QUESTÕES DO DIREITO PENAL NO CONTEXTO DA AIDS* Tânia Maria Nava Marchewka Procuradora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios INTRODUÇÃO Entendemos necessário fixar aqui os pontos fundamentais sobre a temática ora apreciada, que devem ser tratados. E nessa preocupação partimos da análise da existência de normas de proteção aos chamados direitos fundamentais da pessoa humana, em face da evolução do conceito de direitos e garantias individuais e coletivos, e o alcance de tais normas diretrizes dentro da comunidade brasileira, marcada pelas diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais. Iniciamos a pesquisa a partir dos estudos dos eminentes mestres: o filósofo Emmanuel Carneiro Leão e o jurista Juarez Tavares, trazendo suas primorosas contribuições para o desenvolvimento deste trabalho, bem como de nossa experiência atuando na Execução Penal, ora como defensora pública e como promotora de justiça, bem como de nossa atuação extrajudicial na promotoria de defesa da saúde-Prosus. Nessa cadência, o presente trabalho tornar-se mais gratificante porque o mundo atual aponta para o aprofundamento de uma nova concepção dos direitos humanos, nos ordenamentos internos e internacionais. Porém, não existe a pretensão de abranger todos os enfoques que a temática permite. Tenta, pois, nos limites do que dispõe, enfocar a discussão sobre a eficácia e aplicabilidade do nosso sistema penal dentro das dificuldades da assistência médico/psicossocial para os detentos, notadamente os portadores do vírus HIV e os doentes mentais. * Palestra proferida durante o Seminário Nacional sobre a Prevenção das DST, AIDS e Uso Indevido de Drogas nos Sistemas Prisionais, Brasília, nos dias 16 e 17 de dezembro de 1999. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 147 As questões aqui abordadas exercem um papel informativo importante num momento em que nossa sociedade vive um período de transição. Esse momento é aquele onde se configura a sociedade brasileira contemporânea, a qual, vem gerando dentro das estruturas sócio-econômica-administrativa e política, em seus contornos institucionais, necessidades inéditas de articulações, que podem ser atendidas ou satisfeitas pela implementação de estratégias inovadoras. Desse processo de ajuste, o fosso cada vez mais profundo acha-se entre o sistema jurídico e o interesses conflitantes numa sociedade em transformação. A PROBLEMÁTICA Gostaríamos de aqui colocar um dilema: as normas abstratas e gerais em face dos casos concretos, tem comprometido a efetividade dos códigos e de suas normas. Dado as características da AIDS e as vias de transmissão hoje reconhecidas, abordaremos algumas questões complexas e importantes no âmbito da ciência punitiva, num breve estudo em bases constitucionais do Direito Penal Democrático. As clássicas declarações de direitos, sempre consignavam em suas disposições iniciais a crença na vida, na liberdade e na felicidade como direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem. A história do Direito Penal caracteriza-se por uma evolução constante. Cada época possui sua marca, porém, por mais completa que pareça estar a construção doutrinária de um tempo, sempre algo novo surge. Estamos vivendo um momento de renovação político-institucional, de importantes conseqüências na esfera do Direito Penal, pois este, de todos os ramos do Direito, é o mais sensível às modificações políticas. O Direito Penal fascina pelo seu conteúdo humano, pela palpitação social, pela intensidade dos dramas. É o que mais desperta e mobiliza a compreensão, a simpatia e a solidariedade humana. É a única modalidade 148 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. de advocacia que se pode oferecer. O Direito Penal é o que mais engrandece e empolga a consciência social. Seus dados aplicam-se a tudo, desde as cogitações filosóficas às conversas de salão. O Direito Penal tutela o homem antes do nascimento (aborto) e depois da morte (vilipêndio a cadáver). Além, disso, visita museus e arquivos, preocupa a filosofia, a sociologia, religiões, ciências, artes, técnicas, serviços, etc., enfim, mergulha em toda a personalidade do homem. Com isso, podemos dizer que o Direito Penal contemporâneo tem um compromisso inafastável com os princípios fundamentais que se situam na origem da Constituição do Estado Democrático de Direito. Dentre as questões complexas no âmbito da ciência punitiva, proclama a política criminal a necessidade do Estado adotar um elenco de penas alternativas e substitutivas à prisão, além da reavitalização das penas pecuniárias, posicionando as penas privativas de liberdade como “última ratio” em matéria criminal. Portanto, o assunto exige uma abordagem dentro do contexto das tendências modernas do Direito Penal e suas perspectivas para os dias atuais e futuros. Procurarei fazer uma reflexão um pouco diferente do Direito Penal tradicional. Essa abordagem será dividida em duas partes. A primeira seria puramente dogmática, enquanto que a segunda seria de política criminal. A dogmática penal passa hoje por um processo de crise. Aliás, sobre crise já se fala muito. Não só da crise do direito penal, mas a crise do direito civil, a crise do direito de família, etc. Como se sabe, no campo dos direitos humanos, desde o século passado, surgiram os primeiros indícios de que a justiça dava sinal de fadiga. A máquina judiciária começou a entrar em crise. O século XX passou a ser o terreno da crise. Afinal, trata-se da agonia do modelo de civilização que nos gerou. Cumpre aqui ressaltar que, o conjunto de padrões ou princípios lógicos-racionais, de eficiência e de eficácia produz e preenche todos os Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 149 espaços do comportamento comunitário e, em singular e individual, dos homens. Entretanto, hoje isto está em crise, ou seja, existe uma crise na própria constituição de padrão. Para o filósofo Emmanuel Carneiro Leão, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, hoje em dia estamos fazendo uma experiência de passagem de maneira acentuada, não havendo princípio que segure e sustente a experiência em determinada ordem ou padrão. Segundo ele, temos uma transformação na atitude ética, na atitude diante dos conteúdos. Enfatiza o referido mestre que, hoje, a criação do indivíduo é substituída pela tecnologia, razão pela qual começa a aparecer a exigência de responsabilidade com as relações futuras. Segundo ele, a partir da responsabilidade com a geração dos sucessos, o desenvolvimento da tecnologia genética, a preocupação com o controle exaustivo do meio ambiente e da natureza, começou a surgir a necessidade de haver, no comportamento dos indivíduos e, sobretudo, das instituições, respeito à preservação das condições de vida e de sobrevivência. Assim, dessa crise nasce, também, uma nova luta, luta esta pelos direitos da humanidade. Percebe-se que, tanto no âmbito das relações individuais como nos setores políticos-sociais, julga-se cada vez mais de forma moral. Percebe-se que já não bastam os julgamentos legais do sistema jurídico. Por isso, o lugar de destaque, o consenso que a democracia e os direitos humanos assumiram nas discussões políticas e nos meios de comunicação de massa de hoje. Os direitos humanos, portanto, possuem um sentido moral e têm base ética. Explica o professor Juarez Tavares que a crise ocorre quando determinadas formas de expressão da realidade estão em descompasso com as exigências sociais que evidentemente procuram uma determinada justificação para certas atitudes e procuram, também, uma perfeita adequação entre o que está escrito em determinada norma e o que efetivamente se pratica na realidade. 150 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. Enfatiza o referido mestre que da análise atenta do processo de elaboração das normas incriminadoras, a partir primeiramente do dado histórico e depois do objetivo jurídico por elas perseguido, bem como o próprio enunciado das ações proibidas ou mandadas, chega-se à conclusão inicial trágica, de que efetivamente, na maioria das vezes, não há critérios para essa elaboração. Lembra, o professor José Geraldo de Souza Júnior, citando Ripert, “a lei, como expressão da vontade geral, é um mito”. (Para uma crítica da eficácia do Direito, Porto Alegre, SAFE, 1984, p. 24). Em face dessas deficiências quanto aos critérios, entende ser imperioso que se procurem estabelecer algumas regras e princípios, que devem ser observados no processo legislativo no que toca à elaboração das normas incriminadoras, tomadas como princípio de limitação. Aqui chamamos a atenção no tocante ao reconhecimento adequado dos complexos problemas das pessoas com infecção pelo HIV, bem como de sua assistência médicapsicológica no interior das prisões, devem ser tomadas na norma penal como protetora da dignidade humana. Essa postura, segundo o referido mestre, deriva de uma constatação fática inquestionável, agora, inclusive, fomentadora de verdadeira revolução no campo penal, com a divulgação de parâmetros do Direito Penal mínimo, o qual retrata as dificuldades do sistema penal e a necessidade de sua reformulação, de que o poder de punir se exerce de qualquer modo, como constatação do próprio exercício da atividade estatal, como poder vinculado exclusivamente à lógica burocrática, a qual não tem qualquer compromisso com a defesa dos direitos humanos, senão com os desígnios dos órgãos encarregados de sua execução. Juarez Tavares chama atenção para a necessidade da formulação de princípios limitadores ao exercício do poder de punir, como exigência de um Estado de Direito Democrático, como por exemplo, princípios que sirvam como critérios de seleção de crimes e cominações de penas. Os primeiros, diz ele, dizem respeito à dignidade da pessoa humana, ao bem jurídico, à necessidade da pena, à intervenção mínima, à Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 151 proporcionalidade. Os segundos tratam da legalidade e seus corolários, bem como, conseqüentemente, da formação dos tipos, dos fatores de reprovação e da punibilidade. No tocante a proteção à dignidade da pessoa humana, enfatiza que regime democrático exige, como condições de sua legalidade, não apenas a titularidade de direitos políticos e individuais, como se pensava no liberalismo, encerrado no simples processo de representação, mais a mais ampla e efetiva participação de todos cidadãos na vida do Estado, propriamente na discussão das leis pelo Parlamento. Alerta que, nesse contexto é que importa os princípios limitativos do poder de punir, os quais vinculam o legislador, como cidadão ao exercício democrático. A dignidade surge como valor intrínseco de todo ser humano, que não pode ser substituído por seu equivalente, como preço de uma mercadoria. Modernamente, diz ele, não pode o homem da mesma forma ser tomado funcionalmente como engrenagem ou membro de um organismo. E, ainda, que no plano da ordem jurídica em sua totalidade, o princípio da proteção da dignidade da pessoa humana superou as limitações individualistas e puramente formais do liberalismo burguês e passou a constituir um ponto de apoio fundamental na defesa dos direitos humanos, sob o prisma da igualdade material. Considera que o objeto de proteção se estende a qualquer pessoa, independentemente da idade, sexo, origem, cor, condição social, capacidade de entendimento e autodeterminação ou status jurídico (não-delinqüente ou delinqüente). Da mesma forma, situa nesse objeto os grupos homogêneos minoritários, dentre os quais, poderemos incluir os detentos portadores do vírus HIV e os doentes mentais, como “os excluídos dos excluídos no sistema penal brasileiro.” Relativamente ao Direito Penal, a proteção à dignidade humana serve de parâmetro ao legislador na configuração dos tipos, bem como na responsabilidade pelo seu cometimento, pelo pressuposto da culpabilidade, e, ainda, a garantia à assistência médica e psicossocial aos detentos. 152 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. Modernamente não se discute mais que o Direito Penal é a ciência destinada a proteger valores e os bens jurídicos do Homem. A sua tutela envolve também a comunidade e o Estado como expressões coletiva da pessoa humana, em torno de quem gravitam os interesses de complexa e envolvente ordem. Ademais, em todos os trechos do funcionamento do sistema, o Homem deve ser a medida primeira e última das coisas, razão pela qual se proclama que na categoria dos direitos humanos, o Direito Penal é o mais relevante, o de maior transcendência. Considera, agora, não mais como preceito puramente abstrato, mas valor concreto de cada ser humano, a invocação à dignidade impede a promulgação medidas discriminatórias. Igualmente, tendo em vista a concretude dessa dignidade no mundo social, induz ela a consideração de todos os seus condicionamentos, o papel social do réu, sua postura diante das exigências da própria ordem jurídica e a possibilidade concreta de seu atendimento. Como qualquer outra doença que não exclui a capacidade e a vontade do agente, a AIDS não é excludente de ilicitude. Portanto, estando comprovada a autoria, materialidade e culpabilidade, caracterizariam a condenação do réu. Pode-se aqui até questionar se eventuais enfermidades, como o câncer, a doença mental e AIDS, se comprovadas, poderiam justificar o cumprimento da pena ou da medida de segurança em regime especial para um tratamento digno, em face de comprovada ineficiência do Estado em atender à assistência médico/psicossocial à essas pessoas? Não seria atentatória à dignidade humana que não se dispensasse tratamento médico e psicossocial a menores e adultos, a mentalmente sadios e enfermos dentro do sistema prisional? Não caracterizaria omissão do Estado o fato de inexistir equipe de saúde multidisciplinar dentro dos estabelecimentos prisionais, diante do fato de existir detentos portadores de enfermidades graves e contagiosas? Por que o Distrito Federal não possui condições de propiciar tratamento adequado com hospital dentro do sistema penitenciário? Como a premissa da proteção à dignidade é a de que a ordem jurídica não pode tomar o cidadão como simples meio, mas como fim, emerge a consideração de que, por isso, da insconstitucionalidade das leis que Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 153 impliquem maior sofrimento, miséria, marginalização ou desigualdades, o que passa a constituir um absoluto impedimento à restauração da pena de morte, ou a assumir nas penas privativas de liberdade exclusiva pretensão de prevenção geral ou especial. No momento em que o Estado de Direito que se deseja democrátrico percebe que punir a qualquer preço não é valioso, ele cria as regras do jogo, que limitam o poder punitivo do Estado. Socialmente se deseja punir quem infringe uma norma incriminadora. Mas, sem sacrificar outros valores também relevantes, para que percebamos o direito penal como um instrumento de garantias. Por isso, devemos trabalhar com o princípio da dignidade humana, fazendo uma escala de valores para que tenhamos um Direito Penal e Processual Penal como instrumentos de garantias fundamentais da pessoa humana. Ora, temos que pensar o direito penal nessa perspectiva. Punir sim, mas obedecendo princípios outros relevantes para um Estado de Direito que se deseja democrático. Essa é uma perspectiva importantíssima que devemos pensar. O compromisso maior com uma justiça penal pronta ao enfrentamento das violações dos direitos humanos que garantam o não comprometimento dos princípios éticos e jurídicos vinculados à dignidade humana. Então, o Estado democrático deve ter em vista esta realidade social. Sem isto, a dogmática penal é absolutamente estérie. Essa tem sido a perspectiva de uma nova concepção dogmática de industrialização da chamada pós-modernidade, ou seja, um direito penal divorciado da realidade social, vazio, inexistente, puramente simbólico. Nessa seqüência, ou seja, dentro da perspectiva de um direito penal mais democrático, pode-se pensar o que não é mais novo: a necessidade de assistência médica e psicossocial dentro dos estabelecimentos prisionais, em atendimento ao princípio da proteção da dignidade. Como resultado de uma caminhada de quase 15 anos lidando com os problemas da Execução Penal nesta capital, onde atuei como defensora 154 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. pública e promotora de justiça, e ainda atuando na promotoria de defesa da saúde, pude observar nos estabelecimentos carcerários do Distrito Federal a ineficiente proteção à vida e à saúde, dos detentos, mediante o desenvolvimento de condições dignas de tratamento médico aos portadores do vírus HIV, bem como os demais detentos do sistema prisional, notadamente em se tratando de doentes mentais. A “situação problema” traduz a realidade de nosso país, demonstrando a crescente complexidade dos conflitos emergentes no Brasil contemporâneo, o que tem comprometido a efetividade de seus códigos e normas. Outro problema que se faz, ainda, resta circunscrita a duas questões fundamentais: 1) É ilegal e eticamente inviável a falta de assistência e orientação no que tange a questão da contaminação do HIV no interior dos estabelecimentos prisionais; 2) É legalmente vedada a prática do exame compulsório para dectação de anticorpos contra o HIV. É interessante observarmos ainda que prevalecem atitudes discriminatórias e autoritárias, no que tange aos princípios da não compulsoriedade dos exames médicos e o sigilo profissional acerca dos seus resultados. Na esfera de proteção da liberdade, a lei penal inscreve o delito de constrangimento ilegal - Art. 146, do Código Penal: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”, excetuando apenas a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida ou a coação para impedir o suicídio. Ainda, e em se tratando de agente funcionário público, o art. 4º, da Lei nº 4.898/65 (que trata dos casos de abuso de autoridade), estabelece como conduta criminosa a de “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 155 Vale ainda ressaltar que o Código de Ética Médica, no capítulo pertinente aos direitos humanos, indica ser vedado “efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu representante legal, salvo em iminente perigo de vida.” (v. Art.46). Assim, consiste em medicina ilegal e eticamente reprovável a realização de testes para diagnósticos de infeção pelo HIV sem o conhecimento e consentimento do examinado. Ademais, como regra, a realização de testes da espécie deve estar fundamentada em critérios clínico-epidemiológicos e não por deliberação leiga da autoridade policial. Outro aspecto diz respeito ao fato de que, com a solicitação do teste partindo do médico, restará garantido o momento preliminar de adequado aconselhamento e informações pertinentes ao diagnóstico, prognóstico e possibilidade do tratamento eventualmente necessário. E, mais que isto, deverá o respectivo profissional de saúde com responsabilidade na área ter previsto medidas para desenvolver atendimento subsequentes no interior do estabelecimento prisional aos identificados como portadores do vírus HIV, de molde a evitar a reprodução de práticas que importam em pura e simples segregação (chegando-se à situação absurda de se permanecer recolhidos dentro de um sistema de segregação, potencializando situações de stress e de estados depressivos que, reconhecidamente, baixam o nível das resistências imunológicas). No que tange aos resultados dos testes para dectação do vírus HIV, a regra geral é a falta de assistência médica e psicológica em que se encontra a grande maioria dos componentes das populações carcerárias. De um modo geral, e, particularmente, no Distrito Federal. A atuação do profissional da saúde, inclusive de saúde mental deve ou, pelo menos, deveria começar, antes mesmo de ser efetuado o primeiro teste sorológico para detectar a presença ou não de anticorpos do HIV no sangue. 156 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. Uma das maiores preocupações demonstradas pelos portadores do HIV, logo após a notificação, é com relação ao tempo de vida que ainda terão. Portanto, as orientações dos médicos e seguir o tratamento é muito importante. Segundo pesquisa passado o período da notificação, muitos soropositivos tem mais medo da evolução da AIDS sobre o organismos e suas conseqüências sociais do que a morte. O temor da rejeição, do preconceito, da discriminação e da dependência física os apavora. O que não dizer dos soropositivos condenados, até pela condição de portadores do HIV, estão mais sujeitos a uma série de manifestações de fragilidade: auto piedade, culpa, remorso, baixa estima, baixo senso de preservação e o o medo: da morte, da rejeição, da discriminação, da dor. Um dos fatores que mais contribuem para estas situações é a falta de assistência médico/psicológica. Até porque questões difíceis e complexas, como por exemplo, falta de expectativas para o futuro, devem ser discutidas com psiquiatra, ou com psícólogo, que são as pessoas mais preparadas para orientar e esclarecer sobre estas questões. Não se pode prender uma pessoa e não lhe garantir um direito à vida, à saúde, notadamente, no caso de infecção pelo HIV, sem oferecer a oportunidade de um tratamento médico e psicológico digno, para verdadeiramente saírem, após cumprida sua pena, em condições mínimas de continuidade do tratamento. Sabe-se que os problemas psicológicos da infecção pelo HIV se iniciam com o entendimento dos comportamentos de risco. A sexualidade, o uso de drogas intravenosas, as transfusões e a paternidade precisam ser entendidas e aceitas. Freqüentemente estes problemas foram responsáveis por traços de personalidade importantes, que são anteriores ao desenvolvimento da infecção pelo HIV e que ressurgem durante a sua evolução. Outra indagação que se faz é a seguinte: Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 157 1) O resultado nos referidos testes, principalmente quando se tratar de sorologia positiva, deve ser comunicado tão-somente ao paciente ou também deve ser revelado à autoridade que dirige o estabelecimento prisional)? O resultado com sede de divulgação dos testes para dectação de anticorpos contra o HIV, como regra geral, deve a comunicação ser restrita ao médico, ao examinado e, conforme o caso, à autoridade sanitária. Fazer com que o resultado do teste venha ser de conhecimento de outras pessoas importará em ferimento à norma constitucional de declara invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Tais valores humanos, agora erigidos pela Constituição de 1988 à condição de direito individual, significam o reconhecimento de que ninguém pode ter sua vida privada ou intimidade devassada, máxime em situações da espécie porquanto marcadas pela hostilidade, preconceitos, rejeições e isolamento aos portadores do vírus HIV, determinando especialíssimas restrições à divulgação de tal doença. O Código Penal estabelece como figura típica aquela consistente em violar segredo profissional (“revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem” - art. 154 do Código Penal). Em se tratando de funcionário público, veja-se o conteúdo do art. 326, do Código Penal, que enuncia de violação de sigilo profissional. O objeto jurídico é a liberdade individual, a privacidade do ser humano. O tipo objetivo compreende a proteção do segredo. O tipo subjetivo compreende o dolo, na vontade livre e consciente de revelar, ciente o agente do perigo de dano. A tentativa é admissível. A ação penal é pública condicionada à representação do ofendido. Questiona-se se o comportamento consistente em dar ensejo a crime contra a saúde pública, , entre outros, de epidemia e omissão de notificação 158 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. (arts.267, parágrafos 1º e 2º e 269, ambos do CP). Deixar o médico de denunciar às autoridades públicas doença cuja notificação é compulsória: Pena- detenção, de 6 meses a 2 anos, e multa. (art. 269, do CP). Temos, ainda, os seguintes crimes: Certidão ou atestado ideologicamente falso (art. 301, do CP): Atestar ou certificar, em razão de função pública, fato ou circunstância que habilite alguém a obter cargo público, isenção de ônus ou de serviço de caráter público, ou qualquer outra vantagem. Pena: detenção de 2 meses a 1 ano. O objetivo jurídico é a fé pública, em especial da certidão e do atestado. O tipo objetivo compreende em atestar ou certificar falsamente. O tipo subjetivo consiste no dolo, na vontade livre e consciente de atestar ou certificar falsamente. Consuma-se o crime com o formal atestados e certidão. A tentativa tem admitido controvérsias e depende das provas. Art. 301, parágrafos 1º e 2º: A falsidade material de atestado ou certidão. Falsificar, no todo ou em parte, atestado ou certidão, ou alterar o teor de certidão ou de atestado verdadeiro, para prova de fato ou circunstância que habilite alguém a obter cargo público, isenção de ônus ou de serviço de caráter público, ou qualquer outra vantagem, constitui infração penal punível com detenção de 3 meses a 2 anos. Se o crime é praticado com fim de lucro, aplica-se, além da pena privativa de liberdade, a de multa. 1) causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena- reclusão, de 5 a 15 anos. Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro. No caso da culpa, a pena é de detenção, de 1 a 2 ano, ou, se resulta morte, de 2 a 4 anos. Art. 302, e parágrafo único. Falsidade de atestado médico: dar o médico, no exercício da sua profissão, atestado falso, sujeita-o a pena de detenção, de 1 mês a 1 ano. Se o crime é cometido com o fim de lucro, é aplicável também a multa . O objeto jurídico é a fé pública, em destaque a atividade médica e o exercício da profissão. O tipo subjetivo é o dolo, a vontade livre e consciente de atestar a falsidade. Consuma-se o crime com a efetiva entrega do atestado quer ao beneficiário como a outrem. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 159 O Código de Ética Médica, no capítulo que trata do segredo médico, assevera a vedação ao médico, de “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou expressa autorização do paciente”, ainda “que o fato seja de conhecimento público ou que o paciente tenha falecido” (art. 102). Considerando então que o princípio da confidencialidade tem como escopo evitar danos (que certamente se farão presentes a partir da notícia do resultados de exame enunciando sorologia positiva), não encontramos suporte legal para que a autoridade policial determine a realização de pesquisa de HIV, bem como de ter a referida autoridade conhecimento dos resultados até porque, conforme a situação de saúde do preso, incumbirá exatamente ao médico o atendimento necessário. Por outro lado, segundo dados da medicina o vírus da AIDS não é transmitido pelo contato casual ordinário, mas sim freqüentemente transmitido através de relações sexuais e via uso comum de agulhas e seringas infectadas, não sendo o caso de que “em caso de rebelião os portadores do vírus poderão usar esta condição como arma, colocando em risco, deliberadamente, a vida de outras pessoas. A justa causa para revelação de que o preso é portador do vírus da AIDS só pode ser considerada em situações concretas de risco de infeção, surgindo daí a excludente de ilicitude informada pelo estado de necessidade (art. 24, do Código Penal). Em ângulo diverso, a regra determinante seria a devida comunicação pelo médico às autoridades sanitárias do caso de sorologia positiva do HIV, havendo aí portanto quanto à revelação, estrito cumprimento do dever legal (também excludente da ilicitude) art. 234 do Código Penal, c.c Art. 269, do mesmo diploma legal. Porém, o mais correto será garantir aos presidiários, através de equipe de saúde dentro do estabelecimento prisional, o direito à informação acerca da doença, suas características e manifestações, possibilidades de tratamento, etc., conforme atuação já desencadeada no Distrito Federal e atualmente sem processo de continuidade. 160 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. Conforme expressa o art. 5º, inciso XLIX, de nossa Constituição Federal, “ é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, enquanto o art. 14, da Lei de Execução Penal, referindo-se ao direito de assistência à saúde (conseqüente dever do Estado), estabelece a obrigatória “assistência à saúde do preso e do internado, de caráter preventivo e curativo”, compreendendo atendimento médico, farmacêutico e ontológico. Assim, necessário sejam urgentemente efetivadas medidas no sentido de que o Estado cumpra com o seu dever institucional e indelegável de atender à saúde dos presos, em especial daqueles que se encontram em Cadeias Públicas. Cumpre ressaltar, ainda que, de nada adiantará a adoção de medidas de identificação de portadores do HIV entre aqueles que ingressam no sistema prisional se, efetivamente, não se puder desenvolver um atendimento subseqüente adequado e que respeite a dignidade da pessoa. Práticas médicas de caráter preventivo (e também curativo), ministrados de maneira permanente e periódica, terão certamente o efeito de garantir o direito dos presos à saúde (que não se resume, por óbvio, às questões relacionadas ao vírus HIV, bem como, assegurar a informação correta e ampla sobre a doença, permitir que a deliberação acerca da necessidade do exame ocorra tão só pela via de indicação médica (e não pela opinião do carcereiro ou da autoridade policial) e possibilitar, em casos de identificação de portadores do vírus HIV, atendimento subseqüente adequado, além de estabelecer mecanismos de proteção individual e coletivo no que tange a todos (presos e funcionários) que integram o sistema prisional. Verifica-se da Lei de Execução Penal que somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de condenado acometido de doença grave (art. 117, II, da Lei 7.210/84). Do ponto de vista da jurisprudência, inseri alguns julgados que tratam da matéria: Diante de uma doença misteriosa, altamente contagiosa, cujos efeitos maléficos e perniciosos ainda não estão Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 161 suficientes conhecidos pela Ciência moderna, concede-se ao condenado aidético o direito de cumprir a pena em prisão domiciliar, ressalvada a hipótese do surgimento de circunstâncias do surgimento de circunstâncias posteriores que aconselhem ou autorizem a renovação ou substituição da medida. HC-9.218, Vitória, ES, 1ª C., j. 3.6.87, in RT 623/334. ACrim. 80.981-3,5ª CCrim, j. 1º.11.89, TJSP, in RJTJSP 125/ 577. AIDS. Portador assintomático, não apresentando indícios da manifestação da síndrome de imunodeficiência adquirida. Empenho do Juízo na obtenção da transferência para estabelecimento adequado ao regime semi-aberto, concedido ao paciente Ordem, denegada. No RAgr. 118.534-3/3, a 1ª CCrim, do TJDSP, por v.u., não concedeu indulto a réu acometido da doença, porque “... embora não se discuta a incurabilidade e a possibilidade de enorme potencial de contágio do vírus HIV, não ficou demonstrado que a moléstia decorrente desse vírus tenha atingido já os estágios avançados, que poderiam permitir a concessão do indulto” O acórdão fundamenta-se no Dec. 98.389/89, arts. 1º e 2º, III. Do ponto de vista dos crimes contra a saúde pública procurarei abordar a questão dos riscos da contaminação transmissão do vírus HIV sob o ponto de vista da responsabilidade penal do agente, dentro das modalidades diversas em relação ao portador do vírus HIV e a terceiros, partindo de alguns estudos a respeito do tema. Tais estudos consideraram a pessoa portadora do vírus HIV tanto como agente responsável, quanto como possível vítima, haja vista a existência de diversos crimes que podem ser praticados, quando não por terceiros. Alguns trataram a pessoa portadora do referido vírus, sem dúvida, como aquela que está sujeita ao maior número de infrações civis e penais, 162 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. qual seja, se quando ciente de que é portadora do vírus, passa a manter relações sexuais desordenadamente, com o propósito de transmitir a doença a terceiros, comete o crime. Considerou-se também os crimes definidos no Código Penal que se pode relacionar com a AIDS. 1) Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131,do CP); 2) O perigo para a vida ou a saúde de outrem (art. 132 do CP); 3) Omissão de socorro (art. 135 do CP); 1- Pune Código Penal o crime “ Perigo de contágio de moléstia grave”, com pena de reclusão de 1 a 4 anos, àquele que praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir contágio. O objeto jurídico é a incolumidade física da pessoa. O tipo objetivo consiste na ação de praticar ato capaz de gerar o contágio, desde que idôneo e/ou capaz de transmitir a doença por conduta direta ou indireta. O tipo subjetivo está no dolo de dano, no elemento subjetivo do tipo” com o fim de transmitir”. Consuma-se o crime com o ato realizado considerado suficiente para contagiar. A tentativa é teoricamente admissível. A ação penal é pública incondicionada. 2- Comete o crime de “ Perigo para a vida ou saúde de outrem”, sujeito a pena de detenção de 3 meses a 1 ano, se o fato não constitui crime mais grave, aquele que expôr a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente. Os objetos jurídicos tutelados são a vida e a saúde da pessoa. A conduta “expor”, corresponde a colocar ou pôr “ a perigo direto e iminente”, e o comportamento tanto pode ser comissivo como omissivo (ação ou omissão). Consuma-se o crime quando surge o perigo. Admite-se a tentativa. A ação penal é pública condicionada. 3- Omissão de socorro. Aquele que deixa de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo, ou não pedir nesses casos, o socorro da autoridade pública, está sujeito a uma pena de detenção de 1 a 6 meses, ou multa. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 163 O objeto jurídico é a vida e a saúde da pessoa. O tipo objetivo consiste na omissão, no caso só punível quando possível prestar-se a assistência, ou pedir-lhe socorro sem risco pessoal. O tipo subjetivo é o dolo de perigo que, implicitamente, está contido no elemento subjetivo do tipo. Não há modalidade culposa. Consuma-se o crime no momento em que ocorre uma das omissões. A tentativa é considerada por muitos autores como admissível. Depende das provas de cada caso. Cuida o Código Penal, no art. 130, do “perigo de contágio venéreo”. Embora a transmissão da AIDS possa ocorrer pela relação sexual, não se cuida efetivamente de “moléstia venérea”. Daí porque não incluímos este crime, porque, segundo os especialistas, a AIDS não é propriamente uma “moléstia venérea”, isto é, que se contrai principalmente pelo ato sexual. Embora transmissível, é doença infecciosa, causada pelos mais diversos veículos. Aqueles delitos referidos, além de outros, que tanto podem ser dolosos como culposos (isto é, perpetrados por imprudência, negligência e imperícia), têm como agente, ora o próprio portador do vírus HIV, ora enfermeiros e outros funcionários hospitalares. Não se excluem também os casos de delitos dolosos (intencionais) perpetrados por profissionais de laboratórios que, por exemplo, introduzem numa vacina algum vírus ativo da AIDS. Por outro lado, provavelmente, à altura em que se encontram os fatos, parece que a consideração do portador do vírus HIV enquanto vítima é a mais importante de que da sua condição de delinqüente. Deveriam ser previstas cominações mais pesadas, especialmente em se tratando de omissão de órgão público. Mas é um erro estar a incriminarse diretores de hospital, quando a omissão possa ser de outro funcionário, ou quando o nosocômio não tenha condições de atendimento sem risco para a Saúde Pública. 164 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. Aqui está um caso que serve à ilustração da angústia e discriminação que a doença pode gerar. Pratica-se extorsão (art. 158, CP) mediante a grave ameaça de divulgação que a vítima é portadora do HIV. Vítima portadora de aids. Agente que, sob ameaça de divulgação do fato de ser a vítima portadora da imunodeficiência adquirida, constrange-a a efetuar pagamento em dinheiro. Configuração: Configura o crime previsto no art. 158 do CP, a conduta do agente que, sob a ameaça de divulgação do fato de ser vítima portadora da síndrome de imunofeciência adquirida, constrange-a a efetuar pagamento em dinheiro. (Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Rel. Juiz Penteado Navarro, Ap. Nº 892.687-15/ 03/95-6ª CÂM.). Em contrapartida, a contaminação não gera apenas responsabilidade civil, como também a responsabilidade criminal para aquele que age sem responsabilidade ou dolosamente à disseminação da doença: I - Réu incurso nos arts. 268, 278, 330 e 336 do Código Penal- Responsabilidade pelo fornecimento de sangue humano contaminado com vírus da AIDS a diversos hospitais- Comprovação através de laudo pericial da contaminação do sangue- Relatório subscrito por médico e farmacêutico atestando as irregularidades no centro de hematologia. II - Apelação improvida (Tribunal Regional Federal da 2ª Região, rel. Juiz Frederico Gueiros, j. De 03.09.90, DJU de 17-01-91). Discute-se sobre a possibilidade de crime de homicídio ou tentativa de homicídio, no caso da pessoa doente deliberadamente passar ou tentar transmitir o vírus a outrem. Cuida o Código Penal das seguintes figuras: Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 165 a) Homicídio simples (art. 121, caput); b) Homicídio privilegiado (art. 121, parágrafo 1º); c) Homicídio qualificado (art. 121, parágrafo 2º, I, II, III, IV e V); d) Homicídio culposo (art. 121, parágrafo 3º); e) Homicídio culposo qualificado (art. 121, parágrafo 4º). Trata ainda da hipótese de perdão judicial aplicável ao homicídio culposo (art. 121, parágrafo 5º). O objeto jurídico é a preservação da vida humana. O tipo objetivo pode ser por meio direto ou indireto, por ação ou omissão. No que se refere à responsabilidade de quem deliberadamente deseja transmitir a outrem o mal, com o propósito de praticar o crime (homicídio ou tentativa), é preciso ter em conta além dos requisitos essenciais de cada figura criminosa, a demonstração extreme de dúvida do nexo de causalidade entre o modus agendi e o resultado. O corpo de delito é essencial (art. 158, do Código de Processo Penal). Considerando que não existe lei específica para que a figura criminosa seja de plano reconhecida, é preciso cautela. Cada caso é um caso. Seria de boa política criminal ater-se aos parâmetros legais existentes que melhor possam condizer os fatos. Agora, se a pessoa portadora do vírus HIV age (de forma consciente da doença que é portadora) e pratica qualquer dos crimes contra os costumes (contra contra a liberdade sexual), não seria de boa técnica a aplicação das formas qualificadas previstas nos arts. 223 e 224 do Código Penal. Será melhor a adoção do concurso formal de crimes. Por exemplo, estupro e perigo de contágio de moléstia grave (art. 213 e 131, ou 213 e 132). No tocante ao terceiro que divulga desordenadamente que alguém é portador da doença, sendo ou não esse alguém doente, se o propósito resultar 166 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. demonstrado na intenção de difamar, pela imputação de fato ofensivo à reputação no meio social em que vive, ocorrerá o crime de difamação (art. 139 do CP). Se esse comportamento gerar ofensa à dignidade ou ao decoro, ocorrerá crime de injúria art. 140, do CP). No que tange ao preconceito, raros são os portadores do HIV que buscam soluções através do Poder Judiciário, uma vez que temerosos da publicidade, que por vezes, se mostra mais lesiva do que o próprio dano. Ele, após conhecida sua situação, é estigmatizado duplamente, como marginal e por ser portador de doença transmissível. Isto resulta porque na concepção das pessoas, ele deve ser homossexual, uma prostituta ou um drogado. Enfim, um desregrado, na concepção geral da sociedade. Ervin Goffman, “in” Estigma e Identidade Social,”p.43/44, em seu estudo sociológico das pessoas estigmatizadas, afirma que as pessoas que têm um estigma particular tendem a ter experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer mudanças semelhantes na concepção do eu - uma “carreira moral” semelhante, que é não só causa como efeito do acompanhamento do compromisso com uma seqüência semelhante de ajustamentos pessoais. Dentre os modelos de socialização acentua um modelo exemplificado quando o indivíduo se torna estigmatizado numa fase avançada da vida ou aprendem muito tarde que sempre foram desacreditáveis. Diz o autor: “ é provável que tenham um problema todo especial em identificar-se e uma grande facilidade para se autocensurarem (...) Nesse caso, é provável que os médicos sejam as pessoas mais indicadas para informar ao doente sobre sua situação futura...” Deve-se acrescentar, ainda, que o preconceito não decorre apenas da doença. No caso de prática de crime já se encontra marginalizado, até mesmo em face da grande maioria que é composta de pobre, ainda mais em se tratando de portador do vírus HIV. Como menciona Dani Rudnicki, in AIDS e DIREITO - Papel do Estado e da Sociedade na Prevenção da Doença Livraria do Advogado Editora,1996., são logo estigmatizados “a clientela já se encontra marginalizada em decorrência de sua pobreza, ainda mais em se tratando dos grupos mencionados (homossexuais, drogaditos, Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 167 prostitutas, travestis, etc), tradicionalmente desprezados pelas instâncias governamentais (...).” Na tendência do Direito Penal democrárico não deve comprometer as garantias fundamentais do Homem, notadamente mantendo o condenado equidistante destas garantias. Assim, pensando o Direito Penal dentro dessa perspectiva do princípio da dignidade humana (art. 1º, inciso, III da Constituição Federal), certamente que práticas alternativas que implicam alto teor de descentralização e democratização dos procedimentos, torna-se necessário para identificar uma força motivadora que dê condição de possibilidade de um paradigma a equacionar solidariedade, justiça e dignidade para uma vida capaz de satisfação das necessidades fundamentais, em prol de uma democratização do direito penal garantista. CONCLUSÃO Neste contexto, a tendência de parte da jurisprudência tem sido tratar como doente comum o portador do HIV bem como o portador de doença mental. Entretanto, há grande disparidade entre a letra da lei (art. 14 da Lei 7.210/84) e a realidade dos presídios. Via de regra, os portadores do HIV e os doentes mentais bem como os portadores de vários tipos de doenças entre a população carcerária são mal entendidos. Salvo rarísssimas exceções, o trabalho de atendimento depende de voluntários e da boa vontade de nosocômios. Em razão da superlotação carcerária e das condições das prisões, a contaminação é o maior risco, inclusive para os agentes penitenciários que lidam com os detentos. A realidade é que, independentemente do delito praticado, o preso não é tratado como cidadão. A situação não se apresenta humana nem é razoável, em face das circunstâncias excepcionais que os casos exigem. Como se sabe, o fato de o réu ser portador do vírus da AIDS, ou ser portador de doença mental, por si só, não autoriza o julgador a conceder medidas alternativas para o cumprimento da pena ou da medida de segurança. 168 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. Em pleno terceiro milênio a legislação e a jurisprudência, salvo algumas exceções, avançaram muito pouco ao reconhecer as referidas doenças a fim de deferir alguns direitos aos infectados com o vírus HIV e os portadores de sofrimento psíquico, alternativas para cuidar da prevenção e do tratamento destas pessoas. É certo que o HIV avançou um pouco mais. Os indicadores ainda apontam para o crescimento do número de infectados e hoje, quando ainda se aguarda um remédio para impedir a infecção pelo HIV e o perecimento pela AIDS, a educação, a conscientização e a prevenção são os únicos instrumentos capazes de reverter o quadro. Com estas considerações, espera-se proporcionar aos operadores do Direito informação e base para uma reflexão a respeito do que tem sido a realidade do sistema prisional no Distrito Federal e o que poderá ser realizado no futuro. Pretendemos com esta pesquisa procurar um modelo diferente do anterior pela capacidade de se saber que o sistema penal como tivemos a oportunidade de salientar é ainda seletivo e elitista, fazendo cair seu peso sobre classes sociais mais débeis. Assim, os instrumentos de controle social inspirados na nova criminologia demonstra que o Direito Penal não é igualitário, nem protege aqueles que sequer podem lutar por seus direitos. Portanto, para neutralizar os efeitos do sofrimento da separação recomendamos estas refexões para que seja incentivado o acesso ao tratamento médico/psicossocial no interior do estabelecimento prisional do Distrito Federal, incentivando e facilitando o acesso à saúde dos detentos, notadamente dos portadores do vírus da AIDS e dos doentes mentais, de modo a promover uma justiça baseada na isonomia e, assim cooperar com a recuperação desses doentes. Há necessidade da elaboração de programas que zelem pela dignidade humana. A dificuldade existente de acesso à saúde e o preconceito para lidar com esses pacientes, a falta de profissionais de saúde, tratamento adequado, acesso a medicação, falta de transporte ou de combustível para conduzir o paciente a instituição de saúde, são questões que vulneram estas pessoas encarceradas. Por isso, torna-se necessário medidas urgentes de acompanhamento médico dos que ali se encontram encarcerados, bem como dos que ali trabalham. Fica aqui uma indagação: o Estado ao violar, renegar todos esses direitos não estaria contribuindo para a pena de morte? Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 169 Procuramos o reconhecimento adequado dos complexos problemas das pessoas com infecção pelo HIV e aos portadores de doença mental, bem como sua assistência médico-psicológica no interior das prisões, devendo ser tomadas, na norma penal, como protetora de valores e dos direitos fundamentais do Homem, em atendimento ao princípio de proteção da dignidade, como por exemplo, dependendo do estado emocional apresentado pelo portador do HIV e do portador de sofrimento psíquico, o profissional de saúde pode recomendar, orientar, e a direção do estabelecimento prisional permitir, a orientação dos muitos Grupos de Apoio, Organizações Não Governamentais (ONG´S) que se destinam a ajudar tantos os soropositivos quanto os doentes mentais e seus familiares. Entendemos que em contato com essas pessoas que convivem e compartilham de sofrimento semelhante, eles poderão trocar experiências, aprender com a luta de pessoas e ficarem informados de todos os avanços referentes ao combate, no campo social, terapêutico e político. Também os profissionais de saúde mental podem intervir como mediadores e orientadores no processo de relacionamento do soropositivo com seus familiares, assim como na ressocialização dos doentes mentais, como orientadores com seus familiares através da terapia de família, contribuindo para um melhor entendimento da situação e suas implicações, melhorando a relação familiar, tanto dos doentes mentais como do portador do HIV. Segundo os Psiquiatras: Dr. Portela Nunes, Dr. João R. Bueno e Dr. Antônio E. Nardi no Livro: Psiquiatria e Saúde Mental: “São muito freqüentes os sintomas depressivos entre os indivíduos infectados pelo HIV ou com a SIDA” Lucinha Araújo retrata muito bem esta situação em seu livro: “Cazuza: Só as Mães São Felizes”. Sugere-se, pois, que os órgãos públicos, na área de sua competência, atentem para a necessidade de regular, urgentemente, estas hipóteses, assim prevista no art.1º, inciso III da Constituição Federal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999. 170 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. GOFFMAN, Erving. Estigma- Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, 4ª edição, Editora Guanabara. ––––––––. Manicômios, Prisões e Conventos, 4ª edição, Editora Perspectiva, São Paulo. LEÃO, Emmanuel Carneiro- anotações de aulas ministradas no Curso de Doutorado- UFRJ-Escola de Comunicação. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón-Teoría del garantismo penal. Prólogo de Noberto Bobbio, Editora Trotta.1989 TAVARES, Juarez- Teoria do Injusto Penal. Editora Del Rey, Belo Horizonte 2000. ––––––––. Critérios de Seleção de Crimes e Cominação de Penas. Revista de Ciências Criminais-Editora, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1992. ––––––––. Inovações Constitucionais no Direito Penal. Palestra proferida em Angra dos Reis, em 20-05-89 por ocasião do IV Encontro de Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. ––––––––. Resposta Penal-Um compromisso com a sociedade. Palestra proferida em 14.08.98-Rio Grande do Sul. FRANÇA, R.Limongi. Aspectos Jurídicos da AIDS. Revista dos Tribunais, ano 79-novembro de 1990-vol 661. CASABONA, Carlos Maria Romeo. Responsabilidade Médico-Sanitária e AIDS.-Doutrina Internacional. 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Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. RECOMENDAÇÕES APROVADAS NO SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE A PREVENÇÃO DAS DST, AIDS E USO INDEVIDO DE DROGAS NOS SISTEMAS PRISIONAIS* A Coordenação Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde (CN DST e Aids), em colaboração com o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça (CNPCP), com o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP) e Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), promoveu, em Brasília, nos dias 16 e 17 de dezembro de 1999, o SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE A PREVENÇÃO DAS DST, AIDS E USO INDEVIDO DE DROGAS NOS SISTEMAS PRISIONAIS. Além dos representantes dos órgão citados, o evento reuniu Secretários de Estado, Dirigentes de Sistemas Penais e autoridades de saúde, notadamente Coordenadores Estaduais de DST e Aids. As conclusões do Seminário, resumidas abaixo, apresentam, em cada um de seus quatro itens, (a) carências detectadas nos sistemas prisionais, (b) recomendações para superá-las e, (c) propostas de encaminhamento. ACESSO DO DETENTO À SAÚDE a. As dificuldades de deslocamento do detento para fora dos sistemas penais, a magnitude de algumas unidades em pequenos municípios tornam muito difícil o acesso dos presos aos serviços instalados na comunidade. b. Neste sentido, recomenda-se que as próprias unidades prisionais contem com quadros e dispositivos permanentes de educação e saúde, conforme previsto na Lei de Execução Penal. Além desses serviços, e de * Texto cedido pela Coordenação Nacional de DST e AIDS, Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 173 uma equipe estadual que os coordene, os sistemas penais deveriam dispor de, pelo menos, um hospital penitenciário. Quando essas condições são preenchidas, torna-se possível negociar o financiamento de procedimentos pelo SUS. c. As medidas que implementariam progressivamente essa recomendação seriam: • maior mobilização de recursos, tal como a dinamização dos fundos penitenciários; • melhor aproveitamento de estruturas e serviços oferecidos por outras instituições por meio do estabelecimento de parcerias; • definição de metas de contrapartida, em serviços de saúde e pessoal, quando do financiamento da construção de presídios; • reforço de serviços de unidades penais, por iniciativas como a “Assistência Prisional Terapêutica”, quando equipes de secretarias de saúde visitam, por um período determinado, ambulatórios prisionais para promover assistência especializada, além de treinar, em serviço, os profissionais locais, tendo em vista a sustentabilidade da ação; • inclusão da questão prisional nas pautas do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e conselhos locais; • reativação do Comitê Interministerial sobre Aids em Prisões (Ministério da Justiça, Saúde e Relações Exteriores) e aprofundamento de suas recomendações a respeito da cooperação entre as estruturas de saúde, conselhos de direitos humanos, órgãos de cooperação técnica e as administrações prisionais. 174 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. COBERTURA, INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS E CAPACITAÇÃO a. Em muitos sistemas penais, as atividades de prevenção carecem de continuidade, têm baixa cobertura e contam com poucos profissionais para executá-las. Este fenômeno, mais do que à falta de recursos, se deve à instabilidade dos quadros e à ausência de dispositivos sustentáveis de educação e saúde nas prisões. b. É essencial que sejam oferecidos aportes em pessoal, mas também aproveitados recursos já existentes, tais como as equipes interdisciplinares (às vezes restritas à redação de laudos), as escolas regulares ou profissionalizantes de unidades penais e as academias penitenciárias. Deve ser incrementada a capacitação dos funcionários de nível superior e dos agentes de segurança, que têm importante papel no contato com o detento. O próprio interno deve ser treinado para atuar como agente de educação entre seus pares. c. Para se criar dispositivos permanentes que detectem e respondam às necessidades de prevenção: • devem ser buscadas, na elaboração de cada projeto, parcerias com as secretarias de saúde, fundações educacionais, centros de saúde coletiva de universidades; • o apoio a projetos deve ser condicionado a contrapartidas que garantam a continuidade e institucionalização das ações; • deverá haver maior divulgação do catálogo de oportunidades de treinamento, disponível no site da Coordenação Nacional de DST Aids, www.aids.gov.br; • representantes de universidades deverão ser convidados a participar de seminários sobre saúde prisional; • CNPCP poderia regulamentar e estimular o trabalho dos órgãos de treinamento dos sistemas prisionais, propor a inclusão, em seus currículos, de conteúdos de biossegurança e prevenção; Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 175 • as reuniões nacionais de responsáveis por academias penitenciárias deveriam ser retomadas e a questão da saúde neles discutida; • as atividades educativas de internos multiplicadores de informações sobre saúde precisam ser valorizadas por meio de seu reconhecimento como trabalho que dá direito à remição de pena; • os projetos que contam com o trabalho de detentos educadores deverão ser analisados e divulgados pelos Ministério da Justiça e Saúde durante a realização de encontros regionais sobre execução penal e saúde. O PRESO E A FAMÍLIA a. As constantes transferências, as mudanças de regime, a média relativamente curta das penas e as poucas perspectivas oferecidas após a desinternação, fazem da família um dos únicos pontos de referência do detento. b. É essencial, para se lograr o sucesso de qualquer projeto de prevenção, a implementação generalizada da Recomendação 01/1999 do CNPCP, que preconiza a orientação sobre as doenças sexualmente transmissíveis, AIDS e uso indevido de drogas por ocasião do exercício do direito de visita íntima. Associações de familiares de detentos seriam meios adequados de estímulo à prevenção e reintegração dos apenados. c. Para a efetivação dessas recomendações: • os/as visitantes deverão ser referenciadas aos serviços na comunidade, notadamente saúde da mulher, levantamentos sobre região de origem permitirão que se oriente famílias e egressos para o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e Programa de Saúde da Família (PSF); • experiências de associações de familiares de presos deveriam ser divulgadas, ampliadas e adaptadas às realidades de cada região; • os projetos de prevenção em presídios, aprovados pelo Ministério da Saúde, deverão, invariavelmente, desde a sua elaboração, contar com a 176 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. participação das secretarias de saúde, prever articulação com os serviços citados acima e com outras instituições da sociedade civil. A base para o sucesso dessas articulações será a participação ativa dos quadros das instituições penais nos Conselhos de Saúde. O USO DE DROGAS a. Conforme o censo penitenciário de 1995, 11% das condenações se devem ao tráfico de drogas. Na verdade, grande parcela dos 64% de internos que cumprem penas por furto, roubo e homicídio, também infringiram as leis devido ao envolvimento com a economia clandestina da droga, ou ao uso de substâncias que causam dependência. O avassalador aumento do tráfico de crack, e conseqüentemente da violência, em São Paulo, é uma das principais razões de serem efetuadas, naquele Estado, mais de 900 prisões por mês. Pesquisas recentes (DESIPE, RJ, 1999) mostram que 80% dos detentos cariocas relatam, pelo menos uma vez na vida, “uso problemático” (uso vinculado a dependência, violência, crime ou problemas na família) de alguma substância legal ou ilegal. Nos três Estados do Sul, na Bahia, no Mato Grosso do Sul, e talvez em São Paulo, o uso compartilhado de drogas injetáveis foi a principal forma de transmissão dentre detentos HIV positivos. b. Foi consenso entre os participantes do Seminário que todos os projetos educativos executados em prisões devem repensar e enfrentar a questão do tratamento da dependência química e da redução dos danos causados pelo uso indevido de drogas. É importante sublinhar que o desenvolvimento de modelos de tratamento em unidades prisionais, tendo sempre em vista a futura desinternação do paciente, não deve se confundir com propostas de internação de usuários de drogas. c. Para se encaminhar essas recomendações, deverão: • ser realizados estudos e seminários regionais para promover a sensibilização dos responsáveis pelos serviços de saúde, sistemas prisionais e varas de execução penal, para a questão do uso indevido de drogas; Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000. 177 • ser elaborados, com urgência, projetos piloto de prevenção, tratamento e de redução de danos do uso indevido de drogas em prisões; • os Ministérios da Justiça, Saúde, UNDCP e SENAD deverão articular ações dirigidas ao poder judiciário e legislativo com o objetivo de propor as medidas recomendadas acima. 178 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 8, V. 15, p. 147 – 178, jan./jun. 2000.