ABSTRACT: The main aim of this paper is to discuss the philosophical conception of A1an underlying the concept of the ideal speaker of Linguistics in order to analyze the place held by the Deafwithin this science. "Animal sans raison, animal asocial: Ie sourd fait vaciller les criteres de definition philosophique de I 'humain. II impose aux yeux de tous la materialite brute d 'un corps qu 'aucun discours ne rachete, montre un corps humain sans humanite. " S. Lodeon (1993:93) Ao longo dos tempos, desde as mais remotas datas, a linguagem humana vem despertando 0 interesse de estudiosos e filosofos; e objeto de pesquisa e de inspira~o para a elabora~o das mais diversas teorias que tern como objetivo nao apenas explicar o prOpriofenomeno da linguagem como explicar a propria natureza humana. E, como esta implicito na epigrafe acima, a capacidade para a linguagem e considerada exatamente 0 elemento que diferencia 0 Homem dos demais animais, pois a linguagem e entendida como diretamente relacionada com a razao. Naturalmente, tal cOrYetura pressupOe nao apenas a idealiza~o do fenomeno da linguagem em si, como, e principalmente, a idealiza~o do Homem - idealiza~o essa que se encontra refletida nas mais diversas areas academicas. A LingiiisticaJ, urn dos resultados academicos desse enorme interesse que a linguagem desperta, esta elaborada, por exemplo, com base no que se imagina urn falante ideal. Neste trabalho, estarei discorrendo sobre a conce~o filos6fica de Homem que subjaz ao conceito de falante da Lingiiistica visando a analisar 0 lugar que 0 surdo ocupa nessa ciencia. A idealiza~o do individuo, que naturalmente leva a pressuposi~o da existencia de uma identidade, e uma das providencias necessarias para a sustenta~o do carater cientifico da Lingiiistica, pois, como diz Derrida (1973:40): "a cientificidade da lingiiistica tern, com efeito, como condi~ao, que 0 campo lingiiistico tenha fronteiras rigorosas, que este seja urn sistema regido por uma Necessidade intema e que, de urna certa maneira, sua estrutura seja fechada". E tais fronteiras rigorosas se fazem, principalmente, a partir da n~ao de individuo ideal, de identidade. Se 0 estabelecimento de uma identidade e fundamental para a cientificidade da Lingilistica, qual eo perfil do seu individuo ideal? Este individuo (ou falante) ideal e ouvinte, adulto, nativo, "normal" e tern pleno controle de seus dizeres (Cf Rajagopalan, 1998). E 0 sujeito eartesiano, constituido de uma identidade; da mesma identidade que e elemento necessario para a garantia das "fronteiras rigorosas" da Lingiiistica, sobre as quais comenta Derrida. Ora, se assim pode ser definido 0 individuo ideal da Lingiiistica, pode-se inferir dai que 0 surdo nao tern lugar nessa ciencia. E se essa ciencia nao contempla os surdos, a questiio da identidade, "que ocupa (...) uma posi9ao central na constru9ao da teoria lingiiistica" (Rajagopalan, 1998:29), esta construida com base numa idea1iza9iio do Romem cuja composi9iio implica, necessariarnente, a elei9iio de elementos e consequente exclusao de muitos outros. 0 curioso e que, na verdade, 0 conceito de individuo ideal que norteia essa ciencia antes de mais nada responde muito diretamente a defini9ao filosofica mais corrente de Romem. Sendo 0 autoconhecimento 0 "prop6sito supremo da indaga9iio filosoficaz" (Cassirer, 1965:15),0 estabelecimento de uma defini9iio para Romem torna-se para a Filosofia seu ponto nevnilgico. Segundo Abbagnano (1962), as defini90es filos6ficas de Romem podem ser reunidas em tres grupos basicos: aquele grupo em que as defini¢es "se valem do confronto entre Romem e Deus"; 0 grupo de defini90es que "exprimem uma caracteristica ou uma capacidade propria do Romem"; e aquele grupo que reUne defini9i>esque "exprimem, como propria do Romero, a capacidade de autoprojetar-se" (Id. p.487). Desses tres grandes agrupamentos de defini90es, uma defini9iio de Romem desponta como aquela que atravessa os tempos, mesmo que assumindo a cada vez novas roupagens: Romem e um animal simb6lico. (Cf. Abbagnano, 1962; Cassirer, 1965). Mas tal defini9iio, numa civiliza9iio de tradi9iio totalmente fonocentrica, nao escaparia a uma redu9iio do simbolismo a fala. AfinaI, silo secuIos de cren98 na linguagem enquanto phone. E Derrida (1973:9) nos informa que esse "privilegio da phone nao depende de uma escolha que teria sido possivel evitar. Responde a um momenta da economia (digamos, da 'vida' da 'historia' ou do 'ser como rela9iio a si')". A voz e tida como "produtora dos primeiros simbolos' que "tern com a alma uma rela9iio de proximidade essencial e imediata" (id., p.13). Assim, pela defini9iio filos6fica de Romem enquanto animal simb6lico deve-se entender "animal que fala". 1510 significa que, segundo essa defini9iio, 0 surdo, exilado que esti do "campo sonoro, (...) se encontra projetado no liarne entre a humanidade e a bestialidade" (Lodeon, 1993:93). 0 surdo vem anular, portanto, "0 que fundamenta a normalidade do corpo como normalidade essencial, e nao simplesmente contingente: 0 homem que pensa e capaz de articular e de entender os sons. Os orgiios da voz e da audi9iio justificam 0 corpo como humano" (LodOOn,1993:93). Assim, da mesma maneira como esti em dissonancia com a defini9iio filos6fica de Romem, 0 surdo imp5e tambem uma desestabiliza9iio da identidade do individuo ideal da Lingiiistica e, conseqiientemente, coloca em dUvida a propria legitimidade dessa disciplina enquanto ciencia da linguagem humana. Paradoxalmente, ou mesmo em virtude de tal incomodo que 0 surdo representa para a Lingiiistica, observa-se hoje a ocorrencia de niunero cada vez maior de estudos sobre a linguagem elna surdez no interior dessa ciencia. As Lingua(gen)s de Sinais3 (doravante LS -- a manifestacao de linguagem associada natural mente aos surdos) sempre foram excluidas dos estudos cientificos porque nao eram consideradas linguas naturais, mas mo somente 0 "sintoma visivel da surdez" (Massone, 1993:76). Somente a partir da decada de sessenta, ap6s a publica~o de W. Stokoe intitulada Sign Language Structure (sem tradu~o para 0 portugues), os surdos e sua linguagem come9'U'UDa ser alvo da aten~o de nWnero cada vez maior de lingiiistas, fate que resultou na incorpora~o das LS no ambito cientifico. Hoje, as LS sao descritas e normatizadas pela Lingiiistica porque sao consideradas "sistemas lingiiisticos com as mesmas propriedades das linguas orais" (Behares, 1993:44). Mas, como discuto em trabalhos anteriores (Glass, 1996, 1997), a saida da marginaIidade e a entrada sUbita na legitimidade nao devem ser entendidas como uma ruptura em rela~o a tradi~o fonocentrica em que estamos merguIhados; 0 que de fate ocorre, como bem coloca Massone (1993:81), e uma reprodu~o do "status-quo (sic) ouvinte". Massone (id.p.82) explica que as "Linguas de Sinais pertencem a comunidades agrafas e 0 lingiiista pretende apropriar-se delas a partir das teorias e metodologias convencionais, quando aquelas pertencem a uma reaIidade exterior a nossa experiencia de sociedade alfabetizada". Uma reaIidade exterior principaImente a nossa experiencia auditiva, como prop6e Carlos Skliar4 ao sugerir que a surdez deveria ser definida nao como uma falta (da audi~o), mas como uma experiencia visual de mundo. AnaIisando assim, observamos que 0 lugar ocupado pelo surdo na Lingilistica estcimarcado por profundo ouvintismo - neologismo criado por Skli~ numa anaIogia ao termo colonialismo, para referencia a imposi~o e contamina~o implicita ou explicita da experiencia auditiva nos estudos da linguagem elna surdez. Resta-nos saber se nossa experiencia auditiva de mundo definitivamente nos desautoriza a estudar a linguagem elna surdez ou se uma revisao da nossa con~o de linguagem e, conseqiientemente, de Romem abriria a possibilidade de tal estudo livre do influxo do ouvintismo. A segunda possibilidade e sedutora por uma razao simples: se desautorizados a estudar a linguagem elna surdez, estaremos perdendo urna grande oportunidade de aprender muito sobre a linguagem humana; entretanto, essa mesma possibilidade que se apresenta sedutora pode trazer conseqiiencias arrasadoras para nossa tradi~o fonocentrica -- afinal, conceber linguagem fora das amarras do ouvintismo implica "supor que a fala nao e mais que urn acaso orgfurico" (Lodeon, 1993:97). Assim, da mesma maneira como os surdos fazem a conce~o filosOfica de Romem vacilar, pois nos imp6em uma humanidade atraves de sellScorpos silenciados, eles prometem nos oferecer uma excelente oportunidade para uma (esta sim) verdadeira reviravolta (linguistic turn) na Filosofia e, conseqiientemente, na Lingiiistica * As ideias aqui desenvolvidas fazem parte da minha pesquisa de doutoramento em Lingiiistica (IELIUNICAMP) - Bolsa CNPq. 1. Por Lingiiistica, refiro-me aos estudos cientificos pOs-saussurianos, sincronicos, estruturalistas e de natureza fonocentrica da linguagem humana. 2. Esta e demais cita~s retiradas de textos em espanhol e frances foram traduzidas pormim. 3. Devido as implica~s que os termos ~ e linguagem podem significar para as manifes~s de linguagem viso-espaciais e, considerando que uma discussao a esse respeito nao caberia neste trabalho, estarei me referindo a essas manif~s de linguagem como lingua(gen)s de sinais ou, simplesmente, LS. 4. Durante sua participa~o no XIII Encontro Nacional da ANPOLL, na UNICAMP/junho de 1998. 0 Prof. Dr. Carlos Skliar e docente e pesquisador da UFRGS. 5. Termo criado por Skliar e citado durante sua participa~o do XIII Encontro Nacional da ANPOLL, na UNICAMP/junho de 1998. RESUMO: Neste trabalho, discorro sobre a conceP9iio jilos6jica de Homem que subjaz ao conceito de falante da Lingiiistica visando a analisar 0 lugar que 0 surdo ocupa nessa ciencia. ABBAGNANO, N. (1962) Dicionano de Filosojia. Trad Coord eVer. Por Alfredo Bosi, com a colabora~o de Maurica Cunio...et al. 2.00. Sao Paulo: Mestre Jou. BEHARES, L. E. (1993) "Implica~s neuropsicol6gicas dos recentes descobrimentos na aquisi~o de linguagem pela crianca surda". In: Lingua de Sinais e Educa9iio do Surdo. Serie Neuropsicologia, vol.3. sao Paulo: SBNp. (41-55) CASSIRER. E. (1965) Antropologia Filos6jica - Introducci6n a una Fi/osojia da la Cultura. Traducci6n revisada de Eugenio lmaz. Colecci6n Popular. Mexico-Buenos Aires: Fondo de Cultura Econ6mica. DERRIDA. 1. (1973) Gramatologia. Tradu~o de Miriam Schnaiderman e Renato J. Ribeiro. Sao Paulo: Perspectiva e EDUSP. GLASS, M.H.F. (1996) Por uma abordagem performativa das Linguas de Sinais. Disserta~o de Mestrado. IELIUNICAMP. __ (1997) "Lingiiistica e lingua(gem) de sinais: 0 paradoxo da legitima~o". In: Integra9iio ensino-pesquisa-extensiio. N. 9, Ano III, Maio de 1997. Sao Paulo: Centro de Pesquisa da Universidade Sao Judas Tadeu. (88-89) LODEON, S. (1993) "La fabrique du corps parlant: l'instituition du sourd-muet en France (fin XVIII" - debut XIX")". In: Communications, vol. 56. (91-103) MASSONE, M.l. (1993) "0 lingiiista ouvinte frente a uma comunidade surda e agrafa: metodologia da investiga~o". In: Lingua de Sinais e Educa9iio do Surdo. Serie Neuropsicologia, voL3. Sao Paulo: SBNp. (72-93) RAJAGOPALAN, K. (1998) "0 conceito de identidade em lingiiistica: e chegada a hora para uma reconsidera~ao radical?". Traducraode Almiro Pisetta. In: Signorini, l. (org.), Lingua(gem) e ldentidade: Elementos para uma discussiio no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras; Sao Paulo: Fapesp. (21-45)