TECNOLOGIA E CURRÍCULO, PODER E AUTORIA LEONARDO SILVEIRA SANTANA UNEB, mestrando em Educação e Contemporaneidade TÂNIA MARIA HETKOWSKI UNEB, Professora Doutora em Educação O currículo perde o caráter humanista e passa a ser ideológico. Diante da releitura da produção conceitual pós-estruturalista e cultural pós-crítica que Thomaz Tadeu da Silva (2001) traz ao discutir currículo na contemporaneidade, o currículo, em termos epistemológicos, perde definitivamente, para essa corrente de pensadores, o caráter amoral transcendental da proposta clássica. Evidenciando seu compromisso com dado projeto político e suas implicações nas tessituras amalgamadas social, técnica, econômica e culturalmente de determinado grupo. O currículo, assim como as demais construções humanas, é situado em espaço geográficosimbólico relativo e influenciado pelas aspirações humanas, escolhas e capacidade de interpretar a vida, provenientes do contexto histórico ao qual pertence. Da metodologia para a epistemologia. Diante desse percepto da realidade sócio-educacional humana há uma transferência da preocupação metodológica que se detêm na questão de como ensinar algo para a questão dialética-crítica que investiga o porquê determinado conhecimento é escolhido e legitimado como importante. Para tanto as contribuições de Foucault a respeito do binômio saber-poder serviram de fundamental lastro teórico para decifrar o agenciamento sóciotécnico1 que o currículo se constitui na contemporaneidade. Saber e poder ou saber versus poder? [...] para Foucault, o saber não é o outro do poder, não é externo ao poder. Em vez disso saber e poder são mutuamente dependentes. Não existe saber que não seja a expressão de uma vontade de poder. Ao mesmo tempo não existe poder que não se utilize de um saber, sobretudo de um saber que se expressa como conhecimento das populações e dos indivíduos submetidos ao poder. (SILVA, 2001). 1 Agenciamento sócio-técnico aqui entendido, na perspectiva de Lévy (1993), enquanto conjunto de valores-ações-escolhas humanas, nos âmbitos sociais, políticos e técnico-científicos que associados possuem o potencial de construir a realidade de um dado momento histórico humano. Ou ainda, modo de ser e funcionar que elabora a realidade humana, atualizada por meio de ações objetivas e subjetivas, materiais e imateriais, naturais e artificiais que operam imbricadamente nas dimensões biológicas, sociais, políticas, econômicas, culturais e técnico-científicas do homem (LIMA JR, 2005). O homem tem o poder de conferir sentido a si mesmo, ao outro e ao mundo. O homem enquanto ser capaz (que tem o poder de) dar sentido ao mundo, a si mesmo e ao outro possui uma relação intrínseca natural com o poder. O poder, obviamente em termos não absoluto, é da condição humana e me ocorre que este elo impulsionou nossa existência no planeta, e, ao mesmo tempo, nos constituiu humanos. O que quero afirmar com isso é que somos humanos porque podemos dar sentido e transformar/criar a realidade. E o currículo enquanto artefato humano (LIMA JR, 2003, 2005; SILVA, 2001; MOREIRA, SILVA, 2002) é uma das muitas estradas que atualizam e perpetuam os anseios dos homens. Os homens que, em determinado momento histórico, ocupam uma posição de privilégio na estrutura material-simbólica de determinada sociedade, sem dúvida, possuem maior poder de construir sentido e realidade, ainda que esse poder, apesar de fortemente condicionante, não seja absoluto. Esse tipo de agenciamento sócio-técnico termina por definir a natureza-objetivo dos currículos propostos para formação dos grupos sociais, e corroboram para a manutenção/ perpetuação de dado modelo de sociedade (LIMA JR, 2003, 2005; SILVA, 2001). Os currículos oficiais contemporâneos, por exemplo, estão pautados no projeto da ciência moderna e segundo Boaventura Santos (1998) o objetivo dessa forma/conteúdo de decifrar o mundo e o homem foi poder controlar os fenômenos naturais e humanos da realidade. A própria lógica da literização metodológica científica propõe isso: simplificar, medir, controlar, modificar. Nessa visão de mundo, a natureza precisa ser controlada para o bem estar humano e, sobretudo, de certos grupos que interferem fortemente na construção desses currículos (SILVA, 2001; MOREIRA, SILVA, 2002). Teria sido o período histórico no qual o homem melhor conseguiu estabelecer nexos causais a ponto de ampliar sua possibilidade de controle sobre a natureza. Diante dessa constatação, ou melhor, interpretação/ criação, já tentando fugir da pretensão moderna de capturar a verdade absoluta, convido o leitor a uma rápida viagem ao túnel histórico do tempo humano, para imaginarmos nossos mais remotos antepassados pré-históricos e suas relações de poder com o mundo, a fim de traçar um hipotético paralelo com as pretensões de controle e domínio modernos, mais adiante. Peçamos licença poético-criativa para nosso ensaio e imaginemos o homem pré-histórico diante de um gigantesco mundo incognoscível. Esse mundo poderoso e implacável versus uma espécie frágil imersa num jogo de sobrevivência que há todo momento parece dar indícios de que o mais forte (poderoso) se estabelece de forma privilegiada, e o mais forte não era o homem. O homem sonha em transformar o mundo em um lugar seguro. O homem não compreendia os fenômenos naturais, mas estava submetido drasticamente a eles, a essa força arrebatadora e potentosa. Ele não era a espécie mais forte, não possuía garras ou dentes que o colocassem numa posição de destaque, sequer diante dos outros animais, muito menos diante da natureza. O inferno são os outros2 (humanos e não humanos). Talvez, por causa dessa esmagadora sensação de impotência, dessa ausência de poder, o homem tenha acalentado o ideal, a ‘utopia’, o sonho de transformar a natureza em seu Éden, e exatamente nesse momento tenha surgido o projeto de domesticação do mundo para ampliar as possibilidades de sobrevivência, satisfação e felicidade humanas. Humanizar o mundo e submetê-lo a serviço da nossa satisfação, não apenas sobrevivendo a ele, mas dominando-o para que pudéssemos nos tornar soberanos, poderosos, deuses à sua imagem e semelhança, ou à imagem e semelhança do que conseguíamos perceber/interpretar do que chamamos divindade. Em uma das tantas palestras que assisti, narraram uma entrevista feita a uma das crianças que sobrevivem nos semáforos da cidade de São Salvador e ao perguntá-la qual o seu maior sonho ela arrematou convictamente: - Ter uma sinaleira só pra mim! O homem dá sentido para poder transformar o mundo. Para garantir sua sobrevivência o homem desenvolve a capacidade de dar sentido ao mundo como forma de capturá-lo, apreendê-lo para em seguida controlá-lo. O homem sente necessidade de poder por questão de sobrevivência e por satisfação das necessidades materiais e simbólicas, individuais e coletivas (LIMA JR, HETKOWSKI, 2006). O saber e o conhecer3 como meio de controlar para transformar e satisfazer nossos anseios humanos. Afinal, como controlar o desconhecido ou o não sabido? Essa elaboração mental se aplica em primeira instância à relação do homem com a natureza, e em seguida, à relação do homem com seus pares. São os outros externos a cada individualidade humana que compõem a existência humana em sua dimensão social. Estabelece-se as relações de poder homem-saber-mundo e homem-saber-homem. Relação de poder que estabelecemos com o mundo e com o outro, interferindo na relação que construímos com a natureza e com os outros pares igualmente sedentos por poder transformar a realidade em seu paraíso particular. Configura-se enquanto dupla aspiração humana: domesticar /humanizar a natureza e convencer seus pares de que o sentido que atribui ao mundo é a melhor forma de 2 Referência à peça existencialista de Jean Paul Sartre, Entre Quatro Paredes, que narra o encontro de três personagens condenados a conviver eternamente um com os outros num inferno todo particular. Diante de verdadeiras batalhas psicológicas os personagens se revelam, acotovelando-se uns aos outros. 3 Usualmente os termos ‘saberes’ e ‘conhecimentos’ são empregados nos dicionários e discursos como se possuíssem o mesmo significado, em caráter de sinônimos. De acordo com a etimologia dessas palavras, ‘saber’ deriva do latim ‘sapere’ que significa ‘ter sabor, ter gosto’, enquanto ‘conhecer’ vem do latim ‘cognoscere’ (co + gnos) que quer dizer ‘aprender com a mente’. No grego, ‘saber’ deriva de ‘sophia’, ou seja, sabedoria. O termo ‘filosofia’, literalmente, amor filial ou amizade (philo) à sabedoria (sophia), tem correlação direta com a palavra ‘saber’. Quem sabe é quem possui a sabedoria e para isso é necessário uma apropriação do que é sabido, o que vai além do conhecimento, extrapola-o. Conhecer é ter ciência ou estar ciente da existência de algo ou de alguém, de alguma informação. Saber é apropriar-se dessa existência(informação) de forma que ela passa a fazer parte de você. Utilizando a metáfora sugerida pelo termo em latim, a absorção dos alimentos, dos sabores e gostos, pelo organismo biológico confere a este último a apropriação intrínseca do que constituía esse alimento. Ou seja, quem come uma maçã não apenas a conhece profundamente, mas a possui como parte integrante do seu ser. interpretá-lo, conhecê-lo, e consequentemente, meio mais eficaz de dominá-lo. Esses desejos, no decorrer da história civilizatória humana, foram negociados/atualizados por meio de muitas ações violentas (‘indícios de que o mais forte [...] se estabelece de forma privilegiada’), mas também por meio de outras formas de convencimento como a dialética e a afetividade. Portanto, a realidade material simbólica dos grupos humanos é erigida a partir das relações de poder que se estabelecem na tessitura social do homem consigo mesmo, com o mundo e com os outros humanos e não humanos. Daí a importância sine qua non da criação da linguagem como forma de criar, socializar e estabelecer sentidos que nortearão os currículos formais e informais, explícitos e ocultos, ditos e não ditos que atualizam os modelos sociais, instaurando as realidades simbólicas-materiais coletivas e interferindo nas construções individuais humanas (LÉVY, 1993; LIMA JR, HETKOWSKI, 2006; LIMA JR, 2003, 2005; MOREIRA, SILVA, 2002; SILVA, 2001). O homem inventa o grupo social, a linguagem e domestica a natureza por meio da agricultura. A criação dos grupos sociais como forma de ampliar a sobrevivência em um mundo hostil e o invento da linguagem como meio de comunicação que viabilizasse o convívio em grupo para a construção da inteligibilidade em comum foram de capital importância na promoção do primeiro grande evento de domesticação do mundo, a agricultura (LÉVY, 1993; LIMA JR, HETKOWSKI, 2006). O homem domesticou-se, socializando-se e criando cultura (compartilhamento de sentidos) para poder dar seus primeiros passos no sentido de humanizar o mundo. Seriam esses agenciamentos o fundamento basilar que nos levaria a acreditar, no século XVI, que seria possível controlar o mundo e instaurar o nosso Éden Antropocêntrico? Nosso primeiro artefato foi o corpo e sua linguagem. Nesse início foi a oralidade o instrumento intelectual utilizado para a construção epistemológica do homem e como forma de perpetuação das estruturas daquelas sociedades, como forma de construir/ interpretar/socializar/transmitir as formas de funcionamento do mundo e das sociedades, satisfazendo suas necessidades, buscando soluções para seus problemas (LÉVY, 1993; LIMA JR, HETKOWSKI, 2006). Nas civilizações da Antiguidade, antes da escrita, a oralidade primária torna-se o principal meio de difusão do saber-poder. Antes da escrita congelar o tempo, antes de romper os espaços, antes de tornar-se história (LÉVY, 1993), a técnica oral primária de transmissão do conhecimento com o apoio das suas tecnologias acessórias da fala (a declamação, a retórica e a dialética) definia as formas e representação do pensamento (CHAVES, 1999, p.199). Lévy (1993, p. 95) compara as sociedades de cultura oral primária a rios sem bordas, num movimento com ritmo indefinido, cuja transmissão do conhecimento era feita por meio de narrativas e cantos, ritos, sinais mnésicos, encenações, representações dramáticas, cantos e narrativas. A escrita surge com outra criação humana que busca controle do conhecimento. Segundo Lévy (1993), a escrita nasce como transcrição literal da oralidade, e no decorrer do seu exercício histórico vai assumindo caráter próprio. Traz uma drástica revolução na construção do conhecimento humano, mudando a relação com o tempo e o espaço, possibilitando maior domínio dos signos e do homem, por meio de calendários, anais, leis, regulamentos, descrição de processos, registros de contas, etc. Com um acúmulo e uma difusão maiores de conhecimentos, torna-se possível a reconstrução/representação ordenada do tempo e da história. O saber concreto da cultura oral, pautado na memória, na tradição, no cotidiano, nas referências míticas e aventuras transmitidas de geração a geração, presencia a ruptura de seus territórios que tornamse abstratos, imutáveis, rígidos, controlados, sistêmicos, suscetíveis a análise e exame posteriores. No intuito de “congelar, programar, represar ou estocar” (LÉVY, 1993, p. 88) o futuro e o passado, as idéias e os fatos, os espaços e o tempo, a escrita criou uma possibilidade mais concreta de controle (poder) do homem sobre a natureza e sobre as sociedades. Entretanto, o processo de legitimação da escrita em um mundo oralizado não ocorreu sem crises e conflitos entre percepções epistemológicas divergentes, o que pode ser evidenciado no famoso diálogo mítico Fedro, de Platão. O documento histórico retrata um diálogo entre figuras mitológicas, com comentários que seriam de Sócrates, no período de transição entre a cultura oral primária e o surgimento da escrita. De acordo com Chaves (1999) o “deus Thoth ou Teuto (ou ainda, Hermes para os gregos), deus egípcio que inventou a escrita, orgulhoso de sua principal invenção, vem mostrá-la ao rei Tamos”. Sócrates desacredita-ironiza a escrita, afirmando que o conhecimento registrado em papiros construirá jardins literários para entreter a velhice como passa-tempo de recordações para quem não mais pode contar com a memória, esmagada pelo peso dos anos. Apesar da preocupação do filósofo em apontar a necessidade de tradução/interpretação enquanto obstáculo real para o qual a escrita precisaria buscar soluções, ele equivocou-se, pois ‘as verdades’ humanas passaram a ser inscritas e ao contrário ampliaram-se. Desde então, como afirma Lévy (1993, p. 89), a partir do terceiro milênio antes de Cristo, o mundo passa a ser um grande texto a ser decifrado. A maiêutica de Sócrates, o parto das idéias, une-se à hermenêutica, a arte de interpretar. O que importa evidenciar, nesse momento, diante do que foi dito, é que a escrita, e por extensão as interpretações e organizações sociais que atualizou, apesar de ter promovido maior controle do homem ou de grupos de homens sobre o mundo, à medida que criou a necessidade de interpretação também abriu brechas (HETKOWSKI, NASCIMENTO, 2009; SANTAELLA, 2003) para o escapamento do saber já que liberta a mensagem do emissor, ampliando a possibilidade de múltiplas interpretações, obliterações, redirecionamentos e alterações de acordo com as subjetividades dos grupos e de cada indivíduo situado em determinado lugar-tempo da história humana (LÉVY, 1993; LIMA JR, HETKOWSKI, 2006). A resistência dos homens da oralidade primária à escrita explicita uma preocupação com a preservação da validade-autenticidade dos conhecimentos humanos acumulados pela experiência oral ao serem desvinculados fisicamente do mestre, o emissor/produtor original, mas também representa uma tentativa de preservação de poder já que a escrita descola o podersaber do orador, ampliando o poder do receptor capaz de decodificar seus códigos que ao traduzir pode criar novos sentidos sem a interferência imediata do emissor. Ao mesmo tempo em que amplia o controle, a escrita possibilita um escape. Nesse contexto, diante da tentativa de imortalizar a verdade, nasce a base tecnológica para a construção dos princípios universais do discurso e da argumentação racional que caracteriza a ciência moderna. Com o método de exposição analítica, no século XVI, trazido pelo matemático e filósofo francês Pierre de la Ramée, conforme explicita afirma Lévy (1993), nasce um novo gênero de apresentação do saber, mais sistêmico, estruturado em paginação, sumários, cabeçalhos, índice, tabelas, diagramas, árvores em redes, com elementos segmentados em função de uma unidade geral maior. EA + IM = CM ----> o matema equivale a: Exposição Analítica e Imprensa Mecânica produzindo a Ciência Moderna. A cultura letrada organizada segundo a exposição analítica instaura um novo gênero de representação/apresentação do saber humano, mais hierarquizado, e, portanto mais controlado, e não por acaso, vale evidenciar, as estruturas sociais vigentes também se constituíam bastante rígidas. Esse método aliado ao invento da imprensa mecânica de Gutemberg, juntos, teriam instaurado o novo modelo cognitivo que fundamentou a epistemologia da Ciência Moderna (LÉVY, 1993). Livros a mancheias. A invenção de Gutenberg simplificou a produção e a interpretação dos textos, libertando-os da heterogeneidade manuscrita, reduzindo os erros dos copistas na reprodução do pensamento textual e gráfico, ampliou significativamente a disseminação e a circulação de conhecimentos, valores, percepções do mundo. Solidificou, enfim, a cultura letrada. Essa tecnologia causou uma revolução social, ampliando as mudanças já propiciadas pelo advento da escrita, possibilitando maior disseminação do pensamento e da produção do conhecimento das idéias, ideais e valores de quem detinha esse meio. Possuir maior influência na produção de sentido, portanto, possibilita maior poder na construção da realidade. Não foi a toa que muitos representantes das classes dominantes da época lutaram fervorosamente contra o potencial da imprensa na disseminação do saber-poder, alegando temer a vulgarização do saber humano, temiam também o deslocamento do poder-saber. Tanto a escrita quanto a sua reprodução em larga escala estavam intimamente condicionadas ao poder econômico (HETKOWSKI, NASCIMENTO, 2009; SANTAELLA, 2003) para se ter acesso aos seus instrumentos materiais, era necessário também ter domínio técnico especializado para manipular os artefatos, ou seja, era necessário saber-poder ler, interpretar e criar (escrever) a escrita, bem como saber-poder reproduzi-la mecanicamente. Sem dúvida os indivíduos que tinham acesso a esses agenciamentos sócio-técnicos estavam em vantagem na produção de sentido e na interpretação-criação da realidade. Eram (e são) os emissores, os ativos, os agentes. Havia, portanto, maior dificuldade para os que não tinham acesso ao artefato ou não possuíam o conhecimento de decodificação, criação e manipulação dessas técnicas. Eram (e ainda são) os receptores, os passivos, os que sofrem a ação. Esses instrumentos foram criados com o intuito de controlar o conhecimento, os homens, o mundo, ampliar a disseminação de saberes, construir realidades, e estiveram quase que exclusivamente nas mãos das classes mais poderosas política, econômica e culturalmente (HETKOWSKI, NASCIMENTO, 2009; SILVA, 2001; MOREIRA, SILVA, 2002; SANTAELLA, 2003). Contudo ainda que dentro da comunicação unidirecional, na qual os interlocutores exercem papeis de poder drasticamente diferentes e desequilibrados, por mais que a força da estrutura social externa condicione fortemente (às vezes esmagadoramente), dado os recursos materiais-simbólicos parcos nos quais são inseridos os preteridos sociais, há sempre um dado momento em que o emissor perde a mensagem e o receptor fica cara a cara com a mesma, sozinho, em seu infinito particular, e nessa curvatura ele tem poder de fazer algo. Ainda que se configure em um poder relativo, há um deslocamento possível de ressignificação, uma brecha para a singularidade (LIMA JR, HETKOWSKI, 2006). Com a digitalização e sua disposição em rede surge uma possibilidade mais ampla de autoria, coautoria e bidirecionalidade nos processos formativos humanos. Um exemplo cabal desse tipo de agenciamento é a forma como as pessoas produzem e veiculam conteúdos audiovisuais, na atualidade, diferente do audiovisual clássico, massivo e unidirecional, ainda mais concentrado nas mãos dos conglomerados midiáticos (SANTAELLA, 2003). Essas comunidades digitais audiovisuais, a exemplo do YOUTUBE, em suas dimensões hipertextual, hipermidiática e multimidiático-interativa “oferece(m) um domínio mais rápido e mais fácil do que através do audiovisual clássico (analógico) ou do suporte impresso.” (LÉVY, 1993). Sem dúvida a forma de produção audiovisual mudou. O que se verifica atualmente é que as pessoas estão produzindo conteúdo audiovisual na rede, por conta própria, em ambientes colaborativos e coletivos, como nunca antes puderam fazer, em decorrência de mudanças tecnosociais e econômicas. Surge, em torno desta produção audiovisual no ciberespaço, diferente da produção clássica massiva, novas formas e categorias artísticas, novas formas de se comunicar, de comercializar, de fazer publicidade, de se representar, de disseminar valores e ideologias, de dar evasão a desejos e sonhos, de promover idéias, de viver e de representar a vida. Daí a relevância de um estudo sobre algumas das possibilidades (re)significativas e instituintes trazidas pela digitalização audiovisual e sua disponibilização em rede, enquanto novos processos formativos informais. Esse artigo surge enquanto constructo teórico que vem discutir as novas possibilidades de autoria e como elas podem instituir uma nova relação saber-poder na contemporaneidade. Esses novos agenciamentos podem provocar uma mudança qualitativa na dinâmica social, podendo gerar microrupturas e subversões na sociedade capitalista, instaurando um novo modus operandi paralelo, com maior potencial solidário, colaborativo, crítico, criativo e transformativo (ALVES, 2005; HETKOWSKI; LÉVY, 1993; LIMA JR, 2006; LIMA JR, 2007; SANTAELLA, 2003). As TIC não mudam apenas a forma como nos comunicamos, ou armazenamos dados, ou fazemos compras e nos relacionamos, elas alteram a forma de ser e pensar, e consequentemente, a forma de aprender, de representar o pensamento humano e de construir nossa forma de existir (ALVES, 2002; 2009; LÉVY, 1993; LIMA JR; HETKOWSKI, 2006; LIMA JR, 2006; 2005; SANTAELLA, 2003). Em suma, mudam o processo de formação do homem do século XXI e, por conseguinte, mudam a forma como construímos nossa realidade social coletiva e íntima, elaborando novas formas de pensar e conviver. Isso ocorre porque as conexões artificiais desses dispositivos materiais se assemelham, em sua estrutura, ao “processo reticular da inteligência humana”, desencadeando uma “nova economia cognitiva” (“rede neural conexiva”) (LIMA JR, 2007). Há ainda um vasto caminho a percorrer quando se trata de discutir e pesquisar fenômenos trazidos por essa nova onda. Qual o papel das oligarquias nessa nova dinâmica? E os indivíduos, como estão utilizando esse maior potencial de autoria para se auto-representarem? Quais os desejos, valores, ideologias, idéias, sentimentos, produtos estão sendo divulgados no ciberespaço por meio do recurso audiovisual digital e dos ambientes que armazenam e socializam esses conteúdos em rede mundial? Quais as influências estéticas que subjazem essas produções, e suas narrativas? Quais os recursos de produção utilizados? O que muda no direito autoral e como esse fato interfere nas futuras estratégias de marketing da indústria da informação, comunicação e entretenimento? Se as TIC mudam o homem, mudam sua forma de ser e pensar. Mudam, portanto, sua forma de conhecer e produzir conhecimento (ALVES, 2005; HETKOWSKI; LÉVY, 1993; LIMA JR, 2006; LIMA JR, 2007; SANTAELLA, 2003). Por conta desse contexto surge o desejo de pesquisar a produção audiovisual digital em rede enquanto recente agenciamento sócio-técnico com potencial de modificar os novos processos formativos contemporâneos. Surge assim, a necessidade da busca por uma apropriação desse fenômeno tecnosocial, compreendendo a forma como os grupos e os sujeitos sociais operam essas novas estruturas materiais e o impacto que esses novos agenciamentos causam, na formação das próximas gerações (LIMA JR, 2007). A expressiva produção audiovisual digital com seu maior potencial de autoria, autonomia, sociabilidade e disseminação, me instiga a abrir novos canais de investigação, evidenciando a necessidade de maior apropriação da fundamentação teórica em questões que dêem conta da relação saber-poder, questões sobre a linguagem e o papel da singularidade instituindo esse processo, bem como um maior mergulho nesse campo de pesquisa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Lynn. Jogos eletrônicos e violência: desvendando o imaginário dos screenagers. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 18, p. 437-446, jul./dez., 2002. ALVES, Lynn. Games. Desenvolvimento e pesquisa no Brasil. HETKOWSKI, Tânia Maria; NASCIMENTO, Antônio Dias (orgs). 1. ed. Salvador: ed. Edufba, 2009. 400 p. BURLAMAQUI, Marco; BRANDÃO, Márcio. Mídias utilizadas em EAD. Unidade 2. Disciplina: Mediatização. PósGraduação em Educação a Distância. Brasília: CEAD/UnB, 2006. 29 p. 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