Quanto a concepção de Pascal acerca do fundamento do conhecimento destacamos as pesquisas de Hélène MICHON em seu livro L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal. Há uma transferência do fundamento na autonomia da razão em matéria de filosofia para a teologia: “[…] a impossibilidade de encontrarmos no mundo das coisas um ponto fixo, figura a incapacidade pascaliana de encontrar na filosofia, entendida como o conjunto de conhecimentos humanos, um fundamento. 91 Para a construção deste saber, que poderia chegar a natureza das coisas, isto é, a verdade que sustenta a totalidade do universo, Descartes recorre inicialmente ao ceticismo, pois, duvidando de tudo ele poderia, diante dos escombros daquilo que foi derrubado, reconstruir o edifício do saber e chegar à verdade. A dúvida tornar-se-ia método. No Discurso do método a dúvida como atributo metodológico aparece na quarta parte da obra. Ela se ossifica em suas afirmações da falha dos sentidos e no argumento dos sonhos, no entanto, com o Cogito, Descartes vira a mesa. “Eu penso, logo existo.”.330 Se eram os princípios que serviam de base para o edifício do saber que não eram claros e distintos, fazer-se-ia necessário fundamenta-los331 para, a partir deles, construir aquilo que foi destruído através da dúvida. A certeza do pensamento comprova a existência como ser pensante, pois, não poderia de maneira alguma conceber o pensamento sem antes pressupor a existência, assim como o pensamento da não-existência somente serviria para provar que existo: o homem existe enquanto ser pensante. A existência é vista como uma perfeição, de modo que o não existente não poderia ser mais perfeito que o existente. Mas qual é a causa da idéia de perfeição como característica da existência? A causa só poderia vir de Deus. Todas as idéias de perfeição provêm de Deus, logo não resta nenhuma dúvida que Ele existe.332 Mas o que é Deus? Para Descartes, Deus é tudo aquilo de perfeito que se encontra no homem.333 O inatismo platônico fazer-se-ia presente. Quanto às coisas fora do pensamento, elas são absolutamente duvidosas e dignas de toda suspeita, porém, a dúvida é garantia do pensar. O homem é por essência (ou natureza) ser pensante, visto que é isto que difere o homem dos animais. Mas como saber se não há um Deus enganador ou de um gênio maligno que faria com que eu pensasse ser verdadeiro que 2+3=5 ou pensar que eu existo? Este encontra-se em outro lugar que não na filosofia seu centro e seu fundamento.”. (Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, p. 119). Destituir a filosofia de todo fundamento e transferir o mesmo para a teologia é fazer desta uma ciência hegemônica, pois só ela possui fundamento em si mesma. “A teologia é uma ciência, mas ao mesmo tempo quantas ciências há?”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 65, Bru. 115, p. 24). Pascal quer mostrar que se há uma ciência – entendida como o conjunto de conhecimentos universais e absolutos – está é a teologia. Portanto, se Descartes busca uma Mathesis Universalis, Pascal, ao contrário, defende que todo conhecimento humano é local. Discutiremos no próximo capítulo a questão da transferência do fundamento do conhecimento para a teologia. 330 René DESCARTES, Discurso do método, p. 46. 331 Cf. Ibid., p. 64. 332 Cf. Ibid., p. 47. 333 “Pois, segundo os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, bastava considerar, acerca de todas as coisas de que achava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e estava seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam.”. (Ibid., p. 48). 92 No Discurso do método Deus já é evocado como garantia da verdade. “Donde se segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, só podem por isso ser verdadeiras.”.334 Mas Descartes responderia a pergunta acima formulada com mais precisão em outra obra: as Meditações: concernentes a primeira filosofia nas quais a existência de Deus e distinção real entre a alma e o corpo do homem são demonstradas. Deus, com todos seus atributos – “substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual todas as coisas são [...], foram criadas e produzidas”335 – não poderia enganar o homem. “Daí é bastante evidente que ele não é embusteiro, posto que a luz natural nos ensina que o embuste depende necessariamente de alguma carência.”.336 Deus, sendo infinitamente perfeito, não poderia enganar o homem. Assim, Deus, como ser existente e não enganador, torna-se sustentáculo epistemológico das representações da mente pela perfeição metódica dos atributos doados por Deus – e explicito na geometria – de clareza e distinção.337 Mas como provar a existência de Deus como realidade diferente de um Eu pensante? Descartes sustenta que Deus é infinito338, bom, perfeito e existente339, não como 334 René DESCARTES, Discurso do método, p. 50. “[...] mas dita realmente que todas as nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as houvesse posto em nós [...]”. (Ibid., p. 51). 335 Ibid., p. 107. 336 Idem, Meditações, p. 107. 337 Na tentativa de afastar a dúvida, Descartes encontra duas verdades indubitáveis: “Mas, a fim de poder afastá-la inteiramente, devo examinar que há um Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois sem o conhecimento destas duas verdades, não vejo como possa jamais estar certo de coisa alguma.”. (Ibid., p. 100). Sem estas duas verdades – que Deus existe e não me engana – ele não poderia estar certo de coisa alguma, assim, Deus tornar-se, para Descartes, um argumento absolutamente necessário para a construção de sua filosofia e, depois disso, de sua física. 338 “E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir [...], que Deus existe; pois, ainda que a idéia de substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser uma substância, eu não teria, todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita.”. (Ibid., p. 107 – 108). A existência é um predicado de Deus, todavia, o predicado de todos os predicados é a infinitude de Deus: não há como sustentar, para Descartes, que a idéia de infinitude seja causada por um outro ser que não Deus. A existência de Deus é um atributo que está diretamente ligado com a noção de perfeição, portanto, se Deus não existisse seria uma carência. Logo, se tenho em minha mente a idéia de infinito, se tal idéia só poderia ser causada por um ser perfeito e, por este motivo, existente, a conclusão não poderia ser outra: Deus existe. É desta forma que o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, analisando a obra de Descartes, afirma a infinitude como o atributo dos atributos de Deus: “Ora, a idéia que em mim representa o infinito é a idéia de Deus, na mediada em que a infinitude é o predicado de todos os predicados de Deus. Tenho na mente uma noção de Deus como um ser que possui todos os predicados em grau infinito, e o responsável por existir em mim tal idéia só pode ser o próprio Deus, que teria, segundo Descartes, deixado impressa em mim a infinitude como a marca do artífice em sua obra.”. (Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1993, p. 66). 339 Sobre a existência de Deus como um atributo complementar da sua perfeição: “E toda a força do argumento de que aqui me servi para provar a existência de Deus consiste em que reconheço que seria impossível que minha natureza fosse tal como é, ou seja, que eu tivesse em mim a idéia de um Deus, se não existisse verdadeiramente; esse mesmo Deus, digo eu, do qual existe uma idéia em mim, isto é, que possui todas essas altas perfeições de que nosso espírito pode possuir alguma idéia, sem, no entanto, compreendê-las 93 uma simples idéia que provém de seus raciocínios, mas uma substância diferente e independente do seu eu pensante, sendo que este, nada mais é do que a marca deste mesmo Deus criador e incausado.340 Meu eu pensante, destaca Descartes, é imperfeito e finito, de modo que Deus é perfeito e infinito, desta maneira, não posso ser causa de mim mesmo, pois não tenho o poder de alcançar estes dois atributos que só poderiam vir de um Deus único e diferente de mim.341 As perfeições de Deus são todas aquelas que possuímos apenas fragmentos – Infinito, Eternidade, Imutabilidade, Onisciência, Onipotência –, sendo que nossas imperfeições excluímos Dele. “Ao passo que, voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma forma como na de um triângulo está incluso serem os seus três ângulos iguais a dois retos [...]”.342 Desta maneira, é tão certo que Deus existe quanto a soma dos ângulos de um triângulo somam 180 graus, pois é Ele quem marca meu espírito, ou alma – o que é a mesma coisa para Descartes – com suas perfeições. Portanto, concebendo o Eu pensante como existente em função de uma perfeição de Deus que o mesmo participa343 e, sabendo que Deus, por ser perfeito, não engana, como poderia Descartes afirmar a existência do mundo e, conseqüentemente, afirmar o homem como um composto344 (mistura) entre corpo e alma? Lembramos que Descartes somente concebeu até este momento como existente um eu pensante e a existência de Deus que não é este “Eu pensante”. A resposta a tal pergunta encontra-se na sexta Meditação. Descartes faz uma distinção entre duas faculdades: a passiva, capaz de receber as idéias das coisas sensíveis, todavia, esta seria inútil se não houvesse outra, a ativa, capaz de formar e de produzir as idéias. A existência da faculdade ativa não necessita do pensamento, logo ela “[...] não todas, que não é sujeito a carência alguma e que nada tem de todas as coisas que assinalam alguma imperfeição.”. (René DESCARTES, Meditações, p. 112). 340 Cf. Ibid., p. 112. 341 Ver Ibid., p. 47 – 48. Sobre os atributos de Deus. 342 Ibid., p. 49. 343 “E quando considero que duvido, isto é, que sou uma coisa incompleta e dependente, a idéia de um ser completo e independente, ou seja, de Deus, apresenta-se a meu espírito com igual distinção e clareza; e do simples fato de que essa idéia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que possuo essa idéia, concluo tão evidentemente a existência de Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de minha vida, que não penso que o espírito humano possa conhecer algo com maior evidência e certeza.”. (Idem, Meditações, p. 115). Descartes esclarece, a partir da existência de Deus, a chamada gradação de seres. O homem possui o ser concedido por Deus, todavia, este possui o ser em si mesmo, logo, poderíamos supor que o homem tem o ser tanto quanto Deus – algo que Descartes recusa a aceitar – ou tem menos ser que o próprio doador do ser. A gradação de ser se aplica às idéias também. Sobre este assunto ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 62 – 63. 344 Cf. René DESCARTES, Discurso do método, p. 48. Sabe-se que a composição implica em dependência, assim Descartes concebe que Deus é simples, de maneira que o homem, sendo criatura e, participando da existência por ato onipotente do Criador, é visto como dependente, pelo fato de ser composto por corpo e alma. Esta dependência implica em imperfeição. 94 pode existir em mim enquanto sou somente uma coisa que pensa.”.345 Descartes destaca que as idéias produzidas pela faculdade ativa realizam-se sem a contribuição de um eu pensante, de modo que muitas vezes as idéias aparecem de “[...] mau grado meu.”.346 Ao concluir a ausência de necessidade do pensamento para a existência da faculdade ativa, Descartes supõe que ela deva existir em uma substância diferente do eu pensante. Mas do que se trata esta substância? Descartes sublinha três possibilidades: ou esta substância é um corpo, ou seja, uma coisa corpórea, ou trata-se do próprio Deus, ou de uma outra criatura, esta porém, mais nobre do que o corpo. Diante deste quiásmo, qual seria a saída? Deus, não sendo, de maneira nenhuma, enganador, não me enviaria idéias de corpos sem que os mesmos existissem como coisa extensa e objetiva, este mesmo Deus porém, não deslocaria até meu pensamento idéias provenientes de seres nobres e sutis, de modo que meu eu pensante sempre se enganasse supondo que estas idéias são causadas por seres extensos e objetivos, portanto, Descartes “[...] tem uma fortíssima inclinação para crer que elas me são enviadas pelas coisas corporais ou partem destas [...]”347. Desta maneira, a realidade das coisas corpóreas, visto que não poderiam ser colocados em dúvida por causa de um Deus sincero e perfeito, faz parte de um conhecimento claro e distinto, portanto, verdadeiro. Todavia, sabemos que a representação do mundo sensível não é garantia da existência objetiva do mesmo. Sendo o mundo sensível composto por quantidade e qualidades – quente e frio; úmido e seco; etc – a dificuldade do idealismo cartesiano se manifestaria na representação das qualidades como claras e distintas pelo método. A quantidade é apreensível e julgada pelas noções matemáticas de clareza e distinção, já que as representações geométricas possuem uma extensão inteligível somente a artificialidade do argumento do Deus enganador que poderia produzir incerteza. Só me resta agora examinar se existem coisas materiais: e certamente, ao menos, já sei que as pode haver, na medida que são consideradas como objeto das demonstrações de Geometria, visto que, dessa maneira, eu as concebo mui clara e distintamente. 348 As idéia que concebo claramente através da geometria, como a extensão, são verdadeiras enquanto representação e objetivamente, pois Deus, como ele não é enganador, 345 René DESCARTES, Meditações, p. 135. Ibid., p. 135. 347 Ibid., p. 135. 348 Ibid., p. 129. 346 95 garantiria a existência destas idéias no mundo objetivo: desta maneira, a concepção ideal vem antes que a concepção real, ou seja, em Descartes a essência prescinde a existência. Mas às coisas não possuem somente quantidade, mas qualidades também. Desta maneira, vale a indagação: como corroborar as qualidades do mundo objetivo sem se submeter as oscilações dos sentidos? Descartes afirma que as qualidades “[...] são concebidas menos claramente e menos distintamente, como a luz, o som, a dor e outras semelhantes [...]”349, desta maneira, não encontramos a clareza e distinção exigidas pelo método, mas a crença de que Deus, por ser bom, não nos deixaria enganar ao afirmarmos que tais qualidades existem no mundo objetivo. O método ver-se-ia impotente diante da apreensão verdadeira das qualidades. Assim, Franklin Leopoldo e Silva afirma: “Essa massa qualitativa que atinge imediatamente os meus sentidos me é dada como um bloco indivisível, e o método é de alguma forma impotente para dividi-la quantitativamente.”.350 A objetividade só poderia ser totalmente demonstrativa se pudesse ser matemátizada. Como isso não é possível no nível da qualidade, assim, a demonstração total da realidade objetiva fica embargada.351 Portanto, não há dúvida que tudo que se encontra na natureza contém uma verdade garantida pela bondade de Deus, pois, a natureza nada mais é do que “[...] o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas.”.352 O homem como parte da natureza é tudo aquilo que o próprio Deus o concedeu, ou seja, uma alma e um corpo. Como a ordem construída por Deus não poderia ser algo que me engana e estando o homem na economia desta ordem, Descartes afirma que o homem tem um corpo, mas a união entre corpo e alma não pode ser demonstrada pelo método. A substância pensante pode ser provada pelo rigor do método, mas a substância extensa não, visto que a prova que temos de sua existência é a manifestação da ordem de Deus que o corpo faz parte. Todavia, tal ligação é tão intrínseca que este conjunto é um composto indivisível. Sendo assim, diz Descartes sobre o corpo, “[...] estou conjurado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um todo.”.353 Desta forma, Descartes sustenta não só a existência de seu corpo, mas de todos os corpos como uma matéria extensa. O espaço também é visto como matéria, assim, este seria um argumento direcionado aos resultados das experiências de Pascal sobre o vácuo, pois, se para Pascal o vácuo não era nem matéria, nem um puro nada, para Descartes, o espaço vazio entre a 349 René DESCARTES, Meditações, p. 135. Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 81. 351 Sobre os problemas do idealismo ver Ibid., p. 80 – 82. 352 René DESCARTES, Meditações, p. 136. 353 Ibid., p. 136. 350 96 extremidade do tubo de ensaio e o mercúrio era espaço – experiência de Torricelli –, portanto, era matéria.354 Diante desta pequena explanação do pensamento de Descartes, percebemos que para ele conhecemos clara e distintamente a existência de Deus, assim como seus atributos ou natureza, como por exemplo a infinitude, embora não os compreenda na sua totalidade, pois o homem é um ser finito. Todavia, a posição de Pascal seria diametralmente oposta em alguns pontos: não sabemos com toda certeza se Deus existe ou não, assim como a sua natureza, no entanto, sabe-se que existe um infinito, mas não conhecemos a sua natureza, o homem porém, é um ser finito. O deísmo de Descartes que sustenta a existência de Deus pela luz natural, ou seja, pela razão, é rejeitado fortemente por Pascal. Não poso perdoar a Descartes: ele bem que gostaria, em toda a filosofia, de poder dispensar Deus; mas não pôde evitar de atribuir-lhe um piparote para colocar o mundo em movimento; depois disso, ele não tem mais o que fazer de Deus.355 Para Pascal, Descartes faz de Deus um argumento para sustentar sua física, usandoo para compor sua filosofia e dar sustentação a todo edifício do saber por ele construído. Deus torna-se o princípio que garante a sustentação de todos os outros. Visto como um cientista obstinado a conceber a verdade e a certeza a partir da certeza metafísica, esta porém, aplicada a um método que distanciaria o pesquisador de toda dúvida através de idéias claras e distintas, Descartes precisaria somente de tempo para conhecer todas as coisas que se apresentam diante de si. Sabendo da proposta cartesiana de universalização sistemática do conhecimento, Pascal prefere um saber local. Percebemos isto em um de seus escritos que tem como título Prefácio sobre o tratado do vácuo (1651). É assim que, quando dizemos que o diamante é o mais duro de todos os corpos, nós entendemos que se trata de todos os corpos que conhecemos, e não podemos e nem devemos nisto compreender aqueles que não conhecemos de modo algum; e quando dizemos que o ouro é o mais 354 “Do mesmo modo, também, embora haja espaço nos quais não encontro nada que provoque e que mova meus sentidos, não devo concluir daí que estes espaços não contêm em si nenhum corpo [...]”. (René DESCARTES, Meditações, p. 137). Descartes sustenta o argumento da materialidade de todo espaço, desta maneira, inviabilizaria toda hipótese de vacuidade, esta porém, sustentada por Pascal. 355 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 1001, p. 431. Trata-se de uma proposição atribuída a Pascal por Marguerite Périer, filha de sua irmã mais velha, Gilberte Périer. Não temos o número da edição de Brunschvicg. 97 pesado de todos os corpos, estaríamos temerários de compreender desta proposição geral àqueles que não estão, de modo algum, ainda em nosso conhecimento, embora não seja impossível que eles existam na natureza.356 Em física fazer-se-ia necessário à experiência empírica; Pascal rejeita às experiências metafísicas na formulação de axiomas. Desta maneira, ao formular um axioma como a dureza de todos os diamantes, será necessário ressaltar que este axioma é construído a partir de todos os corpos que conhecemos, sendo que, em função das infinidades de coisas existentes no universo, não poderíamos conhecer às características de todos os corpos, assim, seu enunciado é valido somente para aqueles corpos cognoscíveis, submetidos a um determinado local e temporalidade. Da mesma maneira o ouro, sabendo que possui a qualidade de um metal pesado e inferindo a partir disto que ele caracteriza-se como o mais pesado de todos os metais, a validade deste enunciado é referente somente para todos aqueles metais que conheço, mesmo sabendo que poderia haver outro metal na natureza, ao menos como possibilidade, que superaria o peso do ouro. Mas não seriam as controvérsias científicas que abalariam profundamente Pascal. Outro fato marcaria um período muito difícil de sua vida, pois no dia 24 de setembro, morre Étienne Pascal, pai zeloso e cuidadoso de Blaise.357 A partirdeste fato, ele viveria anos dificílimos. Nesta época trava contato com a família dos Roannez. Parece que neste tempo, ele viveria um período mundano, mas o evangelho parecia latente, de tal maneira que escreve uma carta à família dos Périer em outubro de 1651. Nela ele afirma um agostianismo ortodoxo digno de um envolvimento muito forte com as idéias jansenistas. Nesta carta, encaminhada para sua irmã Gilberte Perier em função do falecimento de “M. Pascal le Père”, Pascal tenta trazer alguma consolação diante da situação aflita da família. A morte ganharia outro sentido para aqueles agraciados por Deus pelo dom da fé, ela seria uma etapa indispensável e justa para consolidar uma vida feliz e infinita; assim, o cristão teria como marca vital a esperança de um dia, superando todas as barreiras do mundo pelo sustentáculo da graça, poder desfrutar do reino que Deus preparou para aqueles por Ele pré-destinados. “Portanto, não nos aflijamos como os pagãos que não tem nenhuma esperança.”.358 A esperança torna-se a marca do cristão diante da morte, esta 356 Blaise PASCAL, Préface sur le traité du vide, p. 232. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 230 – 232. 357 Sobre a morte de Étienne Pascal ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 123 – 125. 358 Blaise PASCAL, Lettre A M. Et Mme Perier, A Clemont: A l`occasion de la mort de M. Pascal le Père, p. 277. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 275 – 279. 98 porém, aflige a todo instante o ser humano, somente Deus poderia retirar a criatura desta sentença irrevogável mediante a ressurreição em Cristo: eis o caráter teológico que daria sentido à morte. Porém esta, sendo encarada numa perspectiva horizontalizante encaminharia a um sentido absolutamente diverso daquele dito teológico, pois ela levaria ao fracasso todos os esforços da medicina para salvar a única coisa que realmente poderia permanecer vivo na concepção médica: o corpo. O homem, preso ao corpo somente, teria como finalidade a morte. Nesta carta, Pascal começa a manifestar os efeitos literários da sua primeira conversão. Estando a família convertida, no dia 4 de janeiro de 1652, sua irmã Jacqueline entra no convento de Port-Royal e Pascal vê-se inteiramente só, já que sua irmã Gilberte estava casada. Inicia-se a polêmica sobre o dote de Jacqueline. Com a morte do pai, é necessário dividir a herança da família. Jacqueline receberia desta herança, a partir de dados levantados por Jean Mesnard, cerca de 40.000 libras.359 Mas como a jovem resolvera consagrar-se a Deus, preferia usar tal valor de uma maneira totalmente diferente. O mosteiro de Port-Royal não exigia o pagamento de nenhuma quantia de qualquer pessoa que desejasse ser religiosa, mas aconselhava – e isto fazia parte da espiritualidade jansenista – “[...] que um cristão deve tudo a Deus e nada ao mundo.”.360 Jacqueline ficaria em meio a um dilema: dar a sua herança paterna aos irmãos – o que seria de grande valia principalmente para Pascal em suas experiências e empreendimento científicos – ou doar o dinheiro para o monastério. Em um primeiro momento, pensou em entregar todo dinheiro ao mosteiro e, desta forma, não ceder às exigências mundanas do irmão e da irmã. Depois, muda de opinião e resolve dar metade do dinheiro aos irmãos e a outra metade ao monastério. O dinheiro destinado ao monastério foi deixado em um primeiro momento sob os cuidados de Pascal, no entanto, Jacqueline não recebeu nenhuma garantia que ele seria entregue a Port-Royal. Ela pede para que Pascal entregue o dinheiro ao monastério antes de sua profissão e Pascal nega. Sentindo-se traída, chega a escrever, no ano de 1653, uma carta à madre priora censurando-se ter sido precipitada empregado mal seu bens, pois poderia tê-lo feito com mais caridade. Jacqueline cobra a consciência de Pascal reivindicando o dinheiro do dote; Pascal fica em um dilema: seria necessário escolher entre sua atividade científica mundana que o dinheiro lhe garantiria um respaldo considerável e a possibilidade de dificultar a profissão religiosa de sua irmã. O problema é resolvido em 4 359 360 Cf. Lucien GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 246. Ibid., p. 246. 99 de junho de 1653, pois o dinheiro é devolvido a Jacqueline que o encaminha para o fim que desejara.361 Neste mesmo ano, Pascal escreve um texto chamado Sobre a conversão do pecador, descrevendo o comportamento do homem quando permeado pela luz da graça. “Esta nova luz lhe dá temor, e lhe traz uma perturbação que atravessa o repouso que ela encontrava nas coisas que faziam suas delícias.”.362 A graça traria um comportamento completamente novo; em um primeiro momento traria temor, pois trata-se de romper com uma vida de pecado, depois, aquilo que era temor torna-se prazer, uma espécie satisfação que elevaria até o “[...] trono de Deus”.363 Neste texto, é claro a luta de uma vontade mundana atirada aos interesses temporais – prazeres, dinheiro, ciência – e os prazeres divinos – oração, jejum, adoração.364 Pascal encontrar-se-ia entre Deus e o mundo. Mesmo assim, continua suas pesquisas e, em 1654, escreve algumas cartas a Fermat, sendo que uma delas sobre A regra dos partidos.365 Todavia, apesar da vida mundana e dos descobrimentos matemáticos estaria aberto o caminho para uma vida religiosa mais austera, caminho este que seria um momento importante na vida de Pascal, tendo como ponto de partida à noite do 23 de novembro de 1654, uma segunda feira. O fato dura cerca de duas horas, iniciando-se às dez e meia e terminando meia noite e meia. Era a noite do memorial. 361 Cf. Lucien GOLDMANN, El Hombre y lo Absoluto, p. 246 – 248. Sobre a polêmica do dote ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 125 – 134. 362 Blaise PASCAL, Sur la conversion du pécheur, p. 290. In: Idem, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 290 – 291. 363 Ibid., p. 291. 364 Para saber mais sobre este texto ver Andrei Venturini MARTINS, Sobre a conversão do pecador: comentário e tradução. Revista Último Andar. São Paulo: Educ, n. 12, p. 145 – 164, jun, 2005. 365 Cf. Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la pensée de Pascal. Paris: J. Vrin, 1991, p. 108 – 112. Pascal escreve esta carta a Fermat por causa dos problemas colocados pelo Chevalier de Méré. Um jogo de azar é composto de vários lances, como por exemplo, o jogo de dados; cada jogador aposta uma certa soma, sendo que a totalidade desta soma retorna ao jogador que ganhar o número de lances fixados no início da partida. Exemplo: dois jogadores apostam 30 reais cada um, ao todo são 60 reais. Também estabelecem que, o ganhador de três lances leva a quantia. Mas o problema gira em torno do seguinte fato: como será dividido o dinheiro caso o jogo fosse interrompido antes de um dos jogadores ganhar os três lances? Como calcular a probabilidade do risco de perda e de ganho de cada um dos jogadores de maneira que cada um possa receber seu justo valor? O Sr. de Méré sustentava a impossibilidade do cálculo, mas Pascal, ao contrário, inventa a règles des partis. O termo significa “ajuste de contas”. Efetuar o parti é fazer a justa distribuição daquilo que se aposta no momento de interrupção de um jogo. No entanto, o partido só poderia acontecer caso o jogo fosse interrompido, pois se isto não acontecesse, o jogo iria até seu fim e o ganhador receberia aquilo que lhe é direito. O partido tem o objetivo afastar a probabilidade que o acaso lança cada jogador, desta maneira, com a interrupção do jogo, cada um poderá receber aquilo que lhe é direito através do cálculo. 100 Pascal chora muito, o texto apresenta termos de uma subjetividade intensa como: “Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz.”.366 Mas o que mais nos interessa é que neste pequeno texto ele parece mostrar uma nova perspectiva com relação à ciência e à fé. “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios.”.367 Nesta frase ciência e fé são vistas como algo distintos, de maneira que a fé não é fruto de raciocínios lógicos, mas obra da graça de Deus no coração do homem, todavia, a razão não é contra a fé. Não que esta idéia fosse uma nova descoberta de Pascal, pois ela já fora relatada em outros escritos como o Prefácio sobre o vácuo368, no entanto, a carta traduz o início de diversas tentativas de dedicar todo seu tempo a Deus. “Submissão total a Jesus Cristo e a meu diretor.”.369 Pascal, mesmo enlanguescido pela ciência e preocupações mundanas, agora se vê desafiado a renunciar tudo. Todavia, se sua irmã apresentava a intenção de entrar no convento de Port-Royal e consagrar-se a Deus desde 1640 – ato que era impedido pelo pai –, renunciando o mundo, em prol da caridade e da oração, assim como o corpo e, se possível, a Igreja para ficar com a verdade, Pascal, ao contrário, ficaria na tensão entre a Igreja e o mundo, o corpo e a alma, a razão e a fé, Deus e o Papa. Somente Deus poderia suprir a tensão e Nele o piedoso Pascal encontrava o caminho para a fé que dissolvesse todo antagonismo presente no convertido. Portanto, fazer-se-ia necessário colocar-se diante de Deus como um mendigo, sempre a espera de sua graça. Mas qual é a diferença da primeira conversão, em 1646, para a segunda? Podemos dizer que a tentativa de vivenciar o evangelho na sua radicalidade é um objetivo buscado com muito mais intensidade depois do episódio do memorial. “A faísca de 1646 transforma-se em fogo abrasador.”.370 Meses depois da noite de 23 de novembro, em janeiro 1654, Pascal dirige-se para Port-Royal-des-Champs, onde encontravam-se os solitários, les Messieurs, para fazer um retiro. Nesta ocasião ele lia a bíblia, o Agustinus, Santo Agostinho, Montaigne, Charron e Grotius.371 No antigo convento da freiras lideradas por Saint-Cyran, os solitários viviam uma vida monástica, assim, Pascal coloca-se sob a direção espiritual do Sr. Singlin e se distraia em conversas com o Sr de Sacy. Uma delas é publicada em 1728, por Desmolets, 366 Blaise PASCAL, Le Memorial, p. 618. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 618. 367 Ibid., p. 618. 368 Ver Idem, Préface sur le traité du vide, p. 230 – 231. 369 Blaise PASCAL, Le Memorial, p. 618. Vale lembrar que é mais importante o diretor de consciência para o jansenismo do que o confessor propriamente. Uma das primeiras providências de um convertido é conseguir um diretor de consciência. 370 Alban KRAILSHEIMER, Pascal, p. 24. 371 Cf. Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 174. 101 com o título Entretien avec M. de Sacy 372 ; este diálogo fora guardado por Fontaine, secretário do Sr. de Sacy; este último era versado no estudo da patrística, de uma maneira especial, Santo Agostinho. Ele proporcionava conversas com quem quisesse, falava de pintura, medicina, agricultura e qualquer outra coisa que lhe fosse proposta. Pascal relata ao Sr. de Sacy a sua leitura de Epíteto e Montaigne, sendo que o Sr. de Sacy dizia que aquilo que Pascal reconhece nestes autores, ele já havia encontrado em Santo Agostinho. “[...] Sr. de Sacy nisto chegando por um só golpe pela clara via do Cristianismo, e o Sr. Pascal nisto chegando depois de muitos desvios e se agregando aos princípios destes filósofos.”.373 Nesta obra podemos verificar que Pascal era um assíduo leitor de Montaigne, este que, mais tarde, o influenciaria em suas reflexões sobre política.374 Sabemos também que boa parte do conhecimento que ele tem dos clássicos se deve à leitura de Montaigne. A estadia de Pascal em Port-Royal permite um tempo de reflexão acerca de sua vida como cristão, ou seja, empenho nas orações, jejuns, e caridades, desta maneira, Pascal e o Sr. Roannez em abril de 1655 juntam-se para recuperar as áreas pantanosas de Poitou, usando de seus conhecimentos para favorecer a população pobre do local. Assim, verificase que Pascal não abandona suas atividades científicas, todavia, ele participa do trabalho indiretamente, de longe. Sabemos porém, que diminui energicamente suas atividades de física e matemática por um certo período, pois um outro desafio haveria de brilhar aos olhos deste físico reconhecido e famoso pela construção da máquina de calcular, por suas experiências sobre o vácuo e peso das massas do ar; agora Pascal tem um outro foco que pretende emprenhar toda a sua força: trata-se de um pedido de socorro do teólogo da Sorbonne, Arnauld, que em 1656 é ameaçado de censura, logo, recruta o amigo para que o ajudasse. Pascal inicia uma série de escritos que somariam o total de dezoito, as chamadas Les Provinciales.375 Nelas as principais teses jansenistas contra o laxismo da teologia humanista jesuíta eram sustentadas, sem deixar de lado o rigor e o humor, compondo uma controvérsia através de panfletos anônimos que seria conhecida por toda população de Paris. É a tentativa de recorrer à opinião pública, visto que as controvérsias sobre a graça, no momento, eram de cunho acadêmico. A última carta é publicada em março de 1657, 372 Blaise PASCAL, Entretien avec M. de Sacy. In: Idem, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 291 – 297. 373 Ibid., p. 297. Pascal ressalta a grandeza do homem através de Epíteto e a miséria do homem através de Montaigne. O erro de cada um deles é destacar um destes pólos e não mencionar o outro, consequentemente, o primeiro causa orgulho e o segundo, a preguiça. O ideal é ter os dois em mente, algo que o Sr. de Sacy sustentava constar em um só pensador: Santo Agostinho. 374 Trabalharemos alguns aspectos da política em Pascal no capítulo III. 375 Blaise PASCAL, Les Provinciales, p. 371 – 469. 102 sendo que estas são colocadas no index. Depois disso, Pascal inicia alguns trabalhos sobre milagres, em função do famoso milacle de la sainte Epine: trata-se de uma cura instantânea após um espinho – que os jansenistas acreditavam ter feito parte da coroa de Cristo – ter sido colocado em contato com Marguerite Périer, sobrinha de Pascal, que contava com uma fístula no olho esquerdo desce os três anos e meio. Os jansenistas viram este milagre como uma confirmação de Deus da veracidade das suas idéias. Deste momento em diante, Pascal dedica boa parte de seu tempo à teologia. Sabemos que sua perspicácia científica e espírito crítico marcaria sua vida como teólogo. Sua obra De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader, escrita em 1657, é um preâmbulo daquilo que seria seu método como teólogo. Neste texto, podemos perceber que se trata de uma obra de filosofia de linguagem pragmática, na qual, a linguagem não toca o ser, sendo somente a definição arbitrária de nome e coisa. Sua utilidade e seu uso são de esclarecer e abreviar o discurso, exprimindo, pelo único nome que se impõe, aquilo que só poderia se dizer em vários termos; de maneira que, entretanto, o nome imposto continua privado de todos os outros sentidos, se o tiver, para só ter aquele o qual destina-se unicamente.376 A linguagem tem um objetivo que se revela no seu uso, “[...] pois as definições são feitas para designar às coisas que se nomeia, e não para mostrar a natureza.”.377 Um destes objetivos é de abreviar o discurso, como é o caso da palavra “par”, pois ela revela um conjunto específico de números divisíveis por dois, privando de inserir neste conjunto qualquer outro número que não se enquadre à definição prévia. Sendo as definições livres, elas podem ser usadas para designar qualquer coisa, mas a definição tem que estar livre de qualquer outro sentido que não seja aquele especificado. Assim, se definimos a palavra tempo como “[...] medida do movimento [...]”378, teremos que destituir dele qualquer outra definição e usá-la como foi definida. Entretanto, poderíamos dizer que se explicou o que é o termo primitivo tempo? “Pois, não há nada mais fraco do que o discurso daqueles que 376 Blaise PASCAL, De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader, p. 349. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 348 – 359. 377 Ibid., p.350. 378 Ibid., p.350. 103 querem definir aquelas palavras primitivas.”.379 Assim, é impossível especificar o significado da palavra tempo per si, o que podemos fazer é defini-la e usá-la pragmaticamente. Este método será de grande valia em seus Écrits sur la grace380, produzida em 1656-1657.381 Mas será em 1657 que ele começará a trabalhar sua obra chamada Apologia a Religião Cristã, uma obra sobre a condição humana e outros temas que ganhariam fama como seus Pensamentos. Pascal não conseguiria terminar esta obra, ela ficaria inacabada, no entanto, trata-se de um compendio de suas idéias. O intuito principal da obra era mostrar para os libertinos pagãos que suas asserções racionais sobre as coisas eram tão improváveis quanto a religião que eles negavam. Pascal usava das próprias teorias pagãs para desdizê-las e reduzi-las à pó.382 “Eis a guerra aberta entre os homens, na qual é necessário que cada um tome partido e se coloque necessariamente ou nas fileiras do dogmatismo, ou nas do pirronismo. Porque quem pensar em permanecer neutro será pirrônico por excelência.”.383 O homem não tem saída, se ele toma partido em prol dos dogmáticos, somente faz a glória dos pirrónicos, pois, o que seria dos pirrónicos caso não existissem os dogmáticos. No entanto, se alguém se posicionasse como pirrônico, Pascal também inviabilizaria seu sucesso, pois, “[...] nunca houve pirrônico efetivo perfeito.”.384 O homem não consegue duvidar de tudo, sendo que mesmo ao duvidar de termos primitivos – tempo, espaço, número, movimento – 379 Blaise PASCAL, De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader, p. 350. Idem, Écrits sur la grace. Paris: Aux Éditions du Seuil, 1963. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 310 – 348. Este texto será trabalhado no segundo capítulo, desta maneira, não nos estenderemos em seu comentário neste momento. Tais escritos estão dividido em quatro partes na Éditions du Seuil, com prefácio de Henri Gouhier, que usaremos para este trabalho. 381 Ver Jean MESNARD, Essai sur la signification des ‘Écrits sur la grace’ de Pascal. In. Blaise PASCAL Ouvres complètes, OC JM, Paris: DDB, 1991, vol. III, p. 614. Mesnard sublinha a relação entre o De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader e os Écrits sur la grace. 382 “Mais do que isso, ele tinha seu método próprio e característico que consistia, na sua essência, em utilizar escolas de pensamento não-cristãs contrárias, a fim de que uma desqualificasse a outra, enquanto, ao mesmo tempo, enfatizava determinadas verdades aparentemente incompatíveis, para as quais, poderia ser demonstrado, só o cristianismo faria justiça.”. (Bem ROGERS, Pascal: Elogio do Efêmero. trad. Luiz Felipe Pondé. São Paulo: Editora Unesp, 2001, p. 21). 383 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 46. Ver também Renato LESSA, Veneno Pirrônico: Ensaios sobre ceticismo. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1995, p. 26 – 28. O nome pirronismo é dado em função do filósofo Pirro, que é considerado o fundador da tradição cética, segundo as narrativas de Sexto Empírico, pois Pirro não escreveu nada, ou pelo menos, nenhum escrito dele chegou até nós diretamente. Pirro teria sido um moralista que não se preocupava em configurar seus atos em sistemas; sua filosofia assistemática é uma espécie de modo de vida. “Tais prescrições poderiam ser resumidas na defesa de uma vida simples, na recusa, através da epoché – suspensão do juízo – , em conceder valor à discussões a respeito do caráter real ou verdadeiro das coisas, e na busca da ataraxia – imperturbabilidade –, por ele considerada como o maior dos bens.”. (Ibid., p. 27). 384 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 46. 380 104 sustentados pela natureza, ou melhor, pelo coração385, já faríamos uso destes termos.386 A razão é um instrumento que Pascal usa dentro da apologia da maneira que lhe aprouver. “A razão se oferece, mas é flexível a todos os sentidos.”.387 O homem não teria descanso em qualquer posição que quisesse tomar. Se ele se gaba, eu o rebaixo. Se ele se rebaixa, eu o gabo. E o contradigo sempre. Até que ele compreenda. Que é um monstro incompreensível.388 Pascal assumiria qualquer posição filosófica com o intuito de desqualificar um sistema que sustentasse idéias que se estabelecessem como verdades irrefutáveis. A idéia era combater ateus e libertinos em seu próprio terreno, para depois defender a religião cristã como única saída do mar nebuloso que o homem encontra-se depois da queda. Por este motivo, seria muita presunção de nossa parte sustentar uma hipótese que relata a posição de Pascal como cético ou dogmático, mesmo sabendo que a neutralidade é um posicionamento tipicamente cético. Desta maneira, nossa pesquisa prefere qualificar o Pascal da apologia como um contraditor com uma meta: persuadir o libertino que a única saída em um mundo despedaçado é a salvação do Deus cristão pela fé em Jesus Cristo. “É bom ficar lasso e cansado pela inútil busca do verdadeiro bem, a fim de estender os braços ao Libertador.”.389 Diante do caos mundano coroado pela morte, a saída de Pascal é pragmática, entregar-se totalmente a Deus, no entanto, o resultado é inútil sabendo-se que a fé dependerá totalmente de Deus, sendo assim, ela é um dom concedido por Ele para seus eleitos. Pascal insere na economia da apologia a necessidade da predestinação da criatura pelo Criador. 385 “O coração sente que existem três dimensões no espaço e que os números são infinitos, e a razão demonstra depois que não existem dois números quadrados dos quais um seja o dobro do outro.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282, p. 38). O coração é que sustenta os termos primitivos e a razão usa deles, porém, na medida que a razão pergunta o que são estes princípios, ela já faz uso deles. A operação da razão ocorre após a apreensão dos princípios pelo coração. Desta maneira, Pascal sustenta que a razão percebe que qualquer número sendo elevado ao quadrado nunca será o dobro do outro. Por exemplo 2²=4, 3²=9, 4²=16. Portanto, o axioma está construído: nunca haverá um número ao quadrado que venha ser o dobro de um outro número ao quadrado. Sobre a relação princípio e o coração discutiremos tal tema no próximo capítulo. 386 “Detenho-me no único ponto forte dos dogmatistas, que consiste em que falando de boa fé e sinceramente, não se pode duvidar dos princípios naturais.”. (Ibid., Laf. 131, Bru. 434, p. 45). 387 Ibid., Laf. 531, Bru. 85, p. 242. 388 Ibid., Laf. 130, Bru. 420, p. 44. 389 Ibid., Laf. 631, Bru. 422, p. 270. 105 Os Pensamentos compõe uma obra de difícil análise, com idéias em fragmentos muitas vezes curtos e cheios de lacunas. Pascal escrevia seus fragmentos em pedaços de papel e amarrava-os em maços; mais tarde foram publicados (1670) por alguns amigos jansenistas que elaboraram uma primeira edição na esperança de dar alguma coerência à obra. Muitos de seus fragmentos foram escritos no leito e assolado pelo cansaço de um corpo doente, por este motivo, alguns foram ditados a um de seus empregados que copiava-os. Nos últimos quatro anos de vida as doenças haviam tomado conta de Pascal, este porém, tinha uma dor de dente insuportável e, conseqüentemente, insônias, sendo que, mesmo em meio a este estado, produziu, no ano de 1658, novos pensamentos sobre a roleta. A fadiga causada por estes pensamentos e dedicação as suas descobertas prejudicaram inteiramente sua saúde. Diante deste quadro, ele escreve em meio às dores um texto chamado Prière pour demander à Dieu le bom usage des maladies390, em 1659. Nele Pascal pareceria juntar-se ao sofrimento de Cristo. “Dai-me a graça, Senhor, de unir vossas consolações a meus sofrimentos, afim de que eu sofra como Cristão. Eu não peço ser isento das dores; pois esta é a recompensa dos santos [...]”.391 Pascal despoja-se do mundo e sua relação com o mesmo é totalmente inócua. A preocupação com a exterioridade está em segundo plano, agora, torna-se uma alma entregue a Deus. Franklin Leopoldo e Silva comenta este texto: “O enfraquecimento do corpo é signo de anulação da exterioridade.”.392 Pascal pareceria renunciar todos os ídolos da exterioridade e viver sob estrema pobreza. Assim, vende suas carroças, cavalos, tapeçarias, seus belos móveis, prataria e, algo que não se esperava de um intelectual de seu porte, sua biblioteca, com a exceção da bíblia e de pouquíssimos livros, dando todo seu dinheiro que ainda restava aos pobres.393 Surpreendentemente sua saúde melhore permitindo que Pascal vá até o Auvergne (1660) para fazer um tratamento com águas recomendado pelos médicos para amenizar um pouco suas dores de cabeças. Neste ano escreve Trois Discours sur la condition des grands394, na qual ficaria expresso suas idéias políticas.395 Em outubro de 1661, sua irmã 390 Blaise PASCAL, Prière pour demander à Dieu le bom usage des maladies. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 362 – 365. 391 Ibid., p. 364. 392 Franklin Leopoldo e SILVA, A história e o mal. Síntese Nova Fase: Belo Horizonte. v. 24, n. 79, 1997. p. 454 – 455. 393 BEURRIER, Mémoires, III, ch. 40, n. 7 (citado por Laf., III, 54) apud Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 13. 394 Blaise PASCAL, Trois Discours sur la condition des grands. In: Idem, Ouvres complètes. edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 366 – 368. 106 Jacqueline morre em meio aos sofrimentos causados pelas perseguições às freiras de PortRoyal por não assinarem o formulário que nega as idéias de Jansenius. Pascal também censura a assinatura do formulário. Ora, depois que Roma falou e que se pensa que ele condenou a verdade (Bula de Alexandre VII condenando Jansenius), e que eles escreveram, e os livros que disseram o contrário estão censurados, é preciso clamar tanto mais alto quanto mais injustamente se é censurado e quanto mais violentamente se quer sufocar a palavra, até que venha um papa que ouça as duas partes e que consulte a antiguidade para fazer justiça. Assim os bons papas encontrarão ainda a Igreja em clamores.396 Mesmo sendo partidário à ortodoxia jansenista, Pascal no final da vida dá seu grito de protesto contra a seguinte afirmação: Roma locuta, causa finita.397 Pascal estaria entre Deus e o papa. Os jansenistas gostavam de ser reconhecidos como os defensores da verdade, assim, defender a ortodoxia católica agostiniana era o mesmo que defender o evangelho de Cristo. Pascal, sem medo de qualquer condenação grita cada vez mais alto as idéias do Augustinus, desta maneira, os próximos “bons papas” ao recorrer à tradição reconhecerão que Agostinho é critério de análise da doutrina da Igreja, verão quem está com a verdade e farão justiça. Os clamores que Pascal defende são as vozes da Igreja à espera da justiça Divina. Desta maneira, ele escreve um texto sobre a assinatura do formulário e se retira das controvérsias. Mas logo o ano derradeiro de 1662 chegaria. Neste ano, mesmo muito doente, Pascal realiza um outro projeto: seria um serviço de coches – coches à 5 sous.398 Estas seriam as primeiras carruagens de Paris, de modo que a primeira linha é inaugurada do dia 21 de março. Pascal fica rico, todavia, a renda deste projeto foi destinada aos pobres de Blois. “E se os médicos dizem a verdade e Deus permitir minha cura, estou resolvido a não me ocupar de outra coisa, durante o resto de meus dias, que não seja o serviço dos pobres.”.399 Pascal muda-se para casa de sua irmã Gilberte, pois tinha acolhido em sua casa uma família pobre que possuía um filho com 395 No terceiro capítulo deste trabalho analisaremos alguns aspectos da política de Pascal. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 916, Bru. 920, p. 373; grifo meu. (cf. ibid., p. 373 nota 8). 397 Roma falou e a questão acabou. 398 Para saber mais sobre a transportadora que Pascal era sócio ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 277 – 281. 399 Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 32. 396 107 varíola e poderia sofrer o contágio da doença.400 Na casa de Gilberte era constantemente atacado por cólicas e dores de cabeça. “Não sentem o meu mal, enganam-se; minha dor de cabeça é uma coisa fora do comum.”.401 Pede para receber a comunhão, mas como os médicos diagnosticavam que o seu mal estado seria passageiro, negavam-lhe a concessão da mesma. Sua dor de cabeça aumentou, os médicos receitaram caldos e vapores de água, estes porém, foram inúteis. À meia noite do dia 17 de agosto inicia-se uma violenta convulsão, ao terminar parecia estar morto. Mas com o tempo recuperaria a lucidez e o padre, que fora chamado, entra em seu quarto com a hóstia santa. Pascal ergue-se um pouco em sinal de respeito, recebe a comunhão e a extrema unção em prantos, agradecendo ao padre e, logo depois, exclama suas últimas palavras: “Que jamais Deus me abandone!”.402 Retornando às convulsões, elas durariam até a sua morte vinte e quatro horas depois, no dia 19 de agosto de 1662, uma da madrugada, data em que Pascal contava com 39 anos e dois meses.403 Morre aquele que seria um dos físicos e matemáticos mais importantes do século XVII, assim como um dos maiores defensores da graça de Cristo no sentido agostiniano do termo. No entanto, seus escritos e idéias despertam ainda hoje o interesse de estudantes do mundo todo404, de maneira especial, seus fragmentos sobre a condição humana tão abundantes nos Pensamentos. O homem sem Deus é visto por Pascal, assim como para Santo Agostinho, como um ser frágil, sozinho e perdido em meio às trevas. A vida deste teólogo do século XVII é um grande grito de uma alma dividida entre Deus e o mundo e, mesmo quando escolhe Deus, o desafio ainda não acaba, é necessário escolher entre Deus e o papa. Assim, todos os movimentos deste homem clamavam por uma só finalidade, a eleição de um Deus infinitamente misericordioso. Cabe agora, visto a importância da religião na vida de Pascal, tentarmos entender a teologia pascaliana para sublinhar as possíveis conseqüências do pecado em sua antropologia teológica. 400 Cf. Gilberte PÉRIER, La vie de Monsieur Pascal, p. 31. Ibid., p. 32. 402 Ibid., p. 33. 403 Cf. Ibid., p. 33. Sobre a morte de Pascal ver Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 281 – 286. 404 “Não foi Pascal, cujo retrato supervisiona a escrivaninha onde trabalho, que escreveu certo dia: ‘Todos os males dos homens vêm do fato de não saberem ficar sossegados no próprio quarto.’?”. (João PAULO II, Cruzando o limiar da esperança, trad. Antônio Angonese e Aphraim Ferrera Alves. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1994, p. 10). Talvez Pascal ficaria contente em saber que o falecido Papa João Paulo II tivesse seu retrato em sua escrivaninha de trabalho. 401 108 CAPÍTULO II Pecado Adâmico e Contingência Do impuro, o que pode sair de puro? E que verdade se pode tirar da mentira?405 Os Écrits sur la grace406 é uma obra teológica de Pascal. Nela percebemos que o teólogo francês foi um leitor atento às controvérsias sobre a graça que se encontravam na miscelânea de textos que exsudam no século XVII. Os quatro escritos revelam seu caráter metódico quando o leitor – impenetrável a uma leitura superficial – desta está atento ao “método” geométrico descrito no De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader. Metodologicamente, a tentativa de Pascal é mitigar o equívoco da linguagem marcada pelo processo entrópico que a discussão tomava direção. Ele tenta traçar as fronteiras entre as diversas escolas: Molinismo, Calvinistas, Luteranos e Jansenistas. Nela está presente uma espécie de síntese do Augustinus de Jansenius, todavia, não se trata de plagiar o mesmo. A disposição da matéria é diferente, ou seja, a aplicação de Pascal da teologia de Jansenius é outra: se Jansenius queria afirmar uma leitura ortodoxa de Santo Agostinho, Pascal, além disso, executa um trabalho de filosofia da linguagem sobre o debate vigente acerca da graça para fazer brotar a unidade conceitual. Tal unidade visa vincular à doutrina jansenista o agostinianismo e a teologia de Paulo sobre a graça. Ao romper com as fronteiras entre estes três pólos, Pascal endireita o caminho para que as pessoas não errem ao tomar sua decisão. Desprezar o jansenismo implica renegar o “Doutor da Graça” e o “grande Apóstolo”, ou seja, negar cruz de Cristo. Desta maneira, nosso trabalho toma como objeto a segunda parte dos Écrits sur la grace. Nela Pascal trabalha a doutrina agostiniana da condição humana antes e depois do pecado adâmico, ou seja, os dois estados de natureza e suas fronteiras limitadas por um divisor de águas: o pecado original. O homem depois da queda tem um estado de natureza distinto da criatura adâmica saída das mãos de Deus. Desta maneira, faremos do pecado original tema deste capítulo. Nosso objetivo é verificar como Pascal concebe esta transposição 405 Eclo 34, 4, Português. In: Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulus, 1990. Ed. Pastoral. O título desta obra inacabada não é de Pascal, mas foi dado pelos editores que encontraram os Écrits nas gavetas do aposento do escritor francês. (cf. Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 33). 406 109 entre o antes e depois da queda, tentando verificar quais as conseqüências do pecado. Além das possíveis conseqüências que encontraremos, objetivamos situar nossa pesquisa nas mudanças epistemológicas que sofreram o aparelho cognitivo humano. Desta maneira, indagamos: como o aparelho cognitivo humano apresenta-se depois da queda? Em suma, o objetivo deste capítulo é descrever a doutrina do pecado original, verificando as conseqüências em função da queda e, depois disso, deter-se nas possíveis implicações epistemológicas da queda. Traçado este mapa pelo qual previamente almejamos percorrer, uma hipótese norteará nosso capítulo: a contingência epistemológica em Pascal é uma conseqüência da queda adâmica. Sustentamos que a contingência, conceito que trabalharemos mais abaixo, é um desdobramento da soberba adâmica, ou seja, do pecado original. Para tal análise contaremos com três autores que serão nossos referenciais teóricos. O primeiro é Luiz Felipe Pondé, autor da obra Conhecimento na desgraça. Nela o autor reconhece os danos causados pelo pecado original e tenta sublinhar as possíveis conseqüências na física pascaliana: o autor detecta que Pascal produz um conhecimento local criando critérios para a construção do conhecimento. O segundo é Jean Mesnard, com seu clássico artigo Essai sur la signification des Écrits no qual comenta a obscuridade cognitiva que permearia o homem depois da queda, trazendo dados significativos para nossa pesquisa. Finalmente, a comentadora Catherine Chevalley, autora de Pascal, contingence et probabilités, obra que analisa o conceito de contingência à luz da física de Pascal, afirmando que a contingência manifesta-se em toda parte, todavia, restringe sua pesquisa à física. Depois de termos mapeado os objetivos, traçado a hipótese e convocado os comentadores, nos preparamos para assimilar o percurso de um pensador marcado pelo sofrimento corpóreo, pelo choque de sua cabeça no muro da razão e no sentimento de fragilidade frente ao mistério. Este porém, ao mesmo tempo que revela a fé outorgada por Deus como dádiva ao homem, manifesta também a contingência marcada pela incompreensão humana dos mistérios que acompanham a doutrina do pecado original. Todavia, veremos que são os mistérios que explicam o estado do homem depois da queda. Desta maneira, Pascal revela-se um pensador do homem, da natureza e de Deus, através do mistério. Este, pela sua incompreensão, manifesta a contingência, logo, a doutrina do pecado original com seus mistérios e a contingência apresentam-se nas pontas de um mesmo novelo de lã. Cabe ao nosso capítulo desfazer os nós e aplainar o caminho. 110 1 – A relação entre o pecado e a contingência. Na esteira de Santo Agostinho, Pascal distingue dois estados de natureza: antes e depois do pecado.407 No entanto, fazer-se-ia necessário ressaltar – em função das possíveis conseqüências epistemológicas que estes pormenores poderiam trazer – que para o teólogo francês não há duas naturezas, uma antes outra depois do pecado, mesmo que muitas vezes ele se refira assim em outros textos408. Para Pascal o homem adâmico e pós-adâmico possuem uma mesma natureza quantitativa409, mas divergem qualitativamente410, entretanto, a divergência não é total, algo que explicaremos abaixo. Mas no que implica ser partidário da idéia de duas naturezas – uma adâmica e outra pós-adâmica – que compõem o homem, ou seja, defender o “aumento quantitativo”, e quais as conseqüências ao defender uma mudança total “qualitativamente”, ou seja, uma diferença radical entre o estado adâmico e o estado pós adâmico? Quais as implicações epistemológicas disso? Pascal considera um erro sustentar uma diferença quantitativa da natureza, assim como radicalizar a diferença entre o estado antes e depois da queda, ou seja, radicalizar a diferença qualitativa. Vejamos as conseqüências da posição Luterana e de Pascal. 1.1 – Posição de Lutero e Blaise Pascal quanto ao estado de natureza do homem. A diferença quantitativa – duas naturezas – e a radicalização da mudança qualitativa – uma natureza totalmente diferente depois da queda – são sustentadas por Lutero. Este, na ótica de Pascal, ou seja, de seu agostinianismo jansenista, erra ao dizer que com o pecado o 407 “Santo Agostinho distingue os dois estados dos homens antes e depois do pecado e tem dois sentimentos convenientes a estes dois estados.”. (Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317). 408 “Segui os vossos movimentos. Observai a vós mesmos e vede se não encontrareis aí os caracteres vivos dessas duas naturezas.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 149, Bru. 430, p. 64). Apesar de Pascal usar do conceito “duas naturezas” neste fragmento, isto não significa que ele defenda a idéia de que há realmente duas naturezas no sentido literal do termo. A idéia de duas naturezas é defendida por Lutero, a qual Pascal repudia. Para melhor estabilizar a linguagem ficaremos com os conceitos usados por Pascal no início do segundo Écrits sur la grace: “dois estados de natureza”. Assim, o leitor poderá compreender aquilo que chamaremos de mudança qualitativa da natureza em Pascal, na qual uma natureza santa é corrompida pelo pecado. 409 O conceito “quantitativo” será usado para nos referirmos à quantidade de naturezas que envolvem a teologia aderida por Pascal e pelos Luteranos. Pascal sustenta a idéia de uma única natureza, antes e depois do pecado, uma em estado de santidade e depois em estado de corrupção. Já os Luteranos afirmam a existência de duas naturezas, uma antes e outra depois do pecado. 410 O conceito “qualitativo” será usado para nos referirmos ao estado do homem antes e depois do pecado. Para Pascal o homem depois do pecado conserva resquícios do período adâmico, já para os Luteranos a primeira natureza é absolutamente opaca ao homem decaído. 111 homem perde totalmente a primeira natureza e que agora possui uma natureza totalmente411 concupiscente e diferente daquela de Adão – diferença qualitativa radical entre o Adão saído das mãos de Deus e o Adão pecador. “Com efeito, para os teólogos reformados em geral, e pelos luteranos em particular, a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado original [...].”.412 É por este motivo que a graça de Jesus Cristo não regenera a natureza, pois esta, na visão Luterana, está em um estado tão lastimável que impossibilitaria a ação da graça eficacíssima no processo regenerativo. Portanto, a graça para Lutero destrói a natureza413 e concede aos escolhidos uma nova. Esta é a diferença quantitativa414 existente na teologia Luterana. Assim como o pecado destrói a natureza santa criada por Deus, a graça destrói a natureza pecaminosa e concede uma nova natureza. Pascal e Luteranos estão de acordo que Deus é criador de todas as coisas, conseqüentemente, criador de uma natureza boa e sem mácula. A natureza foi maculada pelo pecado para os Luteranos, assim como para Pascal, todavia, as conseqüências do pecado adâmico são desastrosas para os Luteranos: não resta nenhum vestígio do seu estado adâmico. Para os Luteranos, a diferença qualitativa entre o homem antes e depois da queda é tão radical que a ação da graça precisa destruir a natureza pecaminosa, pois a graça não consegue fazer com que a criatura rompa com o pecado, fazendo dos mandamentos preceitos impossíveis415 de ser cumpridos. O homem fica preso à gravidade do pecado. A graça, para os Luteranos, além de não devolver o livre arbítrio, pois o homem ainda encontra-se preso a uma natureza corrupta digna de destruição, somente concede aos escolhidos uma natureza nova, esta porém, concedida somente depois da morte, pela qual o homem liberta-se do corpo. Pascal concorda que a morte tem um valor 411 Para Pascal, o homem depois do pecado possui marcas de sua natureza antes do pecado de Adão. “Eis aí o estado em que os homens estão hoje. Resta-lhes um vago instinto impotente da felicidade da sua primeira natureza, e estão mergulhados na miséria de sua cegueira e de sua concupiscência que se tornou a sua segunda natureza.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 148, Bru. 430, p. 63). Este “vago instinto” é resquício do primeiro “estado de natureza” e, desta forma, anula qualquer possibilidade de que para Pascal exista duas naturezas, como muitas vezes ele se refere. Não há como sustentar a idéia de duas naturezas caso a segunda traz consigo resquícios da primeira. O homem, para Pascal, não perde a natureza com o pecado, mas mancha a natureza sem mácula que possuía antes da queda adâmica. A felicidade que está ancorada como um vago instinto depois do pecado é o suficiente para impulsionar o homem na busca do primeiro estado de natureza. Todavia, a busca é sempre inócua, pois a distância é grande e o homem, deixado à mercê de suas próprias forças é cego, não totalmente, como pensa Lutero, mas o suficiente para procurar um bem que não vai encontrar. 412 Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie , théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 191. 413 “De fato, toda teologia reformada, e particularmente luterana, é pensada em termos de oposição: a natureza se opõe à graça, a inteligência à fé, o homem a Deus.”. (Ibid., p. 195). A natureza corrompida não tem nenhuma relação com a graça, desta maneira, cabe a graça destruir a natureza. 414 “Tudo aquilo que está em nossa vontade é mal, tudo aquilo que está em nossa inteligência é erro. Isto é porque em consideração às coisas divinas, o homem só tem pura trevas, erro, malícia, perversidade da vontade e da inteligência.”. (Luther, Commentaire de l`épître aos Galates, Genève: Labor et Fides, 1958, t. XV, p. 186 apud Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 192). A pureza da concupiscência é o resquício de um pecado que dilacera toda Imago Dei presente no homem. 415 Ver Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 335 – 348. 112 restaurador, mas discorda naquilo que diz respeito à concessão da parte de Deus de uma nova natureza, pois isto implica em diminuir o poder da graça, na medida em que ela não pode restituir a natureza nem devolver o livre arbítrio. Pascal discorda dos Luteranos, para ele o homem terá sua natureza restituída, assim como seu livre arbítrio416, na medida em que Deus concede a graça. Pascal, criticando os Luteranos, insiste que se o homem não tem livre arbítrio não há porque ter preceitos, ou mandamentos, pois, se a natureza é corrupta e nunca se regenera pela graça, o homem está determinado a fazer o mal e é coagido a fazê-lo, desta maneira, o teólogo jansenista em questão acusa os Luteranos de maniqueísmo.417 Ao contrário dos Luteranos, Pascal defende a idéia de uma graça que cura e regenera uma natureza corrompida pelo pecado, a graça eficaz funciona como um remédio, desta maneira, não há destruição da natureza, mas cura da mesma. Portanto, em Pascal não há mudança quantitativa. Outro ponto que exsuda como um problema na visão de Pascal da doutrina Luterana como conseqüência do fato de que a natureza é destruída com a graça, é que o homem não seria capax Dei418 (capaz de Deus), eliminando a cooperação – no sentido agostiniano419 –, diminuindo a eficácia da graça e, conseqüentemente, anulando a cruz de Cristo. Porque Deus haveria de mandar seu filho muito amado para salvar o homem das garras do pecado através da graça se a natureza poluída não se regenera? Qual a função da graça se o homem é coagido a fazer o mal? A conseqüência 416 Pascal não faz muita diferença entre os conceitos de liberdade e livre arbítrio, algo presente em Santo Agostinho. Para Pascal, o livre arbítrio corrompido garante à possibilidade de escolher o mal que queremos fazer, já o livre arbítrio concedido pela graça faz com que o convertido cumpra os preceitos designados nas Escrituras, pois a graça regenera a vontade. 417 “Percebe-se suficientemente por tantas provas que os Maniqueístas e os Luteranos estavam dentro de um erro parecido naquilo que diz respeito à possibilidade dos preceitos; e que ainda que eles difiram, os Maniqueus atribuíam uma natureza má e incorrigível, os Luteranos, imputam a corrupção invencível da natureza, eles estão de acordo, entretanto, dentro das conseqüências, ou seja, que o livre arbítrio não está no homem de maneira nenhuma; que os homens são constrangidos a pecar por uma necessidade inevitável; e que os preceitos são absolutamente impossíveis.”. (Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 340). Pascal compara os Maniqueístas aos Luteranos com o objetivo de associar a heresia maniqueísta à posição Luterana. Os maniqueístas com uma natureza “má e incorrigível” tem o mal como absoluto e, desta forma, “incorrigível” na medida em que o mal presente é em si. Já os Luteranos a corrupção invencível diz respeito à natureza, na qual não se regenera com a graça, mas é destruída, algo que não acontece para os maniqueus. Estes dois pontos fazem parte das divergências, os maniqueus abolutizando o mal e os Luteranos abolutizando a corrupção. Mas é naquilo que convergem que Pascal tira conclusões consideráveis para seu objetivo: não há livre arbítrio, desta maneira, os homens são constrangidos a pecar e, conseqüentemente, os preceitos são impossíveis. Pascal constrói um silogismo com o intuito de depreciar a doutrina Luterana. “Das duas mais célebres heresias, o maniqueísmo e o pelagianismo, estas mesmas às quais combateu Santo Agostinho, Pascal vê sempre, em sua época, as vivas resurgências e estragos. A existência das heresias, a acusação de heresia, são um dos traços dominantes do espaço espiritual do século XVII.”. (Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal. Paris: Clerf, 1996, p. 186 – 187). 418 Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 444, Bru. 557, p. 179 e Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 271 – 275. 419 Ver p. 66 – 69 do primeiro capítulo deste trabalho. Nela tratamos sobre a cooperação em Santo Agostinho. 113 deste raciocínio é coroada com a afirmação de Pascal que relaciona a época de Santo Agostinho e as controvérsias sobre a graça que borbulhavam na França como um caldeirão fervilhante: “[...] os Maniqueus eram os Luteranos de seu tempo, como os Luteranos são os Maniqueus do nosso.”.420 1.2 – Pontuações epistemológicas. Não temos o objetivo em nossa pesquisa de nos ater às diferenças quantitativas e qualitativas entre Pascal e os Luteranos, mas somente destacá-las para verificar algumas das conseqüências epistemológicas destas diferenças, sendo este último o objetivo principal deste ítem. A permanência de uma mesma natureza em Pascal nos ajuda a perceber que o estado do homem depois do pecado ainda preserva “vestígios” de um primeiro estado de natureza que estão cravados no “fundo da alma”421: um “[...] instinto secreto que restou da grandeza de nossa natureza primeira [...]”.422 Mas instinto vago do quê? Da verdade e da felicidade: este instinto quem inspira o homem a buscar tanto a verdade quanto a felicidade423, conceitos que para Pascal possuem sentido na natureza – relativos e sujeitos a mutações constantes –, mas sempre relacionados a uma perspectiva sobrenatural. Para sublinhar as conseqüências epistemológicas que queremos precisaremos entender a relação entre o instinto e o coração em Pascal. Concordamos com Mesnard quanto a sua afirmação que o “ [...] melhor sinônimo da palavra ‘coração’ é sem dúvida a palavra instinto”.424 Assim, o coração é sensor que apreende e conserva os vestígios do primeiro estado de natureza, ou seja, tanto àquilo que concebemos como verdade quanto àquilo que concebemos como felicidade. A visão destes vestígios é sempre confusa, mas o suficiente para fazer o homem indagar-se sobre eles, buscá-los, ou, até mesmo, viver como se já tivesse encontrado, mas nunca totalmente, pois, caso encontre um destes vestígios sofrerá para conservá-los. Para Pascal todos os homens possuem uma opinião 420 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 340. Cf. Idem, Pensamentos, Laf. 136, Bru. 139, p. 53. 422 Ibid., Laf. 136, Bru. 139, p. 53. 423 “Anelamos pela verdade e só encontramos em nós incerteza. Buscamos a felicidade e só encontramos miséria e morte. Somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade e somos incapazes de certeza e de felicidade. Esse desejo nos é deixado tanto para nos punir como para fazer-nos sentir de onde caímos.”. (Ibid., Laf. 401, Bru. 437, p. 154). A verdade em Pascal faz parte de um desejo que se manifesta pela busca. Todavia, o homem é incapaz de encontrá-la. A busca da verdade torna-se a via sacra de um homem caído que sente a verdade mas não tem certeza de estar com ela ou não estar, desta maneira, o que permeia o homem é a incerteza, característica fundamental da criatura caída. A busca da verdade é o resultado da marca que ainda restou de um estado de natureza que no momento presente – decaído – é desconhecido. 424 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 94. 421 114 sobre a felicidade, afirmação feita no fragmento 136 (Bru. 139), ou buscam-na, ou estremecem de medo de poder perdê-la, na medida em que acreditam possuí-la. No fragmento 401 (Bru. 437) também será afirmado um desejo humano em buscar a verdade, tal desejo nos pune pelo labor da busca e nos faz perceber de onde caímos. Tanto a felicidade quanto a verdade são desejos misteriosos que o homem concebe em seu coração como vestígios vagos de uma natureza santa de outrora, sustentará Pascal nos Pensamentos. Mas será também no coração onde se encontram os chamados primeiros princípios usados pela razão para conduzir o raciocínio. Vejamos: Nós sabemos que não estamos sonhando. Por maior que seja a impotência em que nos encontramos de prová-lo pela razão, essa impotência outra coisa não concluiu senão a fraqueza de nossa razão, mas não a incerteza de todos os nossos conhecimentos, como pretendem eles. Pois os conhecimentos dos primeiros princípios: espaço, tempo, movimento, números, são tão firmes quanto qualquer daqueles que os nossos raciocínios nos dão e é sobre estes conhecimentos do coração e do instinto que é necessário que a razão se apóie e fundamente todo o seu discurso.425 Como o bispo de Hipona, Pascal muitas vezes não diferencia alma e coração.426 “Como o coração agostiniano, o coração pascaliano representa muitas vezes o dinamismo da alma.”427, dirá Philippe Sellier. Desta maneira, podemos dizer, com Sellier, que o coração é um dinamismo intrínseco no fundo da alma por fazer parte do mais íntimo do ser humano. Todavia, encontramos aqui uma diferença capital entre a concepção agostiniana e pascaliana do conceito coração: se para o Bispo de Hipona o coração envolve as faculdades da razão, Pascal, diferentemente, separa coração e razão428: “Mas Pascal nos contraria imediatamente recusando esta bela simplicidade, pois ele não cessa [...] de opor coração à espírito, à razão, ao raciocínio [...]”.429 Isso não significa que o coração é irracional, mas ele é um modo de conhecimento diferente da razão. O coração capta os termos primitivos e sustenta os princípios que a razão irá usar para produzir seus raciocínios e conclusões. Neste momento teremos quer traçar as diferenças de uso que Pascal faz entre os conceitos termos primitivos, 425 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282, p. 38. Nesta citação há um erro presente em algumas edições que trazem problemas graves na interpretação do fragmento. Falaremos deste erro abaixo. 426 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 126. 427 Ibid., p. 127. 428 Ver Ibid., p. 135 – 136. 429 Ibid., p. 128. 115 primeiros princípios, luz natural, coração e razão, fazendo menção ao contexto que o conceitos são usados por Pascal. Ele usa termo primitivo no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader430 e primeiros princípios no fragmento 110 dos Pensamentos, como é mostrado na citação que fizemos acima. Isto não implica dizer que Pascal faz referência aos dois conceitos como se fossem a mesma coisa. Mas qual é a diferença entre um e outro nos diferentes contextos? Na tentativa de esclarecer esta diferença, iniciaremos pela análise dos conceitos termos primitivos, luz natural, coração e razão, sublinhando as mudanças ocorridas entre o contexto que Pascal escreve as duas obras citadas acima, depois mostraremos a diferença entre termos primitivos e primeiros princípios. Na obra De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader os termos primitivos são nomes que não se pode definir sem obscurecê-los, são palavras conhecidas pela conformidade das pessoas, por exemplo: tempo, espaço, número e movimento. Estes são sentidos pela luz natural e sustentam todos os discursos.431 Desta maneira, os termos primitivos são nomes ou definições. Portando, eles são fundamentais ou fundantes de todo e qualquer raciocínio, desde do discurso do poeta até o discurso do geômetra. Pascal elogia a geometria como possuidora de verdades inferiores – ela não prova os termos, mas as verdades inferiores são os próprios termos primitivos –, mas é eficaz naquilo que diz respeito ao uso dos termos primitivos, ou seja, depois de definirmos os termos primitivos “a verdade” de um discurso será corroborada no uso dos termos sem cometer equívocos, ou seja, de modo que as conseqüências estejam de acordo com as definições não provadas, mas concebidas pela luz natural: “Não define tudo e não prova tudo, e é nisso que ela (a geometria) fracassa; mas só supõe coisas claras e certas pela luz natural e, por ser perfeitamente verdadeira, a natureza a sustenta em função do defeito do discurso.”.432 A natureza sustenta estes termos primitivos e os homens usam deles, pois, na medida que são submetidos ao discurso, ou na tentativa de explicá-los, causamos mais confusão do que esclarecimento, nisto Pascal concebe como o fracasso. Entretanto, os termos primitivos são tão claros pela “luz natural” que a natureza os sustenta.433 É desta forma que 430 “É isto que a geometria ensina perfeitamente. Ela não define nenhuma destas coisas: espaço, tempo, movimento, número, igualdade [...].”. (Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 350). 431 “Não se incorrerá jamais nisto ao seguir a ordem da geometria. Esta judiciosa ciência está bem distante de definir estas palavras primitivas: espaço, tempo, movimento, igualdade, aumento, diminuição, todo, e as outras que o mundo entende por si mesmo. Mas, à exceção destes termos, todo o restante dos termos que ela emprega é esclarecido e definido de tal forma que não necessitamos de dicionário para entender nenhum deles; de maneira que, em uma palavra, todos estes termos são perfeitamente inteligíveis ou pela luz natural ou pelas definições que ela (a geometria) fornece.”. (Ibid., p. 351). 432 Ibid., p. 350. 433 Cf. Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 129. 116 Pascal usa dos conceitos termos primitivos e luz natural. Agora, vejamos as diferenças entre o conceitos luz natura e coração nos seus respectivos contextos. Pascal usa luz natural no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, como vimos, para referir-se àquilo que chamará de coração nos Pensamentos. Assim afirma Philippe Sellier: “Mas muito rapidamente Pascal a mis au point uma antropologia mais precisa e designa a faculdade que se atribui estes conhecimentos imediatos, o coração.”.434 Em função de uma antropologia mais elaborada nos Pensamentos, coração é o conceito correto que substitui aquilo que Pascal chama luz natural no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader. Nos Pensamentos o coração sustenta de maneira imediata os termos primitivos assim como a luz natural no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader. Diante disso, dirá Mesnard: “A ‘luz natural’, o ‘coração’, fornecem, não idéias inatas, mas simples produtos de uma experiência humana fundamental.”.435 Mesnard relaciona luz natural e coração para mostrar que luz natural no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader tem o mesmo papel que o coração nos Pensamentos. Todavia, também ressalta que não há um inatismo idealista em Pascal: os termos primitivos são formados na mente humana a partir da experiência do homem com o mundo. Os termos primitivos, sustentados pelo coração – ou luzes naturais na obra De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader – através do sentimento – ato inteligente – não é conteúdo ontológico inato, mas resultado da experiência humana, pois os homens “[...] exprimem ambos a visão desse mesmo objeto pela mesma palavra, dizendo um e outro que ele se moveu [...]”436, entretanto, Pascal quer ressaltar que pelo fato de haver duas pessoas que atribuem um mesmo nome a um mesmo acontecimento, por exemplo, o movimento, isto não significa que eles estejam em conformidade de idéia. A tentativa de explicar o que é o movimento implicaria em atribuir outros nomes ainda mais obscuros. “É pois uma coisa estranha que não possamos definir essas coisas sem obscurecer. Falamos dela toda hora.”.437 Os termos primitivos aceitos pela razão não são provados por ela, mas são usados para constituir qualquer discurso. Depois de verificada a diferença entre os conceitos luz natura e coração nos seus distintos contextos, cabe agora ressaltarmos como Pascal usará o conceito luz natural nos Pensamentos. Quando Pascal usa do conceito luz natural nos Pensamentos refere-se à razão. No fragmento 418 sobre a aposta438, ele faz uso do conceito luz natural para começar argumentar 434 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 129; grifo meu. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 103. 436 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 109, Bru. 392, p. 37. 437 Ibid., Laf. 109, Bru. 392, p. 37. 438 Cf. Ibid., Laf. 418, Bru. 233, p. 159. 435 117 usando somente de alegações racionais. “Falemos agora segundo as luzes naturais.”.439 A percepção desta mudança revela que em Pascal há uma diferença clara entre o conhecimento racional e o conhecimento adquirido pelo sentimento e sustentado pelo coração: o conhecimento adquirido pelo coração não é provado pela razão e esta depende dele para sustentar todo o seu discurso. Tais discursos têm como base os termos primitivos ou nomes e, conseqüentemente, a razão forma os primeiros princípios. Portanto, cabe agora estabilizarmos o conceito primeiros princípios e traçarmos as diferenças deste e termos primitivos. Vejamos a visão de Mesnard quanto ao uso que Pascal faz dos chamados primeiros princípios: “No sentido mais preciso, é sinônimo de axiomas. Designa proposições evidentes e indemonstráveis que formam o ponto de partida do raciocínio, e que são dados pela natureza. [...]”440, e acrescenta, “Não são propriamente os termos que são princípios, mas a afirmação, sob forma de axiomas, que uma realidade lhe corresponde.”.441 Ele ressalta que os princípios são axiomas, por exemplo: existe o tempo; a reta é a menor distância entre dois pontos; o todo é maior do que as partes. A estes nomes, uma realidade lhes corresponde. Os primeiros princípios são proposições indemonstráveis e, assim como termos primitivos, é o coração que sustenta os princípios.442 Será nos Pensamentos que Pascal usará primeiros princípios com mais freqüência.443 No fragmento 110 da edição Lafuma há um erro detectado por Mesnard. Ele acusa algumas edições444 de falsear gravemente o sentido de uma passagem que se refere aos princípios.445 A passagem, citada acima, diz que os primeiros princípios são: “[...] espaço, tempo, movimento, números [...]”.446 A omissão de comme qu’il y a antes da palavra espaço traí o leitor, pois, o sentido da frase seria outro: há o espaço, há o tempo, há o número, há o movimento. Há dois nomes que se relacionam: o ser e o espaço. A relação de dois nomes produz um axioma, de forma que os primeiros princípios tem o mesmo significado que axiomas e não são termos primitivos como a omissão em algumas edições poderiam nos levar a pensar. Desta maneira, traçamos as diferenças entre os termos primitivos – nomes ou definições – e os primeiros princípios – axiomas. 439 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 418, Bru. 233, p. 158 – 163. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 93. 441 Ibid., p. 93. 442 Cf. Ibid., p. 94. 443 Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282 e Laf. 131, Bru. 434. 444 A edição Lafuma. A citação que fizemos acima do fragmento 110, no qual o erro é apontado, é descrita pelo nosso trabalho com o erro que Mesnard detecta para mostrarmos ao leitor o problema grave que ela propicia na interpretação do fragmento. 445 Cf. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 93 – 94; ver nota p. 94. 446 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 282, p. 38. 440 118 Diante disso, percebermos que Pascal ao afirmar a permanência de vestígios de um primeiro estado de natureza que estão cravados no fundo da alma e sendo estes vestígios um instinto – conceito que afirmamos, na esteira de Mesnard, que seria o melhor sinônimo da palavra coração –, concluímos que tanto a verdade quanto a felicidade também são termos primitivos indemonstráveis que servem como base para a construção de axiomas também indemonstráveis, como por exemplo: duas retas paralelas infinitamente nunca vão se encontrar. Eis um axioma indemonstrável. Desta forma, verdade e felicidade manifestam-se como um vácuo na teologia pascaliana, visto que há diferentes concepções de verdade, assim como de felicidade. Tal teologia concebe o homem como alguém colado à gravidade da queda, sendo que somente a graça pode preencher este vazio no fundo da alma, ou o vazio do coração humano, órgão que manifesta o dinamismo da alma em constante movimento em busca de Deus. O coração torna-se para Pascal o órgão máximo no qual Deus toca, ou seja, o coração é destacado em seu sentido religioso, como dirá Sellier: “Também no domínio do conhecimento religioso, as certezas do coração provém de uma correspondência profunda entre a realidade íntima do homem e a revelação que lhe propõe seu Criador.”.447 O coração é a pedra angular onde Deus manifesta seu amor pelo homem e lugar onde é injetado o sangue do cordeiro derramado na Cruz, ou seja, a graça. Sem a graça a felicidade e a verdade é um grande vazio, elas são sentidas como uma falta, um buraco. Para Pascal, a busca da verdade feita horizontalmente é o motor da curiosidade dos cientistas, por este motivo, tal percurso faz do pesquisador um ser errante em relação a verdade: a busca contínua é garantia da permanência de resquícios vagos de um primeiro estado de natureza. Portanto, depois de traçarmos as diferenças entre os conceitos termos primitivos, primeiros princípios, luz natural, coração e razão; e percebermos que a verdade e a felicidade, termos primitivos sustentados pelo coração, são buscadas pelo homem que sem a graça encontra o vazio; poderemos tirar as conseqüências epistemológicas entre Pascal e os Luteranos que objetivamos inicialmente. Pascal dirá para os Luteranos que tornar-se-ia impossível a busca da verdade e da felicidade, visto que o pecado destrói totalmente a natureza santa de Adão – diferença qualitativa radical –, assim como a graça dilacera a natureza maculada e lhe concede uma nova natureza – diferença quantitativa. Verdade e felicidade tornam-se conceitos absolutamente opacos para os Luteranos, pois, nem a graça pode iluminá-los no coração corrompido do homem. Todavia, para Pascal, o coração do homem deseja a verdade e isto 447 Philippe SELLIER, Pascal et Saint Augustin, p. 133. 119 fá-lo buscá-la. Os termos primitivos – tempo, espaço, número e movimento – são, para Pascal, prerrogativas básicas de qualquer raciocínio, todavia, são sustentados pelo coração, órgão sensor de Deus e que pode ser permeado pela graça. Desta maneira, Pascal faz todo conhecimento dependente do coração ao traçar as diferenças entre a teologia jansenista e Luterana, tirando conclusões epistemológicas que oblitera a teologia Luterana. Pascal perguntaria a Lutero: quem sustenta os termos primitivos e porque o homem busca a verdade se a natureza sofre uma corrupção tal que não resta nenhum resquício do estado adâmico? Se para Lutero a natureza está totalmente corrompida como o homem poderá buscar a verdade e a felicidade? Se a graça não pode restaurar a natureza radicalmente contaminada, então a graça não é eficaz, afirmaria Pascal, tirando estas conseqüências das primícias dos Luteranos. Portanto, se para Lutero a diferença entre o homem antes e depois do pecado é quantitativa – duas naturezas – e, conseqüentemente, qualitativa, na medida em que o homem depois da queda não possui nenhum traço do estado adâmico, ressaltamos que em Pascal a mudança entre o homem antes e depois do pecado não é quantitativa, mas qualitativa, todavia, diferente dos Luteranos na medida em que, para Pascal, restam resquícios vagos de um primeiro estado de natureza, algo inexistente para os Luteranos Este é um fator epistemológico que impulsiona o homem a buscar a verdade e só encontrar vácuo quando sua busca não é impulsionada pela graça. Há mudança qualitativa para Pascal, mas não total ou radical como pensam os Luteranos. Dizer que o homem é totalmente corrupto é apagar a imagem de Deus que permite ao homem perceber de onde ele caiu, buscar a verdade assim como a felicidade. Diante disso, sendo os termos primitivos e primeiros princípios sustentados pelo coração, Pascal vincula todo conhecimento ao coração, órgão pelo qual Deus age e imprime a suas leis, conseqüentemente, todo conhecimento dependerá do coração e a razão não entenderá os motivos do coração, logo, se há uma ciência, essa é a teologia dirá Pascal: “A teologia é uma ciência, mas ao mesmo tempo quantas ciências há?”.448 A verdadeira ciência não pode ser dependente, logo, a única ciência é a teologia, pois esta não depende de nenhuma outra, sendo autônoma em si mesma. A geometria, ciência infalível449, apóia seus raciocínios nos termos e princípios concedidos pelo coração – órgão teológico – tirando as conseqüências das definições estabelecidas, como dirá Mesnard: “[...] trata-se sempre de colocar os princípios e deles deduzir as conseqüências.”.450 Assim, Pascal coloca todo conhecimento humano na composição, na dependência do coração, que possui conteúdos 448 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 65, Bru. 115, p. 24. Ver Idem, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 350. 450 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 96. 449 120 indemonstráveis, e mergulha todo saber na insuficiência da razão em compreender os termos primitivos pormenorizadamente, visto que a tentativa de compreendê-los causa mais confusão do que esclarecimento. Eis uma conseqüência epistemológica importante depois que traçamos as diferenças entre a concepção Luterana e pascaliana do estado de natureza do homem, de modo que Pascal ao afirmar que ainda restam resquícios divinos na criatura pode construir toda sua teoria do conhecimento pragmática composta por termos primitivos, princípios e demonstrações, ou seja, tirar conclusão a partir dos termos e princípios estabelecidos. Os Luteranos ao negar a verdade que resta no homem como um resquício vago de sua primeira natureza não explicam como podem negar aquilo que os mesmo não conhecem de forma alguma por ter uma natureza totalmente corrompida. Depois de ter analisado as divergências quantitativas e qualitativas do homem em Pascal e Luteranos fazendo um diálogo entre as duas doutrinas e mostrando algumas conseqüências epistemológicas das mesmas, discutiremos as implicações qualitativas do pecado adâmico para Pascal, visto que este sustenta não haver duas naturezas como os Luteranos, mas dois estados de natureza. Assim, veremos que a diferença qualitativa em Pascal ilumina o estado de toda humanidade antes e depois da queda, de maneira especial, a condição humana pós-queda enquanto ser pensante: pensar é fazê-lo na contingência, este porém, conceito chave que construiremos mais abaixo. Procederemos, assim como o teólogo francês, descrevendo o estado do homem antes e depois da queda. 1.3 – Descrição do estado de natureza antes da queda. Dirá Pascal: Deus criou o primeiro homem, e nele toda a natureza humana. Ele o criou justo, são e forte. Sem nenhuma concupiscência. Com o livre arbítrio igualmente flexível ao bem e ao mal. Desejando sua beatitude e não podendo não a desejar. Deus não pôde criar nenhum dos homens com a vontade absoluta de condenálos. Deus não criou o homem com a vontade absoluta de salvá-los.451 451 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317. 121 Deus é o criador do homem e da natureza que o circunda. Em seu ato criador, três qualidades caracterizariam as criaturas:o homem é “justo”, “são” e “forte”. Sendo Deus Perfeito, tanto para Pascal quanto para toda tradição agostiniana, não poderia ser diferente que Sua obra é o reflexo de um engenheiro competente.452 Desta maneira, Ele não poderia criar outra coisa senão um homem “justo”, pois este contempla a face de Deus, ouve a sua voz e seus passos em meio ao jardim do Édem453; “são”, ou seja, não submetido à corrupção da matéria, doenças, dor, sofrimento e a morte; e “forte”, característica típica de um ser que tem todo instrumental para viver sua vocação, ou seja, o homem é um ser para Deus. Todas estas características estão ligadas diretamente com a Perfeição absoluta de Deus. Não se trata de dizer que o homem possui a mesma Perfeição de Deus ou que sua substância perfeita se misture com a substância Perfeita Dele, pois isto para um agostiniano seria detestável.454 A perfeição do homem espelha a Perfeição de Deus na medida que conhecemos suas diferenças no sentido que apontamos acima, ou seja, o homem adâmico é o homem perfeito criado por Deus. Lembremos o que Pascal tem em mente: Deus criou o homem e “sem nenhuma concupiscência”. A concupiscência455 é a marca do pecado caracterizado pelo vício que escraviza, que impulsiona o homem a repetir a maldade. A maldade, neste contexto, é entendida como uma corrupção de cunho moral. A ausência de concupiscência – vício, pecado – ressaltada no texto dos Écrits é uma forma de solapar qualquer possibilidade de concluir que Deus é Criador de uma natureza “poluída” pelo mal. Desta maneira, Deus criou o homem com um livre arbítrio flexível ao 452 Ver Susan NEIMAN, O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia, Rio de Janeiro, Difel, 2003, p. 131 – 224. O capítulo Condenar o Arquiteto destaca alguns pensadores da história da filosofia que objetivaram caracterizar Deus como um ser incompetente na construção do mundo, na medida em que permite o mal. Ver também David HUME, Diálogos sobre a religião natural, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 145 – 162. 453 “E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim [...]”. (Gên 3, 3, Português, In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969). Percebemos a “intimidade com Deus” de Adão e Eva antes do pecado nos passeios que Ele fazia no jardim, juntamente com o homem, e de Sua voz a ressoar em seus ouvidos suavemente. Sabemos que o conceito de “intimidade com Deus” figura a ação da graça em Santo Agostinho. No entanto, os “passeios de Deus”, assim como as Suas “vozes”, são encaradas de outra maneira depois da queda. “Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me.”. (Gên 3,10, Português. In: A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969). O temor em função do pecado faz o homem fugir de Deus, quer ter a sua frente qualquer coisa, contando que não seja Deus. Desta maneira, a Deidade torna-se objeto de fuga e, a vergonha de sua nudez, revela o horror de sua condição em relação ao Criador. O homem torna-se absolutamente teófobo. 454 “Se alguns pensam que nossa promoção futura será tão sublime que seremos convertidos em substância de Deus, chegando a ser o que ele é, vejam como podem defender tal afirmação; de minha parte confesso que não se deve admiti-la.”. (Santo AGOSTINHO, A natureza e a graça, XXXIII, 37, p. 148). Mesmo que nesta citação o Bispo de Hipona se refere ao homem regenerado pela graça de Cristo, não se pode esquecer que o novo homem regenerado pela graça é o espelho do Adão saído das mãos de Deus. A Perfeição de Deus é diferente daquela do homem mesmo em sua condição paradisíaca. Deus é uma Perfeição absolutamente inalcançável, ou seja, o homem pode ser perfeito dentro dos padrões de perfeição estabelecidos por Deus e nunca igual a Ele. 455 Ver p. 134 – 135 deste capítulo. 122 bem e ao mal, igualmente, sem nenhuma preponderância para nenhum dos lados, ou seja, o equilíbrio era mantido. Deus desejava a “beatitude” do homem, ou seja, que o homem pudesse ter a felicidade suprema e a bem-aventurança de contemplar o Bem em si mesmo que, para Pascal, enquanto teólogo, é o próprio Deus.456 Mas e se Deus não desejasse tal beatitude do homem? Certamente Pascal discorda desta idéia e quem a sustentasse seria acusado de Calvinista. Estes eram censurados por fazerem de Deus tanto a causa do bem quanto do mal.457 Os Discípulos de Santo Agostinho, assim como Pascal, sustentam que Deus em seu ato criador não tinha uma “vontade absoluta” nem de condenar nem salvar os homens. Para Pascal, esta vontade absoluta implicaria em um determinismo maniqueísta, pois, não há culpa e, desta forma, é Deus com sua vontade absoluta de condenar o homem que obriga-o a pecar. Neste sentido, a cooperação do homem para fazer o bem, algo presente em Santo Agostinho e 456 “Que o homem sem fé não pode conhecer o verdadeiro bem, nem a justiça.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 147, Bru. 361, p. 59). Tanto o bem como a justiça são conceitos que não podemos conhecer sem o auxílio da graça. Sustentamos que estes dois conceitos em Pascal são teológicos e somente compreensíveis em seus aspectos formais, entretanto, não podemos tocar àquilo que eles significam em si, pois, para Pascal, o significado está além do homem e somente Deus pela sua misericórdia poderia conceder a graça da compreensão. O coração seria o sensor capaz desta apreensão. 457 “A opinião dos Calvinistas é:/ Que Deus, criando os homens, os criou, uns para condenar e outros para salvar, por uma vontade absoluta e sem previsão de nenhum mérito./ Assim, para executar esta vontade absoluta, Deus fez Adão pecar, e não somente permitiu, mas causou sua queda./ Que não há nenhuma diferença em Deus entre fazer e permitir.”. (Idem, Écrits sur la grace, p. 312). Para Calvino, assim como para Pascal, Deus é o criador dos homens. A diferença entre os dois diz respeito ao motivo pelo qual uns e outros foram criados: uns foram criados para serem salvos e outros para serem condenados. Pascal sustenta que a previsão de méritos aconteceu depois do pecado de Adão, antes disso, Deus tinha uma vontade condicional de salvar a todos. Já Calvino formulava um decreto de Deus totalmente diferente: Deus tem uma vontade absoluta e superior, desta maneira, o homem não tem nenhum mérito e, conseqüentemente, não há cooperação da parte humana. O mérito das boas ações é totalmente de Deus em função de sua vontade suprema e absoluta. Calvino discorda que há uma previsão dos méritos para o julgamento realizado por Deus, pois isto implicaria em conceder ao homem a salvação pela previsão de seus méritos, ou seja, Deus conheceria os méritos de cada um em cumprir aquilo que seria concedido pelas escrituras e a partir disto outorgaria sua sentença. Diante deste quadro, Calvino nega toda salvação pela previsão, já que a conseqüência disto faria da vontade de Deus dependente da vontade dos homens, algo incompatível com um teólogo que postula a idéia de uma vontade absoluta de Deus. Calvino sustenta que esta vontade de Deus age mesmo antes da criação dos homens e, por este motivo, induz o homem a pecar: “Que Adão, tendo pecado necessariamente por um decreto de Deus [...]”. (Ibid., p. 319). Todavia, a culpa é do homem e ele merece a condenação. Assim, Pascal lança luz a dois conceitos fundamentais na teologia Calvinista: o “fazer” e o “permitir”. Para Calvino, não há diferença entre estes conceitos. Como a graça provém de Deus àqueles a quem Ele bem o quiser e, estando com ela o homem não peca de forma alguma, o pecado somente se realiza na medida em que o homem está fora dos cuidados da graça. Se a graça não está com o homem isto acontece porque Deus quer, já que a vontade de Deus é absoluta. Deus é visto como causa da salvação e da condenação e, conseqüentemente, diz Pascal, “[...] causou sua (do homem) queda”. (Ibid., p. 312; grifo meu). Diante da onisciência de Deus, o conhecimento do pecado de Adão era algo evidente para Calvino, desta maneira, se mesmo sabendo do pecado e suas conseqüências horríveis para humanidade, Deus criou o homem, então Ele permitiu que Adão pecasse. Deus poderia ter impedido se Ele quisesse, mas não o fez, mais uma prova para Calvino de que Ele não só permitiu, mas causou o pecado. Seria o mesmo que um pai que presenteia o filho com uma faca bem afiada, não é nenhuma novidade que o filho vai se cortar. O conceder da faca é o mesmo que permitir o ferimento a um filho que não sabe manuseá-la. A conclusão Calvinista não poderia ser outra: Deus é causa da salvação e da condenação. Os conceitos destacados por Pascal da teologia Calvinista dilaceram toda vontade humana, já que Deus tem uma vontade absoluta. 123 aceito por aqueles que se diziam seus discípulos, também é descartada. Mas qual é a vontade de Deus em relação ao homem para os discípulos de Santo Agostinho? Vejamos: Deus criou os homens na vontade condicional de salvar a todos universalmente se eles observassem seus preceitos. Senão, de prepará-los como senhores, isto é, de condená-los ou de lhes fazer misericórdia seguindo seu bom prazer. O homem inocente e saindo das mãos de Deus não podia, embora forte, são e justo, observar os mandamentos sem a graça de Deus.458 Deus quer salvar a todos, mas não com uma “vontade absoluta”, como pensam os Calvinistas, mas com uma “vontade condicional”. Diante disso indagamos: o que seria esta “vontade condicional”? Deus quer salvar a todos universalmente, todavia, para que isto aconteça é preciso que os homens obedeçam aos preceitos de Deus: esta é a condição, estabelecida por Deus, para salvá-los.459 A lei serve como modelo regulador daquilo que se deve fazer usando de um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal. Sem a lei não há pecado, mas com a lei, dois elementos importantes na dinâmica da teologia de Pascal entram em cena: Justiça e Misericórdia.460 A condenação e a salvação do homem são permeadas por estes dois atributos de Deus. Se o homem pecar, ele é justamente condenado, se não, Deus é justo e misericordioso em salvá-lo. Entretanto, no estado pré–adâmico, Deus preparou os homens de tal maneira que eles eram “senhores” de suas próprias ações em função de um livre arbítrio 458 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317. Pascal não queria correr o risco de postular uma vontade absoluta de Deus e cair no erro Calvinista. Ele defente a idéia de uma vontade condicional para que não seja atribuída a Deus a “culpa” do pecado, fazendo Dele um monstro. Para a nossa pesquisa, Pascal só concede maior ênfase na onisciência de Deus depois do pecado para não cair no “erro” Calvinista. Se a onisciência de Deus é absoluta, conseqüentemente, Ele saberia qual seria as conseqüências da criação do mundo e do homem. Logo, Ele teria permitido o pecado. Para não cair no espiral deste raciocínio fazer-se-ia necessário não absolutilizar a onisciência de Deus destacando-a somente depois do pecado de Adão cometido por sua livre e espontânea vontade. 460 Cf. Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 635. Justiça e Misericórdia são dois conceitos que entram em cena quando se trata das controvérsias sobre a graça no século XVII. As três escolas – Calvinistas, Molinistas e Jansenistas – estão de acordo que estes dois atributos fazem parte de Deus. Para os Molinistas, Deus concede uma graça suficiente a todos os homens por Justiça, pois, caso não outorgasse tal dádiva os pecados não poderiam ser imputados aos homens. Desta maneira, esta escola concede maior ênfase à Misericórdia de Deus. Os Calvinistas concedem maior ênfase à Justiça divina, pois é Deus que decide quanto a salvação e a condenação, condenando também os inocentes. Para Pascal, somente os Discípulos de Santo Agostinho – Jansenistas – consideram os atributos de Deus ao mesmo tempo. Por sua Justiça Deus somente poderia outorgar ao homem a condenação, mas é pela sua Misericórdia que permite discernir aquele a quem Ele quer salvar. Henri Gouhier, em seu livro Blaise Pascal: conversão e apologética, salienta a importância do pecado original para compreender a relação misericórdia e justiça em Blaise Pascal: “Aos olhos de Pascal e dos teólogos que lêem Santo Agostinho no Augustinus do bispo Jansênio, o pecado original é uma falta tão radical que a condenação de todos os filhos de Adão é pura justiça e a redenção de alguns, por pequeno que seja o 459 124 flexível tanto ao bem quanto ao mal. Este livre arbítrio capacita-o de escolher entre o cumprimento ou a transgressão da lei. Mas e a graça de Deus, está excluída desta dinâmica? Para um jansenista a graça nunca está excluída, somente há exclusão da graça no pecado. O homem “forte”, “são” e “justo” somente podia fazer o bem enquanto fazia bom uso da graça de Deus. Um mal uso da graça implica em um não uso da graça. A conseqüência disso, para Pascal, é o pecado. Desta maneira, Deus age “seguindo o bom prazer” dos homens em fazer aquilo que lhe convêm. Portanto, para Pascal a graça de Deus e a cooperação de uma vontade imaculada são prerrogativas basilares para o cumprimento dos preceitos. Aprofundemos conceitualmente esta graça outorgada – pelo próprio Deus – ao homem antes do pecado. Deus não podia com justiça impor preceitos a Adão e aos homens inocentes sem lhes dar sua graça necessária para cumpri-los. Se os homens em sua criação não tinham tido uma graça suficiente e necessária para cumprir os preceitos, eles não teriam de forma alguma pecado transgredindo-os. Deus concede a Adão uma graça suficiente, isto é, além da qual nenhuma outra era necessária para cumprir os preceitos e continuar dentro da justiça. Por meio da qual ele podia perseverar ou não perseverar, seguindo seu bom prazer.461 Se o pecado não existe enquanto não há lei, a lei não existe se não há a graça. A justiça da imposição do preceito é adornada com a concessão da graça. Sem a graça não há transgressão, pois não há lei. A existência desta sem a graça implica em dizer que Deus é injusto por conceder a lei sem os meios de observá-la. E isto é o mesmo que entregar a criatura ao pecado, ou, criá-lo para condená-lo, o que faria de Deus, na visão de Pascal, um demiurgo inescrupuloso. Pascal está intimamente colado com a tradição agostiniana jansenista no que diz respeito a estas relações entre a graça e a lei. Os Jansenistas são partidários, de maneira especial, das idéias de Santo Agostinho descritas nas controvérsias pelagianas que tiveram seu ápice no início do século V. A principal obra de Santo Agostinho que pode ilustrar a relação entre a graça, figurada na dimensão de um Espírito salvífico, e a lei, como uma prerrogativa que tem a função maior de acusar do que salvar, é O espírito e a letra. número, é pura misericórdia; por outro lado, visto que é uma ofensa a Deus, só Deus tem poder de perdoá-la.”. (Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 32 – 33). 461 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317. 125 Pascal só faz retomar as idéias de Agostinho. A graça é necessária, no entanto, fazerse-ia necessário explicar de que graça se trata, pois há uma diferença capital entre a graça préqueda e pós-queda.462 A graça outorgada por Deus antes da queda chama-se graça suficiente. Esta graça é chamada suficiente por conter nela tudo aquilo que é necessário para fazer o bem, mas com uma ressalva, desde que se faça bom uso da mesma por seu livre arbítrio.463 Nada será necessário, além da graça suficiente, para que o livre arbítrio tenha sucesso no cumprimento dos preceitos. O “bom prazer” de cada homem, ou seja, sua vontade de perseverar ou não é fator determinante para responsavelmente usar da graça suficiente que Deus lhe outorgou. “De maneira que seu livre arbítrio podia, como senhor desta graça suficiente, a tornar vã ou eficaz, seguindo seu bom prazer.”.464 Jean Mesnard comenta tal graça suficiente presente em Adão: “Beneficiando-se da justiça no instante de sua criação, o homem, auxiliado pela graça suficiente, era livre, no decorrer do tempo, de conservá-la ou perdê-la.”465 A Justiça de Deus é cumprida no momento da criação na medida em que Deus concede a graça suficiente para que o homem possa agir como melhor lhe aprouver. A liberdade tem como marca a indiferença tanto para o bem quanto para o mal, ficando sob sua responsabilidade o uso que se poderia fazer da graça. Deus ao conceder a graça a todos os homens universalmente, faz revelar sua vontade condicional de salvar a todos desde que não transgridam os preceitos, entretanto, sabemos que caso venha a pecar, Ele é justo em condenar e sua misericórdia ainda assim é inviolável, todavia, se não pecar, é a justiça e misericórdia de 462 A graça pós-queda dá-se o nome de graça eficaz, esta porém, será trabalhada mais abaixo quando formos descrever o homem depois do pecado. 463 “Portanto, eu soube em poucas palavras que sua diferença tocando a graça suficiente é naquilo que os Jesuítas consideram que há uma graça dada a todos geralmente, submissa de tal forma ao livre arbítrio que a torna eficaz ou ineficaz a sua escolha, sem nenhum novo socorro de Deus e sem que falte nada de sua parte para agir efetivamente; isto que faz com que eles a chamem suficiente, porque ela sozinha é suficiente para agir. E os Jansenistas, ao contrário, sustentam que não haja graça suficiente atualmente e que ela não é, desta maneira, eficaz, isto é, que todas estas graças que não determinam de modo algum a vontade para agir efetivamente são insuficientes, porque eles dizem que jamais se age sem a graça eficaz. Eis a diferença entre eles.”. (Blaise PASCAL, Provinciales, p. 375). Pascal está demarcando a diferença doutrinal entre Jesuítas e Jansenistas. Neste contexto dos Provinciales a preocupação é tentar “salvar” Arnauld da condenação da Sorbonne, desta maneira, tenta delimitar as fronteiras entre a teologia Jesuíta e Jansenista. Os primeiros sustentam que mesmo depois do pecado de Adão a graça possui tudo aquilo que é necessário para salvação, cabe ao homem fazer manifestar a eficácia desta graça usando-a bem, ou ineficácia, usando-a mal. Já os Jansenistas sustentam que com a queda de Adão a graça que ele possuía não é mais suficiente para a salvação, já que o homem possui atualmente um livre arbítrio corrompido e preso na gravidade do mal. Fazer-se-ia necessário uma graça que determine a vontade a agir para que ela seja eficaz. A graça suficiente poderia ser útil na medida em que a vontade não estivesse corrompida, desta maneira, confiar nela para realizar o bem depois do pecado é absolutamente inócuo para os Jansenistas. Para estes a vontade está corrompida e não poderia auxiliá-la no cumprimento dos preceitos, portanto, a graça suficiente somente atua no homem antes do pecado, pois já que sua vontade não está corrompida, o homem poderia fazer uso desta graça como melhor lhe aprouver. 464 Idem, Écrits sur la grace, p. 317. 465 Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 596 126 Deus que ratificam a salvação. Diante deste quadro, perguntamos: o homem terá mérito em sua salvação ao fazer bom uso desta graça? Vejamos a resposta do próprio Pascal: Deus deixa e permite ao livre arbítrio de Adão o bom ou o mal uso desta graça. Se Adão, por meio desta graça, tivesse perseverado, teria merecido a glória, isto é, de ser eternamente confirmado na graça sem perigo de pecar jamais: como os bons Anjos a merecem pelo mérito de uma graça parecida. De maneira que cada um de seus descendentes nasceria dentro da justiça, e com uma graça suficiente parecida com a sua, pela qual poderiam perseverar ou não, seguindo seu bom prazer, assim como merecer ou não, a glória eterna, como Adão.466 A decisão naquilo que diz respeito à utilização da graça cabe a Adão. A graça suficiente é o equipamento necessário para cumprir os preceitos divinos, contando que se faça bom uso de tal equipamento. Mas sabendo que o homem tem uma graça suficiente, quais seriam as conseqüências das ações de Adão, ou seja, quais os desdobramentos postulados por Pascal quanto à perseverança ou não perseverança? É explicito no texto de Pascal que Adão teria “merecido a glória” caso fizesse bom uso da graça suficiente. No estado pré-queda o bom uso da graça está vinculado à virtude ou bem-aventurança, desta maneira, a confirmação de Adão no bom uso da graça é garantia de não perecer no pecado. Pascal chega a comparar a vida do homem sem pecado a dos “Anjos” que, fazendo bom uso de “uma graça parecida” permanecem na glória de Deus e merecem tal dádiva. Percebemos uma ligação causal entre virtude, em função da graça – e a graça é necessária tanto para os homens quanto para os Anjos –, e eternidade, pois o virtuoso ao permanecer na graça não corre o risco de “pecar jamais”. Não seria difícil vincular este conceito de eternidade ao de felicidade, pois o homem que contempla a face de Deus – em função da glória que lhe é outorgada merecidamente como prêmio de sua ação virtuosa – só pode ser absolutamente feliz. A ação virtuosa do primeiro homem implica em conceder as dádivas de tal ação a toda posteridade, desta forma, cada homem teria nascido “dentro da justiça” e com a mesma graça suficiente concedida a Adão. Pascal quer deixar claro ao leitor que, assim como Adão tinha todas as condições necessárias para agir bem, todos os homens mereceriam – caso Adão não tivesse pecado – esta dádiva: uma graça suficiente, na qual contêm tudo aquilo lhe é necessário para fazer o 466 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317. 127 bem e uma vontade flexível tanto ao bem quanto ao mal. A responsabilidade estaria nas mãos dos filhos de Adão. Todavia, um fato curioso é que Pascal não esclarece o que poderia acontecer se Adão não pecasse e um dos descendentes – que receberia as mesmas condições de Adão para não pecar – viesse a pecar. Talvez somente este homem fosse condenado ou castigado. Mas se o pecado é realizado pelo pai de todos os homens, a corrupção seria o fruto outorgado à toda posteridade. Todavia, qual foi a ação de Adão? “Adão tentado pelo Diabo sucumbiu à tentação, se revoltou contra Deus, infringiu seus preceitos, quisera ser independente de Deus e igual a Ele.”.467 Adão cedeu à tentação do Diabo. Mesnard faz menção de tal acontecimento como uma espécie de divisor de águas na obra de Pascal, visto que depois de tal acontecimento a humanidade nunca mais seria a mesma. De hoje em diante, a humanidade entrará em um segundo “estado”. A disposição de um momento, pelo qual Adão tinha preferido a si mesmo do que a Deus, torna-se uma tendência estável. O homem é permeado pelo “amor da criatura”, que não difere do amor de si.468 Não se trata de uma posição maniqueísta, pois Adão não é coagido pelo Diabo, mas tentado. Ele podia ter decidido diferentemente e mudado o curso da história. O homem mostra sua revolta contra Deus469 em dois pontos: não cumprindo o único preceito que lhe era cobrado e na tentativa presunçosa “de ser igual a Ele”.470 O pecado adâmico funciona como um divisor de águas na teologia de Pascal e este fato é ressaltado por Mesnard, pois é a desobediência de Adão que muda o curso da história. A disposição de um momento foi capaz de mudar a vida de toda humanidade. O pecado no comentário de Mesnard torna-se uma “tendência estável”, ou seja, com a queda o pecado sobrepuja com maior força a ação humana e torna-se a contínua repetição da queda. Ele é um componente preponderante que permeia o segundo estado de natureza do homem. Portanto, a repetição do mesmo conduz a estabilidade. Quanto ao mistério que envolve tal disposição momentânea, ou seja, o motivo que fez Adão pensar poder ser igual a Deus, será discutido mais abaixo. Vale ressaltar que Mesnard, assim 467 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace p. 317. Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 696 469 “Pois enfim, a razão pelo qual os pecados são pecados, é somente porque eles são contrários à vontade de Deus: e, desta maneira, a essência do pecado consiste em ter uma vontade oposta àquela que nós conhecemos de Deus, é visível, me parece, que quando Ele nos revela sua vontade por acontecimentos, seria um pecado não se conformar.”. (Blaise PASCAL, Lettres aux Roannez, p. 266. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 265 – 270). Pascal deixa claro que a essência é contrariar a vontade de Deus. Adão em sua presunção fez justamente isto, desta maneira, ele merece, na visão de Pascal em seu contexto cristão, morte eterna. 468 128 como nossa pesquisa, usa o termo “segundo estado” para caracterizar o homem depois da queda – algo que já trabalhamos acima471 –, pois trata-se de uma mesma natureza, só que agora corrompida. Desta maneira fazer-se-ia necessário descrevermos como o próprio Pascal relata este segundo estado de natureza e às conseqüências do pecado. 2 – Descrição do estado de natureza depois da queda: análise de Jean Mesnard, Luiz Felipe Pondé e Catherine Chevalley. Vejamos como Pascal inicia a descrição do estado de natureza do homem depois da queda: Adão tendo pecado e sendo tornado digno de morte eterna, por punição à sua rebelião, Deus o deixou no amor da criatura. E sua vontade, a qual inicialmente não estava de nenhuma forma atirada em direção à criatura por nenhuma concupiscência, encontra-se cheia de concupiscência que o Diabo nela semeou, e não Deus.472 Se a virtude em função do bom uso da graça implica em vida eterna, o pecado traz uma conseqüência totalmente contrária, ou seja, “morte eterna”. Se a vida eterna é merecida no uso correto do equipamento – graça –, a morte é punição merecida pelo mal uso do mesmo.473 A graça, antes da queda, funcionava como uma espada que podia auxiliar o homem a vencer a guerra e afastar-se do mal que o aflige, mas também podia ser usada para trespassar 470 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317. Ver o item 1.1 e 1.2 deste capítulo. 472 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317. 473 A morte é um dos objetos de reflexão de Pascal. Ela é vista de diferentes pontos de vista no decorrer de sua obra, sendo que, cada fragmento ou texto, deve ser contextualizado. No fragmento 133 (Bru. 169) dos Pensamentos, a morte é sentida como uma realidade futura incurável, o que poderia acarretar em uma grande tristeza para o homem. Entretanto, Pascal descreve que o homem prefere não pensar nela para continuar a ser feliz. Desta maneira, a vida feliz é atributo de alienação do esfacelamento eminente: a morte. A alienação também é destacada no fragmento 641: “A nossa natureza está em movimento, o repouso total é a morte.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 641, Bru. 129, p. 272). Pascal entende que o homem precisa estar sempre em movimento para suportar a vida. Este fragmento resvala na psicologia do divertissement. O homem vive a via sacra das constantes preocupações que preenchem a sua vida, estas movimentações tem como objetivo o repouso na conquista do objeto buscado. Mas Pascal associa o repouso a morte. Um homem não agüentaria ficar de braços cruzados em um quarto sem ser assombrado pelo ennui, tristeza profunda que faz o homem sentir o seu próprio peso. Já no fragmento 434 (Bru. 199) a morte é vista como um decreto de condenação. Pascal descreve homens em grilhões conscientes de sua futura e próxima condenação, pois, a cada momento, um deste homens é degolado na frente de todos os outros condenados que estão presos. A cena é cheia de dor e sem esperança, mas o que estes condenados poderiam fazer? Nada, simplesmente esperam a sua vez. Pascal termina o fragmento afirmando que esta é a condição dos homens, ou seja, vêem seus semelhante morrer, sabem que este é seu futuro 471 129 o coração humano, neste caso, fazendo mal uso desta espada. Ainda fazendo uso da metáfora da espada: ela dava o poder ao homem de romper com o pecado ou com Deus, desta forma, não implicava em falta de habilidade, mas a própria vontade do portador da espada de fazer uso da mesma como melhor lhe aprouver. Fazendo mal uso da graça, a morte, conseqüência do pecado, era justa e inevitável. Além da morte, encontramos outra conseqüência do pecado ou da “rebelião” do homem: “o amor pela criatura”.474 A afirmação de Pascal incita à discussão. O homem sucumbiu a tentação, pecou, é digno de morte eterna e condenado ao amor pela criatura, todavia, “Deus o deixou”. As conseqüências parecem até uma brincadeira com os conceitos: Deus é onipotente? Então porque deixou o homem pecar ao se encantar por si mesmo, como eminente e que não há nada a se fazer. (cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 434, Bru. 199, p. 176). O fragmento 165 também me parece sugestivo: “O último ato é sempre sangrento, por mais bela que seja a comédia em todo resto. Lança-se finalmente terra sobre a cabeça e aí está para sempre.” (Ibid., Laf. 165, Bru. 183, p. 70). Pascal não esconde a visão da morte como a etapa derradeira de cada homem. Mas como ele está escrevendo uma apologia, não devemos deixar de lado esta pergunta: porque ele descreve a morte de maneira tão trágica? Talvez para que o leitor perceba que ainda há um caminho a seguir pelo qual podemos superar a morte. “Os médicos não te curarão, pois morrerás por fim, mas sou eu que curo e torno o corpo imortal.” (Ibid., Laf. 919, Bru, 553, p. 378). Pascal neste fragmento concede ao leitor a esperança de saber que há uma forma de livrase da morte eterna na medida em que somos resgatados pelo sangue de Cristo derramado na cruz, todavia, saber da possibilidade do socorro não é ter certeza dele: é a predestinação que confere tal dádiva. Outro texto que toca o tema da morte são as Lettres aux Roannez. Logo na primeira carta, Pascal, na esteira de um santo que ele não menciona o nome, diz: “Não é necessário examinar se temos vocação para sair do mundo, mas somente se temos vocação para nele continuar, como não se consultaria ninguém se somos chamados a sair de uma casa pestificada ou em chamas.”. (Idem, Lettres aux Roannez, p. 266). Pascal vê o mundo nesta carta como uma casa em chamas ou pestificada, a opinião mais plausível é abandoná-la. Não se trata de uma apologia ao suicídio, isto inexiste na obra de Pascal, mas uma defesa da morte como libertação de uma natureza corrompida pelo pecado e que pela morte esta natureza recebe o remédio. “Nós temos esta enorme vantagem de reconhecer que verdadeiramente e efetivamente a morte é uma pena do pecado, imposta ao homem para expiar seu crime, necessário ao homem para purgar-se do pecado; que é a única que pode libertar a alma da concupiscência dos membros, sem a qual os santos não vivem de modo algum neste mundo.”. (Idem, Lettre A M. Et Mme Perier, A Clemont: A l`occasion de la mort de M. Pascal le Père, p. 275 – 276). A morte é vista como decreto de condenação em função do pecado do primeiro homem, todavia, ela auxilia na purgação do crime cometido contra Deus: a morte é o último suspiro de doses homeopáticas de sofrimento que permeiam a vida dos mais santos. Ela ela é vista como horrível e detestável, no entanto, para o cristão a perspectiva é totalmente diferente: Cristo, com seus sofrimentos e morte, santifica os sofrimentos e a morte, desta maneira, estes deveriam ser vistos pelo cristão como algo doce e amável. (cf. Ibid., p. 276). Ver também: Idem, Pensamentos, Laf. 29, Bru. 156; Laf. 37, Bru. 158. Também na obra de Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal. p. 328, o comentador francês ressalta que para Pascal a morte marca de maneira radical a finitude do homem, sua incapacidade de encontrar a felicidade e sua contínua insatisfação. A morte revela-se como o ápice da desgraça. 474 “Depois, chegando o pecado, o homem perdeu o primeiro de seus amores; e o amor por si mesmo ficando sozinho nesta grande alma capaz de um amor infinito, este amor próprio estendeu-se e transbordou no vazio que o amor de Deus deixou; e assim a alma está sozinha, e todas as coisas por si, isto é, infinitamente. Eis a origem do amor próprio, era natural a Adão, e justo em sua inocência; mas torna-se criminoso e imoderado, em conseqüência de seu pecado.”. (Blaise PASCAL, Lettre A M. Et Mme Perier, A Clemont: A l`occasion de la mort de M. Pascal le Père, p. 277). O homem antes do pecado de Adão possuía dois amores: por Deus, que era infinito, e por si mesmo, que era finito. Com o pecado, Adão perde seu objeto de amor infinito, ficando errante seu sentimento “capaz de um amor infinito”, todavia, sem seu objeto de amor. Ficando sozinho, preso no abismo infinito que ocupa o tamanho de Deus em sua alma, o amor por si mesmo tenta preencher este vazio, mas como o vazio é infinito e o amor próprio finito, a tentativa de preenchê-lo totalmente está condenada ao fracasso. O homem, desta maneira, está condenado a amar a si mesmo e nunca estar satisfeito com este amor. Busca nas coisas finitas seu amor infinito em potência. 130 Narciso, que se deleita ao olhar seu próprio rosto espelhado na margem de um rio? Deus podia ter-nos livrado de tal ato maléfico. Deus é onisciente? Então porque Ele construiu um homem dotado de uma graça que, no decorrer dos acontecimentos, iria ser mal usada? Deus é um engenheiro que, ao construir uma determinada máquina, possui uma idéia oculta na qual já conhece o fim trágico de seu péssimo funcionamento? Diante destas dificuldades, como conciliar ainda que o Deus cristão é Bondoso e Generoso? Pascal não é partidário de nenhum desenvolvimento conceitual que leve a concluir que Deus é um demiurgo incompetente. Sabemos que diante dos ante os questionamentos que fizemos acima, pareceria um erro lógico não atribuir ao Deus onipotente e onisciente a permissão do pecado. Todavia, porque Deus haveria de impedir que o homem pecasse? A resposta seria imediata: porque Ele é Bondoso e Generoso! Mas obrigar Deus a agir para socorrer o homem não seria de alguma forma limitar a onipotência de Deus submetendo-a à vontade humana? Interferir na liberdade humana flexível ao bem ou ao mal não poderia trazer luz a uma configuração de um sistema maniqueísta, no qual há um Deus que impede o homem de fazer o mal? Dizer que Deus não pode interferir no seu próprio sistema também não fere a onipotência de Deus? Todas estas perguntas e respostas somente configuram a concessão de corda para finalizarmos a análise na forca.475 Todavia, uma questão permanece: como Pascal explica a existência do mal? O mal é de total responsabilidade do homem para o teólogo francês, mesmo que isso pareça absurdo por tratar-se de um Deus onisciente, desta maneira, seria muito mais absurdo supor que Deus é causa do mal. Deus é Bondade eterna, ou seja, Ele é algo absolutamente distinto do mal. Pascal considera absurdo atribuir a Divindade esta mácula. Ele não enfrenta muitos problemas como seu mestre Santo Agostinho para “resolver” o problema da origem do mal. A resposta é clara e sem meias palavras: O homem antes do pecado de Adão possuía um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal, Adão sucumbe a tentação do Diabo, peca, e todo o amor direcionado a Deus é encaminhado em direção à criatura. A vontade do homem é corrompida pelo pecado, este porém, estimulado pelo Diabo, é realizado por total 475 “A doutrina é a lógica da onipotência enlouquecida. O Criador é todo poderoso? Mas é claro. Então Ele pode fazer o que quiser? É justamente esse o significado do poder. Ele pode quebrar todas as leis? Bem, Ele as criou. As leis da razão? Deveríamos julgá-LO? As leis da justiça? Idem, a mesma coisa. Qualquer justiça? Se ele assim decidir. Nenhum passo admite exceções, até sermos conduzidos a um sistema engasgado com um mal tão inescrutável, que nos voltamos para as visões modernas de mundo em busca de alívio.”. (Susan NEIMAN, O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia, p. 33). Este raciocínio de Suzan Neiman aproxima-se da maiêutica socrática. Ao atribuir a Deus uma onipotência radical, legitimaríamos injustiças escandalosas e conduziríamos o interlocutor a forca. Desta maneira, será que Pascal, ao discordar da doutrina Calvinista que atribui a Deus uma vontade absoluta, não estaria diminuindo a onipotência de Deus para não cair naquilo que Neiman chama de “onipotência enlouquecida”? Nosso trabalho não tem como objetivo responder à esta pergunta, já que teríamos que percorrer um grande percurso para analisar tal hipótese. Entretanto, sabemos 131 responsabilidade do homem e não de Deus. Desta maneira, vejamos as conseqüências do pecado naquilo que diz respeito à vontade: Portanto, a concupiscência elevou-se nos seus membros, estimula (chatouillé) e deleita (délecté) sua vontade no mal, e as trevas encheram seu espírito de tal forma que, sua vontade, inicialmente indiferente pelo bem e o mal, sem encanto ou estímulo (chatouillement) nem dentro de um, nem de outro, mas seguindo, sem nenhum apetite preventivo de sua parte, aquilo que Adão (il) conhecia de mais conveniente para sua felicidade, encontra-se agora atraída pela concupiscência que se eleva nos seus membros. E seu espírito fortíssimo, justíssimo, esclarecidíssimo, está escurecido e na ignorância.476 A concupiscência ou vício invadem os membros dos homens, ou seja, tudo aquilo que compõe o homem. Ela funciona como uma força que estimula (chatouillé) e deleita (délecté) a vontade no mal. Chatouillé seria uma espécie de comichão, coceira, formigamento que impulsiona a vontade e o délecté é visto como algo que causa prazer e, ao mesmo tempo, aprisiona a criatura destas alucinações encantadoras. Chatouillé e délecté funcionam como uma fórmula eficaz para prender o homem dentro de uma cadeia concupiscente. Se o homem em um sentido é estimulado – chatouillé – a fazer o mal, ao mesmo tempo está encantado pelo mal que comete. Assim, aumentando o estímulo há um aumento proporcional ao deleite, em uma cadeia que, em função da constante repetição, produz aquilo que chamamos de mecânica concupiscente. Estando a vontade presa ou impregnada – como um vírus que corrompe a sua própria casa, ou seja, o corpo que lhe serve de abrigo – desta mecânica concupiscente, a diferença entre a vontade antes e depois do pecado – diferença qualitativa – para Pascal é gritante, todavia, não se trata de dizer que a diferença é total no sentido Luterano, algo que já discutimos no início deste capítulo. Se antes do pecado o homem não era vítima desta mecânica concupiscente, sendo “indiferente” tanto ao bem quanto ao mal, ou seja, não estava preso na gravidade nem do bem, nem do mal, agora ele está preso no cárcere do pecado na buscar de sua felicidade mundana. Percebemos através da citação acima que esta felicidade buscada era conhecida, desta maneira, seguia “aquilo que ele conhecia de mais conveniente para sua felicidade”. O homem antes do pecado tinha uma faculdade cognitiva capaz de discernir com clareza a felicidade que buscava, todavia, com o pecado a perspectiva que atribuir uma onipotência radical a Deus poderia causar alguns danos a outros universais que no universo cristão estão colados ao conceito “Deus”, como a Bondade e a Justiça. 476 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317; grifo meu. 132 muda diametralmente: a falta adâmica atrai o homem para a gravidade do pecado477, distanciando-o da felicidade que outrora buscara. Desta maneira, três pontos citados por Pascal podem nos auxiliar para entender a nova conexão conceitual postulada. Antes do pecado o homem tinha um espírito “fortíssimo”, justíssimo” e "esclarecidíssimo”, entretanto, depois do pecado “está escurecido e na ignorância.”. Pascal resume a mudança das características do espírito – ou razão, conceitos semelhantes na obra de Pascal – em dois conceitos: escuridão e ignorância. Jean Mesnard comenta tal obscuridade que permeia o homem depois da queda em seu Essai sur la signification des Écrits. Todo seu ser está corrompido, deteriorado pela ignorância e a concupiscência. Seu espírito, “obscurecido” e mergulhado “nas trevas”, não sabe mais reconhecer seu verdadeiro bem.478 A luz da razão está escurecida, assim como Adão torna-se um ser exilado de certezas. Mas conhecer a incerteza não seria uma forma de certeza, pois sabemos que, aquilo que conhecemos, é incerto? Não poderíamos dizer isto, pois, aquilo que Pascal chama de ignorância diz respeito ao conhecimento da verdade absoluta479, da falsidade, do que é o 477 “Eis uma imagem das duas liberdades: a primeira, que estava em Adão e era próxima e indiferente às oposições sem estar ligada nem de um lado nem de outro; mas depois que ela (a liberdade) está caída nas linhas da concupiscência, está neste momento fora do estado de conduzir a Deus, para isto, somente a linha da graça o puxando com mais força rompe com a cobiça e lhe faz dizer: Senhor, vós rompestes minhas linhas [Sl. CXV, 16]. Mas se esta suposição metafísica acontece, onde a boa e a má cobiça ligam-se igualmente, quem não vê que, bem longe de estar em sua primeira indiferença, o homem jamais estará nela; bem longe de ser independente, ele será totalmente dependente; bem longe de estar livre, ele será escravo dos dois lados; e bem longe de poder se conduzir as linhas opostas, ele continuará imóvel.”. (Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 332 – 333). A metáfora de Pascal é sugestiva para trazer luz à diferença entre os dois estados de natureza. Antes do pecado de Adão ele não está amarrado, desta maneira, é indiferente ao bem e ao mal. Depois do pecado, o homem está amarrado como um joguete entre duas cordas: a do bem e a do mal. Todavia, a corrente do mal puxa-o com mais força e rompe com a corrente do bem (graça), deixando sua vontade a deriva no mal. É necessário que a graça de Deus atue para libertar o homem da gravidade do pecado, esta porém, com uma força muito maior que a corrente oposta. Vale lembrar que, para Pascal, nesta vida nunca iremos ser libertos totalmente do pecado: “[...]como o homem jamais estará livre nesta vida de toda concupiscência [...]”. (Ibid., p. 333). A concupiscência é prerrogativa básica e pedagógica para que o homem não seja invadido pelo orgulho pelo fato de fazer o bem, esquecendo-se que o bem é a graça agindo em seu coração. Pascal neste sentido é absolutamente agostiniano e, conseqüentemente, paulino, já que o próprio Paulo nos chama a atenção sobre este assunto: Deus coloca um anjo para esbofeteá-lo afim de que o apóstolo não venha a fazer seu, o ministério que é de Deus. 478 Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 596. 479 O conhecimento da Verdade tem caráter teológico para Pascal. O homem conhece a verdade na medida em que ele é tocado pela graça. “Conhecemos a verdade não apenas com a razão mas também pelo coração.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 110, Bru. 228, p. 38). A verdade pareceria ganhar sentido no momento em que a graça fecunda o termo. Ela precisa ser amada, depois conhecida. “A verdade está tão obscurecida nos tempos atuais e a mentira tão estabelecida que, a menos que se ame a verdade, não se consegue conhecê-la.”. (Ibid., Laf. 739, Bru. 864, p. 298). Amar a verdade implica estar sob a tutela da graça, depois disso, pareceria plausível a idéia de que a graça fecunda o logos. “Sei que Deus quis que elas (as verdades divinas) entrassem do 133 homem480, do que é a justiça481, da natureza482 das coisas, da felicidade e “seu verdadeiro bem”, como faz referência Mesnard. Ele ressalta que o ser humano, para Pascal, está coração para o espírito e não do espírito para o coração, para humilhar esta soberba do poder do raciocínio que se pretende ser o juiz das coisas que a vontade escolhe e para curar esta vontade enferma, que está totalmente corrompida por suas imundas afeições. E disto advém que, ao falar de coisas humanas, diz-se que é necessário conhecê-las antes de amá-las [...]”. (Blaise PASCAL, De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader, p. 355). Depois do pecado de Adão a vontade está corrompida de tal modo que Deus estabelece uma hierarquia do processo cognitivo da verdade, ou seja, primeiro pelo coração depois para o espírito. Todavia, esta hierarquia muda naquilo que diz respeito às coisas ou verdades humanas: é preciso conhecê-las antes de amá-las. Desta maneira, sustentamos que para Pascal a razão não é contra a graça, mas reconhece seus próprios limites pela força da mesma. “É o coração que sente a Deus e não a razão. Eis o que é a fé. Deus sensível ao coração e não à razão”. (Idem, Pensamentos, Laf. 424, Bru. 278, p. 164). Neste fragmento parece que Pascal solapa a razão quando o “sentir Deus” é o foco de seu discurso. A razão não se apresentaria como um instrumento eficaz para captar Deus. Todavia, sustentamos que Pascal se refere àqueles que querem submeter Deus somente ao crivo da razão, algo que é melhor explicado por outro fragmento. “Se submetermos tudo à razão, a nossa religião não terá nada de misterioso e sobrenatural. Se violentarmos os princípios da razão, a nossa religião será ridícula e absurda.”. (Ibid., Laf. 173, Bru. 273, p. 71). Pascal está preocupado com a radicalidade das afirmações, ou seja, dizer que a religião não tem nada de misterioso e sobrenatural faria da mesma um mero evento natural, algo que Pascal discorda como cristão jansenista, todavia, excluir a razão faria da religião algo absurdo. Vemos que o pensamento pascaliano da relação fé e razão poderia ser entendido como um pêndulo, ou seja, com a metáfora do pêndulo o leitor poderia perceber que Pascal caminha sobre estes dois pólos – fé e razão – sem desprezar nenhum nem conceber a primazia a nenhum deles. Desta maneira, não vemos Pascal como um pietista radical, entretanto, a fé também é um dom de Deus, assim como não o vemos como um teólogo naturalista, mas como um pensador no qual a fé fecunda o logos. “Os homens têm desprezo pela religião. Têm ódio dela e medo de que ela seja verdadeira. Para curar isso, é preciso começar por mostrar que a religião não é contrária à razão.” (Ibid., Laf. 12, Bru. 187, p. 5). Na “compreensão” do mistério que envolve a religião, a razão nada pode fazer, pois ela é superada, mas não exterminada. “2. excesso, excluir a razão, não admitir senão a razão.” (Ibid., Laf. 183, Bru. 253, p. 73). Nesta citação percebemos como Pascal se refere ao modo de concebermos a religião, na qual nos chama atenção sobre os “2 excesso” – o erro de concordância está no texto de Pascal. O que há de mistério na religião não se submete ao crivo da razão, pois é o homem que deveria submeter-se ao mistério; assim como a religião não pode ser um ato absolutamente ausente de razão o que faria dela, para Pascal, ridícula e absurda. “Submissão e uso da razão: em que consiste o verdadeiro cristianismo.” (Ibid., Laf. 167, Bru. 269, p. 70). O homem não deve se submeter sem razão, assim como não deve somente raciocinar e não se submeter. A graça poderia ser pedra angular que indicaria ao cristão quando é necessário submeter-se e quando é necessário amar e raciocinar conjuntamente. Sobre “verdade local” em Pascal ver capítulo III. Para saber mais sobre a relação razão e fé em Pascal, assim como o caráter redentor da razão pela graça ver Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 229 – 230. 480 Para responder tal pergunta, precisaríamos saber de qual estado de natureza estamos nos referindo. O homem é um só, todavia sua condição é dual na medida em que há um divisor de águas chamado pecado original. Já vimos acima sobre a condição do homem antes do pecado, este seria o verdadeiro homem, saído das mãos de Deus e, desta maneira, este conceito ganha outro sentido quando a teologia pascaliana entre em jogo. “Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois vós mesmo. Humilhai-vos, razão impotente! Calai-vos, natureza imbecil; aprendei que o homem ultrapassa infinitamente o homem e ouvi de vosso senhor vossa condição verdadeira que ignorais.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 47). A verdadeira condição do homem é ignorada em função da obscuridade causada pelo pecado. O homem esqueceu-se de si, algo muito próximo à filosofia platônica, na qual a metempsicose (reincarnação) acontece depois de bebermos das águas do rio Ameletes, ou o rio do esquecimento. Se para Platão a noesis acontece pela dialética realizada pelo filósofo, em Pascal ela dar-se-ia pela graça destinada ao predestinado. Desta maneira, sustentamos que a resposta à esta pergunta – Quem é o homem? – possui sentido teológico. Fora da teologia a resposta é outra: “Que espécie de quimera é então o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que fonte de contradições, que prodígio? Juiz de todas de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro, glória e rebotalho do universo.”. (Ibid., Laf. 131, Bru. 434, p. 46). O homem é uma quimera, um ser contraditório onde seres incompatíveis se encontram; nele não se encontra nenhuma novidade; ser de nenhuma espécie – monstro –, caótico, ou seja, muda constantemente de tal maneira que qualquer juízo que fazemos sobre ele é uma questão de tempo ou de comparação cultural para dissolver-se; contraditório; nele encontra-se a verdade, porém, também a incerteza, ou seja, estes conceitos se misturam de tal maneira que o fato de fazer-se juiz de todas as coisas não implica em dizer que o homem faça juízos claros e distintos, desta maneira, Pascal qualifica o homem como cloaca de incerteza e de erro, como uma fossa que recebe dejetos de todas as espécies; rebotalho do universo, ser 134 corrompido pelo pecado dando ênfase a dois conceitos: “ignorância” e “concupiscência”. Desta maneira, vejamos a leitura que o próprio Mesnard faz do termo concupiscência: “O termo concupiscência designa precisamente este atrativo que, depois do pecado de Adão, é exercido necessariamente sobre o homem entregue a si mesmo.”.483 A concupiscência mostra insignificante e sem valor deixado sem referência em um vasto rincão. Toda esta citação tem o objetivo de dissolver qualquer possibilidade de responder aquela pergunta sem recorrer à teologia, esta porém, torna-se cânone que, para Pascal, deveríamos recorrer para respondê-la. A comentadora Hélène Michon ressalta que Pascal ao fazer considerações sobre o homem muda constantemente o ponto de vista sobre o qual faz sua análise. Tudo dependerá de como será feita a comparação, ou seja, a partir de qual ponto de vista. Se a comparação é feita entre o estado adâmico e o estado presente, percebemos que depois da queda somos um ser rebaixado: Pascal descreve o homem como distante de si mesmo. Se é feita entre o homem e o animal, o homem caído é magnífico. Toda esta transposição tem como objetivo fragilizar qualquer ponto fixo que permita dizer o que é o homem. (cf. Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, 47 – 48) Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 117, Bru. 409, p. 40 – 41 e Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, p. 114 para saber mais sobre a relação entre o conhecimento de si e o pecado original. 481 Trabalharemos a “justiça” no III capítulo deste trabalho. 482 “Os pais temem que o amor natural dos filhos se apague. Que natureza é essa então, sujeita a ser apagada?/ O costume é uma segunda natureza que destrói a primeira. Mas o que é a natureza? Por que o costume não é natural? Temo muito que essa mesma natureza não venha a ser um primeiro costume, como o costume é uma segunda natureza.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 126, Bru. 93, p. 43). O conceito de natureza em Pascal está associado à verdade absoluta. Dela só nos resta resquícios vagos no fundo da alma. Pascal escreve este fragmento dialogando consigo mesmo. Ele afirma que o amor dos pais pelo filhos é natural, ou seja, algo universal que transcende todos os contextos, ou seja, presente em todos os seres humanos que já existiram e vão existir. Mas logo coloca em cheque tal afirmação, pois, que amor é este que pode ser apagado a qualquer momento, já que sabemos que há pais que desprezam seus filhos ou ao menos podem fazer isso. Desta maneira, aquilo que chamam natureza, Pascal chama costume, ou seja, algo mutável e relativo. Interessante ressaltar que o costume é parte de uma “segunda natureza” que “destrói a primeira”, ou seja, faz parte do homem depois do pecado. Neste fragmento Pascal rompe com as fronteiras entre o natural e o costume, sendo que este último torna-se um hábito seguido de outros dando a impressão de sua imutabilidade e, conseqüentemente, apresenta-se como natureza. Depois do pecado, costume ou hábito tornam-se sinônimos de natureza concupiscente. Suponho que para Pascal a única coisa que resta como constante e perene naquilo que diz respeito à natureza depois do pecado é o estômago, rins, fígado, em suma, o biológico. “Um homem é um suposto, mas, se a gente o anatomiza, o que passa a ser? A cabeça, o coração, o estômago, as veias, cada veia, cada porção de veia, o sangue, cada humor do sangue.”. (Ibid., Laf. 65, Bru. 326, p. 24). Isto seria o que Pascal chama de “máquina”, todavia, ele a vê como descontrolada na medida em que os membros (paixões) não se submetem ao corpo. Neste sentido, a teologia de Pascal também entra em cena: os homens (membros), não se submetem a Deus (corpo). (Ver Ibid., Laf. 374, Bru. 475, p. 143). Lane Heller também ressalta esta transposição para a teologia: “Em sua versão de fábula, aquilo que Pascal chama de “verdade particular” (aquela do homem) deve submeter-se à “vontade primeira” (aquela de Deus). Desordem e desgraça reinam quando os pés ou as mãos, em revolta, colocam seu interesse pessoal antes daquele do corpo inteiro e procuram libertar-se e fazer-se independente. A ordem e a felicidade são restauradas desde que os membros rebeldes vejam que eles só são membros e dependentes do corpo.”. (Lane HELLER, La perfection chrétienne dans la spiritualité de Pascal, p. 100 In: Lane M. HELLER & Ian M. RICHMOND (orgs), Pascal – Thématique des Pensées. Paris: J. Vrin, 1998, p. 93 – 104). 483 Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 595. Sobre a definição de concupiscência ver Idem, Les Pensées de Pascal, p. 150. Mesnard sustenta que a concupiscência é um atrativo irresistível em direção ao mal. Ver também Ibid., p. 150. A concupiscência é a conseqüência do pecado pelo fato de que o homem está entregue as suas próprias forças, ou seja, ao amor próprio. Ver Ibid., p. 322 sobre o movimento do ser concupiscente, ou seja, a concupiscência é o ato humano de fazer de si telos no lugar do Criador. Henri Gouhier partilha da mesma idéia quando sublinha o termo concupiscência: “[...] é a inclinação que, desde a queda, o desvia de Deus para ligá-lo às criaturas [...].” (Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 78). Desta maneira, a concupiscência é a contínua prática humana de repetir o pecado de Adão. Sobre o ódio que o homem deve destinar a si mesmo por ter lançado seu ser em um estado de natureza concupiscente ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 618, Bru. 479, p. 267. Ver também Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 77 – 83 no qual o autor comenta sobre a necessidade do ódio de si no processo de conversão. Quanto ao conceito pecado, ligado à concupiscência, recorremos ao próprio Pascal para defini-lo. No dia 1º de 135 que o homem não é mais indiferente entre o bem e o mal, ao contrário, o mal o atrai infalivelmente e o corrompe. A ignorância é um dos frutos da corrupção pelo pecado. Adão depois da queda não possui um instrumental cognitivo eficaz para discernir os limites entre verdade e falsidade fazendo da “ignorância” uma companheira inseparável. As trevas revelam a perda de referência pela qual permitiria analisar a veracidade de todo e qualquer julgamento. Uma idéia até pode ser verdadeira, mas como não sabemos o que é a verdade em função do pecado, os limites entre verdade e falsidade estão borrados. Portanto, não podemos dizer que, por conhecermos a nossa ignorância isto nos revela a verdade de nossa condição, ou seja, totalmente ignorante, pois, não temos garantia que a nossa idéia era falsa por não conhecermos a verdade plenamente (afirmação teológica). Dizer que sempre erramos faria do homem um ser que consegue discernir o erro da verdade e isto implica no conhecimento da mesma. Não se trata de dizer que Adão não conhece a verdade, isto precisa ser bem entendido, pois a verdade é sentida como um buraco no fundo da alma e não vista de forma absoluta como antes do pecado. Se antes da queda Adão tinha um espírito esclarecidíssimo em função da verdade que iluminava suas decisões, agora a verdade é vista como um vazio e isto que faz seu drama, pois, se fosse somente a certeza da falsidade, esta faria de Adão um sábio. Como este buraco se faz presente pela queda, podemos dizer que, na visão do Pascal, a verdade no homem é um abismo do tamanho de Deus. Esta metáfora nos ajuda a entender que a verdade é sentida como ausência, como resquício vago de uma natureza santa que foi corrompida, como algo colocado em um lugar onde não podemos alcançar somente com nossas forças. Desta maneira, o homem é um ser isolado da verdade e da falsidade em função do pecado, este isolamento chamamos de contingência. Portanto, sustentamos a hipótese que a contingência epistemológica em Pascal, o desconhecimento da verdade absoluta e da falsidade, é uma conseqüência da queda adâmica. Assim, vejamos a análise do comentador Luiz Felipe Pondé acerca da relação que sustentamos entre a queda e a contingência. abril de 1648, Pascal e Jacqueline redigem uma carta para Gilberte fazendo um esboço sobre a perfeição cristã. No último parágrafo do documento é sublinhado, entre parênteses, aquilo que podemos entender como pecado: “[...] que é o verdadeiro nada, porque é contrário a Deus, que é o verdadeiro ser [...].”. (Blaise PASCAL & Jacqueline PASCAL, Lettre de Pascal et as soeur Jacqueline a Mme Perier, leur soeur. p. 273. In: Blaise PASCAL, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 272 – 273). Não se trata de uma afirmação ontológica, mas espiritual: o homem depois do pecado faz de seu ser criado por Deus um nada, ou seja, totalmente contrário a Deus que é ser em sua plenitude. Desta maneira, Pascal quer mostrar a distância infinitamente infinita que separa Deus e o homem depois da queda. (cf. Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 50 – 51). 136 A presença da contingência foi revelada como uma conseqüência direta da Queda, uma espécie de cegueira cognitiva, assim como uma demanda sobre nossas virtudes espirituais.484 Pondé partilha da idéia de que a contingência, para Pascal, é a característica que marca a razão humana depois da queda de Adão. A razão, esclarecida (plena de luz) antes da queda – o que traz consigo a idéia de uma razão sem mácula e iluminada – agora encontra-se em “uma espécie de cegueira cognitiva”. Mas cegueira de qual conhecimento Pondé faz referência? Recorremos à outra obra de Pondé para verificar sua concepção do conceito: “Contingência é por definição falência de natureza enquanto necessidade – ou ausência de natureza.”.485 É no conceito de natureza que estão ancorados o conhecimento absoluto da verdade, pois, era desta maneira que o termo era usado no século XVII. Conhecer a natureza é conhecer a verdade absoluta, ou seja, que transcende todos os contextos. Sabemos que se Pascal afirma o conhecimento da cegueira – obscuridade, ignorância, trevas –, é porque conheceu que um dia houve luz, todavia, esta luz é sentida como um resquício vago no fundo da alma: afirmação teológica que tem desdobramentos epistemológicos. A cegueira que se refere Pondé diz respeito a incapacidade de Adão depois da queda de discernir o verdadeiro do falso – ausência de natureza –, isto é suficiente para que, dentro de qualquer raciocínio, o homem desconheça as marcas da verdade e da falsidade, desta maneira, o conhecimento torna-se cego – sem parâmetros ou referências486 –, ou seja, contingente. Sustentamos, assim como o comentador Pondé, que tal desdobramento na obra de Pascal tem como fonte a teologia e, sendo assim, trabalhar o conceito de contingência em Pascal negando que este tem origem teológica pareceria reducionista. Para nossa pesquisa há uma relação entre a teologia da graça de Pascal e o conceito de contingência que descrevemos acima, desta forma, fazer-se-ia necessário salientar que trabalharemos tal conceito deixando o leitor de sobreaviso que o mesmo possui uma raiz de profundidade teológica. 484 Luiz Felipe PONDÉ, Conhecimento na Desgraça: ensaio sobre epistemologia pascaliana, São Paulo: Edusp, 2004, p. 34. 485 Idem, O Homem insuficiente, p. 162. 486 “Não há princípio único de inteligibilidade, logo, não há uma grade única de referências e demonstração da verdade.”. (Ibid., p. 169). A ausência de uma univocidade é mencionada a partir da diversidade de grades de referências – métodos –, estas tornam-se motivo de confusão. O método a ser usado para abordar determinado objeto transforma as conclusões que tiramos do mesmo. Não há o método apropriado, o que encontramos é uma diversidade deles. A diversidade de conclusões provenientes das possíveis escolhas metodológicas faz do conhecimento contingente. A contingência se estabiliza no processo cognitivo ante a indeterminação de escolha do sujeito das possíveis formas de abordagem, ou métodos possíveis de escolha. Esta escolha, para Pascal, é sempre pragmática. 137 Tal raiz teológica do conceito de contingência não é mencionada por outra comentadora que trabalharemos em nossa pesquisa. Estamos falando de Catherine Chevalley, autora do livro Pascal, contingence et probabilités. Nesta obra a autora tenta relacionar a noção de probalilidade presente na matemática e na filosofia, sendo que o objetivo do livro é mostrar que foi Pascal, em sua “espistemologia anticartesiana”487, o pioneiro a formular uma filosofia do probabilismo. Não temos como objetivo entrar nos meandros deste objetivo postulada pela autora em questão, nem mesmo ressaltar de maneira mais profunda as controvérsias entre Pascal e Descartes por ela trabalhada, todavia, sabemos que a noção de probabilismo não difere daquilo que chamamos de contingência, logo, tal obra será de grande valia para tentarmos analisar como Pascal concebe sua epistemologia. Chevalley interpreta Pascal como um anti-metafísico, como alguém que não está preocupado com o conhecimento absoluto e verdadeiro das coisas. “Ele (Pascal) desobstrui a discussão da tarefa da razão de subordinação total à idéia de uma legalidade universal e necessária da Natureza, no momento mesmo onde Descartes orienta toda a filosofia para esta via.”.488 Pascal é um pensador que rema contra a corrente. Se Descartes tem a pretensão de um saber universal, coerente, sem dúvidas, claro e distinto, ou seja, um saber capaz de permear todas as ciências fazendo brotar a verdade absoluta daquilo que se pesquisa – mathesis universalis –, Pascal, na leitura de Chevalley, concebe a natureza como um nome, assim como o conceito de necessidade. O homem somente pode conhecer aquilo pelo qual ele tem relação, mas mesmo isto, ele só conhece através do filtro do seu corpo. Enfim, colocando que a Natureza e a Necessidade somente são nomes, Pascal acaba de se opor à toda empreitada que consistiria de fundamentar corretamente a certeza do conhecimento.489 As flutuações de critério permeiam a fisiologia humana, ou seja, para Pascal o corpo é um contexto, uma espécie de “cachot”490 onde nos encontramos alojados e que enlanguesce o conhecimento. O homem é visto por Pascal como ser composto de corpo e alma, desta maneira, conhecer o homem implica em conhecer a relação do corpo com a alma, relação esta que é incompreensível. Como corpo e alma – “[...] duas naturezas opostas e de gêneros 487 Catherine CHEVALLEY, Pascal, contingence et probabilités, p. 8. Ibid., p. 112. 489 Ibid., p. 44. 490 Blaise PASCAL, Pensées, Laf. 199, Bru. 72, p. 526. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 493 – 641. 488 138 diversos [...]”491 – podem estar unidos? Esta mistura é tão radical, que se torna impossível separar a alma do corpo para poder analisar separadamente cada um destes objetos. Se, para Descartes, a composição do homem não destrói a possibilidade de conhecer o simples, já para Pascal, a “mistura” é motivo de confusão.492 A composição humana torna todo saber antropocêntrico; a composição pareceria influenciar de tal maneira o processo cognitivo que torna-se impossível conhecer de forma evidente – objetiva493 – as coisas. Como poderia um ser composto conhecer as coisas simples? Porém, por sermos compostos poderíamos conhecer as coisas compostas? Não para Pascal: precisaríamos saber o que é cada uma das partes que nos compõem e, depois de tal feito, verificar a relação que há com o todo.494 O homem é visto como “[...] incapaz de saber com certeza e de ignorar de modo absoluto”495 e isto que o caracteriza como “ser do meio”496, ou seja, vacilante entre a certeza e a ignorância. Este ponto ilustra a contingência na qual a criatura está imersa. Desta maneira, qualquer mudança fisiológica como uma doença poderia trazer uma nova concepção de mundo e deslocar o conhecimento criando uma nova concepção de natureza e necessidade. Este caráter mutável da natureza e da necessidade na obra de Pascal faz delas somente nomes. Aquilo que chamamos natureza Pascal contempla como acaso, já o nome necessidade é substituído pela idéia probabilística da contingência. Pascal, até onde nossa pesquisa pode aprofundar-se, usa o conceito de contingência somente uma vez em uma carta endereçada l`Académie Parisiense, na qual ele menciona suas descobertas sobre as regras dos partidos.497 “Com efeito, os resultados de maneira ambíguos são justamente atribuídos à contingência fortuita antes que à necessidade natural.”.498 A ambigüidade é marca da contingência e se opõe à necessidade, esta porém, vinculada à idéia de natureza e essência das coisas. O conhecimento da essência é algo que Pascal não simpatiza, destaca Chevalley: “O conhecimento é sempre, em Pascal, um conhecimento das relações e analogia, e não um conhecimento da essência ou da natureza das coisas.”.499 As condições iniciais para o conhecimento são fatores importantes para analisar a relação que há entre o objeto do conhecimento e o conhecedor. O homem, para Pascal, 491 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85. “Em vez de receber as idéias dessas coisas puras, nós as tingimos com nossas qualidades e impregnamos o nosso ser composto (de) todas as coisas simples que contemplamos.”. (Catherine CHEVALLEY, Pascal, contingence et probabilités, p. 85). Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85. 493 Barbara Herrnstein SMITH, Crença e resistência: a dinâmica da controvérsia intelectual contemporânea. trad. Maria Elisa Marchini Sayeg. São Paulo: Unesp, 2002, p. 31 e 37. Sobre a definição clássica de objetividade. 494 Cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85-86. 495 Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 83. 496 Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 80 497 Ver nota 365 do primeiro capítulo. 498 Blaise PASCAL, Adresse à l`Académie Parisiense, p. 102. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 101 – 103. 492 139 visualiza o objeto como se estivesse imerso em uma nuvem que impede uma visão pura e evidente. A nuvem pode ser entendida como todo contexto que envolve a relação entre objeto e pesquisador. Já que o contexto muda de pesquisador para pesquisador – na medida em que não ocupamos os mesmos corpos, as mesmas épocas e mesmas visões de mundo – Pascal descarta qualquer conhecimento da natureza das coisas e de sua essência, ou seja, um conhecimento claro e distinto como almeja Descartes. Portanto, se não conhecemos as coisas com evidência, isto implica em dizer que qualquer saber é válido? Chevalley não partilha desta idéia. “Já que todo saber é contingente, a ambição de agarrar o objeto é destituída de sentido. Porém, o fato de que todo saber seja contingente não implica que todas as proposições sejam equivalentes.”.500 Mergulhar o conhecimento na contingência não anula a possibilidade de conhecer, mas leva em conta as possibilidades e condições do conhecimento. Dentro de um determinado contexto Pascal tenta verificar a relação entre as condições iniciais e a coerência das conclusões, entretanto, o que é radicalmente vetado por Pascal é o conhecimento da verdade absoluta de um determinado empreendimento. Mas tal impossibilidade vale para Deus também? Vejamos como Chevalley analisa este ponto. “Deus não tem nenhuma relação com o homem, ele não pode sustentar nenhum discurso sobre ele, e no mundo humano a contingência está por toda parte, ao mesmo tempo que na ordem do conhecimento e na política e moral.” 501 Chevalley faz esta afirmação a partir da física de Pascal. Deus não é objeto da física como é para Descartes. Pascal critica Descartes por fazer de Deus sustento de um sistema físico-mecanicista. Para Pascal o discurso sobre Deus está fadado a problemas de linguagem tão radicais que são capazes de trazer uma enorme confusão. Deus é objeto do coração e o homem deve se submeter ao oásis das sagradas Escrituras. Pascal acredita que a teologia deve ser o discurso de Deus sobre Deus. Só Deus fala bem de Deus.502 O mundo é o local da contingência, desta maneira, o homem – criatura mundana – é incapaz de submeter Deus à linguagem, ou seja, à linguagem não toca a Divindade.503 Percebemos que a contingência é analisada por Chevalley dentro da epistemologia tentando entender as possibilidades de conhecimento e como dar-se-ia este processo. Ela afirma que o conceito contingência pode ser estendido para a política e moral, mas não é objetivo de seu livro aprofundar-se neste tema: no capítulo III de nossa pesquisa 499 Catherine CHEVALLEY, Pascal, contingence et probabilités, p. 68. Ibid., p. 112. 501 Ibid., p. 112. 502 Cf. Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 172. 503 “O homem não poderia por si mesmo conhecer Deus, a linguagem humana está inapta para designar Deus. Desta maneira, este escapa radicalmente ao pensamento humano.”. (Ibid., p. 160). A linguagem não é um 500 140 abordaremos alguns aspectos da política e da moral que estão presentes no fragmento 44 sobre o conceito imaginação, nosso objeto de estudo no próximo capítulo. Entretanto, a autora Chevalley nos ajuda a conceder maior rigor àquilo que chamamos de contingência, sempre lembrando ao leitor que para nossa pesquisa o conceito tem origem teológica. O pecado de Adão é a pedra angular da contingência no mundo. Desta maneira, vejamos o que teólogo francês tem a nos dizer sobre este atavismo do pecado difusor da contingência. 2.1 – O atavismo do pecado: a contingência afeta a todos os homens. Pascal destaca que o pecado adâmico é transmitido para toda posteridade de Adão. Vejamos. Este pecado passou de Adão a toda sua posteridade – que foi corrompida com ele como um fruto saindo de uma malvada semente –, assim, todos os homens saídos de Adão nascem na ignorância, na concupiscência, culpados do pecado de Adão e dignos de morte eterna.504 O pecado de Adão é transmitido a toda posteridade, a todos os homens, mulheres, crianças e toda criação. A queda causa efeito em todo cosmos. Se a fonte é suja, o rio é sujo. A culpa do pecado adâmico corrompe não somente Adão, mas todos seus descendentes. O pecado pareceria ser um traço, um componente, um ingrediente, que constitui toda humanidade depois da queda.505 Todos os homens estão na “ignorância”, ou seja, vivem a mesma situação contingente de Adão. Ele é o modelo de homem-pecador mais conhecido da humanidade. Todos estão condenados a imitar Adão e viver na gravidade do pecado. A “concupiscência” traduz o desejo humano de ser mais do que Deus ou igual a Ele e, desta forma, este desejo torna-se um vício repetido dentro da mecânica concupiscente do estímulo e do deleite que fecham o homem dentro de uma cadeia pecaminosa, uma espécie de rua sem saída, ou, para melhor esclarecer, a cobra comendo o próprio rabo. Mas somente Adão tem culpa de todo este drama cósmico? Não para Pascal, todos pecaram em Adão, todos são instrumento capaz de apreender a Deus, pois este estaria além da rede de referenciais lingüísticos que conhecemos. 504 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 317. 505 Este caráter claro-escuro que permeia a antropologia teológica de Pascal, uma herança de Santo Agostinho, não contradiz a antropologia teológica dos maniqueus quanto ao mal erradicável, porém, com uma diferença: para Pascal, na esteira de Santo Agostinho, a graça é capaz de resgatar o homem do mal concedendo a salvação aos predestinados, o que faz toda diferença. 141 culpados junto com ele e “dignos de morte eterna.”. Culpa infinita para desobediência tão horrenda. Tal desobediência é tão grande que nem mesmo a morte a qual o homem está condenado poderia servir de parâmetro para nos auxiliar a entender qual foi o tamanho do pecado de Adão. Desta maneira, diante da corrupção atávica de toda humanidade causando tamanha desproporcionalidade entre o homem e Deus506 e dificultando para entendermos o tamanho do pecado humano, Pascal irá comparar o tamanho do ultraje com a grandeza da graça, algo que veremos a no decorrer deste capítulo.507 Todavia, neste momento, recorremos ao fragmento 431 dos Pensamentos no qual Pascal faz uma análise do pecado original e algumas de suas conseqüências. Tais conseqüências que pretendemos sublinhar agora apresenta-se como mistérios. 2.2 – Primeiro mistério: o estado glorioso de Adão. No fragmento 431 dos Pensamentos encontramos os três primeiros mistérios 506 “A unidade acrescentada ao infinito não o aumenta em nada, não mais do que um pé a uma medida infinita; o finito se aniquila na presença do infinito e se torna um puro nada. Assim o nosso espírito diante de Deus, assim a nossa justiça diante da justiça divina. Não há tão grande desproporção entre nossa justiça e a de Deus quanto entre a unidade e ao infinito.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 418, Bru 233, p. 158). Como Pascal partilha da idéia de que o coração não é tocado pelos raciocínios e só cabe a Deus esta dádiva, ele tenta “encurtar” o caminho do futuro convertido (talvez convertido) na medida em que oferece uma explicação racional – porque os matemáticos são os representantes da 2ª ordem na pessoa de Arquimedes – para salientar a desproporção entre o homem e Deus. A transposição é feita pela matemática. Um número acrescido ao infinito não muda em nada o infinito, assim como qualquer medida acrescida a uma medida infinita. Logo depois, Pascal apresenta a comparação entre o homem e Deus pelo viés da justiça, ou seja, há uma desproporção tão grande entre nossa justiça e a de Deus que se torna impossível tal comparação. Este ponto do fragmento 418 parece fazer um pequeno resumo de toda desproporcionalidade entre o homem e Deus. Todavia, outros pontos de sua obra parecem esclarecer a mesma questão. “A distância infinita entre os corpos e os espíritos figuram a distância infinitamente mais infinita entre os espíritos e a caridade, porque esta é sobrenatural.”. (Ibid., Laf. 308, Bru 793, p. 124). O fragmento 308 fala sobre a relação entre as três ordens – corpo, espírito e caridade – e mostrando a diferença entre elas. Pascal ressalta que há uma infinita distância entre a ordem dos corpos e do espírito, pois “[...] de todos os corpos juntos não poderia conseguir um pensamentozinho.”. (Ibid., Laf. 308, Bru 793, p. 124). O “pensamento” pertence a uma outra ordem – do espírito –, todavia, “[...] todas as produções não valem o menor movimento de caridade.”. (Ibid., Laf. 308, Bru 793, p. 124). A caridade – onde se manifesta o amor de Deus – ocupa o cume desta hierarquia, logo, “[...] de todos os corpos e espíritos não se poderia tirar um movimento de verdadeira caridade, isto é impossível, e de uma outra ordem sobrenatural.”. (Ibid., Laf. 308, Bru 793, p. 124). A distância entre corpo e espírito é figurada pelo infinito, já a distância entre o espírito e a caridade é figurada por dois infinitos que se sobrepõem. Pascal usa de uma comparação mais tangível aos nossos olhos – através da matemática – e a transpõe para mostrar a desproporção entre o homem e Deus. Jean Mesnard trabalha em seu artigo Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées dois fragmentos dos Pensamentos (Laf. 308, Bru 793 e Laf. 933, Bru 460) destinados às ordens. Nele ressalta outra transposição matemática para fazer saltar a desproporção entre o homem e Deus. Um ponto, que é caracterizado por não ter nenhuma largura, não causa nenhuma mudança na linha quando nela é acrescentado. Uma linha, que não tem espessura, quando acrescentada a uma plano não produz nenhuma mudança, assim como um plano quando acrescido a um sólido em nada interfere. Desta maneira, a hierarquia entre as ordens é estabelecida de maneira rigorosa e precisa. (cf. Jean MESNARD, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 34 In: Lane M. HELLER & Ian M. RICHMOND (orgs), Pascal – Thématique des Pensées. Paris: J. Vrin, 1998, p. 29 – 55). 142 Não concebemos nem o estado glorioso de Adão, nem a natureza do seu pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas que aconteceram no estado de uma natureza totalmente diferente da nossa e que ultrapassam o estado de nossa capacidade presente. É inútil sabermos dessas coisas para sair de tudo isso; e tudo que nos importa conhecer é que somos miseráveis, corruptos, separados de Deus, mas resgatados por Jesus Cristo; e é disso que temos provas admiráveis sobre a terra.508 O estado glorioso de Adão nos é desconhecido, desta maneira, o homem não conhece a si mesmo, ou seja, o seu estado verdadeiro de homem. Ele não pode dizer nem o que é o homem nem o que ele não é, ficando sob a tutela da contingência qualquer afirmação ou negação que se levante. A isosthenéia509 seria a “melhor” resposta, ou seja, a resposta é dada sob o olhar do provável, da contingência. O homem, estando desprovido de uma resposta satisfatória sobre si mesmo, é visto, na ótica de Pascal, como um ser exilado de si mesmo. A procura de si está fadada ao fracasso510, todavia, a procura é sinal de que existe resposta, porém, fora do alcance meramente humano. O pecado de Adão corrompeu toda humanidade e solapou qualquer possibilidade de resposta perene – não contingente – dentro das reflexões humanas. O estado glorioso de Adão, no qual se encontra a resposta sobre quem é o homem, torna-se um mistério511 insondável e o homem como um ser em busca do santo graal, ou seja, 507 Ver item 2.6 deste capítulo. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 431, Bru 506, p. 174 – 175; grifo meu. 509 É um termo grego usado pelos céticos para relativizar dois raciocínios em confronto de tal maneira que a razão não teria nenhum motivo para pender a nenhum dos lados. Usa-se também o termo eqüipolência para qualificar tal ocasião. Em suma, a isosthenéia diz respeito a indecisão em meio à argumentos dogmáticos que não são evidentes e estão em conflito. (cf. Renato LESSA, Veneno Pirrônico: Ensaios sobre ceticismo, p. 34). 510 “É em vão, ó homens, que buscais em vós mesmos os remédios para vossas misérias. Todas as vossas luzes não podem levar a outra coisa que não seja conhecer que não é em vós mesmos que encontrareis a verdade nem o bem.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 149, Bru 430, p. 63). O resposta do homem não está no homem, mas ultrapassa suas limitações. Descrever o biológico não explica tudo que compõe o homem, nele encontramos marcas do sobrenatural e é a partir destas que a resposta poderá fazer sentido. Entretanto, ressalta o comentador Pondé, que a miséria humana não deve ser polarizada como única prerrogativa capaz de envolver o homem. “Não devemos, todavia, assimilar conceitualmente a condição de criatura à miséria, já que, ainda que seja criatura, o homem tem uma vocação sobrenatural: não confundamos condição com vocação, nem tão pouco finitude com destino teleológico do homem.”. (Luiz Felipe PONDÉ, O Homem insuficiente, p. 113). Deixar o homem sobre a gravidade do pecado, este porém, absolutamente vinculado à miséria, é solapar a capacidade da graça de regenerar a natureza concupiscente. O homem é, para Pascal, um ser teleológicamente destinado a Deus, desde que Ele o queira. Esta afirmação de Pondé quanto ao telos do homem está de acordo com Mesnard: “O homem corrompido desvia-se necessariamente de seu fim sobrenatural que ele não pode claramente perceber.”. (Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 597) 511 “No século XVII, “mistério” e “secreto” são indissociáveis, ponto essencial da perspectiva de Pascal para o qual Deus se esconde “até” na Eucaristia; mistério além disso, é sinônimo de “sacramento” (...), mas na língua latina, de onde esta palavra nos é vinda, sacramento nos quer dizer muitas vezes coisa alta, secreta e impenetrável.”. (Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 42). Pela sua sacralidade, o mistério 508 143 sempre contingente quanto às possibilidade encontrá-lo e, caso encontre, de reconhecê-lo. Portanto, diante do exílio de seu ser verdadeiro, este porém, apresentando-se como mistério na antropologia teológica de Pascal, vejamos como Pascal entende o segundo mistério. 2.3 – Segundo mistério: a natureza do pecado de Adão. Se o estado glorioso de Adão é obscuro, isto não acontece naquilo que diz respeito ao pecado de Adão. Sabemos qual foi seu pecado, ou seja, sua soberba em querer ser igual ou mais do que Deus, mas qual a “natureza de seu pecado”, ou o porquê, o motivo daquela disposição momentânea512 – como ressalta Mesnard – do pecado de Adão? Ele tinha uma razão esclarecidíssima, contemplava Deus, vivia no paraíso, tinha tudo que lhe era necessário para viver uma vida santa, justa e feliz, sabia da grandeza de Deus, de Seu poder e de Seu mandamento, desta maneira, volta a pergunta: O que passou na cabeça de Adão antes do pecado e que, conseqüentemente, o fez pecar? Todas as respostas parecem insuficientes e misteriosas para Pascal: a contingência envolve tal fato. Como Adão presumiu poder ser mais ou igual a Deus? Será que ele realmente acreditava em tal conquista? As perguntas aumentam em maiores proporções que as respostas, todavia, tal acontecimento pareceria ser mais um mistério que abraça o tema do pecado original e lança todas nossas respostas a uma floresta repleta de contingência. Portanto, vejamos agora o que Pascal concebe como o terceiro mistério. assume o significado de separado, distinto, ou seja sanctus. Este conceito de santidade revela o abismo entre Deus e o homem, manifestando a incapacidade de compreendê-lo e penetrá-lo. A submissão pela fé é a melhor saída, todavia, isto não implica em uma atitude absurda do ponto de vista da razão, mas é a fé satisfazendo a inteligência, sustenta Denise: “O recurso instrumental às provas encontra sua justificação na idéia de que a fé, na ordem do coração, satisfaz a inteligência.”. (Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 45). Mesnard também sublinha o mistério relacionando o conceito como algo que aponta o sentido místico: “[...] nos parece oportuno de considerar, inicialmente, a mística como a ascensão ao mistério.”. (Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 332 – 333). O mistério revela a incapacidade humana de conhecer Deus somente pelas vias racionais, sendo que tal conhecimento é concebido pela via do amor, ou seja, de um ser universal que deve ser “venerado” e “amado” (cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 12, Bru 187, p. 5) para ser conhecido. Ainda Mesnard afirma: “Então, nos parece impossível de não descobrir na obra de Pascal um pensamento místico.”. (Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal. p. 333). Para Mesnard, a mística é um dos modos pelo qual o pensamento de Pascal apresenta-se: “O Deus escondido só se revela plenamente quando ele está presente misticamente dentro da alma pela graça.”. (Ibid., p. 359). É Deus quem toma a iniciativa dentro do processo salvífico, tal procedimento confere conseqüências epistemológicas, já que a fé, para Pascal, não desqualifica a razão, mas supera. Desta maneira, a fé responde às questões que a razão impõe, visto que a razão não consegue responder. Portanto, o homem submete-se ao mistério pela fé e compreende tal dádiva de Deus pela razão. Pascal, neste raciocínio é totalmente agostiniano. 512 Idem, Essai sur la signification des Écrits, p. 696 144 2.4 – Terceiro mistério: a transmissão do pecado. Diante do mistério em saber o que é o homem e o motivo do pecado de Adão, outro mistério transparece a nossos olhos: como se dá a transmissão do pecado? Como o pecado de um só homem pode corromper toda a humanidade e, o que parece ferir ainda mais nossa razão, como tal pecado é capaz de corromper toda a natureza a ponto de “[...] que nada que exista na natureza seja capaz de ocupar o seu lugar.”513? E, já que a transmissão acontece, como ela acontece?514 Desta maneira, Pascal declara que a transmissão do pecado é um 513 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 148, Bru. 425, p. 60. Será que a genética, marca da ciência médica moderna, poderia dar uma resposta a Pascal, sustentando que o pecado de Adão é transmitido pelo DNA? Não é objeto de nossa pesquisa responder esta pergunta, mesmo porque um enunciado como este pareceria fora das possibilidades de falseabilidade. Sabemos também que a ciência moderna não trabalharia com conceitos teológicos como pecado, pois isto implica em prerrogativas morais que, para a biologia moderna, os gens não se importam. O etólogo Richard Dawkins descreve o comportamento animal destituído de qualquer prerrogativa moral que nos impulsionaria a chamar tais selvagens de “sanguinários” Podemos verificar a ação da natureza de maneira empírica a partir de suas análises. Ele relata uma série de comportamentos selvagens que nos traria luz ao efeito do pecado de Adão: o louva-a-deus mostrase como um eficiente canibal, já que a fêmea no momento do seu acasalamento espera uma boa oportunidade para abocanhar a cabeça do macho. Depois disso, a copulação pareceria ter maior desenvoltura, pois a cabeça é sede de alguns centros nervosos inibidores e, quando retirada, aumenta o desempenho do macho até ele morrer. Algumas gaivotas, com o intuito de não gastar energia na busca de alimentos e, desta forma, não abandonar seu ninho desprotegido, devoram os filhotes das vizinhas que foram buscar alimentos, desta maneira, elas multiplicam-se mais rapidamente que as gaivotas “honestas”. Com o objetivo de se alimentar, os pingüins empurram-se uns aos outros nas margens do mar, desta maneira, com a queda de algum(s), todos poderão saber se há focas submersas prontas para os devorá-los. (cf. Richard DAWKINS, O gene egoísta. trad. Geraldo H. M. Florsheim. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001, p. 25). Com estes exemplos poderíamos supor, partindo da rígida moral cristã jansenista, que os procedimentos da natureza depois da queda são “sangrentos” e, desta maneira, submetidos ao acaso. A natureza é impiedosa com a inocente gaivota que constrói seu ninho ao lado da “gaivotacanibal”, aquela porém, sofrerá retaliação por seu ato. Pascal descreve o caráter imoral do homem – por causa do pecado de Adão – e estende para toda natureza trazendo o acaso para o seio da reflexão: “Só ele é seu verdadeiro bem. E desde que o abandonou, é uma coisa estranha que nada exista na natureza que seja capaz de ocupar o seu lugar, astros, céu, terra, elementos, plantas, repolhos, alhos-porós, animais, insetos, novilhos, cobras, febre, peste, guerra, fome, vícios, adultério, incesto.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 148, Bru. 425, p. 60 – 61). As coisas não ocupam mais o “seu lugar”, ou seja, perderam seu primeiro estado de natureza e foram também corrompidas pelo pecado de Adão. O lugar das coisas – sua natureza – está tão distante quanto o homem de si mesmo. Esta seria a teodicéia de Pascal naquilo que diz respeito ao estado das coisas no tempo presente. O homem do século XVII tem o mesmo olhar sobre a natureza que o homem do século XIII, ou seja, procura decifrar seus lugares e funções no universo. Mas o homem do século XVII, de maneira especial, Pascal, não encontra resposta em suas investidas. A natureza tem sentido ontológico na obra de Pascal e torna-se um segredo para o homem caído. (cf., Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, p. 65). Nossa pesquisa não tem o objetivo de fazer comparações entre a filosofia de Pascal e as novas correntes darvinistas. Todavia, a idéia de acaso sustentada por neo-darwinistas como Richard Dawins, analisada sobre a luz da doutrina do pecado original de Pascal, seria vista como conseqüência do pecado adâmico. O acaso, tanto para Pascal e neo-darwinistas, é um componente que permeia todas as coisas, mas, se para os neo-darwinistas a origem – se é que há uma origem – do acaso é irrelevante, para Pascal a origem é teológica: o pecado original. Para saber sobre a concepção de acaso na perspectiva filosófica em Pascal ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 68, Bru. 205, p. 25. Para saber mais sobre o assunto ver Andrei Venturini MARTINS & Gilberto Cabral da SILVA, O pecado de Pascal e o acaso de Darwin. Revista Último Andar. São Paulo: Educ, n. 10, p. 125 – 144, jun., 2004. Vale salientar que depois de Pascal, com a queda do vocabulário teológico, as respostas as antigas questões sobre o livre-arbítrio, a responsabilidade de uma ação, a origem do mal é ampliada. “Depois dele, o debate não cessará de ampliar-se. Serão encontradas outras formas de 514 145 mistério insondável, portanto, é a contingência que permeia o homem quanto ao mal que todos cometem depois de nascer, sendo contingente o suficiente para fazer deste mistério algo insondável. 2.5 – Panorama dos três mistérios. Desta maneira, percebemos que Pascal postula três mistérios no 431 dos Pensamentos, estes porém, imersos na contingência: o primeiro, que diz respeito ao estado glorioso de Adão; o segundo, o porque ou a “natureza” de seu pecado; o terceiro, no qual ele indaga-se sobre o modo pelo qual se deu a transmissão do pecado. Entretanto, mesmo respondendo a todas estas perguntas, a situação do homem continuaria a mesma; Pascal ressalta que a resposta destas não livra o homem de sua condição presente. Sabemos que, para Pascal, é a graça regeneradora que garantiria a libertação do homem deste estado pós-queda. Todas as tentativas humanas de responder estas perguntas cairiam em um mistério insondável, pois, quando aconteceram tais fatos estávamos em um estado de natureza diferente do presente, de modo que a “nossa capacidade” presente, ou seja, contingente, não permite estabilizar nenhuma resposta que se obteve afirmativamente ou negativamente. Diante destes três mistérios que envolvem nossa condição em função do pecado, vejamos se podemos medir qual é a proporção do mesmo. 2.6 – Medindo a gravidade do pecado. O homem, diante da mecânica concupiscente – alienação – na qual se encontra, não consegue medir suficientemente o tamanho do pecado somente pela natureza, fazer-se-ia necessário recorrer à teologia. Fazendo uma análise do pecado pela natureza empírica da condição presente515, o homem é “miserável”, ou seja, amoral, violento, dependente, sofre dependência. Outras fontes de liberdade. Filósofos, economistas, juristas, psicanalistas, geneticistas escreverão milhares de páginas para convencer – convencer-se – de que todo homem, a qualquer instante, é livre para escolher o curso que dará a sua vida, ou, ao contrário, para explicar que ele está submetido a outras injunções ou determinismos que não são o julgamento e a vontade de Deus.”. (Jacques ATTALI, Blaise Pascal ou o gênio francês, p. 162 –163). 515 “Não é necessário visitar o mito da Queda para se perceber tal realidade, basta olhar ao redor e contemplar nossa “miséria” cognitiva e noética, realidade absolutamente empírica: quem busca o conhecimento a partir do campo de procedimentos elaborado pela reflexão epistemológica (isto é, quem se preocupa com a grade de critérios que legitima sua condição de agente noético) é um exilado da certeza, seu idioma é o da dolorosa busca das evidências (mal) compartilhadas.”. (Luiz Felipe PONDÉ, Em busca de uma cultura epistemológica, p. 12. In: Faustino TEIXEIRA (org). A(s) ciências(s) da Religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001). Para Pascal, a queda seria uma explicação da condição humana “miserável”, ou seja, 146 com a corrupção da matéria, doenças e por fim, com a morte; frente ao pecado, somos e estamos separados de Deus, mas é o próprio Deus que vem em nosso socorro. Ele envia Jesus Cristo para a salvação do homem. Desta maneira, a medida do nosso pecado é do tamanho da misericórdia de Deus que envia seu Filho muito amado. E o pecado de Adão transmitido à toda posteridade é tão grande que ainda que não se possa conceber a grandeza, basta dizer que precisou, para expiá-lo, que um Deus se encane e que sofra até a morte para fazer entender a grandeza do mal o medindo pela grandeza do remédio.516 A graça que é concedida aos predestinados pela morte e ressurreição de Jesus Cristo não somente descreve a gravidade do pecado, mas mostra que na sua grandeza salutar excede o pecado e, conseqüentemente, ultrapassa-o. A finitude cósmica do pecado é superada pela infinitude da graça. Dela temos provas firmes sobre a terra, diz Pascal. Mas quais seriam estas provas? A escritura, os profetas, os santos, as bulas Papais, os antigos Padres e a Igreja. Para Pascal, não há provas mais claras do que estas. Não vemos Deus na natureza, todavia, esta é mais uma prova de Deus, pois Ele é um Deus absconditus. Não conseguir enxergá-Lo na natureza é somente confirmar aquilo que a escritura nos diz.517 Desta maneira, a visão do Deus absconditus pela escritura causa vertigem no cristão que, tocado pela grandeza da graça, sente-se envergonhado frente a Deus pelos males que causou518. É o reconhecimento da longe de Deus, mesmo frente aos diferentes mistérios que a envolvem. Na análise de Pondé, a queda não é um ponto central e necessário para contemplar o estado falho (cognitivo, biológico – corrupção da matéria, doenças) que o homem se encontra. Para evidenciar isto, Pondé chama atenção, focando seu olhar na epistemologia, de maneira que, qualquer pesquisador sabe que a certeza e evidência das coisas é algo que estamos absolutamente separados quando este foi bem treinado no crivo da epistemologia. Evidência e certeza é algo que estamos absolutamente separados. Quando um pesquisador termina um trabalho e se pergunta: Falei tudo sobre meu objeto? Se a resposta for sim, duvide. 516 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 314. 517 “Sendo Deus assim escondido, toda religião que não diz que Deus é escondido não é verdadeira, e toda religião que não indica a razão disso não é instrutiva. A nossa faz tudo isso.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 242, Bru. 585, p. 97). A religião cristã diz que Deus é um Deus absconditus, já que Ele não possui nenhum referencial mundano que possa evidenciá-Lo senão com a prerrogativa básica da fé dada pela própria deidade. O que Pascal considera evidencia de Deus? Jesus Cristo, os Profetas, a Sagrada Escritura, os Santos Padres e a Igreja, todavia, sem a fé, vista por Pascal como um dom de Deus, não há possibilidade de reconhecê-lo. Desta maneira, a não evidência de Deus fere a razão dos mais sábios e faz com que os mesmos abaixem sua vaidade e abram os braços para o Criador. O caráter apologético dos Penssés talvez é visto por Pascal como uma forma de “encurtar o caminho” até Deus, todavia a salvação é dádiva do Criador. Sobre a motivação de Pascal para compor uma obra apologética em seu contexto jansenista no qual a fé é dádiva de Deus ver Henri GOUHIER, O sentido da apologética, p. 155 – 181. In: Idem, Blaise Pascal: conversão e apologética. trad. Éricka Marie Itokazu e Homero Santiago. São Paulo: Paulus, 2006. 518 “Mas a alma encontra mais amargura nos exercícios de piedade do que nas vaidades do mundo. De uma parte, a presença dos objetos visíveis a toca mais do que a esperança dos invisíveis e, de outra, a solidez dos objetos invisíveis a toca mais do que a vaidade dos visíveis. E assim a presença de uns e a solidez de outros disputam sua afeição; e a vaidade de uns e a ausência de outros excitam sua aversão; de maneira que nasce na alma uma 147 miséria pela efusão da graça que se manifesta de maneira mais profunda na grandeza do amor de Deus que envia seu filho amado para salvação do homem. Deus sofre na cruz as miséria dos homens. A quem Deus recorrerá neste momento? A ninguém, Ele está só em um universo surdo que não escuta o seu silêncio. O sentido da miséria humana é proporcional ao mistério do sacrifício pascal cristão. Vejamos o comentário do filósofo Franklin Leopoldo e Silva do texto de Pascal O mistério de Jesus519 no qual o comentador em questão destaca a medida ou proporção do pecado humano: Jamais esgotaremos o significado da miséria em toda a sua profundidade; basta, para que se constate esta impossibilidade, observar que o resgate da miséria humana exigiu que Deus se fizesse mais miserável que o homem. Em que Cristo se rebaixou mais do que os homens? Não foi através de sofrimento físico, tortura e morte na cruz. Foi através do sofrimento moral: a angústia diante da morte, o sentimento de abandono, a distância dos homens e de Deus. O paradoxo que está envolvido na descrição desta agonia supera a medida de qualquer compreensão humana da dor: o Filho abandonado pelo Pai é Deus abandonado por Deus.520 A miséria humana nunca é aquilatada totalmente. A profundidade de tal miséria é proporcional a grandeza do amor de Deus que envia seu Filho para a salvação do homem.521 Este porém, ser exilado de si, desconhece o mal que compõe seu novo estado de natureza: a concupiscência. A não percepção do mal que envolve a história condena o homem pela sua ignorância à danação. Todavia, Cristo assume todas nossas misérias físicas e, como ressalta Franklin Leopoldo e Silva, moral também. O mal físico sofrido por Deus é uma dor que somente o próprio Deus poderá suportar, afirmará Pascal: “É um suplício vindo de mão não humana mas toda poderosa, e é necessário ser todo-poderoso para suportá-lo.”.522 Deus sente desordem e uma confusão que...”. (Blaise PASCAL, Sur la conversion du pecheur, p. 290). A alma sofre os sacrilégios do processo de conversão. O pecado está cravado na alma, desta maneira, tal desprendimento é o motivo da “confusão” que o convertido tem em seu novo caminho. Neste caminho o seu pecado é reconhecido e a alma sente toda sua fragilidade. Todavia, nos Pensées, Pascal descreve o mal estar do homem em processo de conversão na medida que conhece o seu pecado. “Se conhecesses os teus pecados desfalecerias.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 378). Ver Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 191. 519 Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 375 – 379. 520 Franklin Leopoldo e SILVA, O mediador e a solidão. Revista Cult. São Paulo: Editora 17, n. 64, p. 45, s.d. 521 “A gravidade da ofensa se mede pela dignidade do ofendido e não do ofensor: de acordo com tal princípio, a humanidade, que pecou em Adão, estaria, de maneira inteiramente justa, porque por sua própria escolha, destinada à danação.” (Idem, Condição trágica e liberdade, p. 101. In: Adauto NOVAES (org), O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 99 – 113). 522 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 375. 148 o peso de sua própria mão. Cristo sofre como um cordeiro para espiar as misérias do homem, assim, santifica o sofrimento pelo seu sofrimento. Mas o suplício é sofrimento mortal: Cristo morre como um cordeiro para espiar as miséria humanas, desta maneira, santifica a morte pela sua morte. Sofrimento de cruz e morte: conseqüência da resposta de Deus às misérias humanas. A gravidade do pecado tão impenetrável a nossa razão tristemente condenada à contingência é iluminada, não na sua totalidade, pelo socorro do Pai. Mas o caráter dramático deste paradoxo no qual Deus sofre o peso da mão de Deus vai além: “[...] a angústia diante da morte, o sentimento de abandono, a distância dos homens e de Deus.”.523 Seus gritos se misturam com suas lágrimas no Getsêmani: é a angústia diante da morte. “Minha alma está triste até a morte.”.524 Não há consolo, há escuridão, dor, abandono: “Ele sofre essa dor e esse abandono no horror da noite.”.525 Distante dos homens e o abandonado pelo Pai: Cristo está só; “Jesus ficará em agonia até o fim do mundo.”.526 A dor moral trespassa a dor física: Cristo, totalidade de ser, sofre as carências demasiadamente humanas divinamente. Portanto, é o sofrimento que fará o humano ultrapassar aquilo que o faz demasiadamente humano, ou seja, o pecado. Cristo com sua angústia santifica as angústias, com seu abandono santifica o abandono e pela sua distância aproxima o homem do Pai. Cabe ao homem reconhecer pela mediação do Filho a sua miséria: Deus envia seu único Filho para salvar o homem. Mas tal dádiva não será concedida a todos, o que remete a discussão para o quarto mistério. 2.7 – Quarto mistério: a eleição de Deus dos predestinados. Vivendo esta vertigem frente a percepção da grandeza do pecado, outro mistério se impõe, seria o quarto mistério. Encontramo-lo nos Écrits sur la grace. Vejamos. Todos os homens estão dentro desta massa corrompida igualmente dignos de morte eterna e da cólera de Deus; Ele podia abandonar a todos sem misericórdia para condenação. E, entretanto, agradou a Deus escolher, eleger e discernir desta massa igualmente corrompida – onde Ele só via maus méritos –, um número de homens de todos os sexos, idades, condições, temperamentos, de todos os países, de todos os tempos e, enfim, de todas as formas. 523 Franklin Leopoldo e SILVA, O mediador e a solidão, p. 45. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 919, Bru. 553, p. 376. 525 Ibid., Laf. 919, Bru. 553, p. 376. 526 Ibid., Laf. 919, Bru. 553, p. 376. 524 149 Que Deus discerniu seus eleitos com os outros por razões incognoscíveis aos homens e aos anjos, por pura misericórdia sem nenhum mérito.527 Pascal inicia a citação declarando que o pecado de Adão outorga a toda humanidade uma só sentença: todos são dignos de morte eterna. A cólera de Deus é absolutamente justa, desta maneira, não há nenhuma mácula na bondade de Deus se Ele condenar a todos: Deus continua sendo bom. O paradoxo entre Justiça e Misericórdia mais uma vez exsuda do texto: mas como conciliar justiça e misericórdia? Se Deus condena justamente, onde fica a misericórdia? Ele deixa de ser misericordioso ao condenar? Para Pascal não. A condenação não fere a misericórdia. Se Deus abandonasse o homem, sua ação seria absolutamente justa e sua misericórdia continuaria sendo sem fim. A contingência permeia o espírito humano em suas investidas de compreender Deus conceitualmente. Os conceitos limitam Deus e fazem dele objeto humano, desta maneira, Ele estaria fora das capacidades humanas de conceituar. Deus torna-se um atributo do coração. Entretanto, sabemos que seria muito melhor caracterizá-Lo como justo e misericordioso, apesar dos problemas conceituais, do que um corrupto demiurgo injusto. Esta última alegação pareceria ferir muito mais a razão no contexto teológico em que Pascal está inserido. O problema com os conceitos, nada mais é do que mais um resquício de um pecado original capaz de corromper todo o universo, dele advém uma crise cósmica, todavia, a mácula é incapaz de atingir a Deus. Entretanto, é a reação de Deus em função do pecado adâmico que traduz o quarto mistério que queremos sublinhar, ou seja, a predestinação. Deus escolhe alguns homens para salvar, ou seja, predestina-os concedendo a graça eficaz e, desta maneira, revela sua misericórdia. A massa de homens sendo inteiramente corrompida e sem méritos somente é salva pela misericórdia de Deus, esta porém, concedida a quem “agradou a Deus escolher”. Pascal relaciona uma gama de pessoas nas diferentes raças, idades e tempos. Mas qual é o critério usado por Deus para a eleição? É neste ponto que se encontra o quarto mistério. Este porém, também é mencionado por Mesnard em seu Essai sur la signification des Écrits no momento em que o comentador fala da graça eficaz e da predestinação, trazendo considerações epistemológicas que caracterizam a contingência que permeia o instrumental cognitivo do homem. “Colocam acento sobre a profundidade insondável do mistério de Deus e incluem além disso a idéia que, pelo pecado, a razão foi corrompida e torna-se impotente e cega.”.528 A contingência apresenta-se na medida em que o 527 528 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 318. Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 613. 150 homem desconhece como Deus faz a eleição. A Divindade é a causa da predestinação, não é a razão humana a causa da mesma. Assim, afirmará Pondé acerca da predestinação: “Essa é a razão pela qual a predestinação é contingente em termos racionais humanos [...]”.529 As razões de Deus por ter escolhido a um e não a outro são absolutamente incognoscíveis e os homens indignos de levantar qualquer credencial moral cobrando a decisão de Deus530: Deus salva “[...] por pura misericórdia e sem nenhum mérito.”531 As razões, nem os anjos saberiam dizer. A contingência é a marca daquilo que envolve a predestinação: a razão humana é incapaz de esclarecer quais serão os critérios usados por Deus para a escolha dos eleitos. 3 – Os mistérios são traços da contingência. Portanto, o pecado original, coroado por este quarto mistério que relacionamos em nossa pesquisa, está ilhado pelo mistério, pois envolve acontecimentos relatados pelo viés teológico que lançam o homem em um estado de contingência tal que as tentativas meramente humanas de dar sentido àquilo que aparece como mistérios estão fadadas ao incerto. Se os mistérios são pontos importantes para mostrar que o homem é um ser isolado da verdade e da falsidade em função do pecado, ou seja, o conhecimento humano sobre si está imerso na contingência, todavia, podemos dizer que é por causa da contingência que os mistérios aparecem como tal, todavia, sem os mistérios, o homem seria ainda mais inexplicável. O fragmento 131 dos Pensées traz luz sobre o caráter inexplicável e misterioso do pecado original, tema do nosso capítulo. Coisa espantosa, entretanto, é que o mistério mais distante do nosso conhecimento, que é o da transmissão do pecado, seja algo sem o que não podemos ter nenhum conhecimento sobre nós mesmos. Pois não há dúvida de que não existe nada que choque mais a nossa razão do que dizer que o pecado do primeiro homem tenha tornado culpados aqueles que, estando tão afastados dessa origem, parecem incapazes de dele participar. Tal decorrência não nos parece apenas impossível. Parece-nos mesmo muito injusta, pois existe acaso mais contrário às regras da nossa miserável justiça do que condenar eternamente uma criança incapaz de vontade por causa de um pecado de que parece ter participado tão pouco, cometido que foi seis mil anos antes que ela 529 Luiz Felipe PONDÉ, Conhecimento na Desgraça: ensaio sobre epistemologia pascaliana, p. 31. Cf. Ibid., p. 31. Pondé ressalta que, para Pascal, a predestinação é feita por Deus sem levar em conta as boas ações humanas. 530 151 viesse a ser. Nada por certo nos choca mais do que esta doutrina. E no entanto, sem este mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O enredamento de nossa condição assume as suas implicações e obras neste abismo. De maneira que o homem é mais inconcebível sem este mistério do que este mistério é inconcebível para o homem.532 Pascal inicia a citação afirmando que não há nada que fere mais a nossa razão do que a transmissão do pecado. Este é um mistério distante do nosso conhecimento, ou seja, Pascal sabe que ele está mergulhado na contingência. Muitas respostas sobre a maneira que dar-se-ia esta transmissão poderiam ser dadas, como a corrupção pelo social, ou a própria matéria carregaria, de pai para filho, o pecado; mas cada uma delas ferem a nossa razão. Pois qual é a relação entre o pecado de Adão e qualquer outra pessoa? Desta maneira, Pascal encontra dois problemas. O primeiro diz respeito a relação que há entre o pecado de Adão e qualquer outro ser humano; o segundo, se formula como uma conseqüência do primeiro, pois, se há uma relação entre o pecado de Adão e a minha condição, como este pecado é transmitido. Relação e transmissão são pontos cegos para a nossa razão que seria capaz de formular muitas respostas para o porquê do mal, todavia, a teodicéia de Pascal é simples: o homem é causa do pecado, logo, ele é causa do mal. Este motivo não parece contingente, todavia, a afirmação de Pascal está dentro de um contexto teológico que tem a fé como sustento de suas alegações e, deste forma, a graça auxilia o homem a se ater nas verdades de fé que acredita e mitigar um pouco da contingência. Mas não totalmente. E para mostrar isso Pascal traz um novo cenário. Uma criancinha, “incapaz de vontade”, tem culpa de um pecado que ela tenha participado tão pouco? Um homem, tão distante de Adão, estaria contaminado? Mesmo aqueles nos quais a fé é sustentáculo de suas afirmações sentiria sua razão ferida ao ver a ternura de uma criança condenada por um pecado tão distânte. O pecado, que implica em um ato voluntário, corrompe até a criança que aparentemente não tem vontade. Desta maneira, a doutrina da predestinação fere a razão dos mais piedosos. Mesnard ressalta que a predestinação não se trata somente de um mistério, mas um segredo insondável. Desta maneira, ela não ressalta somente a incapacidade humana de desvendar o mistério, mas o desejo de Deus em ocultar tal decisão.533 Portanto, a contingência apresenta-se em meio as tentativas humanas de compreender aquilo que Deus ocultou e choca a nossa razão. O segredo de Deus quanto à predestinação é o mistério que envolve a 531 532 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 318. Idem, Pensamentos, Laf. 131, Bru. 434, p. 48. 152 espiritualidade cristã dos jansenistas. Mas e se a fé fosse descartada para descrevermos o estado corrompido e pecaminoso do homem? Para Pascal, aqueles que não concebem a fé como sustento para a explicação do mal, a contingência apresenta-se de maneira muito maior na proliferação de doutrinas sobre a origem do mesmo. Ele não relaciona as diferentes doutrinas sobre a origem do mal, mas menciona a grande quantidade de explicações àquilo que chamamos de mal. “É preciso ter uma extraordinária grandeza de alma para se chegar a ele, tanto quanto ao bem.”.534 Alcançar e apreender aquilo que é o mal é tão difícil quanto apreender aquilo que chamamos bem. O que é o mal é sempre uma resposta permeada pela contingência. “Existe uma infinidade deles.”.535 A contingência apresenta-se de maneira muito mais evidente fora da teologia, pois, nela, o fiel poderá recorrer ao cânone das sagradas Escrituras: estas “[...] tem valor de fontes e provas.”.536 Todavia, do ponto de vista da filosofia, a explicação teológica é mais uma dentre muitas. Desta maneira, o que diferencia a explicação teológica de Pascal das várias explicações existentes? Não podemos esquecer que o teólogo francês está escrevendo uma Apologia à Religião Cristã; nos Pensamentos, há formulações de raciocínios que se apresentam de maneira simétrica a outros, dentre esta simetria está a teologia. No fragmento 131, Pascal mostra a simetria das doutrinas quando no começo do fragmento descreve a ação dos dogmáticos e pirrônicos, todavia, dá o salto qualitativo em prol da teologia no final do mesmo fragmento, na tentativa de persuadir o leitor537 que a teologia, mesmo cheia de 533 Cf. Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 611. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 526, Bru. 408, p. 241. 535 Ibid., Laf. 526, Bru. 408, p. 241. Nesta citação, Pascal se refere aos males, todavia, ele está convencido que também há uma grande quantidade de bem nas diferentes doutrinas e filosofias que encontramos no mundo. 536 Jean MESNARD, Essai sur la signification des Écrits, p. 615. 537 Ver Philippe SELIER, Imaginaire et Rhétorique, p. 115 – 135. In: Lane M. HELLER & Ian M. RICHMOND. Pascal – Thématique des Pensées. Paris: J. Vrin, 1998. Neste artigo o autor descreve algumas das formas usadas por Pascal no processo retórico nos Pensées e Provinciales. Vale destacar oito delas: a procura do descontínuo e da fratura, na qual Pascal refuta e destrói previamente as possíveis objeções do adversário; privilegia uma grande quantidade de figuras que os teóricos de seu tempo denunciam como excessiva; imitação dos profetas de Israel, na figura de grandes denúncias, ameaças e profecias; uso das citações como chicotadas, sendo que muitas vezes ela apresenta-se como uma arma; ironia e riso; matematização das imagens e dos aumentos; a disposição, na qual deixava o descrente titubear em seus próprios sistemas filosóficos e de falsas religiões; a memória, preocupado em escrever textos que fiquem impressos na memória do leitor. O “golpe de gênio” (Ibid., p. 115 – 135) da Apologia pascaliana não é a invenção deste dispositivo retórico, mas a adaptação da sua visão de mundo a organização do livro de Jó: nesta obra Pascal vê um personagem errar durante trinta capítulos até mergulhar na incompreensão, “[...] para finalmente escutar, prostrado na poeira e com a mão na boca, a revelação da Transcendência.”. (Ibid., p. 130). Vale mencionar que a retórica também toca a física de Pascal para o comentador Luís Felipe Pondé. “Se para Descartes o cientista é alguém que conhece a verdade da natureza, para Pascal ele é mais alguém que submete os homens às suas verdades (sobre a natureza). Daí Pascal estar tão próximo da retórica.”. (Luiz Felipe PONDÉ, O Homem insuficiente, p. 164). Para Descartes conhecer é compreender a natureza das coisas, ou seja, um conhecimento universal, unívoco, puro, objetivo e capaz de manter sua objetividade em todos os contextos. Pascal, ao contrário, mostra-se um anti-metafísico. Sendo a 534 153 mistérios em sua explicação acerca da origem do mal pela transmissão do pecado, é muito mais clara do que qualquer outra sem mistério. O homem é, para Pascal, muito mais compreensível para si mesmo a partir desta explicação do que sem ela. Não se trata de desvendar o mistério, mas compreender o homem a partir do mistério538, lançando-se no abismo da contingência que, mesmo fazendo a razão sentir-se ferida ao contemplar uma criança sem vontade como culpada, saber-se-ia, pela fé do cristão outorgada pela graça, que a incompreensão vem de um mistério, ou seja, do pecado de Adão. Pascal sabe que a contingência permeia os quatro mistérios que envolvem a doutrina do pecado original, de tal maneira que a contingência apresenta-se como conseqüência da queda. Todavia, este ponto fixo de raiz teológica ou axioma teologal – pecado original – é sustentado pela graça que faz o fiel recorrer aos livros sagrados e acreditar neles. O ponto fixo “[...] só vem com a Revelação [...]”.539 Ele funciona como um axioma ou categoria540 que verdade um conceito que possui sentido com maior desenvoltura dentro do contexto teológico, a verdade destituída da religião deve ser produzida na relação entre a contingência e os parâmetros pragmaticamente construídos. Portanto, o caráter retórico na obra pascaliana é de fato muito forte. Construir formalmente uma teoria é submeter os homens à arbitrariedade da experiência, esta realizada através de parâmetros invariáveis préestabelecidos. Pascal constrói a “natureza” daquilo que quer provar criando verdades provinciais ou locais. Tal processo tem objetivo persuadir os homens da validade da “verdade construída”. 538 “O ato da criação é, de qualquer maneira, no mundo, aquilo que o pecado original é para o homem: mistério inconcebível, entretanto, tal ato é a chave de inteligibilidade para toda uma realidade.”. (Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans les Pensées de Pascal, p. 63). Hélène Michon, assim como nossa pesquisa, concebe que a doutrina do pecado original é entendida como um mistério. Em contrapartida, o mistério torna-se chave de leitura para a condição humana depois da queda. O homem fica mais perto da verdade sobre si mesmo dentro das afirmações teológicas que envolvem o pecado original. Michon chega a comparar o mistério que envolve a criação do mundo por Deus ao pecado original presente no homem: a razão ao perpassar estes mistérios confunde-se, ou seja, revela a contingência no homem – marca da ausência de referencial para fundamentar a origem do mal e do mundo. Cabe ao fiel ater-se à revelação. Ver também Ibid., p. 220. Ela faz uma análise do pecado original como paradoxo. O fragmento que a autora usa como objeto de seu comentário é o 809. (Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 809, Bru. 230, p. 320). Michon sustenta que para Pascal o pecado original é incompreensível se ele existe e se não existe. Se de fato ocorreu um erro nos primórdios, há uma gama de mistérios que envolvem tal fato como já mencionamos, entretanto, se ele não aconteceu, é a própria condição humana no tempo presente que se revela misteriosa. 539 Hélène MICHON, L´ordre du coeur: philosophie, théologie et mystique dans Pensées de Pascal, p. 47 – 48. Mesnard também ressalta que se a doutrina é indemonstrável e se a sua única fonte é a revelação divina, esta última é acompanhada de sinais – profecias, milagres na vinda do Messias – que tem como objetivo garantir sua autenticidade. Estes sinais servem de provas. Portanto, a razão possui um ponto de referência para afirmar a verdade. (cf. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 358). 540 “Não há nada, senão a Revelação, que seja capaz de “explicar” aquilo que, sem este recurso, seria mais inexplicável ainda: a condição humana. A noção de pecado original, por exemplo, conforma-se, neste caso, à posição de categoria, em função da sua capacidade de ordenar o campo caótico da experiência do mal.”. (Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 28). A Revelação é o ponto de referência no qual nos permite apreender a doutrina do pecado original enquanto uma categoria que “explica” a condição humana miserável – corrupção da matéria, doenças, morte, concupiscência. Tal miséria traduz a falha adâmica e permite ao homem reconhecer-se como um ser caído e em meio ao caos. Este caos traz luz à contingência no mundo podendo ser “organizada” ou “justificada” na medida em que o fiel se detém em um ponto fixo – pecado original – que serve de parâmetro para a inteligibilidade do mundo e de sua condição. “Devemos compreender que o dogma do pecado original concede a razão da incompreensibilidade da condição humana.”. (Ibid., p. 45). Denise entende que a tentativa de explicar o que não se pode explicar totalmente mitiga o caos, ou seja, a resposta é redundante: tratar da condição humana através da categoria “pecado original” mostra a incompreensibilidade da 154 determina as condições iniciais para justificar a condição do homem, entretanto, tal perspectiva choca a razão, o que a faz contingente. Desta maneira, a contingência é mitigada pela graça na medida em que esta torna-se sustento para a justificativa da condição humana e do mundo. Dois pólos estão em jogo: no primeiro, os mistérios são contingentes – ferem a razão – mas explicam e justificam a condição do homem – esta imersa na contingência; no segundo, o descrente despreza a fé e a doutrina do pecado original e vive a errância da procura de um ponto fixo para analisar a condição contingente do homem e do mundo. Para Pascal, o libertino que não se detém na explicação do cristianismo entra em um abismo de explicações intermináveis, ao passo que o cristão submete-se à verdade teológica do pecado original. Esta nos ajuda a compreender que o estado contingente do homem – isolado de verdade e falsidade, destituído de natureza, ser cheio de trevas e ignorante – está de acordo com a nossa hipótese: a contingência epistemológica em Pascal é uma conseqüência da queda adâmica. Pascal pode ser visto como um pensador da condição do homem e do mundo na contingência. Ele estabiliza as condições iniciais como um axioma, ou seja, pecado original e todos os mistérios que o envolve, e justifica a condição presente do homem e do mundo. O método de Pascal está manifesto: manter as condições iniciais como um axioma – pecado original – e negociar com a contingência – homem e mundo depois da queda. Sendo a contingência uma conseqüência do pecado, vejamos agora onde ela se manifesta analisando o conceito imaginação em Pascal. condição humana. Esta resposta, apesar de frustrar a razão não oferecendo fundamento nela mesma, revela com maior luminosidade – para o fiel – o estado e o porquê do homem caído. Mesnard também ressalta algumas considerações acerca da relação fé e racionalidade. “A principal idéia que sobressai é que a razão tem seu domínio e seu domínio é limitado. Reconhecer seus limites não é para razão renunciar-se, pois ela é conduzida a isto por suas próprias forças [...] e, aliás, aquilo que a ultrapassa não a contradiz semelhantemente. O mistério é supra-racional; desta maneira, ele comporta uma parte da iluminação pela razão que, em sua submissão, encontra resposta a sua própria busca da verdade.”. (Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 318). A razão reconhece seus limites por suas próprias investidas, mas é a doutrina do pecado original que vem esclarecer a contínua busca no vazio. A cegueira que tem como causa a queda revela que a razão deve ser superada pela fé, mas não aniquilada. O mistério – revelado pelas escrituras – vem iluminar o campo da contingência que a criatura está imersa. Reconhecer isso, para Pascal, é apontar para a veracidade da teologia cristã. Todavia, sabemos que recitar receitas de bolo para um homem faminto não abranda sua fome, assim como a doutrina do pecado original não responde à todas as perguntas. Qual cristão não perguntaria a Ele, aos prantos, o “porquê” de ver seu único filho sendo conduzido a uma câmara de gás pelo exército alemão em pleno século XX? Quem seria capaz de viver a experiência de Jó e não gritar? Acredito que o Jó paciênte não existe, o que temos é um homem que cansou de gritar. 155 CAPÍTULO III Os efeitos da Imaginação “Ela faz acreditar, duvidar, negar a razão.”.541 Depois de termos estabilizado o conceito de contingência no capítulo anterior, analisaremos o conceito imaginação em Blaise Pascal. Para realizarmos tal tarefa teremos o fragmento 44 dos Pensamentos542 como nosso objeto de estudo. Sublinhamos que outros fragmentos também serão analisados, pois Pascal usa do conceito imaginação em outros fragmentos que poderão trazer luz ao nosso objeto de estudo proposto. Como norteadora de nosso capítulo, traçamos a seguinte hipótese: é na imaginação que se manifesta a contingência. A imaginação, que para Pascal é parte constitutiva do instrumento cognitivo humano, ao realizar seu trabalho junto à razão manifesta a contingência, ou seja, ela desloca todo critério último que poderá servir de referência para o discernimento da verdade e da falsidade. Desta maneira, a imaginação causa efeitos que manifestam a contingência: eis a motivação do título deste capítulo. Ao mostrarmos como a imaginação funciona, o leitor verá que seus efeitos são sempre contingentes. Diante desta agenda que pretendemos cumprir, escolhemos dois autores que serão nossos referenciais teóricos, a saber: Gérard Ferreyrolles com sua obra Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal e Gérard Bras e Jean-Pierre Cléro com a obra Pascal – Figures de l`imagination. Ferreyrolles reconhece que em outras obras de comentadores de Pascal sobre política, inclusive a sua com o título Pascal et la raison du politique, os autores fazem uma ligação entre o costume e o conceito de imaginação assim como entre a política e a antropologia de Pascal. Todavia, a obra de Ferreyrolles, que usaremos como referencial teórico para nossa pesquisa, o autor traça como proposta relacionar o costume e a imaginação para que depois fosse sublinhado os efeitos destes dois princípios de erro, ou seja, o costume e a imaginação. Desta maneira, nosso trabalho se apropria das investigações de Ferreyrolles sobre os efeitos específicos da imaginação, algo que o autor faz na segunda parte da obra. Já Bras e Cléro trabalham com a idéia de que a imaginação não é somente uma faculdade ou 541 542 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12. Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 12 – 16. 156 potência enganadora: ela é tão enganadora quanto os sentidos, a memória, a razão e as paixões. Os autores destacam os efeitos que a imaginação causa nas três ordens: carne, espírito e caridade. Assim, sublinham que a imaginação apresenta-se no carrefour de três questões: a antropológica, na qual aponta para a situação do homem no mundo; na dimensão epistemológica, que diz respeitos às condições e possibilidades do homem em ter acesso ao conhecimento; e a ontológica, já que a imaginação impede uma sistematização que possa dar contar de toda realidade, ou seja, Pascal é um anti-metafísico. Ressaltamos que Ferreyrolles, Brás e Clero nos auxiliarão a entender os efeitos da imaginação na epistemologia, pois este é o nosso foco maior. Outro autor que usaremos, entretanto, de maneira mais periférica, é Jean Mesnard. Em sua obra Le Pensées de Pascal o comentador analisa algumas passagens do fragmento 44, nosso objeto de estudo, entretanto, não faz uma análise específica do conceito imaginação. Por este motivo, conscientes do alcance da análise de Mesnard, destacaremos algumas passagens de sua obra para esclarecer nosso objeto no percurso que faremos. Neste percurso veremos que a imaginação toca em alguns temas que manifestam a contingência diretamente, como a eqüipolência entre verdade e falsidade. Desta maneira, a imaginação poderá apresentar-se como uma potência que impede o discernimento, entretanto, veremos que ela é engenheira de conceitos, realidades e natureza, coagindo, de maneira especial, os sentidos, gerando desconfiança e uma possível passividade do homem em relação aos efeitos da mesma. Todavia, veremos também que o homem não é totalmente passivo aos solavancos da imaginação, pois, os versados em imaginação fazem bom uso desta potência intrínseca à razão humana. Tal ação destes versados tem os juízes como vítimas, estes porém, são influenciados pelos efeitos da imaginação, de modo que Pascal desmistificará a idéia de que um juiz é absolutamente impassivo em seu julgamento. Ao fazermos uma análise dos juízes ao julgar destacaremos detalhadamente o funcionamento da imaginação e construiremos uma grade conceitual que permitirá entender como a imaginação funciona, ou seja, faremos uma análise das filigranas daquilo que chamaremos de máquina imaginativa. Em seguida, usaremos da grade conceitual que construímos para entender os efeitos da imaginação nos advogados, assim, tentaremos verificar se a mesma ausência de impassividade que Pascal detecta nos juízes ao julgar também é encontrada nos advogados na defesa de uma determinada causa: veremos se os advogados e juízes julgam aquilo que é essencial pelo inessencial, ou seja, pelas aparências. Tentaremos entender a importância das aparências para a construção de uma função ou cargo na sociedade e como elas favorecem os magistrados, advogados, médicos e doutores, de modo que as respectivas funções destes personagens estão ligadas as suas aparências, todavia, a aparência, tão necessárias aos profissionais acima não 157 são necessárias aos reis. Veremos que ele tem a força efetiva, mas será a imaginação que irá inserir a força no mundo social sem constranger demasiadamente ao povo, instituindo um reino de paz tão querido pelo rei. Diante deste itinerário, observaremos que a contingência permeará os efeitos da imaginação na medida que os saltos desta potência enganosa provocarão efeitos que não poderão ser detectados previamente com toda certeza. A imaginação é a garantia de que seus efeitos contingentes são improváveis antecipadamente, o que ferirá o discernimento da razão. Mas antes de iniciarmos este extenso trabalho, vale destacar alguns aspectos do conceito imaginação no sistema cartesiano, o que nos permitiria averiguar as possíveis diferenças e confluências da concepção do conceito nos dois autores. Analisaremos a sexta parte da obra Meditações543 de Descartes e teremos como referencial teórico a obra Descartes: a metafísica da modernidade do filósofo Franklin Leopoldo e Silva. 1 – O conceito imaginação em Descartes. Descartes inicia a sexta meditação afirmando que só resta examinar uma única coisa em seu edifício filosófico, a saber: se as coisas materiais existem ou não objetivamente. Para tal verificação, o raciocínio conduzido por um método bem elaborado poderia proporcionar a obtenção de idéias claras e distintas. Para obtê-las, a geometria seria o veículo norteador na elaboração do método.544 Assim, a possibilidade das idéias claras e distintas no nível intelectual fá-lo conceder a probabilidade que estas idéias tenham algum valor objetivo. “Juntando-se a possibilidade, dada pela essência, essa probabilidade vem reforçar a crença na existência do mundo exterior.”.545 Tal transposição entre as idéias claras e distintas de um eu pensante e a existência do mundo do corpos objetivamente dar-se-ia por outro princípio: Deus é bom e não me deixa enganar, logo, as idéias inteligíveis clara e distintamente têm a sua correspondência objetiva garantida por Deus, visto que qualquer dúvida sobre a bondade de Deus só poderia ser realizada artificialmente pela ficção de um Gênio maligno ou de um Deus enganador. Mas, no decorrer da obra, antes de conceber este raciocínio como certo e indubitável – garantia da objetividade do mundo –, Descartes propõe analisar a faculdade da imaginação. Tal proposta visa verificar se o mundo dos corpos poderá ser concebido objetivamente ao fazermos uma análise de como a imaginação procede, já que tal faculdade tem uma ligação tênue com os corpos. Vejamos a análise cartesiana do conceito imaginação. 543 René DESCARTES, Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Cf. Ibid., p. 129. 545 Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 72 – 73. 544 158 Descartes afirma: “[...] a faculdade de imaginar, que existe em mim e da qual vejo por experiência que me sirvo quando me aplico à consideração das coisas materiais, é capaz de me persuadir da existência delas [...].”.546 Cabe a nós seguir os passos do filósofo neste trabalho para verificarmos o que é a imaginação e como ela funciona no sistema cartesiano. Assim, indagamos: o que é a imaginação para Descartes? Para ele a imaginação é “[...] uma aplicação da faculdade que conhece ao corpo que lhe é intimamente presente e, portanto, que existe.”.547 Verificamos que a imaginação é uma faculdade do espírito voltada aos corpos. “Isso encoraja a hipótese de que a imaginação trabalha com algo mais do que o puro pensamento, embora seja um modo de pensamento.”.548 Assim, a faculdade da imaginação obtém alguma intelecção no seu trabalho, pois ela também é uma faculdade ligada ao espírito. Desta maneira, o cumprimento da proposta cartesiana de verificar a eficácia da imaginação na demonstração e prova da existência do mundo corpóreo objetivamente é antecedida pela distinção pontual entre a imaginação e a pura intelecção ou concepção pura549. Vejamos abaixo as considerações de Descartes acerca desta distinção. Quando Descartes, absorto em suas especulações, imagina um triângulo, o entendimento o concebe como uma figura composta e determinada por três linhas, todavia, pela força da imaginação a imagem de tal figura se apresenta para a intelecção. Mas quando pensa um quiliógono, figura de mil lados, ou um miriágono, figura de dez mil lados, ou qualquer outra figura de muitos lados, a imaginação não consegue imaginar tais figuras, ou seja, vê-las com os olhos do espírito. E, desta maneira, ao conceber uma destas figuras, a imaginação apresenta uma representação confusa550 e também “[...] ela não serve, de maneira alguma, para descobrir as propriedades que estabelecem as diferenças entre o quiliógono e os demais polígonos.”.551 A representação da imaginação de uma figura que apresente um número maior de lados não é fiel à definição realizada pela pura intelecção: a imaginação apresenta uma imagem de algo que não existe. Assim, a imaginação “[...] me faz representar coisas na ausência delas.”.552 Portanto, desde já conhecemos três qualidades da imaginação: ela é uma aplicação que se volta para os corpos; faz ver de maneira confusa alguns objetos; e não serve para estabelecer diferenças, esta sendo uma característica da intelecção pura. A intelecção, ao contrário, não precisa da imaginação para definir os polígonos, pois 546 René DESCARTES, Meditações, p. 129. Ibid., p. 129 – 130. 548 Franklin Leopoldo e SILVA. Descartes: a metafísica da modernidade, p. 72. 549 René DESCARTES, Meditações, p. 130. 550 Cf. Ibid., p. 130. 551 Ibid., p. 130. 552 Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 72. 547 159 independente dos lados que a figura possui, ela poderá fazer este trabalho sem a necessidade de traçar nenhuma relação com os corpos. Eis as diferenças destacadas por Descartes entre a imaginação e a intelecção pura. A “[...] virtude de imaginar [...]”553 dirá Descartes, difere da intelecção pura na medida que se apresenta como dependente dos corpos para realizar seu trabalho, ao passo que a intelecção pura não depende dos corpos, mas possui certa autonomia garantida pelo método geométrico com seus atributos de clareza e distinção. Além disso, a imaginação “[...] não é de modo algum necessária a minha natureza, ou a minha essência, isto é, à essência de meu espírito [...]”.554 Ou seja, o espírito não apresentaria nenhuma transformação que comprometesse a sua essência não tivesse a faculdade imaginativa: ela não é necessária, é contingente. Todavia, está presente no eu pensante cartesiano, portanto, cabe agora destacar as filigranas do seu funcionamento. E concebo facilmente que, se algum corpo existe ao qual meu espírito esteja conjugado e unido de tal maneira que ele possa aplicar-se a considerá-lo quando lhe aprouver, pode acontecer que por este meio ele imagine as coisas corpóreas: de sorte que esta maneira de pensar difere somente da pura intelecção no fato que o espírito, concebendo, volta-se de alguma forma para si mesmo e considera algumas das idéias que ele tem em si; mas, imaginando, ele se volta para o corpo e considera nele algo de conforme à idéia que formou de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos. Concebo, digo, facilmente que a imaginação pode realizar-se dessa maneira, se é verdade que há corpos [...].555 O espírito quando se relaciona com os corpos fá-lo-ia pela via da imaginação, maneira de pensar diferente da pura intelecção, visto que esta ao conceber fá-lo voltando-se a si mesma e não aos corpos, todavia, a imaginação ao voltar para os corpos e associar os corpos à imagem que fez deles realiza este trabalho pela mediação dos sentidos: é desta maneira que Descartes irá pressupor a provável existência dos corpos através da descrição do funcionamento da imaginação. Se a imaginação se volta para os corpos, portanto, os corpos existem objetivamente, pensará Descartes. Assim, a associação de uma imagem – imperfeita muitas vezes, como é o caso do quiliógono – com o corpo correspondente seria uma prova da existência das coisas, independente daquilo que a imaginação representa, pois Descartes 553 René DESCARTES, Meditações, p. 130. Ibid., p. 130. 555 Ibid., p. 131. 554 160 somente tem o objetivo de formular um caminho para provar a existência objetiva dos corpos pela via da imaginação. Todavia, pondera em aprovar tal possibilidade como efetivamente possível: a imaginação tem como mediadora a sensibilidade e, para que a afirmação da existência objetiva dos corpos seja verdadeiramente clara e distinta, fazer-se-ia necessário uma análise da capacidade humana de sentir o possível mundo existente fora de seu intelecto. Como a imaginação exerce seu trabalho voltando-se para os corpos e, sabendo que as informações deste último é concedida pelos sentidos, “[...] vem a propósito examinar ao mesmo tempo o que é sentir, e ver se, das idéias que recebo em meu espírito por este modo de pensar, que chamo sentir [...]”556, é prova da existência das coisas corpóreas objetivamente. Assim, Descartes retoma alguns argumentos favoráveis para a prova da existência das coisas objetivamente, independente do pensamento, mas logo depois mostra as flutuações dos sentidos que, conseqüentemente, inviabilizariam a provável existência do mundo objetivo por meio da imaginação. Vejamos, em um primeiro momento, a retomada cartesiana favorável à existência do mundo sensível. 1º - Há idéias que se apresentam ao pensamento sem que houvesse consentimento da minha vontade e, ao contrário disso, acontece que muitas vezes não podemos sentir a presença de alguns objetos se o mesmo não está presente.557 2º - As idéias adquiridas pelos sentidos parecem ser muito mais vivas do que as que se encontram na memória.558 3º - Acredito não haver nenhuma idéia em meu espírito que não passe antes pelos sentidos.559 4º - Pareceria ser evidente que o corpo que chamamos meu me pertence, que não posso me separar dele, que sinto por ele os afetos e não por outro corpo que acredito estar separado dele.560 5º - Que tais sentimentos estimula nossa vontade, pois a emoção do estômago, que chamo fome, me dá vontade de comer e a secura da garganta dá sede; também o meu juízo é 556 René DESCARTES, Meditações, p. 131. Cf. Ibid., p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de coerção. 558 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de vivacidade. 559 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de prioridade. 560 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de corpo próprio. 557 161 afetado por estes objetos, de modo que ele se formulava sem que pudesse considerá-lo atentamente.561 É esta a regressão562 que Descartes realiza para tentar mostrar que, da mesma forma pela qual os possíveis corpos afetam nossa sensibilidade e, por este motivo, me levariam a crer que existem causas objetivas das minhas representações independente do eu pensante, tais afetos não são garantias claras e distintas da existência destes corpos: “E, quanto às razões que me haviam anteriormente persuadido da verdade das coisas sensíveis, não tinha muita dificuldade em rejeitá-las.”.563 Constata-se que apesar da suposição da existência das coisas sensíveis que afetam meus sentidos e que são representadas pela imaginação, Descartes inviabiliza que os cinco modos acima apresentados provariam a existência do mundo sensível, pois uma faculdade desconhecida também poderia causar efeitos em mim sem que ela necessariamente exista como é o caso de pessoas que tinham seus braços e pernas dilacerados e, mesmo assim, continuavam a sentir dores em seus membros amputados. Assim, a substância pensante poderá ser persuadida por um afeto que o objeto causante possui existência enquanto substância extensa sem que o mesmo a tenha efetivamente. Portanto, Descartes sublinha algumas distinções depois das digressões acima: há diferença entre a substância pensante e a substância extensa – se é que ela existe –, de modo que a substância pensante poderia existir sem o corpo; a faculdade da imaginação volta-se para os corpos, ao contrário da intelecção pura que volta-se para si mesma; a faculdade imaginativa e de sentir – [...] este modo de pensar [...]”564–, apesar de fazerem parte do espírito, ou seja, sendo modos pelo qual o pensamento se expressa, são distintos da intelecção pura, pois nada muda o espírito caso a imaginação ou os sentidos venham a faltar, ou falhar. Portanto, percebemos que a imaginação é um modo de pensar que Descartes concebe ser distinto da intelecção pura: a imaginação não inviabilizaria o conhecimento na medida que este é analisado separadamente pela intelecção pura capaz de agir sem sofrer os afetos das falácias criativas e enganadoras que a imaginação constrói como forma de representar um objeto apreendido pela sensibilidade. Diante desta breve exposição do conceito imaginação em Descartes, vejamos como Blaise Pascal trabalha tal conceito em seu sistema. 561 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132 –133. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de interação corpo-mente . 562 Descarte já havia tratado destas oscilações dos sentidos no Discurso do método. 563 René DESCARTES, Meditações, p. 133. 564 Ibid., p. 131. 162 2 – Imaginação e contingência. Para que possamos verificar o funcionamento da imaginação na epistemologia pascaliana teremos que em um primeiro momento esclarecer quais são as vias pelas quais o homem recebe as opiniões. Pascal cataloga em seu texto De l`Art de Persuader duas vias: Ninguém ignora que há duas portas pelas quais às opiniões são recebidas na alma, que são suas duas principais potências: o entendimento e a vontade. A mais natural é a do entendimento, pois jamais deveríamos consentir senão nas verdades demonstradas; mas a mais comum, embora seja contra a natureza, é aquela da vontade; porque todos os homens que existem são quase sempre levados a crer, não pela prova, mas pela satisfação.565 Entendimento e vontade são estas duas portas ou “potências”. No século XVII o conceito potência significa “[...] a capacidade de fazer, de realizar e de produzir efeitos [...]”566, todavia, este efeito não é determinístico, ou seja, a realização de um fim determinaria desde a origem todo efeito causado – como a causa final em Aristóteles – , mas é um movimento, um impulso, uma força em um dado momento. Tal movimento manifesta-se no entendimento e na vontade. A primeira potência é mais natural, pois é na 2ª ordem, do espírito, onde o entendimento manifesta sua força. Pascal descreve os procedimentos ou efeitos desta ordem: definindo os termos ou os nomes através de definições claras; propondo axiomas ou princípios para provar; e substituindo mentalmente nas demonstrações as definições no lugar dos definidos.567 Esta é a lógica geométrica naquilo que diz respeito ao entendimento, visto que não poderíamos consentir nada que não passe por esta lógica, o que seria contrário à natureza da própria ordem, ou seja, tirânico.568 A segunda potência, ou seja, a vontade, é contra a natureza e mais comum. Contra a natureza porque pertence a 3ª ordem, aquela do coração569, tocada pela graça e na qual o raciocínio não tem a supremacia. Impor 565 Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination. Paris: PUF, 1994, p. 10. 567 Cf. Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 356. 568 “A tirania consiste no desejo de domínio universal e fora da sua ordem.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 58, Bru. 379, p. 20). O querer dominar tudo é, por exemplo, fazer da vontade, uma instância de 3ª ordem, dominadora do entendimento, instância de 2ª ordem. 569 “Portanto, falo somente das verdades a nosso alcance; e é sobre elas que eu digo que o espírito e o coração são como portas por onde elas são recebidas dentro da alma, mas muito poucas entram pelo espírito, enquanto que são introduzidas em massa pelos caprichos temerários da vontade, sem o aconselhamento do raciocínio.”. (Idem, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355). Enfatizo a mudança conceitual da vontade 566 163 uma verdade à razão pela ordem do coração é ir contra a natureza da ordem do espírito. Porém, isto é mais comum afirma Pascal, já que o homem está mais inclinado a consentir pela vontade do que pelo espírito. O motivo pelo qual dar-se-ia tal acontecimento é a corrupção da ordem da vontade pelo pecado preenchendo-a com a concupiscência, desta maneira, “[...] acreditamos tão somente naquilo que nos agrada”570, dirá Pascal. Portanto, a arte de persuadir tem como alvo “[...] tanto os homens que se governam pelos caprichos quanto pela razão!”.571 Entretanto, algo distinto ocorrerá na relação entre entendimento e vontade. Se os procedimentos, ou efeitos do entendimento podem ser descritos por Pascal – termos, axiomas e demonstrações –, quanto à vontade tal descrição tornar-se-ia muito mais difícil, talvez impossível: “Mas a maneira de agradar é incomparavelmente mais difícil, mais sutil, mais útil e mais admirável; assim, se não me refiro a ela, é porque não sou capaz disto; e sinto-me de tal modo em desproporção que creio ser uma coisa absolutamente impossível.”572. Pascal ver-se-ia incapaz de catalogar todas as minúcias que envolvem a vontade de cada homem. O conceito “desproporção” utilizado aqui não é por acaso: ele marca a infinita distância entre o conhecimento humano e as distintas disposições de cada homem.573 A instabilidade do homem é o argumento maior de Pascal.574 A criatura, que perdeu sua natureza pela queda de Adão, tem como motor que a faz consentir o amor instável por si mesma, o deleitar-se em si mesma, descartando sempre seu objeto de amor primordial: Deus. para o coração, já que tal mudança confirma minha afirmação acima na qual colocamos a vontade como um componente da 3ª ordem. 570 Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355. 571 Ibid., p. 356. Vale ressaltar que a persuasão é capaz de fazer o homem consentir às verdades produzidas e construídas pelo método que Pascal desenvolve no De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, todavia, tal procedimento não é válido para as chamadas verdades divinas, de modo que a Arte de Persuadir não poderá fazer o sujeito obter a fé, está é uma dádiva de Deus concedida a alguns eleitos. “Não falo aqui das verdades divinas, que eu não faria cair sob a arte de persuadir, pois elas estão infinitamente acima da natureza: somente Deus pode instalá-las na alma e da maneira que lhe agradar.”. (Ibid., p. 355). 572 Ibid., p. 356. 573 “A razão desta extrema dificuldade advém do fato de que os princípios do prazer não são firmes e estáveis. Eles são diversos para todos os homens e variáveis em cada um em particular, com uma tal diversidade que não há, de modo algum, homem que seja mais diferente de outro do que de si mesmo em épocas diferentes. Um homem tem prazeres diferentes dos de uma mulher; um rico e um pobre possuem diferentes (prazeres); um príncipe, um homem de guerra, um comerciante, um burguês, um camponês, os velhos, os jovens, os santos, os doentes, todos variam; os menores acidentes os modificam.”. (Ibid., p. 356). 574 “[…] seria necessário conhecer tudo aquilo que se passa no mais íntimo do homem e que o próprio homem quase nunca conhece.”. (Ibid., p. 356). 164 “O conceito de concupiscência pode ser entendido como exclusão de Deus.”575. O princípio de prazer reina diferentemente em todos os homens, seres que depois da queda foram corrompidos atavicamente. Portanto, a inviabilidade de catalogar todos os acidentes que envolvem o homem é a manifestação da medida infinita de todos os males que habitam o coração humano, estes porém, agindo distintamente em cada homem e em cada contexto que o mesmo está imerso: desde o rei até o comerciante, do velho ao jovem, do rico ao pobre, todos apresentam distintos e inumeráveis princípios de prazer. Diante deste breve sumário sublinhando as duas potências quem funcionam como porta de entrada de toda opinião, vemos que a 2º e 3ª ordem interagem dentro do processo cognitivo, sendo que a corrupção da 3ª impulsiona o homem a consentir com mais facilidade a um saber que lhe cause maior prazer e “satisfação”576 do que aquele que fornece as provas. Diante disso, sabemos que há uma relação entre as ordens dentro do processo cognitivo e a imaginação funcionaria como um vetor que permeia as 3 ordens. O fragmento 44 dos Pensées nos revela este papel da imaginação na 1ª ordem, quando o corpo é afetado pelos devaneios da imaginação – empalidecendo e fazendo suar o filósofo na prancha –; na 2ª ordem, quando a imaginação dilacera os critérios últimos que permitiriam um conhecimento claro e distinto – a imaginação enquanto potência enganosa confunde o discernimento tanto da verdade quanto da falsidade –; na 3ª ordem, visto que o interesse egóico o homem por si mesmo é uma maneira de fazer com que ele esteja com os olhos fechados para sua verdadeira vocação: o homem é um ser para Deus. Assim, veremos que a imaginação causa efeitos nas três ordens.577 Tentaremos trazer luz a estes efeitos e verificar a relação do mesmo com o conceito de contingência exposto no capítulo anterior. 2.1 – Eqüipolência entre verdade e falsidade. Logo no início do fragmento encontramos uma característica peculiar da imaginação que tem uma relação direta com a contingência. A imaginação, agindo no sujeito do conhecimento – 2ª ordem – , é responsável pelo isolamento do mesmo tanto da verdade quanto da falsidade: 575 Luiz Felipe PONDÉ, Conhecimento na Desgraça: ensaio sobre epistemologia pascaliana, p. 24. Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355. 577 Ver Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal. Paris: Honoré Champion Éditeur, 1995, p. 141; ver também Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 36. Os dois autores que nos acompanharão nesta análise de maneira mais direta sustentam que a imaginação exerce um papel dentro das três ordens. 576 165 Imaginação. É essa parte dominante do homem, essa mestra do erro e da falsidade, e ainda mais trapaceira porque nem sempre o é; pois ela seria regra infalível de verdade se fosse regra infalível da mentira. Ainda mais – Mas, sendo o mais das vezes falsa, ela não mostra nenhum sinal dessa sua qualidade, marcando com as mesmas características o verdadeiro e o falso.578 A imaginação domina o homem na medida que o submete aos seus efeitos. Tal domínio e submissão Pascal sublinha um pouco mais à frente no mesmo fragmento: “Jamais a razão (sobrepuja) totalmente a imaginação, (mas o) contrário é o que costuma acontecer.”.579 Na guerra entre a imaginação e razão a primeira teria vantagem. O domínio da imaginação diz respeito à interferência que a mesma causa dentro das operações da razão. Se a razão tenta ordenar, separar, juntar, regularizar, discernir e medir, a imaginação em sua radical companhia com a razão produz efeitos completamente distintos e diafônicos: quando a razão ordena, a imaginação cria infinitas possibilidades de ordem580; quando a razão separa, a imaginação separa ainda mais até o infinito; quando a razão regulariza, a imaginação desestabiliza; quando a razão faz o discernimento, a imaginação confunde; quando a razão mede, a imaginação faz perder a conta. Eis o domínio que a imaginação exerce sobre a razão. A tentativa humana de aliar a razão e a imaginação é vista com bons olhos por Pascal581, algo que não poderia ser diferente quando guerreamos com uma adversária mais forte e que sempre mina nossas forças, “[...] pois na guerra ela leva ampla vantagem ainda mais completa.”.582 Assim, é melhor aliar a razão e a imaginação, visto que se houver uma guerra a imaginação prevalecerá. Mas como dar-se-ia este processo de paz, ou seja, como aliar razão e imaginação? A paz entre as duas dar-se-ia por um efeito que se torna uma constante na inteiração das mesmas: a imaginação imita a razão.583 Pascal rompe com as fronteiras entre estas duas potências, contrariando Descartes, que defende uma distinção pontual entre a imaginação e a intelecção pura, como vimos acima. A razão não é mais o critério do ser para Pascal, assim, nossa experiência de seres mortais não poderá conceder à medida absoluta da 578 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12. Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14. 580 Ver Ibid., Laf. 696, Bru. 22, p. 285. Há uma diversidade de maneiras de organizar e reorganizar os pensamentos em um discurso e a partir disso causar diferentes efeitos, ou seja, os mesmo pensamentos ordenados diferentemente podem produzir um outro discurso. Também as palavras organizadas de formas diferentes produzem novos pensamentos. Esta infinidade de possibilidades é um efeito da imaginação. 581 “O homem tem razão em aliar essas duas potências [...]”. (Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14). 582 Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14. 583 Cf. Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 193. 579 166 verdade ou da falsidade: a contingência, que tem como causa o pecado adâmico capaz de lançar todo conhecimento humano nas trevas, é um efeito da imaginação. Talvez uma suficiência do erro? Não para Pascal. Se as trevas, o erro, a mentira e a falsidade tivessem a primazia, esta seria a regra584, pois a imaginação seria a regra que nos orienta em direção à verdade se seus saltos somente nos conduzissem à falsidade. “Aí está um dos princípios de erro, mas não é o único.”.585 Quantos são? Em um salto da imaginação veremos uma infinidades deles. Não há suficiência nem do erro, nem da verdade, ou seja, a imaginação produz contingência. Ela é “[...] uma faculdade indiferente ao verdadeiro e ao falso.”.586 Verdade e falsidade tornam-se conceitos trespassados de maneira que tal composição não permitirá à razão discernir, limitar e separar587 tais conceitos. Diante do efeito da imaginação quanto ao aspecto indiscernível que a mesma causa aos conceitos de verdade e falsidade, assim como a capacidade de dominar e submeter a razão, vejamos a análise de Ferreyrolles. Em primeiro lugar, a imaginação torna indiscerníveis o verdadeiro e o falso. É, de fato, tão fácil imaginar o erro quanto a verdade, e nada nas imagens que nós nos formamos vem discriminar a objetividade de seu conteúdo. [...] Inversamente, imaginar sobre o girar da terra o Santo Ofício decidindo contra aqueles que consentem que ela gire, poderia ser uma representação da realidade. A armadilha da imaginação é que ela não engana sempre e não permite saber quando ela engana.588 A imaginação desqualifica todo juízo que postula pretensões de classificação entre verdadeiro e falso. É na eqüipolência do juízo que ela apresenta seu aspecto contingente. No seu funcionamento, tanto o erro quanto a verdade são imaginados sem nenhum discernimento, desta maneira, a dificuldade do ser pensante é justamente discriminar seu conteúdo, ou seja, a 584 “Quando não se sabe a verdade de uma coisa, é bom que haja um erro comum que fixe o espírito dos homens [...].”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 744, Bru. 18, p. 298). O ponto fixo de erro é sempre deslocado por um efeito da imaginação. Ela aumenta o número de erros ao infinito e depois imprime também a marca da verdade em cada erro. “Nem contradição é marca da falsidade, nem a não contradição é marca da verdade.”. (Ibid., Laf. 177, Bru. 384, p. 72). Ver também Ibid., Laf. 745, Bru. 18 bis, p. 298. 585 Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14. 586 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 187. 587 “Na medida em que se tem mais espírito, acha-se que há mais homens originais. As pessoas comuns não encontram diferença entre os homens.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 510, Bru. 7, p. 234; grifo meu). A razão tem como característica sua potência de discernir aquilo que procura, limitar aquilo que encontrou e separar aquilo que deseja daquilo que não deseja. Desta maneira, Pascal sublinha que os homens de espírito encontram diferenças entre os homens, algo ausente aos homens comuns. 588 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 162 – 163 . 167 busca da objetividade589. Assim, podemos imaginar algo que nos parece totalmente absurdo como leões pedindo informações em um banco, mas também podemos utilizar a mesma imaginação para imaginar coisas não tão absurdas como a terra girando em torno do sol. O Santo Ofício não foi indiferente a este enunciado contrariando os adeptos à esta afirmação, visto que o copernicanismo era capaz de fazer as pessoas consentir. A atuação da imaginação ganha seus contornos persuasivos. Ela traduz aquilo que Pascal ordinariamente qualifica como razoável, ou seja, ela constrói condições favoráveis para o consentimento. Mas porque as pessoas têm maior dificuldade de consentir ao exemplo do leão e não ao exemplo heliocêntrico? A chave da abóbada para responder tal pergunta seria o costume: repetição contínua de uma ação, comportamento ou pensamento que faz a maior parte se conformar.590 O costume cria e muda nossa forma de percepção do mundo591 e funciona como um modulador dos nossos juízos. Pascal nos dá um exemplo: “De onde vem que se acredita em tantos mentirosos que dizem ter visto milagres e que não se acredita em nenhum daqueles que dizem ter segredos para tornar o homem imortal e para rejuvenescer?”.592 As pessoas acreditam em mentirosos que se gabam de ter visto milagres, mas não acreditam em homens que se gabam por ter uma fórmula para o rejuvenescimento ou para a perpétua imortalidade. A indagação de Pascal está imersa à dinâmica apologética. Ele considera que se há alguns impostores quanto aos milagres e mesmo assim tantas pessoas que os seguem é possível que dentre os muitos milagres que dizem acontecer dar-se-iam “[...] alguns verdadeiros [...]”.593. As pessoas consentem com maior facilidade à afirmação do acontecimento de um milagre do que a promessa da imortalidade, assim como é muito mais fácil acreditar no movimento heliocêntrico possível, temível pela Igreja, do que leões pedindo informações em um banco. Desta maneira, em toda crença verificamos um certo grau de razoabilidade: as pessoas podem comprar remédios acreditando na cura de uma doença, mas ninguém comprará uma fórmula que lhe traga a imortalidade. “Da mesma forma, se um homem se gabasse de impedir que se morresse, ninguém acreditaria nele porque não há nenhum exemplo disso.”.594 O costume depende da repetição contínua de uma determinado evento para que se possa consentir. Remédios curando pessoas é um fato que não cessa de acontecer na história de maneira mais evidente, todavia, em um contexto cristão é muito mais fácil consentir a um milagre do que o sucesso de uma fórmula da imortalidade. O caráter circunstancial do costume é um fator 589 Ver nota 493 do capítulo anterior: sobre a definição clássica de objetividade. Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 17. 591 Cf. Ibid., p. 28. 592 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 734, Bru. 817, p. 295. 593 Ibid., Laf. 734, Bru. 817, p. 295. 594 Ibid., Laf. 734, Bru. 817, p. 296. 590 168 substancial para o consentimento. A eqüipolência entre verdade e falsidade não impede de que homem tome um partido, pois ele poderá decidir pelo costume, como é o caso das curas pela ingestão de remédios que faz as pessoas acreditar na eficácia dos medicamentos. Todavia, tal consentimento não está desprovido da potência imaginativa. Portanto, vejamos como ela atua. Diante de nossa descrição da função do costume podemos verificar como é a relação entre costume e imaginação: “Na classificação dos grandes princípios de erro que governam o homem, Pascal coloca a imaginação entre o costume e o interesse.”.595 O costume, com suas repetições contínuas que fazem consentir, e o interesse, com seu amor próprio e aspirações próprias, interagem através da imaginação. Para elucidar o efeito da relação entre costume e imaginação utilizaremos dois dos exemplos acima. No primeiro exemplo: o leão pedindo informações em um banco. Temos fatores que não colaboram para o consentimento das pessoas. Primeiro, quanto ao costume, ninguém nunca viu um leão fazer isso; segundo, quanto ao interesse, ao consentir com este pensamento imaginativo a pessoa seria tachada de louca. Pesando os prós e os contras, há uma motivação maior para não consentir. No segundo exemplo: quanto ao movimento heliocêntrico. Quanto ao costume, não termos nenhum motivo para consentir, visto que a nossa experiência comum nos revela o contrário, é o sol que se movimenta. Quanto ao interesse, duas correntes se movem: o interesse da Igreja para não ferir afirmações bíblicas como: “Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece.”.596 “Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor deu os amoreus na mão dos filhos de Israel, e disse aos olhos dos israelitas: Sol, detém-te em Gibeom, e tu lua, no vale de Ajalom.”.597 E o interesse de Galileu598: dar crédito a teoria heliocêntrica copernicana. Portanto, Galileu leva desvantagem, pois o costume das pessoas desqualifica o sistema copernicano. Em contrapartida, a Igreja tem o costume e a 595 Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 17. Ecles 1,4, Português. In: BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. 597 Jos 10, 12, Português. In: BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. 598 “Galileu substitui uma interpretação natural por uma interpretação muito diferente e, até aquela data (1630), pelo menos parcialmente natural. Como procede ele? Como consegue introduzir asserções absurdas e contra idutivas – tal como a asserção de que a terra se move – conseguindo que mereça consideração ponderada e atenta? De antemão vale dizer que argumentos não bastam – interessante e importantíssima limitação do racionalismo – e, com efeito, os pronunciamentos de Galileu só têm a aparência de argumentos. Em verdade, Galileu recorre à propaganda. Usa artifícios psicológicos, além das eventuais razões que tenha a oferecer. Esses artifícios alcançam êxito: conduzem-no a vitória.”. (Paul FEYERABEND, Contra o método. 3ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alvez. 1989, p. 121). Feyerabend chega a afirmar que a ignorância da ótica de Kepler foi uma benção (cf. Ibid., p. 316) para que as experiências de Galileu não imperassem. 596 169 bíblia a seu favor. Mas o que ele faz: “Galileu identifica as interpretações naturais que se mostram inconsistentes com a doutrina de Copérnico e as substitui por outras.”.599 Galileu desqualifica a interpretação natural dos sentidos – costume – e constrói uma nova concepção de experiência em física recorrendo à propaganda ao apresentar seu telescópio a um grupo de nobres apontando-o para as montanhas, ou seja, para objetos que as pessoas estavam familiarizadas, logo, se o telescópio é capaz de fazer ver com clareza a paisagem montanhosa, pensam os nobres, o instrumento também facilitará para ver os fenômenos celestes; recorre também à teoria da anamnese platônica, na tentativa de explicar a não percepção do movimento da terra e a experiências imaginativas como a do mastro de um navio em movimento. Nesta porém, o início da fala de Galileu no personagem Salviati é sugestivo “[...] imagine-se em um navio, com os olhos fixos em um ponto da verga da embarcação.”.600 O olho não percebe o movimento do mastro que se move com o navio se o observador estiver dentro do mesmo e com os olhos fixos na ponta do mastro. A nova concepção de experiência é capaz de gerar novos costumes e, como afirma Ferreyrolles em seus estudos sobre o mesmo na obra de Pascal, o costume cria e muda nossa forma de percepção do mundo. A vitória de Galileu deve-se a uma mudança do costume por uma criação da imaginação. Mudando o costume o cientista italiano vira a mesa e coloca seu interesse em vantagem. Os próprios adversários de Galileu tentam denigrir a maneira pela qual Galileu sustenta a veracidade do sistema copernicano acusando de falsário. “Lançam obscuridade sobre o fato de que a experiência em que Galileu deseja fundamentar a concepção de Copérnico nada mais é que o resultado de sua fértil imaginação, ou seja, que essa experiência foi inventada.”.601 Todavia, a imaginação sobrepuja a razão e em seu lugar, entre o interesse e o costume, produz certa razoabilidade fazendo as pessoas consentir. E desta maneira que ela faz suas presas: diante da posição da Igreja e de Galileu, a imaginação faz seu trabalho, mergulhando o saber na contingência. Galileu, assim como Pascal, é alguém que faz bom uso da imaginação para persuadir. Poderíamos dizer, que Galileu e Pascal sabem usar dos efeitos que a imaginação oferece para persuadir seus adversários. Além da capacidade de persuasão, um outro efeito da imaginação é ressaltado pelo comentador Jean Mesnard: 599 Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 101. Galilleu GALILEI, De Motu apud Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 123. 601 Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 121. 600 170 Podemos dizer inicialmente que a imaginação é a faculdade do imaginário, oposta à faculdade do real que é a razão; e, mais rigorosamente, que a imaginação procura a opinião do verdadeiro, e a opinião da verdade efetiva. [...] Porém, e este é o nó da análise, o movimento da imaginação é indiscernível daquele da razão. [...] Ela interfere a razão, ela comanda suas operações. [...] A imaginação deveria ser a referência permitindo efetuar a separação entre o real e o imaginário, mas esta referência se esconde sempre. A conseqüência é que só há opiniões no mundo. Das opiniões entre as quais algumas são verdadeiras, mas sem que seja possível de as distinguir das outras.602 As malhas da razão objetivam àquilo que é real, já a imaginação é a potência do imagináriol. Assim, o quiásmo se apresenta: como diferenciar razão e imaginação? Onde começa a imaginação e termina a razão e vice-versa? Não se trata de dizer o que é a razão e o que é a imaginação. Vale ressaltar a afirmação de Bras e Cléro: “Uma potência é sempre tomada dentro de uma relação e não pode ser suposta isoladamente, na sua pureza.”.603 A impossibilidade de naturalizar potências dar-se-ia pelo fato de Pascal fazer um carrefour da imaginação e da razão, assim, coloca a possível essência de tais potências na relação. É o mesmo procedimento de Pascal no fragmento Desproporção do homem604 quanto à tentativa de responder a pergunta: o que é o homem? Para Pascal, o homem é um ser composto de corpo e alma; porém, esta mistura é tão radical que se torna impossível de separá-la. Desta maneira, tornar-se-ia impossível conhecer a natureza do homem, pois para este conhecimento seria necessário separar cada uma das partes e discernir a natureza delas. Para Pascal, tal procedimento não obtém sucesso e a essência do homem baseada na relação é uma forma de silenciar o discurso. Todavia, para Descartes, a composição do homem não destrói a possibilidade de conhecer o simples, já para Pascal, a “mistura” é motivo de confusão. Quanto às potências o processo é o mesmo: Descartes separa imaginação de intelecção pura de maneira clara e distintamente; para Pascal, contrariando tal tarefa, tal discernimento é impossível. Quando a razão atua a imaginação acompanha e vise versa. Diante disso, Mesnard nos traz um novo dado: a imaginação sobrepuja a verdade. Ela faz de si mesmo verdade, ela veste a carapuça do nome verdade: eis um outro efeito da imaginação. Sendo a verdade volúvel de acordo com as disposições das pessoas, a imaginação molda a verdade de acordo 602 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 193 – 194. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 11. 604 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 78 – 86. 603 171 com estas disposições contextuais. “Verdade aquém dos Pirineus, erro além.”.605 É desta forma que a imaginação procura a opinião do verdadeiro. As pessoas não querem consentir àquilo que é duvidoso, mas somente à verdade. Tomando a carapuça da verdade, a imaginação comanda sempre as operações da razão impossibilitando o discernimento entre o verdadeiro e o falso, lançando o conhecimento nos mares revoltos da contingência. Se a imaginação pudesse ser naturalizada, ou seja, identificada na sua pureza, ela seria a referência entre o real e o imaginário: o real é da alçada da razão e o fantástico é da alçada da imaginação. Mas o trabalho da imaginação é justamente o contrário, ela esconde a referência, sobrepuja a razão e sustenta diversas opiniões no mundo sem podermos discernir entre as verdadeiras e as falsas: Mas, sendo o mais das vezes falsa, ela não mostra nenhum sinal dessa sua qualidade, marcarndo com as mesmas características o verdadeiro e o falso. Não estou falando dos loucos, e sim dos mais cordatos, e é entre eles que a imaginação assume o grande direito de persuadir os homens. Por mais que a razão grite, não consegue dar o devido valor às coisas.606 Afirmando a ausência de discernimendo entre o verdadeiro e o falso podemos então, a partir do conceito de contingência do capítulo anterior, afirmar que a imaginação é uma manifestação da contingência. Mas poderíamos também, contrariando tal hipótese, supor que a imaginação antes de ser a marca da contingência é a manifestação da loucura? No contexto de Pascal, afirmará Henri Gouhier607, o conceito loucura era usado em três sentidos: o primeiro, “[...] ele designa o estado daquele que está privado da sabedoria sobrenatural [...]”608, ou seja, todo homem pecador é um louco, visto que o pecado corrompeu a todos609; o segundo, faz referência à loucura das coisas de Deus para o homem pecador, como afirmará São Paulo: “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.”610; o terceiro, “[...] designa o estado daquele que está privado da sabedoria natural [...]”.611 Este último, afirma Gouhier, é importante para entendermos a 605 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 60, Bru. 294, p. 21. Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 12. 607 Ver Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 144 – 153. Sobre a relação existente entre o conceito de loucura e sabedoria, assim como as maneiras que Pascal relaciona os conceitos nos seus respectivos contextos. 608 Ibid., p. 151 609 Cf. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 412, Bru. 414, p. 156. 610 I Cor 1, 17, Português. In: BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. 611 Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 151. 606 172 maneira que Pascal usa o conceito no contexto do fragmento sobre a imaginação: “Pascal vai mesmo servir-se da palavra em seu sentido mais banal no interior do longo texto cuidadosamente redigido que expõe sua psicologia da imaginação.”.612 A idéia é que o ser racional é sábio, de modo que a ausência da racionalidade é o estado próprio da loucura, ou, em uma linguagem mais moderna, um estado de descompensamento mental. Assim, Pascal é categórico para com aqueles que desejam atribuir a potência imaginativa somente aos homens que possuem um descompensamento mental libertando o chamados racionais das agruras da imaginação: “Não estou falando dos loucos, e sim dos mais cordatos”. Todavia, ele sabe da flexibilidade do conceito de loucura: “Os homens são tão necessariamente loucos que seria ser louco, de um outro jeito de loucura, não ser louco.”.613 Diante destas duas últimas passagens chegamos a um paradoxo tipicamente pascaliano frente à seguinte pergunta: O homem é louco? A resposta de Pascal é sim e não. Sim, porque o homem é um ser errante e solitário em um universo infinito e silêncioso, perdido no vazio da referencia depois da falta adâmica. “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.”. 614 A imagem pascaliana é típica de um homem em surto catatônico. E não, pois há como limitar o mal que causa as loucuras dos homens, empreendimentos realizados desde a antiguidade tanto por Platão quanto por Aristóteles: “Se escreveram sobre política, foi como para regulamentar um hospital de loucos.”.615 Diminuir os males entre os homens estabelecendo leis eficazes não eliminamos a loucura, porém, abrandamos suas conseqüências destruidoras. Pascal tenta impedir a afirmação de que a imaginação só atua nos considerados loucos – por uma convenção social qualquer – para que não sejam subtraídos os efeitos nefastos da mesma em boa parte da humanidade. Portanto, ela atua em todos os homens, tanto nos considerados “loucos” pelo contexto vigente quanto “não-loucos”. Assim, a imaginação produz seus efeitos naqueles considerados como os mais qualificados, mais prudentes, mais ajuízados, em suma, nos doutos. Um deles é o chevalier de Méré. Em uma carta endereçada a Fermat, matemático conceituado, Pascal discute a regra dos partidos, entretanto, se espanta com o não consentimento do chevalier de Méré quanto à divisibilidade de uma linha ao infinito. Vejamos a passagem, já que a partir dela constataremos os efeitos da imaginação. 612 Henri GOUHIER, Blaise Pascal: conversão e apologética, p. 150. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 412, Bru. 414, p. 156. 614 Ibid., Laf. 201, Bru. 206, p. 86. 615 Ibid., Laf. 533, Bru. 331, p. 243. 613 173 Eu não tenho tempo de vos enviar a demonstração de uma dificuldade que espantava muito M..., pois ele tem um bom espírito, mas não é geômetra616 (isto é, como sabeis, um grande defeito) e não compreende que uma linha matemática seja divisível ao infinito e acredita muito bem entender que ela é composta de pontos em número finito, e jamais pude tirar isso dele.617 Para um geômetra a infinita divisibilidade de uma linha reta é razoável, assim como a do número, da matéria, do movimento e do espaço. Tal afirmação geométrica Pascal faz questão de enfatizar: “Assim, um espaço, por menor que seja, não pode ser dividido em dois, e estas metades divididas ainda mais? E como poderia ocorrer que estas metades fossem indivisíveis, sem extensão alguma, elas que juntas, formavam a primeira extensão?”.618 O argumento de Pascal é simples. Por exemplo, na divisão da matéria ao infinito nunca poderíamos chegar ao fim, pois se chegássemos encontraríamos dois pedaços de matéria e seria inviável que duas partes formasse um todo. Se encontrassemos, por exemplo, dois nadas de matéria, o raciocínio seria o mesmo: dois nadas de matéria não poderão formar um todo. A surpresa de Pascal é a impossibilidade de fazer Méré consentir com este raciocínio.619 Pascal e Méré possuem dois sentimentos – ato inteligente na 2ª ordem – acerca de um mesmo assunto: a divisibilidade de uma reta. Pascal diz que a divisibilidade é infinita, Méré diz que é finita. A imaginação revela seu efeito na sua relação com o sentimento: Todo o nosso raciocínio se reduz a ceder ao sentimento. Mas a fantasia é semelhante e contrária ao sentimento; de modo que não se pode distinguir sob estes dois contrários. Um diz que meu sentimento é fantasia, o outro que sua fantasia é sentimento. Seria preciso ter uma regra. A razão se oferece, mas é flexível a todos os sentidos. E assim não existe nenhuma.620 O caso acima entre Pascal e Mére é um exemplo no qual a razão é flexível em todos os sentidos para fazer consentir: tanto Pascal quanto Méré reduzem seu raciocínio ao sentimento, ou seja, sentem a veracidade de suas afirmações, mas não conseguem deduzir toda a cadeia de 616 “[...] pois, pode-se facilmente ser um homem muito hábil e péssimo geómetra.”. (Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 354). 617 Idem, Lettre de Pascal a Fermat: le 29 juillet 1654, p. 43. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 43 – 46. 618 Idem, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 352. 619 Ver Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 163. 620 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 530, Bru. 284, p. 242. 174 causa e efeito que provaria o enunciado sustentado por cada um. Não há objetividade em nenhum dos enunciados, porém, a motivação de Pascal é a razoabilidade, ou seja, as condições favoráveis que o motivam a consentir, por exemplo, que a linha reta é divisível ao infinito, como vimos acima. Todavia, dirá Pascal, quando o raciocínio cede ao sentimento corremos o risco de que o sentimento ceder a fantasia: um outro nome para a imaginação. A fantasia ao mesmo tempo que é semelhante ao sentimento é contrária. Outro paradoxo pascaliano. O objetivo desta afirmação é simples: incapacitar o agente cognitivo a discernir aquilo que é fantasia daquilo que não é. A aporia ganha seu ar polêmico na medida que “[...] um diz que meu sentimento é fantasia, o outro que sua fantasia é sentimento.”, ou seja, não há critério último para analisar a veracidade dos argumentos, somente motivos que concedem certa razoabilidade ao consentimento de cada argumento. Tal controvérsia poderia ser dissolvida por uma regra construída pela razão, mas esta mesma razão imersa na contingência tem sua operação regida pelo império da imaginação que a sobrepuja e aniquila tanto o critério de verdade quanto de falsidade, produzindo regras que balançam com o tempo, circunstâncias ou com as disposições acidentais da vontade de cada um. A razão, e sua intrinseca relação com a imaginação, não é point de repére de nenhuma regra clara e distinta. Com um simples solavanco da imaginação, a razão, ao tentar criar uma regra para discernir sentimento e fantasia, poderá depara-se com uma infinidade delas. Em qual delas deveríamos consentir? A idéia oferece aqui uma grande generalidade: as opiniões humanas podem entrar sob a rubrica seja do “sentimento”, seja da “fantasia”621, não havendo regra infalível para discernir um e outro. A cadeia dedutiva que usa do sentimento para produzir seus axiomas – existe o tempo, existe o movimento, ou que uma reta pode ser dividida ao infinito, etc – verse-ia destruída. Como saberei se dentro do processo dedutivo uso das fantasias ou do sentimento? A aporia pascaliana sempre coloca a imaginação como uma potência que impede o discernimento, ou seja, sempre se apresenta como contingência. “Por mais que a razão grite, não consegue dar o devido valor as coisas.”.622 Esta dificuldade da razão de fornecer o devido valor às coisas nos faz afirmar que é a imaginação que engendra o real valor das coisas que as pessoas consentem. Como afirma os comentadores Bras e Cléro, “[...] seus efeitos não são conceitos, mas aquilo que nós poderíamos chamar de realidades.”623. Mas a potência imaginativa estaria limitada à produção de realidades somente? 621 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 123. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12. 623 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 16. 622 175 2.2 – Engenharia da imaginação: conceitos, realidades e naturezas. A afirmação de Brás e Cléro que a imaginação tem como efeito a produção de realidades e não de conceitos me parece pertinente quanto à produção de realidades, todavia, discordamos da posição dos autores quanto à desqualificação da imaginação enquanto produtora de conceitos. Diante disso, em um primeiro momento, analisaremos estes dois pontos, depois veremos a importância da imaginação na construção das naturezas. Primeiro: quanto a produção de conceitos. Em uma carta ao Sr. Pailleur, um geômetra da época, Pascal descreve a sua resposta à algumas considerações do padre Noel sobre as controvérsias acerca do vácuo. Uma das críticas entrepostas por Pascal é a proliferação de conceitos. Escrevendo estas palavras, acabo de receber um bilhete deste Padre, que muda a maior parte de seu livro: ele revoga a leveza movente do éter, invocando o peso do ar exterior para sustentar o mercúrio. De maneira que eu acho muito difícil de refutar os pensamentos deste Padre, já que ele é o primeiro a mudálos rapidamente, antes que se possa responder-lhe; e começo a ver que a sua maneira de agir é bem diferente da minha, porque ele produz suas opiniões à medida que as concebe; mas suas próprias contrariedades bastam para mostrar a falta de solidez, visto que o poder com o qual ele dispõe esta matéria testemunha suficientemente que ele é seu autor e, portanto, que ela só subsiste na sua imaginação.624 Pascal sustenta que o espaço entre o cûme do tubo de ensaio e o mercúrio é vazio até que alguém mostre que há alguma matéria que o preencha.625 Padre Noel, contrariando Pascal, sustenta que o espaço em questão não está vazio, mas há matéria: inicialmente “ar sutil”626, depois muda para “éter”627. Tal nome não durará muito, visto que antes da resposta de Pascal outras considerações e outros nomes criados pelo padre Noel já rondavam o debate. Estas afirmações nos fazem supor que a imaginação também é produtora de conceitos, de modo que o efeito da mesma faz o sujeito produzir conceitos em demasia tornando o discurso equívoco. Eis o problema detectado por Pascal nos escritos do padre Noel: proliferação de 624 Blaise PASCAL, Lettre de Pascal a M. Le Pailleur: au sujeit du Père Noel, Jésuite, p. 214. In: Idem, Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 208 – 215. 625 Cf. Ibid., p. 209. 626 Ibid., p. 213. 627 Ibid., p. 214. 176 conceitos pelos solavancos da imaginação e, conseqüentemente, equivocidade do discurso. Pascal desqualifica o pensamento do jesuíta em questão como fruto da sua imaginação, visto que ele “[...] não conhece as experiências senão por escrito [...].”.628 Não adianta dar o nome de corpo a uma substância que Noel sublinha ser imperceptível, mas detectar tal realidade é de extrema importância em física 629 : Noel diz que não podemos negar a materialidade daquele espaço, “[...] embora os olhos nos façam ver o contrário.”.630 Depois de citar as inconcruências conceituais imaginadas pelo padre Noel, Pascal também destaca as controvérsias entre aqueles que sustentam que o espaço vazio possui matéria, censurando a outra quantidade de nomes e idéias que surgem: cada cientista concebe um tipo de susbstância. Ele não se dá o trabalho de combater estes pensadores, visto que basta abandonálos em seus próprios labirintos de obscuridades. Portanto, sustentamos que a imaginação é uma potência geradora de conceitos contrariando a afirmação acima dos comentadores Bras e Cléro, assim, como o sofista Górgias afirmava, os conceitos engenhosamente imaginados sempre causam efeitos: seu uso poderá ser persuasivo. Segundo: quanto à produção de realidades. Toda realidade possui uma relação com o eu. É o eu que concede o “prix” às coisas. Não existe realidade se o eu não a reconhece. Desta maneira, o mundo exterior – realidade – é sempre algo em relação com um eu que o reconhece. O eu se faz centro de tudo631 e concede o valor às coisas, ou seja, às realidades.632 Logo, a realidade se apresenta na relação com o eu, mediada pela imaginação, como sustenta Bras e Cléro: “A potência própria da imaginação é, portanto, de se apresentar como realidade – ao meio da experiência e do costume – um mundo de existência possível.”.633 Verificamos que a imaginação se move entre a experiência – que é sempre a experiência de um eu que se faz centro de tudo e concede valor às coisas visando aquilo que é do seu interesse – e o costume, ou seja, repetição contínua de uma mesma experiência. A repetição de uma experiência de maneira contínua produz o costume que o eu concebe, construindo assim a 628 Blaise PASCAL, Lettre de Pascal a M. Le Pailleur: au sujeit du Père Noel, Jésuite, p. 214. Ver René GIRARD, O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004, p. 8 – 10. Diante da peste que assola a Europa no século XVI a mudança conceitual do nome peste para epidemia pareceria diminuir o caos. Destacamos tal procedimento porque da mesma maneira que a criação de nomes pode ser prejudicial, como é o caso descrito acima dentro do contexto da física, em outras situações poderá ser de extrema importância. “Uma doença bem nomeada parece meia cura e, para se dar uma falsa impressão de controle, freqüentemente se rebatizam os fenômenos que não são controláveis.”. (René GIRARD, O bode expiatório, p. 9). Um exemplo de mudança conceitual que proporcionou grandes mudanças na física é dado pela descrição dos procedimentos de Galileu para sustentar a não operatividade – não percepção – do movimento recorrendo ao conceito platônico de anamnese. (Ver Paul FEYERABEND, Contra o método, p. 129). 630 Blaise PASCAL, Lettre de Pascal a M. Le Pailleur: au sujeit du Père Noel, Jésuite, p. 214. 631 Ver Idem, Pensamentos, Laf. 597, Bru. 455, p. 260. 632 Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 18. 633 Ibid., p. 18. 629 177 realidade para o eu: tal procedimento é mediado pela imaginação. Diante disso, é a composição destes elementos, costume, imaginação e experiência, que construirá aquilo que chamamos realidades, ou seja, a realidade que o eu concebe é a fusão destes três elementos. Todavia, sabemos que o costume possui uma ligação muito tênue com o interesse, sendo que o costume muda caso o interesse apresente mudanças. Desta maneira, percebemos que além dos três conceitos acima que constroem a realidade, o interesse, pela ligação que possui com o costume, também é importante na composição da realidade. Assim, destacamos que a posição de Bras e Cléro é a mesma daquela de Ferreyrolles quanto à atuação da imaginação entreposta entre costume e interesse.634 Tal afirmação dos comentadores está de acordo com uma passagem mais ao final do fragmento 44: “Nosso interesse próprio é também um maravilhoso instrumento para nos furar os olhos de maneira agradável.”.635 A constituição da realidade tem seu “fundamento” no costume, imaginação e experiência, mas o primeiro, como está intimamente ligado ao interesse do eu, e como este é sempre flutuante no homem, a realidade será resultado da contingência, ou seja, a visão da mesma é sempre contingente, sujeita a mudança com um simples princípio de prazer diferente em cada homem ou em uma determinada circunstância em um mesmo homem. Mas será a imaginação que se interpõe na composição da realidade, ela não é uma irrealidade, mas é ela quem dá consistência àquilo que concebemos como real. A imaginação muda o interesse do eu, que altera o costume, que faz o eu experimentar o mundo de maneira diferente e construir uma nova visão do real. Por exemplo, eu tenho o costume de ver o sol nascer e experimentamos tal fato todos os dias, logo, a imaginação sustenta a certeza da crença na continuidade deste evento para o futuro e a razão não duvidará que o sol nascerá amanhã; também sabemos que é de vital interesse humano o nascimento do sol, pois ele garante o calor suficiente para nossa sobrevivência: vemos que os cinco conceitos estão ligados na composição da realidade. Portanto, eis o sistema pascaliano da construção da realidade: a experiência contínua do nascimento do sol produz o costume de que o mesmo vai nascer sempre, costume este que se relaciona com o interesse do eu de sobreviver, de maneira que a imaginação sustenta tal realidade. Através deste exemplo podemos ver como a imaginação atua na estabilização do costume pela repetição da experiência e reforça a crença do nascimento do sol pelo interesse vital do eu em se preservar. 634 Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 18. Os autores usam do conceito desejo e costume, mediado pela imaginação. 635 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12. 178 Diante da afirmação do papel da imaginação enquanto construtora da realidade, Bras e Cléro destacam três princípios de funcionamento da imaginação nesta operação. O primeiro é de fazer-nos critério, centro e norma de tudo que queremos conhecer, sem levar em conta a desproporção – distância – entre o mundo e o sujeito que quer conhecer636: “Em vez de receber as idéias dessas coisas puras, nós as tingimos com nossas qualidades e impregnamos o nosso ser composto (de) todas as coisas simples que contemplamos.”.637 As idéias que concebemos das coisas são filtradas pela particularidade que o sujeito recebe tais idéias. Pascal coloca a essência na relação entre objeto e sujeito e como cada sujeito pode conceber de uma forma determinado objeto, esta relação é sempre contingente. Tal efeito da imaginação nos faz lembrar a máxima protagórica na qual o homem é medida de todas as coisas que são e que não são.638 O segundo é de projetar nosso ser onde não estamos, tanto temporalmente como espacialmente, entre dois nadas.639 “Quase não pensamos no presente, e se nele pensamos é somente para nele buscar a luz para dispormos do futuro. O presente nunca é o nosso fim.”.640 O homem é descrito como um ser entre dois nadas, ou seja, entre um passado que já se foi e desapareceu, mas que ocupa nosso pensamento, e um futuro que não temos certeza que vamos alcançar. O único tempo que é nosso, o presente, preferimos não ver: “É que, em geral, o presente nos fere.”.641 Passado e futuro estão ligados a contingência de nossos pensamentos, ou seja, o passado depende de uma memória que poderá desaparecer, o futuro depende do curso da vida que poderá encerrar-se com a morte, mas também de um conjunto de acontecimentos para que o futuro esperado aconteça. Portanto, nunca vivemos o tempo presente, vivemos as lembranças do passado e o medo de um futuro incerto: a contingência ligada ao passado e ao futuro acompanha nosso presente que é sempre uma projeção, realizada pela imaginação, para o passado ou para o futuro. Por exemplo: sabendo que o homem sempre morreu e que continua a morrer, conseqüentemente – e é aí que está a projeção –, acredita-se que os homens sempre morrerão. A imaginação projeta a contemplação do passado e do presente para o futuro incerto. O último é o deslocamento, ou 636 Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 19. Ver Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 85. 638 “Sócrates – Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a definição de Protágoras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem. Decerto já leste isto?”. (PLATÃO, Teeteto. 3ªed. trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Universitária UFPA, 2001, p. 49). Também Montaigne traz em seus Ensaios a máxima protagórica: “Na verdade, Protágoras mostrava-se fantasista escolher o homem para medida de todas as coisas, o homem que jamais conheceu sua própria medida.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 466. In: Idem, Ensaios. trad. Sérgio Milliet. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 370 – 504). 639 Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 19. 640 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 47, Bru. 172, p. 17 – 18. 641 Ibid., Laf. 47, Bru. 172, p. 17. 637 179 seja, quando um objeto é captado pelos sentidos ele está acompanhado de outros objetos que se ligam ao objeto primeiro e modificam nossos sentidos, ou seja, nossa forma de conceber as coisas. Esta capacidade de associação da imaginação desloca o essencial para o circunstancial642, o absoluto para o relativo e o necessário para o contingente. É o caso dos médicos, por exemplo, que são pensados sempre com seu aparato augusto, seus instrumento e roupas que parecem trazer em si a cura. Nunca um médico é pensado sem estes elementos, algo que discutiremos mais abaixo. A imaginação desloca a idéia objetiva de um objeto associando outros objetos à esta idéia. Em suma, para Bras e Cléro a imaginação faz do homem critério de análise, ela projeta nosso ser e desloca o conhecimento objetivo das coisas, associando outros objetos ao primeiro. Tais efeitos ressaltam a guerra entre a razão – responsável pelo conhecimento objetivo e verdadeiro das coisas – e a imaginação, que sobrepuja a razão e ironicamente produz natureza. É a imaginação que impedirá que a razão formule um enunciado necessário e absoluto que transcenda todos os tempos e contextos. Diante disso, depois de analisarmos a função da imaginação na construção dos conceitos e das realidades, vejamos o papel da imaginação na construção da natureza: Essa soberba potência inimiga da razão, que se compraz em controlá-la e em dominá-la, para mostrar quanto poder tem em todas as coisas, estabeleceu no homem uma segunda natureza. Ela tem seus felizes, seus infelizes, seus sadios, seus doentes, seus ricos, seus pobres. Ela faz acreditar, duvidar, negar a razão. Suspende os sentidos, fá-los sentir. Tem seus loucos e seus sábios. E nada nos deixa mais desarvorados do que ver que ela cumula os seus hóspedes de uma satisfação muito mais plena e inteira do que o faz a razão.643 A capacidade de dominação da imaginação sobre a razão faz dela imperatriz do espírito. A relação entre estas duas potências é marcada pela assimetria dominadora da imaginação, a guerra é sempre vencida e a razão ver-se-ia acuada e incapaz de realizar seu trabalho: conceder o valor objetivo, necessário e absoluto das coisas. Diante disso destacamos quatro efeitos da relação de submissão entre imaginação e razão. O primeiro é a contingência entre a proposta teórica da razão e seu funcionamento real. A imaginação mergulha a razão na contingência, de modo que a razão é incapaz de funcionar, a nível experimental, como ela se 642 643 Cf. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 20. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12 – 13. 180 propõe a nível intelectual, ou seja, a razão estabelece teoricamente sua função de buscar a objetividade, o universal e a natureza das coisas, mas quando realmente exerce seu trabalho a imaginação dilacera sua busca de um ponto fixo que possa traduzir o ser do objeto. “Nada existe tão conforme à razão quanto desmentir a razão.”.644 A razão exercendo sua função se movimenta como um pêndulo de um relógio sem ponto fixo: a imaginação com seus saltos é responsável por estes descontínuos deslocamentos. O segundo é a contingência da razão na sua irascível relação com a imaginação. A imaginação só permite que a razão fale das aparências645 e circunstâncias que a afetam: nenhum enunciado racional poderá abraçar toda cadeia de causa e efeito que rodeia um fato. Um enunciado sempre estará sujeito à contingência imaginativa do sujeito, ser capaz de imaginar muitas explicações e opiniões sobre um mesmo evento ou tema: “280 variedades de soberano bem em Montaigne.”.646 O terceiro é a contingência em um mesmo sujeito. A contingência circunstancial que envolve o sujeito no tempo, espaço, humor e nos acontecimentos inesperados, faz do homem “[...] dependente e, por toda parte, sujeito a ser perturbado por mil acidentes [...]”.647 Mas porque dependente? A imaginação interfere no tempo, este poderá ser mais rápido em uma situação prazerosa e mais lento em um momento de tortura; interfere na organização legal do espaço, pois “[...] três graus de aproximação do pólo invertem toda jurisprudência [...]”648; interfere no humor, pois “[...] prazer demais incomoda, consonâncias demais desagradam na música, e benefícios demais irritam”649; e nos acontecimentos inesperados como uma possível morte eterna, capaz de fazer o interlocutor de Pascal no final do fragmento da aposta650 declarar em desespero: “Que quereis então que eu faça.”.651 O quarto efeito é a contingência dos fatos ou eventos naturais, pois aquilo que era contínuo como o dia e a noite poderá desaparecer: “Quando vemos acontecer sempre a mesma coisa, concluímos que existe uma necessidade natural, como que amanhã fará dia etc., mas muitas vezes a natureza nos desmente e não se 644 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 182, Bru. 272, p. 73. “Não procuremos, portanto, segurança e firmeza; nossa razão está sempre decepcionada pela inconstância das aparências [...]”. (Ibid., Laf. 199 , Bru. 72, p. 83). 646 Ibid., Laf. 408, Bru. 74, p. 155. 647 Ibid., Laf. 132, Bru. 170, p. 49. 648 Ibid., Laf. 60, Bru. 294, p. 21. 649 Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 82 – 83. Ver também Ibid., Laf. 705, Bru. 180, p. 287. Pascal sublinha que as pessoas podem possuir os mesmos acidentes como aborrecimentos e paixões, mas um poderá sentir mais do que o outro os mesmos afetos. Para explicar tal idéia ele concede uma metáfora: dois homens amarrados em uma roda, sendo que um deles está preso na extremidade mais alta e o outro mais próximo do centro. Quando a roda movimenta-se, um agita-se mais do que o outro. Assim se manifestam os afetos que envolvem os homens: um mesmo afeto (o giro da roda), manifesta-se em cada indivíduo diferentemente. 650 Ibid., Laf. 418 , Bru. 233, p. 158 – 163. 651 Ibid., Laf. 418 , Bru. 233, p. 162. 645 181 sujeita as suas próprias regras.”.652 Assim, o costume – e o interesse – de ver sempre um mesmo evento é transformada em lei natural pela nossa imaginação construindo aquilo que Pascal chama de uma segunda natureza, ou seja, a realidade de concebemos. A segunda natureza é criada pela imaginação e não deixa de ter uma conotação irônica, destaca Ferreyrolles: “O conceito de natureza não é suscetível senão de um uso irônico.”.653 Sua capacidade criadora654 produz homens felizes, infelizes, seus doentes, ricos e pobres. Pascal sublinha que a imaginação é capaz de produzir divagações de humores como o riso e o choro por uma mesma coisa: “Daí vem que se chora e se ri de uma mesma coisa.”.655 Seus ricos e pobres também entram na dinâmica imaginativa, visto que um rei com todos os requintes de seu cargo poderá sentir-se mais infeliz do que o menor de seus súditos656 se ele ceder as “[...] circunstâncias que o ameaçam, revoltas que podem acontecer e finalmente à morte e doenças que são inevitáveis [...]”.657 É na constância dos acontecimentos que a capacidade naturalizadora da imaginação se impõe. Basta que todos os dias na vida de um homem sejam felizes para que os dias felizes se tornem um tédio, ou seja, a imaginação naturaliza o ennui por meio da sua capacidade repetidora. Um rei triste é um rei tão pobre quanto o seu menor súdito que possui a certeza do caráter divino658 do rei. Portanto, a imaginação enquanto potência é capaz de criar crenças, duvidar delas, negar a razão que imperou por tanto tempo659. “Desta maneira, o costume encontra-se perfeitamente substituído pela natureza. Como esta mudança tornou-se possível? Pela operação inversa. A natureza só identificável ao costume porque o costume foi inicialmente identificado hiperbolicamente à natureza.”.660 Ferreyrolles sustenta que a capacidade imaginativa de constituir-se como natureza foi a superabundância da repetição do costume, sendo que aquilo que era costume agora ganha seus contornos naturais de universalidade e necessidade. Aquele que vê um acontecimento repetir-se defende a sua constância que supera o tempo e o espaço. Há uma mudança de pontos de vista que os comentadores Bras e Cléro chamam a atenção: “Há uma disponibilidade e uma propensão à mudança de pontos de vista que faz a essência mesma da 652 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 660, Bru. 91, p. 276. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 45. 654 Ver Ibid., p. 172. O homem é um ser desprovido da graça e permeado por um figmentum malum. Figmentum vem do verbo fingo que significa criar e pode significar aquilo que compõe o homem – estrutura pecaminosa depois da queda – ou as criações fingidas da imaginação. 655 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 54, Bru. 112, p. 19. 656 Ver Ibid., Laf. 136, Bru. 139, p. 51. 657 Ibid., Laf. 136, Bru. 139, p. 51. 658 Ver Ibid., Laf. 26, Bru. 330, p. 8. 659 Ver Ibid., Laf. 182, Bru. 272, p. 73. 660 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 47. 653 182 imaginação e que se não é o pensamento exato das coisas, é ao menos sua condição.”.661 A imaginação transforma a maneira de conceber o mundo, muda nossa concepção e faz da repetição circunstancial do costume uma lei natural. As ilusões da imaginação tornam-se a consistência que sustenta o real e organiza localmente nossa forma de ver o mundo. A razão é coagida pelas ilusões das repetições apreendidas pelos sentidos e constâncias produzidas pela imaginação, assim como a não repetição e inconstância. Da mesma maneira que a imaginação pode fazer alguém conceber um mesmo pensamento mil vezes sobre determinado fato, ela também poderá trazer mil pensamentos diferenciados sobre um mesmo fato. Constância e inconstância, repetição e não repetição, são efeitos desta potência enganadora que ao relacionar-se com qualquer coisa sempre produz contingência. Depois de sublinharmos as capacidades construtoras da engenhosa imaginação na proliferação de conceitos, realidades e naturezas, vejamos os efeitos desta potência enganosa em sua relação com os sentidos. 2.3 – Sentidos e a imaginação. Os sentidos também são afetados pelos efeitos contingentes da imaginação, pois ela é capaz de suspendê-los ou nos fazer senti-los. Analisaremos uma passagem célebre do fragmento 44 dos Pensées para verificarmos os efeitos da imaginação nos sentidos. O maior filósofo do mundo em cima de uma tábua mais larga do que o necessário, se houver abaixo dele um precipício, por mais que a razão o convença que está em segurança, a sua imaginação prevalecerá. Alguns nem podem pensar nisso sem empalidecer e suar.662 O caso acima destacado por é um exemplo claro dos efeitos da imaginação nos sentidos. Sabemos que tal passagem é resultado das leituras da obra de Montaigne663, mas a 661 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 16. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13. 663 “Ponha-se um filósofo em uma gaiola de arame fino e pendure-se no alto das torres de Notre-Dame. Verá de maneira evidente que não pode cair e apesar disso, a menos de estar familiarizado com o ofício de pedreiro, não evitará o medo, transido de pavor pela vista da altura. [...] Jogue-se entre as torres da catedral uma tábua suficientemente larga para passarmos; não haverá sabedoria filosófica, por mais admirável que seja, capaz de nos infundir a coragem de andar em cima dela como o faríamos se a tábua assentasse no chão.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 496 – 497). Michel de Montaigne no capítulo XXI do livro I dos Ensaios escreve um texto com o título A força da imaginação. É bem provável que Pascal tenha refletido muito acerca deste texto, pois alguns dos temas do mesmo são ressaltados no fragmento 44 dos Pensées. Vejamos alguns dos efeitos da imaginação aquilatados por Montaigne: uma imaginação que muito preocupa-se com um acontecimento qualquer poderá provocá-lo; o sofrimento de pessoas causados por sentir que um outro ser sofre; um pesquisador adquire uma doença que estuda pelo fato de refletir muito acerca de tal 662 183 disposição do conteúdo nos Pensées não deixará de sublinhar seus contornos apologéticos. Um filósofo, o maior do mundo, em cima de uma tábua larga é a descrição de alguém que tem razão suficiente para entender que está em perfeitas condições de segurança, mas diante do abismo que se encontra debaixo da tábua, a segurança racionalmente objetiva se dissolve dando lugar à imaginação que com seus solavancos faz o filósofo empalidecer e suar. A imaginação engana os sentidos causando efeitos dispares mesmo nos homens mais doutos. O maior filósofo do mundo é um termo indeterminado, mas destaca alguém que confia na razão como fator preponderante para uma decisão, mas ao contrário disso, a imaginação se agita e causa medo, este porém, capaz de mudar comportamentos e fazer o filósofo não arriscar em tal empreitada. A confiança na razão é disseminada pela imaginação e a dúvida quanto a segurança da tábua prevalece. Sendo a dúvida uma manifestação da contingência, já que haverá possíveis respostas para uma mesma pergunta, o filósofo caminhando na tábua é figura da queda de Adão: esta será a leitura de Ferreyrolles. Vejamos : A imaginação estabelece em nós “uma segunda natureza”664 – a natureza caída. Isto é porque o filósofo vertiginoso cuja razão bate em retirada diante da imaginação de seu corpo precipitado representa toda a humanidade: a apreensão (nos dois sentidos) de sua queda física metaforiza a queda objeto; a imaginação provoca febre e até a morte em quem não consegue controlá-la; um doente visitado por outrem melhora ao contemplar a alegria daquele que visita; o estudo da loucura fez com que um estudioso ficase louco por excesso de sabedoria; o pavor de um condenado diante do carrasco provoca antecipadamente a morte; os jovens satisfazem seus desejo amorosos pelo sonho; a beleza de alguém provoca a febre de outrem; a mudança de sexo como um efeito dos sobressaltos da imaginação; a imaginação provoca estigmas como é o caso de São Francisco; o corpo ergue-se do seu lugar pela força da imaginação; as pessoas vêem coisas que na verdade não vêem; provoca ejaculações precoces; ajuda um homem a confiar em um talismã que impedirá que ele mostre-se impotente durante um ato sexual; excita de forma inoportuna o órgão fálico do homem e em outras ocasiões impede a excitação do mesmo colocando-se em oposição a vontade humana; mostra que cada parte do corpo possui seus impulsos próprios, por exemplo, movimentos involuntários do rosto revelam pensamentos que gostaríamos de conservá-los secretos; independência de outros órgãos como o coração, pulmão, pulso; a vista de um objeto agradável ascende em nós uma emoção febril; o cabelo arrepia-se sem o controle de nossa vontade, assim como nossa pele em ocasiões de desejo ou medo; movimento involuntário das mãos; paralisação da voz e da língua em determinadas situações; quando não temos o que comer o apetite sobrevém e nos incomoda, tal apetite também acalma-se e irrita-se quando bem quer; a imaginação causa evacuações sonoras, diferentes tons nestas evacuações, descontrole e contenções das mesmas podendo causar a morte; doentes que saram ao ver apetrechos operatórios; relatos de dor provocados por objetos cortantes que não existem; mentiras que provocam descontroles estomacais, por exemplo, um jovem ofereceu um jantar de ovelhas, mas depois, mentindo, disse a todos que a carne era de gato e algumas pessoas manifestaram disfunções estomacais; olhos saudáveis que ao olhar outros olhos doentes adoecem; animais que ficam brancos por viverem em um ambiente no qual contemplam constantemente a neve; o olhar de um gato é capaz de derrubar um pássaro do galho de uma árvore e fazê-lo cair nas presas do gato. Estes são alguns efeitos que a imaginação provoca não só no homem, mas em outros seres como afirma Montaigne. (cf. Michael de MONTAIGNE, A força da imaginação, I, 21, p. 105 – 114. In: Idem, Ensaios. trad. Sérgio Milliet. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 105 – 114). 664 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12. 184 metafísica da espécie, pois se ele tem medo de cair sem razão, é que ele já está, enquanto homem, “caído de seu lugar”665. 666 A segunda natureza, ironia de Pascal, é a natureza caída: imersa na contingência e desprovida de verdade. Ferreyrolles destaca que o filósofo andando na tábua e afetado pela vertigem da queda representa toda humanidade. Sua queda se divide em duas partes: uma queda real ao realizar uma experiência concreta deste tipo e uma queda metafórica, visto que o filósofo não encontra fundamento racional para seu medo, já que a tábua larga é garantia de sua segurança, desta maneira, o medo que o afeta é o pavor de um homem que já caiu há muito tempo: “[...] ele está decaído de uma natureza melhor que lhe era própria anteriormente [...]”.667 A ligação entre o pecado original e a experiência/metáfora da tábua no fragmento da imaginação sustenta a hipótese deste capítulo na qual a contingência – neste caso dos sentidos, pois a imaginação suspende os sentidos ou fá-los sentir –, conseqüência da queda adâmica, manifesta-se na imaginação. A contingência, sendo uma conseqüência do pecado original, foi nosso objeto de análise no capítulo anterior, neste capítulo estabelecemos como hipótese de trabalho que é na imaginação que se manifesta a contingência. Portanto, o medo causado pela imaginação é figura – termo pascaliano – de uma queda causada por um pecado realizado nos primórdios, afirma Ferreyrolles. Tal afirmação que faz uma ligação entre o pecado e o modo como a imaginação atua também é sustentada pelos comentadores Bras e Cléro: “Portanto, a imaginação é incompreensível se não se refere à queda original que lhe dá razão.”.668 A imaginação tem como causa a queda. É pela queda que entendemos os procedimentos da imaginação: eqüipolência da verdade, produção de conceitos, realidades e naturezas, faz de cada homem critério de julgamento, projeção do nosso ser na concepção de um objeto, deslocamento das qualidades de outros objetos que se associam ao objeto primeiro. Tanto Ferreyrolles como Bras e Cléro fazem uma ligação direta entre a queda e a imaginação. Nossa pesquisa interpõe entre a queda e a imaginação o conceito de contingência que aponta ao mesmo tempo para o homem caído e os efeitos da imaginação. Visto o aspecto teológico da passagem acima, Ferreyrolles estende o exemplo não só para o homem de fé, mas para um simples leitor da passagem. O filósofo que negligencia fazer uma experiência física como a da tábua não está isento dos afetos da imaginação, “[...] pois um grande número daqueles que lêem aquela narração se põem incontinente, mesmo sem ter a necessidade de ver 665 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 430, Bru. 431, p. 174. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 172. 667 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 117, Bru. 409, p. 40. 668 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 22. 666 185 a cena com seus olhos, a ‘empalidecer e a suar’.”.669 A imaginação persuade tanto no nível físico quanto naquele de domínio estritamente intelectual. O filósofo sente na carne os movimentos da imaginação que afetam o espírito. Tanto a primeira ordem como a segunda são atingidas. No caso do filósofo na tábua. a primeira ordem é afetada causando empalidecimento e suor. Todavia, Pascal nos dá um outro exemplo no fragmento 803 no qual a imaginação causa prazer e satisfação: um artesão seria tão feliz quanto um rei se tivesse a certeza que todas as noites sonhasse por doze horas que era rei, dirá Pascal.670 Neste exemplo, diferentemente do filósofo que fica empalidecido e suado diante do descontrole da razão frente a desconfiança que a imaginação produz, percebemos que a ficção imaginativa de um sonho é capaz de produzir o prazer de ser rei em um artesão. Portanto, diante do exemplo da tábua verificamos a capacidade da potência imaginativa em fazer-nos sentir o desprazer de uma situação que é racionalmente segura, todavia, se torna altamente arriscada pela insegurança que a imaginação submete o filósofo; o exemplo do artesão revela a capacidade da imaginação de gerar prazer pela ficção: Tanto um exemplo quanto o outro mostram que o homem seria vítima passiva dos efeitos da imaginação, já que o filósofo tem sua razão confundida sem consentimento da vontade e o artesão sonha sem o consentimento da vontade também. Entretanto, a imaginação é algo que faz do homem totalmente passivo em relação a ela? Acreditamos não ser esta essa a posição de Pascal: o homem pode usar da imaginação. 2.4 - Os versados em imaginação. O uso da imaginação feita por alguns homens é destacado por Pascal. Vejamos como o autor analisa o procedimento destes homens. Os versados por imaginação se comprazem muito mais do que podem comprazer-se razoavelmente os prudentes. Eles olham as pessoas com domínio, disputam com audácia e confiança – e aquela alegria estampada no rosto lhes dá muitas vezes vantagem na opinião dos ouvintes, de tal modo os sábios imaginários desfrutam de favor junto aos juízes de mesma natureza.671 669 Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 145. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 803, Bru. 386, p. 317 671 Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 13. 670 186 Tal passagem à primeira vista parece obscura e os comentadores não se debruçam sobre ela para destrinchá-la. Algumas perguntas poderiam ser levantadas e as mesmas seriam norteadoras para nossa leitura. 1ª) Quem são os versados em imaginação? 2ª) Quem são os prudentes e porque os versados em imaginação disputam com domínio, audácia e confiança? 3ª) Qual natureza é essa que possui um juiz, que um sábio imaginário desfruta a seu favor? 1ª) Quem são os versados em imaginação? Um versado em imaginação é um perito nos possíveis efeitos da imaginação e no uso que poderiam fazer destes efeitos. Não adianta conhecer os efeitos e não fazer uso desta potência enganosa. Conhecer os efeitos implica conhecer suas disposições teóricas, enquanto fazer uso de tal potência é utilizá-la para um fim determinado e construído pelo perito. Podemos destacar dois nomes que são peritos na arte de fazer uso da imaginação: Galileu e Pascal. O primeiro usa da imaginação para construir suas experiências e colocar em xeque o geocentrismo em favor de um heliocentrismo sem recursos, visto que apontar o telescópio ao céu não era garantia de corroboração de sua teoria. Galileu não tinha recursos para demonstrar a não-operatividade do movimento, ou seja, que um copo que possui um movimento igual a outro não percebe o movimento de ambos. Galileu usa da imaginação para construir experiências fictícias, imaginárias. O resultado de tal procedimento é persuasivo: anos depois o heliocentrismo se estabiliza, desta maneira, Galileu vence a batalha. O segundo, Pascal, que além de transformar uma ação segura em sofrimento que faz empalidecer, como é o caso do filósofo que anda sobre a tábua, também transforma a maneira de nossos órgãos do sentido captar o mundo. O caso é descrito no fragmento 199672 com o título Desproporção do homem. Dois abismos são sublinhados: o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. No infinitamente grande ele sugere que ao contemplarmos a natureza inteira, nos afastando dos objetos mais baixos, e olhemos aquela luz ofuscante que ilumina o universo e toda a grandeza de sua órbita. Diante deste quadro, visualizamos a terra como um ponto bem pequeno. Mas a comparação não pára por aqui, pois esta mesma luz ofuscante a qual nos dirigimos para contemplar a terra torna-se um ponto pequeníssimo em relação a outros astros que giram no universo.673 Diante deste exercício a vista se cansa e é a imaginação que o versado Pascal convoca para auxiliá-lo. A imaginação ultrapassa e rompe as fronteiras de nossas potencialidades visuais com grandiosa rapidez, mas tal rapidez é proporcional ao seu 672 673 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 79 – 80. Cf. Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 79. 187 cansaço.674 A natureza concebe conteúdo suficiente para a ação da imaginação, entretanto, ela não consegue imaginar tudo. O movimento imaginativo é produtor de “átomos” se levarmos em contra a infinita realidade das coisas existentes na natureza. Do mesmo modo que a visão das coisas existentes é pequena em relação à amplitude dos movimentos da imaginação, assim, esta se revela como um instrumento capaz de captar “átomos” se levarmos em conta a grandiosidade da natureza. Sempre podemos conceber algo maior, e infinitamente. Portanto, o homem poderá fazer uso de sua capacidade máxima de visão até que esta se canse, poderá imaginar até que a fadiga absorva seu corpo, e olhando depois para si ele saberá que por mais que estenda os braços nunca alcançará o teto. “Que é um homem dentro do infinito?”.675 Mas se a imaginação tem um papel importante na extensão da grandeza dos espaços infinitos, quanto à pequenez destes espaços ela também revelará seus efeitos. Pascal convida o leitor a vislumbrar outro abismo: o infinitamente pequeno. O objeto de análise será um ácaro que em sua pequenez revela outras partes ainda menores: pernas, estas possuem veias, nas veias sangue, nele humores, seguidos por vapores ainda menores e assim infinitamente. O discurso é tudo que resta: a vista ver-se-á enfraquecida por não poder visualizar estas pequeníssimas partes que compõe um ácaro. Mas, diante do cansaço e impotência da visão, a imaginação abrirá um buraco ainda mais profundo, ou seja, surgem universos ainda menores: eles apresentam-se com seus planetas, sua Terra, animais nessa Terra, ácaros, e isto “[...] sem fim e sem descanso.”.676 É um abismo profundo sem fundo. Pascal nos apresenta as maravilhas da infinita pequenez: “Inversão contínua do pró ao contra.”.677 Logo, o minúsculo corpo humano diante da grandeza do universo torna-se um “colosso”678 frente à pequenez do universo infinitamente pequeno. O corpo é um mundo neste caso: “É um nada que a nossa imaginação aumenta transformando em montanha [...]”.679 Portanto, diante dos dois abismos que Pascal faz o leitor contemplar uma imagem exsuda: o homem ergue as mãos para o céu e não alcança 674 Ver também Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 113. Na direção do infinitamente grande toda visão é um ponto de vista que ao ser estendido até ao horizonte é suscetível de ser ampliado além dos seus limites factuais. Basta fazer uso da imaginação para conceber a extensão infinita do espaço, de modo que o mundo terrestre visto da órbita solar seria “um ponto muito delicado.”. Em análise ao fragmento 199, Bras e Cléro sublinham o poder que Pascal concede à imaginação de ultrapassar a realidade sensível e colocar o homem diante do abismo vertiginoso do infinitamente grande e do infinitamente pequeno. É o ponto de vista do observador o critério decisivo para a análise, por exemplo: em relação à órbita do sol a Terra é minúscula. Em contrapartida, a órbita do sol é minúscula ao ser comparada às órbitas de outros astros. Ao nos afastarmos das órbitas mais grandiosas elas tornam-se um ponto. O movimento contrário será sempre uma contemplação da pequenez do nosso ponto de vista, ou seja, se contemplo as órbitas de outros sistemas solares, o ponto de onde realizo tal observação será visto como minúsculo. Mas a imaginação é capaz de colocar-nos fora do universo? 675 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 79. 676 Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 80. 677 Ibid., Laf. 93, Bru. 328, p. 33. 678 Ibid., Laf. 199, Bru. 72, p. 80. 679 Ibid., Laf. 531, Bru. 85, p. 243. 188 o teto e estica as pernas e não encontra chão. Pascal sublinha até onde vai a capacidade da visão e a superação desta pela imaginação: conhecer como se pode produzir tal efeito é uma característica típica de um versado no uso da imaginação. Esta potência enganosa, ao mergulhar o homem no infinito, desqualifica a tentativa da razão de produzir leis universais necessárias. Como produzir leis que sejam válidas para todo espaço infinito? Pascal entende que a imaginação é responsável por levar as impressões dos sentidos para a razão que entende, organiza, associa a uma linguagem e explica. Todavia, verificamos que a mais prejudicada nesta inteiração é a razão. A relação entre o sentido, a imaginação e a razão produzem efeitos capazes de levar “[...] a razão para fora de seus gonzos”680, enchendo de admiração o leitor pelo quadro que vislumbra e pavor por não poder compreender o todo: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.”.681 O silêncio da razão na tentativa de produzir leis universais e necessárias que possam organizar o espaço infinito é o efeito da relação entre sentido, imaginação e razão: a razão produz leis naturais que balançam com o tempo, ou seja, o tempo dissolve as investidas da razão e a tira dos seus gonzos, ou seja, a imaginação mergulha a razão na contingência. Levar a razão para fora de seus gonzos é tirá-la dos trilhos, desqualificando sua atividade cosmológica.682 Desta maneira, encontramos o lugar da imaginação dentro da epistemologia pascaliana: a imaginação é a potência que se encontra entre os sentidos e a razão. “Mas a mais engraçada entre as causas dos seus erros é a guerra que fica entre os sentidos e a razão.”.683 Tal guerra é mediada pela imaginação que desqualifica a razão ou a submete, como destaca o comentador Ferreyrolles: Essa inversão de apreciação que a imaginação induz é, portanto, ao mesmo tempo, o indício e o efeito da inversão original, pela qual a razão é encontrada 680 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14. Ibid., Laf. 201, Bru. 206, p. 86. 682 Ver Marilena CHAUÍ, Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática. 2001, p. 25. A filosofia nasce como uma tentativa de conhecimento racional da ordem do mundo. Seria um conhecimento desprovido de qualquer revelação divina ou mistério. Os primeiros filósofos são conhecidos como filósofos da natureza, o trabalho que exerciam era de compreender os acontecimentos naturais em sua totalidade usando da razão, com sua capacidade de teorizar, e o contato com a empiria, de modo que recorriam aos órgãos dos sentidos como fator corroborador de suas teorias. Mesnard, todavia, faz uma comparação entre a cosmologia medieval e da modernidade: “Desaparecido o mundo harmonioso e pleno de sentido da visão antiga e medieval; de hoje em diante, reina o pavor diante do ‘silêncio eterno desses espaços infinitos’.”. (Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 89). O pavor que Mesnard destaca é a incapacidade da razão humana de compreender tudo aquilo que o cerca. A contingência da razão neste caso é vista na perspectiva da quantidade, ou seja, há mais coisas no mundo do que o homem é capaz de imaginar: a razão é incapaz de organizar um universo infinito e descrever todas as relações de causa e efeito que constituem o universo. 683 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14. 681 189 submissa ao magistério das faculdades inferiores que são os sentidos e a imaginação.684 A capacidade de inversão de pontos de vista é o efeito induzido pela imaginação que desloca todo critério absoluto de análise, ou seja, há infinitos pontos do universo e cada um deles poderá ser tomado pela razão como parâmetro de análise deste mesmo universo e como conseqüência de tais mudanças haverá possibilidade de diferentes modos de organização do cosmos. Assim, a razão não produz cosmologia, mas cosmologias. Mas qual é a causa de tal efeito? Ferreyrolles afirma que essa inversão de pontos de vista tem como causa a “inversão original”. O pecado adâmico é a causa de todos os problemas que a imaginação traz para a razão e para os sentidos. Os sentidos e sua relação com a imaginação causam efeitos danosos à razão, de modo que as faculdades chamadas inferiores submetem a razão aos seus efeitos contingentes como descrevemos no exemplo do filósofo que caminha sobre a tábua. A razão que tem como característica a autonomia685 encontra-se submetida, de maneira que seu desejo de atingir o universal faz o homem reproduzir o pecado original: Adão e Eva deixaram-se levar pelo desejo de serem onipotentes, do mesmo modo que a imaginação. Esta ao revelar todo o seu poder no homem caído ao mesmo tempo em que sublinha o orgulho humano de compreender o todo, também mostra sua perda de poder686: ela fracassa como mostra o fragmento 199. Assim, a imaginação fere a 3ª ordem, ou seja, o ato imaginativo e sua relação com a onipotência é figura do pecado adâmico. O tour da imaginação é a maior característica sensível da onipotência de Deus687, pois ela pode imaginar muitas coisas – onipotência –, mas não pode imaginar tudo – fracasso. Imaginar tudo é conhecer as partes, o todo e a relação entre ambos. Desta maneira, Pascal coloca o conhecimento universal na relação e isto impossibilita o homem de obter um conhecimento universal e necessário. “A justiça e a verdade são duas pontas tão sutis que os nossos instrumentos são demasiadamente cegos para nelas tocar com exatidão.”.688 Verdade e justiça são colocadas sobre dois extremos com pontas sutis, ou seja, qualquer relação que tivermos com ela contaminamos a objetividade de 684 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 171. “[...] a filosofia grega é investigação racional, isto é, autônoma, que não assenta numa verdade já manifestada ou revelada mas somente na força da razão e nesta reconhece o seu único guia.”. (Nicola ABBAGNANO, História da filosofia. 2ª ed. v .I. Lisboa: Editorial Presença, 1970, p. 22). 686 Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 171. 687 “Enfim, é a maior característica sensível da onipotência de Deus que a nossa imaginação se perca neste pensamento.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 199, Bru. 72, p. 79). Pascal neste contexto faz referência à célebre imagem pascaliana da esfere infinita cujo centro esta em toda parte e a circunferência em parte alguma, todavia, é o movimento da imaginação se perdendo na compreenção desta imagem que Pascal caracterizará coma maior característica sensível da onipotência de Deus. 688 Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 16. 685 190 tais realidades correndo o risco de firmar-se mais sobre o falso do que sobre o verdadeiro. “Se conseguirem, vão achatar-lhes a ponta e apoiar à volta toda mais sobre o falso que sobre o verdadeiro.”.689 Achatar a ponta é a contaminação presente na relação entre o homem e a verdade/justiça. Mas porque tal relação significa apoiar mais sobre o falso do que sobre o verdadeiro, visto que a imaginação desqualifica todo critério e submete a razão? Sendo a razão a faculdade da autonomia, ao ser submetida pelas faculdades inferiores – sentido e imaginação – perde sua capacidade de discernimento e, diante disso, os enunciados da razão terão maior probabilidade de serem falsos devido as possibilidades de infinitas respostas para uma mesma questão, como é o caso do bem: “Para os filósofos, duzentos e oitenta soberanos bens”.690 Ou seja, há diversas formas de responder uma mesma pergunta e a capacidade humana de discernimento ver-se-ia submetida às potências que impedem o conhecimento objetivo. “O homem foi fabricado com tanto esmero que não tem nenhum princípio exato da verdade, e tem vários excelentes da falsidade.”.691 Pascal não diz que o homem não possui verdade, pois isso seria um dogma que vai de encontro com a contingência presente no sistema cognitivo humano, mas diz que ele não possui nenhum princípio exato, ou seja, há uma dificuldade de discernir tal princípio. Quanto à afirmação de que temos vários princípios de falsidade, ela até poderia parecer um trabalho de discernimento da razão, todavia, tal idéia é conseqüência de uma quantidade enorme de princípios, de modo que a maioria provavelmente devem ser falsos já que a imaginação coopera para tal resultado. Provavelmente não é certeza, é contingência. Mas o que impede a imaginação de imaginar o verdadeiro? Nada, pode ser que ela o faça, mas o problema é detectar isso. Portanto, os versados em imaginação, assim como Galileu e Pascal, não estão preocupados em discernir a verdade da falsidade ou encontrar a natureza das coisas, mas têm como foco fazer uso da imaginação para persuadir. Galileu na ciência, Pascal na ciência e na apologia à religião cristã. Desta maneira, caminhamos em direção à segunda questão que diferenciará os versados em imaginação e os prudentes. 2ª) Quem são os prudentes e porque os versados em imaginação disputam com domínio, audácia e confiança? Os prudentes são aqueles que não fazem uso da imaginação em seus discursos, desta maneira, agem com temor e desconfiança, pois desconhecem os desta potência enganosa e os possíveis resultados de tal uso. O temor e a desconfiança é o comportamento daquele que 689 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16. Ibid., Laf. 479, Bru. 74bis, p. 196. 691 Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 16. 690 191 desconhece os efeitos de seu discurso, algo contrário aos versados em imaginação. Estes olham as pessoas com domínio, audácia e confiança. Domínio daquilo que falam, domínio do efeito daquilo que falam, domínio da situação e do povo, este porém, vítima de um versado em imaginação. Audácia nos discursos, no uso das palavras, na mudança de pontos de vista e no uso do interesse daquele que escuta para estabilizar seu discurso. Confiança na capacidade preparatória da imaginação para associar um discurso à “verdade” que o versado quer estabelecer. Ferreyrolles destaca esta capacidade preparatória como algo presente em Pascal: [...] Pascal não sugere que Adão tenha sido criado desprovido da imaginação, e como nada pode sair das mãos de Deus que não seja “puro, santo e perfeito”692, resta que a imaginação, a instar de outras faculdades, é boa por natureza. Mas depois da queda, será possível fazer bom uso dela? Certamente, sabemos que ela diz algumas vezes a verdade, mas como distinguir entre fantasia e fantasia? Na ausência de critério, uma solução se oferece, que consiste justamente de não esperar da imaginação aquilo que ela não possa dar – a determinação da verdade – mas utilizá-la, mesmo em sua indiferença do verdadeiro e do falso, como puro instrumento a serviço da razão para preparála para descobrir o verdadeiro e torná-lo comunicável uma vez descoberto. Assim, se delimita um espaço onde o imaginário não é mais antagônico com o racional.693 Ferreyrolles afirma que a imaginação estava presente no homem antes do pecado e como Deus criou homem bom na sua integridade, a imaginação faz parte desta criação perfeita e boa. Depois da queda diríamos que ela torna-se a faculdade da contingência, colocando tanto o conhecimento do verdadeiro quanto do falso em um quadro de eqüipolência dissolvendo todo critério absoluto de análise. Mas a pergunta capital de Ferreyrolles é a seguinte: podemos fazer um bom uso da imaginação? Sua resposta é categórica: a solução é usar da imaginação como um instrumento capaz de preparar para descobrir o verdadeiro e torná-lo comunicável. Portanto, devemos subtrair a esperança de encontrar a verdade ou a falsidade pela imaginação, mas usar dela em favor da razão. Transformar a imaginação em um instrumento que coopera com a razão é dar maior prioridade à atividade persuasiva com todos os seus contornos que são o domínio, a disputa e a confiança. Preparar para a verdade não significa que encontraremos a mesma no sentido metafísico do termo, mas trata-se de 692 693 Blaise PASCAL, Écrits sur la grace, p. 312. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 187 – 188. 192 estabelecer verdades que os versados em imaginação querem fazer consentir e, a partir disso, preparar as pessoas para aprovarem tais idéias. Assim, não devemos esquecer que “[...] a imaginação assume o grande direito de persuadir os homens.”.694 Portanto, os hábeis em imaginação, ao contrário dos prudentes, agradam a si mesmos, por fazerem as pessoas consentir com suas idéias, e o efeito de tal agrado é a alegria no rosto dos versados em imaginação, que agradam os outros exercendo tal ofício pela persuasão695 e tirando vantagem ante a opinião dos ouvintes. Percebemos que a imaginação exerce seu papel pelo uso e resultado de seus efeitos, algo que os versados em imaginação sabem manejar. Desta maneira, procurando descrever tais efeitos, destacamos a nossa terceira pergunta. 3ª) Qual natureza é essa que possui os juízes, que um sábio imaginário desfruta a seu favor? Um sábio imaginário desfruta de favor junto aos juízes na medida em que ele usa da imaginação para persuadi-los. A mesma natureza que tem o povo que é persuadido pelo sábio imaginário também tem os juízes, ou seja, há uma grande quantidade de elementos circunstanciais que podem persuadir o juiz. A julgamento de uma causa irá depender destas vãs circunstâncias: como a voz rouca de um pregador ou a sua aparência. O caráter circunstancial de um julgamento desqualifica a objetividade do mesmo e coloca qualquer juízo sob o crivo da desconfiança, pois, mudando a circunstância, muda-se o julgamento. Pascal concede um exemplo do problema de circunstancializar o julgamento em suas Lettres Provinciales: os jesuítas sublinham que quando os termos não estão claros para uma decisão quanto à moral, eles se servem das “circunstâncias favoráveis”.696 Por exemplo: os papas excomungam um religioso que abandona seu hábito, mas os jesuítas sustentam que em algumas ocasiões os religiosos são autorizados a proceder desta forma, ou seja, por motivo de uma causa vergonhosa como furtar ou a ir à lugares de libertinagem. Desta maneira, se três papas dão o mesmo parecer afirmativo sobre um determinado assunto, os jesuítas sustentam que a opinião destes três papas é provável assim como a opinião oposta, ou seja, todas as opiniões são prováveis. Tal procedimento dos jesuítas é chamado de método da probabilidade. Assim, deixando toda a opinião dentro da esfera da probabilidade, “[...] não deixa de dizer que o contrário é também provável.”.697 Pascal considera tal procedimento em teologia um ato que aprovará qualquer tipo de libertinagem. Dizer que um acontecimento é circunstancial em teologia é aderir ao paganismo, em contra partida, tal procedimento fora do domínio teológico 694 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 171. 696 Blaise PASCAL, Les Provinciales, p. 393. 697 Ibid., p. 393. 695 193 é uma constante, de maneira que o homem está embarcado a agir desta forma.698 Trocar o essencial pelo circunstancial em teologia é aprovar a supremacia humana sobre Deus, algo desaprovado por Pascal e pelo jansenistas. Portanto, assim como os jesuítas produzem julgamentos circunstanciais em teologia, o juiz também está encarcerado na dinâmica circunstancial e impossibilitado de conceder um juízo claro e distinto. É da imaginação, com sua capacidade persuasiva, que provém os sobressaltos distintos diante das novas circunstâncias. “Quem confere a reputação, quem dá o respeito e a veneração às pessoas, aos livros, às leis, aos grandes, senão esta faculdade imaginária. Todas as riquezas da terra são insuficientes sem o seu consentimento.”.699 Em suma, a imaginação é uma faculdade da construção ou criação, sem ela a maior riqueza do mundo não teria valor nenhum: ela constrói respeito, a veneração entre as pessoas, a veneração aos livros, aos grandes, às leis, de modo que tais construções possuem uma relação com as circunstâncias tanto do indivíduo quanto do contexto que envolve o indivíduo e o objeto, de modo que a imaginação será sempre mediadora dos diferentes contextos. Diante desta atuação intermediária da imaginação, Pascal quando fala das leis chega a ser mais enfático acerca desta relação entre o circunstancial e o essencial: “Quem obedece a elas porque elas são justas, obedece à justiça que imagina, mas não a essência da lei.”.700 Percebemos que a essência da lei e as leis são diferentes. Entre a essência da lei e as circunstâncias reais que as leis se apresentam há um abismo de sobressaltos dirigidos pela imaginação, o que dificulta discernir o essencial do circunstancial. Caso venhamos a conhecer a essência da lei saberemos como praticar a justiça absoluta – o que não é garantia de obedecê-las –, mas como somente temos acesso à justiça que imaginamos, o que obedecemos são as condições circunstanciais que alguns homem criaram e chamaram de leis.701 Os comentadores Bras e Cléro também concordam com este caráter 698 Em um debate entre Alexandre Magno e um pirata capturado, Alexandre interroga o pirata sobre o que lhe fazia atormentar os mares com seus roubos. Diante disso o pirata responde: “O mesmo que te parece o manteres perturbada a Terra toda, com a diferença apenas de que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte, me chamam ladrão e a ti, que fazes com enorme esquadra, imperador.”. (Santo AGOSTINHO, Cidade de Deus. v. I. São Paulo: Vozes, 1990, IV, IV, p. 153). Santo Agostinho está relativizando a justiça humana e mostrando que aquele que detém a força determina a justiça em uma determinada circunstância. 699 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13. 700 Ibid., Laf. 60, Bru. 294, p. 22. 701 Um retorno às origens da leis nos mostra a fragilidade da lei e de sua construção, já que sua estabilidade dependerá de inúmeros acontecimentos que se encontram ao acaso. Tal fragilidade é destacada por Michael de Montaigne: “A autoridade das leis provém de existirem e terem passado para o costume; é perigoso fazê-las retornarem à sua origem. Como os rios que se avolumam com o rolar das águas, elas adquirem importância e consideração em se aplicando. Remontai-lhe o curso até a nascente e vereis um insignificante filete de água. Investigai os motivos que no início deram impulso a essa torrente de leis e costumes, hoje considerável e cheio de dignidade, temor e veneração. Vós os achareis tão frágeis, tão pequenos, que não é estranho que esses filósofos que tudo perscrutam, que tudo submetem ao exame da razão, nada admitindo sem autoridade, os julgarem tão diferentemente do resto do mundo.” (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 488). 194 depreciativo da circunstância para o conhecimento da verdade. “As circunstâncias são inseparavelmente as condições de possibilidade de julgamento e que por isso compromete a justeza.”.702 Diante destes problemas acima, destacamos que os juízes são homens que além de serem persuadidos ou vítimas das circunstâncias que os afetam no ato de julgar, também são persuadidos, pela ação da imaginação, que as leis que balizam as ações são leis essências. Para Pascal tanto o ato de julgar como as leis que balizam tal julgamento são contingentes, ou seja, sujeitas à mudança em qualquer momento histórico.703 “Assim, a imaginação nos leva a confundir aquilo que é essencial e aquilo que é acidental.”704, destaca Bras e Cléro. Portanto, os juízes são persuadidos que a lei é justa na sua essência e os versados em imaginação, conhecendo o caráter circunstancial tanto da lei como da interpretação da lei pelos juízes, usam de tais conhecimentos para produzir argumentos a seu favor. Assim fazer-se-ia necessária uma análise da ação efetiva de um juiz em seu trabalho para destacarmos como a imaginação atuará. 2.5 - O juiz e a imaginação. Depois de analisada esta relação entre o essencial e o circunstancial a nível teórico, vejamos como Pascal descreverá os elementos que os ouvintes acreditam determinar um juízo, a ação do juiz no julgamento de uma dada sentença, qual o efeito da imaginação neste processo, ou seja, como a imaginação atua em um juiz. Não direis que aquele magistrado, cuja velhice venerável impõe o respeito a todo um povo, se pauta por uma razão pura e sublime e que julga as coisas por sua natureza sem se deter naquelas vãs circunstâncias que só ferem a imaginação dos fracos. Vede-o entrar em um sermão, em que coloca um zelo devotíssimo reforçando a solidez de sua razão com o ardor de sua caridade; lá está ele pronto para ouvi-lo com um respeito exemplar. Apareça o pregador: se a natureza lhe deu uma voz rouquenta e feições estranhas, se o barbeiro não o barbeou direito, se além disso o acaso o salpicou de manchas, por maiores que 702 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 14. “O furto, o incesto, o assassínio das crianças e dos pais, tudo teve seu lugar entre as ações virtuosas.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 60, Bru. 294, p. 22). Pascal historiciza a legitimidade das ações, de modo que a conseqüência disso é circunstanciar tanto as ações virtuosas quanto legitimar os mais horrendos crimes. 704 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 13. 703 195 sejam as verdades que ele esteja pregando, eu aposto na perda da gravidade do nosso senador.705 Antes de descrever a ação dos juízes Pascal destaca alguns elementos que os ouvintes acreditam serem necessários e essenciais para os juízes, de modo que tais elementos causam confiança às pessoas. São eles: a velhice, a razão, o julgamento pela natureza, e as impassíveis circunstâncias. A velhice é garantia de confiança na medida que a idéia de experiência em um assunto está ligada ao tempo de vida: a idade de um juiz está associada a sua autoridade, ou seja, a idade é diretamente proporcional à confiabilidade. Quando Pascal fala de “velhice” sustentamos que mais dois conceitos estão encadeados ao mesmo: autoridade e confiança. A velhice é venerável porquê impõe respeito. Tal respeito também tem como ingrediente colaborador a razão. Ela garante, para os ouvintes, a objetividade do julgamento. É ela que consegue, pensam os ouvintes, aproximar os parâmetros legais constituídos e a ação a ser julgada. Aproximando a lei da ação é possível discernir se a ação está dentro dos padrões legais ou se a mesma destoa. A razão, pensam aqueles que veneram os juízes, é vista como a faculdade que garante a justeza de um julgamento. Este porém, está de acordo com a natureza: ou seja, a lei é justa na sua essência. “Em todos os casos, o julgamento humano acredita encontrar a essência naquilo que só é acidente.”706, dirá Mesnard analisando alguns aspectos da miséria humana em Pascal. Os ouvintes pensam que a lei traduz a realidade última e necessária daquilo que os homens devem fazer. Uma lei é natural porque espelha o dever e o telos de cada homem no mundo. Assim, conhecer a natureza de uma lei é estar livre de todo aspecto circunstancial que poderia afetar um julgamento. Portanto, os ouvintes acreditam na autoridade daquele que julga. Tal autoridade manifesta-se de quatro maneiras: 1) na velhice do juiz; 2) na sua razão suficiente, presente na sua capacidade de aproximar os parâmetros legais às ações e, depois disso, julgar, discernindo o que é certo e errado; 3) na natureza da lei, manifesta na orientação do papel do homem no mundo de maneira necessária e objetiva; 4) acreditam que a capacidade racional do juiz está além das circunstâncias que poderiam afetar seu discurso. Eis a visão que o ouvinte tem do magistrado. Agora, vamos descrever como o juiz efetivamente age diante de um julgamento, ou seja, qual é o efeito da imaginação na ação desta autoridade. 705 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13. As vírgulas desta passagem foram colocadas pelo escritor deste trabalho, visto que as mesmas facilitam a compreensão do texto. 706 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 191. 196 Estando o magistrado pronto para ouvir, aparece o pregador. Mas como tal pregador se apresenta? Pascal descreve: voz rouca, feições estranhas, barba mal feita e manchas na pele. E qual é a atitude do impassível magistrado? Pascal na passagem acima aposta na “perda da gravidade do nosso senador.” Quem seria este senador? Tal senador é o próprio juiz, pois diante de tal cena tudo aquilo que era garantia de sua eqüidade e justeza desabam no riso, como afirma Mesnard: “É a onipotência da imaginação que faz tomar o acessório por essencial, que faz o magistrado rir da audição de um importante sermão porquê o pregador está mal barbeado.”.707 Por maiores que sejam as verdades que o pregador descreve o juiz será incapaz de apresentar um comportamento que supera tal circunstância. A manifestação do riso é o efeito da imaginação que supera a autoridade da “velhice”, impede o discernimento da “razão” para um julgamento claro e distinto, desqualifica a lei que tem pretensões naturalistas e essenciais e submete o juiz à circunstância que se apresenta: “por maiores que sejam as verdades que o esteja pregando”708 o pregador tem seu discurso desqualificado por vãs e superficiais circunstâncias que desqualificam seu discurso A atitude do juiz é o riso causado pela imaginação. O riso não é transparente no fragmento, porém, tal atitude está implícita na descrição do fragmento. Pascal entende que o riso do magistrado é o mesmo riso que causa no leitor quando lê tal fragmento. Mesnard, como já vimos, destaca tal riso, assim como Ferreyrolles. Este afirma que o personagem mais sério e impassível de uma assembléia, o juiz, diante de um pregador “careteiro”709, perde a seriedade e apresenta-se como alguém que está “estourando”710 de tanta vontade de rir. O povo, ao constatar a hilária cena do aparecimento do pregador e o juiz afetado por esta vã circunstância, se coloca a rir. O juiz também é afetado pelo riso do povo e liberta o riso. Portanto, o riso volta para sua fonte: o próprio juiz. A imaginação através do riso produz seu efeito. Mas o efeito poderia ser outro? Para Pascal poderia, e é aí que a contingência fazer-se-ia manifesta, como vemos no fragmento 54 dos Pensées: “Daí vem que se chora e se ri de uma mesma coisa.”.711 Os efeitos da imaginação flutuam de pessoa para pessoa, assim a imaginação revela seus contornos gestalticos: sob uma mesma imagem e estímulos os sujeitos possuem diferentes reações ou um mesmo sujeito possui reações diferentes frente a um mesmo acontecimento visto em tempos distintos. Eis uma foto da contingência: a incapacidade da razão de determinar com toda certeza a previsibilidade de uma reação. Neste sentido os versados em imaginação ao pressupor os 707 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 194. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 13. 709 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 145. Que faz caretas. 710 Ibid., p. 145. 711 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 54, Bru. 112, p. 19. 708 197 efeitos contingentes da imaginação poderiam fracassar na sua empreitada, todavia, tentar entender estes efeitos e compreender minimamente as possíveis efeitos é fazer-se pensador na contingência, como o faz Pascal. Assim, Ferreyrolles também admite tal imprevisibilidade das vãs circunstancias que nos afetam: “A oposição pascaliana do fragmento 44 [...] entre a “natureza” das coisas e as “vãs circunstancias que ferem a imaginação define suficientemente o lugar de sua pertença: ela é uma faculdade dos acidentes sensíveis.”. 712 A imaginação é considerada aquela faculdade que acarreta uma infinidade de acidentes sensíveis, ou seja, a recepção dos sentido é sempre contingente visto que muda pela distância que se tem do objeto, o tempo que o sujeito interage com ele, a posição com que o mesmo se encontra: todos estes pontos impedem o discernimento da natureza do objeto.713 Cada sensação é um acidente. Assim, depois que verificamos os elementos que os ouvintes acreditam determinar um juízo, a ação efetiva do juiz no momento de um julgamento e o efeito da imaginação na relação ouvinte e juiz, tentaremos descrever com detalhes como a imaginação produz seus efeitos. 2.6 - Nas filigranas do conceito: a máquina imaginativa. Em seu livro Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, Ferreyrolles faz a descrição da ação da imaginação, ou seja, não se trata somente de perceber o riso do juiz como fizemos acima, mas de sublinhar as filigranas da atuação da imaginação. Vejamos: A aparência apreendia impressiona, com efeito, a imaginação, que retornando, comunica sua perturbação ao corpo; um outro corpo percebe tal perturbação e, por intermédio da imaginação que o habita, encontra-se a seu tour afetado: assim inicia-se uma seqüência cujo fim não é sempre assinalável. Um traço próprio da imaginação revela-se aqui, a saber, sua contagiosidade. 714 Um fato apresenta-se aos sentidos. Tal fato impressiona a imaginação e conseqüentemente, a razão; visto que razão e imaginação estão intrinsecamente ligadas. A razão interpreta e, junto com a imaginação devolve tal impressão interpretada ao corpo, ou 712 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 142. Estes diferentes elementos acidentais que interferem no julgamento do essencial é destacada por Michael de Montaigne. As circunstâncias de um julgamento muda a sentença de um mesmo tribunal: “Por isso não há processo, por mais claro que seja, cujo respeito as opiniões não variem. O que julga um tribunal é por outro reformado. Acontece até que o mesmo tribunal, julgando de novo, julgue diferentemente da primeira vez.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 487). 714 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 145. 713 198 seja, para os sentidos. Desta maneira, o corpo reage em decorrência de tal retorno e manifesta um efeito que chamamos efeito da imaginação. Assim, a máquina imaginativa, nome que designamos ao procedimento da imaginação, apresenta 5 etapas: 1ª etapa: O corpo (sentidos) é afetado. 2ª etapa: A imaginação é impressionada, assim como a razão, pois ambas estão ligadas. 3ª etapa: A razão interpreta, junto à imaginação. 4ª etapa: A imaginação e a razão devolvem a interpretação da razão ao corpo. 5ª etapa: O corpo produz um efeito. Mas vejamos como tal procedimento se aplica no caso do juiz impassível que está pronto para receber o pregador rouquenho. 1ª etapa: O juiz tem os sentido afetado por um acontecimento: o aparecimento do pregador. 2ª etapa: A imaginação capta as impressões junto à razão: voz rouca, feições estranhas, barba mal feita e manchas na pele 3ª etapa: A razão do juiz junto à imaginação interpreta a impressão do pregador. 4ª etapa: Depois de interpretada a imaginação e a razão devolvem a interpretação que fizeram ao corpo. 5ª etapa: O corpo manifesta a ação da imaginação e da razão: o riso. Descrito os procedimentos daquilo que chamamos de máquina imaginativa, Ferreyrolles continua sua análise e sublinha que se inicia uma seqüência de acontecimentos que fazem parte desta máquina imaginativa – Ferreyrolles não usa deste slogam, nós que o criamos – que são difíceis de assinalar, detectar e discernir em sua totalidade suas causas e seus efeitos, ou seja, seu contágio. Mas que contagiosidade é esta? O fragmento 828 poderá nos ajudar a responder tal questão. Vejamos: As cordas que amarram o respeito de uns para com os outros em geral são cordas de necessidade; pois é preciso que haja diferentes graus, por quererem todos os homens dominar e nem todos o poderem, mas apenas alguns poderem. [...] Ora, essas cordas que amarram, pois o respeito a tal ou tal particular são cordas de imaginação.715 715 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 828, Bru. 304, p. 328; grifo meu. 199 Neste fragmento Pascal expõe aquilo que ele chama de cordas de imaginação. Tal conceito é importante para nós porque esclarece como a máquina imaginativa continua funcionando, ou seja, seu contágio. Ele inicia falando sobre o respeito entre os homens, tal respeito é amarrado por cordas de necessidade, ou seja, um juiz é necessariamente respeitado por todos. Só um louco desrespeitaria um juiz. Para Pascal é a imaginação que constrói tal respeito de forma tão bem elaborada que as pessoas imaginam ser uma verdade incontestável o respeito e a veneração aos juízes. Pascal sabe que tal efeito da imaginação ao naturalizar o respeito é digno de contestação. Assim ele afirma fazendo referência aos juízes: “Que deus engraçado, esse. O ridicolosissime herói!”.716 Pascal é irônico ao considerar os juízes, mas não nega a necessidade do respeito salientando que é preciso que o tenhamos uns pelos outros em diferentes graus, pois todos os homens tem uma ânsia de dominar. A motivação do filósofo francês é desconstruir esta idéia de que um juiz é uma espécie de deus na terra e ao mesmo tempo mostrar a necessidade do respeito. Essa é a radiografia que faço do fragmento. Mas no que ele é interessante pra nós? Na verdade, as cordas de imaginação produzem um efeito dominó nos corpos como é o caso da cena do juiz e do pregador. A vontade de rir do juiz está ligada com o riso do povo, tal riso do povo esta ligado pelas cordas de imaginação ao mesmo juiz que ao contemplar o povo rindo liberta seu riso que estava preso. Há uma ligação de causa e efeito entre todos os comportamentos desta cena, entretanto, isto não significa que será sempre assim. Em uma outra situação as cordas de imaginação poderão agir necessariamente de outra forma. Assim, as cordas de imaginação tem como marca o contágio, pois elas distribuem seus efeitos nos corpos estabelecendo uma rede de relações contingentes, pois não temos garantia que estas cordas funcionarão sempre da mesma maneira, ou seja, necessariamente da mesma maneira. A necessidade que Pascal associa a estas cordas é sempre circunstancial. Eis mais um efeito da imaginação: ela tenta estabelecer como ligação necessária aquilo que é contingente. Como? Estabelecendo ligações necessárias em um mundo cheio de contingência, a imaginação será a produtora de uma rede de leis e comportamentos de uma determinada região ou acontecimento – circunstância – que permitirá organizar as relações sociais. Portanto, da mesma maneira que a imaginação, no caso do juiz, construiu uma rede de ligações causais manifestas nas reações tanto do juiz como do povo que pareceriam necessárias, ela também constrói uma rede de relações que parecem necessárias e universais na organização da vida em sociedade. Mesnard destaca esta interferência na contingência quando se introduz uma lei, uma regra, uma ordem: “Na desordem e na 716 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 48, Bru. 366, p. 18 200 contingência, uma ordem, uma solidez são introduzidas.”.717 A introdução de uma lei que regula as relações sociais é produzida pela imaginação que estabelece a ordem construída como lei natural. Mas quem faz este papel ao persuadir as pessoas? Os versados em imaginação usam da potência enganosa para estabelecer relações sociais que possam mitigar a contingência. Vimos que Pascal e Galileu são estes homens versados em imaginação na ciência, todavia, destacamos que o próprio Pascal indica quem são estes homens versados em imaginação na política: “Se escreveram sobre política, foi para regulamentar um hospital de loucos.”718, fazendo referência aos escritos políticos de Platão e Aristóteles. E ele explica: “Entram nos princípios destes para limitar sua loucura ao menor mal possível.”.719 Tal comentário de Pascal está de acordo com nossa posição: a imaginação, construtora da rede de relações entre os homens pelas cordas de imaginação, tenta limitar a loucura – contingência, na medida que Pascal se refere ao caos de uma cidade – ao menor mal possível, ou seja, mitigar a contingência. As cordas de imaginação auxiliam o versado em imaginação a construir uma rede de relações relativamente estáveis que permitiria a vida em sociedade. A estabilidade da vida social é mais um efeito da imaginação, todavia, não é o único. Uma outra organização destas cordas da imaginação poderá estabilizar o caos diferetemente. Mas então quantos efeitos a imaginação é capaz de produzir? Recorremos ao fragmento 44 que propomos analisar detidamente para responder esta pergunta: “Não quero fazer um relatório de todos os efeitos da imaginação [...]”.720 Pascal não tem como proposta descrever todos os efeitos da imaginação, todavia, esta afirmação traz luz à posição do autor em relação aos efeitos da imaginação: há uma infinidade deles. As infinitas possibilidades de efeitos que a imaginação pode causar é também um traço da contingência que impede de determinar com toda certeza o que uma causa poderá necessariamente construir em seu efeito. Alguns destes efeitos contingentes discutimos acima quando descrevemos que o juiz não é um sujeito impassível ao julgar e como se dá a construção de uma lei estando ela sujeita a imaginação das pessoas que somente obedecem a justiça que imaginam. Mas podemos constatar outros efeitos nos quais a imaginação também tem o seu papel. Eles estão em duas obras de Pascal: nos Pensamentos e nos e Trois discours sur la condition des grands.721 Nelas, verificamos a ação da imaginação e seus efeitos contingentes, a saber: 1º) na herança de um cargo político; 2º) na herança de uma fortuna; 3º) 717 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 207. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 532, Bru. 373, p. 243. 719 Ibid., Laf. 532, Bru. 373, p. 243 720 Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 13. 721 Idem, Trois discours sur la condition des grands, p. 366 – 368. 718 201 na escolha de uma profissão; 4ª) na confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação com a instrução. 1º) Quanto à herança de um cargo, Pascal afirma que o mesmo é fruto da contingência, ou seja, das infinitas possibilidades para se herdar um cargo, uma regra se estabiliza, de tal forma que um determinado grupo de pessoas são beneficiadas. Vejamos a imagem pascaliana que ilustra tal procedimento: Um homem é lançado pela tempestade a uma ilha desconhecida, na qual os habitantes tinham dificuldade de encontrar seu rei que estava perdido; e, tendo muita semelhança de corpo e de rosto com este rei, ele é confundido, e reconhecido como rei por todo o povo. Inicialmente ele não sabia qual partido tomar; mas resolveu, enfim, a consentir com sua boa fortuna. Ele recebeu todas as homenagens que lhe quiseram prestar e deixou que o tratassem como rei.722 Um homem enfrenta uma tempestade e é lançado a uma ilha. Chegando na ilha o que ele encontra? Um povo que procura seu rei desaparecido. Mas o que este povo encontra? Um homem que tem as mesmas características de seu rei, assim, são confundidos pelos sentidos e acreditam que tal homem é o verdadeiro rei que havia desaparecido. O náufrago sentia-se confuso no início, mas aceita as honras a ele atribuídas. Eis como dar-se-ia a herança de um cargo. A imagem acima descrita poderá ser analisada em três momentos: em primeiro lugar as infinitas possibilidades de herdar um cargo; em segundo lugar, uma destas possibilidades se estabiliza pelo costume723; e a terceira, uma pessoa é beneficiada. Primeiro momento. A tempestade atinge o barco do navegante, entretanto, poderia não tê-lo atingido. O homem é lançado – ele não se lança, mas é lançado – a uma ilha, mas poderia ter morrido ou ter sido lançado a uma outra ilha. O povo da região procura seu rei que desapareceu, mas poderia acontecer que o rei estivesse presente. O homem que naufragou tem as mesmas características do rei procurado, mas poderia não ter. O povo associa a imagem do rei ao náufrago, mas poderia não apresentar este erro nos sentidos, de tal forma que conseguissem discernir corretamente. Ao homem é concedida a coroa de rei, todavia, ele 722 Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 366. “A estupefaciente eficácia do costume é escandalosa.”. (Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la pensée de Pascal, p. 19). Esta afirmação destaca o costume como ferramenta útil para a estabilização das normas de uma sociedade. 723 202 poderia aceitar ou não. O homem aceita o cargo permanecendo em silêncio e é favorecido pelas seqüências de fatos contingentes que contribuíram para a herança do seu novo cargo. Segundo momento: Diante do conjunto de possibilidades acima, quatro princípios incontestáveis faziam parte do costume do povo que procurava seu rei. O rei verdadeiro estava perdido, vivo, tem uma fisionomia única que podemos reconhecer infalivelmente e quando for encontrado voltará a assumir sua função de rei imediatamente.724 Terceiro momento: O náufrago atende a todas as demandas necessárias para ser rei. Ele estava perdido, vivo, tinha semelhanças físicas com o rei e toma seu posto imediatamente consentindo com as homenagens que lhe foram prestadas. Diante destes três momentos podemos verificar que a imaginação e a contingência criam uma ordem em um determinado contexto social na medida que estabelece as funções e cargos de cada um. No primeiro momento a contingência dos fatos lança as possibilidades do povo encontrar seu rei e do náufrago assumir tal posto ao acaso. Em um segundo momento a imaginação frente às inúmeras possibilidades de princípios estabiliza quatro deles como certos e indubitáveis. No terceiro, há um encontro contingente entre as características do náufrago e os princípios estabelecidos no imaginário do povo, de modo que a imaginação não cria nenhuma possibilidade de dúvida e o novo rei assume o risco de tomar para si o reinado. A grandeza do cargo do naufrago é proporcional ao risco que ele corre de ser descoberto.725 Portanto, nesta passagem do náufrago, eis um efeito da imaginação que auxiliou um povo preencher o posto de rei em seu contexto. Todavia, sabemos que se o povo buscasse um assassino e o náufrago tivesse as mesmas características deste assassino a história poderia ser outra. Reconhecido as dificuldades e a função da imaginação para a posse ou herança de um cargo, vejamos como a imaginação atua para a herança de uma fortuna. 2º) Sustentamos com Pascal que a imaginação também exerce seu papel na herança das riquezas. “Não imagineis que seja por um acaso menor que possuís as riquezas as quais vos achais senhor, do que aquele acaso pelo qual aquele homem se achava rei.”.726 As riquezas que um homem possui dependerá da vontade dos legisladores, visto que não há nenhuma lei natural que garanta que um bem poderá ser herdado de pai para filho. Os três momentos que descrevemos iluminam como dar-se-ia a posse das riquezas. Primeiro, as 724 Estes três elementos formam uma espécie de carga-meta-teórica-latente, ou seja, um conhecimento prévio que permitirá o juízo do povo ser favorável ou não ao náufrago. A idéia de carga-meta-teórica é destacada por Thomas S. Kuhn: “O que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o ensinou a ver.”. (Thomas S. KUHN, A estrutura das revoluções científicas. 6ª ed. trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora perspectiva, 2001, p. 148). 725 Cf. Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la pensée de Pascal, p. 14. 726 Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 366. 203 possibilidades pelas quais alguém pode herdar um bem são infinitas: “Se fosse do agrado dos legisladores ordenar que estes bens, depois de terem sido possuídos pelos pais durante a vida, retornariam à república depois da morte deles, vós não teríeis nenhuma razão para se lamentar.”727; segundo, a imaginação estabiliza algum(s) princípio, dentre muitos por suas cordas de necessidade, por exemplo: é justo que uma herança seja dada ao filho do moribundo; o terceiro, conseqüentemente, alguns são beneficiados. Tal procedimento também é destacado por Pascal na escolha de uma profissão. 3º) Pascal sustenta que a escolha de uma profissão é sempre feita ao acaso, ou seja, há uma quantidade de elementos que interagem para que as pessoas escolham o que elas desejarão fazer por toda vida. Salto de sapato. Como é uma peça trabalhada! Aí está um operário habilidoso! Como esse soldado é audaz! Eis aí a fonte de nossas tendências e da escolha das condições. Que fulano bebe bem, que sicrano bebe pouco: eis o que faz as pessoas serem sóbrias e beberronas, soldados, poltrões etc...728 O elogio talvez seja o motivo pelo qual uma pessoa escolhe uma profissão. Sendo o salto do sapato digno de admiração, tal admiração poderá concorrer para que um homem sinta-se chamado a ser um sapateiro. A contingência aparece na medida que uma pessoa sai de casa e encontra um sapateiro sendo elogiado: tal circunstância o motiva a construir peças de sapato dignas de serem elogiadas. Thirouin destaca que a contingência na escolha de uma profissão é um contraponto à noção de vocação natural: “A profissão é o símbolo de uma contingência verdadeiramente atrás daquilo que se acredita ser a natureza de um homem.”.729 A circunstância contingente capaz de motivar um homem a uma determinada escolha revela que Pascal entende que o homem é um ser altamente influenciável. A escolha de uma profissão, assim como o trabalho que se aperfeiçoa a cada dia, estabelece um julgamento naturalista: o homem é um ser que tem uma vocação empregatícia no mundo. Diante disso, verificamos os três momentos que contribuíram para a escolha de uma profissão e sua relação com a imaginação. No primeiro, há uma quantidade de profissões e possibilidades contingentes de escolhas; no segundo, a imaginação estabelece o princípio de que é a admiração que as outras pessoas tem por uma determinada profissão que será o critério para a 727 Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 366. Idem, Pensamentos, Laf. 35, Bru. 117, p. 11. 729 Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la penseé de Pascal, p. 19. 728 204 escolha da mesma; no terceiro, um homem sai na rua em busca de uma profissão digna de sua escolha e encontra um sapateiro sendo elogiado. Tal circunstância é o suficiente para sua decisão: vou ser um sapateiro!730 4º) Por último, tentaremos detectar o papel da imaginação no confronto sempre problemático entre a confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação com a educação. Vejamos. As impressões antigas não são as únicas capazes de nos enganar; os encantos da novidade têm o mesmo poder. Daí vem toda disputa dos homens que se censuram quer por seguir as suas falsas impressões da infância, quer por temerariamente correrem atrás das novas. Quem mantém o meio termo apareça e prove. Não há princípio, por mais natural que possa ser, mesmo desde a infância, (que não se) faça passar por uma falsa impressão, seja de instrução seja de sentidos.731 Na passagem acima há dois ítens que concorrem para a formação do erro: as impressões antigas e as novas impressões. As impressões antigas dizem respeito à educação e as novas impressões à ciência. Pascal destaca que a luta entre os homens na ciência é marcada pela contínua censura entre os que acusam uns aos outros ou de seguir a tradição ou de criar novidades que outorgam maior inteligibilidade a um fato. Pascal pontua esta discussão entre autoridade da tradição e novidades na ciência no Préface sur le traité du vide, texto que já apresentamos sucintamente no primeiro capítulo deste trabalho. Sabemos que Pascal acredita que a tradição em teologia é de grande valia, sendo que para ele o retorno às origens é uma forma de mitigar a entropia da mensagem cristã, mas em física o procedimento é totalmente contrário, ou seja, será a novidade dos raciocínios que prevalecerá. Na citação acima a teologia não está em questão, mas somente a ciência. A discussão sobre o vácuo entre Pascal e os jesuítas esclarece esta polêmica: Pascal defendendo o raciocínio para sustentar seus argumentos e os jesuítas citando Aristóteles. A dúvida que Pascal coloca é que não há nenhum critério que possa validar com toda certeza qual seria o procedimento verdadeiro. Conhecer um método verdadeiro é conhecer o meio termo, ou seja, é conhecer um ponto fixo que sirva como critério último de análise. Encontrar tal ponto é um desafio que Pascal propõe a qualquer um que tenha pretensões de buscá-lo. Depois de propor tal desafio ele descreve sua 730 731 Ver Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la penseé de Pascal, p. 18 – 19. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15 – 16. 205 opinião: um princípio, por mais natural que ele pareça ser – como por exemplo, que duas retas paralelas nunca irão se encontrar – poderá passar por uma falsa impressão. Esta falsa impressão poderá ser fruto ou dos sentidos – da experiência do cientista –, ou da instrução – educação e repetição contínua de um professor de que duas retas paralelas nunca irão se encontrar ou que (-1) x (-1) = +1. Sabemos que tanto a ciência e a instrução possuem um vínculo com o costume. Desta maneira, a imaginação é que estabiliza o costume do cientista de assentir a novidade que ele prega, assim como é a imaginação que produz o costume do aluno de assentir ao enunciado ensinado pelo professor. Esta repetição produzida pela imaginação poderá tender tanto do lado daquele que pensa dever buscar uma novidade sobre um determinado assunto – Pascal defendia esta perspectiva em se tratando de física –, ou para o lado daquele que se fixa na instrução de outrem – como é o caso de alguns jesuítas que para defender suas idéias em física usavam de argumentos de autoridade: a contingência apresentase, no entanto, a imaginação fixa tais sujeitos em um destes pólos e os mesmos acreditam que suas opiniões são naturalmente claras e distintas. Diante disso, o comentador Ferreyrolles acredita que o costume tem uma função importante para compor a opinião dos homens: “[...] visto que a duração é que faz sua essência, isto é dizer igualmente que o costume é razoável por definição.”.732 Como sabemos, razoável quer dizer condições favoráveis, ou seja, o costume com sua duração produz condições favoráveis para o assentimento. Assim, é a imaginação que constrói um costume e o conhecimento torna-se um costume que se estabilizou. Portanto, diante deste embate entre ciência e educação mediado pela ação criadora da imaginação e a estabilização de uma certa razoabilidade pelo costume, vejamos um exemplo que Pascal concede. Porque acreditaste desde a infância, dizem alguns, que um cofre estava vazio, quando nele nada víeis, acreditastes ser possível o vazio. É uma ilusão dos vossos sentidos, fortalecida pelo costume, que precisa ser corrigida pela ciência. E outros dizem que, porque vos foi dito na escola que não existe o vácuo, corromperam o vosso senso comum que o entendia tão claramente antes dessa má impressão, que é preciso corrigir recorrendo a vossa primeira natureza.733 732 733 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 86. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16. 206 Mais uma vez ciência e instrução – ou educação – se chocam. Pascal descreve dois grupos de pessoas: uns que acreditam desde a infância que um cofre é vazio porque nunca viram nada dentro dele. Este é um argumento insuficiente, pois tanto a ilusão dos vossos sentidos como o costume de não ver nada podem colaborar com o erro destes sujeitos. Tal erro poderá ser corrigido pela ciência. Assim, não se trata de recorrer a uma simples experiência comum para resolver um problema de física. Em contrapartida, outros escutaram na escola que o vácuo não existe e assim tiveram seu senso comum corrompido, assim, eles precisam recorrer àquela primeira natureza infantil, na qual acreditavam não haver nada no cofre por não conseguirem ver nada dentro dele. Portanto, pode ser que os primeiros tenham sido enganados pelos sentidos e os últimos o foram pela instrução. Diante da dúvida Pascal faz duas perguntas: “Quem então enganou? Os sentidos ou a instrução?”.734 Ferreyrolles nos ajudará a responder a primeira pergunta. Ora, sobre esta questão precisa da possibilidade do vazio, temos a resposta da física pascaliana. Entre as duas proposições que desmistificam, os sentidos ligados ao costume, e a outra a instrução, a balança não é igual: o sentido e o costume dizem a verdade”735 Ele sublinha que para Pascal o erro está naqueles que tomam os obstinados argumentos de seus tutores como verdades irrefutáveis. A verdade de um argumento prevalecerá quando o físico recorre à experiência. Lembramos que verdade para Pascal é conciliar as regras de um método estabelecido com as conseqüências da experiência realizada. Tal experiência sempre irá recorrer aos sentidos, pois para Pascal “[...] as percepções dos sentidos são sempre verdadeiras.”.736 Não se trata de dizer que Pascal é um positivista dogmático, sua afirmação é de um físico que não nega que um pesquisador deverá recorrer à experiência, todavia, a “natureza” desta experiência é a imaginação, com seu papel mediador entre os sentidos e a razão, que irá determinar. O método é uma tentativa de amenizar os sobressaltos da imaginação. Em contrapartida, criando novas formas de experiência, ou matematizando as experiências pelo método, a imaginação sempre fará o homem delirar. Ou ele delira criando um método, ou delira detendo-se em um método, pois quantas possibilidades de métodos há? O que faz um pesquisador deter-se em um só? Se para Descartes a verdade é alcançada com o uso de um método que permitirá um conhecimento 734 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 56. 736 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 702, Bru. 507, p. 287. 735 207 claro e distinto, para Pascal o método coage o resultado da análise: cada método escolhido terá um resultado diferente. A contingência poderá ser mitigada, mas nunca expulsa do horizonte humano. Da mesma forma na teologia: o pecado poderá ser amenizado, mas é pedagógico que os mais santos pequem para que não sejam invadidos pelo orgulho. Verificamos uma sintonia entre a ciência e a teologia de Pascal, mas se na teologia a instrução dos Pais da Igreja é o método, na ciência será o raciocínio: os sentidos e o costume que estabilizarão um argumento. Os sentidos são as experiências que o cientista constrói e o costume envolverá outros fatores como as imagens que o sujeito recebeu desde os primeiros anos de sua vida, sua formação intelectual, os costumes nacionais de pesquisa, as reflexões que o sujeito julgou entender e os argumentos que o impressionaram.737 Mas o que seria um costume sem experiência? Na verdade é isso que compõe a instrução: “Uma opinião é considerada como válida simplesmente porque ela já foi válida, e a sucessão do consentimento acrescenta ainda sua autoridade: o costume não tem outra justificação senão ele mesmo.”.738 Se a experiência com todos os seus problemas é critério para corroborar uma teoria em física, a falta da experiência é uma típica repetição de um argumento que tem validade em si mesmo pela autoridade daquele que é citado, ou seja, do tutor. A foz da relação conturbada entre a posição do cientista que recorre a experiência e daquele que se instrui por outrem é a manifestação do espanto de Pascal no fragmento 129: “Quantas errâncias! E por que acaso cada um toma, geralmente, aquilo que ouviu ser estimado. Salto bem torneado.”.739 Aquilo que se ouviu estimar, como um salto torneado de um sapato é critério para a escolha de uma profissão como vimos acima, assim como será critério para alguns darem consentimento a obstinação de alguns pensadores. Desta maneira, podemos verificar os três momentos que descreveram a ação da imaginação e seus efeitos contingentes tanto na herança de um cargo político, assim como na herança de uma fortuna, escolha de uma profissão e, neste agora, a confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação com a instrução. Em um primeiro momento, há diferentes possibilidades de consentir, ou pela experiência (sentidos) e costume, ou pelo costume da instrução; no segundo momento a imaginação estabiliza um dos dois; e no último, o assentimento que um sujeito outorga a um determinado raciocínio dependerá daquilo que a imaginação estabilizou como princípio: se foi o costume da instrução, o agente do conhecimento irá repetir um argumento famoso de um pensador aceito por um determinado contexto de intelectuais; se foi o raciocínio pela 737 Ver Laurent THIROUIN, Le hasard et les règles, le modele du jeu dans la pensée de Pascal, p. 18. Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 23. 739 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 129, Bru. 116, p. 44. 738 208 experiência, o pensador construirá um método que será aplicado em um determinado fato e a partir daí o cientista tirará conseqüências desta aplicação. Portanto, estes quatro efeitos da imaginação que descrevemos manifestam a contingência em ítens de grande importância para o consentimento, ou seja, na herança de um cargo político e fortuna, na escolha de uma profissão e na relação ciência e instrução, todavia, se a imaginação é capaz de construir princípios que se manifestam claramente e determinam nossos juízos, Pascal também descreve outros efeitos mais tênues que são causados pela imaginação e que são capazes de contribuir no processo de transfiguração das decisões, a saber: [...] quem não sabe que a vista dos gatos, dos ratos, o esmagamento de uma brasa etc. levam a razão para fora dos gonzos. O tom de voz se impõe aos mais sábios e muda a força de um discurso e de um poema.740 Se uma nova organização das leis realizada pelo legislador poderá determinar como acontecerá o processo de herança dos bens de uma família, também um gato, um rato ou o esmagamento de uma brasa poderá atrapalhar o julgamento da razão e lançá-la para fora dos seus trilhos, ou seja, destituir a razão dos critérios previamente estabelecidos para o julgamento. O olhar de um gato e de um rato poderá causar fobias no sujeito que faz um discurso, assim, uma causa tão quimérica como o olhar de um gato ou rato seria capaz de prejudicar um pregador por mais equânime que seja as verdades por ele promulgadas. Ferreyrolles constata tais fobias visuais analisando a passagem acima e acrescenta um outro dado: “As fobias visuais, como a visão dos gatos e dos ratos, tem seu deferente auditivo com ‘o som de um parafuso’ ou ‘o esmagamento de uma brasa’.”.741 Além das fobias visuais, ele destaca as fobias auditivas que podem ser causadas pelo esmagamento de uma brasa ou o som estridente e incômodo de um parafuso sendo apertado em uma parede ou friccionado em uma mesa metálica. Desta maneira, a imaginação é capaz de descontrolar a razão e desfazer os critérios. Como dar-se-ia este processo? As cinco etapas que compõem a máquina imaginativa nos trará luz. 740 Blaise PASCAL, Pensamentos Laf. 44, Bru. 82, p. 13 – 14. Destacamos que Montaigne também sublinha os efeitos da imaginação em sua relação com a vista, tanto de homens como animais. É bem provável que Pascal tenha apropriado-se da reflexão de Montaigne no trecho acima. Vejamos o que Montaigne diz: “Viu-se há tempos em minha casa um gato à espreita de um pássaro empoleirado no alto de uma árvore; olharam-se fixamente com intensidade durante alguns momentos e em seguida o pássaro deixou-se cair, como se tivesse morrido, entre as patas do gato, o que se explica ou pela força do olhar deste ou por um efeito da própria imaginação do pássaro.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 113). 741 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 142. 209 O corpo (sentidos) é afetado pelo barulho estridente de um parafuso (1ª etapa); a imaginação é impressionada, assim como a razão, pois ambas estão ligadas (2ª etapa); a razão interpreta o barulho produzido, junto à imaginação (3ª etapa); a imaginação e a razão devolvem a interpretação da razão ao corpo (4ª etapa); o corpo produz um efeito, ou seja, um mal estar capaz de fazer o pregador ou um professor que ministra sua aula se deter (5ª etapa). Também o poeta terá seu discurso prejudicado se sua voz apresentar-se de maneira diafônica aos ouvidos daqueles que escutam um recital de poesias: o tom da voz colabora com a expressão poética, ao passo que, se ela apresenta-se como um ruído, as fobias auditivas serão os efeitos que a imaginação causará. A razão se descontrola com um simples ruído – ela saí dos gonzos, dos trilhos – que é levado pela imaginação. Assim, a imaginação, sublinha Ferreyrolles, “[...] é o sofista da alma.”742 Esta atividade sofistica da imaginação prejudicando a razão por causas quiméricas também é sublinhada por Pascal no fragmento 48 dos Pensamentos: “O espírito daquele soberano juiz do mundo não é tão independente que não esteja suspeito a ser perturbado pela primeira barulheira que se faça ao seu redor.”.743 Mesmo aquele juiz impassível se rende aos ruídos estridentes e incômodos. Ele seria perturbado por uma barulheira, esta porém, não precisa ser o barulho de um canhão para colocar sua razão para fora de seus gonzos, mas será suficiente “[...] o barulho de uma ventoinha ou de uma polia.”.744 Causas quiméricas como o barulho de uma ventoinha, polia ou até mesmo uma mosca bastarão para que o mesmo juiz não raciocine com a impassibilidade que o povo acredita que ele tem. “Não vos espantei se ele não raciocina bem agora, uma mosca está zumbindo em seus ouvidos: basta isso para torná-lo incapaz de um bom conselho.”.745 O juiz é coagido por um ruído que causará um efeito: ele será incapaz de um bom conselho. Assim como o conselho do juiz é coagido pelo ruído, Pascal destaca que também o amor, que tem como causa pequenos detalhes, pode mudar toda história: “O nariz de Cleópatra, se tivesse sido mais curto, toda face da terra teria mudado.”.746 Sendo o império romano dividido, Marco Antônio apaixonou-se por Cleópatra e ficou com o Egito. Por ter se apossado do Egito, Otávio, sobrinho do falecido César, acusou Marco Antônio como fora da lei e iniciou uma campanha para derrotá-lo. Na batalha de Actium, Marco Antônio é derrotado, por este motivo, suicidou-se. Cleópatra tenta em vão aliar-se a Otávio, desta maneira, também se 742 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 161. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 48, Bru. 366, p. 18. 744 Ibid., Laf. 48, Bru. 366, p. 18. 745 Ibid., Laf. 48, Bru. 366, p. 18. 746 Ibid., Laf. 413, Bru. 162, p. 157. 743 210 suicidou e Otávio torna-se o imperador absoluto de Roma.747 Pascal analisando esta história supõe que se o nariz de Cleópatra tivesse sido maior, talvez Marco António não se apaixonaria por ela e a história do ocidente seria outra. Se a causa do amor é um simples nariz, as conseqüências deste amor custaram a vida de Marco Antônio, assim como de sua amada, e a história do ocidente acabou tomando outro rumo: a contingência produz a história da humanidade. Discernir toda relação de causa e efeito do movimento histórico é sublinhar as causas mais evidentes e incontestáveis, como a morte do imperador César, assim como as causas mais quiméricas748, ou seja, um simples nariz que poderia ser a causa do amor de Marco Antônio por Cleópatra. Assim, da mesma maneira que a imaginação é capaz de construir uma grade de leis para a manutenção da ordem social, ordem esta que uma sociedade chama de justiça, ela também pode construir a história, assim como a beleza e a felicidade, dirá Pascal: “A imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e a felicidade que é tudo no mundo.”749 A beleza de Cleópatra imaginada por Marco Antônio estava associada a sua felicidade. A imaginação com a sua capacidade de associação liga a justiça à beleza, sendo que estas estão associadas à felicidade que todos os homens buscam, “[...] todos tendem para este fim [...] até aqueles que vão se enforcar.”.750 A construção da felicidade tem como ouvrier a imaginação. Os comentadores Bras e Cléro destacam esta capacidade da imaginação: A busca da felicidade supõe o desejo, não é a falta de um objeto determinado, mas falta essencial que nenhum objeto poderia preencher, e anima a imaginação, potência da apresentação de um objeto de substituição, na ilusão de uma possível apropriação.751 747 Cf. Heródoto BARBEIRO, História geral. São Paulo: Ed. Moderna, 1976, p. 79. Montaigne em seu Ensaios destaca diversas causas quiméricas capazes de destruir e perturbar grandiosas potências. Vejamos alguns exemplos: “[...] um animalzinho qualquer, um verme, pode comer ao almoço o coração e a vida de um imperador no apogeu de sua glória.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 389); um pequeno peixe chamado rêmora gruda nos cascos dos navios e os destroem: “Esse mesmo peixe sustou repentinamente a marcha da galera de Calígula que vogava com uma grande frota pelas costas da România.”. (Ibid., II, 12, p. 394); as abelhas são capazes de deter grandes exércitos: “Este viu-se forçado a desistir do empreendimento, não podendo suportar as picadas.”. (Ibid., II, cap. 12, p. 399); um raio é capaz de ofuscar os olhos e uma pequena quantidade de poeira, sendo agitada pelo vento, ao tocar os olhos de um homem, é capaz de deixar um inimigo desorientado. (cf. Ibid., II, 12, p. 399). Diante destes pequenos seres e objeto que causam efeitos devassos em imponentes exércitos e personalidades importantes, percebemos a fragilidade humana na descrição de Montaigne: “Não são apenas as febres, a bebida, os acidentes graves que nos abalam o juízo; as coisas mais insignificantes o perturbam [...].”. (Ibid., II, 12, p. 472). 749 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15. 750 Ibid., Laf. 148, Bru. 425, p. 60 – 61. 751 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 22. 748 211 A busca da felicidade tem como pressuposto o desejo. Tal desejo será sempre por um objeto infinito, Deus, todavia, aquilo que o desejo encontra para preencher este vazio são sempre objetos finitos, de modo que nenhum poderá preenchê-lo. Assim a imaginação faz seu papel e constrói objetos para ocupar este vazio de modo que o sujeito se apropria dos objetos ou das idéias destes objetos como um porto seguro no qual se encontra a felicidade. É desta forma que a imaginação, potência enganosa, trabalha na construção de objetos e idéias de objetos de desejo que lançam o sujeito a buscar sem encontrar a felicidade, a perseguir sem achar, pois achando aquilo que é procurado o vazio continua e a imaginação produz outros objetos, visto que ela é força criadora. A contingência que se manifesta pela imaginação é a incapacidade humana de discernir com toda certeza aquilo que a fará feliz, pois, a imaginação liga o conceito de felicidade aos objetos que ela mesma produz, de modo que o sujeito encontrar-se-ia na dependência dos saltos da imaginação para construção dos objetos que serão perseguidos. A imaginação coloca o homem em movimento, ou seja, ela é uma espécie de divertissement do espírito, no qual o objetivo não é encontrar o objeto visado, mas colocar o espírito em movimento. Portanto, se a imaginação constrói a justiça de um povo e a felicidade de cada homem, veremos adiante que a justiça para cada homem é parte de um construto imaginativo, assim como a motivação ou empenho em defender uma causa. Neste momento, analisaremos a relação entre a imaginação e os advogados. 2.7 - Os advogados e a imaginação. A relação entre a idéia de justiça e empenho para se defender uma causa é explorada por Pascal no fragmento 44 dos Pensamentos. Se um juiz revela os elementos que coagem seu julgamento, como um pregador mal barbeado e com uma voz rouquenha, um advogado também possui elementos que deslocam seus critérios de análise. Vejamos: A afeição e o ódio mudam a face da justiça, e quanto um advogado bem pago adiantadamente acha mais justa a causa que defende. Como o seu gesto audaz a faz parecer melhor aos juízes enganados por essa aparência. Razão engraçada essa que um vento pode manejar, e em todos os sentidos. Eu relataria quase todas as ações dos homens que só se abalam pelos solavancos dela. Porque a razão foi obrigada a ceder, e a mais sábia toma como princípios 212 seus aqueles que a imaginação dos homens temerariamente introduziu em cada lugar.752 A subjetividade no julgamento de uma causa exaspera seus pólos extremos. Afeição e ódio colaboram ativamente no juízo. No caso descrito acima o elemento que coage o julgamento tirando a objetividade do mesmo é o dinheiro. Um advogado bem pago considera sua causa mais justa, ou seja, o fundamento de sua ação dependerá da quantia que lhe for paga. É esta quantia que motivará o advogado diante do juiz: o advogado fará gestos capazes de convencer os juízes que a causa que ele defende é verdadeiramente digna, ou seja, justa. A roupagem da justiça passa a ser a aparência dos gestos de um advogado audaz. A impassividade do advogado, ser de uma racionalidade tida como autônoma na defesa de um caso, “balança” com o primeiro vento que aparece aos olhos, ou seja, a riqueza. Assim, o afeto pela riqueza maneja a motivação do mesmo e o faz conceber que uma causa é mais justa do que a outra por um elemento vão em relação à nobreza da justiça. Mas vejamos como a imaginação faz seu papel neste processo. Os sentidos são afetados pela idéia de uma causa associada a uma quantidade estabelecida de dinheiro (1ª etapa) – sabemos que a potência imaginativa tem esta capacidade de associação, como destacou Bras e Cléro nas linhas precedentes –; a imaginação é impressionada, assim como a razão, pois ambas estão ligadas (2ª etapa); a razão interpreta, junto à imaginação (3ª etapa); a imaginação e a razão devolvem a interpretação da razão ao corpo (4ª etapa); o corpo produz um efeito (5ª etapa), ou seja, os gestos audazes do advogado que impressionam os juízes. Os efeitos da imaginação encontram sua vítima tanto nos advogados quanto nos juízes: nos advogados a imaginação faz a sua ação direta e desloca seus referenciais de justiça construindo novos referencias; nos juízes são as cordas de imaginação que perpetuam seu efeito, pois aquilo que é aparência, ou seja, os gestos do advogado, tornase o essencial em um julgamento. Tal relação entre o essencial e o acidental nesta passagem específica do fragmento 44 é comentada por Jean Mesnard: “O ardor do advogado ao litigar é inspirado pela perspectiva do ganho que ele vai receber, e é este dado inessencial que lhe faz, com toda boa fé, julgar o 752 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14. Esta passagem é inspirada por Michael de Montaigne: “Expomos uma questão a um advogado; sentimo-lo hesitante e sem convicção: é-lhe indiferente defender esta ou aquela causa. Se o pagamos bem para se colocar do nosso lado, começa a interessar-se. E se sua vontade se aquece, eis que se aquecem ao mesmo tempo sua razão e seu saber e a verdade aparente deixa de lhe inspirar a menor dúvida. Persuade-se de que assim é, e o crê.”. (Michel de MONTAIGNE, Apologia de Raymond Sebond, II, 12, p. 474). 213 essencial, isto é, a justiça da causa que ele pleiteia.”.753 Quanto maior o ganho, maior a motivação do advogado, todavia, o que nos chama à atenção é a afirmação de Mesnard de que um dado inessencial é critério para julgamento do dado essencial. A imaginação cria critérios circunstanciais como a quantia a ser paga por um causa que motiva o advogado a sustentar ardorosamente que a sua causa é mais justa, ou seja, a razão é obrigada a ceder, sustenta Pascal. Tal procedimento da imaginação não poderia deixar de causar efeitos danosos àqueles que julgam: “Reciprocamente, o juiz se deixa levar pela mímica apaixonada do advogado, esta que é inessencial para apreciação da justiça.”.754 Assim, junto com Mesnard, sustentamos que a imaginação causa seus efeitos tanto nos advogados e juízes, fazendo passar como critério avaliativo do essencial aquilo que é inessencial. A contingência desta ação manifestase na medida que se faz a seguinte pergunta: Qual é a quantidade de dinheiro necessária para motivar um advogado? Um advogado não poderia interpretar que seu cliente ao oferecer muito dinheiro para custear sua defesa estaria sendo injusto? Neste caso a imaginação em vez de causar gestos audazes poderá motivar o advogado a abandonar o caso: o advogado neste caso considerará a justiça estabelecida mais nobre do que a quantia de dinheiro oferecida para defender um litígio. Entretanto, caso o advogado aceite a causa, um juiz não poderia desconfiar dos gestos “audazes” do advogado? Assim, a imaginação poderá criar aparências que influenciarão na decisão tanto dos advogados, motivando-os na defesa de uma causa ou fazendo-os odiar ou repudiar a mesma, quanto dos juizes, persuadidos ou desconfiados acerca dos gestos dos advogados. Vemos que a razão, neste caso, é manejada pelos sopros da imaginação e seu resultado é sempre uma foz na contingência. Portanto, se a contingência manifesta-se diante dos possíveis efeitos que a imaginação, vinculada à razão, é capaz de causar na concepção de justiça de um advogado ou juiz, assim como na motivação da apologia de uma causa ou julgamento da mesma, vejamos outros efeitos da imaginação quando a causa em questão diz respeito ao próprio defensor da causa. Não é permitido ao mais equânime homem do mundo ser juiz em causa própria. Conheço alguns que, para não caírem nesse amor próprio, acabaram sendo os mais injustos do mundo por reação contrária. O meio mais seguro de perder uma causa totalmente justa era fazer com que algum seu parente próximo a recomendasse junto a eles.755 753 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 194. Ibid., p. 194. 755 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 16. 754 214 O que Pascal destaca aqui é o que poderíamos chamar de dogma da neutralidade: um homem que estivesse defendendo em causa própria estaria coagido pela motivação de safar-se de uma pena. Mas Pascal relativiza tal dogma e sublinha que alguns tentando fugir de um julgamento que se fundamenta no dogma da neutralidade foram absolutamente injustos. A pergunta a se fazer é a seguinte: qual é o critério que fundamenta a afirmação que um julgamento deverá ser totalmente neutro naquilo que diz respeito aos interesses dos sujeitos em causa? Pascal sabe que se quisermos perder uma causa fazer-se-ia necessário recomendar um parente nosso para defender-nos, ou seja, ele sabe que a imaginação cria critérios de análise de uma sentença que estão mais estabilizados, como o dogma da neutralidade que garantiria a justiça com mais eficácia aos olhos da maioria. Todavia, mais uma vez o inessencial julga o essencial: a imaginação cria uma rede de causa e efeito na qual os sujeitos em causa julgam que uma pessoa que será afetada com uma dada sentença de um juízo não apresenta confiabilidade cabível para fazer sua própria defesa. A imaginação revela sua face contingente, pois qual é garantia de que o sujeito que defende em causa própria não fará uma defesa verdadeiramente justa? O dogma da neutralidade tão reivindicado para a defesa de uma causa tem como fundamento o vazio, ou seja, não há fundamento evidente. Portanto, diante da relação de necessidade que a imaginação constrói entre o dinheiro a ser pago e a motivação de uma causa que o advogado acreditar ser mais justa, da conseqüência de tal relação entre os juízes que são persuadidos pelos audazes movimentos dos advogados, e na perspicaz construção de critérios como o dogma da neutralidade usado em um combate judicial, todavia, criticado por Pascal, vemos mais uma vez que o inessencial é critério de avaliação para o essencial, ou seja, a objetividade da causa: aparência é construída pelos solavancos da imaginação, de modo que só nos resta aparências em um mundo que tem a objetividade perdida – não discernida. Cabe agora a verificarmos a relação das aparências com a imaginação. 2.8 – Construção das aparências e a imaginação. A relação entre aparência e imaginação é bem tênue na medida em que a imaginação cria aparências que causam efeitos persuasivos nas pessoas que são afetadas pelos solavancos da imaginação. Pascal sublinha elementos externos ou inessenciais criados pela imaginação que colaboram no processo de persuasão. 215 As suas togas vermelhas, os arminhos com que se acalentam, os palácios onde julgam, as flores-de-liz, todo esse aparato augusto era bem necessário, e se os médicos não tivessem batas e mulas, e se os doutores não tivessem barretes quadrados e roupas muito amplas de quatro partes, jamais teriam podido enganar o povo que não pode resistir a essa exibição tão autêntica. Se tivessem a verdadeira justiça, e se os médicos tivessem a verdadeira arte de curar, não teria o que fazer com seus barretes quadrados. A majestade dessas ciências seria bastante venerável por si mesma, mas só possuindo ciências imaginárias é necessário que lancem mão desses vãos instrumentos que tocam a imaginação a que eles fazem apelo e mediante isso, de fato, provocam respeito.756 Pascal inicia a passagem catalogando alguns elementos externos usados por magistrados, médicos e doutores e que fazem parte da dinâmica persuasiva comandada pela potência enganosa da imaginação: togas vermelhas, arminhos, palácios onde julgam, floresde-lis, batas, barretes quadrados, roupas amplas de quatro partes. Todos estes elementos persuasivos Pascal chama em suma de “aparato augusto”. Estes elementos associados à pessoa do juiz, do médico e do doutor tem um alvo: persuadir o povo. O conhecimento dos efeitos da imaginação, auxiliado por tais elementos, Pascal chama de ciências imaginárias. Estas ciências têm seu fundamento em si mesmas na medida em que usam de instrumentos periféricos que são deslocados, ou seja, associados ao usuário dos instrumentos e produzem um efeito: o respeito. É no uso deste aparato augusto que o povo se curva diante da impassividade do juiz, do diagnóstico do médico e do discurso de um doutor. O respeito ao juiz está associado ao seu vestuário e o local onde julga; os médicos persuadem pelas suas batas; e os doutores com seus barretes e pelas vestes divididas em quatro partes. Cada profissão tem seu respectivo traje ou elemento que previamente persuade o povo. Isto dar-seia na medida em que o povo acredita que tais personalidades projetam aquilo que se espera deles: os magistrados projetam justiça; os médicos, saúde; os doutores, entendimento. O povo percebe a projeção e associa a justiça, a saúde e o entendimento, a seus respectivo projetores. Todavia, sem os elementos persuasivos “[...] jamais teriam podido enganar o povo que não 756 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14 – 15. A descrição de Pascal quanto aos elementos que envolvem a aparência dos médicos é bem provável que seja uma reflexão a partir de Montaigne: “Por que os médicos, antes de operar, procuram convencer o doente da excelência de uma terapêutica em que eles próprios não acreditam, se não é para que a imaginação supra a ineficiência prevista do remédio? Não esquecem o que disse um de seus mestres, a saber, que certos doentes saram à simples vista dos apetrechos operatórios.”. (Michel de MONTAIGNE, Ensaios, II, 21, p. 111). 216 pode resistir e essa exibição tão autêntica.”. 757 Assim, depois de detectar tais elementos que fazem parte da dinâmica persuasiva da imaginação, Pascal desconfia e critica a relação construída entre a profissão e seus aparatos augustos pela capacidade associativa da imaginação: se os magistrados tivessem a verdadeira justiça, os médicos a verdadeira cura e os doutores o entendimento da verdade, não teriam necessidade de associar a sua aparência tais realidades, todavia, a falta do essencial faz com que os mesmos construam suas aparências com instrumentos ou elementos vãos, ou inessenciais. Diante disso Pascal afirma: “Nossos magistrados conheceram bem esse mistério.”.758 Mas porque mistério? Mistério no século XVII é visto como um conhecimento caché. Neste caso o uso da palavra significa que o conhecimento desta ciência imaginaria é escondido do povo para que o resultado seja eficaz, pois o povo acredita que a justiça do magistrado é impassível e justa, que a cura e a saúde está no médico e que o conhecimento é desvelado pelo discernimento do doutor. Os sinais da justiça, cura e do conhecimento têm seus respectivos correspondentes, a saber: o magistrado, o médico e o doutor. A construção da aparência destes personagens dar-se-ia por símbolos habitualmente significativos, entretanto, em uma análise mais detida destes símbolos detectaríamos uma relação necessária entre o símbolo – justiça, saúde, entendimento – e seu significado – magistrado, médico e doutor? Sabemos que Pascal contesta tal relação necessária, assim como Ferreyrroles em comentário a esta passagem: No limite, os sinais podem não mais reenviar a nenhum significado, eles mesmos criam seu significado na imaginação que os acolhe, como o exterior do médico restitui a saúde sem que manifeste, portanto, um poder real de curar. A imaginação marca bem “com o mesmo caractere” [...] o verdadeiro poder e o poder vão, dando aos dois o poder de exercer realmente.759 Os sinais neles mesmos não enviam a significado nenhum, mas é a imaginação que constrói uma relação causal entre o médico e a saúde. O médico sempre será pensado associado aos seus respectivos acessórios de modo que os mesmos manifestam o poder “natural” de curar. É neste sentido que a imaginação, potência enganosa que manifesta a contingência, exerce seu papel: ela marca com o mesmo traço o poder de curar presente no médico, pois este é o seu oficio, e o poder vão, ou seja, a relação de uma garantia de cura pelo arsenal augusto com o qual o médico se apresenta. A imaginação mitiga a dúvida do povo de 757 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 14 – 15. Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 14-15. 759 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 151 – 152. 758 217 que o médico não trará a cura, entretanto, mitigar a contingência não é garantia de cura efetiva, logo, a imaginação borra como elemento progenitor da saúde tanto aquilo que cura, ou seja, o entendimento e a ação eficaz do médico, quanto aquilo que não cura, ou seja, seus acessórios externos. Ferreyrroles destaca que o caráter vazio do símbolo é preenchido quando a imaginação realiza seu trabalho: ela transforma aquilo que é inessencial e acidental em essencial. O vestuário do médico é marca de sua eficácia aos olhos do povo, assim como o vestuário do advogado é garantia da justiça, como afirmará Mesnard: A justiça estando fora da nossa apreensão, senão em imaginação, os magistrados, que deveriam ser respeitáveis pela própria justiça, se fazem respeitar por acessórios, os quais cercam o exercício de seus cargos: togas vermelhas, camisas, palácios, flores-de-liz – contribuidores que eles são para uma comédia de justiça e não de uma justiça verdadeira.760 Mesnard faz uma distinção entre a verdadeira justiça e aquela postulada por acessórios acidentais e aparentes. Estes são considerados como uma comédia de justiça, algo tão frágil que causa riso depois que a associação entre a justiça e a toga do magistrado é detidamente analisada. Uma comédia de justiça que tem pretensões de enquadrar-se como a justiça verdadeira só faz mostrar sua temeridade, na medida que almeja uma condição que não é digna de sua potência. Assim, o advogado bem vestido e, conseqüentemente, desinformado, revelará sua arrogância, pois não percebe que a justiça que ele defende está associada ao um determinado contexto que associa a justiça aos elementos acidentais de sua aparência. Pascal faz referência a tal arrogância no fragmento 44: “Não podemos sequer ver um advogado togado e com o barrete na cabeça sem uma opinião favorável de sua arrogância.”.761 A arrogância do advogado está em entender como essencial aquilo que é acidental, ou seja, um advogado bem vestido acredita possuir a verdadeira justiça e, por este motivo, age arrogantemente como se o mesmo fosse critério último daquilo que é justo ou não. Desta maneira, Pascal revela que a imaginação foi capaz de persuadir até aqueles que fazem o uso dos elementos persuasivos da imaginação. O advogado persuadido pela imaginação torna-se vítima desta potência enganosa e cego na medida em que não percebe que sua arrogância tem outra causa. Mas que quem causou esta cegueira no advogado e o fez vítima da imaginação? Vejamos a opinião de Denise Leduc Fayete para que depois possamos responder esta 760 761 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 194. Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15. 218 pergunta. “A ostentação, o prazer de “mostrar” [...], a mostra tão bem fustigada no fragmento [...] 44 [...] procura mascarar o nada do estado de natureza decaída, gangrenada pelo pecado original.”.762 Ela ressalta que o prazer de serem vistos pelo povo como alguém que possui a verdadeira justiça, no caso do advogado e dos magistrados, o prazer de serem vistos como portadores da cura, no caso do médicos, e o prazer de serem vistos como capazes de discernir racionalmente tudo aquilo que lhes vem à mente, como os doutores, é a máscara que revela o estado de natureza decaída do homem, uma natureza corrompida, ou como afirma Denise Leduc Fayete, “gangrenada” pelo pecado. Se a arrogância dos magistrados ou advogados, médicos e doutores é a manifestação de um pecado primordial, a construção da arrogância tem a imaginação como arquiteta. A contingência manifesta-se na medida em que um magistrado e um advogado poderá agir justamente ou não, um médico poderá curar ou não, um doutor poderá discursar objetivamente ou não, entretanto, o que falta para que seja confirmada qual dos pólos tais personalidades verdadeiramente estão é o discernimento, ou seja, qualquer ação que eles venham a executar não é garantia da objetividade e certeza do resultado de sua ação. Quem garante que o magistrado e o advogado agiram justamente, que o médico vai curar e que o doutor fala a verdade objetiva de um determinado fato? Estando a garantia perdida pelo erro de Adão, a contingência torna-se senhora do mundo gangrenado. Desta maneira, o que resta a estes personagens é usar de elementos acidentais para curvar a opinião do povo, ou seja, seus papéis são rebaixados à ordem do corpo como afirmará Mesnard: “Os magistrados, que não podem estabelecer sua justiça na ordem da verdade, impõe por toda parte um “aparato augusto” que os rebaixa à ordem do corpo.”.763 Assim, aquilo que deveria manter uma relação racional de causa e efeito na segunda ordem na qual permitiria o discernimento e entendimento da ação tanto de magistrados e advogados, assim como de médicos e doutores, é associada ao mundo das aparências e nele exerce sua força. Todavia, Mesnard afirma que quando se trata do rei e seu papel na manutenção da ordem de uma determinada região, ou seja, seu reino, a força não precisa ser adornada para que se faça manifesta: “Ao contrário, o rei, que dispõe da força, não tem necessidade destes disfarces.”.764 Portanto, vejamos como Pascal relaciona a força ao rei, subtraindo os disfarces aparentes presentes em outras profissões e como a imaginação exerce seu papel. 762 Denise LEDUC-FAYETTE, Pascal et le mystère du mal, p. 127. Jean MESNARD, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 49. 764 Ibid., p. 49. 763 219 2.9 – Os reis e a imaginação. A imaginação sendo uma potência criadora manifesta sua potência na construção das aparências como vimos acima. Mas ela efetua seu papel confirmando aquilo que efetivamente muda o comportamento humano: a força.765 A força apresentada pelos magistrados ou advogados, médicos e doutores está associada ao aparato augusto que a sustenta manifestando o respeito do povo como efeito. Todavia os reis não precisam destes elementos acidentais que manifestam a força: o rei a possui efetivamente, como afirma Pascal: Só os homens de guerra não se fantasiaram dessa forma porque, realmente, a parte que lhes toca é mais essencial. Eles se impõem pela força; os outros, por suas caretas. Foi por isso que os nossos reis não procuraram essas fantasias. Não se disfarçaram com roupas extraordinárias para parecerem tais. Mas se fazem acompanhar por guardas, por homens com cicatrizes (?). Essas tropas armadas que só tem mãos e força para eles, os trombetas e os tambores que marcham à frente e essas legiões que o cercam fazem tremer os mais firmes. Eles não têm a roupa, mas têm a força. Seria necessário ter uma razão muito depurada para encarar como outro homem qualquer o grande senhor cercado de seu soberbo serralho de quarenta mil janízaros.766 A força é associada pela imaginação ou àquilo que é acidental ou àquilo que é essencial. Quando falamos dos reis, Pascal, sem capricho, sustenta que os mesmo possuem a força efetivamente, daí a não necessidade de disfarces nem de caretas. “O chanceler é sério e revestido de ornamentos. Pois o seu cargo é falso e não é o rei. Este tem a força, não precisa da imaginação. Os juízes, médicos etc. só têm a imaginação.”.767 Um rei é acompanhado por seus guardas que salpicados por suas cicatrizes e acompanhados por homens com trombetas e tambores fazem a todos tremer. Assim, ele pode sorrir generosamente para o seu povo, algo que o chanceler está impedido: este se impõe por suas caretas, ou seja, por uma aparência da sua força que não é força efetiva. O rei tem a força efetiva independente da sua aparência. Não é a roupa do rei que persuade o povo768, mas é a força efetiva que tal procissão manifesta 765 “[...] o temor determina um comportamento [...]”. (Jean MESNARD, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 37). 766 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 15. 767 Ibid., Laf. 87, Bru. 307, p. 31. 768 Cf. Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 150. 220 que curva o povo ao respeito769, como afirma Ferreyrolles: “A pompa ameaçadora do cortejo real, que trespassa nosso corpo de terror a cada aparição, arrasta nosso espírito ao respeito sem que se pense nisso.”.770 Alguém que se coloca defronte a tal arsenal bélico afim de enfrentar um rei como se enfrenta um homem qualquer não teria uma “razão muito depurada”, ou seja, somente alguém descompensado mentalmente teria a coragem de enfrentar o rei rodeado da sua força efetiva. Não se trata de dizer que os soldados são as vestes do rei, ou seja, uma força aparente do rei: os soldados estão prontos para agir efetivamente com a força que não é uma aparência, mas uma realidade. Em uma guerra a vestimenta de um soldado de nada adiantaria, desta maneira, é a força efetiva o ponto mais importante em um combate. Assim, a imaginação não exerce um papel específico nesta cena da procissão real quando focamos o tema da força, ou seja, a imaginação não simula a força nesta cena, nem cria a força nesta cena, pois a força está no exército do rei.771 Quando falamos do tema força não se trata de ciências imaginarias capazes de persuadir, mas de uma realidade, não se trata de um símbolo da força, mas a força efetiva pronta para atuar. Dizer que a imaginação não exerce um efeito é afirmar a realidade da 1ª ordem em seu fundamento: a força é fundamento de si mesma. Tal afirmação garante a supremacia da força sem apresentá-la de forma velada, ou seja, a força manifesta a si mesma. Fundamentando e manifestando a si mesma, ela age independente da imaginação e estabelece sua função: ela estabelece uma relação necessária mitigando a contingência manifesta pelos saltos da imaginação. Todavia, a relação entre a força e a imaginação é analisada pelos comentadores Bras e Cléro: “Se a política efetiva é affaire de liens, então estamos totalmente na esfera da necessidade e não naquela da liberdade. Mas é preciso distinguir duas espécies de “cordas”: aquelas que provém da força e aquelas que provém da imaginação, a qual nós dissemos que é potência.”772 769 “O costume de ver os reis acompanhados de guardas, de tambores, de oficiais e de todas as coisas que inclinam a máquina na direção do respeito e do terror faz com que o seu rosto, quando às vezes está só e sem acompanhamentos, imprima nos súditos o respeito e o terror porque em pensamento, não se separam as suas pessoas dos seus séqüitos, que se costumam ver juntos.”. (Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 25, Bru. 127, p. 8). Inclinar a máquina ao respeito é coagir o corpo humano a realizar necessariamente ações que estão dentro dos parâmetros das leis estabelecidas. 770 Gérard FERREYROLLES, Les Reines du monde: l´imagination et la coutume chez Pascal, p. 28. 771 A imaginação não cria a força na cena da procissão real, pois a força já está presente, quer a imaginação atue ou não. Todavia, no caso dos magistrado ou advogados, médicos e doutores, a imaginação quem cria a força específica de cada um. 772 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 29. 221 A política efetiva é a força efetiva. Uma política sem o sustento da força é o estopim para um guerra civil, que para Pascal é o “[...] maior dos males [...]”.773 Assim, a política vista como um affaire de liens é a tentativa de mitigar a contingência pela construção de relações sociais sustentadas pela força. É desta maneira que uma política produzida nestes moldes vincula as relações sociais à necessidade, solapando a liberdade. Conceder liberdade é apostar em uma sociedade construída no fundamento da confiança no ser humano, algo inadmissível para Pascal, pensador que tem como pano de fundo desta desconfiança o pecado original que gangrena o homem. Fundamentar um estado na confiança é um risco que os reis não desejam correr, visto que é a força quem estabelece relações sociais com sucesso pela construção das leis e estabelecimento das punições. Portanto, os comentadores Brás e Cléro fazem uma distinção bem específica do conceito “cordas”: as cordas que provém da força e que não necessita da imaginação para causar temor e respeito ao povo e as cordas que provém da imaginação. Mas se a força possui sustento em si mesma, como vimos acima, qual seria a importância e o efeito que a imaginação poderia causar nas relações sociais de um povo em uma determinada região? Esta pergunta norteará nossa busca, na qual procuraremos entender como a força depende da imaginação para que ela possa exercer seu papel na construção de uma sociedade. A força, que até agora pareceria soberana, aparecerá entregue a uma outra força ainda mais possante, a saber: a imaginação. “Portanto, é a imaginação que permite à força de continuar no seio do mundo social, que a integra no mundo que ela constitui, que é um mundo simbólico onde os sinais dispõem dos indivíduos mais do que os indivíduos dominam os sinais.”774 Um rei que exercesse seu reinado somente com a força agiria de maneira tirânica. A imaginação é que permitirá que a força do rei continue a atuar, mas agora de forma velada. A imaginação integra a força no mundo com uma sutileza que faz com que o povo não sinta o peso da força. Mas como dar-se-ia tal procedimento? Pascal explica a relação entre força e imaginação no terceiro discurso do texto Trois discours sur la condition des grands. Nele Pascal sublinha que um grande senhor é alguém que tem em seu poder vários objetos de concupiscência, ou seja, objetos de desejo dos homens. Tais objetos atraem os homens junto ao rei, pois será ele quem decidirá o que cabe a cada um. O rei poderia atuar pelos meios que 773 774 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 94, Bru. 313, p. 33. Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 31. 222 o fizeram rei, ou seja, pelos atributos da força, todavia, ele age de outra forma, contentando seus súditos com seus desejos, aliviando suas necessidades e fazendo esforço para ser generoso.775 A força que o rei possui é transformada em contentamento gerenciado dos desejos dos súditos, alivio das necessidades e esforço para generosidade. A força é integrada no mundo social ganhando uma roupagem nova. Não se trata de dizer que a força não está presente, ela é uma realidade presente, ao contrário do médico que disfarça a cura em acessórios acidentais. Os soldados, afirma Mesnard, possuem a força, “[...] mas eles impressionam também a imaginação. De maneira que a imaginação pode servir-se da garantia da força: [...]”.776 A força é usada pela imaginação para garantir o seu efeito. Se a força é soberana em um combate efetivo, tal soberania desaparece quando se trata estabelecer as diretrizes de um reino: a força torna-se instrumento da imaginação. A força ganha contornos mais aceitáveis e dóceis na medida que o procedimento do rei agrada o povo, surgindo um clima de paz tão desejado pelo soberano. Assim, o rei exerce seu papel pela força, porém, disfarçada ou transfigurada777 pela imaginação. Bras e Cléro afirmam: “Não somente a força não tem mais necessidade de se exercer, mas ela é transfigurada.”.778 Ela ainda exerce seu papel, mas ela é velada sob o véu da generosidade, o que impede um reinado tirânico e consolida a instituição e manutenção de um estado de paz: eis o efeito e a importância da imaginação. Assim, aquilo que a imaginação estabelece é aceito pelo povo que, com o passar do tempo, legitima as prescrições do rei como verdadeiramente justas.779 É desta forma que a força, transfigurada pela imaginação, é estabelecida, dirá Bras e Clero. Portanto, todas as instituições políticas e jurídicas revelam “grandezas de estabelecimento” que não poderiam ser justificadas por qualquer ato jurídico que seja. O poder político não tem, deste ponto de vista, nenhum fundamento superior a faticidade de seu estabelecimento: a relatividade histórica e geográfica dos sistemas judiciários bastam para anular toda a empreitada de racionalização do direito.780 775 Cf. Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 367 – 378. Jean MESNARD, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 49 – 50. 777 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination, p. 31. 778 Ibid., p. 30 – 31. 779 Cf. Ibid., p. 30 – 31. 780 Ibid., p. 31. 776 223 Caracterizar todas a instituições políticas, ou seja, os órgãos que organizam o espaço físico onde dar-se-ia as relações humanas, como “grandezas de estabelecimento”781 como o faz Pascal, é destituir toda a naturalidade daquilo que foi construído pelo homem, já que tais grandezas “[...] dependem da vontade dos homens, que acreditam com razão dever honrar certos estados e lhe atribuir certas honras [...]”.782 As “grandezas de estabelecimentos” estão sujeitas as flutuações inconstantes da vontade humana. O uso que Bras e Cléro fazem do termo é para evidenciar algo que absorve a política na obra de Pascal: um ato jurídico, como uma lei, norma, resolução ou concessão de cargo, não possui nenhuma justificação, ou seja, fundamento último. É desta forma que a contingência se apresenta. A imaginação – ao transfigurar a força e inseri-la no seio da vida social – mitiga a contingência que a força tenta a todo tempo apaziguar. Mas o que seria a contingência na vida política? As guerras civis, as lutas por uma nova lei mais justa na concessão de um cargo, os roubos, as mortes, as destruições em massa: todos estes eventos caracterizam-se pela falta de um parâmetro absoluto e necessário, de tal forma que a imaginação com seus solavancos constroe outros parêmetros que são contraposições aos existentes e assim, se institui o caos. Portanto, a imaginação tornar-se-ia a potência produtora da paz e do caos pelo costume e a opinião, como afirma Mesnard: “Mas o que são o costume e a opinião, opostas à natureza, à justiça, senão o contingente, oposto ao necessário.”.783 A imaginação constrói o costume e submete a ação dos homens à opinião que se estabelece, assim a paz se constrói “docemente”784 pela imaginação, como é o caso do rei que age generosamente transfigurando a força, atributo do soberano rodeado por seu exército, em paz. Da mesma forma, a imaginação constrói a guerra na medida que ela contesta o que foi estabelecido, constrói novos costumes submetendo os homens as suas novas opiniões que entram em choque com o que era estabelecido e a luta torna-se o status quo da vida social. Cada grupo terá suas motivações produzidas pela imaginação, visto que não há discernimento, nem parâmetros da causa verdadeiramente justa: eis a manifestação da contingência! A vitória será sempre do mais forte, mas este será a contingência quem decidirá com seus possíveis e prováveis acasos. O resultado será uma nova ordem social. A imaginação, potência enganosa e criadora, constrói e destrói as ordens sociais que ela mesma estabelece. Portanto, diante do processo constitutivo e destrutivo de uma ordem social pela imaginação, sabemos que a força é fundamento em si mesmo quando precisa ser usada 781 Blaise PASCAL, Trois discours sur la condition des grands, p. 367. Ibid., p. 367. 783 Jean MESNARD, Les Pensées de Pascal, p. 305. 784 Idem, Thème des trois orders dans l’organisation des Pensées, p. 49 – 50. 782 224 efetivamente em um combate – cordas da força –, de modo que a imaginação nada influi, todavia, a imaginação mostra a sua importância quando transfigura a força e a insere nas relações da vida social: a força é usada pela imaginação para garantir aquilo que ela estabeleceu, produzindo um reinado generoso e pacífico. 225 CONCLUSÃO A tríade entre Santo Agostinho, Jansenius e Pascal foi o ponto de partida de nossa reflexão. Tentamos destacar alguns aspectos de Santo Agostinho, do jansenismo e de Pascal que permitiriam que o leitor verificasse a ligação existente entre estes três ícones da tríade acima. Em Santo Agostinho analisamos três pontos de sua obra: o primeiro, as transformações comportamentais e gráficas de sua obra depois de um contato mais íntimo com Deus que denominamos conversão; o segundo ponto, sua mudança de opinião quanto ao maniqueísmo; e o terceiro tocando as controvérsias pelagianas. No primeiro, vimos que Santo Agostinho gradativamente converte-se ao cristianismo. Não se trata de uma ruptura instantânea com suas antigas crenças, mas refletida e esclarecida. Verificamos tal gradatividade em algumas passagens que propomos analisar de sua obra denominada Confissões. O bispo de Hipona nos revelou detalhes de sua conversão que nos permitiram pontuar duas mudanças importantes: a primeira, diz respeito a algumas transformações comportamentais pela efusão da graça reveladas pelas lágrimas, desta maneira, sublinhamos o caráter intimista e introspectivo do agostianismo; a segunda, verificamos que a escrita também sofre transformações contundentes quando analisamos o conceito Beleza, sendo este identificado com o próprio Deus. No segundo ponto, percebemos sua mudança de opinião quanto ao maniqueísmo, ou seja, verificamos que o cordão umbilical com o maniqueísmo é rompido, pois, como maniqueísta, ele sustentava que o mal era causa do pecado e possuía substancialidade, mas depois de convertido a fé cristã o mal é concebido como ausência de bem, ou seja, não possui substancialidade, e a ausência de bem que movimenta a corrupção não está em Deus, mas no homem por causa do pecado, portanto, o homem não é coagido a fazer o mal e livre de toda a responsabilidade, todavia, faz o mal pelo uso inadequado de seu livre arbítrio flexível tanto ao bem quanto ao mal. No terceiro ponto, tentamos mostrar que na obra O livre arbítrio de Agostinho são construídas proposições contra os maniqueus [388 (livro I) e acabada entre 391 – 395 (livro II e III]. Os argumentos de Agostinho visam atribuir a responsabilidade do mal ao homem, no entanto, a partir de 411, quando ele toma conhecimento da idéias pelagianas, seus escritos mostram a primazia da graça para toda boa obra com o objetivo de atribuir a Deus a causa do 226 bem, sendo que o mal era mantido como ação concupiscente de um livre arbítrio manchado pelo pecado original, desta maneira, verificamos uma mudança no conceito de livre arbítrio e de liberdade na transição entre o Agostinho que discute com os maniqueus e o Agostinho que discute com os pelagianos a partir de 411. Sublinhamos que o embate internacional entre Santo Agostinho e Pelágio vislumbra o ápice das controvérsias sobre a graça: Pelágio – não podemos esquecer de Celéstio, seguidor e propagador do pelagianismo – sustentando que a graça está presente na natureza do homem pelo ato criador de Deus, ao contrário de Santo Agostinho, pois para este a graça é dádiva de Deus para seus escolhidos e predestinados. Neste embate dois conceitos foram analisados nos dois autores: o livre arbítrio e o pecado original. Em Pelágio, vimos que Adão tornou-se o modelo do homem pecador, ou seja, de alguém que fez mal uso da liberdade humana. Todavia, o livre arbítrio não foi corrompido pelo pecado adâmico, de maneira que este possui o poder outorgado por Deus para fazer o bem e o mal, já que a corrupção de Adão não foi transmitida a toda a humanidade. A graça é algo que já está embutida na natureza humana, cabe ao homem fazer bom uso da mesma. Jesus Cristo é o modelo que revela como devemos agir, assim como a doutrina da Igreja. O homem tinha uma grande responsabilidade como batizado já que a Igreja era o Corpus de Cristo. Portanto, a natureza do homem criada por Deus é boa, o exemplo do Cristo e doutrina da Igreja são vistos como componentes auxiliares para prover o homem de maiores forças – além da natureza – no processo salvífico. O livre arbítrio continua flexível tanto para fazer o bem quanto o mal no estado atual, outorgando ao homem fazer bom uso do poder de comandar sua vontade e fazer o bem. A preocupação de Pelágio era atribuir responsabilidade ao homem em meio ao contexto de perversidade que o monge encontra em Roma. Quanto a Santo Agostinho, percebemos que o pecado original mancha e denigre toda a massa humana de maneira atávica. Tal mácula feriu a vontade, desta maneira, o homem depois do pecado de Adão está preso na gravidade do mal, já que seu livre arbítrio foi danificado. Cristo é aquele que derramou seu sangue para a salvação dos escolhidos e predestinados, de modo que o batismo é fator imprescindível, assim como a oração, para fazer as boas obras. Somente a graça pode regenerar a vontade e conceder a verdadeira liberdade. Santo Agostinho destaca que a graça não danifica a liberdade, mas esta é restabelecida pela graça. Todavia, detectamos mudanças entre os conceitos de liberdade e livre arbítrio e diferentes contextos que Agostinho está discutindo. Na discussão com os maniqueus, vimos que a liberdade do homem era o ato de submissão à palavra de Deus, à Verdade e a Cristo. Desta maneira, bastaria fazer bom uso de 227 um livre arbítrio flexível ao bem e ao mal, pois, se houver qualquer coação para fazer o mal, Deus não poderia condenar e, se houvesse qualquer coação para o bem, o homem não teria mérito na salvação. Destacamos que tais definições do conceito de liberdade e livre arbítrio mudariam na discussão do bispo de Hipona com os pelagianos. A economia da graça entra em ação: o homem pecou, tal pecado corrompeu sua natureza santa e sua vontade, fato este que é passado atavicamente a toda sua posteridade. O livre arbítrio, flexível ao bem e ao mal no paraíso adâmico agora está acorrentado aos prazeres temporais da carne, o homem é livre para escolher o mal que deverá fazer. Somente uma força maior poderia resgatar o homem da escravidão do pecado: a graça de Deus quando outorgada pela divindade ao eleito concederia a verdadeira liberdade, o que deixaria o eleito imune do pecado. “Para não sucumbir à tentação, não basta o livre arbítrio da vontade humana, se o Senhor não favorecer a vitória ao que ora.”.785 É de Deus a supremacia e o motor da vontade restaurada pela ação da graça. Portanto, verificamos duas concepções de livre arbítrio em Agostinho, uma na discussão com os maniqueus e uma na discussão com os pelagianos; e duas concepções de liberdade, uma na discussão com os maniqueus e uma na discussão com os pelagianos. Vimos que na querela pelagiana, Agostinho acusa Pelágio de anular a cruz de Cristo ao sustentar que o livre arbítrio não sofreu a corrupção do pecado. Todavia, Pelágio acusa Agostinho de maniqueísmo – algo que Juliano de Eclano fará maior ênfase mais tarde – ao afirmar que a vontade humana abandonada às forças de seu livre arbítrio sofre a ação da gravidade em direção ao mal depois do pecado. Assim, pensa Pelágio, o bispo de Hipona retiraria toda responsabilidade humana das ações maléficas, pois o homem dependerá de Deus para fazer o bem. Percebemos que a guerra entre o bem e o mal continua na obra de Santo Agostinho, algo muito próximo ao maniqueísmo que se envolvera outrora. Mas é nas controvérsias sobre a graça na França do século XVI e XVII que a obra de Agostinho seria sublinhada com grandioso destaque. Nosso trabalho fez um salto histórico de Agostinho a Jansenius, visto que já tínhamos matizado o conceito de pecado original e livre arbítrio que será retomado por Jansenius. Percebemos que o jansenismo reafirma alguns pontos cruciais da doutrina da graça de Santo Agostinho do final do século IV e início do V. Temas como a predestinação, graça, livre arbítrio e pecado original são retomados. O palco da discussão envolve jansenistas, calvinistas, molinistas e luteranos. O caráter dialógico da obra de Agostinho e seu estilo literário influência muitos autores do século XVII. Baïus e Molina abrem a discussão, mas é 785 Santo AGOSTINHO, A graça e a liberdade, IV, 9, p. 33. 228 Jansenius que a intensifica com a publicação do Augustinus. Vimos que esta obra faz um compêndio das principais idéias de Santo Agostinho em sua discussão com Pelágio: eficácia infalível da graça sem prejudicar a liberdade (graça eficaz), cura da natureza humana e de seu restabelecimento na liberdade pela graça do Cristo redentor (poder, querer, fazer), necessidade da graça para toda boa obra, a graça como fator preponderante para fazer o bem e, por fim, crença na predestinação. Com a morte de Jansenius destacamos que Saint-Cyran assume a tarefa de propagador da doutrina jansenista. Com o envolvimento deste com a vida espiritual das freiras de Port-Royal o jansenismo ganha maiores proporções. Assim, vimos que um grupo de intelectuais aderem ao jansenismo e passam a viver a espiritualidade ascética de um agostianismo ortodoxo. Mas com a prisão de Saint-Cyran na bastilha, a defesa do jansenismo no palco acadêmico é confiado ao teólogo Arnauld. Este está prestes a ser condenado pela Igreja por heresia e a apelação a um recém convertido, Blaise Pascal, foi a saída mais sensata. É neste período bélico que Pascal assume a causa jansenista com grande força. Assim, encaminhamos o leitor para nosso último ponto da tríade acima. Vimos que a história de Pascal é marcada por um homem que viveu em seus primeiros passos o sofrimento. As doenças permeavam sua carne desde a juventude. Filho de um intelectual preocupado com a saúde fragilizada do filho, o pai fez questão de conceder ele mesmo a educação intelectual que o jovem precisara: em um primeiro momento nas línguas e depois na matemática. A curiosidade científica do pai impulsionaria, mais tarde, o jovem Pascal às reuniões dos grandes intelectuais da França. É neste grupo que a obra de Descartes é minuciosamente analisada e, no futuro, criticada. Vimos que Pascal vislumbrou Descartes como alguém que faz de Deus um argumento para sustentar sua física, filosofia e todo edifício do saber por ele construído. Deus tornar-se-ia pedra angular de raciocínios. Descartes é obstinado a conceber a verdade e a certeza a partir da certeza metafísica, Pascal, ao contrário, é um anti-metafísico; Descartes quer um método universal, Pascal prefere um conhecimento local. Sabemos que Descartes pôde propiciar a Pascal reflexões importantes em sua obra, mas é evidente o antagonismo deste embate. Desta maneira, percebemos que as controvérsias pulsavam dia a dia nas veias de Pascal desde suas primeiras reflexões com o grupo de pesquisadores de Paris, ou seja, não é nenhuma novidade que este caráter dialógico em ciência ao encontrar-se com um agostianismo também dialógico fariam de Pascal um grande interlocutor. Arnauld fez bom uso disso convocando Pascal para defender a graça evangélica – e também seu título de doutor na Sorbonne –, algo que nos faz lembrar o doutor da graça africano. 229 Antes de tal missão seu primeiro contato com dois jansenistas reforçou seu estudo da teologia, todavia, Pascal era alguém entranhado entre o mundo e a religião, ou seja, entre suas ocupações científicas e a leitura das escrituras. Todavia, vimos que é difícil traçar com toda certeza as disposições religiosas da família Pascal antes deste período. Sabemos que depois do contato com os jansenistas, Jacqueline manifesta o interesse de consagrar-se como religiosa, fato que era impedido pelo pai Étiene. Mas com a morte deste, Jacqueline entra para o convento e Pascal vê-se inteiramente só, pois sua irmã Gilberte havia se casado. Inicia-se a polêmica sobre o dote, algo que acentua um Pascal dividido entre o mundo e a religião. Mais tarde, Pascal cede, e a chamada segunda conversão traduz um momento ímpar na vida do filósofo francês. A tensão entre a Igreja e o mundo, o corpo e a alma, a razão e a fé só poderia ser dissolvida pelo criador ao qual tudo se converge. O caráter cristocêntrico em Agostinho é retomado ao pé da letra: em meio as contradições tudo converge para o Cristo mediador. A segunda conversão é um fator que estimula Pascal a escrever diversos textos que revelam tal centralidade na imagem do Cristo: Écrits sur la grace, Lettres Provinciales. Tal preponderância de escritos teológicos depois da conversão não podem ser desprezados como um fator periférico assim como as mudanças que afirmamos encontrar na obra de Santo Agostinho. Nestas obras de Pascal, a doutrinas da predestinação, graça eficaz, pecado original e livre arbítrio são expressamente retomadas do agostinianismo ortodoxo de Jansenius. Nos Provinciales a tentativa de evitar a condenação de Arnauld pela Sorbonne fracassa. Começa a perseguição dos jansenistas que calhou em sua condenação pelo papado, de forma que os hereges deveriam assinar um formulário que funcionaria como um reconhecimento de seus erros. Mas isso não acontece. A recusa da assinatura do formulário que condenava o jansenismo como doutrina herética seria o último grito daquele que procurou defender a graça evangélica aos moldes agostinianos. Pascal agora não se encontra entre a religião e o mundo, mas entre Deus e o Papa. Portanto, depois de termos contextualizado e matizado a concepção teológica agostiniana e jansenista, sublinharmos aspectos importantes da vida de Pascal, assim como a sua conversão e espírito dialógico, procuramos entender o Pascal teólogo e as possíveis implicações teológicas em sua obra, analisando a teologia pascaliana expressa nos Écrits sur la grace. Ao relacionarmos o pecado adâmico e a condição contingente do conhecimento humano mostramos que há um elo entre a teologia de Pascal e sua epistemologia. Vimos que o conceito de contingência em Pascal aponta para a ausência de verdade e falsidade, falta de 230 parâmetros que possibilitam um conhecimento puro e objetivo, ausência de natureza e desconhecimento das essências. Naturalizar para um pensador do século XVII é fazer manifesta a verdade pura, clara e distinta, no sentido cartesiano. Pascal rema contra a corrente na medida que introduz a noção matemática de probabilidade nas ciências, ao passo que estende esta noção para todas as áreas do saber. Provável e contingente são faces de uma mesma moeda: é desta forma que a nossa hipótese geral mencionada na introdução de nosso trabalho começa a ser corroborada, pois, no segundo capítulo, destacamos que a contingência fazer-se-ia presente depois da queda de Adão, dado que o pecado adâmico apresentou-se como causa da contingência. A contingência revela a incapacidade humana frente ao seu atributo mais notável: o conhecimento. Se os homens buscam a verdade, a contingência permeia tal projeto e impede a certeza de apreensão da mesma. A busca é sempre um caminhar em círculos entre a verdade e a falsidade, mas sem ter a certeza de tocar nem uma nem outra. A explicação deste estado para Pascal é teológica: a incapacidade do homem de conhecer a verdade e a falsidade, assim como a natureza de si mesmo e das coisas, são conseqüências da queda adâmica. A teodicéia da condição humana em Pascal mostra-se ligada à teologia pela doutrina do pecado original revelando suas conseqüências epistemológicas: a contingência apresenta-se na errância da verdade e da falsidade e na ausência de natureza, como afirma o comentador Luiz Felipe Pondé. Desta maneira, para entender o motivo desta condição contingente assumida por Pascal, mostramos a necessidade compreendermos a sua teologia. Descrevemos a posição de Lutero naquilo que diz respeito ao estado de natureza do homem antes e depois da queda para delimitar as fronteiras entre Luteranos e Pascal. A partir disto, verificarmos às implicações epistemológicas entre as duas fronteiras: dizer que a natureza depois da queda está totalmente corrompida – diferença qualitativa do homem antes e depois da queda – no sentido Luterano é apagar os vestígios de um primeiro estado de natureza que sustenta os termos primitivos – base e fundamento para a epistemologia de Pascal – e os axiomas, já que é pelo coração que sentimos, por exemplo que duas retas paralelas nunca vão se encontrar. É a partir destes dois elementos que o homem começa a raciocinar, afirma Pascal. A posição dos Luteramos dilacera a idéia de que os termos primitivos são sustentados pelo coração, fazendo da base do nosso raciocínio uma incógnita; também não explica o motivo pelo qual o homem tem uma idéia da verdade e da felicidade, visto que estas centelhas de verdade e felicidade servem de motor para a busca das mesmas. Pascal, desta maneira, fundamenta a filosofia e toda ciência na teologia, fazendo do logos prisioneiro da fé, visto que os termos primitivos e axiomas são sustentados pelo coração. 231 Assim, se há uma ciência, ela é a teologia, pois não depende de nenhuma outra, visto que seus termos e princípios são sustentados pelo coração, órgão pelo qual Deus age e, conseqüentemente, transforma-o com sua graça; entretanto, como vimos, Pascal não exclui nem logos nem fé. A razão depende da fé nos princípios e a fé entende, não como a razão, nem contra a razão, mas com o coração, lembrando a célebre frase de Pascal: “O coração tem razões que a razão desconhece; sabe-se disso em mil coisas.”.786 O conhecimento racional apresenta sua face contingente na incapacidade de compreender o que é da alçada do sentimento do coração, ato inteligente que supera a razão. Sublinhada as diferenças entre Pascal e Lutero e as possíveis conseqüências epistemológicas desta análise, descrevemos a concepção pascaliana do homem antes e depois da queda, pois é no pecado original, um divisor de águas em sua obra, que a contingência se manifestaria como conseqüência da desobediência adâmica. Verificamos que depois da queda a contingência apresenta-se fortemente nos textos de Pascal. Luiz Felipe Pondé e Jean Mesnard também concordam com a nossa hipótese de que a contingência é conseqüência da queda. Entretanto, Catherine Chevalley não trabalha a contingência como um desdobramento teológico, todavia, a contingência é vista como componente que permeia o mundo humano. Vimos que, para ela, o homem é um ser exilado de verdade e falsidade, pois a contingência é a companheira do homem. Ressaltamos os dois primeiros comentadores para revelar ao leitor que não estamos sozinhos em nossa hipótese, entretanto, Catherine Chevalley é alguém capaz de mostrar que a contingência na obra de Pascal, de maneira especial, na física, é algo muito forte, pois está presente em tudo aquilo que é humano. Não entramos nos meandros da física pascaliana que a autora analisa, todavia, a conclusão da comentadora em seu percurso não poderia ser diferente da nossa: o homem é incapaz de obter a certeza (verdade) do conhecimento, assim, conhecer, para Pascal, implicaria conhecer localmente, ao contrário de Descartes. A verdade passa a ser um nome. Ela torna-se uma teoria construída na relação entre princípios estabelecidos, ou seja, definições ou axiomas, e a tentativa de explicar a contingência – desorganização do mundo – a partir da rede de definições previamente construídas. Concluímos que o pecado original é um destes pontos fixos ou axiomas que nos permite analisar a condição humana contingente depois da queda, todavia, com um adendo: sublinhamos que o fundamento de tal doutrina, para Pascal, está além do limites humanos. É a graça que atua no coração – órgão da vontade e sensor de Deus – que pode fazer o homem sentir a fé e depois compreendê-la pela razão, iluminando, conseqüentemente, sua condição 786 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 423, Bru. 277, p. 164. 232 contingente, já que não compreende o mistério que é sua própria condição. A incompreensão do mistério ilumina o estado contingente do homem. Crer para depois compreender é traço de um típico agostiniano. Desta maneira, é na trama entre a fé e a compreensão, que permeia o pecado original, que a contingência se manifestaria. A fé faz o homem submeter-se a doutrina do pecado original e os mistérios que a envolvem, todavia, vimos que para ter fé é preciso ser eleito por Deus. Já que o homem não sabe quem será eleito ou não, a contingência já está atuando. Destacamos que esta doutrina funciona como um axioma. O homem deve submeterse pela fé – posição de humildade – e compreender-se como um ser contingente depois da queda, esta que é apontada por quatro mistérios incompreensíveis: o estado glorioso de Adão, a natureza do pecado de Adão, a transmissão do mesmo e a eleição são. O pecado atinge níveis cósmicos, ou seja, toda natureza está corrompida. As Escrituras, cânone da verdade, estabelecem o ponto fixo, um princípio, um axioma, ou seja, a doutrina do pecado original, sendo os mistérios aqueles que revelam a contingência humana, sua miséria, fazendo o homem submeter-se. Passo a passo Pascal constrói uma pedagogia da salvação. Princípio – doutrina do pecado original – e contingência – estado humano depois da queda vislumbrado pela incompreensão dos mistérios – interagem na teologia de Pascal: se por um lado a graça traz temor e o homem conhece de onde ele caiu – pecado original –, por outro, o mistério revela o tremor, ou seja, a incapacidade da razão humana de compreender o mistério. O homem depois da queda está imerso na contingência: conceber a doutrina do pecado original é conhecer a contingência a partir de um ponto fixo com fundamento teológico. Entretanto, vimos que Pascal é categórico: o homem seria muito mais incompreensível para si mesmo sem a doutrina do pecado original. Na verdade, seria a contingência – procura de uma teoria plausível sem nenhum critério de análise que pudesse ser verdadeiro, diversidade de teorias das escolas filosóficas – e sua relação consigo mesma – condição do homem e do mundo depois da queda para Pascal. Portanto, destacamos a metodologia de Pascal: mantendo as condições iniciais de maneira axiomática com o auxílio da fé outorgada por Deus na doutrina do pecado original, ele tenta justificar a contingência do homem e do mundo depois da queda mitigando a contingência e compreendendo a condição humana. Porém, a contingência nunca o abandona, visto que por mais que o cristão tenha fé, a doutrina do pecado original sempre fere a sua razão já que criancinhas de colo poderão ser condenadas ao fogo eterno. Partimos teologia, mostrando os desdobramentos da queda, dando maior ênfase à contingência. A contingência foi trabalhada como um conceito que se aplica ao homem enquanto busca conhecer o mundo e a si mesmo. Mas, naquilo que diz respeito à epistemologia, é na imaginação que ela manifesta seus contornos. Ela é um componente do 233 homem, uma potência enganosa na qual a contingência destaca-se claramente. Desta maneira, fizemos da imaginação nosso objeto do último capítulo. Neste último nossa hipótese geral foi cumprida. Verificamos que quando a razão começa a trabalhar os efeitos da imaginação se manifestam. Antes de analisar o conceito imaginação em Pascal, sublinhamos, de maneira sucinta, a concepção cartesiana do conceito. Vimos que para Descartes a imaginação também é uma potência enganosa, todavia, ele acredita que podemos discernir o que é o trabalho da imaginação e o que é o trabalho da razão. A primeira traz contingência, todavia, a razão, quando usada de maneira adequada e sob as diretrizes de um método, pode discernir a verdade que apareceria clara e distintamente sem ser corrompida pelos embustes da imaginação. Todavia, vimos que para Pascal a imaginação atua no sistema cognitivo do homem de outra maneira: não se pode discernir aquilo que é da imaginação e aquilo que é da razão. Imaginação e razão atuam conjuntamente e as inconveniências da imaginação produzem contingência quando o homem procura conhecer. Portanto, dirigimos nossa análise ao fragmento 44 dos Pensamentos.. Verificamos que o homem, na tentativa de conhecer o mundo e a si mesmo, possui duas portas que permitem-no receber as opiniões: o entendimento e a vontade. A primeira, Pascal destaca através do seu método geométrico composto por definições de nomes, axioma e demonstrações. Todavia, vimos que ele tem consciência que a construção do método é contingente: podemos construir uma diversidade de métodos. A segunda, Pascal considera a mais importante, visto que os homens estão mais próximos de consentir a uma opinião pela satisfação do que pelo entendimento. Mas quanto a esta segunda porta, destacamos que há uma desproporção grande entre o conhecimento humano e as distintas disposições de cada homem. Assim, a contingência aparece de forma mais direta, ou seja, para que um homem seja persuadido dependerá das filigranas das suas disposições pessoais. Portanto, Pascal mergulha o conhecimento na contingência na medida em que há uma diversidade de métodos e serem conhecidos e uma diversidade de sutilezas que fazem o homem consentir. Vimos que a dificuldade do homem em conhecer manifesta-se nas três ordens tendo a imaginação como causa e criadora de muitos efeitos. Destacamos que a imaginação por seus efeitos manifesta a contingência. O isolamento tanto da verdade quanto da falsidade é um deles. Assim, Pascal considera viável a tentativa de aliar a imaginação e a razão, visto que na guerra entre estas duas potências a imaginação sempre vence, sobrepujando a razão com maior força. Mas como a imaginação realiza tal papel? Vimos que Jean Mesnard afirma que a imaginação imita a razão interferindo em suas 234 operações e não permitindo discernir o real do imaginário, de modo que o mundo está condenado a proferir opiniões sem o esclarecimento se as mesmas são verdadeiras ou falsas. Acentuamos também que Ferreyrolles sustenta que imaginação não engana sempre e, portanto, não permite discernir quando engana: é desta forma que ela funciona como uma armadilha. Assim, diante da relação razão e imaginação, esta última confere razoabilidade, ou seja, constrói condições favoráveis para o consentimento das pessoas, criando, por seu efeito repetitivo, o hábito ou costume. Condições favoráveis e costume fazem as pessoas consentir, fato este que faz Ferreyrolles sustentar que a imaginação é uma potência que se encontra entre o interesse, circunstancial em cada ser humano, e o costume, tendo como efeito a persuasão. Já Bras e Cléro entendem que a imaginação por ser uma potência causa dificuldades na definição de sua natureza, assim como a razão, pois imaginação e razão estão intrinsecamente ligadas e para que possamos defini-las teríamos que separá-las, discerni-las enquanto potências na sua singularidade e depois traçar toda a cadeia de causa e efeito que compõe a relação entre as duas potências. Desta maneira, Pascal constrói uma relação entre a imaginação e a razão, associando tanto a essência da imaginação quanto da razão de maneira tão intrínseca que impossibilita o discernimento. É neste sentido que Pascal se diferencia de Descartes. A falta de discernimento é uma forma de subtrair o conceito de imaginação a uma associação ordinária ao conceito de loucura, destituindo os homens mais cordatos ou doutos dos efeitos da imaginação. Um exemplo de Pascal para esclarecer a atuação da imaginação nos mais cordatos tem como objeto o chevalier de Méré: diante da subjetividade do sentimento, ato inteligente que permite conhecer, a imaginação e a razão criam condições favoráveis para o discernimento, desta maneira, Pascal e Méré sustentam sentimentos distintos sobre um mesmo assunto – divisibilidade da matéria ao infinito –, de modo que a razão, afirma Pascal, não apresentaria uma regra que pudesse discernir com toda certeza a verdade. É neste sentido que a imaginação, potência enganosa que sobrepuja a razão, causa como efeito contingente a eqüipolência entre verdade e falsidade. Os comentadores Bras e Cléro também afirmam que a imaginação é uma potência criadora de realidades, afirmação que concordamos, todavia, sustentam que a imaginação não é uma potência produtora de conceitos, algo que discordamos. Sustentamos que imaginação é uma potência produtora de conceitos, realidades e natureza. Em uma polêmica sobre o vácuo com o padre Noel, um jesuíta, vimos que Pascal detecta que ele muda continuamente os conceitos de seus argumentos criando e imaginando novos. Este ato produtor de conceitos pela imaginação causa como efeito, sustenta Pascal, um discurso equívoco. Quanto à idéia de Bras e Cléro de que a imaginação produz realidades, 235 vimos que eles destacam que toda realidade tem uma relação com o eu mediada pela imaginação. Vimos que tal posição está de acordo com a idéia de Ferreyrolles de que a imaginação é uma potência entre o costume – realidade – e o interesse – atributo do eu. Mas foram os comentadores Brás e Cléro que aprofundaram a relação entre a imaginação e a composição da realidade sublinhando três efeitos da imaginação: ela se faz critério de análise, ela projeta nosso ser onde não estamos e desloca o conhecimento por sua capacidade de associação. Quanto à produção de natureza, detectamos quatro efeitos da imaginação na sua relação de submissão com a razão. O primeiro é a contingência entre a proposta teórica da razão e seu funcionamento real, o segundo é a contingência da razão na sua irascível relação com a imaginação, o terceiro é a contingência em um mesmo sujeito e o quarto efeito é a contingência dos fatos ou eventos naturais. Desta maneira, vimos que os efeitos da relação de submissão entre imaginação e razão constroem aquilo que Pascal chama de natureza. Tal conceito, destaca Ferreyrolles, é usado ironicamente, pois o sujeito do conhecimento passa a chamar de natureza aquilo que é um repetição contínua de um humor ou fato, ou seja, costume. Diante disso, vimos que a imaginação produz natureza. É neste sentido que Bras e Cléro ressaltam que a imaginação é uma potência que proporciona uma mudança de ponto de vista, pois o que era costume passa a ser natureza. Tal mudança de ponto de vista poderá conceder como efeito uma constância ou inconstância, repetição ou não-repetição de uma opinião. Como vimos, a contingência manifesta-se como efeito desta potência enganosa criando conceitos, realidades e naturezas, mas também causa seus efeitos nos sentidos. O exemplo que Pascal usou para mostrar os efeitos da imaginação nos sentidos foi a cena do célebre filósofo andando na tábua. O filósofo é alguém apto a entender que está em perfeitas condições de segurança, mas a imaginação dissolve a segurança e causa como efeito o empalidecer e o suor: é por este motivo que Pascal afirmaria que a imaginação suspende os sentidos e fá-los sentir. A potência enganosa causa no filósofo uma desconfiança da razão, algo totalmente contrário à perspectiva filosófica que surge como um empreendimento grego que tem o recurso à razão como fator preponderante em um discurso. O comentador Ferreyrolles sublinha que esta passagem do filósofo na táboa é uma figura da queda. Assim, a imagem permeia a terceira ordem ao apontar a queda, a segunda ordem ao fazer os leitores tremerem com tal cena e a primeira ordem ao fazer o filósofo suar. Ressaltamos que Bras e Cléro também defendem que há uma ligação entre a queda e a imaginação, de modo que a imaginação é incompreensível se não se refere à queda. Portanto, Ferreyrolles, Bras e Cléro estão de acordo quanto à relação entre imaginação e queda. Nossa pesquisa, como vivos, traz como novidade o conceito de contingência que se insere entre a queda e a imaginação. A 236 queda causa contingência que se manifesta pela imaginação. A imaginação permeia a vida humana fazendo do homem um ser na contingência, entretanto, vimos que o homem não é totalmente passivo aos embustes da imaginação, pois alguém que é versado em imaginação poderá fazer bom uso dos efeitos dela, visto que ele é um sábio nesta arte. Destacamos que Galileu e Pascal são exemplos de versados em imaginação: Galileu no uso de experiências imaginárias para sustentar a não-operatividade do movimento e Pascal transformando a maneira de nossos órgãos dos sentidos captar o mundo, como vimos no fragmento 199 dos Pensamentos sobre os abismos do infinitamente grande e infinitamente pequeno. Para Pascal, se a vista cansa, conseqüentemente, a imaginação atua, de modo que podemos imaginar muitas coisas, mas não podemos imaginar tudo. Ferreyrolles destaca que os sentidos e a imaginação, vistos como faculdades inferiores, submetem a razão, de modo que a imaginação quer fazer-se onipotente. Ele destaca que o desejo de onipotência é causa do pecado de Adão e Eva e a imaginação aponta para o pecado quando persuade as pessoas dos seus efeitos poderosos. Um versado em imaginação é alguém que faz bom uso destes efeitos, ao contrário dos prudentes que, como vimos, são aqueles que não fazem uso da imaginação em seus discursos, não conhecem os efeitos da imaginação e os possíveis resultados de seu uso. Os versados em imaginação usam da imaginação, por exemplo, para persuadir um juiz, pois ele sabe que há uma grande quantidade de elementos circunstanciais que podem coagir sua sentença, como a voz rouca de um pregador ou sua aparência. Desta maneira, a imaginação com seus efeitos circunstanciais desloca a objetividade e o essencial. Ela coage o julgamento construindo o respeito, a veneração entre as pessoas, a veneração dos livros, aos grandes e a leis. Vimos que Pascal sublinha uma diferença capital entre a essência da lei e a lei: o que conhecemos são as condições circunstanciais que alguns homens imaginam e determinam como leis. Os comentadores Bras e Cléro sustentam que este é o argumento maior para compreender a justeza da justiça em Pascal. Os juízes acreditam que as leis são essenciais ao passo que a imaginação leva a confundir o essencial e o acidental. Os versados em imaginação usam da crença dos juízes de que a lei é justa essencialmente e dos elementos circunstanciais que persuadem os juízes para produzir seus argumentos. Diante disso, tentamos identificar como Pascal descreve a ação dos juízes. Três ítens contribuíram para esta busca. Descrição dos elementos que contribuem para o julgamento do juiz, descrição da ação efetiva do juiz quando o pregador aparece e, por último, constatação do efeito que a imaginação causa. 1º) Os elementos que integram o julgamento do juiz foram descritos por Pascal: a velhice, que causa confiança aos ouvintes, a razão, que garante a justeza de um julgamento, o 237 julgamento pela natureza, sinônimo de uma lei justa em sua essência, e as circunstâncias que os ouvintes acreditam não afetar o julgamento do impassível juiz. 2º) A ação do juiz quando o pregador aparece: o pregador apresenta-se com voz rouca, feições estranhas, barba mal feita e manchas na pele e Pascal afirma a perda da gravidade do juiz, ou seja, ele não é impassível em seu julgamento. 3º) Tais acidentes totalmente contingentes causam um efeito, afirma Mesnard e Ferreyrolles: o riso. O juiz desaba no riso por causa dos elementos circunstanciais que compõe a cena, assim, o riso é o terceiro ítem que diz respeito ao efeito da imaginação. Depois de identificado estas três etapas, tentamos destacar como a imaginação atua detalhadamente. A idéia foi de sublinhar a ação da máquina imaginativa nas filigranas do conceito. A partir de uma citação de Ferreyrolles construímos a seguinte grade conceitual que permitiu analisar a ação da máquina imaginativa: o corpo (sentidos) é afetado; a imaginação é impressionada, assim como a razão, pois ambas estão ligadas; a razão interpreta, junto à imaginação; a imaginação e a razão devolvem a interpretação da razão ao corpo; o corpo produz um efeito. Em seguida, aplicamos tal grade à ação do juiz: o juiz tem os sentidos afetados por um acontecimento: o aparecimento do pregador; a imaginação capta as impressões junto à razão: voz rouca, feições estranhas, barba mal feita e manchas na pele; a razão do juiz junto à imaginação interpreta a impressão do pregador; depois de interpretada a imaginação e a razão devolvem a interpretação que fizeram ao corpo; o corpo manifesta a ação da imaginação e da razão: o riso. Esta relação contagiosa Pascal chama de cordas da imaginação. São elas que constroem o respeito. A imaginação tenta estabelecer como essencial àquilo que é contingente. Assim, vemos que a potência enganosa cria uma rede de relações que permeiam o julgamento do juiz. Tal rede também manifesta-se na produção de uma ordem social. Mesnard afirma que na desordem e na contingência uma ordem é introduzida: a imaginação constrói uma rede de relações sociais que legislam um determinado contexto. A contingência apresenta-se na medida que uma outra organização destas cordas imaginativas poderá estabilizar outras leis ou o caos. Todavia, sublinhamos que Pascal não tem o objetivo de descrever todos os efeitos da imaginação, assim, nossa pesquisa se deteve em esclarecer alguns deles que Pascal menciona: a herança de um cargo político, como vimos no caso do homem perdido na ilha; a herança de uma fortuna, esta que dependerá da vontade do legislador; a escolha de uma profissão, dependente do elogio ou não elogio de outrem; a confiança que as pessoas outorgam à ciência e sua relação com a instrução, visto que a imaginação que constrói o costume, desta maneira, o conhecimento torna-se um costume estabilizado; as vertigens causados pelos olhares dos gatos e dos ratos; o julgamento de um 238 juiz que é afetado pelo barulho de uma ventoinha, uma polia ou uma mosca. Assim, Ferreyrolles afirma que a imaginação é o sofista da alma e Bras e Cléro afirmam que, assim como a imaginação constrói o respeito, ela constrói a felicidade na medida que associa a posse da felicidade a um objeto ou idéia, todavia, na medida que o sujeito possui o objeto ou a idéia a imaginação cria outros objetos ou outras idéias dos mesmos para serem buscados. Em seu ato construtor a imaginação constrói também a justiça para cada homem, motiva um julgamento ou o empenho na defesa de uma causa. Portanto, analisamos o procedimentos dos advogados e de sua relação com a imaginação. Vimos que os advogados, assim como os juízes, também possuem elementos que deslocam seus critérios de análise e os fazem consentir que um caso é mais justo que o outro, motivando-se mais para um do que para outro. A afeição à causa, o ódio e o dinheiro são elementos que motivam ainda mais o advogado e fazem com que o mesmo produza gestos eloqüentes que persuadem os juízes. Mesnard afirma que mais uma vez o critério de avaliação do essencial é o inessencial: por exemplo, quantidade de dinheiro, elemento contingente e vão, que determinaria o julgamento. Outro fator destacado por Pascal é o que chamamos de dogma da neutralidade: a contingência daqueles que são parciais ou não o são em um julgamento poderá determinar a justiça de um caso, todavia, vimos que a falta de discernimento quanto a eficácia do resultado é a marca daqueles que são neutros ou não: a neutralidade pode construir um julgamento justo ou injusto, assim como a não-neutralidade poderá construir um julgamento justo ou injusto. A contingência apresenta-se na falta de discernimento e mergulha o julgamento nos efeitos aparentes que afetam os advogados e juizes. Assim, a imaginação cria aparências que causam efeitos persuasivos nas pessoas que são afetadas por seus solavancos. Destacamos que Pascal cataloga alguns elementos externos usados pelos magistrados, médicos e doutores: togas vermelhas, arminhos, palácios onde julgam, flores-de-lis, batas, barretes quadrados, roupas amplas de quatro partes. Estes elementos são denominados por Pascal como um “aparato augusto”. Eles são associados aos magistrados, aos médicos e aos doutores curvando a opinião do povo ao respeito: Pascal sublinha que se os magistrados tivessem a verdadeira justiça, os médicos a garantia da cura e os doutores o entendimento da verdade, tais acessórios seriam inócuos. Assim, a falta daquilo que é essencial faz com que os mesmos construam o inessencial. Ao contrário disso, afirma Pascal, os reis não necessitam destes disfarces. O rei possui a força efetivamente. Seus guardas e todo cortejo real que o acompanham fazem a todos tremer. Assim, percebemos que a imaginação não exerce o seu papel em um 239 primeiro momento. É a força que mitiga a contingência. Todavia, vimos que a força depende da imaginação em um segundo momento para que ela possa exercer seu papel na sociedade. A imaginação integra a força no mundo e não permite que o povo sinta-se acuado pela brutalidade. É desta maneira que o rei, contentando seus súditos ao gerenciar o desejo de cada um, aliviando a necessidade dos mesmos e esforçando-se para ser generoso, persuade o povo pela imaginação e subtrai seu reino da tenção causada por um reinado estabelecido pela força. Desta maneira, a força torna-se instrumento da imaginação. A imaginação estabelece um estado de paz tão desejado pelo soberano e, portanto, mitiga a contingência. As instituições políticas tornam-se órgãos que organizam o espaço físico e as relações sociais que dar-se-iam através das grandezas de estabelecimento: é desta maneira que Pascal destitui toda a naturalidade de um construto social do homem. As grandezas de estabelecimento estão condenadas a contingência da vontade humana e da instituição das mesmas pela imaginação. Terminamos nosso trabalho salientando que, para Pascal, a queda causa a contingência, eqüipolência entre verdade e falsidade, e a imaginação manifesta-se com efeitos capazes de fazer-nos visualizar a contingência em um mundo em que todos nossos esforços, polêmicas, descobertas, amores, sofrimentos, fracassos, doenças e morte só terão sentido se estiverem voltados para o Criador: “É bom ficar lasso e cansado pela inútil busca do verdadeiro bem, a fim de estender os braços ao Libertador.”.787 787 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 631, Bru. 422, p. 270. 240 BIBLIOGRAFIA Obras de Blaise Pascal: PASCAL, Blaise. Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963. ___. Adresse à l`Académie Parisiense. In: ___. Ouvres complètes. Edição de Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963, p. 101 – 103. ___. De l` Esprit Geométrique et de l` Arte de Persuader. In: ___. 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