ESTÉTICA E ÉTICA
EM MONROE C. BEARSDLEY
Victor Silva
Os objectos são em si mesmo neutros, mas não os usos que lhes
podemos dar. Por isso, por extensão do domínio axiológico constituído
pelos agentes e respectivos actos, podemos ajuizar, a partir de diversos
pontos de vista, os objectos que utilizamos. Entre esses objectos encontram-se as obras de arte. Ter experiência destas tem consequências individuais e colectivas, quer de carácter estético quer não estético, nomeadamente moral.
Ao longo da história da reflexão filosófica sobre a obra de arte, há
autores que subordinam o valor estético ao moral, outros que subordinam
o valor moral ao estético e um terceiro grupo que procura alguma forma
de articulação que preserve a especificidade de cada um dos dois valores.
Neste terceiro grupo inclui-se o filósofo americano Monroe C. Beardsley.
1. A experiência estética
O conceito de experiência estética é o mais importante na teoria de
Beardsley. Permite, em primeiro lugar, definir o conceito de obra de arte
e, em segundo lugar, justificar a fruição das obras de arte pelas suas consequências morais. Para a caracterizar e distinguir das demais experiências, Beardsley propõe a utilização de cinco critérios: a orientação pelo
objecto, a liberdade sentida, o afecto separado, a descoberta activa e a
totalidade. Se o primeiro deles e pelo menos três dos outros quatro se
derem na experiência, ela deve ser considerada definitivamente como
estética.
1
1
Monroe C. Beardsley, "Aesthetic Experience", in Monroe C. Beardsley, The Aesthetic
Point of View: Selected Essays, Michael J. Wrecn c Donald M . Callen (orgs.), Ithaca,
Cornell University Press, 1982, pp. 288-293.
Philosophica
19/20, Lisboa, 2002, pp. 177-183
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A orientação pelo objecto é a aceitação pelo fruidor de que o fluxo
dos seus estados mentais seja conduzido pelas propriedades do objecto
da atenção, com o sentimento de que as suas componentes estão articuladas. É um processo de exploração e descoberta gradual de um objecto
que nos atrai, mesmo se apenas intencional, tal como uma possibilidade
sugerida por uma personagem, numa peça de teatro.
A liberdade sentida é, por um lado, uma sensação de desprendimento em relação às preocupações anteriores à experiência e, por outro
lado, um sentimento de distensão e de harmonia com o que o objecto nos
apresenta ou invoca, de tal modo que, dominando nós agora as coisas,
parece ter sido livremente escolhido por nós. É esta liberdade que é por
vezes condenada pelo puritanismo religioso ou político como um escapismo ou alienação estética relativamente às exigências da vida.
Por afecto separado entende Beardsley aquela relação emocional
paradoxal em que, por um lado, somos afectados pelo que nos é proposto, seja, por exemplo, empolgante ou terrível, e que, por outro lado, possibilita que não nos deixemos dominar por ele, antes permite que nos
situemos acima do que acontece.
No que respeita à arte, esta característica da experiência estética é
favorecida pelo carácter artificial, ficcional das obras, embora possa não
ocorrer com as criações mais realistas ou com aquelas cuja apreensão
estética deve estar associada à sua funcionalidade, como na arquitectura.
A descoberta activa é, em certo sentido, o contraponto da primeira
característica. Com efeito, nem a experiência estética é uma contemplação passiva do objecto, nem este é, muitas vezes, adequadamente compreendido numa primeira e imediata apreensão. A descoberta activa é um
acto cognitivo que intui e descobre relações e significados entre estímulos conflituais. Por isso, o que se descobre pode ser ilusório. Nas obras
de arte complexas, tal descoberta proporciona uma gratificação similar à
das descobertas científicas e matemáticas. Mas mesmo em obras minimalistas, ou naquelas em que a componente intelectual é reduzida, há
sempre algo para ser compreendido.
A totalidade é um sentimento de integração da pessoa derivado da
actividade de síntese dos elementos da experiência ao longo do tempo em
que decorre.
A experiência estética assim caracterizada é obtida sobretudo na
nossa fruição e compreensão das obras de arte, mas também se encontra
na nossa relação com outros objectos, em especial na natureza, e mesmo
com as pessoas.
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2. A obra de arte
Beardsley considera as obras de arte, em primeiro lugar, como
objectos que, ao longo de uma tradição de vários séculos, têm sido criados com uma finalidade principal: proporcionar experiência estética aos
seus fruidores. Uma vez criadas, a maioria das obras de arte é classificada em géneros - escultura, gravura, música - , por críticos, artistas, historiadores da arte, atendendo a algumas características comuns consideradas relevantes. Depois de consagradas socialmente as respectivas
designações, é fácil, então, alargar o seu domínio de aplicação a novas
obras, criadas ou não com propósito estético. Esta possibilidade explica
que materiais etnográficos, como máscaras de rituais mágicos, ou achados arqueológicos, como cerâmica utilitária, possam integrar, de pleno
direito, o acervo dos museus dedicados à arte.
2
É esta compreensão da obra de arte e da sua finalidade que informa
a definição que Beardsley propôs num dos seus últimos artigos. "Uma
obra de arte é ou um arranjo de condições com intenção de ser capaz de
proporcionar uma experiência com carácter estético marcado ou (ocasionalmente) um arranjo pertencente a uma classe ou tipo de arranjos com a
intenção típica de que tenha esta capacidade."
Com esta definição, Beardsley pretende excluir do âmbito da arte
algumas obras de vanguarda, como 4'33", de John Cage, e The Wolfman,
de Robert Ashley, porque o silêncio da primeira e o "barulho insuportável" da segunda não têm intenção estética, mas se destinam precisamente
a questionar essa compreensão instituída da arte.
Para as obras que apenas protestam social ou politicamente, defendem teses ou provocam surpresa, rejeição ou enfado, mas que são apresentadas em espaços públicos, galerias ou museus, Beardsley pretende
que se reserve a designação de peças de exibição.
Com efeito, o dinamismo da arte conduziu os artistas a produzir
obras que não só criticam os princípios orientadores que informaram as
criações anteriores, mas a apresentar inovações que tornam "artístico" o
que anteriormente era excluído. É a consciência dessa ultrapassagem e,
finalmente, a anulação das fronteiras do que é considerado artístico que
se traduz na afirmação de que "tudo pode ser arte". E suficiente que
alguém designe um objecto como obra de arte para que adquira esse
estatuto. Reciprocamente, esse acto de designação é suficiente para que
tal pessoa se torne um artista. Esta prática frequente do mundo da arte,
segundo Timothy Binkley, não pode ser questionada pelos filósofos.
3
2
Monroe C. Beardsley, "Redefining Art", in The Aesthetic Point of View, pp. 299-303 e
306.
3
Op. Cit, p. 299.
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No entanto, contrapõe Beardsley, se tudo pode ser obra de arte, se
nenhum critério pode ser invocado para distinguir entre o artístico e o
não artístico, tal significa que não é seguida nenhuma regra no mundo da
arte. Ora, essa intenção de indiferenciação não pode ter maior legitimidade do que a de operar distinções. Por isso, a prática dos artistas de
vanguarda e os textos dos críticos que a apoiam não permanecem imunes
à análise filosófica, ao contrário do que pretende Binkley.
A definição de Beardsley não pretende explicar, portanto, o uso
actual do termo "obra de arte", mas justificar, do ponto de vista estético,
por que é que um objecto deve ser considerado uma obra de arte. Devido
à proposta de revisão da terminologia em uso, a estética de Beardsley e,
em particular, a sua definição de obra de arte assumem, pois, um carácter
normativo.
4
3. O valor moral da experiência estética
Todas as obras de arte podem ter efeitos morais positivos, independentemente da natureza do seu conteúdo, os quais são tão mais elevados
quanto maior for o respectivo valor estético.
Como se compreende que uma obra musical pura, como Música
para Cordas, Percussão e Celesta, de Bela Bartok, possa ser eticamente
relevante? Já sabemos que a experiência estética é uma actividade em
que o fruidor se confronta com a obra de arte procurando conferir sentido
à diversidade dos seus estímulos. Na experiência estética desta obra, o
ouvinte poderá identificar a forma de fuga e o tema cromático do primeiro movimento, bem como a inversão que o reconduz ao início da peça, e
sentir, sucessivamente, o carácter enérgico, sombrio e alegre dos três
outros movimentos, aliás todos eles construídos com base no tema da
fuga. A pesquisa empírica parece mostrar, segundo Beardsley, que de
experiências estéticas como esta advêm benefícios para o fruidor que não
são apenas cognitivos, mas também morais. Quais são estes efeitos
morais benéficos da experiência estética?
5
Em primeiro lugar, compreender a obra de arte, nomeadamente o
que ela pode apresentar de inovador, constitui um treino e um alargamento da percepção, da discriminação e da imaginação e, portanto,
desenvolve a nossa capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros.
Em segundo lugar, a experiência estética das mesmas obras promove a
simpatia e a compreensão entre as pessoas que as partilham. Em terceiro,
4
Op. cit., pp. 312-315.
5
Monroe C. Beardsley, Aesthetics: Problems in the Philosophy of Criticism, Nova
torque, Harcourt Brace & World, 1958; 2. ed„ Indianapolis, Hackett, 1981, pp. 573¬
-576.
a
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a experiência estética clarifica a mente e apazigua impulsos destrutivos,
ou seja, produz efeitos terapêuticos e profilácticos que favorecem um
melhor relacionamento com os outros. E, finalmente, a experiência estética é uma actividade intensa e complexa na tentativa de compreender a
obra de arte e gratificante na realização dessa finalidade, pelo que oferece um ideal de articulação próxima entre meios e fins que confere sentido aos primeiros e valor aos segundos, em contraste com o vazio, a
monotonia e a frustração de grande parte da vida humana.
A experiência estética é, em geral, procurada por si mesma, isto é,
pela gratificação imediata que proporciona. Todavia, segundo a axiologia
instrumentalista de Beardsley, são os benefícios atrás descritos que a tornam valiosa. E como a magnitude da experiência estética está directamente relacionada com o valor estético da obra, os seus efeitos morais
estão também positivamente correlacionados com este valor.
Estes benefícios morais da experiência estética das obras de arte não
são crenças particulares, são capacidades genéricas de actuação. Podem
resultar, por isso, de todos os géneros de obras, mesmo das que não têm
conteúdo moral.
4. Os efeitos imorais das obras de arte
A experiência estética de qualquer obra de arte tem benefícios
morais, mas obras cinematográficas, pictóricas, literárias, etc, isto é,
obras representacionais, podem ter efeitos negativos do ponto de vista
moral, devido a um conteúdo que seria reprovável na vida reai, quando o
uso que delas é feito não é estético. Pode assim argumentar-se que a violência no cinema é um dos factores do aumento da delinquência juvenil.
Com base em tal suposto, aqueles que têm alguma responsabilidade na
educação das crianças estabelecem, com frequência, restrições ao seu
acesso a tais obras.
Beardsley admite que as obras de arte com esses conteúdos podem
provocar comportamentos inaceitáveis do ponto de vista moral. Mas
devem essas obras ser censuradas ou mesmo suprimidas?
Em primeiro lugar, Beardsley julga que, se for necessário preservar
as crianças mais pequenas ou pessoas particularmente sensíveis do contacto com obras deste género, estas não devem ser suprimidas, privando
os restantes membros da sociedade da sua fruição, mas podem ser tomadas medidas especiais para sua protecção. Em segundo lugar, se os cientistas sociais provarem que os efeitos negativos são reais em adultos responsáveis, a sociedade, recorrendo aos tribunais, deve fundamentar a
decisão a tomar mediante a comparação dos efeitos imorais com o valor
estético das obras. Se o valor estético for muito reduzido, o ponto de
vista estético não se opõe à supressão das obras. Se o valor estético for
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elevado, há um conflito de valores e a decisão a tomar dependerá daquele
que for considerado superior.
Beardsley levanta, no entanto, objecções práticas à conclusão teórica em favor da possibilidade da censura. A censura oficial pode ser
expressão das componentes mais reaccionárias e estúpidas da sociedade,
de modo que a aplicação do princípio pode ser mais prejudicial do que
benéfica. Pelo contrário, o meio mais eficaz de contrariar os eventuais
efeitos perniciosos de algumas obras de arte consiste na educação que
favoreça a adopção de comportamentos éticos e a competência estética.
6
5. As performances violentas
Nos anos sessenta do século X X , surgiram obras que mais do que
representar o que a sociedade, ou grande parte dela, considerava imoral,
o praticava durante a sua apresentação. Incluem-se neste grupo de obras
as performances em que os executantes se agrediam ou automutilavam,
como quando Chris Burden se fez crucificar sobre um Volkswagen, em
1974.
A estética de Beardsley recusa a tais obras o estatuto artístico e
nessa a exclusão a moralidade tem uma função, se bem que indirecta.
Essas performances não são atraentes, mas repulsivas; não são prazenteiras, mas dolorosas de observar; não permitem a distância emocional que
caracteriza a experiência da ficção, mas provocam emoções próprias de
actos reais; não possuem a autonomia das obras de arte, mas são interpretadas como actos integrados no mundo real. Em suma, não apelam à
fruição e ao conhecimento estéticos, mas suscitam a condenação moral.
A experiência estética dessas performances não é possível, nem foi
intenção dos autores proporcioná-la.
Pode argumentar-se que, quando os actos representados ofendem a
moral a ponto de impedirem alguém de os observar, as obras em causa
também não podem ser artísticas. Beardsley defende, porém, que tais
actos pertencem ao mundo da obra, não ao mundo real, e, porque fazem
parte de um mundo ficcional, não constituem actos imorais. A educação
estética deve dar competência ao espectador para observar tais actos com
distância crítica. É essa competência que nos permite ter prazer estético
com os horrores representados nas tragédias, ou rir dos comportamentos
ineptos nas comédias, que ridicularizam quem os tem.
7
6
Op. cit.,pp. 576-581.
7
"Aesthetic Experience", pp. 297; Monroe C. Beardsley, "The Limits of Critical
Interpretation", in Sydney Hook (org.), Art and Philosophy: A Symposium, Nova Iorquc,
New York University Press, 1966, reimpr. in The Aesthetic Point of View, pp. 174-75.
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6. O contributo do conteúdo moral para o valor estético
As obras de carácter representacional podem incluir acções consideradas meritórias ou condenáveis do ponto de vista moral. No filme o
Homem Elefante, de David Lynch, uma actriz protege e trata com toda a
dignidade um homem desfigurado, que fora exibido como atracção de
feira. No romance Anna Karenina, de Leão Tolstoi, a principal personagem feminina suicida-se. Nalgumas obras, acções como estas integram-se
harmoniosamente no seu contexto, ou introduzem uma perspectiva enriquecedora num tema que, na sua ausência, consideraríamos demasiado
banal, ou possuem características que contribuem, por exemplo, para o
dramatismo do enredo. Noutras, todavia, têm apenas uma remota relação
com o resto da obra, ou são dispensáveis por redundantes, ou são exageradas, ao conferir-lhes, digamos, uma nota de sentimentalismo.
O que importa, portanto, do ponto de vista estético, não é o carácter
moral ou imoral do que é descrito ou representado, mas se contribui ou
não para a unidade, a complexidade e a intensidade da obra e, portanto,
para as qualidades homólogas da experiência estética que podemos ter
com ela.
8
ABSTRACT
AESTHETICS A N D ETHICS IN MONROE C. BEARSDLEY
Monroe C. Beardsley is an American philosopher who argues for the
relative independence o f aesthetic value and moral value in the artistic field. The
key concept of aesthetic experience provides the basis for his definition o f
artwork and much o f the analysis o f the value issue.
8
Monroe C. Beardsley, "The Relevance of Reasons in Art Criticism", in The Aesthetic
Point of View, pp. 335-337.
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