A endogamia nas relações de cooperação em redes mercantis da «Primeira Idade Global». O caso da rede de Simon Ruiz (1553-1580). (in XXXI Encontro da APHES) Ana Sofia Ribeiro1 Segundo as mais recentes tendências historiográficas parece ser inquestionável a existência de redes de comércio ao longo do período moderno nas mais diversas regiões do mundo. Já nos anos 70, Braudel defendia que o universo comercial, entre os séculos XVI e XVIII, cobria o mundo de pequenas quadrículas e em cada encruzilhada e em cada escala existiria um mercador que aí estava sediado ou por aí passava2. Para o funcionamento mais eficiente dessas redes, a cooperação emergia como um meio de satisfazer as necessidades de diferentes agentes comerciais e financeiros. Consistia, então, tal como hoje, numa junção de esforços para o desempenho de acções mais complexas3. No século XVI, tal como hoje, o comércio era realizado por transacções directas e diádicas entre agentes, ora totalmente estranhos numa única interacção esporádica, ora companheiros de longa jornada no negócio. É difícil imaginar que estes mercadores não dividissem riscos e investimentos em negócios tão promotedores de lucros avultados como os asientos espanhóis4 ou a tutela do contrato da pimenta em Portugal5. No entanto, o discurso historiográfico nacional e internacional, ainda que profícuo no que toca à constituição e formação de redes de negócio no período moderno, pouco tem considerado o conteúdo e os mecanismos destas relações de cooperação económica entre os indivíduos que as constituem. Por sua parte, o tema da cooperação entre humanos nas mais variadas situações da vida em sociedade tem merecido, nos últimos trinta anos, a atenção de ciências como a Biologia, a Física, a Matemática, a Economia, a Antropologia, a Sociologia ou as Ciências 1 Estudante de doutoramento em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sob a orientação científica da Professora Doutora Amélia Polónia e “Group Member” como investigadora na equipa portuguesa do projecto TECT/EUROCORES DyncoopNet (Dynamic Complexity of Cooperation-Based Self-Organizing Networks in the First Global Age, 1500-1800), financiado pela European Science Foundacion (ESF) e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Investigadora do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura Espaço e Memória). 2 BRAUDEL, Fernand – “Os Jogos das Trocas” in IDEM – Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII. Lisboa: Teorema, 1992. Vol. 2, p. 129. 3 BENN, S. I.; PETERS, R. S. 1977. Social Principles and the Democratic State. London: Allen & Unwin.P. 279. 4 LAPEYRE, Henri – Simon Ruiz et les asientos de Philippe II. Paris: SEVPEN, 1953. 5 SILVA, José Gentil da – “Contratos da Trazida de Drogas no século XVI”. Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tomo XV (1949), 2ª série, pp. 5-28. MATHEW, K. S. – Indo-Portuguese Trade and the Fuggers of Germany. New Dehli: Manohar Publishers, 1999. 1 Cognitivas. No que se refere aos humanos, entende-se a cooperação como um comportamento complexo que emerge da evolução genética e cultural do ser humano6. Neste sentido, e tendo a noção da multiplicidade e da discussão sobre conceitos de cooperação no meio científico, pareceu-nos legítimo adoptar a definição de cooperação de Nowak pela sua clareza: “[…] means that selfish replicators forgot some of their reproductive potential to help one another”, motivada por diferentes razões7. A aceitação de tal definição de cooperação significa perceber que a cooperação pressupõe uma interacção orientada para determinado objectivo, seja ele mais ou menos altruísta. A cooperação parece-nos assim um puzzle mais ou menos aritmético de custos e benefícios, crenças, expectativas e motivações. Desta forma, Simon Ruiz e a sua companhia comercial afiguram-se-nos como um excelente caso de estudo. Nascido em Burgos, entre 1525 e 1526, no seio de uma família de pequenos comerciantes de lã, começou a sua actividade comercial 25 anos mais tarde, por meados de quinhentos, como agente de Ivon Roncaz de Nantes, no trato de panos nas feiras de Medina del Campo. A importância destas feiras, consideradas um ponto nevrálgico de circulação de pessoas, mercadorias e crédito8, encorajaram Ruiz a envolver-se em parcerias sucessivas em actividades de comércio9. Procurando investir para alargar os lucros no comércio do azeite, especiarias, indigo, sal e trigo, Simon Ruiz começou a colocar agentes da sua confiança em pontos geográficos vitais para os seus negócios. Além disso, começou a construir uma rede de informantes em praças de relevância internacional no tempo, como Lisboa, Génova, Ruão, Roma, Veneza ou Lyon10. A importância da sua firma não se fixou no mero trato comercial. Em Medina del Campo, uma importante praça de câmbio, iniciou-se como banqueiro, especializando-se em câmbios. Entre 1576 e 1588 encontra-se entre um dos mais significativos credores de Filipe II. Preenchendo em traços gerais o retrato do mercador-banqueiro da centúria de quinhentos, Simon Ruiz deixou documentadas relações de cooperação comerciais pontuais ou contínuas com alguns indivíduos, como com os Bonvisi de Lyon, os Spínola, os Lomelino, os Ximenes ou os Rodrigues de Évora11. Por outro lado, constituiu uma rede social de agentes, representantes da firma, colaboradores e informantes comerciais que, de forma dinâmica, vão apresentando relações e comportamentos económicos que evoluem ao longo do tempo. 6 HAMMERSTEIN, Peter (ed.) – Genetic and Cultural Evolution of Cooperation. Cambridge (MA): MIT Press, 2002. NOWAK, Martin A. 2006. Five Rules for the Evolution of Cooperation. Science 314 (5805):1560. 8 BRAUDEL, Fernand – Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII. Lisboa: Teorema, 1992. Vols. 2. p. 68. 9 LAPEYRRE, Henri (1955) – Une famille de marchands: les Ruiz. Paris: Armand Collin, 1955.pp. 60-62. 10 GONZALEZ TORGA, José Manuel – “Simón Ruiz, un Mercader banquero: volcado a Europa desde Medina del Campo.” Revista de la Hermandad del Valle de los Caídos. Nº 97 (2005). LAPEYRRE, Henri – op. cit. pp. 144-145. 11 SILVA, J. Gentil da - Marchandises et finances. Lettres de Lisbonne (1563-1578). Paris: Armand Collin, 1959. 2 vols. 7 2 A sua importância em espaços chave da economia europeia do início da época moderna tornam-no uma referência, não só na Península Ibérica, mas também no resto da Europa, aumentando, para além da potencial amplitude da rede, a variedade e heterogeneidade dos parceiros. Esta dinâmica será objecto de estudo nesta comunicação, a qual se espera seja elucidativa dos mecanismos de cooperação e constituição de redes cmoerciais na Europa da segunda metade do século XVI, ainda que a actividade da firma comercial de Simon Ruiz se mantenha até ao início de seiscentos, depois da data da sua morte, em 1597, sob a direcção do sobrinho Cosme Ruiz. Justificado o nosso objecto de estudo, importa nesta comunicação considerar dois pressupostos teóricos de partida: 1) Segundo algumas das principais tendências da historiografia nacional e internacional, estas associações de agentes eram consolidadas dentro do núcleo familiar ou da parentela. Estes laços eram encarados como um sinónimo de confiança, sendo os membros de uma mesma família colocados em posições chave de agenciamento ou representação nas principais praças comerciais e financeiras, de acordo com a estratégia de negócio de determinada casa12. Também a bibliografia teórica sobre a cooperação, nomeadamente na biologia, tem acentuado a importância destas relações familiares numa primeira constituição de relações de cooperação, designando este mecanismo como ‘Kin selection’. A expressão prevê que os parceiros da cooperação são seleccionados pela partilha genética, ou seja, a existência de laços de sangue promove a cooperação13: “[...] when individuals have equal access to kin and non-kin, those who choose kin as partners obtain a fitness bonus. Because the fitness bonus is obtained reciprocally between kin, kin partners are mutually dependent on two accounts: (i) to obtain the direct benefits of cooperation and (ii) to obtain its indirect benefits, which dictates their cooperating together. By comparison, non-kin are mutually dependent only to obtain B; they would not lose any fitness bonus by defecting. For this reason, kin would constitute more reliable partners compared to nonkin, and kin partnerships would be more stable as a result.14” No caso em estudo, alargaremos este conceito, fazendo-o abarcar também ligações que integram elementos da parentela alargada por alianças matrimoniais. 12 FRADE, Florbela Veiga – As Relações Económicas e Sociais das Comunidades Sefarditas Portuguesas. O trato e a família, 1532-1632. Lisboa, 2006. [Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Texto policopiado]. JEANIN, Pierre – Les Marchands au XVIeme siècle. Paris: Éditions du seuil, 1957. 13 NOWAK, idem, p. 1561 CHAPAIS, Bernard – “ Kinship, competence and cooperation in primates” in KAPPELER, P.M.; VAN SCHAIK, C.P. (ed.) – Cooperation in primates and humans. Mechanisms and evolution. Berlin/ Heidelberg: Springer verlag, 2006, p.49. 14 3 Nesta comunicação, procuraremos pois verificar se a aliança familiar foi importante na formação e na evolução da rede de negócio de Simon Ruiz e se os indivíduos ligados por laços familiares interagem em actos mais ou menos decisivos para o aumento do benefício dos agentes em questão e para a melhoria da performance da rede. 2) Por outro lado, a historiografia tem dividido a sua opinião quanto ao carácter inter ou intra confessional destas associações e parcerias entre agentes económicos15. Mas seria, de facto, a questão religiosa um factor chave na escolha de parceiros? A partilha de actos confessionais e de sociabilidade fortalecia a confiança entre parceiros? Simon Ruiz, protagonista desta saga diacrónica e evolutiva que nos propomos relatar, afigurase como alguém com uma identidade confessional híbrida. A historiografia castelhana tem discutido este assunto, considerando-o por vezes cristão-novo, outras vezes cristão velho16, uma vez que é difícil avaliar como o seu caso seria considerado à época. Simon Ruiz é descendente de uma família judaica castelhana, forçada à conversão muito antes do reinado dos Reis Católicos, aquando das acções de tomada do trono por Henrique II, da dinastia Trastâmara no final do século XIV (massacres de 1391)17. A apresentação de resultados empíricos nesta comunicação concentrar-se-á, pois, na seguinte questão: seriam as redes de negócio verdadeiramente baseadas em alianças familiares e confessionais? Para isso, será ponderado o peso destas duas características no processo de escolha de parceiros na rede, a partir de uma abordagem evolutiva da rede de negócios de Simon Ruiz. Os resultados aqui em discussão resumem a informação obtida a partir de duas categorias documentais presentes no arquivo particular da companhia de Simon Ruiz, tutelado pela Fundación Simón Ruiz, disponíveis no Archivo Provincial de Valladolid – as letras de câmbio e a correspondência comercial, esta última restrita às relações com agentes sediados em Portugal. Esta escolha, ainda que representativa de uma empresa da Primeira Época Global, tem como 15 FRADE, idem. ANTUNES, Cátia – Lisboa e Amesterdão, 1640-1705. Um caso de globalização na História Moderna. Lisboa: Livros Horizonte, 2009. TRIVELLATO, Francisca – The Familiarity of Strangers. The Sephardic Diaspora, Livorno, and Crosscultural trade in the Early Modern period. Harvard: Harvard University Press, 2009. 16 Cantera Burgos refere estes casos como cristãos velhos, destacando o caso dos Maluenda e dos Salamanca, que, após a conversão forçada, ocupam cargos eclesiásticos de grande responsabilidade e tentam chegar assim à nobreza e à corte. CANTERA BURGOS, Francisco – Alvar Garcia de Santa Maria – Historia de la judería de Burgos y sus conversos más egregios. Madrid: Instituto Arias Montano, 1952. No nosso entender, esta dedução não parece tão óbvia, uma vez que para estes a ocupação destes cargos era assumida como uma estratégia de ascensão social e de mecanismo de integração e imitação das elites, algo a que os mercadores e banqueiros da época moderna parecem ter aspirado com regularidade, independentemente da sua verdadeira confissão, como o demonstram os diferentes percursos individuais presentes em ALMEIDA, A. A. Marques de (dir.) – Mercadores e Gente de Trato. Dicionário Histórico dos sefarditas Portugueses. Lisboa: Campo da Comunicação, 2009. 17 CASADO ALONSO, Hilario – El triunfo de Mercurio. La Presencia Castellana en Europa (siglos XV y XVI). Burgos: Cajacírculo, 2003, pp. 36-37. 4 inconveniente o facto de apenas podermos apresentar o retrato de uma rede altamente centralizada e personalizada em Simon Ruiz (e, depois da sua morte em 1597, no seu sobrinho Cosme Ruiz), uma vez que todos os actos documentais se referem às suas pessoas, enquanto pólos centrípetos da companhia, ainda que desempenhando funções diferenciadas. A vastidão quantitativa do universo documental (até ao momento estão processadas ---letras de câmbio e --- cartas), bem como a inserção da exploração dos dados no âmbito do projecto de investigação Dyncoopnet, fez-nos dividir esta tarefa de recolha de informação com as colegas Sara Pinto e Sandra Brito. Mas antes das considerações metodológicas importa debruçarmo-nos um pouco sobre estas duas tipologias documentais e de que forma é pertinente a sua utilização nesta investigação. A letra de câmbio nasce, como instrumento comercial, em Génova, ainda no século XII, como um contrato notarial em que um mercador delega a outro a responsabilidade de pagar a um terceiro numa cidade longínqua. Contudo, com a complexidade crescente do comércio e multiplicidade de hipóteses de investimento, o mercador deixou de poder acompanhar as suas mercadorias, passando as letras de câmbio a constituir um meio de pagamento destas transacções, assumindo-se formalmente como uma cédula que permitia executar o câmbio a largos quilómetros de distância da sua origem, sendo frequente já no século XIV.18 Como salienta Peter Spufford, “The static manager could send and receive remittances from his factors and agents by bills of exchange19”. Por outro lado, este pedaço de papel reduzia os riscos de circular com numerário de metal precioso pelas inseguras estradas medievais europeias. No século XVI a letra de câmbio era o meio de pagamento e crédito mais usual nos circuitos comerciais europeus. Com a progressiva introdução do endosso, a letra assume menos uma função contractual e aparece mais como uma extensão de papel-dinheiro. Depois da expansão ibérica, este era um mecanismo essencial para a existência de uma semântica económica compreensível numa cada vez maior dimensão espacial de negócio e investimento. A letra de câmbio tem quatro actores principais no acto de câmbio, pese embora que beneficiário e pagador, e dador e tomador possam assumir-se numa só pessoa: Beneficiário – destinatário final da letra e do dinheiro transaccionado. Dador – adianta o dinheiro ao tomador para que ele pague a um beneficiário. 18 19 ROOVER, Raymond de – L´´evolution de la lettre de change. XIVe-XVIIIe siècles. Paris: Armand Colin, 1953, p 43. SPUFFORD, Peter – Power and Profit: the merchant in medieval history. New York: Thames and Hudson, 2002, p. 34. 5 Tomador – toma o câmbio, é aquilo a que podemos chamar um cambista. Ele emite a letra a favor do beneficiário, designado pelo dador. Pagador – assegura o pagamento ao beneficiário, mantendo uma conta corrente com o tomador. Desde logo se prefiguram duas relações distintas neste circuito. Um vínculo de carácter financeiro entre tomador e pagador e entre beneficiário e dador, com contas correntes entre si: “(...) este vínculo solía responder a corresponsalías bancarias en el extranjero, relaciones de parentesco o sociedad o vínculos de carácter mercantil, que en cualquier caso garantizaban la fluidez del trafico fiduciario materializadao en la cédula o letra de cambio.”20 R. De Roover falanos mesmo na existência de um mandante e de um mandatário, um ao serviço de outro21. A estes, podem ainda juntar-se outros indivíduos que, de forma indirecta, entram neste circuito do dinheiro, relacionando-se com um ou mais agentes referidos anteriormente. Com estes personagens, a letra de câmbio desenvolve-se em dois momentos distintos: um primeiro, em que o dador entrega o dinheiro ao tomador e indica-lhe qual o beneficiário desse dinheiro, situado numa praça distinta. Um outro em que o tomador fabrica um documento, em que diz ao pagador que deve pagar um determinado valor, em determinada moeda, ao beneficiário. Circulam em simultâneo normalmente 4 vias deste documento, face aos riscos do correio e à facilidade com que este não chegava ao destino. Enviava-se uma primeira cópia directamente ao pagador, entregando o tomador uma segunda ao dador para que este a enviasse ao beneficiário, que iria cobrar a letra ao pagador. As outras cópias ficavam para os restantes interlocutores. O verso da letra de câmbio pode assumir-se como um recibo ou quitação da letra, informando o investigador do acto da cobrança daquela letra por parte do beneficiário ou seu representante, junto do pagador ou do seu representante. Consta também se a referida letra foi aceite (o pagador aceita pagar a letra, dando a quantia ao beneficiário); recusada (o pagador recusa-se a pagar a letra, quando o beneficiário aparece a cobrá-la, ou porque não recebeu a ordem por parte do tomador ou não recebeu provisão de dinheiro suficiente ou duvida da solvabilidade do tomador22); protestada (normalmente por falta de aceite ou por falta de pagamento; é o beneficiário que apresenta o protesto); aceite sob protesto (quando depois de 20 RODRIGUEZ GONZALEZ – “La negociación cambiária en la banca de Simón Ruiz” in BERNAL RODRIGUEZ, Antonio Miguel (coord.) – Dinero, Moneda y crédito en la Monarquia Hispánica, 2000, p. 684. 21 ROOVER, idem, p. 48. 22 LAPEYRRE, idem, 1955, p. 281. 6 protestada, o pagador acaba por pagar) ou endossada (o beneficiário passa a sua posição para outra pessoa; nomeia um novo beneficiário). A complexidade deste circuito financeiro é tal que além de envolver uma multiplicidade de agentes, que podem desempenhar mais do que uma função, ou uma função poder ser desempenhada por várias pessoas, temos de contar com uma multiplicidade de valores e unidades monetárias, taxas de câmbio variadas, diversos locais e tempos em ligação. Por último, devemos considerar que muitas vezes não estamos perante um câmbio real, com um circuito tal qual é descrito, mas perante o que alguns investigadores designaram por «câmbio seco», um câmbio sem substância real, apenas para o ajuste de contas entre correspondentes. Um tomador é dador de algum dinheiro para um beneficiário que é também um pagador. Mais tarde, é enviada uma letra com o mesmo valor mas no sentido inverso. Não circula qualquer dinheiro, mas solidificam-se contas correntes de ambos os lados. Este pareceu-nos ser uma fonte que nos permitiria ter uma ampla reconstituição da rede social, mercantil e espacial em volta de Simon Ruiz e da sua variabilidade cronológica. Cobrindo o período de 1553 a 1606 ininterruptamente, permite-nos ver a evolução da rede como um todo, descobrindo novos e velhos parceiros, tal como alguns dados de caracterização individual dos agentes, nomeadamente questões de género, local de residência, filiação religiosa, profissão, cargo, título, nobiliárquico, académico, ou outro. Permitem-nos, dentro deste âmbito da teoria de redes, perceber a mobilidade e a variabilidade dos agentes na rede. Por outro lado, as letras de câmbio, além das relações implícitas entre os agentes que referimos anteriormente, apresentam por vezes relações explícitas, que de outra forma seria difícil conhecermos, como por exemplo, relações de confiança (quando estes intervenientes têm alguém que os representa neste circuito financeiro, por forma de procuração ou não), relações familiares, de sociabilidade (em heranças, por exemplo) e outras ligações financeiras a parceiros que não fazem parte daquele acto em concreto, mas estão ligados em parcerias comerciais ou financeiras a um ou outro dos principais agentes. A análise serial deste tipo de documentação permite-nos ainda encontrar relações de parceria, esporádicas ou prolongadas, quando, numa ou mais letras de câmbio, os mesmos indivíduos aparecem a desempenhar uma mesma função.Através delas é possível apurar o pressuposto de Sufford: “Partnerships and financing, which had previously lasted only for a single voyage, took on a more permanent aspect…”23 Quando falamos de cooperação, as letras de câmbio permitem-nos, quer pela duração das ligações, quer medida da densidade destas relações, quer pelo valor transaccionado, encontrar 23 SPUFFORD, idem, p. 22. 7 diferentes graus de cooperação e, nomeadamente, de confiança. Podem aferir-se diferentes graus de risco, custos e benefícios e perceber se existem comportamentos de reciprocidade. Através do estudo das formas de aceitação do câmbio, poderemos identificar, não só quebras de confiança, mas também actos de recusa da cooperação («defecting»),por exemplo, quando a letra é protestada e recusada. Mas é no estudo aprofundado das dinâmicas cooperativas que o uso deste tipo de documentação apresenta mais fragilidades. O facto de lidarmos com uma narrativa muito estandardizada e, muitas vezes, omissa em dados individuais dos agentes, à excepção do nome, leva-nos desde logo a uma ausência de explicação dos factores que podem ou não influir na pertença ou exclusão do indivíduo na rede, em determinado momento. Por outro lado, a ausência de dados qualitativos não permite conhecer como a cooperação é ou não implementada, mantida ou quebrada (através de comportamentos de «cheating»), tornando também difícil de aferir normas de comportamento económico. Perdem-se ainda importantes figuras de diferentes níveis cooperativos, nomeadamente aqueles que mais indirectemente auxiliam ou, de forma ténue, dificultam o negócio. Perde-se informação também referente aos mecanismos de construção de confiança, como o factor reputação. Mas o grande problema parece-nos ser o da ausência de contextos. Sem eles, precisamos de nos debruçar em bibliografia produzida para a cronologia em questão no que respeita ao trato mercantil e financeiro (é impossível o conhecimento de toda esta realidade específica), tal como biografias de alguns grandes mercadores e famílias devotadas a esta actividade económica. É imperioso o cruzamento de fontes. Vimos que o uso da correspondência comercial era já muito usual no século XIII. Falamos já dos condicionalismos que transformaram o comércio a partir do século XV. Apesar de não ser uma inovação, o envio de cartas entre mercadores torna-se cada vez mais imperioso. Por um lado, com a expansão geográfica do espaço de negócio, as companhias comerciais tiveram tendência a estabelecer contactos com agentes a uma maior distância, os quais, muitas vezes não conheciam. As cartas tornaram-se assim o grande instrumento para o mercador exercer controlo sobre os seus agentes no estrangeiro. As cartas constituíam, por outro lado, uma prova jurídica de determinado negócio, tornando dispensável a afirmação de contractos num notário. “Letters become the primary tool through which webs of commercial relations were woven across space and social groups.24” 24 TRIVELLATO, Francesca – Discourse and practice of trust in business correspondence during early modern period,2004. Texto policopiado, p. 4. 8 Do ponto de vista formal, a carta comercial não tem de todo uma estrutura rígida, como as letras de câmbio, apresentando uma maior riqueza e detalhe informacional e maior variabilidade na qualidade dos dados..Além de nos dar nomes e outras características individuais dos agentes envolvidos e ser também possível o estabelecimento de relações, tipologicamente bem mais diversas, entre estes agentes, as cartas dão-nos infindáveis informações sobre questões de negócio: preços de mercadorias, unidades de peso e medida, prémios de seguros, fretes, câmbios, descrições qualitativas e quantitativas de produtos disponíveis em determinadas regiões ou cidades... A correspondência comercial permite-nos, ao contrário das letras de câmbio, conhecer as conjunturas que podem condicionar a nossa rede de indivíduos: notícias sobre a situação política, militar, diplomática, climática e sobre calamidades; flutuações de mercado e oportunidades de investimento. A correspondência comercial permite o conhecimento do conteúdo das relações entre agentes que sustentam as ligações cooperantes, mais pontuais ou permanentes. Informam-nos acerca de qualidades intangíveis que influenciam a cooperação: a amizade, a ajuda, a confiança e a estima que pode até condicionar uma futura colaboração, a cumplicidade e a reputação. A troca de cartas entre parceiros e o modo como se difunde a informação dá-nos a oportunidade de compreender a importância do rumor ou boato no funcionamento da rede, assim como tipos de informação que influenciaram o comportamento cooperante, como notícias de falências, perdas de credibilidade de determinado agente na praça, grandes lucros em determinado negócio. As limitações da correspondência comercial prendem-se, antes de mais, com a vastidão e complexidade da informação, que varia em todos os documentos. É difícil sistematizar os dados e encontrar variáveis exactas e estáveis. Por outro lado, é frequente a omissão de informaçã ao nível das informações individuais, o que dificulta a tarefa de estabelecer relações e de encontrar a posição e função dos indivíduos na rede, em determinado momento. Há ainda a considerar a intencionalidade e as condições de produção da fonte. Quem escreve a carta, o emissor, carrega de intencionalidades o discurso, o que pode condicionar a veraciadade da informação enviada. O emissor quer passar uma mensagem que pode ser honesta ou não. Lembremos que a correspondência servia para o mercador controlar a sua rede, mas também a sua concorrência. Assim, poderia interessar uma estratégia de desinformação, que condiciona a análise do investigador, que deve estar atento a esta intencionalidade. Como documento de índole privada e pessoal, as informações conjunturais são pautadas pela própria 9 visão do mundo que o produtor teria. Esta subjectividade condiciona a objectividade da recolha de dados. Dados efectivamente seguros quanto à identificação prosopográfica dos agentes só dispomos, até agora, até 1580, período, e esses encontram-se reflectidos nos grafos correspondentes à evolução da rede de negócios de agentes associados a Simon Ruiz. Simon Ruiz estava a lançar as bases da sua empresa, quando, em 1557, Filipe II decreta a primeira bancarrota do seu reinado“[...] la conversión de la deuda flotante en consolidada era un respiro, aunque aparente, pues ponía un remedio temporal a su depauperada hacienda.25” Em 1558, o homem de negócios aparece ligado ao negócio de importação dos panos e dos trigos franceses para Castela, relacionado com o francês Yvon Rocaz26. Fig.1 – Rede de negócios de Simon Ruiz, 1553-1559. 25 26 MARTÍN ACOSTA, Maria Emelina – El Dinero Americano y la Política del Imperio. Madrid: Editorial Mapfre, 1992, p.80. Carta de Benedito Guchon a Simon Ruiz em 27/8/1558. ASR, 001.1558.050. 10 Na análise dos seus parceiros de negócios nos seus primeiros anos como negociante independente, as letras de câmbios e a correspondência analisadas evidenciam-nos a presença de um dos seus familiares: o irmão André Ruiz. Ainda que André Ruiz apareça, nos documentos analisados, como beneficiário de letras de câmbio, em que Simon Ruiz é dador, este parece desempenhar um papel de representante do seu irmão junto dos grandes banqueiros de Lyon – os Bonvisi, os Spinola, os Imperiale e os Michele – nas grandes feiras de pagamentos ora de Lyon, ora de Besançon. Estes parecem ser os grandes privilegiados nos contactos de Simon Ruiz, ou assim nos faz crer a documentação consultada. Richard Gascon destaca o papel destes banqueiros italianos no mundo comercial e financeiro de então, onde “[...]jouissent d'une primauté voisine du monopole dans quelques secteurs.27” Dada a grande ligação triangular com os herdeiros de Antonio e Lorenzo Bonvisi (isto é, com elevado cluster coefficient), ambos os nós parecem ser uma ponte entre dois mundos – a Espanha e a Itália. Entre 1557 e 1559, Simon Ruiz aprece maioritariamente como dador de letras de câmbio, ou seja, ainda não desempenha grandes aventuras a nível financeiro. Ele aparece, sobretudo, a fazer pagamentos, ora por intermédio dos Bonvisi, ora para eles directamente. Ainda que não tenhamos dados sobre o destino dado a este dinheiro em transferência, sabe-se que são grandes mercadores de artigos de luxo, como panos de seda, filet de ouro, de prata e seda, e todos os artigos de luxo de Milão e Veneza expedidos para a Peninsula Ibérica28. Atentando em pormenor, estas relações de cooperação são recíprocas, uma vez que as evidências nas cartas de Simon Ruiz dirigidas a Florença, sublinham como era vantajosa a importação de lãs espanholas e da cochinilha, dada a pujança da indústria têxtil da região Norte da Península Italiana29. Os Genoveses e ainda os Toscanos desempenhavam um papel de provimento financeiro das grandes casas comerciais europeias, face ao rombo que a bancarrota de 1557 provocou na liquidez financeira das casas alemãs, nomeadamente as de Augsburgo, como os Fugger e os Welser30. 27 GASCON, Richard - Grand commerce et vie urbaine au XVIe siecle- Lyon et ses marchands. Paris: SEVPEN, 1971, p. 203. Idem, p.218. 29 RUIZ MARTIN, Felipe – Lettres Marchandes Échangées entre Florence et Medina del Campo. Paris: SEVPEN, 1965.p. CIV. 30 EHRENBERG, Richard – Le Siècle des Fugger. Paris: SEVPEN, 1955, pp. 281-283. 28 11 Fig. 2 – Rede de negócios de Simon Ruiz, 1560-1565. Na realidade, Anton Fugger aparece, novamente, no desempenho de uma reciprocidade directa com Simon Ruiz. Depois de resolvida a contenda com Filipe II, o banqueiro alemão continua a financiar a política expansionista espanhola, mas desta vez sustentado em pequenos e médios capitalistas castelhanos, como Simon Ruiz. Em troca financiava as tranferências de Simon Ruiz para as grandes praças europeias, nomeadamente com Lyon31. A figura 2 evidencia ainda o triângulo que sustentou durante esta primeira metade da centúria de 1560 a relação de Simon com os banqueiros Bonvisi, que passou a passar por Sevilha e pelo representante de Simon Ruiz nessa praça, onde os produtos da colónias hispânicas afluíam em grandes quantidades. Esse contacto é favorecido então por Gerónimo de Valladolid, que, ora envia pagamentos directamente para os Bonvisi, os Imperiale ou os Spinosa ou para Simon Ruiz e os seus associados neste negócio – o irmão Vitores Ruiz e Francisco de la Presa, importantes agentes de seguro em Burgos, que reinvestem o seu capital no trato comercial32; ora age como representante financeiro da firma, aproveitando a localização numa praça comercial e financeira 31 32 Lc -ASR -001.1561.027. Lc-ASR-001.1563.042, por exemplo. 12 larga de capitais, como era Medina del Campo, desempenhando a função de tomador33. Entre 1560 e 1565 Geronimo de Valladollid é referenciado em actos associados à vida da companhia de Simon Ruiz por 83 vezes. Em franca expansão como banqueiros da política imperial do rei de Espanha, os asientistas genoveses continuam a ser parceiros privilegiados na rede, garantindo a reputação da companhia, uma vez que estabelecia contactos regulares com a elite comercial e financeira da Europa. Fig.3 – Rede de negócio de Simon Ruiz, 1566-1569. Depois de 1565, a ligação com Sevilha perde importância, agora já com Francisco de Mariaca como representante da associação de Ruiz com Vitores e com de la Presa. O português Antonio Gomes, na sua correspondência com Simon Ruiz, refere várias vezes o quanto receia “o tormento de Sevilha34”. Os anos de 1564 e 1565 são de fraca afluência de metal precisoso e produtos coloniais à cidade, realidade acentuada em 1567 e que se aloja em 1568 dando lugar ao pessimismo e renitência dos carregadores face ao Novo Mundo e as falências sucedem-se35. 33 Lc-ASR-001.1564.056 Carta de 29 de setembro de 1567. ASR-006.1567.099. 35 CHAUNU, Pierre – Séville et l’Atlantique (1504-1650). Paris: SEVPEN, 1959. Tome VIII2,1, p. 487. 34 13 Na segunda metade da década, a representação da rede de Simon ruiz divide-se em 3 subgrafos, que se interconectam pela acção de determinados indivíduos. Estes subgrafos são em forma de estrela, evidenciando focos muito intensos de actividade entre 3 indivíduos: Agustin Spínola, Simon Ruiz e herdeiros de Antonio e Ludovico Bonvisi. Agustin Spinola, filho de Ambrogio Spinola, era um dos maiores banqueiros genoveses em Espanha, sediado em Medina del Campo e em Madrid. Agustin Spinola funciona como tomador para fazer chegar pagamentos às feiras de Lyon e Besançon ao ramo da família Spínola em Génova36, ou a outras famílias genovesas como os Grimaldo, os Fiesco, os Pinelo ou os Lercaro. O funcionamento deste circuito financeiro é realizado por intermédio de dois genoveses de menos arcaboiço comercial e financeiro como Lucas Pinelo e Domingo Lercaro, também banqueiros de Filipe II e oriundos de famílias que financiavam já Carlos V37. A outra ligação da estrela de Simon ruiz com os Bonvisi de Lyon destaca-se pela centralidade que uma figura como a de Francisco de la Presa assume na ligação entre ambas. Francisco de la Presa dominava contactos com mercadores castelhanos que, após a bancarrota de 1557, foram convidados a participar na vida financeira do reino. Através da sua colaboração, estes mercadores aproveitam o circuito Ruiz-Bonvisi para chegar às grandes casas comerciais europeias em praças como Lyon e Antuérpia. Ruiz investe cada vez mais no negócio da pimenta e de outras especiarias, como se comprova pela sua ligação a agentes portugueses como António Gomes de Elvas e o seu filho Luís Gomes, documentadas no número crescente de correspondência trocada com ambos, que têm contactos privilegiados como Antuérpia, através de Gerónimo Lindo. Contudo, Simon Ruiz possuía já uma importante ligação a Antuérpia a partir dos também portugueses André Ximenes e Simão Rodrigues de Évora. Todos estes indivíduos fazem parte do lote de famílias portuguesas ligadas ao grosso trato, sobretudo de artigos coloniais38, e são todos cristãosnovos. A primeira metade da década de 70 do século XVI denota alguma estabilidade no que concerne aos parceiros na rede, conhecendo algum crescimento no número de parceiros. Sucede-se apenas a sucessão de gerações. No entanto, a aliança com portugueses é cada vez mais sedimentada, com o aumento do número de letras de câmbio cujo destino são os cristãosnovos portugueses. A correspondência com os agentes portugueses demonstra que Simon Ruiz 36 Lc-ASR-001.1567.013 ALONSO GARCIA, David – “Genoveses en la Corte. Poder financiero y administración en tiempos de Carlos V” in HERRERO, M. – Génova y la Monarquia Hispánica. Génova, 2011 (no prelo). 38 Cf. ALMEIDA, A. A. Marques de (dir.) – Mercadores e Gente de Trato. Dicionário Histórico dos sefarditas Portugueses. Lisboa: Campo da Comunicação, 2009. 37 14 continua com parcerias comerciais na especiaria, com António Gomes e com o irmão de Nantes André Ruiz, que introduz a pimenta nos portos franceses de Nantes e de Rouen, portos que vêem a sua importância disparar com a escalada de violência no conflito espanhol com os Países Baixos e no conflito com Inglaterra. Fig.4 – Rede de negócios de Simon Ruiz, 1575-1579. Em 1575, com a nova bancarrota decretada pela coroa espanhola, os castelhanos assumem uma nova vitalidade na rede a nível do negócio interno39 e ao nível externo aumentam as relações com agentes de Antuérpia e Lisboa. As perdas elevadas no capital genovês decorridas da suspensão de pagamentos da coroa dos Habsburgo, dão lugar a uma procura de capital por quem estivesse disposto a arriscar investimentos numa Coroa que, num mesmo reinado, já tinha declarado bancarrota por duas vezes. Alguns castelhanos como os Maluenda, os Salamanca e os Ruiz resistem às falências dos credores genoveses40. É então que Simon Ruiz se passa a assumir como um financeiro. Sucedem-se os asientos que faz com Filipe II, mas não sozinho. 39 Simon Ruiz desempenha, quase exclusivamente nas letras de câmbio com agentes espanhóis, a função de tomador e pagador, ora no envio de remessas para Antuérpia, ora para as feiras de Lyon, besançon e Piacenza, estas que começam a despontar como resposta ao afastamento genovês dos negócios da coroa espanhola. 40 BOYAJIAN, James C. – Portuguese bankers at the Court of Spain, 1626-1650. New Brunswick (NJ): Rutgers University Press, 1983. P. 3. 15 Consegue financiamentos dos Bonvisi e associa-se aos portugueses António e Luís Gomes, Duarte Mendes, Manuel Gomes, António Fernandes de Elvas,Tomas Ximenes, etc41. Estes cristãos-novos, além de detentores de capital, gozavam ainda de canais privilegiados de comunicação com agentes em Antuérpia. António Gomes refere reiteradamente Fernão Ximenes e Rui Nunes Ximenes, tal como Luis Alvares Caldeira. E os asientos previam fazer chegar o capital do empréstimo à coroa espanhola a Antuérpia, nomeadamente para prover o soldo do exército, evitando novos saques da cidade, como o de 1576. Desta forma, podemos fazer um primeiro balanço quanto à escolha de parceiros para a sua inclusão nesta rede de negócios. 1. Existe uma grande variabilidade de agentes incluídos e excluídos na rede, evidenciando o carácter altamente racional destes agentes, procurando a melhor associação possível para conseguir a expansão dos seus negócios e do seu lucro. Neste sentido, a conjuntura histórica (política, económica e militar) e externa ao próprio funcionamento da rede parece crucial nas escolhas objectivas que se fazem. 2. A presença de certo indivíduo em determinadas praças, onde o negócio parece estar a garantir maior proveito, parece um factor chave na inclusão de agentes na rede. Relembre-se o papel dos cristãos-novos portugueses em Antuérpia. 3. A nacionalidade dos indivíduos parece pesar na escolha. Não tanto pela origem do agente em si, mas pela reputação da saúde financeira do grupo. Após a bancarrota de 1575, o português António Gomes pede notícias a Simon Ruiz sobre a saúde financeira dos genoveses asientistas e corre por Lisboa a notícia de que “os negócios do genoveses interessados andam mal”42. Esta crise significou um tempo de viragem na escolha de parceiros de Simon Ruiz. 4. Ao contrário do que alguma historiografia aponta, a filiação religiosa não nos pare ser um factor determinante na escolha de parceiros. Pelo contrário, a profusão de agentes cristãos-novos na rede, nomeadamente na década de 70, parece ser meramente conjuntural, resultante de uma análise individual da cooperação com esse determinado agente cristão-novo. Contudo, olhando em pormenor para estes cristãos-novos portugueses e vendo-os associados em parcerias de negócios com outros cristãosnovos poderemos considerar que há uma maior endogamia dentro destes «marranos» mais recentes. No entanto, se atentarmos no perfil dos mercadores portugueses do 41 Cf. Correspondência comercial entre António gomes e Simon ruiz durante todo o ano de 1576, onde o assunto asientos é referido em todas as cartas. 42 Carta de António gomes a Simon Ruiz de 14/05/1576. ASR-034.1576.015. 16 século XVI facilmente veremos que os nomes citados fazem parte de uma elite do negócio nacional e representam uma larga fatia dos mercadores mais ricos do Reino43. Portanto, parece ser natural que se associassem e promovessem a cooperação com quem lhes dava uma maior garantia de sucesso no trato comercial e financeiro. Pouco falámos sobre o papel da família na formação e manutenção desta rede negócios. À primeira vista, não nos pareceu especialmente relevante o seu papel. Florbela Veiga Frade, na análise do papel económico dos sefarditas em Antuérpia, afirma que a posição de indivíduos da mesma família em diferentes lugares chave da rede de negócio era um modo de favorecer a confiança na rede. Isto é, a confiança dependia fortemente da ligação familiar44. Também Daniel Strum investigando as redes de confiança no trato do açucar brasileiro, tutelado, na maior parte dos casos, por cristãos-novos, chega à mesma conclusão45. Como veremos, de seguida, a quantificação de dados empíricos parece apontar-nos uma conclusão diversa quanto à rede de Simon Ruiz. Não que as relações familiares não estejam lá. Mas qual é a sua importância relativa no funcionamento da rede? Fig. 5 – Relações de confiança (arestas vermelhas) e relações familiares de Simon Ruiz (nós azuis), 1553-1580. 43 SMITH, David Grant – The Mercantile Class of Portugal and brazil in the 17th century: a socioeconomic study of the merchants of lisbon and Bahia. Austin, 1975. Tese de Doutoramento apresentada à Universidade do Texas. Pp. 17-18. 44 FRADE, Florbela Veiga – As Relações Económicas e Sociais das Comunidades Sefarditas Portuguesas. O trato e a família, 1532-1632. Lisboa, 2006. [Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Texto policopiado]. 45 STRUM, Daniel – Revisiting the role of kinship and Ethnicity in Early Modern Trade: the Portuguese Jews and New Christians in the sugar trade. XVth WORLD ECONOMIC HISTORY CONGRESS, Utrecht, 3-7 August 2009. 17 Atentando no grafo da figura 5 parece inquestionável existirem laços de confiança entre Simon Ruiz, o seu irmão Vitores e o sobrinho Pero Ruiz. No entanto, nesta pequena amostra percebemos que a família não detém, de todo, a exclusividade neste aspecto. O mesmo conclui Francisca Trivellato no estudo das relações do sefarditas em Livorno e as suas relações directas com alguns mercadores Hindus, no Oriente. Estes homens optaram pela não colocação de um agente seu em Goa, confiando antes nos mercadores autóctones esta missão46. Também Jessica Roitman estudando os lugares chave em empresas sefarditas de Amesterdão chega à mesma conclusão47. 46 TRIVELLATO, Francisca – The Familiarity of Strangers. The Sephardic Diaspora, Livorno, and Cross-cultural trade in the Early Modern period. Harvard: Harvard University Press, 2009. 47 ROITMAN, Jessica - Us and Them: inter-cultural trade and the Sephardim, Leiden: 2008. 18 Fig. 6 – Degree Distribution Rank da rede de negócios de Simon Ruiz, 1553-1580. O Degree Distribution rank, em análise de redes, estabelece uma média de conectividade de cada nó em relação com os outros agentes da rede, organizando uma classificação hierárquica da rede. A vermelho apresentam-se os que têm um degree distribution mais elevado na rede (têm uma maior conectividade, evidenciando pólos de atracção mais proveitosos para os agentes) e a azul os que têm uma menor conectividade. Serão os agentes familiares, na rede da companhia do mercador Simon Ruiz, elementos atractivos? Os dados mostram-nos que não. Na realidade, os que possuem uma média de conectividade maior na rede não pertencem à família Ruiz, mas são mercadores com posições chave, tanto a nível geográfico, tanto ao nível das relações que a sua rede pessoal de contactos oferece, que ocupam posições de maior destaque, como é o caso do Bonvisi de Lyon em duas gerações 19 distintas (primeiro, herdeiros de António e Ludovico Bonvisi, depois Benedetto e Bernardino Bonvisi), Simão Rodrigues de Évora, por esta altura estante em Antuérpia, Fernando Morales e António Gomes de Elvas, colaboradores de simon Ruiz em Lisboa. Com todos estes agentes, Simon Ruiz manteve contactos numerosos ao longo de todo o período em análise. Fig. 7- Betweenness e a família Ruiz na rede de negócios de Simon Ruiz, 1553-1580. A medida estatística Betweenness mede a importância dos indíviduos na rede, calculando o impacto da sua presença. Por outras palavras, verifica quantos nós ficam desligados da rede se retirarmos determinado indivíduo na rede. Esta medida decorre da teoria dos buracos estruturais de Burt. Este autor defendia, nos anos 90 do século XX, que um actor se encontra numa posição vantajosa, quando estabelece contactos que não têm qualquer conexão entre si. Nas situações de competição ou conflito, os buracos estruturais internos na rede são prejudiciais, uma vez que representam falhas na cooperação interna que poderão ser exploradas pelos opositores externos à rede48. Assim, a ligação a estes indivíduos convinha ser assegurada. Na figura acima, estão identificados os indivíduos pertencentes à família Ruiz através da sua identificação onomástica. As cores dos nós representam, de forma gradativa, a importância dos indivíduos na rede, sendo que a vermelho estão representados os indivíduos com um betweenness maior e a amarelo os que têm um betweenness menor. Assim, apenas o irmão 48 BURT, R. S. – Structural holes. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1992. 20 mais velho de Simon, Vitores aparece como um parceiro cooperante mais importante nos contactos que oferece. Contudo, relembramos que a relação entre os irmãos ao nível dos negócios é formalizada apenas na década de 60, apontando assim esta parceria como uma estratégia de promoção da expansão da rede de parceiros de negócios, não sendo vital na configuração inicial da rede. O outro irmão André e os sobrinhos Pero e Cosme parecem ter apenas uma importância média no funcionamento da rede, não desempenhando papéis centrais no seu desenvolvimento, ao contrário de indivíduos como os Bonvisi, Gerónimo de Valladolid, António Gomes, Simão Rodrigues de Évora ou André Ximenes. 21 Fig. 8 – Betweenness e total degree em relação com a família Ruiz, 1553-1580. Avaliando o número total de contactos de cada indivíduo, comparado o grau de importância que cada um dos agentes desempenha na rede, poderemos aferir de que forma Simon Ruiz poderia recorrer à família para a expansão da sua actividade económica. Devemos, antes de mais, reiterar que a elevada disparidade do número de contactos que tem Simon Ruiz em relação a todos os outros nós se deve ao facto de a informação recolhida ter origem na documentação da sua companhia, participando ele em todos os actos. Sendo o total degree uma medida que acumula o número de relações que têm origem no nó x e o número de relações que têm como destino o mesmo nó, não é de espantar que Simon ruiz tenha um total degree de 400, numa conectividade média de cerca de 180 nós distintos. Comparando o total degree dos indivíduos da sua família, aqueles que apresentam uma actividade mais frequente com outros nós são Pero Ruiz (35) e Andre Ruiz (33). No entanto, se relativizarmos estes números e atentarmos nos indivíduos que detêm um total degree mais elevado, a seguir a Simon Ruiz, encontramos uma correspondência com os indivíduos que detêm um betweenness mais elevado, como os Bonvisi ou António Gomes. No entanto, ao nível familiar, sendo Vitores Ruiz um elemento chave no acesso aos maiores capitais de Castela e Sevilha, como os Curiel, Juan ortega de la Torre ou os Maluenda, a colaboração com o irmão Simon não é a mais frequente. Já 22 André ou Pero, ainda que estrategicamente menos relevantes, desempenham um papel de intermediários em vendas e pagamentos em nome de Simon. Assim, as relações familiares não parecem ter desempenhado um papel absolutamente crucial na formação e expansão desta rede de negócios, corroborando a teoria de Granovetter de que a família, os «strong ties» existe como uma base de apoio da actividade económica, mas que é com os «weak ties» (os conhecidos, aqueles com quem dispomos de menor intimidade afectiva) que surgem maiores oportunidades, servindo para lançar pontes locais entre conjuntos de actores, que ficando isolados, e estabelecendo ligações por caminhos mais longo e mais custosos, não teriam o mesmo rendimento na sua performance económica49. Por outro lado, ao contrário de observações empíricas da Biologia Evolucionária, não parece que a cooperação seja estabelecida inicialmente com indivíduos com laços sanguíneos genéticos, ainda que posteriormente o grupo fosse alargado a não parentes50. O caso de estudo de Simon Ruiz parece revelar o oposto. Será uma excepção no panorama europeu do século XVI? A falta de estudos com a mesma base de sustentação empírica e metodológica não nos permite, até este momento, ter respostas para esta questão. 49 GRANOVETTER, Mark S. – “Business Groups and Social Organization” in SMELSER, Neil J.; SWEDBERG, Richard (Ed.) – The Handbook of Economic Sociology. Princeton: Princeton University Press, 2005, pp.429-450. 50 KOKKO, Hanna; JOHNSTONE, Rufus; CLUTTON-BROCK, T. H. – “The Evolution of cooperative breeding through group augmentation”. The Royal Society. Vol. 268, pp. 187-196. 23