O Supremo Tribunal Federal entre a judicialização e o ativismo
Rachel Nigro1
Com a redemocratização do Brasil, cujo ponto culminante foi a promulgação
da Constituição de 1988, ocorreu a transferência de poderes, na forma de
competências, para juízes e tribunais. Desse modo, inúmeras matérias que antes
eram deixadas para o processo político majoritário, ou seja, para a discussão
política do parlamento através dos representantes eleitos pelo povo, passaram a ser
judicializadas.
De modo direto, podemos dizer que "constitucionalizar" significa
transformar política em direito. Assim, uma questão que seja disciplinada em uma
norma constitucional, transforma-se em pretensão jurídica, que pode ser formulada
sob a forma de uma ação judicial. Freqüentemente é o próprio legislador que,
deliberadamente ou não, deixa espaços para escolhas a serem realizadas em sede
jurisdicional. Nesse novo cenário, quase qualquer questão política ou moralmente
relevante pode chegar ao STF.
A "judicialização da política", como tem sido chamado esse movimento,
propugna pela aplicação direta da Constituição a situações expressamente
contempladas em seu texto, independentemente de manifestação do legislador. O
judiciário exerce tal poder através da declaração de inconstitucionalidade de atos
normativos emanados do legislador, com base em critérios de ostensiva violação à
Constituição.
Com este deslocamento de poder próprio do constitucionalismo
contemporâneo, o poder judiciário ganha força, sobretudo por ser responsável por
fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros "poderes"
e outros interesses.
Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal torna-se mais presente na vida das
pessoas. Cada julgamento realizado pelo plenário do Supremo pode ser
acompanhado pela “TV Justiça” ou pela internet, o que permite que um maior
número de brasileiros acostume-se ao fato de que questões cruciais de natureza
política, moral ou mesmo econômicas, são decididas por um tribunal, composto
por onze pessoas, para as quais jamais votaram e que utilizam uma linguagem de
difícil compreensão, sobretudo para quem não é versado em direito.
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Doutor em Filosofia, Professora do Departamento de Direito da Puc‐Rio Dessa forma, uma vez que os juízes ganham maior poder com o processo de
constitucionalização, uma questão vem à tona: em que medida esse novo papel do
Judiciário promove ou afronta a democracia? Qual é o risco de se fundar um
aristocrático governo de juízes?
O termo "ativismo judicial" tem sido utilizada para expressar esse temor de
uma "supremocracia", ou seja, de uma supremacia absoluta do órgão máximo do
poder judiciário. Ao contrário da judicialização, o ativismo foge das amarras legais
e propugna pela imposição de condutas ou de abstenções ao poder público,
notadamente em matéria de políticas públicas; pela aplicação direta da
Constituição a situações que não foram expressamente contempladas em seu texto;
e pela declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do
legislador, com base em critérios menos rígidos de violação da Constituição.
Nesse sentido, o ativismo visa uma participação mais ampla e intensa do
judiciário na concretização de valores constitucionais, enquanto a judicialização
decorre da própria legislação que impõe esses deveres ao judiciário.
Por um lado, a atuação do Superior Tribunal Federal em casos emblemáticos
promove uma maior visibilidade pública e contribui para a transparência, para o
controle social e, em última análise, para a democracia. A ampliação do papel do
direito e do judiciário pode ser vista como uma decorrência da retração do sistema
representativo e de sua incapacidade de cumprir as promessas de justiça e
igualdade, inerentes ao ideal democrático e incorporadas nas constituições
contemporâneas.
Por outro lado, essa ampliação do poder do STF desnuda as mazelas de
nosso sistema político, atordoa a sociedade pelo efeito midiático e, em alguns
casos, acaba por coagir a própria atividade estatal, colocando em xeque sua
legitimidade.
Assim, recorre-se ao judiciário como guardião último dos ideais democráticos
gerando uma situação paradoxal: ao buscar suprir as lacunas deixadas pelo sistema
representativo, o judiciário apenas contribui para a ampliação da própria crise de
autoridade da democracia.
Uma decisão recente que chamou a atenção da sociedade foi o
reconhecimento, no dia 05 de março de 2011, da união homoafetiva como entidade
familiar, como já comentado aqui no ERA. Este caso apresenta certas
peculiaridades que nos permitem refletir sobre a distinção entre judicialização e
ativismo e, nesse sentido, sobre a atuação da suprema corte brasileira.
Tal questão chegou às portas do Supremo através de duas ações distintas que
reuniram-se no mesmo julgamento: 1) uma ação direta de inconstitucionalidade
(Adin 4277) foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) com pedido
de interpretação conforme à Constituição Federal do artigo 1.723 do Código Civil;
2) uma ação de descumprimento de preceito fundamental (Adpf 132) foi ajuizada
pelo governo do estado do Rio de Janeiro, alegando que, dada a omissão do
legislativo federal sobre o assunto, o não reconhecimento da união homoafetiva
estaria contrariando preceitos fundamentais como igualdade, liberdade e o
princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal.
O artigo constitucional que estava em disputa era o artigo 226, parágrafo 3º,
que estabelece: "Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher, como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento”. Uma interpretação literal deste dispositivo parece não
deixar nenhuma dúvida quanto ao fato de que o legislador constituinte originário
restringiu a união estável equiparada ao casamento para o homem e a mulher.
O artigo 1.723 do Código Civil de 2003 é quase uma cópia do parágrafo 3º do
artigo 226 da CF. Mas como ressaltou o Ministro Ayres Brito, há uma diferença
fundamental entre ambos porque a Constituição federal de 1988 nos fornece
elementos para eliminar uma interpretação reducionista.
Nesse sentido, tanto a Adin quanto a Adpf solicitam a interpretação do artigo
1.723 do Código Civil conforme a Constituição federal, no sentido de excluir
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar.
Ambos os pedidos sustentam que o não reconhecimento fere os princípios da
dignidade humana, previsto no artigo 1º, inciso III; da igualdade (artigo 5º, caput)
da vedação de discriminação odiosa (artigo 3º, inciso V); da liberdade (artigo 5º,
caput) e da proteção à segurança jurídica (artigo 5º, caput), todos da Constituição
de 1988.
Além da questão interpretativa, o principal argumento que precisava ser
rebatido para reconhecer a união estável homoafetiva era exatamente o argumento
do ativismo judicial, isto é, a acusação de que o STF estaria transbordando o seu
limite de atuação e invandindo a competência do legislativo. Segundo o
representante da CNBB, a Constituição estabelece limitação expressa, ao prever a
união estável entre homem e mulher, e não entre pessoas do mesmo sexo. Portanto,
não se trataria de uma lacuna constitucional, não cabendo portanto ao judiciário,
mas sim ao legislativo, alterar o correspondente dispositivo constitucional.
Existem projetos de lei sobre o assunto "engavetados" no Congresso Nacional
desde 1995, quando a então deputada Marta Suplicy, apresentou o projeto de Lei
1.151. Entre 1995, quando o Legislativo teve a sensibilidade para reconhecer a
lacuna da lei, e 2011, quando o assunto chega ao Supremo, diversas ações judiciais
já haviam sido propostas demandando o reconhecimento desse tipo de união.
Conforme sustentou o Ministro Gilmar Mendes, havia um “limbo jurídico”
sobre o assunto, resultado do silêncio do Congresso Nacional diante da matéria.
Nesse sentido, reconhece que a competência originária para regular a matéria
pertence ao poder legislativo. Porém, dada a inércia desse poder, considera dever
da corte constitucional garantir a proteção da união homoafetiva, em respeito aos
direitos fundamentais e aos direitos das minorias.
Destacou a importância da atuação do Supremo em quadros semelhantes,
quando de fato a omissão da corte representaria um “agravamento no quadro de
desproteção de minorias ou pessoas que tenham seus direitos lesionados”.
Entretanto, ressaltou que seu voto se limita a reconhecer a existência legal da
união homoafetiva por aplicação analógica do texto constitucional, sem se
pronunciar sobre outros desdobramentos. Segundo o Ministro: “Pretender regular
isso é exacerbar demais nossa vocação de legisladores positivos".
Usando este caso como paradigma, podemos perceber que a "invasão" de
competência do Supremo parece justificar-se quando o que está em jogo é a ofensa
a direitos fundamentais. Entretanto, tal critério ainda deixa enorme margem de
incerteza, tendo em vista a disputa em torno do sentido e alcance dos chamados
direitos fundamentais.
Nesse sentido, parece que a difícil delimitação entre judicialização e
ativismo nos deixa apenas uma certeza: o judiciário quase sempre pode, mas nem
sempre deve atuar.
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