ARTIGO DE REVISÃO
Crises hiperglicêmicas agudas no diabetes melito Aspectos atuais
Hyperglycemic crises in diabetes mellitus - Current aspects
Antonio C. Pires*
* Professor Adjunto da Disciplina de Endocrinologia da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto
Resumo
Palavras-chave
Abstract
Keywords
A cetoacidose diabética e o estado hiperglicêmico hiperosmolar são as duas complicações agudas mais
graves que observamos durante a evolução do diabetes melito. Em centros de excelência, a taxa de mortalidade para a cetoacidose diabética é <5% enquanto que, para o estado hiperglicêmico hiperosmolar ainda continua elevada, em torno de 15%. Entre os fatores precipitantes, os estados infecciosos são as causas mais
comuns, predominando as do trato respiratório alto, as de vias urinárias e as pneumonias. A patogênese da
descompensação metabólica da cetoacidose diabética é mais bem entendida do que a do estado hiperglicêmico hiperosmolar. Fundamentalmente, na cetoacidose diabética o que ocorre é a redução da concentração
efetiva de insulina circulante associada à liberação excessiva de hormônios contra-reguladores, entre eles, o
glucagon, as catecolaminas, o cortisol e o hormônio de crescimento. Esta combinação, libera grandes
quantidades de ácidos graxos livres na circulação. No fígado, estes ácidos graxos livres são oxidados em
corpos cetônicos, resultando assim em cetonemia e acidose metabólica. Os principais critérios diagnósticos
utilizados para a cetoacidose diabética são, a glicemia >250mg/dL, o pH arterial <7.3, o bicarbonato sérico
<15mEq/L e graus variáveis de cetonemia e cetonúria. Para o estado hiperglicêmico hiperosmolar são, a
glicemia em geral >600mg/dL, a osmolalidade sérica >330mOsm/Kg, o pH arterial >7.3 e o bicarbonato sérico
>18mEq/L com discreta cetonemia. As metas terapêuticas para as crises hiperglicêmicas agudas são, a liberação das vias aéreas superiores, a correção da desidratação com solução salina, a correção dos distúrbios
eletrolíticos e da acidose, a redução da hiperglicemia com insulina em baixas doses e a identificação e o
tratamento dos fatores precipitantes.
Diabetes melito; cetoacidose diabética; estado hiperglicêmico hiperosmolar.
Diabetic ketoacidosis and the hyperosmolar hyperglycemic state are the two most severe acute complications
that are observed in diabetes mellitus. Managed properly, the mortality rate for diabetic ketoacidosis is less
than 5% in experienced centers, whereas for the hyperosmolar hyperglycemic state it still remains high, about
15%. Among precipitating factors, infeccious diseases are the most common, mainly of the upper respiratory
and urinary tracts and pneumonia. The pathogenesis of diabetic ketoacidosis is better understood than that
of the hyperosmolar hyperglycemic state. Fundamentally, in diabetic ketoacidosis the basic underlying mechanism is a reduction in the net effective action of circulating insulin associated with a concomitant elevation
of counter-regulatory hormones, such as glucagon, catecholamines, cortisol and growth hormone. This combination releases great amounts of free fatty acids into the circulation from adipose tissues (lipolysis) that are
transformed by oxidation to ketone bodies, causing ketonemia and metabolic acidosis. The main criteria used
to diagnoses diabetic ketoacidosis are plasma glucose>250mg/dL, pH<7.3 and serum bicarbonate<15mEq/L
and variable degrees of ketonemia and ketonuria. To diagnose hyperosmolar hyperglycemic state, the criteria
are plasma glucose greater than 600mg/dL, serum osmolality>330mOsm/kg, pH>7.3 and serum
bicarbonate>18mEq/L with mild ketonemia. The main therapeutical purposes of treating acute hyperglycemic
crises require care of the upper airways, correction of dehydration with fluid therapy (saline solution), correction of eletrolyte imbalance and acidosis, reduction of hyperglycemia with low-dose insulin therapy, and
identification as well as the treatment of comorbid precipitating events.
Diabetes mellitus; diabetic ketoacidosis; hyperosmolar hyperglycemic state.
Recebido em 18.02.2005
Aceito em 14.06.2005
262
Arq Ciênc Saúde 2004 out-dez;11(4):262-5
Introdução
A cetoacidose diabética (CAD) e o estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH) são as duas complicações agudas mais graves que podem ocorrer durante a evolução do diabetes
melito(DM) tipo 1 e 2 .É importante salientar, que durante muitos
anos a CAD foi considerada uma complicação específica do DM
tipo1. Recentemente, a literatura tem demonstrado vários relatos de CAD em indivíduos com DM tipo 2 . Apesar de haver
algumas diferenças significantes entre essas duas complicações,
como por exemplo, a desidratação mais acentuada, o sódio com
tendência a elevação durante o tratamento, a glicemia mais elevada e leve cetonúria no EHH, a fisiopatologia, as manifestações clínicas e o tratamento são similares.Em centros de excelência, a taxa de mortalidade para CAD é < 5% enquanto que,
para o EHH ainda continua elevada, sendo ao redor de 15%.O
prognóstico de ambas, depende das condições de base do paciente, com piora sensível em idosos, gestantes e portadores de
doenças crônicas1-9. Em vista do exposto, e considerando a gravidade destas complicações, esta revisão destaca aspectos fisiopatológicos da CAD e EHH, com ênfase no tratamento.
Fatores precipitantes
Os estados infecciosos são as etiologias mais comuns de CAD
e EHH. Entre as infecções, as mais freqüentes são as do trato
respiratório alto, as de vias urinárias e as pneumonias. Além
disso, na prática diária temos que valorizar outros fatores importantes tais como, acidente vascular cerebral, ingesta excessiva
de álcool, pancreatites, infarto agudo do miocárdio, traumas e o
uso de drogas lícitas e ilícitas. Em jovens, distúrbios psiquiátricos acompanhados de irregularidades na condução da dieta ou
no uso diário de insulina, podem contribuir para episódios recorrentes de CAD. O uso crescente de compostos denominados de antipsicóticos atípicos entre eles, a clozapina, a olanzapina e a risperidona podem desencadear quadros de DM, inclusive com quadro inicial de CAD. Atualmente, o uso mais freqüente de bombas de infusão contínua subcutânea de insulina ultrarápida tem se observada incidência significante de CAD. Isto
pode ocorrer devido à obstrução parcial ou total do cateter provocando redução aguda de infusão de insulina. Vale lembrar
que, em diabéticos do tipo 1 recém-diagnosticados a descompensação costuma ser mais prolongada e mais grave. Em pacientes diabéticos idosos ou que desconhecem o diagnóstico de
DM, associado a processos infecciosos subclínicos ou com limitações do autocontrole podem evoluir mais facilmente com
EHH1,10-21.
Fisiopatologia
O processo de descompensação metabólica na CAD é mais
bem compreendido do que no EHH, embora os mecanismos básicos de ambas as situações sejam similares.Fundamentalmente,
o que ocorre é a redução na concentração efetiva de insulina
circulante associada à liberação excessiva de hormônios contrareguladores entre eles, o glucagon, as catecolaminas, o cortisol
e o hormônio de crescimento. Em resumo, estas alterações hormonais na CAD e no EHH desencadeiam o aumento da produção hepática e renal de glicose e redução de sua captação nos
tecidos periféricos insulina sensível, resultando assim, em hiperglicemia e conseqüente hiperosmolalidade no espaço
extracelular.Portanto, a hiperglicemia é resultante de três mecanismos ou seja, ativação da gliconeogênese e da glicogenólise e
redução da utilização periférica de glicose.Ainda, a combinação
de deficiência de insulina com o aumento de hormônios contraArq Ciênc Saúde 2004 out-dez;11(4):262-5
reguladores provoca a liberação excessiva de ácidos graxos livres do tecido adiposo (lipólise), que no fígado serão oxidados
em corpos cetônicos (B-hidroxibutírico e acetoacético) resultando em cetonemia e acidose metabólica. Por outro lado, no
EHH a concentração de insulina que é inadequada para facilitar
a utilização de glicose nos tecidos periféricos insulina sensíveis, é suficiente para prevenir a lipólise acentuada e a cetogênese que normalmente ocorre de forma intensa na CAD. Finalmente, em ambas as situações, na CAD e no EHH observamos
glicosúria de grau variável, diurese osmótica, perda de fluidos e
eletrólitos, principalmente sódio e potássio1,22,23.
Diagnóstico
História e exame físico
O quadro clínico da CAD e do EHH representa uma evolução
lenta e progressiva dos sinais e sintomas de diabetes melito
descompensado.Entre eles, a poliúria, a polidipsia, a perda de
peso, as náuseas, os vômitos, a sonolência, o torpor e finalmente, o coma uma ocorrência mais comum no EHH. Ao exame físico,
na presença de acidose, podemos observar a hiperpnéia e em
situações mais graves a respiração de Kussmaul. A desidratação, com pele seca e fria, língua seca, hipotonia dos globos
oculares, extremidades frias, agitação, fácies hiperemiada, hipotonia muscular, pulso rápido e a pressão arterial variando do
normal até o choque. A intensificação da desidratação dificulta e
torna doloroso o deslizamento dos folhetos da pleura e do peritônio, podendo se observar defesa muscular abdominal localizada ou generalizada, sugerindo o quadro de abdome agudo.Em
alguns casos ocorre dilatação, atonia e estase gástrica agravando o quadro de vômitos. O atraso no início do tratamento da
acidose e da desidratação pode evoluir com choque e morte1,24.
Achados laboratoriais
A avaliação laboratorial inicial de pacientes com CAD e com
EHH deve incluir a determinação de glicose plasmática, uréia/
creatinina, cetonemia, eletrólitos inclusive com o cálculo de anion gap, osmolalidade, análise urinária, cetonúria, gasometria,
hemograma e eletrocardiograma. Solicitar RX de tórax, culturas
de sangue e urina. Os critérios diagnósticos para CAD são, a
glicemia >250mg/dL, pH arterial <7.3, bicarbonato sérico < 15mEq/
L e graus variáveis de cetonemia e cetonúria. Para o diagnóstico
de EHH são, a glicemia geralmente > 600mg/dL, osmolalidade
sérica > 330mOsm/kg e ausência de cetoacidose grave.Além disso, pH sérico maior ou igual a 7.3, bicarbonato sérico >18 mEq/L
e discreta cetonemia e cetonúria. A maioria dos pacientes com
crises hiperglicêmicas agudas se apresenta com leucocitose (entre 20 e 30000 células/mm3) devido à intensa atividade adrenocortical. O sódio sérico geralmente é baixo na CAD pela transferência osmótica de líquidos do intra para o extracelular, vômitos
e também, a perda renal associada aos corpos cetônicos. No
diagnóstico da CAD o potássio sérico pode estar elevado (devido à acidose), normal ou baixo dependendo das reservas prévias intra e extracelular e exige muito cuidado durante o tratamento pelo risco de arritmias ou até parada cardíaca. Os valores de
fosfato podem estar normais ou elevados apesar da deficiência
corporal total. Os níveis elevados de uréia e creatinina refletem a
depleção de volume intravascular. Outros achados comuns são
a hipertrigliceridemia e a hiperamilasemia que quando acompanhada de dor abdominal podem sugerir o diagnóstico de pancreatite aguda1,5,7. (cálculos bioquímicos para anion gap: [Na+( Cl-+ HCO-3)]= 7-9mEq/L e osmolalidade total: 2x[Na+ (mEq/L)] +
263
glicose(mg/dL)/18 + Uréia(mg/dL)/6 =285 mOsm/KgH2O.
Diagnóstico diferencial
Cetose de jejum, cetoacidose alcoólica, acidose pelo uso de
drogas como salicilatos e metformina e outras causas de acidose com anion gap elevado tais como, na acidose lática e na
insuficiência renal crônica. Estas situações são facilmente confirmadas pela história clínica e glicose sérica1,25.
Tratamento
As metas do tratamento das crises hiperglicêmicas agudas
são: a) cuidados com as vias aéreas superiores e em casos de
vômitos, deve-se indicar sonda naso-gástrica;b) correção da
desidratação; c) correção dos distúrbios eletrolíticos e ácido
básico; d) redução da hiperglicemia e da osmolalidade; e) identificação e tratamento do fator precipitante.
Para a correção da desidratação, na ausência de comprometimento da função cardíaca e renal deve-se indicar solução salina
isotônica(NaCl 0.9%) em média 15 a 20 mL/Kg/hora buscandose rapidamente a expansão intra e extracelular(A,1A). A escolha
subseqüente de fluidos depende dos eletrólitos séricos e da
diurese. Quando o sódio está normal ou elevado(> 150mEq/L)
deve-se prescrever solução salina hipotônica(NaCl 0.45% em
média 4 a 14mL/Kg/hora). Com a função renal normal, inicia-se
infusão de 10 a 15 mEq/L de KCl /hora com o objetivo de manter
o potássio sérico entre 4 e 5 mEq/L. É importante comentar que
estes pacientes, principalmente se evoluírem com falência cardíaca ou renal devem ser continuamente monitorados do ponto de
vista hemodinâmico para prevenir a sobrecarga de líquidos.
Para corrigir a hiperglicemia e a acidose inicia-se a terapia insulínica. Os pontos de discussão em relação a insulinoterapia, regular ou ultra-rápida, são as doses (altas versus baixas) e as vias
de administração, subcutânea(SC), intramuscular(IM) ou infusão intravenosa contínua. Atualmente, o uso de baixas doses é
consenso em todos os casos de CAD e EHH e a via de escolha
é a infusão intravenosa contínua de insulina regular ou ultrarápida com dose média de 0.1U/Kg/hora (5 a 7 U/hora) nos casos graves(A,1A). Apesar de muitos estudos desde a década de
70 demonstrarem a mesma eficácia e segurança pelas vias SC ou
IM/hora, recomenda-se usar estas vias apenas nos casos leves
ou moderados(A,1A). A expectativa de queda da concentração
de glicose com baixas doses de insulina é em média de 50 a
75mg/dL/hora. A correção gradual da glicemia e da osmolalidade
pode-se evitar o edema cerebral clínico(B,2C). Quando a concentração de glicose na CAD atingir 250mg/dL e no EHH 300mg/
dL deve ser iniciado o esquema com soro glicosado 5% e insulinização SC com insulina regular a cada 4 horas de acordo com
a avaliação clínica e laboratorial.Os critérios de controle da CAD
são, glicemia <200mg/dL, bicarbonato sérico >18mEq/L e pH
>7.3. Assim que o paciente conseguir se alimentar, deve-se iniciar o uso de insulina basal associado a múltiplas injeções de
insulina regular ou ultra-rápida.Em pacientes com diagnóstico
prévio de diabetes, devemos prescrever a mesma dose anterior a
crise hiperglicêmica.Em recém-diagnosticados, indica-se uma
dose que pode variar entre 0.3-0.5U/Kg/dia, fracionadas em pelo
menos 2 aplicações. A utilização de bicarbonato na CAD é controversa, mas a literatura considera prudente o uso em baixas
doses quando o pH estiver <6.9 ou hipercalemia grave.(A,1B).
Em alguns casos, a cetonemia pode persistir com cetonúria negativa. E o contrário também é verdadeiro, com a melhora aparente da cetonemia, a cetonúria continuar positiva.Nestes casos, está recomendado manter a infusão de insulina e a hidrata-
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ção por tempo mais prolongado com avaliações freqüentes26.
As desvantagens do uso inapropriado de bicarbonato de sódio
são a possibilidade de alcalose metabólica de rebote, acidose
liquórica paradoxal, edema cerebral, hipopotassemia e anóxia
tecidual.(cálculo sugerido: Bicarbonato=Peso corporal x 0.3 x
Excesso de base/2). Apesar do déficit de fosfato corporal total, o
seu uso na prática do tratamento da CAD está raramente indicado. Vários trabalhos prospectivos e randomizados não conseguiram provar efeito benéfico1,8,27-33.(B,2C).
Complicações
As complicações mais comuns da CAD e do EHH são a hipoglicemia secundária ao uso inadequado de insulina, hipopotassemia devido à administração excessiva de insulina e de bicarbonato, a hiperglicemia secundária à interrupção de infusão de
insulina sem cobertura correta de insulina subcutânea, hipoxemia, edema agudo de pulmão e hipercloremia devido à infusão
excessiva de fluídos. O edema cerebral, é uma complicação rara
no adulto, mas que pode evoluir com herniação de tronco cerebral e parada respiratória. As doenças agudas rino-cerebrais
(mucormicoses) também podem ocorrer principalmente, em indivíduos com comprometimento imunológico. A insuficiência renal aguda, a rabdomiólise e os fenômenos tromboembólicos são
incomuns, e quando presentes, são secundários à desidratação
grave.1,23,34-42
Conclusões
Em pacientes com diabetes, principalmente os do tipo 1, devemos dar ênfase ao bom controle metabólico com insulinoterapia
e orientação educacional a eles e as suas famílias. Devem estar
orientados como proceder em casos de doenças intercorrentes
ou em outras situações agudas, que possam descompensá-los.
A auto-monitorização capilar com o uso de insulinas de ação
rápidas e o fácil acesso ao serviços médicos, podem prevenir ou
amenizar os quadros mais graves diminuindo assim, a morbimortalidade destas complicaçoes.
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