Jornalismo, o social e o histórico: Um breve diálogo crítico
Andrei Netto e Vinicius Netto
Um diálogo eletrônico em 2006:
- Queria fazer perguntas que nunca se pode fazer ao vivo ou ao telefone ou por e-mail (estranha essa
possibilidade dos diálogos eletrônicos então – abre espaço pra um leque de pequenas comunicações –
mensagens que escapam as comunicações baseadas em co-presença, do cotidiano). Quantos textos tu
produzes por semana?
- Depende da semana. Às vezes, passo duas, três semanas escrevendo uma única reportagem - uma série,
por exemplo. Outros dias, escrevo dois na mesma tarde. Mas nesse caso são breves.
- Textos sobre fatos mais... Ordinários. Eventos menores?
- Isso. Há pouco, por exemplo, entreguei um sobre o estado de saúde de uma menina de 14 anos que sofreu
queimaduras naquele ônibus medonho de Rio Grande. Isso é o que a gente chama de "fazer o dia". É o
oposto de trabalhar em uma “especial”. Tem gente que prefere fazer isso o todo dia a passar semanas
pesquisando, estudando, investigando alguma história em geral. A matéria do dia é a “factual”, aquela que
aconteceu no dia e precisa estar nas mãos do leitor no dia seguinte.
Vinicius: Quero, antes de tudo, fazer aqui um recorte sociológico e temporal para classificar os fatos
jornalísticos das matérias longas, “especiais”; e das matérias “factuais”, curtas. Para tanto, esse recorte
deve incluir, para a diferenciação entre os dois tipos de descrição jornalística, qualificadores – conceitos
que nos permitam objetivar a diferença entre a capacidade de descrição de fatos – implicando uma
diferenciação, de certa forma, ontológica, entre fatos “do dia”, eventos de implicação mais restrita,
aparentemente, as bordas temporais do próprio evento (eventos ou fatos portanto de baixa complexidade,
talvez transcorridos mais rapidamente). As descrições jornalísticas do primeiro tipo não têm nenhuma
análise do fato como parte de processos sociais – isto é, têm menos atenção às condições estruturais dos
fatos - no tempo, e no espaço social. A matéria jornalística “especial”, referente a fatos de alta
complexidade, que às vezes revela o que nunca veio à tona antes. Emerge a ponta de um iceberg.
Andrei: Mesmo as de alta complexidade às vezes pecam na análise. Bom mesmo é transformar
reportagem em livro-reportagem. Aí o espaço é ilimitado. Esse, aliás, é o gênero que mais cresce hoje,
mais do que a ficção.
V: Vejo aqui uma limitação tremenda na prática do jornalismo: 1) fatos são descritos sem ser demonstrada
nenhuma relação com processos sociais etc. que levaram a ele; 2) e sem ser demonstrado o processo
histórico, a seqüência de fatos. Grosso modo, esta é uma “prática da informação sem memória.”
“Informação” fica desconectada da “memória” e das “estruturas sociais e históricas”. Jornalismo daí vira,
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nessa versão menos culta e cuidadosa, uma prática de informação de “eterno presente”. Os eventos não
têm passado, nem ligações estruturais. Eventos ficam condenados a serem recortados temporalmente,
espacialmente, e socialmente.
A: Essa é uma crítica corrente entre os sociólogos que se debruçam sobre a comunicação (sociologia e da
filosofia. A escola de Frankfurt continua influente). O argumento contrário é de que um acidente de
trânsito, por exemplo, é publicado como um fragmento de uma realidade que é acompanhada e registrada
todos os dias no jornal. Nesse caso, uma edição de um jornal diário é desconexa, mas sua história é o
próprio registro da história. Aqui, no entanto, a história continua como uma descrição de fragmentos, de
fatos isolados. Em contrapartida à escola de Frankfurt, surgiram nos anos 60 os movimentos
"culturalistas", alguns dos quais dissidentes de Frankfurt. Morin é um exemplo. Em "A cultura de massa",
nos anos 60, ele escreveu, em um nítido rompimento com Frankfurt, "os mídia são o maior avanço do
século". Outros importantes são Maffesoli, Pièrre Lévy, o Gianni Vattimo. Lévy é uma espécie de herdeiro
a escola de Frankfurt: não abre mão das utopias, das teorias metafísicas. Mas já não tem o pessimismo
de Frankfurt. Contudo, o pessimismo do diagnóstico em Frankfurt é da primeira geração de teóricos e
críticos. Adorno, Horkheimer, Benjamin - um marginal dentro da escola -, Marcuse e os demais
Frankfurtianos foram muitíssimo influenciados pelo clima de entre-guerras e de pós-II guerra. O que fica
de permanente em Frankfurt, mais do que a crítica ideológica da mídia, por exemplo, foi a capacidade de
reflexão sobre a modernidade e seus rumos. "A dialética do esclarecimento" abre espaço para o
bombardeio que a modernidade passou a sofrer: eram pessimistas quanto à idéia de racionalização, razão
etc.
V: Nos últimos 35 anos, Habermas desviou o pessimismo instalado já em Weber, antes e fora de
Frankfurt. Habermas ajudou a dar fim ao pessimismo, criando uma nova dinastia conceitual, que preserva
a crença no iluminismo, na alternativa moderna de construção social. Por isso ele é o grande "opositor"
conceitual da pós-modernidade. Ele resolveu as contradições do conceito de razão que Adorno e Weber
antes dele se meteram – problemas lógicos como a racionalidade levando a processos de massificação,
destruição social, ideologias patológicas. Daí as dissidências. Habermas desfez o conceito de
racionalidade que a primeira geração de Frankfurt apoiou sua análise – uma análise Weberiana, na
verdade. Adorno seguiu o diagnóstico Weberiano de que racionalidade e modernidade envolveriam um
“desencantamento do mundo” inevitável, uma parametrização para toda prática na base de uma
racionalidade estratégica, que destrói valores e símbolos e tradições (um diagnóstico que parece muito
preciso quando olhamos nossa realidade no começo do século XXI). Habermas concorda com esse
diagnóstico, mas busca uma solução dentro do próprio paradigma da modernidade voltando à idéia de
razão, mas uma razão mais ampla, baseada na sua construção “social”, na comunicação - no processo
psicológico de formação do cognitivo – “razão comunicativa:” a força do melhor argumento, a possibilidade
da concordância, a ampliação da esfera pública.
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A: Maffesoli se distancia muito nesse ponto. Para ele, a modernidade abriu mão, ou melhor, negou o que
ele chama de irracionalidades e não-racionalidades que são inerentes à condição humana. Ele é um pósestruturalista.
V: O projeto moderno é sem dúvida um projeto de racionalização. Nesse projeto (que não é só filosófico,
mas molda as práticas econômicas, organizacionais etc. e assumem como modelos princípios de ordem e
eficiência racionalizadas). O emocional fica esquecido, juntamente com o corpo, o sensorial, o sensual, o
enigmático, o irracional – tudo isso foi ignorado nas fundamentações filosóficas, e sobretudo na prática
social moderna. Ênfase demais na mente e na capacidade de definir, ordenar, fixar etc. Derrida denuncia
isso na filosofia. Na sociologia, Bauman.
A: É aí que entra Maffesoli e toda a sociologia culturalista francesa. O homem, como ser que não
consegue explicar a própria existência – temos então a crítica à "modernidade metafísica", que explica o
comportamento e aponta as soluções "de fora", como se um filósofo ou de uma mente pudesse surgir a
explicação e os caminhos da humanidade – e não pode prescindir do corpo, do emocional, do sensorial,
do hedonismo. Talvez a própria tentativa de filosofia já seja um desvio, ou pelo menos uma
impossibilidade. Ou uma coisa sem resultado. Mas Maffesoli vira o fio no sentido contrário - suspeito que
intencionalmente, para demarcar postura. Para ele, a racionalidade está perdida; o estado, como
concepção moderna, falido e desmoralizado. Vem daí a "transfiguração do político", como ele chama. Eis
a diferença fundamental - da qual discordo, inclusive. Boa parte dos filósofos franceses não propõe um
projeto, eles diagnosticam o fracasso da modernidade. São franco-atiradores da filosofia, da sociologia e
da ciência política. Por isso, pós-modernidade. Não é uma construção, mas uma desconstrução. O pós
não é nada. É o que vem depois, e antes de algo.
V: O movimento pós-estruturalista francês parece, em geral, girar em torno da possibilidade de uma
solução através do corpo, no emocional. Em versões mais exacerbadas, na desesperança na idéia de
razão, sugere ou permite sugerir uma espécie de retorno ao “irracional”. (Lefebvre – filósofo menor no
contexto francês – propôs explicitamente uma volta ao emocional como única maneira para um projeto
social integrador...) Entretanto, todas as estruturas sociais, o viver socialmente, são construções
comunicativas, são baseadas em interpretações e em raciocínios. Qualquer processo de emancipação
(ou seja, lá como se queira chamar) precisa passar, ser produzido na dimensão da comunicação! Não
quero aqui repetir a velha separação “mente-corpo”. Na verdade o reencontro com o irracional pode servir
de fundamento para interpretações que impliquem em práticas integradoras - mas essas só podem vir
através da comunicação desses conteúdos - portanto de uma passagem do irracional e das qualidades do
irracional para o mundo da palavra. Não chega a soar patético que os maiores intelectuais do nosso e de
outros tempos tenham dividido a concepção de sociedade entre sociedade racional e sociedade irracional
ou não-racional? Isso parece vir desde os gregos. Incrível que tudo se reduza, em essência, na suposta
dicotomia entre corpo e mente.
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A: A critica pós-moderna é muito necessária: ela não se propõe a nada, mas ela desloca toda a
perspectiva. É só assim que se pode encará-la com seriedade, como uma crítica, e não como uma
alternativa palpável de poder. Não há essa alternativa. Ao prestar atenção no que ficou no limbo, nos
espaços escuros abandonados pela razão e pela concepção de um mundo racionalizado, de ações
controladas, ela ensina muita coisa.
V: Só que parece ainda faltar uma sistematização que demonstre a importância do irracional, da
racionalidade substantiva, do emocional em termos de prática social. Essa parece ser a grande lacuna.
Quero dizer: o potencial desse resgate não como um projeto “total” (aqui cairíamos de novo nas
totalizações da razão moderna) mas como práticas, micro-práticas, práticas cotidianas alimentadas do
irracional, do emocional, do substantivo etc. Essa passagem da crítica pós-moderna para a prática pósmoderna (que não conseguiu, fique bem claro, destruir as estruturas sociais produzidas na modernidade)
é que não está bem explicada. Nessa passagem, todo tipo de esquema interpretativo para resgatar esses
valores e esse universo objetivo esquecido deve ser posto em prática via comunicação. E talvez a
comunicação pulverizada via Internet seja um caminho.
A: Voltando ao Maffesoli, qual é a alternativa, o projeto? O projeto vem sendo moldado pela tribalização
global do mundo. É espontâneo - e por isso facilmente confundível com o anarquismo. Mas não é
anarquista à medida que não é um projeto ideológico. Para Maffesoli, o homem encontra soluções,
sobrevive, luta, tem prazer, conquista, enriquece, ajuda os outros, respeita ou desrespeita os direitos
humanos, crê ou descrê apesar do estado democrático de direito. Um movimento espontâneo, paralelo as
instituições. É preciso ter em mente que a geração dos críticos de Frankfurt, de certa forma, ainda é
influenciada pela organização de estado moderno que levou ao holocausto, por exemplo. É
impressionante o quanto, conceitualmente, autores vinculados de alguma forma à escola de Frankfurt
ainda são influenciados pelo pós-guerra. Nisso, Frankfurt e os culturalistas se reaproximam, como dois
grupos que caminham em círculo e se encontram. Eles descrêem, lutam, abominam o mesmo estado que,
em nome da "modernidade", foi capaz de montar indústrias de extermínio.
V: Eles estavam horrorizados com essa organização. Acharam-na como fruto direto das práticas
racionalizadoras que organizaram a esfera da produção, do estado, que moldaram valores e descartaram
outros. Eles vêm no holocausto e na industrialização a mesma lógica, as mesmas técnicas de
organização, de produção /extermínio em massa. (Mais que isso, temem, com razão, a idéia de “universal”
e de que um sujeito possa expressar, e eventualmente impor, esse “universal”). Só que esse raciocínio
parece antes marcar só um “fugir da razão”, de uma idéia de racionalidade, e de uma capacidade moldada
pelos séculos. Esse “ignorar da razão” na verdade é perigoso... Sem falar que é impossível, já que não se
pode desligar essas capacidades cognitivas socialmente, historicamente produzidas, reproduzidas a todo
o momento dentro de nossas cabeças, assim, só pela vontade.
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A: Talvez o primeiro a conseguir se desligar dessa questão com maestria foi Macluhan, que levou a
discussão sobre comunicação e suas conseqüências sociológicas para outro foco, menos político, muito
técnico, mas não menos verdadeiro. Esse é o brilhantismo de Macluhan. Ele não entra no rol dos pósmodernos. Enveredou pela comunicação e, nos anos 60, descobriu que a sociedade em poucas décadas
construiria redes de comunicação global que destruiriam os conceitos de fronteiras e de espaço tais como
os conhecíamos. Macluhan é a chave do atual.
V: Eu sinto que a nossa discussão só repetiu ou um mesmo exercício lógico de leitura de “fatos” ou
“seqüências históricas” mais ou menos objetivos, ou um pré-conhecimento dos passos de análises
anteriores, outros raciocínios publicados 1000 vezes. (O que não é ruim - é um esforço de síntese).
Pergunto-me se esses dilemas estão no mundo aí fora mesmo, ou são (re)criações nossas, a partir de
leituras anteriores, já que a mente não pode se desligar de significados e descrições já produzidos antes já que ela é nutrida, acontece, sob forma desses significados ditos tantas vezes.
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