Psicanálise e clínica das toxicomanias Maria Luiza Mota Miranda 2010 Introdução • Objetivo Examinar como a psicanálise seus fundamentos e sua prática, se relacionam com a clínica dos sintomas sociais, onde as toxicomanias se incluem. Introdução Delimitar o escopo da psicanálise, já que nos encontramos em uma clínica além dos moldes da clínica psicanalítica. O USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS –A MULTIPLICIDADE DE ASPECTOS ENVOLVIDOS –AS DIVERSAS DIMENSÕES NA ABORDAGEM DO FENÔMENO Da complexidade do fenômeno... A toxicomania é o resultado do encontro de uma personalidade, com uma substância, num determinado momento histórico Claude Olievenstein ... à transdisciplinaridade na abordagem Dimensões política e jurídica Descriminalização Legalização É a lei que faz o pecado A realização de um castigo exige um assentimento subjetivo necessário à própria significação da punição Motivos econômicos fomentam a proibição do comércio do ópio, do álcool, do cigarro, da cocaína “A legislação repressiva dá lugar a um crescimento vertiginoso do contrabando, envolvendo policiais, alterando a tipologia do consumidor: se antes era, na sua maioria, uma pessoa de classe média com mais de quarenta anos, sem historial delituoso, agora começa a concentrar-se em gente muito mais jovem e pobre, e por isso mesmo com um melhor acesso ao mercado negro. A lei Harrisosn criou o traficante de drogas e o traficante criou o adito.” transdisciplinaridade na abordagem Antropologia e Ciências Sociais “É ao foro interno de cada um que incumbe decidir se o remédio é adequado á doença, pior do que ela ou porventura origem da própria doença. O gênio dos gregos batizou as drogas com um termo (phármakon) que significa ao mesmo tempo remédio e veneno, pois é dependendo do conhecimento, da ocasião e do indivíduo que um se transforma no outro. É do ser humano e de modo nenhum das drogas que dependem o remediarem ou estragarem. Tal como existiram sempre, em toda parte, e – a julgar pelos dias de hoje – amanhã haverá mais do que ontem, a alternativa não é um mundo com ou sem elas. A alternativa é instruir sobre o seu emprego correto ou demonizá-lo indiscriminadamente; semear o conhecimento ou semear a ignorância.” Historia Elementar Das Drogas – Antonio Escohotado Antígona – Editores Refractários. Lisboa Portugal, 2004 transdisciplinaridade na abordagem Antropologia e Ciências Sociais • Contexto histórico e sócio cultural da droga • Papel e tirania dos controles sociais informais de consumo • Usos tradicionais Como a sociedade representa esse tipo de uso é como uma profecia que se cumpre a si mesma O efeito da droga depende do que se afirma, do que se sabe, em direta conexão com a situação política e econômica transdisciplinaridade na abordagem Psiquiatria Propriedades físico química e biológica das SPA, enquanto agentes modificadores do funcionamento cerebral Aspectos farmacológicos, modos de ação e distribuição no organismo Usos problemáticos Comorbidade Nosso mundo atual é do analgésico, do anestésico, da vacina, do antibiótico, da longevidade Quer-se o meio mais rápido de evitar sofrimento A quem serve medicar? • Quando se age através do medicamento, se age no organismo, mas também em seu modo de captação e simbolização A quem serve medicar? • Há um determinismo absoluto do fármaco que serve à indústria e a propósitos políticos e econômicos • O medicamento não se reduz em nenhum caso à substância. É inseparável da definição de suas regras de uso e por isso ele convoca, para além dela, uma posição ética. A clínica psicanalítica A RELAÇÃO DA SUBSTÂNCIA COM A FUNÇÃO DA LINGUAGEM ASPECTOS SUBJETIVOS DO USO A DIMENSÃO DO GOZO PRESENTE NO ATO DE SE DROGAR Dimensão simbólica • Estamos presos nos enlaces do discurso, nos laços sociais que precedem nosso nascimento e ultrapassam as histórias individuais e até mesmo a palavra. São laços que se estendem nos sentidos, nas determinações sociais, na família, na escola, no mercado, nas leis. • Desse modo as prescrições de cada sociedade e de cada época sobre a droga vão se inscrever na realidade humana, de cada um, e. isso se revela na clínica: Chico diz que a maconha é a droga do preguiçoso. Durante anos de faculdade paralisou suas atividades, ficava de bobeira. Faz uma relação entre esse uso e o medo de assumir responsabilidades. Para Rosa a droga companheira realiza a ilusão da completude: “Essa abstinência é o que me maltrata, ela era uma espécie de companhia para mim, eu me sinto muito só.” Performativo O drogado se define por uma frase: Eu sou toxicômano, não abrindo mão dessa condição, mesmo prescindindo da substância: Meu problema é o álcool, que me levou ao fundo do poço, até beber perfume. Vi que precisava de ajuda. Hoje não tenho mais vontade, com o tratamento e minha força de vontade. Antes era logo o álcool, em primeiro lugar o álcool. Pretendo voltar a trabalhar, retomar minha vida sem o álcool. Aceitei que sou um doente, se eu triscar o bicho vai pegar. Dimensão Real • Na cultura a droga possui um lugar permanente na economia libidinal • Uma prática auto erótica, em que a especificidade do objeto droga permite o gozo em novas partes do corpo O homem busca felicidade, mas encontra o sofrimento presente na dependência e no uso exacerbado, no mau uso. É o efeito pharmakon onde o remédio se descobre rapidamente como um mal, pulsão de morte. Jorge, viciado em cocaína, filho de um pai militar, sente a pressão da mãe ao exigir que ele dê um jeito em sua vida. Localiza o desespero, drogar-se o satisfaz, usa para se sentir bem. Ele faz ou fez uso excessivo de drogas, nomeando-se doente de um uso em excesso: Não posso usar, porque, se usar, é sem limites. Não é de falta, é de excesso que ele se queixa, é de vício, fissura, ansiedade, impulso. Nomeando-se de drogado, ele pode obter satisfação, ao mesmo tempo nomeia um modo de gozo, enganchado num produto da indústria. Drogue-se, imperativo de gozo Atender as exigências da cultura não é sem problemas, a neurose e o uso de drogas são um testemunho disso: O drogado testemunha a face feroz e obscena do supereu. Muito exigente, parece que não consegue lidar com a frustração. Qualquer falha o perturba, vai prá droga. Obscenamente tem mania de ideal. A clínica evidencia uma relação dialética entre a lei que interdita e a busca pela droga ilegal. Se usar, é criminoso: essa sentença implica o indivíduo com o ato, não restando para ele outra possibilidade de existência. Resta saber como e por o usuário responde a isso, como a proibição de um uso se inscreve na realidade humana, de cada um? Como responde ao imperativo categórico ao qual, aquele que demanda tratamento, se sente submetido, “como uma profecia”, determinado a cumprir, sem saber por que, e a partir do qual ele se realiza como culpado, criminoso, marginal Paulo, desde criança, escutava a sentença paterna de que “todo usuário de maconha é marginal, matador, tudo de ruim.” Pai ausente de diálogo, de carinho, presente pelas explosões de violência, de agressividade, que bate sem razão, que será determinante na existência e na vida de Paulo que passará a usar maconha na adolescência. Solicita o tratamento porque se paralisa, entra em pânico, diante da possibilidade do encontro com o outro, onde acende o cenário de “tudo de pior”; assim, a velhinha ao seu lado, na sala de espera, se transforma em marginal, vovó metralha. Fazendo-se vítima da violência assassina, vítima de vários assaltos, do encontro com um sócio desonesto, pelo qual se deixa roubar, marginalizando-se pela contração de dívidas. Jonas mata, para se defender de morrer, numa briga de ciúmes de amor. Foge, realizando sua condição de fugitivo no encontro com o uso ilegal e o tráfico, do qual se faz devedor. Jorge diz que busca a droga ilegal, o crack e a cocaína, como modo de resposta à relação com o pai, tirânico, que só dita, não conversa. Quando compara o crack à maconha M diz que o crackeiro é o sacizeiro, não tem moral, é a condição última. Carlos refere-se a um pai rígido, não dava carinho, pouco falava, mas, quando o fazia, tinha que obedecer. O uso do crack é associado à morte paterna. A droga libera a prática sexual, o deixa bobo, impuro, faz o que normalmente não consegue fazer, libera do pai. Relação entre um uso marginal de SPAS e a interdição da função paterna, ferocidade e agressividade que não resta alternativa, senão obedecer. Os usos toxicomaníacos evidenciam essa exigência de gozo, fissura que não encontra freio. É o aspecto mórbido e patológico do supereu. Dimensão imaginária • Uso hipocondríaco, de alguém que se representa como frágil, corpo frágil, que adoece a cada “preocupação” • Expectativas dos efeitos que se espera de tal substância • Sentimentos de poder,, de virilidade, de autonomia, dependência, bem estar • Uso cosmético • Efeitos egóicos, que dizem respeito à imagem corporal. • Sentimentos de vida, efeitos libidinais, doshormônios. • Efeitos de significação, efeito-apaziguador, medicamento que acaba com a festa, sanção, suporte. • Expectativas de efeitos atribuídos a quem usa, a quem prescreve, a quem vende ou comercializa, a quem julga. Os usos de SPA no século XXI • Uma clínica recente, clínica no social • Drogas e dependência química se encontram especificamente aliados Sempre existiram tensões em torno do uso de SPAS Um passeio sócioantropológico revelará razões morais, econômicas e políticas por trás O uso de drogas, principalmente o uso ilícito, acompanha-se de implicações sociais, danos, prejuízos e condutas que infringem o bem-estar . Condutas perversas, aliadas ao tráfico e crime, levando não raro a uma equivalência entre toxicomania e perversão. DISTORÇÕES DE INFORMAÇÃO A droga é a causa direta das toxicomanias DROGA TOXICOMANIAS OUTRAS CRENÇAS A droga transforma o homem num ser perigoso, capaz de roubar, matar, atingindo a si e ao outro, próximo à psicopatia É um produto perigoso que deve ser interditado e proibido Seu uso se dá numa escalada crescente em intensidade e para produtos mais prejudiciais O toxicômano é sua presa passiva; produto de circunstâncias exteriores que determinam o seu estado É suficiente realizar a separação entre droga e indivíduo CONSEQUÊNCIAS A droga perde importância em sua função na economia psíquica O indivíduo é retirado de sua responsabilidade É abstraída a função da droga enquanto sintoma social, efeito dos discursos contemporâneos “Em 1900 todas as drogas se encontram disponíveis na farmácia e drogarias, podendo ser comercializadas pelos correios, na América, Ásia e Europa. Há dependentes, consumidores moderados e imoderados, já se falava em habituação, vício, usos crônicos já se falava em habituação, vício, usos crônicos [...] o que mal chama a atenção de jornais ou revistas e nada de juízes ou polícias. Não é um assunto jurídico, político ou de ética social” As SPA ocupam um lugar estruturado na sociedade capitalista “A sociedade atual utiliza a bebida como um recurso cotidiano. Três santos nos convidam à orgia: João, Antônio, Pedro. Se em tudo que fazem há bebida, por que a bebida tem de ser interditada? Há como um espécie de cinismo” As SPA tornam-se objetos globalizados de satisfação Assistimos a um fenômeno surpreendente na lógica capitalista: a capacidade de transformar certas substâncias em mercadoria de alto valor, as SPA se tornam objetos globalizados de satisfação, criando-se assim um mercado único de gozo, controlado por suas leis As transformações sociais produzem mutações subjetivas e com isso, respostas sintomáticas características. Falar sobre a clínica das toxicomanias, é falar dos sintomas na atualidade. Dessa época em que assistimos à erupção das anorexias, das bulimias, das síndromes de pânico, das psicoses ordinárias. Onde a depressão será reconhecida como o mal do século. MUNDO CONTEMPORÂNEO, MORTE DO SUJEITO E GOZO DESMEDIDO Fala-se até em morte do sujeito Hoje, no império do consumo, onde o gozo da droga se adéqua muito bem às leis do mercado, assistimos à irrupção de um gozo público, escancarado, da droga, da violência sem lei. A única lei é a do gozo. O CAPITALISMO E A CIÊNCIA PROMOVEM AS TOXICOMANIAS A ciência, em sua busca de causa formal, lógica, minimiza as representações, a erudição, a retórica, reduz o sentido. A droga é assimilada a um fator tóxico e, desse modo, a significação que se encontra presente no ato de se drogar mostrase completamente neutralizada As toxicomanias como efeito do discurso da ciência Discurso da ciência Ato toxicomaníaco sujeito erradicado da subjetividade, do desejo e da dimensão real de seu gozo No discurso capitalista a subjetividade tem valor zero, o que vale é o saber fazer, é o saber produzir. O indivíduo não mais sucumbe aos ideais, mas à tirania dos objetos que ele se emprega a produzir. Ele é escravo do mercado, vale pelo que ele produz. O dinheiro e a técnica substituem o sujeito da história e do inconsciente. O domínio da técnica torna-se o objetivo último, prevalecendo sobre os objetivos do sujeito, o dinheiro vale por si. É essa a interação, essa interface ente drogadição, ciência e capitalismo que nos interessa destacar: interface marcada pela redução da subjetividade, pela supressão inconsciente do sujeito do Cada época produz e alimenta os seus próprios sintomas, as mudanças no contexto social e cultural os afetam diretamente. As épocas do capitalismo e da ciência promovem a proliferação das toxicomanias que se originam nessa crise de autoridade e de redução do sentido Os sintomas atuais, as toxicomanias, apresentam uma característica em comum: produzem-se no real, gerando um modo de satisfação fora do campo da fala, prescindindo da significação, desatado de qualquer racionalidade, de qualquer sentido São modos de gozo que respondem bem à cultura de hoje e ao autismo contemporâneo . SATISFAÇÃO PRODUZIDA FORA DO CAMPO DA FALA MODOS DE GOZO QUE RESPONDEM BEM À CULTURA DE HOJE E AO AUTISMO CONTEMPORÂNEO OS SINTOMAS CONTEMPORÂNEOS PROBLEMATIZAM O ESPAÇO SIMBÓLICO E DISCURSIVO Quando o ato dissolve a angústia • Freud – droga como substituto do impulso sexual, sendo a masturbação o “grande hábito, o vício primário”. • Situada no âmbito das neuroses atuais, diferentemente da modalidade das psiconeuroses. “Entregue a si mesmo o masturbador está acostumado, sempre que acontece alguma coisa que o deprime, a retornar a sua cômoda forma de satisfação”. É necessário propiciar ao paciente meios para a obtenção da satisfação sexual, “pois tudo o que bloqueia a satisfação é danoso”(1898). • tóxica”, ele nos dizia (1912). neuroses atuais neurastenia, a histeria de angústia e a hipocondria • neuroses do momento presente. Caracterizadas pela acumulação de excitação psíquica, que não se transformava em sintoma. A etiologia e o mecanismo de formação dos sintomas era somático e não psíquico, não havendo a mediação significante encontrada na formação dos sintomas das psiconeuroses • Freud encararava a gênese dos sintomas das neuroses atuais como tóxica • Neurastenia - estado do sistema nervoso no qual a masturbação excessiva é o seu agente causador, tratando-se de um funcionamento sexual incapaz de resolver de forma adequada a tensão libidinal • Neurose de angústia - predomínio da angústia, ocorrem influências sexuais que têm em comum o fator da continência ou da satisfação incompleta, ou seja, o coito interrompido, a abstinência ao lado de uma libido viva, a chamada excitação não consumada. A Clínica • Desmistificar a idéia de que o usuário é um marginal ou doente, ou de que todo uso de drogas é prejudicial ou uma doença. O ato de se drogar sempre fez parte da condição humana, há milhares de anos, cumprindo as mais amplas funções: são usos que se inscrevem na cultura de povos, em suas religiões, rituais, no auxílio à força produtiva; usos proporcionadores de prazeres, satisfações, alteradores de estados de consciência; usos medicamentosos, de alivio de tensões, stress, amenizando dores e sofrimentos. Não se pode assim, diabolizar os usos de SPA. A CLÍNICA DAS TOXICOMANIAS A variedade fenomenológica No Acolhimento encontramos diferentes solicitações de tratamento e de orientação em nome das substâncias psicoativas: Usuários neuróticos, psicóticos, perversos; indivíduos nos quais a sua posição não aponta para nenhum desses três registros; usos leves, moderados, pesados; adolescentes; famílias, geralmente mães e pais, em busca de orientação; encaminhamentos da sociedade civil, de órgãos do Estado, instâncias judiciais, em nome de um uso ilegal, ou legal. CONJUNTO DAS TOXICOMANIAS • Família Adolescente Tox. soc. Pos.Toxic. ☻ ☻ ☻ ☻ ☻ • • Família • Adolescente ☻ • Tox. social ☻ ☻ • Pos.Toxic ☻ ☻ ☻ ☻ Conjunto das toxicomanias Família Adolescente Tox social Posição Toxicômana ☻ Família Adolescente ☻ Tox. social ☻ ☻ Posição ☻ ☻ Toxicômana ☻ ☻ ☻ ☻ ☻ ☻ USO ABUSO E DEPENDÊNCIA Constatação: nem todos que fazem uso de drogas se tornam automaticamente toxicômanos. A clínica no social Mesmo na clínica, não se pode reduzir o problema aos aspectos mentais e farmacológicos. Grande parte de indivíduos que procuram tratamento vem como sintoma social, vem pressionados, por ser um problema para sociedade, vem por que o outro quer que ele venha. Não comparece propriamente por sua relação com a substância. Daí a importância do diagnóstico situacional. O usuário como sintoma social • Logo nos deparamos com um embaraço: acolher uma solicitação –a de interromper um uso- que muitas vezes não aparece sustentada pelo usuário, mas, pela família, ou por determinação social ou judicial. • Como Roque, que foi pego pela polícia, fumando maconha na praia e encaminhado para o Grupo da Justiça. Diz não ter problema com a droga nem outro que o leve a procurar tratamento. O usuário como sintoma social • Adolescentes, quando sua drogadição incomoda aos parentes que lhe impõe o tratamento, quando ele não quer deixar. São situações em que o ato de se drogar pode vir como resposta a uma problemática familiar, ou como um modo de lidar com as transformações provenientes da puberdade. • Drogas ilícitas, de onde é retirada de cada um a incumbência de decidir sobre a utilização de drogas e a decisão de parar passa pela responsabilidade social. • Tabaco, em nome de um culto à assepsia da saúde, as pressões e discriminações ao tabagista ganham força. No Acolhimento encontramos usuários marginais, perversos. Usos excessivos, patológicos, comorbidades. Mas encontramos ainda, com bastante freqüência outra população, que nada deixar a desejar de um certo padrão de normalidade social. Há um apelo social, aliado à pressão do Estado para que se encontrem respostas eficazes e imediatas à questão, buscando reduzir o problema a uma dimensão clínica. Considerar os usos intensivos de álcool e outras drogas uma doença sem cura, um desvio de comportamento, uma perversão, transforma a substância em mito, reduz o problema à dimensão clínica, deixando ao indivíduo somente a condição de impotência, sem uma outra alternativa que a da marginalização. Muitos passam a aceitar essa condição e até mesmo reivindicá-la, fazendo desses rótulos, alcoolista, toxicômano, a sua condição de existência, mesmo que funcionem bem no trabalho, na família Princípios da clínica • A clínica do caso por caso, proposta pelo CETAD, busca retirar o indivíduo dessa série, onde o único fazer destacado é o de se drogar, possibilitando a fala ao usuário, e o surgimento de outras questões, o resgate da singularidade de cada um e das particularidades do uso, favorecendo o diálogo e outras possibilidades de existir. Ética da responsabilidade e da decisão de cada um sobre os modos de gozo e do reposicionamento com o campo social. O sofrimento • O respeito pelo sofrimento do homem é o que define o caráter sagrado da ação médica, da experiência analítica. • É o sofrimento presente no uso de substâncias que leva muitas vezes o usuário ao tratamento. Do que ele se queixa, sua queixa é somática, é subjetiva? O sofrimento Vinhetas • José se queixa das conseqüências do uso da maconha, perdeu a namorada. • Paulo se diz dependente químico do crack. • Silvio queixa-se de dor de cabeça, viciado em morfina, a dor é porque não se conforma com injustiças da sociedade. • M se queixa- do uso da maconha, sente-se impotente para parar de usar. • – Já se perguntou por que usa maconha desse modo, prejudicando-se, pondo em risco a sua vida, intervém a analista. • Intervenção que a surpreende, fazendo-a recuar de um relato aparentemente esteriotipado, dramático, para dizer, não sei e, em seguida, implicar-se, interrogando-se, por quê? Surge então a queixa de um intenso medo e de uma dor muito grande de viver, não agüenta mais essa situação. Por isso, faz para sair do ar, com o crack, por exemplo. Desde criança sentia-se estranha, gostava de brincar de futebol e skate, os meninos a xingavam, não tinha amigas. A mãe lhe dizia para não ouvir, mas o que as pessoas lhe dizem tem muita influência. Acha que tudo dela é o pior, tem vontade de morrer, vai para a rua para o carro atropelá-la, este desvia e ela perde a coragem. Seu avô acabou por se suicidar, era diagnosticado de epiléptico. M se machuca, bate a cabeça, corta-se, furase, sangra, não se controla, acha que é uma forma de punição. Vive reclusa, sempre viveu, uma impressão de que está apodrecida, mas é do mental, acrescenta. Tem medo de eliminar o uso da maconha que funciona como uma garantia. • O drogado encontra no CETAD um lugar aonde ir, para se queixar do uso, queixar-se do outro. Vem pedir uma ajuda para parar de usar, quer conversar com o psicólogo, ouvir conselhos. Não dorme, sente angústia, faz queixas clínicas, está com síndrome de abstinência, solicita internação, quer ver o psiquiatra, pedir medicamento. Aparece o sofrimento de um uso patológico, intenso, que arruína a vida, rompe laços afetivos, sociais, o cara rouba, mata, vende tudo para usar • Voluntariado delegamos ao usuário a responsabilidade de assumir as suas escolhas • Responsabilidade • A experiência tem demonstrado que quanto maior for a responsabilidade do indivíduo pelo seu ato, melhores as chances no tratamento. • se a direção do tratamento humaniza, ela não retira, a responsabilidade social de cada um. Campo em que clínica se limita, devendo reservar-se de entrar AS SPAS NÃO SÃO JUJUBAS O crack • Se não cabe diabolizar o usuário, cabe no entanto estarmos prevenidos para o potencial de nocividade de determinadas drogas, como o crack, produzido em laboratório, com propriedades poderosas: Fumava maconha desde os 14 anos. Usei cocaína, varias outras drogas. Por último essa derrota que foi o crack. Posição toxicômana • O toxicômano chega ao Centro com uma afirmação sobre sua condição, vêm com uma resposta eu sou toxicômano, não uma interrogação. • É uma coisa curiosa que o sujeito pense não poder suportar seus enigmas, o que escapa ao seu controle, substituindo sua falta de resposta por um objeto, encontrando nesse objeto a razão daquilo que lhe passa, afirmando, “sou toxicômano porque tomo droga” O toxicômano propriamente dito Definição indivíduo que faz ou fez uso excessivo de drogas e pode ter a sua fala reduzida ao enunciado eu sou toxicômano. O toxicômano está no princípio de identidade • Dá sentido à sua existência pela via do ser • Qualquer ser falante, para fazer vínculo social, senão fica autista, precisa se nomear para atender a uma exigência de ter que responder ao que você é. princípio de identidade Eu sou toxicômano : Proposição que pode ser reduzida à fórmula S é P, ou A = A Onde o predicado equivale ao ser: EU = DROGA Posição toxicômana • A dialética da constituição • É possível delimitar um momento de constituição no qual a droga pode servir como essa resposta, configurando-se numa toxicomania. Quadro, marcado pela demanda incisiva do Outro, geralmente mãe, e pelo enfraquecimento da função Nome do Pai, determinantes nesse encontro do indivíduo com a substância. • Pensar-se como falo é pensar que a sua existência está inextrincavelmente enlaçada a um Outro demandante, é se pensar na exigência de ter que apagar os seus limites, entregando-se de forma incondicional, fazendo-se de seu prolongamento, que não pode ser destacado. O que o “angustia é o império da demanda da mãe”. • Há como que um sentimento de que nos reduzimos ao nosso corpo, o que provoca intensa angústia, algo que a criança representa como uma parte de si, como um sinal de que alguma coisa desperta o corpo, o atormenta, um gozo fálico. A angústia é sinal de que alguma coisa desperta o corpo, no corpo, o atormenta, quando a criança se percebe sensível à associação com um corpo, com o seu pênis, associação a um corpo de um gozo fálico • O rompimento com o Outro • É assim que a droga é um modo de liberação da angústia já que “tudo o que permite escapar a esse casamento é bem vindo, daí o sucesso da droga” • Enquanto resposta à castração e à demanda do Outro, o toxicômano responde com uma solução de ruptura • A contradição é que se rompimento lhe permite sair do império da demanda do Outro, quando rompe ele passa a ser objeto do império da droga. Ficar na posição de ser o falo da mãe é permanecer no gozo da morte o que, de alguma forma, com o rompimento, é o que lhe acontece. O rompimento com o Outro A satisfação do drogado é a satisfação do um, que passa ao largo das dificuldades e das pressões provenientes da relação com o Outro -pai, mãe, escola, sociedade-, que demanda que o sujeito nele se inscreva, dele participe, pelo trabalho, cultura, amor, paternidade, maternidade; pela produção de objetos simbólicos; esse Outro que impõe a sua lei, que solicita que o sujeito preste conta de sua passagem pelo mundo. É essa dívida simbólica que o toxicômano contesta, desatando-se das possibilidades de regularidade e do estabelecimento de uma lei. São respostas de ruptura com as relações afetivas, profissionais e sociais. Considerações A posição toxicômana oscila entre a passagem ao ato de se drogar e o restabelecimento com o Outro. O toxicômano tem muita angústia, principalmente após o período de abstenção da droga, quando restaura a relação tão problemática com o Outro Saídas da angústia • Fobia - o S encontra uma representação imaginária, com referência no mundo, pondo em evidência o gozo fálico • Droga - busca no mundo um modo de gozo, através da substância, rompendo assim com o gozo fálico, (G), tirando do jogo a castração Para o toxicômano as coisas se passam como se estivessem no mundo. A obtenção de seu gozo se dá sem o recurso do Outro Objeto droga • objeto cotável, de intercâmbio • objeto da necessidade mais imperiosa, uma exigência de satisfação tão forte que pensa não poder renunciar. Como trata? • Acolhendo e separando as diferentes queixas, sejam de familiares, ou do usuário. No caso deste, separando as queixas somáticas, psiquiátricas, psicológicas, psicanalíticas, para dar o devido encaminhamento. • Demovidos de uma visão missionária de querer fazer de qualquer modo pelo outro, decididamente, este não é o papel da clínica. O terapeuta na posição de demandante, só atrapalha, compromete o tratamento. Cabe sim, a ele, manejar para que surja a solicitação • Quanto mais o Outro, seja parental, seja institucional, juiz, médico, psicólogo, tome para si a responsabilidade que é do usuário, mais aumenta a sua crença de impotência diante da droga que fica também com a responsável por seu estado, só lhe restando o lugar da vítima. Sem a promessa de um milagre curandeiro, cabe essa virada no tratamento, onde ele se sinta capaz de lidar com as dificuldades provenientes tanto do seu ato de se drogar como de sua decisão de interromper o uso. • Nem sempre a solicitação é de parar, e é função do terapeuta estar atento para não querer pelo outro. Ao acolhermos um pedido, cabe-nos avaliá-lo, encaminhá-lo, ou respondê-lo de acordo com nossos limites e possibilidades O tratamento Resgatar e estabilizar os vínculos sociais Reorganizar o espaço simbólico e discursivo Inserir recursos imaginários Deslocar da identificação maciça com o eu sou toxicômano para os verbos de ação, passar do ser ao fazer Reordenar a vida do sujeito com o mundo O tratamento Adolescentes: dar ao jovem instrumentos simbólicos, como o domínio do próprio corpo, o discurso e a capacidade do relacionamento social. Meninos de rua: possibilitar a inserção no mundo simbólico e um estabelecimento dos laços sociais. • No tratamento há um longo percurso a ser feito, para permitir a passagem do sintoma social ao sintoma do sujeito Estratégias institucionais • Várias estratégias podem ser utilizadas: acompanhamento individual, grupal, com vários recursos psicanalíticos, cognitivos, etc. As oficinas de arte e expressão, os trabalhos corporais e o teatro são recursos que visam ampliar a dimensão do fazer, estendendo-a a outros modos de satisfação, pela oferta de outros atos, além do de se drogar, permitindo a construção de um modo de satisfação particular a cada um. Permitem ainda a reconstrução das fantasias, facilitando o deslocamento da identificação maciça com o eu sou toxicômano, pela introdução de outros verbos de ação, ex, eu sou poeta, escritor. O que possibilita um reposicionamento desses indivíduos. • Mesmo quando a decisão de parar é do usuário, esse processo não é simples, não se reduzindo a um basta ficar longe da substância e contar com os aparatos técnicos possíveis. Há como que uma vontade incontrolável, uma espécie de fissura sem limites, o que dificulta o afastamento da droga. E o retorno a esta é freqüente. Na abstinência da droga o drogado vivencia ansiedade, insônia, depressão, irrupções de angústia que o atormenta, uma invasão sem limite, um sentimento de nos reduzirmos ao nosso corpo. É quando o ato de se drogar permite dissolver a angústia • Geralmente se quer parar devido às conseqüências que esse uso provoca. Mas, é complicado encontrar um “substituto à altura”, um capturador de satisfação, de gozo tão poderoso quanto o proporcionado por algumas SPA, como crack • O drogado até que consegue abdicar do uso das drogas. Muitos tratamentos se ocupam em afastar o usuário da substância. No entanto a condição de existência, a de ser toxicômano, funciona como um imperativo categórico, que ele se condena a cumprir, rejeitando a realidade de sua verdade e de seu modo de gozo • Por que se faz de marginal, de matador, de tudo de ruim? O que Paulo faz no mundo, as funções profissionais que chega a exercer com muito reconhecimento, mas que paralisou, não correspondem à prescrição paterna na qual ele ficou alienado. • Nomear esse modo de gozo, essa alienação a essa lei rígida, introduz outra possibilidade de relação com o campo do Outro. Não se trata de desvendar o mandamento que se escutou, nem a intenção do mandante, mas, o surgimento do nonsense, do não sentido, a insensatez da prescrição, retirando o efeito do imperativo do mandato, permitindo assim ao sujeito decisão que permanecia ausente (VILLALBA, 1998). A outra face da leI, que diz sim, o outro que dialoga, que dá as condições de possibilidade, abrindo as portas para a decisão. • Assim, Paulo aponta outra direção para a lei: meu pai poderia ter conversado comigo, sem precisar me bater tanto, inscrevendo o Nome do Pai que diz sim • A lei que criminaliza, que reforça a alienação, não deixa alternativa ou condição de possibilidade. Na interdição não se diz o que é possível, só se proíbe. Na hora que diz não, não diz o que ele pode e ele fica sem sustentação. Assim Carlos ficou, sem saber que pode se liberar de outro modo que não o de bobo. Que pode sustentar sua sexualidade sem precisar se marginalizar. • Nesses casos é imprescindível no tratamento apontar para outras possibilidades de existência e de outros fazeres:Você pode fumar, tocar, cozinhar, não ser marginal, nem matador. O que falta é o pode , já que ele está preso no imperativo categórico. • Se a lei funda o crime, a permissão enuncia o que pode fazer: Você pode beber, desde que não dirija, implicando o indivíduo nos seus dois atos. • Pais que, para esses indivíduos, se ausentaram do amor, não disseram sim, o que dificulta. Finalmente, caberia levar em consideração o argumento lacaniano de que só o amor faz o desejo condescender ao gozo. • Quadro clínico onde está em jogo a nomeação da mãe, onde o Nome do pai deixa de ser a referência. É uma nomeação mais rígida, porque implica a perda da dimensão amorosa. Tipo de nomeação que é suficiente com a mãe, dispensando o pai. Mãe que faz de seu filho o seu projeto, fez tudo por ele. Viciado, na mãe, só há um jeito de escapar, pela droga. • Cíntia diz que se formou, mas quando casou foi se ocupar de seus quatro filhos. Na separação sentiu que foi difícil para Eduardo. Com os outros teve controle total, mas com ele, falhou, acha que usa drogas, ele não segue o projeto normal. • Lauro diz que seu problema é o álcool, passou a usar sem limites quando ficou sem a mulher e a filha. O álcool ajuda a matar a saudade, cura da dependência. A doença de Lauro é a dependência da mulher e da filha que o álcool soluciona. • Sempre que estamos no campo do amor, está em jogo o Nome do Pai. Quando se perde esta nomeação se entra em outra zona. • Entra em jogo um Outro que designa um projeto rígido para o filho, marca-lhe um caminho na vida. À diferença da nomeação paterna que nomeia o filho dizendo: “você é meu filho, faz seu caminho; ou, “dou-te a possibilidade de ser em uma cadeia de gerações, dou-te a possibilidade de filiação, porém terás a possibilidade de encontrar-te com teu desejo”. (DAFUNCHIO, 2008) • Neste tipo de nomeação o social ganha prevalência, o que entranha a estrutura do falante é um tecido social. • • • • • GRUPO SPA O Grupo tem funcionado como um recurso importante no tratamento das toxicomanias. Para muitos freqüentadores vir ao grupo é um apoio: A freqüência de participação, média de 14 pacientes, grupo aberto. Prá que serve: Instituição: Estratégia de tratamento, escoamento de pacientes, lugar de acolhimento, fortalecimento da transferência, estabelecimento do diagnóstico • Orientação, saber, reforço para parar de usar. • Escuta o que se diz, o sofrimento do colega as conquistas; • Inserção na especularidade através da relação com o semelhante, saindo da rigidez de uma posição fixa. • Possibilitar criar uma imagem de si, inserção numa dialética, fort-da. Antes só ia procurar o álcool agora compro outra coisa, um biscoito • Como a estrutura grupal serve a clínica das toxicomanias? • Suporte imaginário, resgate da relação especular, ameniza o mau encontro com o campo do Outro, campo de onde surge a inscrição do falante . Grupo • A dificuldade de adesão ao tratamento individual e a constatação da adesão de muitos pacientes às estratégias grupais, a exemplo do AA e NA, precipitaram uma idéia inicial de que o grupo poderia servir como uma ferramenta de atração ao tratamento. • Sempre se pode inventar um rumo novo e ganhar outro ponto de chegada, mesmo quando tudo pode dizer o contrário, mesmo quando pior parece a única escolha. (Digaí Maré11) GRUPO • O que o drogado busca no grupo, respondendo a quê, de que vem se queixar, o que vem pedir? • Como essa estratégia poderia ser oferecida de modo a sustentar os princípios estabelecidos? • Para os que vêm, o grupo é um lugar aonde ir, porque cumpre sua finalidade, como se a lógica grupal contivesse um fim em si, uma força tal, capaz de se contrapor ao impulso de se drogar, permitindo substituir o apelo celibatário do tóxico: • Quando conheci o CETAD minha vida mudou pra melhor. Ganhei mais confiança, foi uma grande vitória. W • Para Freud o elo é a coisa que é característica de um grupo, os indivíduos do grupo se combinam em uma unidade É esse elo o que R explicita: Clareou essa luz que me fez vir aqui na primeira vez. Descobri que o que estava pensando se encaixa aqui, alguma coisa de liga, esse laço, essa união. O que escuto me fez perseverar. Hoje a minha ansiedade é diferente, é desejo de vitória. Não adiante ficar dentro de casa se minha prisão está em mim mesmo. • Colados na droga, dependentes de, efeito de alienação fundamental para a inserção de cada um no campo do Outro. O que ameaça essa posição pode ser catastrófico no tratamento. A estrutura em grupo favorece esse efeito, bengala imaginária capaz de apaziguar a angústia. • A entrada no grupo, favorece as identificações grupais, a relação com o semelhante Lacan situa a identificação primária como a mais antiga demanda, onde opera o poder absoluto materno – alienação simbólica a nível das marcas. • As coisas se passam no grupo como se estivessem no plano da identificação primária • A droga vem como resposta á angústia onde se vive por um instante o apagamento dos limites, exatamente pelo fato de que não se sabe o que fará um Outro a quem se empresta todo o poder. Neste instante ele se encontra, com o poder absoluto materno que a droga parece romper. E que o paralisa ao mesmo tempo. Potência da mãe, potência da droga.