A ATIVIDADE DE CONCRETIZAÇÃO DO(A) LEITOR(A)
IMPLÍCITO(A) NA ESTRUTURA NARRATIVA:
um estudo do folhetim "Laurentina"
Irinaldo Lopes Sobrinho Segundo'
Wagner Lima Maciel"
Márcia Manir Miguel Feitosa'"
Maria de Fátima Sopas Rocha ••••
RESUMO
Estudo do folhetim "Laurentina", publicado em 1879, no periódico "A
Flecha", tendo como suporte teórico da Teoria da Literatura a vertente
conhecida como Estética da Recepção. Fruto do trabalho desenvolvido
pelo projeto "O Folhetim à luz da Estética da Recepção: imagens de leituras
e de leitores no Maranhão do século XIX", o presente artigo objetiva
analisar a atividade de concretização desempenhada pelo(a) leitor(a)
implícito(a) na estrutura narrativa do referido folhetim, assinado pelo
sugestivo pseudônimo Vaz Ilha.
Palavras-chave:
folhetim; Estética da Recepção; leitor.
ABSTRACT
This study is about the jeuilleton "Laurentina", published ia the periodical
"A Flecha", in 1879 and has the theoretical support of the Aesthetic of
Reception, a slope of Theory of Literature. This article is result of the
project "The Feuilleton inlightened by the Aesthetic of Reception:
01
impressions ofreadings and readers in Maranhão ofthe 19 century, which
intends to analyze the activity of concretization performed by the reader
implicit in the narrative structure ofthejeuilleton afore mentioned, signed
by the suggestive pseudonym Vaz Ilha.
Keywords:jeuilleton;
Aesthetic ofReception;
reader.
•Aluno do curso de Letras e bolsista de Iniciação Científica do CNPq
"Aluno do curso de Letras e bolsista de Iniciação Científica do CNPq
"·Prof'. Ora. do Departamento de Letrasda Universidade Federal do Maranbão - Coordenadora do Projeto
"O folhetim à luz da Estética da Recepção: imagens de leituras e de leitores no Maranhão do século XIX"
•••• Prof'. do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão - Co-orientadora do Projeto "O
folhetim à luz da Estética da Recepção: imagens de leituras e de leitores no Maranhão do século XIX".
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Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 2, p.24-38,jul./dez.
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1 INTRODUÇÃO
A Literatura, enquanto expressão artística que faz uso da palavra,
demanda a observância de seu caráter inerentemente comunicativo e
dialógico por parte do estudioso que
se propuser a analisá-Ia de modo
coerente e científico, uma vez que
a alienação a este fato tomará a análise parcial e/ou superficial.
O fenômeno literário se concretiza por meio de um processo
dialético no qual, necessariamente,
o autor, a obra e o leitor concorrem
concomitantemente para a formação de um sentido que, por sua vez,
reflete uma intencionalidade por
parte do autor, uma conjuntura histórico-social intrínseca à obra e um
critério de valor estético por parte
do receptor (leitor), que é produto
de sua própria experiência acumulada através da leitura de textos anteriores.
Sendo evidente este fato, desprezar ou não dar a devida relevância ao dialogismo que permeia toda
e qualquer produção literária é,
igualmente, desprezar a própria essência da Literatura, pois, segundo
Hannelore Link, esta constitui "um
caso especial de comunicação"
(LINK apud ZILBERMAN, 1994,
p.14).
Desse modo, no contexto
interacional da Literatura, o diálogo entre o emissor (autor) e o receptor (leitor) se concretiza no ato
da leitura.
A especificidade da obra literária, no que tange ao seu caráter
comunicativo, reside no fato de esta
se apresentar ao receptor, simultaneamente, como signo autônomo e
signo comunicativo, revertendo-se,
no ato da recepção, em signo estético. Signo autônomo na medida em
que a formação de seu sentido se
realiza por meio da articulação entre as partes que constituem o todo.
Signo comunicativo porque pressupõe e demanda um receptor.
A Teoria da Estética da Recepção, formulada por Hans Robert
Jauss em 13 de abril de 1967, na
palestra que iniciou o semestre letivo na Universidade de Constança,
na Alemanha e cujo título foi "O
que é e com que fim se estuda História da Literatura? ", questiona o
estudo do fenômeno literário sob a
ótica da História da Literatura em
seus moldes tradicionais, criticando sua proposta meto dológica, uma
vez que esta:
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história clássica da Literatura [...]
apenas se pretende uma forma da
escrita da história, mas, na verdade, move-se numa esfera exterior à
dimensão histórica e, ao fazê-lo, fa-
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lha igualmente na fundamentação
do juízo estético que seu objeto - a
literatura, enquanto uma fonna de
arte - demanda (JAUSS, 1994,
p.6).
Os argumentos propugnados
por Jauss, para fundamentar esta
crítica contundente, encontram-se,
segundo este teórico, no próprio
fazer histórico-literário, uma vez
que os estudos literários que se
intitulam históricos, falham ou pelo
posicionamento histórico, ou pela
indevida adoção de um critério de
valor estético que se prende unicamente a cânones clássicos ultrapassados. Ao historiador literário cabe
apenas a descrição dos acontecimentos concernentes ao fenômeno
literário em um determinado espaço, devidamente delimitado em
uma escala temporal, sem que haja
o pronunciamento de veredictos referentes ao aspecto qualitativo de
obras literárias de épocas passadas.
Ao questionar a História da
Literatura em seus moldes tradicionais, H. R. Jauss apontou suas deficiências teóricas e práticas e propôs um novo direcionamento dos
estudos literários que se estabelecem no plano histórico, sem decretar, contudo, o fim da perspectiva
adotada até então, o que de fato não
ocorreu e evidencia-se ainda hoje.
Com o advento da Estética da
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Recepção, o leitor (categoria desprezada ou negligenciada sob a ótica das vertentes da Teoria da Literatura até então em voga, como o
Estruturalismo, o Formalismo e o
Marxismo) foi alçado a uma posição de destaque e relevância nos
estudos literários. Segundo Jauss, o
leitor consiste no foco a partir do
qual cumpre examinar a Literatura
e, mais especificamente, a recepção
de determinada obra.
Desse modo, para Jauss, um
estudo histórico da Literatura somente seria eficiente e coerente com
o que propõe, se mudasse o foco de
orientação, antes centrado no texto, de acordo com uma visão
imanentista ou, então, arraigado a
uma ideologia externa ao fenômeno literário. Para o leitor, pois, ainda segundo o teórico alemão, se
uma obra é lida, é porque ela é compreendida.
A partir da afirmação de R. G.
Collingwood, segundo o qual "só
se pode entender um texto quando
se compreendeu a pergunta para a
qual ele constitui uma resposta
(COLLINGWOOD apud JAUSS,
1994,p.37). H. R. Jauss utiliza a lógica da pergunta e da resposta como
sua principal categoria metodológica, uma vez que esta possibilita a
interpretação da obra e, também, a
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reconstituição do diálogo desta com
seu público original e subseqüente.
Tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade, a obra literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre
literatura e leitor - relação esta que
pode ser entendida tanto como
aquela da comunicação (informação) com o receptor quanto como
uma relação de pergunta e resposta
(JAUSS, 1994, p. 23).
Ao dar relevância ao papel desempenhado pelo receptor (leitor)
na formação do sentido de obras literárias, Jauss opôs às tradicionais
estéticas da produção e da representação a estética da recepção e
do efeito.
O presente artigo visa a analisar a atividade desempenhada
pelo(a) leitor(a) implícito(a) na estrutura narrativa do texto - a
concretização - tendo como objeto
de estudo o folhetim "Laurentina"
(publicado no periódico "A Flecha", em 1879) e como suporte teórico a vertente da Teoria da Literatura conhecida como Estética da
Recepção.
2 A ESTÉTICA DA
RECEPÇÃO
Hans Robert Jauss, no ano de
1975, realizou uma exposição, du-
rante um congresso bienal de romancistas alemães, no qual historia
o surgimento da Teoria da Estética
da Recepção e situa o movimento
na ordem dos acontecimentos políticos e intelectuais da década de 60.
Esse período foi caracterizado por
transformações na vida universitária em particular e na sociedade
ocidental de modo geral. Nas universidades surgiram instituições
modernas e descentralizadas, com
um maior diálogo entre professores
e alunos.
No entanto, foi na sua aula
inaugural, na Universidade
de
Constança, em 1967, que o teórico
alemão expôs a Teoria da Estética
da Recepção pela primeira vez. A
"Provocação" de Jauss, como foi
conhecida sua conferência, começa pela recusa vigorosa dos métodos de ensino da História da Literatura, que eram considerados tradicionais e desinteressantes. Ele a
defme como uma pesquisa sobre os
efeitos da Literatura no leitor, bem
como
uma
superação
do
Formalismo e do Marxismo.
A teoria
da Escola
de
Constança busca uma superação do
Estruturalismo, que não dava respostas sobre a Literatura em uma
dimensão histórica, baseando-se
apenas no conceito de estrutura. O
ponto de partida da Estética da Re-
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cepção é o Formalismo russo e a
Teoria da Crítica Literária Marxista. H. R. Jauss recusa o dogmatismo
e vê a possibilidade de abertura das
novas tendências ou das correções
que se fizessem urgentes.
Em linhas gerais, a proposta de
Estética da Recepção, de uma reabilitação metodológica da História
da Literatura com a intenção de
torná-Ia fundamento para uma Teoria da Literatura, que eqüidistasse
entre o Estruturalismo e o Marxismo, encontra
eco no que
propugnava Hans George Gadamer,
ex-professor de Jauss na Universidade de Constança, que em 1961
publicou a obra Verdade e método
a partir da qual propõe uma nova
direção à Hermenêutica, atribuindolhe o papel de intérprete da históna.
Como Gadamer, que ofereceu
ao pensamento alemão a possibilidade de uma reflexão filosófica,
Hans Robert Jauss recupera a história como base do conhecimento
do texto e, por essa via, traz de volta o intérprete ou leitor.
No que se refere ao folhetim,
o espaço concedido ao leitor constitui fator determinante para a conjunção de possibilidades que se consideram fundamentais no processo
de leitura.
Ao se tratar de Estética da Re28
cepção, deve-se norte ar a análise
considerando que o ato de leitura
pressupõe uma receptividade, gerada pelo jogo de interação que se
estabelece no processo dialético em
que se situam o autor e o leitor e
cujas relações - sociais e históricas
- são mediadas pelo texto.
2.1 Recepção e efeito
o leitor, no processo
interacional da Literatura, ocupa o
espaço de destinatário de uma determinada mensagem (texto) que,
por sua vez, funciona, também,
como canal da relação dialógica
estabelecida entre autor (emissor) e
leitor (receptor) no ato da leitura.
Desse modo, a recepção constitui
o fenômeno que ocorre quando uma
obra literária é lançada e que se repete, posteriormente, ao longo da
história de sua existência, ou seja,
este termo designa a acolhida que
o público leitor de um determinado
contexto histórico e estético dispensa a uma determinada obra, marcando, assim, a própria vitalidade do
objeto literário, que se verifica por
sua capacidade de se manter em
constante diálogo com o público.
De acordo com os pressupostos metodológicos da Teoria da Estética da Recepção, a História da
Literatura, para que seus estudos
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respondam satisfatoriamente à empresa a que se propõem, deve aterse de modo especial à recepção,
sendo, desse modo, mais coerente
com o papel desempenhado pelo
leitor no fenômeno literário.
A resposta ou reação do leitor
ou de toda uma ideologia atuante
em um sistema estético ou histórico-social' de um certo período, a
uma obra literária representa o efeito. Através deste efeito, a relação
entre a Literatura e a vida social
toma-se direta e indissociável, uma
vez que este pode representar o
surgimento de novas orientações
estéticas, normas de comportamento, condutas sociais ou ideológicas,
modificando, portanto, o status quo.
2.2 Concretização
o texto literário, devido ao seu
caráter subjetivo,
dialético
e
dialógico, apresenta em sua estrutura pontos de indeterrninação, lacunas e vazios que são preenchidos
pelo receptor no ato da leitura
(interação), deflagrando, assim, o
processo interacional inerente ao
fenômeno literário, e, conseqüentemente, à formação do sentido da
obra.
Fundamentado
por esta
constatação, Wolfgang Iser (teórico alemão parceiro de H. R. Jauss e
Cad. Pesq., São Luís,
v. 14,
importante elemento na formação
da Teoria da Estética da Recepção)
utiliza o conceito de concretização
como sendo, justamente, a atividade desempenhada pelo(a) leitor(a),
ao entrar em contato com o texto,
isto é, preencher os vazios presentes na obra por meio da ativação de
sua experiência estética, fruto de
seu diálogo com textos anteriormente lidos e concretizados. Desse
modo, na complexa engrenagem
que forma a estrutura do texto literário, o leitor se toma peça precípua
para a realização do sentido e, ao
mesmo tempo, responsável pela
recepção da obra, que só pode ser
compreendida, in totum, enquanto
forma de comunicação.
Wolfgang Iser retomou o conceito de concretização de dois estudiosos do fenômeno literário,
Roman Ingarden e Felix Vodicka,
de maneira a conjugar seus pontos
de vista, sem, contudo, contradizêlos. Para R. Ingarden, o leitor é o
"responsável pelo preenchimento
dos pontos de indeterminação próprios ao estrato dos objetos apresentados" (ZILBERMAN, 1994, p.14).
Porém "essa circunstância não confere maior relevância ao destinatário, nem restringe a autonomia da
obra" (ZILBERMAN, 1994, p.1415). F. Vodicka refere-se à atividade concretizadora numa acepção
n. 2, p.24-38, jul./dez. 2003
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diferente. De acordo com esse teórico do Círculo Lingüístico de Praga,
a concretização depende antes do
código introjetado pelo recebedor,
sendo,
pois, uma categoria
semiótica e estando sujeita a mudanças, por variar entre épocas,
classes,
situações,
diferentes
(ZILBERMAN, 1994, p.23).
W. Iser, com base nas conclusões de R. Ingarden, decreta a existência de uma estrutura de apelo
[Appelstruktur], pois o texto literário não se apresenta como um todo
hermético; seu sentido advém da
atividade de concretização desempenhada pelo leitor que, de acordo
com o pensamento de F. Vodicka,
depende dos códigos que o receptor introjeta na obra. Porém, W. Iser
não contraria Ingarden:
as orientações dadas pelo texto se
impõem ao leitor, cujas predisposições não têm força suficiente para
alterar ou afetar a estrutura básica
(e, neste caso, imutável) de uma
obra
de arte
(rSER. apud
ZILBERMAN, 1994, p.65).
2.3 Leitor implícito e leitor
explícito
Wolfgang
Iser
faz
o
discemimento de leitor implícito e
leitor explícito, partindo do pres30
suposto de que há dois tipos de
concretização: uma que responde ao
horizonte implícito de expectativas,
sendo de cunho intraliterário, uma
vez que se apresenta como uma proposta viável para a formação de sentido da obra; e outra, extraliterária,
que é referente à analise das expectativas que têm sua origem na experiência existencial dos leitores
reais.
Ao
primeiro
tipo
de
concretização, corresponde o leitor
implícito: aquele a quem o texto se
dirige diretamente, discernido por
meio da análise das estruturas objetivas da obra. À concretização
extraliterária corresponde o leitor
explícito: o indivíduo inserido em
um contexto histórico-social que se
apresenta como o principal responsável pela recepção de um determinado texto literário, ao acolhê-Ia
negativa ou positivamente, de acordo com um critério de valor e de
sua experiência estética.
Para um efetivo desempenho
da atividade do historiador literário,
H. R. Jauss privilegia, a priori, a
concretização do leitor implícito,
por se tratar do primeiro passo para
a definição da recepção e do efeito
de uma obra literária em distintas
épocas, espaços e por diferentes
públicos leitores.
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3 A LITERATURA
FOLHETINESCA
3.1 O romance folhetim
Na segunda metade do século
XIX, a diminuição do analfabetismo e a criação de uma imprensa
mais acessível favoreceram
a
popularização de um gênero literário: o romance-folhetim. O termo
"folhetim" - feuilleton - era atribuído inicialmente ao espaço vazio no
rodapé dos jornais - rez-dechaussée - que era destinado à publicação de diversas formas de entretenimento. O proprietário do jornal parisiense La Presse, Êmile de
Girardin, utilizou o termo "folhetim" para indicar a forma do romance publicado em capítulos, com certa freqüência e regularidade, que foi
cada vez ocupando um lugar de
maior destaque. Em 1840, a forma
definitiva do folhetim foi configurada; passara a ser escrita estritamente para a divulgação em capítulos, adaptando a estrutura narrativa às exigências que as publicações teriam a cumprir. Segundo
Alexandre Dumas, essa estrutura
deveria conter diálogos vivos, com
personagens tipificados e, acima de
tudo, demonstrar senso apurado no
momento do corte do capítulo, man-
tendo o suspense e incentivando o
leitor à compra do próximo número.
Na França, o gênero literário
folhetinesco, seguindo a corrente
romântica, teve excelente acolhida
junto ao público-leitor durante todo
o século XIX. A partir de 1885, proliferaram no Brasil os folhetins de
autores nacionais, que no geral eram
imitações de narrativas francesas.
Apenas ocasionalmente apareciam
costumes ou algum hábito típico da
região. A maior parte dessas obras
oferecidas aos leitores apresentava
um estilo ingênuo, "água com açúcar".
o folhetim torna-se progressivamente um grande fenômeno de
aprovação popular, contando com
a participação do leitor que define
a linha da trama, censura o comportamento dos personagens e decide
pela supressão ou ressurreição destes. Ele também apresenta notáveis
caminhos de compreensão de uma
época, do seu público-leitor, essencialmente feminino. Isso só se tornou possível depois que foi concedido às mulheres o direito ao livre
exercício da leitura, antes feito às
escondidas.
Esses romances eram especialmente dirigidos a moças e mulhe-
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res que, numa sociedade dominada
pelos homens, encontravam, naquele gênero literário, matéria para alimentar seus sonhos e fantasias com
o "príncipe encantado", fugindo,
assim, de maneira efêmera, da sua
condição de mulheres submissas e
enclausuradas.
Os jornais foram o principal
meio de veiculação do romance-folhetim. A veiculação diária de parte das histórias garantia a venda
daqueles periódicos e, algumas vezes, foi o principal motivo de sua
publicação.
Ao fazer parte do cotidiano,
especialmente do público feminino,
o folhetim fornece elementos para
a compreensão de época, do próprio
público-leitor e da interação autorobra-leitor, a ser analisada com o
auxílio da Teoria da Estética da
Recepção.
3.2 "A flecha"
Em princípios do ano de 1879,
o maranhense Celso Magalhães e o
português Manuel de Bethencourt,
apoiados por outros nomes de destaque no circuito
intelectual
ludovicense de então, fundaram o
periódico "A Flecha". Paula Duarte,
Aluízio Azevedo, Eduardo Ribeiro,
Agripino Azevedo e João Afonso
do Nascimento eram os principais
32
contribuintes para a redação deste
jornal que, devido às suas particularidades, representou efetivamente um grande avanço na história da
imprensa maranhense. A partir do
advento de "A Flecha", depois de
aproximadamente 35 anos de atraso em relação à imprensa nacional,
o jornal maranhense passou a contar com um importante recurso visual: a ilustração.
João Afonso do Nascimento
(1855-1924) foi o responsável por
grande parte das ilustrações impressas em "A Flecha", que representam uma preciosa contribuição à
pesquisa sobre a história dos usos e
costumes maranhenses, na segunda metade do século XIX.
"A Flecha" se apresentava
como um periódico essencialmente satírico. Seus textos, notas e seções exercitavam um humor fino e
cáustico, uma verdadeira artilharia
sarcástica por parte dos redatores
cujo principal alvo estava na sociedade maranhense e nos seus costumes. Os artigos eram assinados por
pseudônimos
que atestavam a
comi cidade do jornal, tais como:
Xixi; Pli-Pli; Pim-Pom; Peteleque;
Pinto Galo, etc. Devido à grande
profusão
de
pseudônimos
registrados e à dificuldade de estabelecer uma relação com o quadro
de colaboradores do jornal, o conhe-
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cimento da verdadeira autoria dos
textos publicados apresenta-se
como uma empresa de difícil execução.
À época do aparecimento de
"A Flecha", o Maranhão, no que diz
respeito à sua produção intelectual
e literária, encontrava-se em um
período de pouca efervescência;
embora, no contexto nacional, era
vasta a gama de idéias a serem discutidas. Segundo Jomar Moraes, na
introdução fac-similar do jornal:
A Flecha surgiu em momento propício ao debate das grandes causas
que agitaram a vida brasileira nas
últimas décadas do século XIX, em
que estavam no ar as questões da
abolição da escravatura, da proclamação da República, de uma nova
estética literária, enfim - uma confluência de anseios renovadores em
todos os sentidos, que vinham no
bojo da idéia nova, esse caudaloso
ideário que, inspirado no materialismo cientificista, tinha como expressões
o evolucionismo,
o
determinismo,
o
contraespiritualismo,
o liberalismo, o
anticlericalismo, o positivismo, o
naturalismo, o livre-pensamento
(A FLECHA, 1980, p. 3).
Dentre seus textos destaca-se
o folhetim jocoso "Laurentina",
publicado em 1879, e que constituirá objeto de estudo no item a seguir.
3.3 "Laurentina"
Escrito em sete capítulos,
"Laurentina" trabalha habilmente a
expectativa dos leitores no desenvolver de sua trama rocambolesca,
na qual as características estéticas
ultra-românticas são articuladas de
modo satírico e peculiar.
Assinado pelo pseudônimo
Vaz Ilha, o folhetim tem como enredo a relação trágico-amorosa dos
personagens Laurentinae Lauro. O
autor-narrado r, lançando mão de
recursos irônicos e apelativos, mostra-se hábil na estruturação de sua
narrativa, com o intuito de sustentar o envolvimento do leitor, num
claro processo de interação em que
se defrontam o texto, com seu universo de valores e o horizonte de
expectativas do autor, e o leitor, a
quem cabe atualizar a mensagem
ficcional, mediante o preenchimento dos vazios abertos, deixados pela
mão da autoria.
4 LAURENTINA: a atividade de
concretização dofa) leitor(a)
implícito(a)
A atividade de concretização
é exercida continuamente pelota)
leitor(a) implícito(a) na estrutura do
texto por meio da narrativa estrategicamente elaborada, mantendo o
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receptor (leitor) em suspense, condição sine qua non para uma
satisfatória e eficiente acolhida do
público do gênero folhetinesco, e
evidência inequívoca do êxito obtido pela obra.
Na literatura folhetinesca, uma
das principais estratégias utilizadas,
com o intuito de estabelecer uma
tensão (expectativa) sobre o desenrolar dos fatos, diz respeito ao corte dos capítulos, que obedece ao
duplo princípio de continuidade são os mesmos personagens que
reaparecem - e descontinuidade as ações narradas são diversificadas
-, fazendo com que o receptor (leitor), antes mesmo de entrar em contato com o próximo capítulo, ative
sua experiência estética, devidamente inserida em um horizonte de
expectativa de acordo com a produção literária da época.
Inicia-se, assim, o processo de
concretização que culminará, por
meio da conexão seqüencial entre
os capítulos, na formação do sentido do texto, de acordo, obviamente , com as marcas textuais contidas
no corpus da obra, bem como com
os pontos de indeterminação intrínsecos à natureza literária, que constituem a estrutura de apelo textual.
O narrador-autor, do folhetim
"Laurentina", desenvolve seu enre34
do com plena ciência da atividade
concretizadora exerci da pelo destinatário de sua mensagem. Desse
modo, lança mão de variados recursos narrativos, para que o leitor,
enquanto entidade implícita e explícita, enverede no labirinto textual
e, seguindo as "pistas", descubra
uma "saída" (sentido), que é o produto tanto de seu exercício
concretizador, quanto da habilidade do autor, evidenciada pela capacidade de articular as partes do texto de modo coerente e coeso.
Um primeiro ponto que merece destaque, no que tange à atividade de concretização, são os títulos dos sete capítulos que, por si só,
já fazem referência à tensão que irá
tomar conta da narrativa: Romance
que promete; Romance que ainda
promete; Romance que continua a
prometer; Romance que é grande
em promessas; Romance que continua para satisfazer a impaciência
de alguns leitores; Romance que
está quasi acabando; Romance que
não acabou a mais tempo por causa do theatro.
Cônscio da expectativa gerada no(a) leitor(a), ansioso(a) por
desvendar o conteúdo dessas "promessas", por conta dos títulos estrategicamente atribuídos aos capí-
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tulos, o narrador-autor tece uma
conexão sutil entre as três primeiras partes da narrativa, exigindo,
assim, que o receptor interaja com
o texto, questionando-o, levantando hipóteses, preenchendo as lacunas deixadas, visando a reverter a
narrativa folhetinesca, fragmentária
e fragmentada, em um todo pleno
de sentido.
No
primeiro
capítulo,
Laurentina encontra-se à beira-mar,
meditando,
à espera de um
"D.Juan". Por obra do acaso, ela o
antevê entre as vagas, porém, prestes a se consumar o encontro, o fluxo narrativo é interrompido e é feito o corte no capítulo. No capítulo
subseqüente, a ação narrada é outra, as unidades de tempo e espaço
também. Em um café, um grupo de
rapazes bebe e dialoga, na expectativa do aparecimento de um suposto "héroe". Surge, então, Lauro que,
apesar de ser o personagem central
na trama, não merece uma descrição minuciosa por parte do narrador
que repassa esta atividade aos leitores implícitos na estrutura narrativa:
Era Lauro.
Poupem-nos ou desculpem uma
pintura de Lauro. Imaginem um
heróe de romance, cada qual segundo a sua fantasia e ahi o teem (A
FLECHA, 1980, p.35).
Lauro estabelece um diálogo
com personagens secundários presentes neste trecho, no qual
questionamentos são levantados:
"(Lauro) E onde foste parar?" (A
FLECHA, 1980, p.35).
Contudo, as respostas não
constam do texto. A indeterminação
paira sobre a trama, deixando o plano narrativo fértil para a atividade
do receptor:
- Não sei, concluía Lauro levantando-se.
E saio.
Olharam-se todos attonitos, cada
um com uma interrogação
nos
olhos (A FLECHA, 1980, p.35).
o que se encontra no terceiro
capítulo é a transcrição de uma carta direcionada a Laurentina, na qual
são feitas promessas de amor e devoção. Porém, antes do término da
leitura da missiva e, mais do que
isso, antes da explicitação do remetente, o fluxo narrativo é novamente interrompido de maneira estratégica: "- Que é isto? que papelada é
esta? - Ah! Meu pae!" (A FLECHA,
1980, p.44).
Devido
à estruturação
folhetinesca, a conexão lógico-semântica entre os três primeiros capítulos se faz única e exclusivamente no plano da concretização implícita. O próprio autor-narrador
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depreende e confirma este fato no
princípio do capítulo IV, que constitui um espécie de exegese do folhetim.
É uma explicação este capitulo.
Lauro amava Laurentina.
Faço aos leitores a justiça de crer
que já haviam percebido isto (A
FLECHA, 1980, p.66).
Contudo, alguns pontos de
indeterminação mais específicos
ainda persistem na narrativa. A atividade de concretização se faz constante no ato da leitura, de modo que
o diálogo entre autor (emissor) e
leitor (receptor), mediado pela obra
(mensagem), venha a satisfazer dúvidas, questionamentos e lacunas
presentes. O autor deve conduzir o
leitor, por meio da estrutura de apelo, à formação do sentido precípuo
do texto, tendo, porém, perspicácia
para não incorrer na falha, extremamente prejudicial à tensão narrativa, de explicitar seu enredo in
totum. Desse modo, estaria induzindo o leitor e restringindo sua autonomia, desprezando sua experiência estética e comprometendo a atividade de concretização.
Vaz Ilha, autor-narrador-estrategista, conhece bem este preceito:
Vou romper estas trevas, vou narrar tudo e já n'este capítulo, porque odeio o sistema de certos ro-
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mancistas que pousam um ponto de
interrogação em frente dos leitores
e dizem: - é o que vamos explicar
no seguinte capítulo.
Eis um modo de torturar a curiosidade, que eu não approvo (A FLECHA, 1980, p.66).
Porém, na conclusão do mesmo capítulo, o autor-narrado r incita , de maneira mais intensa, ainda
a expectativa do leitor pelo desfecho da obra. Vaz Ilha dá com uma
mão e tira com a outra:
Fica, pois, explicado o mysterio que
transpiraram os primeiros capítulos
e promettemos continuar esta narrativa na primeira occasião (A FLECHA, 1980, p. 67).
Nos capítulos V e VI, o autor
narra a consumação do amor entre
Laurentina e Lauro. Este fato veio
a despertar a ira do "Commendador
***", personagem anônimo, pai de
Laurentina, que incumbiu seu filho,
Carlos, de disputar um duelo com
Lauro em defesa da honra da
donzela. Lauro mata Carlos. O
"Commendador ***", vendo seu
filho morto, é acometido por uma
apoplexia e também falece. Algumas pessoas, que assistiam a esta
fatídica cena, também duelam entre si , resultando em mais dois cadáveres. Lauro presenciava atônito
a cena, quando avistou Laurentina
se aproximando. A jovem donzela
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se precipita na direção de Lauro e
aperta fortemente a garganta do
amado.
Nova interrupção no fluxo narrativo, coincidente com o clímax do
enredo. É aberta mais uma "fenda"
no corpus textual, para que o público leitor adentre no campo fértil
da obra e, exercendo seu papel de
"semeador" (concretizador), faça
brotar o sentido deste romance folhetim.
O último
capítulo
de
"Laurentina" reserva ao receptor
um acontecimento
inaudito:
Laurentina,
num
ataque
intempestivo de cólera, ao se deparar com os cadáveres do irmão e do
pai, mata o amado Lauro. Porém, o
desfecho do capítulo se apresenta
ainda mais surpreendente, uma vez
que Laurentina é assassinada a
bordoadas por uma personagem secundária quase sem referências na
trama: uma professora inglesa,
Mistress Linderley, preceptora da
família da personagem-título que,
após cometer o assassínio, suicidase com um golpe de tesoura na
jugular. Suas últimas palavras (que
ironicamente são também as primeiras em toda a narração), proferidas enquanto agoniza sobre o cadáver de Lauro: "- For always ...",
mais uma vez atraem o leitor para
o exercício concretizador e, desse
modo, fazem com que este
depreenda que Mistress Linderley
era apaixonada por Lauro. A revelação de um amor platônico e fora
de suspeitas conclui a narrativa de
"Laurentina".
Um
artifício
folhetinesco jocoso que traz à baila
uma crítica irônica a uma estética
literária que, à época da publicação
deste romance folhetim, chegava a
seu ocaso - a estética ultra-rornântica.
Em um derradeiro intento de
astuciosidade e interação com oCa)
leitor(a) implícito(a) na estrutura
narrativa de "Laurentina", Vaz Ilha,
no epílogo anexo ao capítulo VII,
faz uma provocação
ao seu
interlocutor por meio do texto:
Somos forçados a terminar aqui,
por falta de gente.
Mas quem sabe ainda ao que pode
acontecer!
Estariam bem mortas aquellas sete
pessoas?
[...]
É o que havemos de ver no romance que temos em mão, para continuar este (A FLECHA, 1980,
p.158).
5 CONCLUSÃO
De acordo com os pressupostos da Teoria da Estética da Recep-
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ção, pode-se observar que é de am-
pla pertinência a sua aplicação ao
estudo do gênero folhetim, pois
através dos conceitos desenvolvidos sobre recepção e efeito, leitor( a)
implícito(a), concretização, evidenciou-se a atividade interacional do
leitor com o objeto literário.
Com essa análise mais acurada
do folhetim, também se tornou possível identificar o público a que
eram destinadas essas narrativas,
seus hábitos, expectativas e seus
costumes. Demonstra-se através
disso a relação indissociável entre
literatura e sociedade, em que uma
se reflete na outra.
REFERÊNCIAS
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Luís: SIOGE, 1980. (Edição fac-similar)
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São Paulo: Ática, 1989.
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14, n. 2, p.24-38, jul./dez. 2003
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um estudo do folhetim "Laurentina" - PPPG