UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
MARIA ANTÔNIA DE SOUZA
ANÁLISE CRÍTICA DAS DECISÕES DO JUDICIÁRIO SOBRE A
EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA BENEFICIÁRIOS DA REFORMA
AGRÁRIA
CURITIBA
2012
MARIA ANTÔNIA DE SOUZA
ANÁLISE CRÍTICA DAS DECISÕES DO JUDICIÁRIO SOBRE A
EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA BENEFICIÁRIOS DA REFORMA
AGRÁRIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Curso de Direito, da Faculdade de Ciências
Jurídicas, da Universidade Tuiuti do Paraná,
como requisito como obtenção do grau de
bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Pinto Rabello
Filho.
CURITIBA
2012
TERMO DE APROVAÇÃO
Maria Antônia de Souza
ANÁLISE CRÍTICA DAS DECISÕES DO JUDICIÁRIO SOBRE A EDUCAÇÃO
SUPERIOR PARA BENEFICIÁRIOS DA REFORMA AGRÁRIA
Esta monografia foi julgada e aprovada para obtenção do diploma de bacharel em
Direito, Curso de Direito, Universidade Tuiuti do Paraná.
Curitiba,
junho de 2012.
Curso de Direito
Universidade Tuiuti do Paraná
___________________________
Prof. Dr. Eduardo de Oliveira Leite
Coordenador do Núcleo de Pesquisa da UTP
_______________________________________
Orientador: Prof. Dr. Francisco Pinto Rabello Filho
Faculdade de Ciências Jurídicas da UTP
________________________________________
Prof. MSc. Manoel Caetano Ferreira Filho
Faculdade de Direito – Universidade Federal do Paraná
________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Said Staut Júnior
Faculdade de Ciências Jurídicas da UTP
DEDICATÓRIA
A todos os estudantes que se esforçam para ampliar a “sua caixinha de ferramentas
do conhecimento”, tal como diz o educador Miguel Arroyo.
Aos trabalhadores que lutam cotidianamente na construção de um modo de vida
melhor.
Ao Renan, meu filho, que, aos cinco anos de idade, demonstra respeito, bondade e
gentileza para com as pessoas, mesmo sem saber qual é o significado filosófico e
histórico desses conceitos.
Ao Cosmos, por tanta energia destinada a mim. Energia que me fez seguir até o fim
do curso de Direito, em meio a tantas outras atribuições. E, seguindo o exemplo de
trabalho dos meus pais, aprendi que não se deve desistir no meio do caminho, por
mais longo que seja o trajeto.
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuíram na materialização dos meus pensamentos sobre a
educação, o direito e a justiça.
O orientador é pessoa que faz o orientando caminhar para atingir um
objetivo. Agradeço, portanto, ao Prof. Dr. Rabello, pelo aprendizado possibilitado em
suas aulas e na orientação deste trabalho.
À família, em especial ao João e ao Renan, pela força e dedicação
exclusivas para que a mãe, esposa, professora e pesquisadora concluísse a sua
“passagem” pelos bancos escolares.
À mãe e ao pai, Aparecida e José, pela confiança depositada na filha e pelo
inesquecível ensinamento da dedicação ao trabalho.
À Miriam e Maria Porfíria, pela amizade e ajuda oferecida na realização da
graduação. Ambas deram apoio irrestrito para que eu pudesse concluir o curso,
mesmo com tantas ausências às aulas.
À Rosane Kolotelo, pelo apoio e incentivo.
Aos colegas do PPGEd – Mestrado e Doutorado em Educação, pela
colaboração, em especial à Profa. Dra. Maria Arlete Rosa e à Doutoranda Maria
Iolanda Fontana.
Aos colegas da UEPG, em especial à Profa. Dra. Esméria de Lourdes
Saveli, Profa. Dra. Márcia Barbosa da Silva Profa. Dra. Rejane Aurora Mion.
Como escreve Paulo Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém aprende
sozinho”. Tento fazer valer essa máxima no meu dia a dia na universidade, seja
como aluna, seja como professora.
A Constituição representa um momento de redefinição
das relações políticas e sociais desenvolvidas no seio de
uma determinada formação social [...] A Constituição
opera força normativa, vinculando, sempre, positivamente
ou negativamente, os Poderes Públicos.
(RABELLO FILHO, 2002, p. 46-47)
RESUMO
O objetivo deste trabalho é caracterizar as decisões do Judiciário sobre os cursos de
educação superior para os beneficiários da reforma agrária no Brasil. Esses cursos
vinculam-se ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, criado em
1998 junto ao Ministério de Desenvolvimento Agrário. As primeiras experiências de
educação superior foram com a Pedagogia da Terra. Depois surgiram cursos de
Agronomia, Comunicação, Geografia, História, Direito, Medicina Veterinária entre
muitos outros. Neste trabalho selecionamos três casos para análise, a saber: 1) o
curso de Agronomia oferecido pela Universidade Federal de Sergipe em parceria
com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), cuja legalidade
foi questionada pela Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado de Sergipe,
por meio de ação civil pública. 2) o curso de Direito ofertado pela Universidade
Federal de Goiás em parceria com o INCRA. A legalidade e a finalidade do curso
foram questionadas pelo Ministério Público Federal de Goiás. 3) o curso de Medicina
Veterinária desenvolvido na Universidade Federal de Pelotas/RS, também em
parceria com o INCRA. A legalidade do curso foi questionada pelo Ministério Público
Federal da Regional de Pelotas. Os três casos foram escolhidos em função das
polêmicas geradas no âmbito judicial e pelo trâmite processual longo e denso de
cada caso. A técnica central de coleta de dados foi o levantamento de documentos
referentes aos três casos, nos respectivos estados. O tipo de pesquisa é descritivo.
Os conceitos centrais são: princípios e princípios constitucionais; luta pela educação
no contexto da luta pela terra. A investigação toma como referência as contradições
inerentes ao modo de produção capitalista, a exemplo da luta política (e de classe)
travada na busca pela efetivação de direitos sociais (educação, trabalho, moradia,
saúde, alimentação). A hipótese inicial da pesquisa era de que o positivismo jurídico
imperava nas decisões do Poder Judiciário. Entretanto, ao final da pesquisa foi
possível concluir que as características de positivismo jurídico são encontradas
muito mais no Ministério Público Federal do que nas decisões do Judiciário. Os
princípios constitucionais presentes nas ações civis públicas são: legalidade,
isonomia (igualdade), proporcionalidade e razoabilidade. Esses princípios recebem
tratamento diverso no âmbito do Poder Judiciário, com grau significativo de
criticidade em relação a questões sociais brasileiras.
Palavras-chave: princípios constitucionais; educação superior; beneficiários da
reforma agrária.
LISTA DE SIGLAS
AEASE
Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado de Sergipe
AGU
Advocacia Geral da União
ANCA
Associação Nacional de Cooperação Agrícola
CEFFAs
Centros Familiares de Formação por Alternância
CONSED
Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação
CONTAG
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT
Comissão Pastoral da Terra
CPT
Comissão Pastoral da Terra
FAPESE
Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe
FETRAF
Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
FNDE
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
FUNAPE
Fundação de Apoio à Pesquisa
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INEP
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
MAB
Movimento dos Atingidos por Barragens
MDA
Ministério de Desenvolvimento Agrário
MMC
Movimento das Mulheres Camponesas;
MOBRAL
Movimento Brasileiro de Alfabetização
MPA
Movimento dos Pequenos Agricultores
MPF
Ministério Público Federal
MST
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PJR
Pastoral da Juventude Rural
PROCAMPO Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em
Educação do Campo
PRONERA
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
PROQUERA Projeto de Qualificação em Engenharia Agronômica para Jovens e
Adultos dos Assentamentos de Reforma Agrária da Região Nordeste
RESAB
Rede Educacional do Semi-Árido Brasileiro.
SEB
Secretaria de Educação Básica
SECAD
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SECADI
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão
SEED
Secretaria de Estado da Educação
SEESP
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo
SESu
Secretaria de Educação Superior
SETEC
Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
STF
Supremo Tribunal Federal
STJ
Superior Tribunal de Justiça
TAC
Técnico em Administração Cooperativa
TRF
Tribunal Regional Federal
TRF1
Tribunal Regional Federal da 1ª Região
TRF4
Tribunal Regional Federal da 4ª Região
TRF5
Tribunal Regional Federal da 5ª Região
UFG
Universidade Federal de Goiás
UFS
Universidade Federal de Sergipe
UFPEL
Universidade Federal de Pelotas
UNDIME
União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – CURSOS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA BENEFICIÁRIOS DA
REFORMA AGRÁRIA ..........................................................................42
FIGURA 2 – FORMATURA DA 1ª TURMA DE AGRONOMIA – UFS, 2/8/2008 .......49
FIGURA 3 – SÍMBOLO DO CURSO DE DIREITO DA UFG, REFORMA AGRÁRIA.66
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - ESTRUTURA FUNDIÁRIA E ÍNDICE DE GINI: 1992, 1998 e 2003 ... 17
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................12
2 EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA BENEFICIÁRIOS DA REFORMA AGRÁRIA ....25
2.1 A LUTA PELA EDUCAÇÃO ENTRE OS BENEFICIÁRIOS DA REFORMA
AGRÁRIA............................................................................................................25
2.2 O PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA ...........38
2.3 AS EXPERIÊNCIAS ESTUDADAS: Universidade Federal de Goiás (UFG),
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Universidade Federal do Sergipe
(UFS) ..................................................................................................................43
3
AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DECISÃO JUDICIAL E PRINCIPIOS
CONSTITUCIONAIS: O CASO DO CURSO DE AGRONOMIA.........................50
4
AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DECISÃO JUDICIAL E PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS: O CASO DO CURSO DE DIREITO.................................67
5
AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DECISÃO JUDICIAL E PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS: O CASO DO CURSO DE MEDICINA VETERINÁRIA ...85
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................100
REFERÊNCIAS.......................................................................................................105
12
1 INTRODUÇÃO
“[...] Quem somos nós, quem é cada um de nós
senão uma combinatória de experiências, de
informações, de leituras, de imaginações?”
(Italo Calvino, 1990, p. 138)
A sociedade brasileira participou e provocou inúmeras mudanças na esfera
dos direitos, particularmente a partir da segunda metade do século XX. É bem
verdade que o Brasil historicamente vivenciou lutas e tensões sociais decorrentes da
expressiva concentração da renda e consequente desigualdade social. O exemplo
notório da ocorrência de mudanças na constituição e efetivação de direitos no Brasil
é a educação. No final do século XIX, o Brasil contava com 80% da população
analfabeta. Rui Barbosa foi um dos juristas e jornalistas que enfatizou a importância
da educação e da escolarização para o desenvolvimento do país.
Em 2009, o Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE) registrou
9,7% de pessoas analfabetas no Brasil, um contingente de 14 milhões de pessoas.
O total da população do país que possui idade de 15 anos ou mais é de 145.385
milhões. Dessas pessoas, 10,5% não têm instrução; 2,1% têm um ano de estudo;
3,3% têm 2 anos de estudo; 4,4% têm 3 anos e 10,6% têm 4 anos de estudo. Entre
os moradores do espaço urbano, são 16,7% de analfabetos funcionais. Dentre os
moradores do espaço rural, são 40% as pessoas consideradas analfabetas
funcionais.
A média de anos de estudo da população com 10 anos ou mais é de 8,5, ou
seja, praticamente com o Ensino Fundamental concluído. Entre os moradores do
campo, essa média é de cinco anos de estudos. Dos 23.034 milhões de habitantes
13
que possuem idade entre 18 e 24 anos, 8.722 milhões (37,9%) possuem 11 anos de
estudo (3° ano do ensino médio concluído). Verifica-se a desigualdade gerada
também pela fragilidade educacional. Cria-se um conjunto de inferiorizados, como
escreve Arroyo (2012), e inúmeras tentativas para mantê-los à margem da história.
Esses dados revelam que a escolaridade ainda é um dos principais desafios
da sociedade brasileira. Entretanto, mais do que escolarizar, é fundamental que a
formação educacional constitua elemento para a emancipação política e social de
um povo, a exemplo do que defendia Paulo Freire e tantos outros educadores da
América Latina, como é o caso de José Martí em Cuba. É fundamental que a
educação seja um dos instrumentais para a transformação das condições de
subalternidade e de desigualdades que historicamente marcam a sociedade
brasileira.
O texto constitucional da República Federativa do Brasil expressa, no artigo
6°, que a educação é um dos direitos sociais. No artigo 205 do referido texto está
disposto que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade [...]”. E, no artigo 206,
Caput e Inciso I está expresso que “O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola.”.
Tomando como referência o texto constitucional e a emergência das
experiências em Educação Superior construídas em colaboração entre Universidade
e Movimento Social, este trabalho dá ênfase às polêmicas jurídicas geradas em três
cursos superiores para beneficiários da reforma agrária. Denomina-se polêmica
jurídica o fato de princípios constitucionais serem utilizados ora para a defesa
desses cursos, ora para a acusação de inconstitucionalidade dos mesmos.
14
A atenção foi voltada, primeiramente, à análise dos argumentos jurídicos
utilizados pelo Ministério Público ao ingressar com Ação Civil Pública contrária aos
cursos superiores para beneficiários da reforma agrária. É o caso específico do
ocorrido no Estado de Goiás, com o curso de Direito, e no Rio Grande do Sul, com o
curso de Medicina Veterinária. Nessa mesma linha de polêmica jurídica, foi
analisado o conjunto de argumentos jurídicos apresentados pela Associação dos
Engenheiros Agrônomos do Estado de Sergipe contra o curso de Agronomia. Os
três cursos são desenvolvidos em universidade federais, em parceria com o Instituto
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), por meio de convênios que articulam
três partes: Universidade, INCRA (governo federal); e, indiretamente, o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por estar presente nos assentamentos
de reforma agrária.
A Ação Civil Pública, disciplinada pela Lei 7.347/1985, tem sido o
instrumental utilizado pelo MPF, conforme Inciso I, e pelas Associações, de acordo
com o artigo 5°, Inciso V, alíneas “a” e “b”, da referida lei. Essas ações questionam a
legalidade dos cursos de educação superior destinados aos assentados.
Num segundo momento da pesquisa, a atenção esteve direcionada à
identificação dos princípios constitucionais utilizados pelos juízes na análise das
Ações Civis Públicas. A investigação foi desenvolvida com ênfase na perspectiva
interdisciplinar, tendo como referência o que escreveu Morin (1996, p. 335): “Uma
teoria não é o conhecimento; ela permite o conhecimento. Uma teoria não é uma
chegada; é a possibilidade de uma partida”.
Duas compreensões teóricas são importantes nesta investigação, a saber:
1) O conceito de princípio, utilizado à luz do que escreve Rabello Filho
(2002, p. 37):
15
[...] os princípios constitucionais têm posição preeminente, não só em
relação à própria Constituição como no que concerne a todo o
sistema jurídico nacional. Com o pós-positivismo [...] os princípios
ficaram postos em tão elevado pedestal que sua luz ilumina,
sobranceira, todo o universo jurídico. Normas da maior e mais alta
eficácia, sua supremacia em relação a todo o ordenamento jurídico é
hodiernamente matiz que não se pode seriamente questionar.
2) Refere-se ao entendimento de que a luta pela educação e pela reforma
agrária são formas de pressão dos movimentos sociais para a efetivação dos
direitos. É possível afirmar que as lutas dos movimentos sociais resultam em
mudanças no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre com o reconhecimento
de direitos sociais, tal qual explícito no artigo 6° da Constituição da República
Federativa do Brasil; ou o reconhecimento da união entre as pessoas que optam por
relação sexual com indivíduos de mesmo sexo; ou também a definição da função
social da propriedade rural, ainda que com pequena repercussão para fins da
“verdadeira” reforma agrária.
Para fins da contextualização do problema aqui investigado, faz-se
necessária uma retrospectiva das práticas sociais geradoras de direitos. A história
brasileira, em especial a partir da década de 1930, foi marcada por lutas populares
urbanas, dentre as quais a demanda pelo acesso e permanência na escola. Foram
reivindicações pela construção de prédios escolares públicos. Posteriormente, a
partir das décadas de 1940 e 1950, ocorreram lutas pela ampliação da oferta
educacional, mediante ações com vistas a um maior número de classes nas escolas,
bem como professores com melhor formação e conteúdos com significado social.
Nas décadas de 1960 a 1980, em meio ao período ditatorial, o país
vivenciou dois tipos de movimentos educacionais. Primeiro, no início de 1960, Paulo
Freire estava à frente do debate educacional. Desenvolveu a concepção educacional
dialógica que fundamenta a ação de diversos movimentos de trabalhadores. A
16
educação seria uma das reformas de base a serem efetivadas em meados do século
XX. Segundo, com o ingresso no período ditatorial, as reformas de base foram
praticamente abolidas da pauta governamental. Entrou em cena um movimento
conservador no plano educacional. O exemplo claro é o Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral), que, por meio de cartilhas, proliferou um processo de
alfabetização mecânico em toda a sociedade brasileira.
No final do século XX, em meio às lutas pela abertura democrática e,
portanto, pelo fim da ditadura, alguns movimentos tiveram destaque na conjuntura
política, como é o caso das greves dos trabalhadores das montadoras de
automóveis, as ações do MST e as manifestações do Fórum em Defesa da Escola
Pública.
Em 1988, foi aprovada a Constituição da República Federativa do Brasil,
cujas características foram de “constituição cidadã” e “constituição social”. De fato,
em relação aos outros textos constitucionais, houve a exposição de uma diversidade
de direitos e garantias sociais. Todos eles guardam relação com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e também demonstram “atendimento” às lutas
sociais construídas durante todo o século XX, em particular às demandas das
classes trabalhadoras.
Assim, os direitos vão sendo positivados no texto constitucional, ao passo
que sua efetivação depende, em muitos casos, da forte atuação da sociedade civil
organizada.
A mesma linha de raciocínio pode ser desenvolvida sobre as lutas pela terra.
De Quilombo dos Palmares ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
uma luta contra o latifúndio que constitui marca histórico-estrutural do Brasil. Em
1850, com a Lei de Terras, somente seria proprietário de terra aquele que a
17
adquirisse por meio da compra ou que tivesse a propriedade legitimada. Contudo,
nesse período a sociedade era escravocrata, tendo a abolição dos escravos ocorrida
em 1888. A propriedade da terra continuou concentrada em poucas mãos, assim
como nos dias atuais. A sociedade brasileira conta cerca 33.104 imóveis com mais
de 2.000 hectares e 3.971.255 pequenas propriedades. Aproximadamente 1% da
população brasileira detém 46% das terras agricultáveis, expressando, assim, a
extrema concentração da terra no país.
TABELA 1 – Estrutura fundiária e Índice de Gini – 1992, 1998 e 2003 1
1
A tabela está disponível no site – Atlas da Questão Agrária, a saber:
Hhttp://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/estrutura_fundiaria.htmH. O acesso foi em 30/10/2011, 20h.
18
Na Tabela 1, constata-se que o número de imóveis com área 6.000 e
100.000 hectares sofreu diminuição. Mas, no geral aumentou o número de grandes
propriedades, passando de 0,65% dos imóveis no ano de 1992 para 0,77% no ano
de 2003. O número de imóveis pequenos aumentou, mas o conjunto da área
ocupada por eles sofreu leve acréscimo. O Índice de Gini revela ainda a alta
concentração da terra no país.
Os processos de concentração da terra são responsáveis pela migração
campo-cidade, tanto quanto as políticas de “modernização da agricultura”,
desenvolvidas a partir dos anos de 1960 no Brasil. O estado do Paraná é exemplo,
assim como muitos outros, desse processo migratório. Pequenos agricultores com
dívidas oriundas da aquisição de maquinários agrícolas entregaram as terras ao
setor financeiro, em pagamento a essas dívidas. As políticas de preços agrícolas
são decisivas na saída dos trabalhadores do campo em direção às cidades. De outro
lado, a juventude também deixa o campo em direção às cidades em busca de
estudo, haja vista a precariedade da oferta educacional por parte do Poder Público.
Em 1991, o Estado do Paraná possuía um dos maiores latifúndios, com
cerca de 4 milhões de hectares de terra. 2 Em 2012, o Estado do Paraná possui em
torno de 330 assentamentos da reforma agrária. Neles estão localizadas 99 escolas
públicas estaduais. A maior parte das escolas oferece os Anos Iniciais do Ensino
Fundamental. Para cursar o Ensino Médio, os alunos têm que utilizar o transporte
escolar e estudar nas escolas localizadas nos núcleos urbanos. Alguns
assentamentos são responsáveis por boa parte da produção alimentícia que chega
às mesas dos brasileiros, como é o caso do Assentamento Pontal do Tigre,
município de Querência do Norte/PR, que produz 33% do arroz do Estado; ou o
2
Maiores detalhes são encontrados na dissertação de Jeinni Kelly Pereira Puziol (2012).
19
assentamento Santa Maria, no município de Paranacity/PR, que tem terra e trabalho
coletivos e garante boa parte da produção de alimentos orgânicos na região.
Também, pode ser citado o assentamento Ireno Alves, no município de Rio Bonito
do Iguaçu/PR, que foi o responsável pelo crescimento da localidade a partir do final
da década de 1990, com desapropriação de parte de um dos latifúndios
improdutivos do Estado do Paraná.
No cenário de concentração da terra, migração de trabalhadores do campo
em direção às cidades, constantes desempregos e conflitos em torno da terra,
surgem as primeiras ocupações do MST, no ano de 1978. Dez anos após as
primeiras ocupações, em 1987, o referido Movimento cria um Setor de Educação 3 ,
que ficou responsável por fortalecer as lutas pela escola e pela continuidade dos
estudos. Passados outros dez anos, em 1998, realizou-se em Luziânia a I
Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo. A partir dos debates
nesse espaço público – conferência − foi criado o Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (PRONERA), cuja responsabilidade é a criação dos cursos para
beneficiários da reforma agrária, por meio de convênios firmados entre o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária, universidades públicas e os
movimentos sociais.
Os movimentos sociais do campo sempre geraram inquietação jurídica e
política
na
sociedade,
mediante
a
tendência
de
serem
descritos
como
“transgressores da ordem”. Entretanto, como escreveu Sampaio (2010, p. 404), a
criação de uma articulação nacional de advogados simpatizantes da causa da
3
Souza (2006a) em livro oriundo da tese de doutorado em Educação, defendida em fevereiro de
1999, na UNICAMP, traz a história do MST, da cooperação agrícola nos assentamentos e da luta por
educação. Na obra publicada em 2006, Souza dá ênfase à construção das propostas e práticas
pedagógicas do MST.
20
reforma agrária – Rede Nacional de Advogados Populares – contribuiu para a
alteração da
[...] jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em relação aos crimes de
‘esbulho possessório’ e ‘formação de bando e quadrilha’, em que eram
indiciados sistematicamente os organizadores das ocupações de terra.
Atualmente a Justiça não mais enquadra essas ações como figuras
delituosas, pois entende que a finalidade de seus autores não é a de
esbulhar um legítimo proprietário, mas pressionar o governo pela execução
da reforma agrária.
É nesse cenário de lutas populares que está o problema e o objetivo geral
deste trabalho de conclusão de curso, a saber: Quais são as decisões do Judiciário
sobre ações civis públicas contrárias aos cursos de Educação Superior para os
beneficiários da reforma agrária?
Os objetivos específicos resumem-se no que segue: a) Caracterizar a
origem de três experiências de Educação Superior ofertada aos beneficiários da
reforma agrária; b) Identificar os princípios constitucionais e os argumentos jurídicos
que estão presentes nas ações civis públicas contrárias aos cursos de Educação
Superior para beneficiários da reforma agrária.
Para responder a questão central e atingir os objetivos propostos, foi
utilizada a abordagem qualitativa de pesquisa, mediante análise dos seguintes
documentos objetos de investigação: Conteúdo das ações civis públicas. Sentença
proferida pelo Juízo em 1° Grau. Pedido de antecipação de tutela e o respectivo
julgamento. Pedido de suspensão da tutela antecipada e o respectivo julgamento. As
decisões proferidas nos Tribunais Regionais Federais. Por fim, o documento,
extrato, fornecido pelo Judiciário que demonstra o movimento dos processos.
A justificativa para a escolha do tema e do problema ora investigado
assenta-se nos seguintes fatores:
21
1)
Lacuna na área do conhecimento. É possível afirmar que, embora haja
espaço para discussão do Direito Agrário nos cursos de Direito, a problematização
das questões agrárias e fundiárias deixam de ser articuladas aos direitos sociais,
como saúde, educação, moradia, trabalho etc. Trata-se o direito agrário do ponto de
vista da propriedade e da sua função social. Entretanto, são inúmeros os autores, de
diversas áreas do conhecimento, que afirmam que a reforma agrária somente será
possível no Brasil quando estiver articulada com a efetivação dos direitos sociais. É
o que se problematiza nesta pesquisa: a educação superior demandada pelos
movimentos sociais do campo e ofertada pelas universidades públicas federais.
2)
Atuação profissional na área. Desde 1989, tenho investigado a
educação escolar entre os beneficiários da reforma agrária. A partir de 2002, passei
a participar efetivamente dos debates sobre educação do campo no Estado do
Paraná e no Brasil. Desse modo, a temática e a problemática em questão articulamse com as pesquisas que desenvolvo na área educacional.
3)
Interesse pessoal. Mais do que atuação profissional, sou filha de
pequenos proprietários, aposentados com salário mínimo, que até a presente data
moram e trabalham com a terra. Eles não tiveram oportunidade de estudo numa
época em que as escolas eram em número reduzido e muito distantes das
localidades rurais onde moravam. Assim, muito cedo se dedicaram ao trabalho
agrícola, enfrentando todas as intempéries climáticas e conjunturais. Pessoas como
meus pais foram excluídas do processo formativo escolar. Essa realidade é ainda
presente na sociedade brasileira e muito expressiva nas áreas de assentamentos
rurais. Dados do I Censo da Reforma Agrária, realizado em 1996, demonstraram o
baixo nível de escolaridade dos beneficiários da reforma agrária, bem como a alta
taxa de analfabetismo.
22
Por que é importante investigar esse problema no âmbito do curso de
Direito? Primeiro, porque o Judiciário está envolto a diversos casos que têm em
cena os beneficiários da reforma agrária e a luta pelo acesso à Educação Superior.
Esses casos tiveram origem a partir das experiências de Educação Superior criadas
na primeira década do século XXI, haja vista estarem vinculados ao PRONERA.
Segundo, porque praticamente inexistem estudos sobre este tema e problema.
Investigações de mestrado versando sobre o assunto, na área jurídica, estão em
andamento no Estado de Goiás e no Distrito Federal.
Terceiro, porque é observável uma divergência no âmbito do Judiciário no
trato do problema em foco. Exemplo disso é a decisão proferida em 27 de abril de
2009, no STF, pelo Ministro Gilmar Mendes. Ele indeferiu o pedido de suspensão de
tutela antecipada de interesse do INCRA no que se refere ao funcionamento do
curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Pelotas, ofertado aos
filhos e beneficiários da reforma agrária. Por outro lado, no âmbito do STJ,
analisando Recurso Especial, o Ministro Relator Herman Benjamin pronunciou-se
favorável à limitação dos efeitos da tutela antecipada pela Corte de origem. Com
essa decisão, o curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Pelotas,
que estava interrompido, voltou a funcionar.
Por fim, cabe dizer que ações civis públicas têm sido elaboradas a fim de
impedir o funcionamento dos cursos superiores para beneficiários da reforma agrária
no Brasil. Nos Estados do Rio Grande do Sul e de Goiás, o Ministério Público
Federal (MPF) foi o autor das ações civis públicas, respectivamente quanto aos
cursos de Medicina Veterinária e Direito. No Estado de Sergipe, a Associação dos
Engenheiros Agrônomos do Estado de Sergipe foi a responsável pela ação civil
23
pública contrária ao funcionamento do curso de Agronomia, na Universidade Federal
de Sergipe, também para os beneficiários da reforma agrária.
Em face disso, é importante estudar o tema no Direito, haja vista que a ação
civil pública é para ser um meio de questionamento de direitos em prol da sociedade
civil, e não contra ela, conforme dispõe o artigo 1° da Lei n° 7.347 de 24 de julho de
1985.
Dessa forma, justifica-se o presente trabalho pelo seu caráter inédito e por
sua relevância para a problematização de dois condicionantes estruturais históricos
que afligem o Brasil desde o seu “nascimento”. São eles: a baixa escolaridade do
povo brasileiro e a alta concentração da terra no país. Esses dois problemas,
quando analisados sob a ótica da Justiça, têm gerado polêmicas infindáveis e todos
os argumentos, tantos os favoráveis quanto os contrários, fazem uso dos princípios
constitucionais para dizer da “legalidade” ou da “ilegalidade” dos cursos.
A fundamentação teórica da pesquisa reside no âmbito do Direito
Constitucional. Serão evidenciados os princípios constitucionais que constituem
fonte para a argumentação nas ações civis públicas; nas decisões da justiça de 1°
grau e de 2° grau, bem como em questões que chegaram ao STF e ao STJ.
Este trabalho está estruturado em quatro capítulos, a saber: O primeiro traz
uma caracterização da educação do campo no Brasil, cenário em que se localiza o
PRONERA e os cursos ora estudados. O segundo descreve a ação civil pública
proposta pela Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado de Sergipe e o
trâmite no judiciário, apontando um quadro dos princípios constitucionais que
fundamentam as ações. O terceiro capítulo traz a descrição da ação civil pública
proposta pelo MPF de Goiás, contra o curso de Direito na Universidade Federal de
Goiás e caracteriza o trâmite no judiciário, indicando os princípios alegados nas
24
peças. O quarto capítulo apresenta a ação civil pública do MPF de Pelotas contra a
UFPEL, e o funcionamento do curso de Medicina Veterinária, salientando os
diversos princípios constitucionais arguidos em sede de ação, contestação,
apelação, recursos e pedidos de antecipação de tutela. Por fim, as considerações
finais marcadas pela indicação de diversos questionamentos que perduram após o
estudo de tipo descritivo, com ensaios analíticos.
Espera-se que o trabalho possa suscitar o interesse dos profissionais do
Direito que estão envolvidos nas ações civis públicas ou nos processos decisórios
no âmbito do Judiciário, e que a atenção esteja voltada à interpretação crítica das
normas e princípios constitucionais.
Importante destacar que a existência dos cursos superiores para os
beneficiários da reforma agrária vem ampliar as possibilidades de o país ter, no
futuro, uma verdadeira reforma agrária. Até o presente momento, a sociedade
brasileira, com muita luta, conseguiu que o Poder Público desenvolvesse programas
ligados aos direitos sociais. Há que se pensar na consolidação de políticas de
Estado, que tenham continuidade na sociedade. É assim que o Decreto Presidencial
de 2010 4 foi publicado com o intuito de dar consistência a uma política de Estado no
âmbito dos assentamentos de reforma agrária e dos pequenos agricultores do país.
4
Decreto n° 7.352 de 4 de novembro de 2010.
25
2 EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA BENEFICIÁRIOS DA REFORMA AGRÁRIA
O objetivo deste capítulo é caracterizar a luta pela educação entre os
beneficiários da reforma agrária no Brasil. Para isso, é fundamental uma breve
menção à história da educação do campo no país que, por sua vez, emerge das
lutas empreendidas, num primeiro momento, pelos trabalhadores rurais sem-terra. 5
Posteriormente à menção da luta pela educação entre os sem-terra, será descrita a
emergência do PRONERA, dentro do qual têm sido efetivados cursos superiores
para beneficiários da reforma agrária.
2.1 A LUTA PELA EDUCAÇÃO ENTRE OS BENEFICIÁRIOS DA REFORMA
AGRÁRIA
A compreensão da luta pela educação entre os beneficiários da reforma
agrária passa pela análise das seguintes perguntas: 1) Como ocorreu a organização
do MST? 2) Quais são os principais motivos que desencadearam a luta pela
educação no contexto da luta pela terra? 3) Quais articulações e parcerias foram
feitas durante a construção da então denominada educação do campo? 4) Quais
são as conquistas e os desafios que acompanham as experiências educativas, em
especial aquelas efetivadas no âmbito da educação superior? A resposta a tais
questões implica uma retrospectiva no tempo, retornando aos acontecimentos da
década de 1980, para não dizer ao século XIX, quando diversas ideias sobre a
escolaridade dos trabalhadores do campo estavam em debate.
5
Sobre o assunto movimentos sociais e educação do campo, ver obra de Souza (2010).
26
Na década de 1980, conjuntura em que a migração campo-cidade, embora
continuasse, já havia invertido a realidade populacional brasileira, muitas iniciativas
políticas interferiram na então denominada educação rural. Será a partir do final dos
anos de 1970 que um fenômeno político (fechamento e nucleação de escolas)
impactará no estudo das crianças e jovens em idade escolar. A partir desse período,
muitas escolas públicas rurais (estaduais e municipais) foram fechadas sob a
alegação de que o número de alunos não era suficiente para a manutenção das
turmas e classes escolares.
Houve o início de um processo denominado nucleação ou consolidação de
escolas rurais. As escolas que eram isoladas e unidocentes foram fechadas e deram
lugar à escola denominada nucleada. Essa experiência havia sido desenvolvida nos
Estados Unidos, na década de 1960, a exemplo do que relatou Pereira (2002) a
partir da sua tese de doutorado.
Muitas escolas foram fechadas e não havia transporte escolar. Os jovens
foram os principais afetados, pois, para ter acesso ao ensino de 2° grau (atual
Ensino Médio), era necessário dirigir-se à escola da cidade. Com isso, processos de
exclusão escolar marcaram a vida da população do campo na década de 1980. Os
movimentos e as lutas sociais surgem para questionar processos de exclusão e
desigualdade sociais.
Se, por um lado, um acontecimento da década de 1980 que impulsionou a
luta por educação do campo foi o fechamento das escolas, por outro lado, a
organização do MST era fortalecida, nessa mesma época, em função da criação do
Setor de Educação, responsável pelo debate sobre a escola, formação de
professores, conteúdos escolares etc. É o Setor de Educação que denuncia, na
27
conjuntura atual, o fechamento de escolas públicas localizadas no campo, conforme
reportagem a seguir:
Mais de 24 mil escolas no campo brasileiro foram fechadas no meio
rural desde 2002. O fechamento dessas escolas demonstra o drástico
problema na vida educacional no Brasil, especialmente no meio rural. Após
décadas de lutas por conquistas no âmbito educacional, cujas
reivindicações foram atendidas em parte - o que permitiu a consolidação da
pauta – o fechamento das escolas vai ao sentido contrário do que parecia
cristalizado. Nesse quadro, o MST lançou a Campanha Nacional contra o
Fechamento de Escolas do Campo, que pretende fazer o debate sobre a
educação do campo com o conjunto da sociedade, articular diversos setores
contra esses retrocessos e denunciar a continuidade dessa política. De
acordo com o Censo Escolar do Inep (Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), do Ministério da Educação,
existiam 107.432 escolas em 2002. Em 2009, o número de
estabelecimentos de ensino reduziu para 83.036, significando o fechamento
24.396 estabelecimentos de ensino, sendo 22.179 escolas municipais.
Essas escolas foram fechadas por estados e municípios, mas o Ministério
da Educação também tem responsabilidade. (MST, 2011)
Em 2011 foi lançado um manifesto de educadores brasileiros contra o
fechamento das escolas do campo. O mesmo encontra-se disponível no site do MST
(2011). Vale mencionar a entrevista publicada no site do MST, feita com Erivan
Hilário, do Setor de Educação do MST, que assim se refere ao fechamento das
escolas:
O fechamento das escolas no campo nos remete a olhar com profundidade
que o que está em jogo é algo maior, relacionado às disputas de projetos de
campo. Os governos têm demonstrado cada vez mais a clara opção pela
agricultura de negócio – o agronegócio – que tem em sua lógica de
funcionamento pensar num campo sem gente e, por conseguinte, um
campo sem cultura e sem escola. (MST, 2011a)
A política de fechamento das escolas localizadas no campo, embora tenha
início na década de 1970 no Brasil, e o movimento contra o fechamento das escolas
do campo iniciado em 2011, revelam o panorama do atual momento pelo qual passa
a educação do campo, apontando desafios, lutas e propostas. Dentre as questões
feitas ao representante do Setor de Educação do MST, duas estão reproduzidas
28
adiante. Foi-lhe perguntado sobre os motivos do fechamento das escolas, ao que o
entrevistado responde:
O fechamento das escolas no campo nos remete a olhar com profundidade
que o que está em jogo é algo maior, relacionado às disputas de projetos
de campo. Os governos têm demonstrado cada vez mais a clara opção
pela agricultura de negócio – o agronegócio – que tem em sua lógica de
funcionamento pensar num campo sem gente e, por conseguinte, um
campo sem cultura e sem escola. Nesse sentido, os camponeses e os
pequenos agricultores têm resistido contra esse modelo que concentra cada
vez mais terras e riqueza, com base na produção que tem como finalidade o
lucro. Nessa lógica, os camponeses são considerados como “atraso”. Por
isso, lutar contra o fechamento das escolas tem se constituído como
expressão de luta dos camponeses, de comunidades contra a lógica desse
modelo capitalista neoliberal para o campo. (MST, 2011a)
Ainda, cabe lembrar que o professor e pesquisador da Universidade Federal
do Pará, em entrevista publicada no site do MST, afirma que o “fechamento de
escolas é atentado” (HAGE, 2012). Nota-se que a educação do campo revela que
existe um projeto de Brasil que inclui o campo do agronegócio. E nesse projeto não
estão incluídos os povos do campo. Por isso a importância política da discussão de
um projeto popular, um projeto de sociedade assentados nos interesses da maioria
trabalhadora do país. E a Educação Superior, em foco nesta pesquisa, é
fundamental para ampliar o acesso ao conhecimento científico por parte dos
beneficiários da reforma agrária.
Diante das várias faces da exclusão e das lutas empreendidas pelos povos
do campo, é importante recordar que, no ano de 1988, foi aprovada a Constituição
da República Federativa do Brasil, e nela foram expressos diversos direitos sociais,
dentre os quais a educação.
Em síntese, a partir de 1987 o Setor de Educação do MST ficou responsável
pela elaboração de muitos materiais pedagógicos e documentos que discutiam os
princípios filosóficos e pedagógicos da educação para os assentamentos e
29
acampamentos. Toda essa experiência pedagógica fortaleceu a emergência de um
movimento nacional da educação do campo e nele programas governamentais,
oriundos da relação entre sociedade civil organizada e governos, que favoreceram a
organização de cursos de educação superior nas universidades públicas.
Diante dessa constatação, é importante verificar como as lutas dos povos do
campo, durante a década de 1990, impulsionaram a emergência do movimento da
educação do campo. Até a década de 1990, as disposições sobre a educação rural
sempre foram tímidas na legislação constitucional e educacional. Foram os
movimentos sociais de trabalhadores rurais que trouxeram para o ordenamento
jurídico-educacional (diretrizes, resoluções, portarias, decretos) a concepção da
educação do campo.
Em 1996 foi realizado o I Censo Nacional da Reforma Agrária, e por meio
dele constatou-se o elevado grau de analfabetismo e a baixa escolaridade entre os
beneficiários da reforma agrária, ao lado dos percentuais também indicados pelo
IBGE sobre a frágil escolaridade verificada entre os povos do campo. Esse fato
gerou inquietações sobre as escolas localizadas nos assentamentos organizados no
MST. Em 1997 foi realizado o I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da
Reforma Agrária, seguido da I Conferência Nacional: Por uma Educação Básica do
Campo, em 1998. Começou a ganhar expressividade um espaço público de debate,
dos povos do campo, sobre a educação em sentido amplo, sobre as políticas
educacionais e sobre um projeto de campo necessário àqueles que vivem e
trabalham com a terra.
Foi assim que a concepção de educação do campo foi trilhada nos coletivos
educacionais
dos
movimentos
sociais,
em
relação
com
as
instâncias
30
governamentais, expressando as diversas lutas no cenário público das conferências
e seminários estaduais e nacionais.
Da primeira Conferência realizada em 1998, os participantes elaboraram
uma carta contendo 10 desafios e compromissos da educação com a educação do
campo, a saber: 1) Vincular as práticas de educação básica do campo com o
processo de construção de um projeto popular de desenvolvimento nacional; 2)
Propor e viver novos valores culturais; 3) Valorizar as culturas do campo; 4) Fazer
mobilizações em vista da conquista de políticas públicas pelo direito à educação
básica do campo; 5) Lutar para que todo o povo tenha acesso à alfabetização; 6)
Formar educadoras e educadores do campo; 7) Produzir uma proposta de educação
básica do campo; 8) Envolver as comunidades nesse processo; 9) Acreditar na
nossa capacidade de construir o novo; 10) Implementar as propostas de ação dessa
conferência. (ARROYO; FERNANDES, 1999).
A emergência da educação do campo na década de 1990 coloca em foco o
conceito de política pública como construção coletiva, como fruto do debate no
espaço público.
Nota-se que, a partir dos encontros e conferências nacionais, bem como da
criação do PRONERA, foram organizados projetos de educação de jovens e adultos;
cursos de especialização lato sensu aos professores das escolas do campo;
abertura de cursos de Pedagogia (conhecidos como Pedagogia da Terra) destinados
aos profissionais que trabalhariam nas escolas localizadas nos assentamentos da
reforma agrária.
Importante dizer que, a partir das experiências desenvolvidas junto ao
PRONERA, foi gerado o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura
em Educação do Campo (PROCAMPO), vinculado ao Ministério da Educação, à
31
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
(SECADI), cuja execução é feita pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE).
As primeiras experiências do PRONERA foram desenvolvidas em oito
universidades federais. Tivemos a possibilidade de participar dessa experiência
entre os anos de 1998 e 2004, por uma parceria estabelecida em Universidade
Federal do Paraná e Universidade Estadual de Ponta Grossa, com o INCRA e com o
MST. Beneficiários que foram monitores da educação de jovens e adultos nesse
projeto, hoje estão nos bancos das universidades públicas cursando educação
superior ou pós-graduação lato sensu e stricto sensu. Certamente, tais conquistas
fortalecem
as
práticas
educacionais
e
a
organização
da
produção
nos
assentamentos da reforma agrária, lembrando que estes sofrem com as intempéries
políticas e econômicas (especialmente a dificuldade para financiamento da produção
e bons preços no momento da comercialização).
A primeira experiência do PROCAMPO foi desenvolvida em quatro
universidades federais, no ano de 2008. A Universidade de Brasília – UnB – tem
sido a pioneira em todos esses cursos, tendo no momento atual institucionalizado os
cursos superiores para beneficiários da reforma agrária, ou seja, não são mais
cursos efetivados por meio de turmas especiais; a entrada dos alunos é regular.
Importante destacar que a advogada e professora Mônica Molina, da UnB, foi
pessoa central na colaboração para criação do PRONERA e dos cursos na UnB. As
universidades públicas brasileiras têm professores e pesquisadores que lutam por
uma sociedade justa e, são eles, que estão à frente da busca de ruptura das cercas
da educação superior.
32
É importante lembrar que, no final da década de 1990, iniciou-se a
preparação para a elaboração das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas escolas do campo, documento publicado em 3 de abril de 2002. Foi, portanto,
uma década de conquistas para a educação do campo, fruto do empenho dos povos
organizados do campo, enfim, da ação dos trabalhadores do campo e trabalhadores
da educação nesse país. Óbvio que, diante da concentração da terra e do avanço do
agronegócio no país, as experiências pedagógicas e conquistas dos povos do
campo ocorreram em meio a inúmeros conflitos e represálias ideológicas e jurídicas.
No ano de 2004, foi criada a SECAD, atual SECADI, que tem respondido por
diversos programas de educação do campo na atualidade. No mesmo ano foi
realizada da II Conferência Por uma Educação Básica do Campo, que contou com
aproximadamente 1.100 participantes. Na declaração final da Conferência fica
explícita a intenção de organizar, a partir da educação, um projeto de sociedade que
seja justo, igualitário e democrático, que se contraponha ao agronegócio e que
promova a realização de uma ampla reforma agrária.
Dessa segunda Conferência foram listadas as seguintes demandas para
fazer avançar a educação do campo, a saber: 1. Universalização do acesso à
Educação Básica de qualidade para a população brasileira que trabalha e vive no e
do campo, por meio de uma política pública permanente que inclua como ações
básicas: o fim do fechamento arbitrário de escolas no campo; a construção de
escolas no campo que sejam do campo; a construção de alternativas pedagógicas
que viabilizem, com qualidade, a existência de escolas de educação fundamental e
de ensino médio no próprio campo; a oferta de Educação de Jovens e Adultos (EJA)
adequada à realidade do campo; políticas para a elaboração de currículos e para
escolha e distribuição de material didático-pedagógico, que levem em conta a
33
identidade cultural dos povos do campo e o acesso às atividades de esporte, arte e
lazer. 2. Ampliação do acesso e permanência da população do campo à
Educação Superior, por meio de políticas públicas estáveis. 3. Valorização e
formação específica de educadoras e educadores do campo por meio de uma
política pública permanente. 4. Respeito à especificidade da Educação do Campo e
à diversidade de seus sujeitos.
Desse modo, é possível afirmar que a educação do campo se fortalece por
meio de uma rede de coletivos, composta pelos sujeitos coletivos que trabalham
com a educação do campo e que dela se aproximam. Nessa rede encontramos os
movimentos sociais do campo, universidades, secretarias estaduais e municipais de
Educação, movimento sindical, movimentos e organizações sociais, centros
familiares de Formação de Alternância.
Sujeito coletivo forte nessa rede social, o MST irradia o debate da educação
do campo e atrai os sujeitos que com ela trabalham. Ao fortalecer os demais sujeitos
coletivos, ele fortalece a própria luta e atuação política na organização de uma
proposta pedagógica que valoriza a “cultura camponesa” e que questiona as
relações de classe que marcam, particularmente, a realidade do campo brasileiro.
Cabe destacar que vários estados brasileiros têm a sua organização em
torno da educação do campo, construída a partir do final da década de 1990 e,
especialmente, na primeira década do século XXI. O Estado do Paraná viveu o auge
do debate da educação do campo nos últimos oito anos. Houve parecer do
Conselho Estadual de Educação sobre a educação do campo, seguido de
publicação de resolução da Secretaria de Estado da Educação sobre a política
estadual da educação do campo. O estado possui um Comitê Estadual de Educação
34
do Campo e um Grupo de Trabalho formado pelas Instituições de Educação
Superior do Estado.
Outros estados, como Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Santa Catarina,
Sergipe, entre outros, têm diretrizes curriculares estaduais, e contam com comitês e
fóruns estaduais da educação do campo. Ou seja, o debate tem sido ampliado na
sociedade civil organizada e com isso vem adentrando, aos poucos, às instâncias
governamentais e gerando interferências nas políticas públicas.
Foi criada a Comissão Nacional de Educação do Campo, junto ao Ministério
da Educação (Portaria 1.258, 19 de dezembro de 2007). Trata-se de um órgão
colegiado, de caráter consultivo, com a atribuição de assessorar o Ministério da
Educação na formulação de políticas públicas de Educação do Campo. A
composição da Comissão tem dois grandes segmentos:
1) Representantes do governo federal, por meio das secretarias vinculadas
ao Ministério da Educação: Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
(SETEC); Secretaria de Educação Básica (SEB); Secretaria de Educação Superior
(SESu); Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD);
Secretaria de Estado da Educação (SEED); Secretaria de Educação do Estado de
São Paulo (SEESP); Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE),
Instituto Nacional de Estudos (INEP) Pesquisas Educacionais e Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA); por representante da União Nacional dos
Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e do Conselho Nacional dos
Secretários Estaduais de Educação (CONSED).
2) A sociedade civil, representada por oito entidades: Centros Familiares de
Formação por Alternância (CEFFAs); Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura (CONTAG); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Federação dos
35
Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF); Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB); Movimento das Mulheres Camponesas (MMC); MST e Rede
Educacional do Semi-Árido Brasileiro (RESAB).
No Estado do Paraná, foi formado um Comitê Estadual da Educação do
Campo. Movimentos Sociais, organizações e entidades sociais, universidades, entre
outros, têm participação na definição do Comitê de Educação do Campo. Reuniões
foram realizadas no ano de 2009 com a finalidade de definir a função e o caráter do
Comitê. Em dezembro de 2010, foi aprovado o referido Comitê. O Estado do Paraná
conta também com uma Articulação Estadual dos Povos do Campo, a exemplo do
que acontece no país, com a Articulação Nacional. E o Estado do Paraná conta com
quatro cursos superiores destinados aos beneficiários da reforma agrária, estando
um deles em fase inicial na Universidade Federal do Paraná – curso de Direito.
A principal parceira dos povos do campo na organização da educação do
campo tem sido as universidades estaduais e federais. Com isso, num processo
dialético, movimentos e universidades têm possibilidade de aprendizagem coletiva.
A universidade dá indícios de abertura às demandas da sociedade civil organizada,
mas esse ainda é um tema a ser investigado, ou seja, será que as universidades
têm desenvolvido relações de fato democráticas?
A educação do campo 6 tem sido caracterizada como um novo paradigma,
que valoriza o trabalho no campo e os sujeitos trabalhadores, suas particularidades,
contradições e cultura como práxis. Está em contraponto ao paradigma da educação
rural, vinculado aos interesses do agronegócio, do capitalismo agrário e,
consequentemente, ao fortalecimento das políticas de esvaziamento do campo.
6
Sugere-se análise da obra organizada por Bernadete Wrublevski Aued e Célia Regina Vendramini,
intitulada Educação do Campo: desafios teóricos e práticos. Florianópolis: Insular, 2009. E, também,
da obra organizada por Benedita Almeida, Clésio Acilino Antonio e José Luiz Zanella, intitulada
Educação do campo: um projeto de formação de educadores em debate. Cascavel: Edunioeste,
2008.
36
Caldart (2008, p. 69), em texto intitulado Sobre a Educação do Campo,
afirma que o conceito é novo e já está em disputa, “[...] porque o movimento da
realidade que ele busca expressar é marcado por contradições sociais muito fortes”.
Para a autora, “[...] o conceito de Educação do Campo tem raiz na sua materialidade
e origem e no movimento histórico da realidade a que se refere”. Ela aponta três
questões que sinalizam tensões reveladoras de contradições importantes. A primeira
afirma que
A materialidade de origem (ou de raiz) da Educação do Campo exige que
ela seja pensada/trabalhada sempre na tríade: Campo – Política Pública –
Educação. É a relação, na maioria das vezes, tensa, entre esses termos
que constitui a novidade histórica do fenômeno que batizamos de Educação
do Campo (CALDART, 2008, p. 70).
A segunda indica que
A Educação do Campo trata de uma especificidade; assume-se como
especificidade: na discussão de país, de política pública, de educação. Essa
característica nos tem aproximado e distanciado de muitos sujeitos/grupos
que fazem e discutem educação e que defendem uma perspectiva de
universalidade, de educação unitária e que nos alertam para o perigo da
fragmentação das lutas da classe trabalhadora [...] (CALDART, 2008, p. 7273).
A terceira questão diz que “O movimento da Educação do Campo se
constitui de três momentos que são distintos, mas simultâneos e que se
complementam na configuração do seu conceito, do que ela é, está sendo, poderá
ser” (CALDART, 2008, p. 75). Para a autora, a Educação do Campo é negatividade
– denúncia/resistência; é positividade – se combina com práticas e propostas
concretas; e é superação – projeto/utopia (CALDART, 2008, p. 75).
Na conjuntura atual, é pertinente afirmar que a sociedade civil organizada
desperta o interesse dos pesquisadores pelo estudo da história viva e em
movimento.
37
O MST, em função de sua expressiva atuação (lutas, reivindicações,
proposição e experimentação) no campo educacional, tem despertado o interesse
dos pesquisadores sobre as escolas localizadas em assentamentos de reforma
agrária; sobre as escolas itinerantes localizadas nos acampamentos; sobre parcerias
entre governos, movimentos sociais e universidades, em especial projetos de
educação de jovens e adultos; cursos técnicos de Ensino Médio, a exemplo do
Técnico em Administração Cooperativa (TAC), e cursos de Educação Superior.
Acima de tudo, o movimento social desperta para a análise do modo de produção
capitalista e das suas contradições sociais básicas, bem como para a educação em
sentido amplo, como a produzida na prática social e, ao mesmo tempo, produtora de
novas relações sociais educativas.
Ao colocar na agenda política a educação do campo, os movimentos sociais
e, em especial o MST, dão ênfase à construção de um projeto político para o país.
Esse projeto político tem no centro da organização das políticas públicas os
trabalhadores e suas organizações. É essa frente de luta que tanto incomoda
aqueles que lutam por manter a “ordem e o progresso” de natureza positivista na
sociedade brasileira. Sob o manto da Justiça e dos direitos positivados no
ordenamento jurídico, há um conjunto de magistrados e procuradores federais que
questionam a educação superior para os beneficiários da reforma agrária, e,
conscientemente fazem “emperrar” o próprio processo de sucesso da reforma
agrária.
É importante pensar que a luta por educação implica na aquisição de
conhecimentos que possam fortalecer ações de transformação social. Como
escreveu Paulo Freire em muitas das suas obras, em especial no livro Pedagogia do
Oprimido, o “conhecimento liberta”. E, vale lembrar a obra “Fábula da águia e da
38
galinha” de Leonardo Boff. Nela, o autor traz reflexões para os povos da América
Latina, águias criadas como galinhas. Águias que precisam da “mediação” para alçar
vôos. Pode-se inferir que a educação é construída por meio da mediação. Essa
mediação pode ser dialógica ou bancária, nos termos de Paulo Freire. O que se
pretende com a prática educativa gerada no PRONERA é o desenvolvimento da
racionalidade comunicativa, tão presentes nas discussões da teoria crítica em
educação. O próprio Freire é um defensor da racionalidade dialógica.
2.2 O PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA
O PRONERA é um programa governamental constituído no movimento
social por educação dos povos do campo. A sua particularidade é ter, na gênese, a
participação dos trabalhadores rurais como protagonistas da história da Educação
do Campo e, nela, a educação de jovens e adultos, a Educação Superior, a
formação continuada e a formação técnica.
A compreensão do PRONERA requer a utilização de conceitos como os de
sociedade civil, Estado, esfera pública e parceria. 7 Uma experiência nova, oriunda
da prática social, pode requerer categorias novas que a explique, embora o contexto
maior das relações seja o modo de produção capitalista, marcado por interesses
diferentes, pela contradição entre capital e trabalho.
Dagnino (2002, p. 280-281) auxilia na compreensão sobre as relações que
se estabelecem entre Estado e sociedade civil, sempre tensas e permeadas por
conflitos; que os conflitos e as tensões podem ser maiores ou menores, dependendo
de quanto a sociedade civil e o Estado compartilham as partes envolvidas, e com
7
Souza (2002) analisou o PRONERA dando ênfase à relação entre MST e Estado.
39
que grau de centralidade. A autora critica os reducionismos expressos na visão da
sociedade civil como “polo de virtude” e o Estado como “encarnação do mal”. Ainda,
ela defende o caráter histórico das relações entre Estado e sociedade civil. São
relações objeto da política e são transformáveis pela ação política.
A referida autora destaca a noção de projeto político como algo que orienta a
ação, como fundamental para explicar as relações entre Estado e sociedade civil,
resguardando o fato de que ambos não são forças equivalentes, e que sua ação
política também tem natureza diferenciada.
Quanto ao conceito de esfera pública, Costa (2002, p. 36) destaca que os
movimentos sociais interagem com o Estado e as instituições e, para ele, não se
deve pensar em esferas públicas separadas da “esfera pública burguesa”. O autor
afirma que:
Os mecanismos construídos para a participação não podem, entretanto,
deixar as associações vulneráveis a uma institucionalização imobilizadora e
às tentativas de cooptação política. Sobretudo, parece fundamental que os
desenhos institucionais para a participação política das associações civis
preservem o caráter autônomo e necessariamente descontinuado de sua
constituição e operação. A delegação, a partir do Estado, de funções
político-administrativas às associações civis poderia sobrecarregar seus
processos internos de coordenação, provocando a ruptura de seu delicado
e sensível ancoramento social. (COSTA, 2002, p. 36).
Quando se trata de pensar os formatos sociais no contexto da relação com o
MST, é fundamental pensar na histórica luta entre trabalhadores, de um lado; donos
dos meios de produção, de outro lado; e o Estado como intermediador dos
interesses capitalistas. No entanto, outro olhar para a realidade talvez possa revelar
que as relações não são tão determinadas pela histórica concepção de que o Estado
está a serviço da “propriedade”. É importante visualizar as conquistas que a
sociedade efetiva na práxis e, por meio dela, o quanto fortalece um processo de
40
conscientização acerca das relações servis que demarcam o modo de produção
capitalista.
Quanto ao conceito de parceria, a definição proposta por Caccia Bava (1999,
p. 15), torna-se pertinente quando estudamos o Pronera. Para o autor,
[...] o termo parceria indica a disposição de uma ação conjunta entre
diferentes partes, mas não qualifica que ação é esta, que relações se
estabelecem e com que objetivos [...] o exercício da parceria é um
aprendizado democrático onde a riqueza das contribuições de cada
instituição está justamente no aporte diferenciado que cada parceiro pode
trazer para o projeto conjunto.
A educação, como mediação para o processo de aquisição dos
conhecimentos socialmente e historicamente construídos, é demandada como
possibilidade de superação da ideologia e cultura burguesas transmitidas nos livros
didáticos, elaborados de forma genérica, atendendo ao princípio da igualdade entre
as pessoas. Para uma sociedade desigual, que educação se faz necessária? Há
necessidade de uma escola que atenda à função (que lhe é peculiar) de desenvolver
processos pedagógicos de apropriação dos conteúdos historicamente construídos
pela humanidade, localizando-os no tempo e no espaço, e estabelecendo relações
com a experiência vivida no tempo atual pelos alunos.
Como essa educação vem sendo construída? Com muita luta social, desde
a reivindicação do direito social – acesso e permanência na escola – até o direito
fundamental, que é o acesso ao conhecimento, cada vez em maior profundidade.
A luta dos movimentos sociais do campo, pela reforma agrária e por
condições de trabalho na terra tem, na educação, o processo necessário para que,
por meio do acesso aos conhecimentos técnicos e teóricos, os trabalhadores
possam compreender os processos sociais e as contradições que marcam a
41
sociedade brasileira. Com isso, possam traçar alternativas econômicas, políticas e
sociais para a própria sobrevivência e para a construção de um mundo diferente.
Damasceno (1990, p. 29), numa perspectiva materialista histórica dialética,
pensando a relação entre educação e hegemonia, destacou três questões básicas:
[...] o entendimento da educação como projeto político que se vincula à
dialética de classes; o papel da educação na reelaboração do saber, da
cultura, e da visão de mundo do grupo onde a educação se insere e as
relações de poder que se estabelecem e se formam mediante a ação
pedagógica.
Para a autora, a essência do pensar dialeticamente a educação é discutir o
homem como ser histórico e suas relações sociais. Eis o desafio da Educação do
Campo, que não se pretende apenas para as escolas localizadas no campo, mas às
escolas públicas, independente do espaço que ocupam – campo ou cidade.
Em síntese, o PRONERA, que foi construído na relação entre sociedade e
governos, tem sido o responsável pela criação dos cursos superiores para
beneficiários da reforma agrária. Entretanto, cabe destacar que cada universidade
enfrenta uma luta interna, jogo de poder e de ideologias para a aprovação de cursos
“especiais” no interior da instituição. São profissionais com forte vínculo a um projeto
transformador de sociedade, que ousam participar dessas experiências.
De acordo com o Manual Operacional do PRONERA, seus objetivos gerais e
específicos estão assim definidos:
Objetivo Geral: Fortalecer a educação nas áreas de Reforma Agrária
estimulando, propondo, criando, desenvolvendo e coordenando projetos
educacionais, utilizando metodologias voltadas para a especificidade do
campo, tendo em vista contribuir para a promoção do desenvolvimento
sustentável. Objetivos específicos: garantir a alfabetização e educação
fundamental de jovens e adultos acampados (as) e/ou assentados (as) nas
áreas de Reforma Agrária; garantir a escolaridade e a formação de
educadores (as) para atuar na promoção da educação nas áreas de
Reforma Agrária; garantir formação continuada e escolaridade média e
superior aos educadores (as) de jovens e adultos – EJA – e do ensino
42
fundamental e médio nas áreas de Reforma Agrária; garantir aos
assentados (as) escolaridade/formação profissional, técnico profissional de
nível médio e cursos superiores em diversas áreas do conhecimento;
organizar, produzir e editar os materiais didático-pedagógicos necessários à
execução do programa; promover e realizar encontros, seminários, estudos
e pesquisas em âmbito regional, nacional e internacional que fortaleçam a
Educação do Campo. (Manual de Operações do PRONERA, 2004 p. 17)
A figura a seguir oferece indicativos de como está o conjunto das
experiências em educação superior para beneficiários da reforma agrária no país.
FIGURA 1 – CURSOS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA BENEFICIÁRIOS DA REFORMA
AGRÁRIA
FONTE: Zancanela, Yolanda (2011).
As universidades indicadas na Figura 1 possuem cursos de Licenciatura em
Educação do Campo, Agronomia, Comunicação, Ciências Sociais, Direito,
Geografia, História, Medicina Veterinária, Pedagogia, entre outros. Também, a
Universidade Estadual Paulista (UNESP), em conjunto com universidades brasileiras
43
e internacionais, criou o primeiro Mestrado em Educação do Campo, junto à Cátedra
da Educação do Campo, que tem à frente das ações o professor e pesquisador
Bernardo Mançano Fernandes. São experiências que indicam que a reforma agrária
é uma políticas que está articulada a outras políticas, tais como: educação, saúde,
política agrícola, ensino técnico etc.
2.3 AS EXPERIÊNCIAS ESTUDADAS: UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
(UFG), UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS (UFPEL) E UNIVERSIDADE
FEDERAL DO SERGIPE (UFS)
As três experiências escolhidas para análise nesta pesquisa foram:
Curso de Direito ofertado pela UFG, campus de Goiás Velho.
A turma especial do curso de Direito para beneficiários da reforma agrária foi
iniciada em agosto de 2007. O curso de Direito foi criado no ano de 2007 na
Universidade Federal de Goiás. Trata-se de uma turma “especial”, como ficou
conhecida, com alunos oriundos dos assentamentos da reforma agrária. Foram
matriculados 60 alunos nessa turma especial.
O projeto político-pedagógico do curso é composto de 4.300 horas de
atividades de formação. O curso está organizado em 10 semestres. A metodologia
de trabalho é a Alternância, denominada Tempo Comunidade e Tempo Escola.
Sobre a Pedagogia da Alternância tem inúmeras pesquisas no Brasil, que relatam
desde a sua trajetória histórica francesa e italiana, até os seus diversos formatos no
Brasil. A pesquisadora Lourdes Helena da Silva e o pesquisador João Batista
Pereira de Queiroz, ambos da Universidade Federal de Viçosa/MG, têm sido
expoentes nessa temática.
44
O tempo na universidade é composto de 70 a 90 dias por semestre. O tempo
comunidade é desenvolvido no local de origem dos alunos, ou seja, no
assentamento de reforma agrária, de modo a garantir a articulação teoria-prática.
A Lei 11.326/2006 dispõe sobre as diretrizes para a formulação da Política
Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. É no artigo
5°, Inciso X, que está disposto que a educação é integrante da Política Nacional da
Agricultura Familiar, bem como os processos de capacitação e profissionalização.
Com isso, cursos técnicos e cursos superiores são fundamentais para que os
agricultores
familiares
visualizem
possibilidades
de
trabalho,
produção
e
comercialização dos seus produtos.
[...] a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos
Familiares Rurais promoverá o planejamento e a execução das ações, de
forma a compatibilizar as seguintes áreas: [...] X - educação, capacitação e
profissionalização [...].
O curso de Direito está sendo realizado mediante Termo de Cooperação
Técnica entre a UFG e o INCRA. Os recursos são oriundos do PRONERA, vinculado
ao Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA).
Em 23 de junho de 2008 o MPF ingressou com Ação Civil Pública, sob n°
2008.35.00.013973-0, visando extinguir o curso, com a alegação de haver o
ferimento ao princípio da legalidade e da isonomia, assunto que será analisado no
segundo capítulo deste trabalho. A sentença proferida em junho de 2009 declarou a
ilegalidade do “convênio” estabelecido para a efetivação do curso de Direito e
determinou a extinção do curso. A Universidade recorreu da sentença para o
Tribunal Regional Federal (TRF). O presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª
Região (TRF1), desembargador Jirair Aram Meguerian, decidiu que o INCRA e a
UFG poderiam dar continuidade à turma especial de direito para assentados da
45
reforma agrária e filhos de pequenos agricultores, na cidade de Goiás. A decisão no
TRF ocorreu em 18/12/ 2009 e determinou a suspensão dos efeitos da decisão
proferida pelo Juiz Federal da 9ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás. Em
14/5/2010 MPF apresenta recurso e contrarrazões. O processo foi remetido ao TRF
(sem baixa) em 13/10/2010.
Curso de Medicina Veterinária para beneficiários da reforma agrária,
ofertado pela UFPEL.
No Estado do Rio Grande do Sul teve início, em 2007, o primeiro curso de
Medicina Veterinária para beneficiários da reforma agrária. Foi firmado um convênio
técnico entre o INCRA e a Fundação Simon Bolívar para a realização do referido
curso. O convênio está vinculado ao PRONERA. A turma teve início com 60 vagas,
tal qual o curso de Direito e de Agronomia, também em tela nesta pesquisa.
As aulas foram iniciadas em 2008, estando prevista a formatura para o ano
de 2013. De acordo com reportagem publicada na página da web do INCRA:
A UFPEL será responsável por toda a execução, desde a etapa preparatória
para o processo seletivo, incluindo o vestibular e o curso de graduação. A
preparação será realizada no período de 15 de novembro a 15 de dezembro
no assentamento Viamão, com cerca de 80 candidatos assentados de todo
o Brasil. Para a coordenadora do Pronera no Incra/RS, Maria de Lourdes
Álvares da Rosa, a assinatura do convênio é uma importante conquista. Ela
lembra que hoje apenas 24% das vagas de Medicina Veterinária no País
são oferecidas por instituições de ensino gratuito, o que dificulta o acesso
do público da reforma agrária. "O curso na UFPEL vai suprir uma grande
demanda que temos, contribuindo para o desenvolvimento dos
assentamentos. A educação é fundamental para a reforma agrária", afirma a
coordenadora. 8
Também, no Estado do Rio Grande do Sul o início do curso não foi menos
tumultuado político-juridicamente. O MPF propôs Ação Civil Pública (ACP) em 2007
8
Disponível
em:
Hhttp://www.incra.gov.br/index.php/noticias-sala-de-imprensa/noticias/5282convanio-do-pronera-cria-primeira-turma-de-medicina-veterinaria-para-assentadosH,
26/9/2007.
Acesso em: 24/3/2012.
46
alegando a inconstitucionalidade do curso e pedindo antecipação dos efeitos da
tutela. O Juiz da 1ª Vara e Juizado Especial Federal Criminal Adjunto de Pelotas
indeferiu os pedidos de antecipação de tutela formulados na inicial. O MPF interpôs
agravo de instrumento, junto ao TRF da 4ª Região, em 14/10/2007, contra a decisão
que indeferiu o pedido de antecipação de tutela, requerendo que o agravo seja
recebido com efeito suspensivo ativo e que haja reformulação da decisão
interlocutória em questão. O Juiz João Batista Lazazzari, que substituía Everson
Guimarães da Silva, proferiu nova decisão e atribuiu eficácia suspensiva ativa ao
recurso. O MPF conseguiu a suspensão do curso, entretanto o INCRA e a UFPEL
recorreram da decisão conseguindo junto à 2ª Turma do STJ, pelo relatório do
Ministro Herman Benjamin, suspensão da liminar obtida pelo MPF. Dessa forma, o
curso está em funcionamento, a ACP foi decidida em 1° Grau, entretanto, no estágio
atual tramita recurso extraordinário junto ao STF, interposto pelo MPF.
O Curso de Agronomia ofertado para beneficiários na reforma agrária
pela UFS.
Para a caracterização do curso de Agronomia, criado em 2004 na UFS, foi
utilizada a documentação referente à autorização do curso e a dissertação de
mestrado em Educação, defendida em 2009, elaborada por Gisele da Rocha Souza.
Todos os cursos de educação superior para beneficiários da reforma agrária,
vinculados ao PRONERA, têm que ser elaborado segundo as orientações do
referido Programa. Desse modo, a UFS, ao receber demanda dos assentados da
reforma agrária, elaborou um projeto do tipo “Convênio Técnico” juntamente com o
INCRA. O Convênio foi firmado entre INCRA, Fundação de Apoio à Pesquisa e
Extensão de Sergipe (FAPESE) e UFS (SOUZA, 2009, p. 58).
47
O curso de Engenharia Agronômica no Estado de Sergipe foi criado em
2004 Aprovado pela Resolução N.º15/2004/CONSU oferecendo 60(vagas)
vagas anuais, o turno de funcionamento é no período matutino e vespertino
é ministrado com duração de 4,5 (quatro e meio) anos, com uma carga
horária de 3.810 (três mil e oitocentos e dez) horas, correspondendo a 254
(duzentos e cinquenta e quatro) créditos, sendo 234 (duzentos e trinta e
quatro) créditos obrigatórios e 20 (vinte) optativos. (SOUZA, 2009, p. 58)
De acordo com Souza (2009, p. 58-59), no ano de 2004 foi aprovada, na
UFS, a implementação do Projeto de Qualificação em Engenharia Agronômica para
jovens e adultos não graduados em nível superior vinculados aos Assentamentos de
Reforma Agrária do Nordeste – PROQUERA.
A realização do curso de Agronomia para beneficiários da reforma agrária é
fruto de uma luta intensa dos movimentos sociais no estado e da disposição dos
professores universitários e acadêmicos que se empreenderam na efetivação do
projeto. A UFS, desde o surgimento do PRONERA em 1998, tem desenvolvido
projetos educacionais junto aos beneficiários da reforma agrária.
De acordo com Souza (2009, p. 61):
Depois do estabelecimento das parcerias, da delimitação do projeto, de seu
objetivo principal e, a matriz curricular, ocorreu o estabelecimento do
processo seletivo especial que contou com a inscrição de 89 beneficiários
da Reforma Agrária e foram selecionados 60 assentados para cursar o
Ensino Superior. O projeto do curso possui um currículo estruturado a partir
dos objetivos: - Promover conteúdos científicos na área de produção
agrícola, associados a processos políticos, culturais e sociais. - Buscar
alternativas de produção que contribuam para a melhoria de vida nas
comunidades rurais, em especial nos assentamentos; - Incentivar pesquisas
compatíveis com a realidade da pequena agricultura e meio ambiente.
Entretanto, um curso superior de Agronomia acirraria os ânimos da
Associação dos Engenheiros Agrônomos, que propôs Ação Civil Pública contra o
funcionamento do curso, alegando ilegalidade e ferimento do princípio constitucional
da isonomia.
48
No Estado de Sergipe foi a Associação dos Engenheiros Agrônomos que
ingressou com ação civil pública contra a UFS, pelo fato desta oferecer curso de
Agronomia aos beneficiários da reforma agrária. Trata-se do processo sob n°
200485000002559 – Justiça Federal. A associação pediu a concessão de mandado
liminar “inaudita altera pars” para que fosse sustada a realização do vestibular
Especial 25/1/2004. A Juíza da 3ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe deferiu a
medida liminar, para suspender o início do curso, até ulterior deliberação daquele
juízo. A Universidade interpôs agravo de instrumento pedindo efeito suspensivo
contra a decisão da Juíza da 3ª Vara. O recurso foi deferido pelo Desembargador
Marcelo Navarro, com efeito suspensivo à decisão de 1° grau. Por fim, foi proferida a
sentença em 1° grau, houve apelação da Associação, que não foi provida. Em não
havendo recursos no prazo legal, considera-se coisa julgada material, com efeitos
ultra partes, como disposto no artigo 16 da Lei da ACP.
O que se pretende ao final do estudo é caracterizar os princípios
constitucionais presentes nas ações em questão e revelar que os conflitos em torno
da terra adentram ao Judiciário em meio às lutas por educação. A novidade reside
não no fato dos conflitos por terra estarem no Judiciário, mas no fato de que a frente
educacional tenha se constituído objeto de discussões no Judiciário em meio à
reforma agrária. O maior tabu da sociedade brasileira ainda é a reforma agrária. E
ideologias estão por trás de muitas decisões políticas e jurídicas, e não há como
fugir delas. Nem mesmo pelo cálculo do princípio da proporcionalidade proposto por
Alexy e adotado por Gilmar Mendes na análise do pedido de suspensão da tutela
antecipada, analisado no STF em 2009.
No próximo capítulo será descrita a história da luta na justiça pela efetivação
do curso de Agronomia para os beneficiários da reforma agrária. Para instigar sua
49
leitura, observe-se a foto a seguir (Figura 2). Depois de longas idas e vindas na
Justiça, o curso foi aprovado, desenvolvido e os primeiros graduados comemoram
mais uma conquista, em meio a tantas contradições econômicas, jurídicas e
políticas.
FIGURA 2 – FORMATURA DA 1ª TURMA DE AGRONOMIA – UFS, 2/8/2008
FONTE: Disponível em: http://2008.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=9988. Acesso em:
25/3/2012
50
3
AÇÃO
CIVIL
PÚBLICA,
DECISÃO
JUDICIAL
E
CONSTITUCIONAIS: O CASO DO CURSO DE AGRONOMIA
PRINCIPIOS
“A isonomia fática é o grau mais alto e talvez mais justo e
refinado a que pode subir o princípio da igualdade numa
estrutura normativa de direito positivo”
(BONAVIDES, 2008, p. 378)
A discussão sobre princípios constitucionais é ampla na literatura nacional e
internacional. Para fins deste estudo, serão tomadas como centrais as obras de
Rabello Filho (2002), particularmente o capítulo primeiro, haja vista que nele o autor
dá atenção ao conceito de “princípios constitucionais”; de Paulo Bonavides, sobre
direito constitucional. A intenção inicial neste trabalho era de estudar as obras de
Robert Alexy e Ronald Dworkin. Entretanto, essa tarefa ficará para o futuro. A
dissertação de Leonardo Ferraz (2007), intitulada “Crítica ao princípio da
proporcionalidade como fundamento das decisões judiciais”, foi estudada para fins
de fundamentar comentários acerca do referido princípio.
Quanto à educação superior para beneficiários da reforma agrária, trata-se
de tema e problema que têm adentrado à academia brasileira na última década.
Afinal, é dos últimos 10 anos a constituição das experiências político-pedagógicas
em andamento nas universidades públicas brasileiras. São várias as obras que
tratam da educação do campo, inclusive de nossa própria autoria. Para fins deste
trabalho serão analisadas as obras de autores como Miguel Arroyo, Mônica Molina e
Roseli Caldart. Soma-se a tais obras a dissertação de Gisele Souza (2009), que
versa sobre o curso de Agronomia para beneficiários da reforma agrária no Estado
de Sergipe. Diversos papers sobre esses cursos foram estudados e estão
mencionados ao longo do trabalho.
51
Desse modo, delineia-se o referencial teórico desta pesquisa em torno de
dois conceitos fundamentais: princípios constitucionais e efetivação do direito social
à educação.
A ACP foi proposta pela Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado
de Sergipe (AEASE), tendo como réus a UFS, a FAPESE e o INCRA. O processo
está registrado sob o n° 2004.85.00.00.02.55-9, Classe 5023, 3ª Vara Civil de
Sergipe. O MPF manifestou-se favorável à AEASE.
Para compreender a ACP proposta pela Associação dos Engenheiros
Agrônomos do Estado de Sergipe, o esquema a seguir faz-se necessário:
ACP 2004.85.00.00.02.55-9 com pedido de liminar para sustar a realização do
vestibular no dia 25/1/2004 e impedir o início do curso.
Juíza Federal Substituta da 3ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe, que deferiu
medida liminar, nos autos de ação civil pública, para suspender o início do Curso
610 - Engenharia Agronômica Especial - daquela autarquia universitária, até ulterior
deliberação daquele juízo. O curso fica suspenso entre 13/2/2004 a 28/4/2004.
Os pedidos da AEASE eram a suspensão do vestibular (mandado liminar
inaudita altera pars) e a extinção do curso – 610 – de Graduação em Engenharia
Agronômica Especial, da forma como concebido.
52
A AEASE afirma que o Conselho Universitário da UFS publicou a Resolução
n°9/2003, que aprova a implementação do Projeto de Qualificação em Engenharia
Agronômica para Jovens e Adultos dos Assentamentos de Reforma Agrária da
Região Nordeste (PROQUERA) e que foram disponibilizadas 60 vagas, a serem
preenchidas por meio da realização de um vestibular especial.
Para a AEASE, o PROQUERA é:
[...] discriminatório, porquanto privilegia, injustificavelmente, uma parcela
da sociedade brasileira, criando critérios de avaliação diferenciados para
esta, em detrimento dos candidatos ao Curso Regular de Engenharia
Agronômica, que se submetem à prova de Conhecimentos Curriculares,
com 40 (quarenta) questões sobre português, matemática, geografia, física,
biologia, química e língua estrangeira, e à prova de Redação. 9 (Grifo nosso)
A Associação alega que o curso infringe os dispositivos da Lei n°
9.131/1995, em seu artigo 9°, § 2°, alínea “c”, que dispõe sobre o currículo dos
cursos superiores. Assim, para a AEASE, a organização curricular diferenciada
estaria infringindo dispositivo legal, mesmo diante da autonomia das universidades
para criação e extinção de cursos, tal qual disposto no artigo 53, Inciso I, da LDB
9394/1996. Alega que a organização político-pedagógica do Tempo Escola e Tempo
Comunidade vai contra o disposto na LDB, no que se refere aos 200 dias letivos.
Chama atenção no relato da AEASE a utilização da ideia de “discriminatório”
para o processo seletivo da turma de Agronomia, bem como para os critérios
diferenciados para a avaliação dos alunos. É de se questionar, a respeito do
entendimento da AEASE, sobre a função pedagógico-científica da universidade,
afinal, há autonomia para criar processos diferenciados de avaliação ou não?
Quando o processo favorece a “ordem da sociedade” os critérios de seleção são
9
- Disponível em
Hhttp://www.jfse.jus.br/sentencas/administrativas/adm2006/sentadmedmilson20048500002559.htmH.
Acesso em 24/3/2012.
53
aceitos. Quando é questionada a desigualdade, os critérios são colocados em
xeque. Há uma perspectiva ultraconservadora na análise feita pela Associação dos
Agrônomos em relação ao papel da universidade.
O princípio constitucional questionado na ação é o da isonomia, conforme
artigo 3°, Inciso IV, e artigo 206, Inciso I, da Constituição Federal. Para a
Associação, o curso não poderia oferecer o diploma superior e, sim, uma
certificação de natureza técnico-profissional. Tal postura se reporta a meados do
século XX, para não dizer ao século XVIII, quando, pela Lei 5692/71, foi instituído o
curso profissional para os trabalhadores e a formação geral para a elite dirigente. É
como se a classe trabalhadora tivesse que continuar sempre submissa à situação de
fazer e sem acesso aos conhecimentos gerais que levam à inserção nos meios
decisórios e políticos. Trata-se de uma visão educacional dualista, de um lado a
formação técnica para os trabalhadores e os seus filhos; de outro lado a formação
geral para a elite e os seus filhos.
Molina (2008, p. 28) comenta o dispositivo constitucional – artigo 206 – que
permite pensar o princípio da igualdade de condições de acesso e permanência na
escola. Para ela:
A elaboração de políticas públicas educacionais não pode prescindir dos
dispositivos consagrados também no artigo 206 da Constituição. O princípio
da igualdade de condições de acesso e permanência na escola, informado
por este ditame constitucional, constitui diretriz que deve informar o conjunto
das políticas educacionais. Ele é tomado como base para proposição de
políticas afirmativas para efetiva garantia do direito à educação.
Em Carta Manifesto, a Associação dos Agrônomos assim se refere ao curso
de Agronomia:
Isto é uma vergonha, é a negação da pedagogia, é a negação do ensino
público e a negação da agronomia, porque não entendemos a criação de
54
um curso paralelo, pois já existe na Universidade o Curso de Agronomia
onde são oferecidas anualmente 40 vagas; não entendemos a criação de
outro curso específico para clientela privilegiada quando na prática
democrática o vestibular unificado é a porta de entrada de todos, o que
visualiza uma medida discriminatória fazendo retornar ao passado distante
a “Lei do Boi” em que era reservada no vestibular de agronomia, certa
quantidade de vagas para filhos de fazendeiros dentre as vagas existentes
no referido curso, sendo essa mais vergonhosa e antidemocrática, pois não
oferece como exemplo, cinco vagas das quarenta existentes no curso
normal de agronomia da Universidade, e sim, através de um simples
convênio, instrumento este inconsistente do ponto de vista executivo, pois
os recursos financeiros nunca são repassados em tempo hábil, conforme o
cronograma de reembolso, conseqüentemente havendo solução de
continuidade na implementação do curso, cria-se outro curso paralelo e
específico com 60 vagas engessado em um vestibular específico e fora de
época. (CARTA DE MANIFESTAÇÃO DA AEASE, 2003, apud SOUZA,
2009, p. 63-64)
O conflito jurídico foi travado e levado às instâncias superiores do Estado de
Sergipe. No dia 2 de fevereiro de 2004, foi realizada a aula inaugural do curso de
Agronomia, porém a batalha judicial ainda não estava vencida. Souza (2009) mostra
que a AEASE conseguiu uma liminar na Justiça para cessar as aulas do referido
curso. Como menciona a autora:
[...] o Projeto teve que paralisar suas atividades no período de 13/02 a
28/04/2004. E, só retornou, inicialmente por conta da suspensão da liminar
e, posterior julgamento do mérito pelo Tribunal Regional Federal da 5ª
Região, sediado em Recife-PE, em 29/06/2004 que decide por unanimidade
favorável ao pleito da UFS e demais entidades representativas. (DANTAS e
BLANCK, 2005, p. 76 apud SOUZA, 2009, p. 66)
UFS interpõe Agravo de Instrumento para suspender a liminar deferida em 1°
Grau. 0004847-30.2004.4.05.0000 – TRF da 5ª Região.
O Desembargador Federal Marcelo Navarro deferiu o pedido da UFS, com efeito
suspensivo à decisão de 1º Grau, determinou o prosseguimento regular do Curso
Especial de Engenharia Agronômica – 610.
55
Em 28/4/2004, o Desembargador do TRF da 5ª Região assim proferiu sua
decisão liminar ao atribuir efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento interposto
pela UFS:
[Publicado em 07/05/2004 00:00] [Guia: 2004.000377] (M303) D E C I S Ã O
Vistos, etc. A UFS - UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE interpõe o
presente agravo de instrumento, pleiteando efeito suspensivo, contra
decisão da lavra da douta Juíza Federal Substituta da 3ª Vara da Seção
Judiciária de Sergipe, que deferiu medida liminar, nos autos de ação civil
pública, para suspender o início do Curso 610 - Engenharia Agronômica
Especial - daquela autarquia universitária, até ulterior deliberação daquele
juízo.Esclarece a agravante que o Projeto de Qualificação em Engenharia
Agronômica para jovens e adultos não graduados em nível superior,
vinculados a Assentamentos de Reforma Agrária no Nordeste PROQUERA - foi aprovado pela Resolução nº 09/2003 do Conselho
Universitário da Universidade Federal de Sergipe, com o objetivo de
oferecer ao homem do campo, em especial ao público ligado à reforma
agrária, acesso à educação formal, ofertando-se uma turma única de 60
(sessenta) vagas. Afirma que o plano pedagógico foi aprovado pela
Resolução nº 16/2003, do Conselho de Ensino e Pesquisa da UFS que
dispõe sobre a duração do curso, além dos currículos padrão e
complementar e o ementário das disciplinas do curso. Alega que diante
dessa ação afirmativa da UFS foram adotadas algumas medidas
diferenciadas em relação ao curso regular de engenharia agronômica, quais
sejam: o público alvo é o beneficiário ou filho de beneficiário da reforma
agrária em assentamentos do Nordeste, desde que tenha declaração do
INCRA em Sergipe informando tal condição, conforme o convênio celebrado
entre o INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, a
FAPESE - Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe e a UFS;
a realização de um concurso vestibular especial composto de uma prova
subjetiva correspondente à elaboração de uma redação sobre tema
relacionado com a agricultura e meio ambiente com peso 3 (três) e uma
prova objetiva de conhecimentos gerais com peso 7 (sete); e, ainda, que os
períodos letivos serão ministrados de forma intensiva. Assim, refuta a
alegação da autora, de ofensa ao princípio da isonomia, e, ressaltando
que as universidades, nos termos do art. 207 da Carta Constitucional,
gozam de autonomia administrativa, podem instituir vestibular especial
e, ainda, que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação não exige a
inclusão de prova de português no processo seletivo, até porque a
prova de redação supriria a necessidade daquele exame. Reservei-me
para apreciar o pedido de efeito suspensivo após a ouvida das partes
agravadas e do representante do Parquet federal. (Grifo nosso)
[...]
DECIDO: A Constituição Federal prevê, nos seus artigos 207 e 208, V, o
seguinte: "As universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. O
dever do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia
de:- acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da
criação artística, segundo a capacidade de cada um; "Por sua vez, a Lei
nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 - Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, nos seus arts. 44, II e 47, assim dispõe: "A educação superior
abrangerá os seguintes cursos e programas:- de graduação, abertos a
candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham
sido classificados em processo seletivo; Na educação superior, o ano letivo
56
regular, independente do ano civil, tem, no mínimo, duzentos dias de
trabalho acadêmico efetivo, excluído o tempo reservado aos exames finais,
quando houver." (realce atual) A Portaria nº 391, de 07 de fevereiro de
2002, do Ministro de Estado da Educação, nos seus artigos 1º, 2º e 3º,
estabelece: "Art. 1º Os processos seletivos para ingresso nas Instituições
Públicas e Privadas pertencentes ao Sistema e Ensino Superior, a que se
refere o Inciso II do art. 44, da Lei de Diretrizes de Bases da Educação
Nacional, deverão seguir as determinações do Parecer nº 98/99, de 6 de
julho de 1999, do Conselho Nacional de Educação a as disposições da
presente Portaria. Art. 2º Todos os processos seletivos que se refere o
artigo anterior incluirão necessariamente uma prova de redação em língua
portuguesa, de caráter eliminatório, segundo normas explicitadas no edital
de convocação do processo seletivo. Art. 3º Somente serão aceitas
inscrições nos processos seletivos, a que se refere o artigo 2º, de
candidatos que estejam cursando o Ensino Médio ou que possuam o
Certificado de Conclusão deste nível de ensino, obtido pela via regular ou
da suplência. "A Portaria nº 10, de 16 de abril de 1998, do Ministro de
Estado Extraordinário de Política Fundiária, no uso das atribuições que lhe
confere o parágrafo único do art. 87 da Carta Constitucional, instituiu o
PRONERA com o objetivo de "fortalecer a Educação nos Assentamentos de
Reforma Agrária, utilizando metodologias específicas para o campo, que
contribuam para o desenvolvimento rural sustentável do assentamento. "Por
sua vez, o INCRA anexou aos autos certidão da Coordenadora Nacional do
PRONERA, na qual consta que o PRONERA vinculado ao INCRA já propôs,
estimula, desenvolve e coordena diversos cursos de graduação, alguns em
andamento e outros já concluídos. A Resolução nº 09/2003/CONSU, do
Conselho Universitário, da Universidade Federal de Sergipe, aprova a
implementação do PROQUERA, estabelecendo seus artigos 3º, I e II. § 2º e
art. 4º, verbis: "O PROQUERA será destinado aos jovens e adultos não
graduados em nível superior vinculados a Assentamentos de Reforma
Agrária do Nordeste e que apresentem no ato da inscrição para o Concurso
Vestibular Especial:- certificado de conclusão do ensino médio ou de curso
equivalente;- declaração da Superintendência do INCRA em Sergipe
informando que o candidato é beneficiário ou filho de beneficiário da
Reforma Agrária em Assentamentos no Nordeste.Do Concurso Vestibular
Especial constarão apenas duas provas, ambas classificatórias, Redação e
Conhecimentos Gerais, com peso 3 (três) e 7 (sete) respectivamente, não
podendo, o candidato, zerar, quaisquer das provas, sob pena de eliminação
do processo. Ao ingressar nesse Projeto o aluno deverá assinar um termo
de compromisso sobre sua vinculação a Assentamentos de Reforma
Agrária do Nordeste até, no mínimo, 4,5 (quatro anos e meio) após a
conclusão do referido projeto. "A Universidade Federal de Sergipe, no gozo
de sua autonomia didático-científica e administrativa, dada pela norma
constitucional, em conjunto com a FAPESE, firmou convênio com o
INCRA/PRONERA para implementação do Curso Especial de Engenharia
Agronômica - 610, o qual, ao meu sentir, revela-se um instrumento de
inclusão social que garante ao homem do campo, vinculado aos
assentamentos de reforma agrária do Nordeste, o acesso ao ensino
superior ou de 3º Grau. O PRONERA, ao contrário do alegado pela
agravada, não foi instituído com o fito exclusivo de alfabetizar e
oferecer cursos técnicos aos jovens e adultos de assentamentos de
reforma agrária, mas de propiciar a execução de projetos
educacionais, utilizando metodologias voltadas para a especificidade
do campo, dentre eles os cursos de graduação, com o objetivo de
contribuir para o desenvolvimento rural sustentável. Com efeito, a
certidão, anexada aos autos, da Coordenadora do PRONERA, menciona
alguns cursos de graduação em andamento e outros já concluídos, criados
através do aludido Programa, quais sejam: Curso de Agronomia, em
execução através de convênio com a UFPA; Curso de Pedagogia Plena, em
andamento por meio de convênio com a UFES; Curso de Pedagogia, em
57
execução através de convênio com a UERGS; Curso de Licenciatura Plena
em Pedagogia, executado através de convênio com UNEMAT; Curso de
Pedagogia, convênio executado com a UFES e o Curso de Pedagogia,
executado através de convênio com a UNIJUÍ. Foram invocados pela
AEASE três aspectos, para tentar justificar o confronto entre a instituição do
referido curso e a legislação vigente, quais sejam:- requisitos de seleção ao
curso especial - 610 (afronta ao princípio constitucional da isonomia);- carga
horária inferior à estabelecida na LDB;- ausência de prova de português;
Ressalto, de início, que o princípio da isonomia consiste em dar
tratamento igual àqueles que estão na mesma situação. Ora, o curso
especial é destinado aos beneficiários ou filhos de beneficiários dos
assentamentos de Reforma Agrária, pelo que não poderia aluno de
Curso Regular de Engenharia Agronômica da UFS, o qual não se
encontra nessa condição, alegar quebra do princípio isonômico. A Lei
de Diretrizes de Bases da Educação exige para o acesso aos cursos de
graduação a conclusão do ensino médio e a classificação em processo de
seleção, o que teria sido cumprido pela UFS; a carga horária de 200 dias
por semestre, refere-se a trabalho acadêmico, pelo que poderia parte dela
ser executada fora de sala de aula; e, ainda, a exigência de prova de
redação em língua portuguesa, na referida seleção especial, satisfaz, em
princípio, as normas expedidas pelo MEC.Considerando, assim, a
legislação colacionada, o parecer ministerial, os requisitos exigidos na
seleção do Curso Especial de Engenharia Agronômica - 610 da UFS, bem
como a sua finalidade social, DEFIRO o pedido para, emprestando efeito
suspensivo à decisão de 1º Grau, determinar o prosseguimento regular
do Curso Especial de Engenharia Agronômica - 610, da Universidade
Federal de Sergipe. Oficie-se, com urgência, à douta Juíza Federal
Substituta da 3ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe, para o cumprimento
desta decisão. Intime-se a parte agravada para, no prazo legal, apresentar a
sua resposta ao recurso. Publique-se.Recife, 28 de abril de 2004.DES.
10
FEDERAL MARCELO NAVARRO. RELATOR (Grifo nosso)
A transcrição da íntegra da decisão do Relator é fundamental para se
perceber que houve exclusão de todos os argumentos utilizados pela AEASE na
busca do cancelamento do curso de Agronomia para os beneficiários da reforma
agrária. Nota-se uma postura crítica e materialista histórica na argumentação da
referida decisão. Basta ver a sua menção sobre o princípio da isonomia – tratar os
iguais com igualdade. Para ele, os filhos dos assentados estão tendo tratamento
igualitário. O que não seria de se esperar é que filhos de latifundiários tivessem o
mesmo tratamento, pois aí sim o princípio da isonomia estaria gerando
desigualdade, a exemplo do que já ocorre comumente na sociedade brasileira. Muito
pertinente as interpretações feitas à luz da contradição social e à luz da realidade
10
Inteiro Teor obtido de consulta a Hhttp://www.trf5.jus.br/cp/cp.do em 25/3/2012H, 18h. Na referida
página é possível ter acesso ao Agravo de Instrumento e à Apelação Cível de Autoria da AEASE.
58
fática, para então convocar as normativas e os princípios gerais que iluminam o
direito e a justiça.
Duarte (2008, p. 35) nos auxilia na reflexão do que está disposto no artigo 5°
da Constituição Federal, dizendo que o mesmo “[...] traz proibição genérica da
discriminação (princípio da igualdade formal), em vários de seus incisos afirma ‘
igualdades especiais’”. E, isso ocorre porque “[...] nem sempre a lei é feita para
atingir a todos indistintamente, de forma genérica, independentemente de sua
origem, gênero, raça, condição social, etc. Daí a importância do princípio da
igualdade material”. Para a autora, “O princípio da igualdade material, ou igualdade
feita pela lei, visa criar patamares mínimos de igualdade no campo do acesso aos
bens, serviços e direitos sociais”.
E, a autora continua as suas reflexões dizendo que o reconhecimento da
igualdade material obriga o administrador a trabalhar para o cumprimento dos
objetivos da Constituição Federal. Ainda, “[...] obriga o legislador a elaborar
programas de ação concretos para reduzir as desigualdades existentes na
sociedade” (DUARTE, 2008, p. 35)
Em síntese, até aqui foi descrita a ACP originada pela AEASE, com o
julgamento do pedido liminar pela Juíza da 3ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe.
Inconformada, a UFS interpõe Agravo de Instrumento ao TRF da 5ª Região, que foi
conhecido com efeito suspensivo pelo Desembargador Federal Marcelo Navarro.
Será a partir de 29/6/2004 que o curso terá os seus rumos pedagógicos
reconduzidos na UFS, após decisão do TRF da 5ª Região, conforme segue:
A Turma, por unanimidade, deu provimento ao agravo de instrumento,
nos termos do voto do relator. Participaram do julgamento os Exmos. Srs.:
Desembargador Federal Luiz Alberto Gurgel, Desembargador Federal
59
Lázaro Guimarães e Desembargador Federal Marcelo Navarro. 11 (Grifo
nosso)
O acórdão foi publicado em 17/8/2004, conforme segue:
[Publicado em 17/08/2004 00:00] [Guia: 2004.000672] (M303) EMENTA:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
MEDIDA LIMINAR. ENSINO SUPERIOR. CURSO ESPECIAL DE
ENGENHARIA AGRONÔMICA DIRIGIDO AOS BENEFICIÁRIOS OU
FILHOS DE BENEFICIÁRIOS DA REFORMA AGRÁRIA EM
ASSENTAMENTOS DO NORDESTE. CONVÊNIO DO INCRA, FAPESE E
UFS. LEI Nº 9.394/96.- A Universidade Federal de Sergipe, no gozo de sua
autonomia didático-científica e administrativa, dada pela norma
constitucional, em conjunto com a FAPESE, firmou convênio com o
INCRA/PRONERA para implementação do Curso Especial de Engenharia
Agronômica - 610, o qual revela-se um instrumento de inclusão social que
garante ao homem do campo, vinculado aos assentamentos de reforma
agrária do Nordeste, o acesso ao ensino superior ou de 3º Grau.- A Lei de
Diretrizes e Bases da Educação - Lei 9.394/96 - exige para o acesso aos
cursos de graduação a conclusão do ensino médio e a classificação em
processo de seleção, o que teria sido cumprido pela Universidade Federal
de Sergipe na realização Curso Especial de Engenharia Agronômica.- A
carga horária de 200 dias por semestre, prevista para o aludido curso,
refere-se a trabalho acadêmico, pelo que poderia parte dela ser executada
fora da sala de aula.- A exigência de prova de redação em língua
portuguesa, na referida seleção especial, satisfaz, em princípio, as normas
expedidas pelo MEC.- Agravo provido. A C Ó R D Ã O Vistos, etc. Decide a
Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, à
unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do
voto do relator, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes nos
autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Recife, 29 de
junho de 2004. DES. FEDERAL MARCELO NAVARRO RELATOR. (Grifo
nosso)
Em 29/9/2004, a decisão do Agravo foi remetida para a Seção Judiciária de
Sergipe, com baixa definitiva no TRF 5ª Região. Em 5/12/2006, o Juiz Edmilson da
Silva Pimenta, da 3ª Vara Federal de Sergipe, analisou a ACP e proferiu a sentença
favorável à UFS e ao funcionamento do curso de Agronomia para beneficiários da
reforma agrária. A ementa da decisão está reproduzida a seguir:
ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. CURSO ESPECIAL DE ENGENHARIA AGRONÔMICA.
PRELIMINAR DE INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. REJEITADA.
QUESTÃO
ATINENTE
À
CATEGORIA
DOS
ENGENHEIROS
11
Idem.
60
AGRÔNOMOS E DOS CANDIDATOS A INGRESSO NOS CURSOS DE
GRADUAÇÃO DA UFS, ATRAVÉS DE CONCURSO VESTIBULAR.
DIREITO COLETIVO. ART. 1º , V , DA LEI Nº 7.347 /85. BENEFÍCIO A
JOVENS E ADULTOS VINCULADOS A ASSENTAMENTOS DE REFORMA
AGRÁRIA.
ALEGAÇÃO
DE
VIOLAÇÃO
A
PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS E À LEGISLAÇÃO REGULAMENTADORA DO
ENSINO SUPERIOR DO BRASIL. POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA.
SUBMISSÃO AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA. REGRAS QUE OBEDECEM À LEI DE DIRETRIZES E
BASES DA EDUCAÇÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS
PEDIDOS AUTORAIS. 12 (Grifo nosso)
Os argumentos utilizados pelo Juiz Federal são resumidos na sua decisão,
como segue:
Rejeito a preliminar aventada, passando ao exame meritório. A política de
ações afirmativas, como bem lembrou o Ministério Público Federal, é
hoje uma realidade disseminada por todo o corpo da Constituição
Federal, transmudada em direitos fundamentais do indivíduo, a
exemplo do art. 5º , XLVIII , LXXIV , LXXVI , e do art. 7º , XVIII , XIX , da
Lei Magna. Ela visa, precipuamente, cumprir os princípios da isonomia e da
dignidade da pessoa humana, insculpidos nos arts. 5º, 1º, III, da Lei
Suprema. Diante desse contexto, foi criado o PRONERA, por via da Portaria
nº 10 , de 16 de abril de 1998, expedida pelo Ministro de Estado
Extraordinário de Política Fundiária, em decorrência da autorização dada
pelo art. 87 da Carta Magna , com escopo de fortalecer a educação nos
Assentamentos de Reforma Agrária. No rastro da aludida Portaria e da sua
autonomia didático-científica e administrativa, esta última conferida pelo art.
207 da Constituição Federal, o Conselho Universitário da UFS expediu a
Resolução nº 09 /2003/CONSU e criou o PROQUERA, firmando convênio
com a FAPESE e o INCRA para a implementação do Curso Especial de
Engenharia Agronômica -610, destinado aos jovens e adultos não
graduados em nível superior vinculados a Assentamentos de Reforma
Agrária do Nordeste. De acordo com os arts. 3º, I e II , e 4º da referida
Resolução: "O PROQUERA será destinado aos jovens e adultos não
graduados em nível superior vinculados a Assentamentos de Reforma
Agrária do Nordeste e que apresentem no ato da inscrição para o Concurso
Vestibular Especial: - certificado de concluso do ensino médio ou de curso
equivalente; - declaração da Superintendência do INCRA em Sergipe
informando que o candidato é beneficiário ou filho de beneficiário da
Reforma Agrária em Assentamentos no Nordeste. Do Concurso Vestibular
Especial constarão apenas duas provas, ambas classificatórias, Redação e
Conhecimentos Gerais, com peso 3 (três) e 7 (sete) respectivamente, não
podendo , o candidato, zerar quaisquer das provas, sob pena de eliminação
do processo." Sob outro ângulo, a legislação que cuida do Ensino Superior
no Brasil dispõe: Lei de Diretrizes e Bases da Educação -LDB (Lei nº 9.394
/1996): "A educação superior abrangerá os seguintes cursos e programas: de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio
ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo; Na
12
Disponível em Hhttp://expresso-noticia.jusbrasil.com.br/noticias/3732/justica-federal-mantem-cursode-engenharia-agronomica-destinado-aos-sem-terraH. Acesso em 10/3/2012.
61
educação superior, o ano letivo regular, independente do ano civil, tem, no
mínimo, duzentos dias de trabalho acadêmico efetivo, excluído o tempo
reservado aos exames finais, quando houver." Portaria nº 391 , de 07 de
fevereiro de 2002, do Ministro de Estado da Educação: "Art. 1º Os
processos seletivos para ingresso nas Instituições Públicas e Privadas
pertencentes ao Sistema de Ensino Superior, a que se refere o Inciso II do
art. 44 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional , deverão seguir
as determinações do Parecer nº 98 /99, de 6 de julho de 1999, do Conselho
Nacional de Educação e as disposições da presente Portaria. Art. 2º Todos
os processos seletivos que se refere o artigo anterior incluirão
necessariamente uma prova de redação em língua portuguesa, de caráter
eliminatório, segundo normas explicitadas no edital de convocação do
processo seletivo. Art. 3º Somente serão aceitas inscrições nos processos
seletivos, a que se refere o artigo 2º, de candidatos que estejam cursando o
Ensino Médio ou que possuam o Certificado de Conclusão deste nível de
ensino, obtido pela via regular ou da suplência." Do confronto dos
dispositivos legais acima transcritos, entendo haver legalidade na
criação do Curso Superior Especial em Engenharia Agronômica, ora
examinado. A uma, porque ele, ao contrário do que afirma o autor, procura
dar uma maior efetividade ao princípio da isonomia, por objetivar
diminuir o fosso existente entre os estudantes vinculados a
assentamento destinados à Reforma Agrária, visivelmente menos
favorecidos pela política educacional de base e pelo contexto social, e
outros estudantes que têm acesso aos cursos preparatórios para
vestibulares, habilitando-se a disputar, em melhores condições, as
vagas ofertadas regulamente pela Universidade Pública. A duas, porque
o PROQUERA obedeceu à legislação prevista para o Ensino Superior, na
medida em que esta apenas exige, para o acesso aos cursos de graduação,
a conclusão do ensino médio e a classificação em processo de seleção que
aplique prova de redação obrigatória em língua portuguesa. A três, porque a
carga horária de duzentos dias por semestre se refere a trabalho
acadêmico, abrangendo também tarefas executadas fora da sala de aula,
requisito facilmente preenchido pelos beneficiários do curso, haja vista
terem uma vasta experiência de vida no campo, A quatro, porque o curso
especial tem aptidão para tornar ainda mais sólida a proposta da Reforma
Agrária no Brasil, ao aliar a experiência do homem do campo ao
conhecimento científico, assegurando-lhes a plena vivência do princípio da
dignidade humana e do primado do trabalho. A cinco, porque a formação
acadêmica do homem do campo, nos moldes do questionado curso,
terá um efeito multiplicador e eficaz, pois os futuros Engenheiros
Agrônomos terão a oportunidade de disseminar seus conhecimentos e
técnicas junto àqueles que laboram no campo, orientando-os na
otimização dos recursos públicos investidos na Reforma Agrária, bem
assim viabilizando o emprego de recursos privados. A matéria foi objeto
de exame pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª Região, ao julgar o
Agravo de Instrumento nº 54359/SE, cujo Relator foi o eminente
Desembargador Federal Marcelo Navarro [...] Ex positis, julgo
improcedente o pedido da autora, condenando-a no pagamento das
custas processuais. Condeno-a, também, no pagamento de honorários
advocatícios no montante de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa,
nos termos do § 3º do art. 20 do Código de Processo Civil , a ser rateado
equitativamente, em favor dos réus. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Aracaju, 05 de dezembro de 2006. Juiz Edmilson da Silva Pimenta" 13
13
Idem.
62
O julgamento da ACP foi efetivado em 5/12/2006. O juiz decidiu pela
improcedência do pedido da AEASE, que era de extinção do curso de Agronomia.
Da decisão do Juiz Edmilson Pimenta, em 1° Grau houve recurso de
apelação interposto pela AEASE ao TRF da 5ª Região.
O recurso de apelação foi improvido em 13/1/2009, pelo Desembargador
Federal Marcelo Navarro.
Em 23/4/2009, houve remessa para baixa definitiva do processo na Seção
Judiciária de Sergipe. Sendo assim, conforme exposto no artigo 16 da Lei n°
7.347/1985 – ACP – “A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da
competência territorial do órgão prolator (...)”. O artigo 16 da ACP é bastante
polêmico, embora o STJ seja favorável à eficácia e aplicação da norma.
Conforme afirma Zandonai (2009, p. 16-17):
Os direitos perseguidos nas ações coletivas não podem ser divididos, por
isso é que, justamente, são chamados meta ou transindividuais, não
havendo como determinar a abrangência do dano. Por isso, a amplitude de
uma sentença coletiva, bem como da qualidade agregada a seus
efeitos, qual seja a coisa julgada, não pode ser restringida ao território
de seu órgão prolator. Ademais, a competência territorial serve apenas
para definir qual juízo processará a causa, e não para fixar o âmbito
territorial em que os efeitos da sentença serão imutáveis. A competência
será definida pelo local do dano. Mas a questão não é referente à jurisdição
nem à competência, essa nada mais sendo do que a medida da jurisdição,
e sim aos limites subjetivos da coisa julgada, que serão definidos a partir da
espécie de direito coletivo discutido.
Portanto, caberia aqui uma reflexão sobre o alcance da sentença que faz
coisa julgada material. Em que medida essas decisões podem constituir precedentes
63
importantes na análise de casos semelhantes no país? No momento, os estados de
Goiás e Rio Grande do Sul têm ações no Judiciário versando sobre os cursos
superiores para os beneficiários da reforma agrária. A sentença proferida pelo Juiz
de 1° grau e confirmada pelo Desembargador federal é substanciosa quanto aos
argumentos jurídicos e sociológicos. Afinal, discutir a educação no âmbito da
reforma agrária é colocar em foco uma questão jurídica e sociológica ao mesmo
tempo. Põe em questão a prática social e a importância dos conhecimentos
científicos voltados à transformação da realidade.
Diante do exposto, a interrogação que resta é: como os princípios
constitucionais são utilizados no julgamento das questões que dizem respeito aos
direitos sociais? O Juiz e o Desembargador que decidiram a ACP proposta pela
AEASE têm visão de futuro ao mencionar que os formados terão possibilidade de
contribuir com o processo de reforma agrária.
O princípio da isonomia está presente nos fundamentos da Ação Civil
Pública proposta pela Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado de
Sergipe. Bonavides (2008, p. 377) afirma que:
Os domínios da interpretação constitucional testemunham controvérsias
inumeráveis com relação ao conceito de igualdade, sobretudo em razão do
prestígio que a igualdade fática ou material entrou a desfrutar naqueles
sistemas onde a força do social imprime ao Direito os seus rumos.
O referido autor demonstra que um dos problemas fundamentais na
interpretação do princípio da igualdade reside em determinar se esse princípio
representa ou não uma obrigação para o Estado, ou seja, de criação da igualdade
fática na sociedade.
Essa polêmica está presente entre o conteúdo da ACP e os argumentos
apresentados pelo Desembargador, haja vista que, para a AEASE, a criação do
64
curso de Agronomia, com o respectivo vestibular, estaria ferindo a igualdade de
tratamento e de acesso à universidade. Por sua vez, o Desembargador entende que
a existência do curso de Agronomia daria efetividade ao princípio da isonomia.
Afirma ele, que a existência dessa possibilidade diminuiria o
[...] fosso existente entre os estudantes vinculados a assentamento
destinados à Reforma Agrária, visivelmente menos favorecidos pela política
educacional de base e pelo contexto social, e outros estudantes que têm
acesso aos cursos preparatórios para vestibulares, habilitando-se a
disputar, em melhores condições, as vagas ofertadas regulamente pela
Universidade Pública.
Bonavides cita Alexy, que teria dito que “quem quiser produzir a igualdade
fática, deve aceitar por inevitável a desigualdade jurídica”. Para o primeiro autor, “o
Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito
que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de
estabelecer equivalência de direitos”. (BONAVIDES, 2008, p. 378).
A batalha judicial que envolveu o curso de Agronomia para beneficiários da
reforma agrária no Estado do Sergipe teve final feliz, haja vista a sentença favorável
ao funcionamento do curso, por sua legalidade e não ferimento do princípio da
isonomia. Sentença que faz coisa julgada material, nos termos do artigo 16, da Lei
7.347/1985 e do Código de Processo Civil, artigo 467, que expressa denominar-se
“coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não
mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
Uma das hipóteses presentes nesta investigação era a de que o Judiciário
estava marcado por uma ação conservadora no que se refere às decisões sobre
direitos entre sujeitos do MST e beneficiários da reforma agrária. Entretanto, a
fundamentação apresentada pelo Desembargador Federal da 5ª Região e pelo juiz
que decidiu a causa em 1ª instância demonstra razoabilidade na análise de uma
65
“questão social”. Ou seja, precioso o raciocínio de que a formação educacional terá
efeito multiplicador nos assentamentos de reforma agrária. É uma análise rara nos
meios jurídicos, pois implica na visualização da função social da reforma agrária e
da educação. Para que a reforma agrária seja bem sucedida, é fundamental o
trabalho de profissionais com vínculo direto com a terra, trabalho e cultural.
Importante ressaltar que três princípios constitucionais foram analisados no
caso
específico:
legalidade,
isonomia
e
autonomia
didático-científica
da
universidade. Os fatos e a interpretação crítica da lei levaram ao entendimento da
legalidade do referido curso, tendo em conta a realidade concreta.
Como afirma Bonavides (2008, p. 378):
Os direitos fundamentais não mudaram, mas se enriqueceram de uma
dimensão nova e adicional com a introdução dos direitos sociais básicos. A
igualdade não revogou a liberdade, mas a liberdade sem igualdade é valor
vulnerável. Em última análise, o que aconteceu foi a passagem da liberdade
jurídica para a liberdade real, do mesmo modo que da igualdade abstrata se
intenta passar para a igualdade fática.
No próximo capítulo, será descrito o trâmite judicial necessário para a
efetivação do curso de Direito para os beneficiários da reforma agrária, na UFG.
Para iniciar o capítulo, é importante explicitar que a turma está concluindo o curso de
Direito no ano de 2012. Portanto, mais uma conquista da organização dos
trabalhadores do campo em colaboração com os trabalhadores das universidades
públicas que lutam por um Brasil menos desigual e por Justiça.
66
FIGURA 3 – SÍMBOLO DO CURSO DE DIREITO DA UFG,
REFORMA AGRÁRIA.
FONTE: Disponível em: http://www.cptgoias.com/noticias. Acesso em:
27/3/2012.
67
4
AÇÃO
CIVIL
PÚBLICA,
DECISÃO
JUDICIAL
CONSTITUCIONAIS: O CASO DO CURSO DE DIREITO
E
PRINCÍPIOS
A caracterização do curso de Direito na UFG foi realizada mediante consulta
ao texto de Morais (2010), que discute a dogmática jurídica, propondo uma análise
crítica do ensino jurídico. Ele revela que o curso de Direito contou com articulações
iniciadas no ano de 2005 entre a Universidade e os movimentos sociais e sindicais
do campo. Dos diálogos emergiu a proposta da criação de uma turma especial de
Direito, com funcionamento no campus universitário da cidade de Goiás. Também, o
trabalho de conclusão de curso de autoria de Gonçalves (2011) auxiliou na
compreensão do processo de criação do curso de Direito.
No ano de 2005 teve início a elaboração da proposta de curso de Direito
para beneficiários da reforma agrária, tendo sido apresentado o projeto de criação
da turma especial ao PRONERA no ano de 2006. O público-alvo era composto de
estudantes vindos dos assentamentos da reforma agrária e beneficiários da política
nacional da agricultura familiar. Também, o projeto foi mantido por meio de parceria
entre universidade e INCRA, e o seu trâmite seguiu os caminhos institucionais, bem
como a aprovação pela OAB-GO.
A parceria foi firmada entre UFG, INCRA, CONTAG, Fundação de Apoio à
Pesquisa (FUNAPE), e os movimentos sociais do campo ligados à Via Campesina, a
exemplo do MST, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos
Pequenos Agricultores (MPA), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Pastoral da
Juventude Rural (PJR).
Como nas demais experiências de educação superior, o curso enfrentou
batalhas judiciais e a ideologia veiculada pela mídia impressa e televisiva, contrária
ao curso. Finalmente, o curso foi aprovado, pelo Conselho Universitário, em
setembro de 2006.
68
Segundo Gonçalves (2011, p. 108) citando o documento MGMO n° 51/2006,
relata que no ano de 2006 foi instaurado Inquérito Civil Público pelo MPF com “[...]
finalidade de apurar a regularidade dos projetos mantidos pela Universidade Federal
de Goiás para a criação de possíveis cursos a serem destinados a segmentos
específicos da sociedade”. O MPF enviou ofícios à UFG, Ministério da Educação,
OAB/Seção Goiás e INCRA para manifestação sobre o caso. A OAB/GO aprovou o
parecer do relator da Comissão de Ensino Jurídico que destacou a legalidade da
proposta da UFG. O INCRA também concordou com a legalidade da implantação da
turma, como expressão de ação afirmativa. O Ministério da Educação não
concordou com o projeto afirmando que o mesmo desprezava os demais excluídos
da sociedade. De acordo com a referida autora, o MPF depois de tomar
conhecimento
dos
pareceres
das
entidades
mencionadas,
decidiu
pelo
arquivamento do Inquérito, expressando o entendimento de que os beneficiários da
reforma agrária e os grupos familiares necessitam de políticas afirmativas, pois são
vítimas de discriminação cultural.
A partir de então, foi feita a seleção dos alunos em janeiro de 2007. A turma
teve início com 60 alunos. É desenvolvido segundo a concepção da Alternância,
sendo central a organização pedagógica por Tempo Escola e Tempo Comunidade, a
exemplo do curso de Agronomia mencionado no capítulo anterior. No mês de agosto
do mesmo ano foi realizada a aula inaugural do curso, com a presença do Ministro
do STF Eros Roberto Grau que teceu reflexões sobre o tema “O Direito posto e do
Direito pressuposto”.
Após a aula inaugural, os ânimos jurídicos foram acirrados novamente e a
batalha
judicial
foi
iniciada
com
a
ACP
proposta
pelo
MPF,
sob
n°
69
2008.35.00.013973-0/GO, sob alegação de que “há desvio de finalidade” na
proposição de uma turma especial de Direito.
ACP 2008.35.00.013973-0, proposta pelo MPF
PEDIDOS
Declaração da ilegalidade do convênio estabelecido entre INCRA e UFG,
com utilização de recursos do PRONERA.
Extinção do curso.
Validade das atividades acadêmicas integralizadas pelo corpo discente,
assegurando a consecução do semestre letivo.
O contexto do estabelecimento do convênio que deu origem ao curso e os
principais argumentos presentes na ACP estão descritos a seguir:
Os ocupantes do pólo passivo da demanda firmaram termo de cooperação
técnica,
consubstanciado
na
Portaria
Conjunta
INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9 de 17 de agosto de 2007, visando
implementar curso de graduação em Direito destinado a beneficiários da
reforma agrária, a ser custeado com recursos do Programa Nacional de
Educação de Jovens e Adultos – PRONERA, consoante fls. 18/201. Para
dar concretude ao avençado, a UFG iniciou processo seletivo para “Turma
especial de graduação em Direito para beneficiários da reforma agrária”,
com o desiderato de selecionar os futuros discentes do curso. Foi
formulada, como exigência da inscrição, a comprovação da qualidade de
agricultor assentado ou agricultor familiar, acoimando de nulidade a
inscrição que não atendesse a este discrímen (fls. 27). Insta salientar, neste
momento, que essa forma de processo seletivo restrito já havia recebido
manifestação negativa da Consultoria Jurídica do Ministério da Educação
(fls. 79/85), parecer este relegado ao oblívio pelo órgão gestor da
Universidade Federal de Goiás, que efetivamente veio a promover o
vestibular para universo restrito de concorrentes. Concluído o certame,
iniciou-se o curso, que se encontra em pleno funcionamento, consoante
demonstra a documentação acostada às fls. 131/138. O Ministério da
Educação e Cultura informou que não há previsão da criação de outras
turmas, mas que tal decisão compete exclusivamente à Universidade, que
dispõe de autonomia didático-científica e administrativa, nos termos do art.
207, caput, da Constituição da República (fls. 68). Trata-se, à toda
evidência, de implementação de medida de exceção, restritiva do direito de
competir pelas vagas existentes, que se pretende ver acobertada pelo
manto simpático e politicamente correto das ações afirmativas.
[...]
O que se vem trazer à apreciação do Poder Judiciário nesta demanda é a
análise de adequação de emprego de recursos públicos para custeio do
70
referido curso de graduação, bem como do discrímen eleito para
emprestar tratamento diferenciado a determinado grupamento social, in
casu, os assentados beneficiários da reforma agrária e seus filhos, em
detrimento de indeterminável grupamento de potenciais candidatos ao curso
de Direito, em superiores condições culturais- cognitivas. (Grifo nosso)
Importante comentar que um dos objetivos do PRONERA é “garantir aos
assentados (as) escolaridade/ formação profissional, técnico-profissional de nível
médio e curso superior em diversas áreas do conhecimento” (MDA/INCRA, 2004, p.
15).
Dessa forma, não cabe mencionar o desvio de finalidade alegado pelo MPF,
mas sim garantir que o direito social à educação seja efetivado entre os beneficiários
da reforma agrária e os seus filhos, ampliando o leque de possibilidades de atuação
e intervenção na própria realidade – assentamento da reforma agrária. Pode-se
dizer que vários direitos fundamentais estão nas questões que envolvem terra e
educação, a saber: trabalho, alimentação, moradia, saúde. A educação tem sido um
dos meios discutidos internacionalmente, há séculos, para o desenvolvimento das
sociedades.
Mello (2009, p. 107) afirma que:
[...] o princípio da finalidade impõe que o administrador, ao manejar as
competências postas a seu encargo, atue com rigorosa obediência à
finalidade de cada qual. Isto é, cumpre-lhe cingir-se não apenas à finalidade
própria de todas as leis, que é o interesse público, mas também à finalidade
específica abrigada na lei a que esteja dando execução.
Como escreve o referido autor, o princípio da finalidade não é uma
decorrência do princípio da legalidade, mas está contido nele, é uma inerência dele.
(MELLO, 2009, p. 106).
Continuando os argumentos do MPF, verifica-se que:
71
Ocorre que o ato instituidor do PRONERA, a Portaria nº 10, de 16 de abril
de 1998, tem entre seus consideranda que o programa visa “atender a
demanda educacional dos assentamentos rurais, dentro de um contexto de
Reforma Agrária prioritário do Governo Federal, de assentar o trabalhador
em um lote de terra, provendo-lhe as condições necessárias ao seu
desenvolvimento econômico sustentável” além de preceituar que o
programa tem por objetivo “fortalecer a educação nos Assentamentos de
Reformar Agrária, utilizando metodologias específicas para o campo,
que contribuam para o desenvolvimento rural sustentável do
assentamento” (sem grifos no original) Fica clara a preocupação em
garantir o direito à educação, mas resguardada sua finalidade útil
contextualizada: manter o homem ligado à terra. Guardada está a
compatibilidade com o texto constitucional que, ao tratar da educação, em
complementação ao seu reconhecimento como direito social no art. 6º,
expressa a vontade da coletividade de que o ensino- para além do
incremento da carga cognitiva do educando- represente um retorno à
sociedade do que foi investido no indivíduo, tornando-o mais apto ao
trabalho e à produção, conforme depreende-se de seu art. 205: “Art. 205. A
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho” Não demanda grande esforço exegético
a compreensão de que o estudo do Direito por parte dos beneficiários
da reforma agrária não se presta a nenhum dos desideratos propostos,
sendo estridente a infringência aos fins pretendidos pelo normativo do
programa, sendo conseqüente lógico a caracterização do desvio de
finalidade, pois não o qualifica para o trabalho, não usa metodologia
específica para o campo e não contribui para o desenvolvimento sustentável
do assentamento. (Grifo nosso)
Não é possível deixar em branco a passagem em que o MPF alega que o
estudo do Direito não se presta aos fins propostos pelo PRONERA e que,
certamente, a grande maioria dos formados migrará para a cidade. Grande
ingenuidade pensar que em função da liberdade de ir e vir a efetivação do curso
superior seria ilegal por não gerar a permanência do sujeito no campo. Os estudos
agronômicos e econômicos, especialmente, revelam que a permanência do
trabalhador no campo depende de um conjunto de políticas públicas relacionados à
formação profissional, aos processos de produção e de comercialização dos
produtos. Também, estudos sociológicos revelam a necessidade de melhorar a
infraestrutura no campo, desde estradas, escolas, acesso à saúde, segurança etc.
para que a condição de vida seja digna. Portanto, não há que se falar que o curso
não atinge o propósito de manter as pessoas no campo. Ele é apenas um dos
72
mecanismos, num conjunto maior, a fortalecer as possibilidades de sucesso da
reforma agrária (ainda por ser feita no Brasil).
E, o MPF, no texto da ACP, continua:
Sabido é que o habitat do profissional do Direito, em qualquer de suas
vertentes, é o meio urbano, pois é nesta localidade em que se
encontram os demais operadores da ciência jurídica. Ainda que venha
ele a patrocinar pretensão titularizada por cidadão que habite a mais
distante área rural, endereçará a sua demanda a órgão do Poder
Judiciário, não encontradiço em paragens rurícolas. (Grifo nosso)
[...]
Chega-se então a uma das seguintes conclusões: ao completar o curso, o
assentado da reforma agrária – agora graduado em Direito – migrará para
um centro urbano para viabilizar a sua inclusão no mercado de
trabalho, frustando-se o fim último da reforma agrária, que é a
manutenção do indivíduo na terra, ou continuará em sua propriedade
rural, agora tendo sido apresentado à ciência jurídica, sem que dela
possa fazer conhecimento, ante a ausência de potencialidade de
aplicação efetiva de seu conhecimento, criando-se a inócua figura do
'palpiteiro' jurídico, implicando em produção de conhecimento despida
de resultado prático. As duas hipóteses denotam de modo evidente o
desvio de finalidade do emprego dos recursos do PRONERA, a reclamar
intervenção do Poder Judiciária para fazer cessar a injuridicidade, pois
evidente a lesividade ao patrimônio social. Diverso seria o raciocínio se o
curso fosse de Engenharia Agronômica (ou florestal), Medicina Veterinária,
Biologia, ou outra carreira que proporcionasse conhecimentos efetivamente
aplicáveis ao cotidiano dos assentados, aí sim, atendidos os preceitos
normativos, o que traria como consectário a grande virtude de ter-se um
potencial multiplicador de informações. [...] A mera existência de uma
discriminação social no passado não é mais suficiente para justificar a ação
afirmativa”4. Impensável afirmar que a Universidade Federal de Goiás
possa encontrar-se subsumida a esta proposição. Pois bem. Cotejando as
premissas fixadas pela doutrina percebe-se com facilidade que: a) os
assentados não possuem em comum nenhum dos elementos
identificadores usualmente tomados como parâmetro para ter-se como
legítima a discriminação positiva (cor, raça, sexo, origem); b) não há registro
histórico que permita apontar uma perda histórica sofrida pelo grupamento,
e sem esse indicativo de perda, não há que se falar em medida
compensatória. (Grifo nosso)
[...]
A ausência de previsão legal de tratamento diferenciado aos beneficiários
da reforma agrária impede que se lhes conceda anticompetitive advantage
quando postos em contraste com os demais candidatos ao ingresso no
curso de graduação em Direito. Tal situação, afirma o renomado publicista,
fere de morte o princípio da igualdade, ou em suas palavras “não se
podem interpretar como desigualdades legalmente certas situações, quando
a lei não haja “assumido” o fator tido como desequiparador.
Importante refletir, desde o texto positivista do MPF, que não há o objetivo
de tratar diferenciadamente o filho do beneficiário da reforma agrária. A preocupação
com a efetivação dos cursos superiores é com a reforma agrária. Necessário lembrar
73
o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado que,
segundo Mello (2009, p. 96) “É o princípio geral inerente a qualquer sociedade. É a
própria condição de sua existência”. A reforma agrária é interesse público, porém
não concretizada em função da histórica trajetória patrimonialista do Estado no
Brasil.
Vale lembrar que o Brasil não é tão urbano quanto se calcula, tal como
escreveu Veiga (2003). Ele demonstra que o Brasil é marcado por ruralidades, tal
qual faz Valéria Verde (2004) quando estuda o estado do Paraná. No estado do
Paraná, por exemplo, dos 399 municípios, 302 têm características rurais, ou seja,
são municípios com densidade populacional inferior a 150hab/km2. E, dos
aproximadamente 5.600 municípios brasileiros, 4.800 deles teriam características
rurais. Ou seja, o país tem grande potencial para geração de emprego e de
condições saudáveis de vida no campo, mas para isso é necessário política de
Estado para a formação de mão-de-obra com conhecimentos científicos e
tecnológicos visando à reorganização do modo de produção e de comercialização
dos produtos agrícolas.
O MPF alega que os assentados não sofrem maiores dificuldades de acesso
à educação superior, como descrito a seguir. Importante notar que durante anos a
sociedade brasileira ficou reduzida a um número de 250 instituições de educação
superior – públicas no Brasil. No início do século XXI houve um aumento no número
de instituições, bem como na sua interiorização pelo Brasil, como é o caso da
Universidade da Fronteira Sul no estado do Paraná, das Universidades Federais
Tecnológicas e dos Institutos Federais. Mas existem milhares de instituições de
educação superior que são particulares, em contraponto a umas três centenas de
instituições públicas.
74
Ademais, não há qualquer estudo que indique que os assentados da
reforma agrária sofrem maiores dificuldades no acesso ao ensino superior
que os demais moradores pobres do interior do Estado de Goiás. Por acaso
o filho do servente de pedreiro da cidade de Goiás tem maior facilidade de
acesso ao ensino superior que o filho do assentado? Ou o filho do
funcionário da oficina mecânica? Ou o próprio mecânico? Por que não criar
um curso de Direito para trabalhadores de oficinas mecânicas? Ou para
trabalhadores de lojas de concerto de bicicleta? Ou para vendedores de
gêneros alimentícios de beira de estrada? Decerto que a pertinência de
todos eles para com o Direito é a mesma que a dos beneficiários da
reforma agrária. Não há objetivo a ser atingido, senão uma afinidade
ideológica que começa a perder o pudor de mostrar as caras e vir a público
ante a estupefação geral. Cada vez mais o Brasil é menos competitivo e
mais paternalista, formando gerações de analfabetos funcionais que contam
com o beneplácito do Estado, que não demanda dos interessados nenhum
esforço pessoal. (Grifo nosso)
Até o momento, o MPF alegou, de acordo com as transcrições feitas, o
ferimento ao princípio da finalidade e da isonomia. Outros princípios são
mencionados adiante:
A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. Cotejando o
ato da Universidade Federal de Goiás com a Constituição da República,
percebe-se que seu obrar entra em choque tanto com disposições
expressas, como com os princípios implícitos, como é o caso da
proporcionalidade, sendo pertinente a advertência de LUIS ROBERTO
BARROSO, ao afirmar que “o princípio em exame tem se mostrado um
versátil instrumento de proteção de direitos e do interesse público contra o
abuso de discricionariedade, tanto do legislador quanto do administrador”.
13 E segue, dando notícia do conteúdo do referido princípio “o princípio da
razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou
administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o
instrumento empregado; b) a medida não seja exigível a necessária,
havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus
a um direito individual; c) que haja proporcionalidade em sentido estrito, ou
seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se
ganha”14. A atomização se amolda de tal forma ao propósito perseguido
pela presente demanda, que far-se-á cotejo igualmente analítico princípio
versus caso concreto. a) subprincípio da adequação. Nesse primeiro
momento, a comparação de se a ferramenta eleita (ato administrativo) é
idôneo à promoção do fim pretendido pelo administrador. Evidente a
resposta negativa. Conforme largamente salientado em passagem anterior
deste arrazoado, a finalidade buscada pela reforma agrária é viabilizar a
subsistência do assentado, recrudescendo os laços que o unem à terra, de
modo que dela possa retirar não só o seu sustento, mas seja o meio
econômico que lhe permita galgar melhor posto no estamento social. Para
isso, garante a Constituição da República que o beneficiário da reforma
agrária receba bem imóvel, sem que dele seja exigida contraprestação
econômica, franqueando-se-lhe a exploração. Além disso, são
implementados programas que buscam viabilizar a exploração da terra,
como o financiamento de equipamentos e insumos agrícolas (PRONAF),
além de fornecimento de alimentação básica até que a propriedade rural
tenha capacidade de atender às demandas de seus ocupantes (Fome
Zero). É de obviedade contundente que o curso de Direito não se presta a
nenhuma dessas finalidades, contribuindo, como ressaltado alhures, para
75
deslocar o homem do campo para o centro urbano, fazendo movimento
migratório reverso daquele pretendido teleologicamente pelo art. 184 e
seguintes da Constituição da República. Percebe-se que não só carece de
adequação a medida ao fim pretendido, mas, ao revés, encontra-se em rota
de colisão com o mesmo. b) subprincípio da necessidade Como asseverado
pelo ilustre constitucionalista carioca, falar em necessidade implica entrever
“meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um
direito individual”. Pois bem. No caso em tela a ausência de necessidade,
bem como a excessiva lesão a direito individual desborda na análise
mais perfunctória que se faça do ocorrido. (Grifo nosso)
[...]
c) subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Compreendendo
esta parcela da proporcionalidade como a relação de custo-benefício
atingido pela medida, também não há dificuldade em visualizar a estridente
infringência à Norma Ápice. Com efeito, sacrificou-se o livre acesso ao
vestibular, prova destinada a selecionar os mais capacitados a captar o
conhecimento específico que lhes será ministrado, o que, ao menos no
plano hipotético, garante um retorno social muito mais satisfatório, em nome
de uma promoção de grupo de sessenta ungidos, para supostamente
corrigir uma histórica injustiça social que jamais será demonstrada. Pouca
dificuldade há a identificação de que o bem jurídico sacrificado suplanta, em
muito, aquele que se buscou promover.
Diante dos argumentos apresentados, o MPF pede a antecipação da tutela
jurisdicional pretendida, como segue:
DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL PRETENDIDA
Evidenciado quantum satis, a desconformidade da criação da “Turma
especial de graduação em Direito para beneficiários da reforma agrária”
com o ordenamento jurídico, mister tecer algumas considerações sobre a
tempestividade da tutela jurisdicional. As aulas da 'turma especial' do curso
de graduação em Direito iniciaram-se no primeiro semestre de 2007,
consoante comprova a documentação acostada às fls. 131/139.
Considerando o lapso temporal ordinário à conclusão do curso de
graduação, seu encerramento ocorreria no ano de 2011. Porém, parece
evidente que a prestação jurisdicional não pode aguardar tão elástico prazo
temporal, sob pena de restar absolutamente inócua, lembrando a expressão
que a história imortalizou como 'a vitória de Pirro'. De fato, a jurisprudência
vem, cada vez com mais freqüência, utilizando a teoria do fato consumado
como supedâneo jurídico para a resolução de conflito de interesses. Assim,
mesmo reconhecida a ilegalidade, deixa o Judiciário de desconstituir o ato
praticado, em homenagem à segurança jurídica.
CONCLUSÃO A
conclusão que se extrai de todo o exposto é que a criação da ‘Turma
especial de graduação em Direito para beneficiários da reforma agrária’
padece de injuridicidades desde a sua gênese, nódoas estas que se
espraiaram pela execução da atividade material, ensejando desvio de
finalidade, malversação de recursos públicos, tudo isso sob uma roupagem
artificiosa de ação afirmativa, implicando em agressão aos princípios da
isonomia e da proporcionalidade, bem como negativa de vigência a diversos
dispositivos constitucionais atinentes à educação, reclamando o interesse
público a interrupção das atividades da referida turma, sua desconstituição
e obstaculização à criação de outras turmas especiais nos mesmos moldes.
Ex positis, pugna o Ministério Público Federal: a) Pela concessão da
antecipação da tutela jurisdicional pretendida.
[...]
76
Dá-se à causa o valor de R$ 720.000,00. Goiânia, 20 de junho de 2008.
Raphael Perissé Rodrigues Barbosa. Procurador da República. (AEASE,
2008)
A ACP está fundamentada nos artigos 127 e 129, III da Constituição da
República Federativa do Brasil, no art. 5º, inc. I, c, II, d, III, b, V, a, e 6º, VII, b, da Lei
Complementar 75/93.
Interessante notar que o artigo 127 da CF/88 dispõe que uma das funções
do Ministério Público é a defesa dos interesses sociais. Afinal, o que é interesse
social? Manter uma massa de pessoas com baixa escolaridade? Será 9 anos,
Ensino Fundamental, a meta da sociedade brasileira? Ou, será interesse social ter
uma sociedade de pessoas letradas e capazes de realizar interpretação da palavra
escrita, oral e das ideologias? Como disse o Ministro Eros Grau na aula inaugural do
referido curso, espera-se que o profissional do direito interprete o Direito Posto e o
Direito Pressuposto.
Em vários estados brasileiros o MPF tem atuado de forma contrária aos
cursos superiores para os beneficiários da reforma agrária, em nome do princípio da
legalidade e da isonomia. Qual é a igualdade que está em foco? Quando a
igualdade formal será concreta?
O que se nota é que os princípios constitucionais são elencados a título de
camuflar a ideologia conservadora que permeia parte do mundo jurídico e da
sociedade brasileira, ao fazer valer a predominância da formação superior da elite
em detrimento da formação da classe trabalhadora. O princípio constitucional que
dispõe que todos são iguais perante a lei é mencionado em todas as ações civis
públicas, entretanto, a máxima de que os desiguais devem ter tratamento desigual
fica esquecida. Fica esquecida, especialmente, entre aqueles que compreendem o
77
mundo jurídico como uma redoma de vidro, descolado das contradições que
marcam a sociedade.
As decisões no Judiciário ocorreram como segue:
INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA (9/7/2008)
MPF apresenta AGRAVO DE INSTRUMENTO (29/7/2008) – TRF 1ª Região
É mantida a decisão agravada (4/8/2008)
O Agravo de Instrumento foi relatado pelo Juiz Federal Carlos Augusto Pires
Brandão que decidiu por manter a decisão de não antecipação de tutela, afirmando
que a decisão impugnada não carecia de reparos. Destacou não haver desvio de
finalidade, nos propósitos do convênio, e que a sua suspensão traria prejuízos
irreparáveis a todos os agentes envolvidos.
Em 15 de junho de 2009 o Juiz Roberto Carlos de Oliveira da 9ª Vara
Federal proferiu a sentença em 1° Grau. A sentença proferida pelo juiz em 1° grau
foi parcialmente favorável ao MPF/GO, o que causou indignação entre a sociedade
organizada daquele estado. A fundamentação do juiz resume-se ao que segue:
Portanto, não obstante se reconheça que a educação do homem do campo
é indispensável para garantir o desenvolvimento sustentável dos
assentamentos, conferindo êxito ao programa de reforma agrária, tal fato
não autoriza a utilização de recursos públicos em total afronta aos objetivos
que fundamentam a distribuição de terras aos pequenos agricultores
desprovidos do principal instrumento de produção, a terra. É a fixação do
homem no campo com condições de sobrevivência e desenvolvimento que
valida a desapropriação e transferência de terras aos assentados, e tal
objetivo sequer tangencia com a formação técnico/jurídica que se pretende
conferir aos assentados com a criação do curso de direito pelo INCRA/UFG.
Dessa forma, há evidente desvio de finalidade e, por conseqüência,
flagrante ilegalidade no convênio estabelecido através da Portaria Conjunta
INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9, de 17 de agosto de 2007 para
utilização de recursos do PRONERA no custeio de curso superior em
direito. Das políticas afirmativas: Não há que se confundir a presente
78
controvérsia com as políticas afirmativas de reserva de vagas, seja a alunos
oriundos de escolas públicas, seja a determinadas raças ou etnias. Com
efeito, não versa a presente causa sobre a reserva de determinado
percentual de vagas nas universidades públicas para assentados ou seus
filhos, mas a criação de curso exclusivo para tal grupamento. As políticas
afirmativas de reserva de vagas, adotadas por diversas universidades
brasileiras, inclusive pela Universidade Federal de Goiás, têm merecido a
acolhida dos Tribunais, conforme se pode verificar de inúmeros julgados
que acolheram a tese e julgaram pela constitucionalidade do sistema de
cotas nas universidades. (Grifo nosso)
[...]
Da violação ao princípio da isonomia: Ainda que se reconhecesse a
possibilidade de utilização de recursos do PRONERA para subsidiar a
formação jurídica dos beneficiários da reforma agrária o convênio não
estaria legitimado por ofensa ao princípio da igualdade. É o que passo a
apreciar. Após longo trâmite nas instâncias universitárias e contando com
manifestações favoráveis do MPF e da OAB, e desfavorável do MEC, em
15/09/2006 foi criada pela Universidade Federal de Goiás a turma especial
de graduação em direito para beneficiários da reforma agrária, estendida
aos cidadãos beneficiados pela política nacional de agricultura familiar e
empreendimentos familiares rurais (lei nº 11.236, de 24 de julho de 2006),
nos termos da resolução CONSUNI Nº 18/2006 (fl. 1444). Embora seja
reconhecida a autonomia didático-científica das universidades para a
criação, ampliação ou redução do número de vagas nos cursos ministrados
pelas mesmas, tais instituições não estão imunes ao regramento contido na
legislação que rege a matéria, nem tampouco aos ditames contidos na
Constituição Federal. No que pertine ao tema, a Constituição Federal
estabelece nos artigos 205 e 206, I, que: “Art. 205. A educação, direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho. Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola; [...]” A Lei nº 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da
educação, dispõe que: Art. 3º O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola; Da análise dos dispositivos acima, verifico que a
destinação exclusiva das vagas na referida turma de direito aos
beneficiários da reforma agrária, mesmo com a extensão aos beneficiários
da lei 11.326/2006, viola o princípio constitucional da igualdade, pois adota
critério que privilegia uma pequena parcela de indivíduos, excluindo outros
que se encontram em situação idêntica ou inferior. De fato, a escolha
arbitrária dos destinatários das referidas vagas excluiu expressamente a
possibilidade de acesso a todos os demais trabalhadores rurais não
assentados ou aqueles que laboram como empregados rurais ou ainda os
que estão em posição de profunda inferioridade em relação aos eleitos pela
portaria conjunta que são os diaristas rurais (também denominados “boiasfrias”). Assim, mesmo que se considere legítimo o discrimen que destacou
os homens do campo como grupo desfavorecido e marginalizado, a referida
portaria excluiu grande número de pessoas inseridas na mesma categoria,
excluindo-as do processo de inserção que se pretendeu criar com a reserva
de curso especial aos rurícolas.
[...]
De fato, conferir legitimidade ao ato praticado entre INCRA e UFG significa
chancelar uma conduta que viola frontalmente o princípio da isonomia. Este
aspecto não passou despercebido ao Ministro Gilmar Mendes que na
79
decisão que indeferiu pedido de suspensão de tutela antecipada formulada
pelo INCRA (STA/233) assentou que: “Os interesses contrapostos, no caso
em exame, são relativamente claros. O primeiro deles está baseado no
próprio princípio da isonomia. De fato, em primeiro lugar, temos como
potencialmente afetado o interesse de todos os demais cidadãos não
beneficiados pela medida impugnada. Mais especificamente, temos os
demais cidadãos brasileiros, ricos ou pobres, que pleiteiam vagas nas
instituições públicas de ensino superior, devendo, para tanto, submeter-se a
fatigante e complexo processo seletivo. Não se pode olvidar, ademais, a
existência de outros produtores rurais que, conquanto não beneficiados pelo
programa nacional de reforma agrária, também carecem de uma maior
atenção do Estado, uma vez que se encontram em situação em muito
similar à dos assentados. (Grifei) Portanto, há que se reconhecer a
inconstitucionalidade e ilegalidade da criação de curso jurídico com
destinação exclusiva aos beneficiários da reforma agrária e aos tutelados
pela lei 11.326/2006, razão pela qual a extinção do curso criado pelo
Conselho Universitário da Universidade Federal de Goiás através da
resolução CONSUNI nº 18/06, de 15 de setembro de 2006 (fl. 1.444), é
medida que se impõe. Da boa-fé do corpo discente: Não obstante o
reconhecimento da ilegalidade na criação do curso e na necessária extinção
do mesmo, há que se reconhecer a boa fé do corpo discente que não teve
qualquer participação na elaboração do convênio entre o INCRA e a UFG.
Com efeito, consoante se verifica da vasta documentação juntada aos
autos, foi instaurado inquérito civil público para apurar a regularidade dos
projetos de criação de cursos destinados a segmentos específicos da
sociedade (PR/GO nº 1.18.000.008340/2006-92) através da portaria
51/2006, de 31/05/2006. Durante o trâmite do referido inquérito, foi colhida
manifestação favorável da Ordem dos Advogados do Brasil, tendo sido
determinado o arquivamento do mesmo, com parecer favorável do MPF à
criação do curso objeto da presente ação (29/11/2006). Em conseqüência,
foi realizado processo seletivo conforme edital 02/2007 que logrou aprovar
60 (sessenta) candidatos ao curso (fls. 1862/1925), tendo as aulas se
iniciado no segundo semestre de 2007. Atualmente o curso se encontra em
pleno desenvolvimento, tendo os alunos concluído com aproveitamento
diversas disciplinas. Assim, há que se reconhecer a validade dos atos
praticados até então, somente no que concerne ao aproveitamento de tais
disciplinas, na forma prevista nos estatutos das instituições de ensino onde
se postule a conclusão do curso. De fato, a extinção pura e simples do
curso, sem a ressalva dos atos validamente praticados, não encontraria
suporte nos postulados de justiça e não atenderia ao interesse público e
social, mormente pelo fato da criação ter obtido a chancela de instituições
relevantes como o Ministério Público Federal e a Ordem dos Advogados do
Brasil. Portanto, de forma a assegurar validade dos atos acadêmicos
praticados durante a realização do curso, reconheço a boa-fé do corpo
discente, e determino que a extinção do curso se dê ao termino do semestre
letivo. DISPOSITIVO: Em face do exposto, julgo parcialmente
procedentes os pedidos formulados na inicial (art. 269, I, do CPC), para: a)
declarar a ilegalidade do convênio estabelecido através da Portaria
Conjunta INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9, de 17 de agosto de 2007 e
da utilização de recursos do PRONERA para custeio de curso superior em
direito; b) determinar a extinção do curso de graduação em direito
criado através da Resolução CONSUNI nº 18/06, de 15 de setembro de
2006; c) ressalvar a validade das atividades acadêmicas integralizadas pelo
corpo discente e assegurar a conclusão do semestre letivo em curso. Sem
condenação em custas e em honorários advocatícios (Lei n° 7.347, art. 18).
Registre-se. Publique-se. Intimem-se. Sentença sujeita ao duplo grau de
jurisdição (art. 475, I, do CPC). Goiânia, 15 de junho de 2009. Juiz Roberto
Carlos de Oliveira. 9a Vara Federal. (Grifo nosso)
80
Verifica-se que os princípios da isonomia e da legalidade marcam o relatório
e a decisão do Juiz. Caberia um estudo específico sobre cada um desses princípios,
a fim de auxiliar na compreensão de questão tão complexa como essa da educação
superior aos beneficiários da reforma agrária. Trata-se de questão que ultrapassa os
limites do debate sobre Cotas, pois tem como contexto os assentamentos de
reforma agrária, logo a viabilidade dos mesmos mediante uma das ações essenciais
que é a formação escolar. Um olhar atento aos documentos que integram as ações
civis públicas contra tais cursos superiores, especialmente no que tange às
respostas oferecidas pelo INCRA e pela Universidade, será revelador do conjunto de
princípios envolvidos na proposição e na decisão de tais ações. São princípios
constitucionais como legalidade, isonomia, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, proporcionalidade, razoabilidade entre outros.
Sobre princípios, Ávila (2004, p. 16-17) assim escreve:
[...] A aplicação do Direito depende precisamente dos processos discursivos
e institucionais sem os quais ele não se torna realidade. A matéria bruta
utilizada pelo intérprete – o texto normativo ou dispositivo – constitui uma
mera possibilidade de Direito. A transformação dos textos normativos em
normas jurídicas depende da construção de conteúdos de sentido pelo
próprio intérprete. Esses conteúdos de sentido, em razão de dever de
fundamentação, precisam ser compreendidos por aqueles que os
manipulam, até mesmo como condição para que possam ser
compreendidos por seus destinatários. [...] O uso desmesurado de
categorias não só se contrapõe à exigência científica de clareza – sem o
qual nenhuma ciência digna de nome pode ser erigida -, mas também
compromete a clareza e a previsibilidade do Direito, elementos
indispensáveis ao princípio do Estado Democrático de Direito.
Por que comentar sobre discurso, argumentação e interpretação? Nota-se a
sentença proferida em 1° Grau está fundamentada em princípios fundamentais como
o da isonomia. Por sua vez, antes do julgamento do mérito, a decisão sobre a
antecipação da tutela garantiu o princípio do contraditório, de modo que todos os
interessados foram ouvidos. Argumentos teóricos, jurisprudências e fáticos são
81
construídos ao longo de cada uma das “estações processuais”, e forças ideológicas
ficam expressas em cada uma dessas estações.
Os estudantes de Direito fizeram um Manifesto como contraponto à
sentença proferida em 15 de junho de 2009, conforme segue.
É com profundo sentimento de indignação e revolta, que vimos nos
pronunciar. Por motivo da preconceituosa e frustrante decisão da Justiça
Federal de Goiás, proferida no dia 15 de junho deste ano 14 , que por meio de
ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal de Goiás, movida
em face do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e
da Universidade Federal de Goiás – UFG, determinou a extinção da Turma
de Direito para Assentados da Reforma Agrária e Agricultores Familiares
Tradicionais. Sob a alegação de desvio de finalidade no emprego dos
recursos do PRONERA, e afirmando que tal fato lesa o patrimônio social, e
ainda que, não existe previsão legal de tratamento diferenciado aos
beneficiários da Reforma Agrária, a aludida decisão pondera de forma
extremamente agressiva que, a existência de nossa turma desrespeita os
princípios constitucionais da igualdade, isonomia e razoabilidade. A
parceria entre UFG e INCRA, firmada oficialmente no ano de 2007, a qual
deu origem a nossa turma, surgiu a partir da luta dos movimentos sociais e
diversos parceiros que buscam, historicamente, a efetivação dos direitos
fundamentais da classe trabalhadora – do campo e da cidade – em todo o
Brasil. Baseados na necessidade, mais que urgente, de se levar educação
superior em diversas áreas do conhecimento, aos trabalhadores rurais, por
meio de políticas públicas que visam a superação das históricas e tão
presentes, desigualdades sociais de nosso país. No dia 17 de agosto de
2007, o Exmo. Ministro do STF, Dr. Eros Roberto Grau, proferiu a aula
inaugural do nosso curso, composto por 60 alunos advindos do meio rural e,
originários de 19 estados da federação brasileira. Ocorrendo nesta
solenidade de abertura, em meio a Cidade de Goiás-GO, o estabelecimento
de um marco na história do ensino jurídico no Brasil. Desde o momento em
que iniciamos o curso, somos alvo de ataques promovidos por sujeitos
contrários à presença de trabalhadores e trabalhadoras rurais na
universidade pública. Fazendo tudo isso de forma não menos violenta do
que a utilizada para defender a grilagem e a concentração da terra. Tais
sujeitos externam sua reação agressiva sempre fazendo uso da grande
mídia e de agentes de instituições estatais, como o Ministério Público
Federal e o próprio Judiciário. Atualmente, apesar da sentença extintiva,
encerramos o 4º semestre letivo do curso de direito na compreensão de que
nada do que está sendo feito contra nossa turma terá sustentação
duradoura, vez que, fere ao mesmo tempo, a razão de Estado Democrático
Social de Direito. Mesmo na situação de política pública de educação, o
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, apesar
de tantos resultados importantes desde sua criação, vem sofrendo desde
1998, absurdas reduções orçamentárias. Passando a representar um grave
retrocesso, naquilo que deveria ser um meio de potencializar tanto o
acesso, quanto a qualidade de ensino ao público da Reforma Agrária. O
sucateamento do PRONERA, assim como a supressão da nossa turma,
representa sério prejuízo a tudo o que a sociedade, sobretudo a classe
trabalhadora do campo, conquistou até hoje. Devendo ser urgentemente
observado com mais responsabilidade pelo poder público. O acesso de
14
Leia-se 2009.
82
trabalhadoras e trabalhadores assentados à educação formal em cursos
superiores de graduação em direito coaduna claramente com os objetivos
gerais e específicos do PRONERA, visto que, este se propõe a garantir aos
assentados (as) escolaridade/formação profissional, técnico profissional de
nível médio e curso superior em diversas áreas do conhecimento. Na
presente perspectiva torna-se mais relevante, do que discutir se o ofício de
um bacharel em direito é ou não desenvolvido no campo, observar com
mais sensibilidade o quanto todo seguimento segregado pela estrutura
social vigente, respectivamente, o trabalhador e a trabalhadora rural,
necessita de forma concreta do profissional da área jurídica. Seja na
demanda fundiária, previdenciária, administrativa, cooperativista ou outras.
Pois o assentado e a assentada não se fixam na terra por mera distribuição
desta, mas no intuito de que seus direitos e interesses fundamentais sejam
alcançados da mesma forma que qualquer outro cidadão objetiva. Nesse
contexto a existência da turma não se desvincula da finalidade do
PRONERA, menos ainda, da Reforma Agrária que busca alcançar, dentre
inúmeras metas, o pleno desenvolvimento do homem do campo, atendendo
diretamente ao que sugere o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana. Ademais, nossa turma de direito se resume em muito mais
que uma política de Ação Afirmativa de simples reserva de vagas na
universidade. Seguramente representa um simbólico impulso rumo à
universalização do acesso ao ensino público superior. A igualdade, no que
diz respeito, ao acesso e permanência na escola (art. 206, I, CF e art. 3º, I
da lei n.º 9.394/96), significa uma igualdade moral, de sorte que, partindo da
idéia de que a educação é direito de todos e dever do Estado, constitui
incumbência moral do Estado reconhecer que as classes marginalizadas
social e economicamente, são, de forma jurídica, portadoras dos mesmos
direitos que provêem do Poder Público e que definem sua dignidade como
pessoa humana. Não devendo, nesse caso, em hipótese alguma, haver
razão para confundir a iniciativa da turma de direito como um privilégio ou
meio de exclusão, mas basicamente o contrário. Prova disso, o fato de ter
configurado-se há muito mais tempo do que se imagina, a carência de maior
atenção do Estado para com os trabalhadores e trabalhadoras rurais. Sendo
mais verdadeira ainda tal afirmação, quando verificamos todos os anos, os
índices gerais e regionais de escolaridade do povo brasileiro, já que se
constata através daí, que sem as políticas públicas de criação de
oportunidades de acesso a educação em todos os níveis e áreas do
conhecimento, houve nada mais que um agravamento expressivo da
situação. E que por isso, também, devemos tratar como medida de
imposição e violência institucionalizada todos os atos que, dessa maneira,
como está sendo a sentença em debate, visam extinguir as poucas medidas
existentes com o papel de realizar a inclusão e a abrangência cada vez
maior de outros excluídos que se encontram em situação idêntica ou
inferior. A igualdade de todos perante a lei, reconhece, dentre outras coisas,
que as desigualdades existem. Pressupondo claramente, que deverão ser
tratados de forma desigual aqueles que encontram-se em situação de
desigualdade, como meio de superação dos desníveis sociais.
Simplesmente por tudo que revela esse último ponto, já mostra-se
absurdamente insustentável, tanto moral quanto juridicamente, toda e
qualquer atitude de reação que venha contra o direito de estudar direito dos
trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Convém citar o interessante
questionamento do presidente do INCRA Rolf Hackbart: "A quem interessa
inviabilizar o acesso à educação? A quem interessa fechar salas de aula?
Por que em vez de decidir pela extinção desses cursos não se sugere
resolver eventuais problemas legais que existam? Há um preconceito
raivoso contra movimentos sociais e contra setores da sociedade. As
oligarquias do País se perpetuam e uma das formas é não permitir o acesso
à educação". Diante disso, nós como membros da turma em questão, e
principais afetados por esse meio de violência – tal qual foi a decisão – nos
sentimos com o total dever de repudiar não somente o ato jurisdicional,
83
como também o sucateamento do PRONERA e da própria universidade
pública. (Grifo nosso)
Diante dessa realidade e da decisão judicial em primeira instância, a UFG e
o INCRA interpuseram apelação ao Tribunal Regional Federal (TRF), com pedido de
liminar para a suspensão de execução da sentença de 1° Grau.
O recurso interposto pelo Incra em conjunto com a UFG foi
acompanhado do parecer do renomado jurista Fábio Konder
Comparato. Ao tecer observações quanto à decisão que extinguia a turma
especial, Comparato rechaçou a tese de desvio de finalidade por ser
um curso de direito para filhos de agricultores: "Seria por acaso inútil
saber quais os direitos e deveres fundamentais ligados à propriedade da
terra e, especificamente, os estabelecidos nos artigos 184 e seguintes da
Constituição Federal a respeito da reforma agrária? É aceitável manter os
agricultores sem terra na condição de pessoas necessariamente ignorantes
de seus direitos e, na melhor das hipóteses, perpetuamente tuteladas pelo
Poder Público?". 15 (Grifo nosso)
O presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1),
desembargador Jirair Aram Meguerian, deferiu o pedido do INCRA e da UFG,
possibilitando assim a continuidade da turma especial de Direito para assentados da
reforma agrária e filhos de pequenos agricultores, na cidade de Goiás. A liminar foi
concedida no dia 18 de dezembro de 2009, com segue:
[...] tendo em vista que o recurso de apelação interposto em face da
sentença impugnada foi recebido apenas no efeito devolutivo, DEFIRO o
pedido e suspendo os efeitos da decisão proferida pelo Juízo Federal da 9ª
Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás, nos autos da Ação Civil
Pública 2008.35.00.013973-0/GO. (BRASIL, 2009, p. 8-9).
Em sua decisão, o Desembargador menciona os fundamentos apresentados
pelo Juiz Federal Carlos Augusto Pires Brandão, quando este decidiu sobre o
Agravo de Instrumento interposto pelo MPF contra a decisão de não antecipar a
tutela requerida na inicial. Dentre tais fundamentos estão: 1) a suspensão imediata
do curso acarretaria danos de difícil reparação aos discentes que estão em plena
atividade acadêmica. Suspenderia expectativas nutridas pelos alunos em relação à
15
A notícia está disponível em
Hhttp://www.incra.gov.br/index.php/procuradoria/noticiasprocuradoria/916-pfe-recorre-e-justicamantem-curso-de-direito-para-assentados-em-goiasH. Acesso em 20/2/2012. 10h.
84
graduação enquanto os tribunais discutiriam a legalidade e constitucionalidade da
criação da turma especial de Direito. 2) A decisão de suspensão imediata do curso
atingiria os terceiros de boa-fé. 3) Atingiria o erário público, pois professores foram
contratados em regime estatutário, não podendo ser demitidos. (BRASIL, 2009, p. 8)
De 18 de dezembro de 2009 até 13/10/2010 são registrados no extrato do
Tribunal Regional da 1ª Região recurso e contrarrazões do INCRA; Embargos de
Declaração opostos pelo INCRA, petição de terceiro interessado; Recurso de Agravo
de Instrumento pelo INCRA; Recurso e contrarrazões do MPF. Em 13/10/2010 o
processo original foi remetido ao TRF da 1ª Região. 16 Em 11/11/2010 o processo foi
distribuído para o Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro. Pelo extrato de
movimento da ACP, o processo encontra-se em fase de Apelação/ Reexame
Necessário, junto à 6ª Turma do TRF 1ª Região.
Reitera-se o que foi escrito no capítulo anterior, ou seja, nas instâncias
superiores do Poder Judiciário, as decisões têm sido pela efetivação dos cursos de
educação superior, pois eles vão propiciar a formação necessária e articulada à
realidade e aos problemas locais, de modo a fazer avançar os projetos de reforma
agrária.
Entretanto, é inegável que a existência de cursos específicos para os
beneficiários da reforma agrária tem causado mal estar no plano jurídico, fato é que
ainda não há decisão sobre o assunto no STF.
16
O extrato de movimentação da ACP encontra-se disponível na página:
Hhttp://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php?proc=200835000139730&secao=GO
H. Acesso em 20/4/2012. 14h.
85
5
AÇÃO
CIVIL
PÚBLICA,
DECISÃO
JUDICIAL
E
PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS: O CASO DO CURSO DE MEDICINA VETERINÁRIA
Para caracterizar a origem do curso de Medicina Veterinária destinado aos
beneficiários da reforma agrária, foram utilizados dois artigos produzidos,
respectivamente, por Scalabrin e Cover (2010); Machado e Paludo (2011). As
autoras mostram que o curso teve início a partir de debates empreendidos em
meados de 2004. Mas, somente em 2007, foi realizado o primeiro vestibular, tendo o
curso sido interrompido por ordem judicial até o ano de 2010.
O MPF do Estado do Rio Grande do Sul propôs ACP, tendo como réus a
Fundação Universidade de Pelotas; INCRA e Fundação Simon Bolívar. O processo
conta com 43 Assistentes. 17 O valor atribuído à causa é de R$10.000,00. O MPF
alegou que o referido curso feria os princípios da legalidade, isonomia e
proporcionalidade. Houve pedido liminar/ antecipação de tutela.
Os fundamentos constitucionais para a propositura da ACP estão dispostos,
na Carta Magna, nos artigos 3°, Inciso IV (promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de
discriminação); artigo 5°, caput (Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza...); artigo 19, Inciso III (É vedado à União, aos Estados, Distrito
Federal e Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si) e
artigo 129, Inciso III (função do MP – promover o inquérito civil e a ação civil pública,
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos).
17
Ver informações em
Hhttp://www.jfrs.jus.br/processos/acompanhamento/resultado_pesquisa.php?txtValor=200771100050
358&selOrigem=RS&chkMostrarBaixados=&todaspartes=S&selForma=NU&todasfases=S&hdnRefId=
&txtPalavraGeradaH= Acesso em 20/4/2012. 12h.
86
Um dos princípios que o MPF alega estar ferido é o da igualdade. Como
está exposto na ACP:
[...] não se pretende, com a presente ação, discutir a política de ações
afirmativas in genere, nem se pretende questionar a implantação de cotas
sociais para egressos de escolas públicas. Não é necessário adentrar o
mérito dos argumentos favoráveis e contrários aos sistemas atualmente
implantados ou em vias de implantação nas universidades públicas. O que
se argumenta, ao contrário, é que, mesmo se aceitando ou se advogando a
adoção de políticas públicas constituídas por ações afirmativas, o sistema
adotado pela Universidade Federal de Pelotas, embora supostamente
adequado aos preceitos da política pública adotada pelo INCRA, através do
PRONERA, não se coaduna com o princípio da igualdade inscrito na
Constituição Federal. Há inadequação entre os meios e fins, ferindo o
princípio da razoabilidade. O fim, de qualificar e possibilitar o acesso ao
ensino superior pelos assentados da reforma agrária, há de ser obtido por
outros meios, que não o de simplesmente colocá-los na situação especial e
privilegiadíssima de disputar um processo seletivo exclusivo. (BRASIL,
MPF, 2007, p. 17)
Somando-se ao princípio da igualdade, o MPF menciona que o processo
seletivo da turma especial afronta o princípio presente no artigo 208, Inciso V, da
CF/88, que determina como princípio da educação que “o acesso aos níveis mais
elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de
cada um”. O MPF questiona que ser integrante do MST não é critério definidor da
capacidade de quem quer que seja. (2007, p. 23).
A polêmica ultrapassa os muros judiciais e atinge os canais jornalísticos. O
conteúdo da ACP traz reportagens publicadas em Jornais, e dá destaque àquelas
contrárias ao curso, como a entrevista concedida por um professor de Direito da
UFPEL que afirma que o referido curso “fere de morte a autonomia da
Universidade”, haja vista que a “supervisão pedagógica” de um curso de graduação
seria entregue ao INCRA e a movimentos sociais. Faz menção a ACP proposta no
estado do Paraná, pelo Procurador da República Sérgio Arenhart, questionando o
critério da escolha das novas famílias a serem assentadas, em vista de que as
mesmas eram escolhidas em função da concordância das demais famílias.
87
Em síntese, os pedidos, incluindo antecipação de tutela, presentes na ACP
são: 1) proibir a UFPEL e ao INCRA a realização do processo seletivo de ingresso
na Universidade com indicação de candidatos pelo INCRA. 2) determinar que o
processo de seleção seja aberto a todos os cidadãos brasileiros interessados e que
tenham concluído o ensino médio, nos mesmos moldes do processo seletivo regular
realizado para todos os outros cursos da UFPEL. 3) a determinação de que a
publicação dos editais do referido processo seletivo se realize nos mesmos moldes
de todas as demais seleções para ingresso na UFPEL. 4) a proibição de o INCRA e
de qualquer movimento social de participar da supervisão pedagógica de qualquer
curso no âmbito da UFPEL. 5) a proibição de contratação de professores pela
UFPEL para o presente curso.( BRASIL/MPF, 2007, p. 34-35)
Na resposta elaborada pela Advocacia-Geral da União, Procuradoria Geral
Federal junto à Fundação da UFPEL, todos os pontos da inicial são contestados.
Chama a atenção o comentário feito à afirmação presente na ACP de que no Brasil
não há falta de médicos veterinários, haja vista a existência de 140 cursos em todo o
país. O que não está incluso na ACP é que somente 42 desses cursos estão em
instituições públicas gratuitas. Mas vale trazer a menção feita na contestação:
Faltam médicos veterinários para atender as necessidades dos assentados
(incentivo à pesquisa, à tecnologia e assistência técnica e extensão rural). A
razão: a mesma pela qual faltam médicos (para humanos, diga-se) nas
pequenas cidades do interior do país. Por que somente assentados ou filhos
de assentados? Pela vinculação dos alunos às suas famílias, à produção,
para desempenharem a função de disseminadores de conhecimento.
Conforme se pode observar no Projeto elaborado pela UFPEL, os alunos
dividirão seus estudos em atividades na escola e na comunidade, a
seriação do currículo será adaptada aos ciclos agrícola e de criação de
animais próprios para atividade rural. Por que não os pequenos agricultores
ou os verdadeiros sem-terra (não assentados)? Em razão da aludida
vinculação dos alunos à viabilização do projeto de assentamento (distribuir
terras é sabidamente insuficiente e procedimento fadado ao desperdício de
dinheiro público se não houver qualificação da mão-de-obra [...] (AGU18
INCRA, 2007, 13-14)
18
Consulta ao processo físico.
88
Seguindo o mesmo raciocínio e dando ênfase ao princípio da igualdade, a
AGU-Procuradoria Especializada INCRA assim se manifestou numa das passagens
das quase 55 páginas de resposta à ACP:
A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos e
previu que todo cidadão tem direito a tratamento idêntico pela lei, em
consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico.
Todavia, a questão em apreço merece uma análise mais cautelosa,
acurada, o que se passa a fazer: Hodiernamente, tem ganhado força o
conceito de discriminação positiva, isto é, aquela destinada a suprir a
situação de desvantagem imposta historicamente a indivíduos por
causa de sua origem étnica, de sua religião, compleição física,
nacionalidade ou gênero. Com efeito ‘tratar desigualmente aos
desiguais, na medida de suas desigualdades’, expressão criada por
Rui Barbosa, revela a proposta contida no princípio constitucional da
igualdade, de observância cogente por toda sociedade. (Negrito no
19
original, AGU-INCRA, 2007, p. 40)
Ainda, na defesa elaborada pela AGU-INCRA está disposta uma parte do
discurso proferido por Rui Barbosa, em 1920, em homenagem aos formandos da
Faculdade de Direito do Largo São Francisco/SP, intitulado “Oração aos Moços”:
[...] a regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar
desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta
desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se
acha a verdadeira lei da igualdade. [...] Tratar com desigualdade a
iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e
não igualdade real. (Negrito no original, AGU-INCRA, 2007, p. 41)
Após a manifestação dos réus do processo, houve julgamento do pedido de
tutela antecipada. O pedido foi negado no Juízo da 1ª Vara Federal de Pelotas, pelo
Juiz Everson Guimarães Silva. Na decisão sobre a antecipação de tutela há análise
sobre se a execução do projeto ofende ou não à Constituição. Para o referido Juiz
da 1ª Vara Federal e Juizado Especial de Pelotas, não há inconstitucionalidade na
realização do curso em questão:
Sobre a argüição de inconstitucionalidade da medida que as
demandadas pretende levar a efeito:
[...]
19
Consulta ao processo físico.
89
Após ponderar sobre os termos concretos do ajuste e as normas
constitucionais incidentes na espécie não constatei inconstitucionalidade
no ajuste. Primeiramente porque a UFPEL não está a criar turma especial
ou introduzir um sistema de cotas para acesso aos seus cursos, mas está,
por assim dizer, prestando um serviço ao Instituto de Colonização e
Reforma Agrária, como conveniente, para viabilização de programa de
educação de famílias assentadas. Com isso a UFPEL recebe, em
contrapartida, significativo investimento material, inclusive, com acima
assinalado, com a construção de infra-estrutura para o seu curso de
Medicina Veterinária. Cumpre observar que o convênio não implica no
aproveitamento das vagas já existentes na Universidade, mas na criação de
uma turma nova e especial. Em face de tais características do acordo ora
examinado, fica evidente que não há, por parte da Universidade, a adoção
de critério diferenciado para acesso a seus cursos. O convênio, portanto,
objetivamente considerado, não é capaz de suscitar sequer possibilidade de
violação à garantia de acesso igualitário e universal ao ensino público. No
entanto, ainda que se considere que a efetivação do convenio irá
resultar na criação de uma turma permanente em benefício de famílias
de assentados e que tal medida representa, na prática, a adoção de um
sistema de cotas no âmbito da Universidade Federal de Pelotas, não
haveria inconstitucionalidade a ser reparada. Constitui conhecimento
basilar que o princípio da isonomia, em qualquer de suas
manifestações na Constituição da República, pressupõe, para sua
efetivação, o tratamento igualitário aos que se encontram em situação
de igualdade e o tratamento desigual daqueles que material ou
juridicamente encontram-se em situação desfavorável, para que fique
viabilizada a condução de todos os cidadãos a uma condição de
paridade. (Grifo nosso)
[...]
Com efeito, é notória a situação de desamparo e de falta de condições
materiais e culturais das famílias assentadas pelo programa de reforma
agrária. Ademais, são idéias que permeiam o senso comum a necessidade
de adoção de medida concretas, que viabilizem o desenvolvimento dos
assentados, bem como que a reforma agrária não pode ficar limitada à
estéril distribuição de terras. Com isso, resta evidenciada, e amparada pelo
princípio da isonomia, a indispensabilidade de criação de oportunidades
para aprimoramento e inserção social daquelas famílias. Firmada a
constitucionalidade da criação de curso destinado a estudantes oriundos de
famílias de assentados, cumpre examinar o processo de seleção para
acesso ao referido curso. Novamente não compartilho do respeitável
entendimento deduzido na inicial. A minuta de convênio a ser firmado pela
partes para implementação do curso de Medicina Veterinária em exame (fls.
105/ 111) atribui à Ufpel a obrigação de "realizar seleção especial sob a
égide de edital específico devendo seus detalhamentos constarem no plano
de trabalho no caso de cursos técnicos profissionalizantes ou superior" cláusula segunda, item III, alínea c. Ademais, no projeto elaborado pela
Universidade (fls. 72/96) está previsto, para ingresso no curso, processo
seletivo complexo, realizado em duas etapas e fundado em critérios
objetivos - item 2. Por outro lado, o fato de o candidato dever ter
indicação da comunidade assentada, por si só, não constitui abuso ou
ilegalidade. Ao contrário, afigura-se razoável que para o ingresso em
curso destinado ao desenvolvimento das famílias assentadas tenha, o
candidato, sob pena de desvirtuamento do programa, vinculação
concreta e efetiva com o assentamento. Ainda, a participação do INCRA,
confirmando a condição de assentado do candidato ao curso, não significa
que a seleção seja atribuição daquela entidade, mas tão-somente que o
postulante a uma vaga deverá ter sua condição de assentado confirmada
oficialmente, visto que, em última análise, se beneficiará de recurso do
programa de reforma agrária. Saliento que não há qualquer base concreta
para que se possa dizer que o programa se destina, na verdade, a
90
integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Na verdade, o
convênio ora examinado decorre de política oficial, envolvendo instituições
da administração pública indireta, que estão adstritas aos mandamentos
legais e constitucionais, em especial ao princípio da legalidade, não
existindo qualquer indício de favorecimento ou desvio de finalidade no
programa. Ademais, eventual desvio de rumo na execução do ajuste poderá
ser retificado judicialmente, tanto por iniciativa do Ministério Público, como
de particular que se sinta lesado. Outrossim, a participação do INCRA e dos
movimentos sociais na supervisão pedagógica do programa, prevista no
projeto elaborado pela UFPEL (fl. 73), também encontra assento
constitucional. Com efeito, trata-se de programa que difere dos cursos
superiores tradicionais e que tem direcionamento específico, qual seja, a
formação de um profissional preparado para o atendimento às
necessidades das comunidades de assentados. Assim, também é razoável
a participação dos destinatários nas discussões sobre os rumos e objetivos
do curo, bem como do ente responsável pelo programa de reforma agrária.
Tal participação encontra assento constitucional, como dito acima, porque a
Carta Política tem como fundamentos o pluralismo de idéias e o princípio
democrático - que obviamente não se restringe à intervenção do cidadão no
processo eleitoral. Por fim, a seleção de professores do curso obedece a
critérios objetivos, visto que, nos termos da minuta de convênio a ser
subscrita pelas partes, compete à executora, Fundação Simon Bolívar,
"garantir corpo docente com professores pertencentes ao quadro de pessoal
ativo (efetivos, substitutos, visitantes e voluntários) e inativo da UFPEL" cláusula segunda, item II, alínea g. Sendo que, na mesma disposição, é
observado que "quando não houver disponibilidade desses docentes, a
executora procederá a uma seleção simplificada similar à de professor
substituo em coordenação com a UFPEL. Por todos os argumentos acima
expendidos, não vislumbro plausibilidade do direito invocado na inicial, a
justificar o deferimento da medida antecipatória postulada pelo autor. III)
Ante o exposto, indefiro os pedidos de antecipação de tutela
formulados na inicial. Intimem-se, sendo o Ministério Púbico par ciência da
presente decisão e para que, no prazo de 10 (dez) dias, promova a citação
da Fundação Simon Bolívar, como litisconsorte passiva necessária, sob
pena de extinção do feito, sem resolução do mérito. Outrossim, tendo em
vista que a intimação das demandadas se deu para manifestação sobre o
pedido de antecipação de tutela, fica aberto, à UFPEL, o prazo para
oferecimento da resposta. Fica prejudicada, contudo, a abertura de tal prazo
para o INCRA, na medida em que este Instituto já ofereceu sua
contestação. Após as respostas da UFPEL e da Fundação Simon Bolívar,
dê-se vista dos autos à parte autora para réplica. (Grifos da autora. Negrito
20
no original. Juiz Everson Guimarães Silva. 19/9/2007, p. 6-11). (Grifo
nosso)
Em relação aos princípios constitucionais, verifica-se que o Juiz afirmou não
haver inconstitucionalidade no que tange à isonomia. Destaca, ainda, que o
magistrado reconhece a igualdade formal e a igualdade fática. Há casos em que a
20
Consulta ao processo físico. Também disponível em
Hhttp://www.trf4.jus.br/trf4/processos/visualizar_documento_gedpro.php?local=jfrs&documento=2559
267&DocComposto=&Sequencia=&hash=5d6d27f81e2be721ef734d7f950c701aH
Acesso em
22/4/2012. 15h.
91
igualdade estará manifesta no tratamento desigual aos que se encontram em
situação desfavorável na sociedade.
O
MPF
interpôs
Agravo
de
Instrumento
em
17/10/2007,
sob
n°
2007.04.00.037679-1, contra a decisão que indeferiu o pedido de antecipação de
tutela. O relator no TRF da 4ª Região foi o desembargador Valdemar Capeletti. A 4ª
Turma do TRF da 4ª Região deu parcial provimento ao agravo de instrumento. O
recurso foi recebido no efeito devolutivo pelo Desembargador Capeletti, por
considerar que até aquele momento os fundamentos do recurso estavam
relacionados a matérias jornalísticas, do que com as disciplinas componentes do
curso. Depois da manifestação da UFPEL, o Juiz Federal João Batista Lazzari,
que atuou durante as férias de Capeletti, proferiu nova decisão, atendendo ao
pleito de dar eficácia suspensiva ativa ao recurso. A UFPEL e o INCRA
recorreram dizendo não haver fatos novos.
O Desembargador Capeletti faz uso de diversos argumentos a exemplo da
inexistência de um sistema de cotas, da afirmação de que o vestibular para os
beneficiários da reforma agrária é uma criação em apartado de outras questões
sociais e o que segue:
A tudo isso somam-se as demais questões apontadas pelo MPF às razões
de agravo, quais sejam: (a) a violação do princípio democrático na
gestão de ensino, considerando que o projeto de curso de Medicina
Veterinária para assentados foi rejeitado pela comunidade acadêmica da
Faculdade de Veterinária, incluída a quase totalidade dos professores (fls.
19-22), (c) o malferimento aos princípios constitucionais e legais
pertinentes à matéria i. pela necessidade de aprovação do nome do
candidato pelo INCRA e ii. Pelo envolvimento do MST na orientação
pedagógica do curso e (d) por fim, a discrepância no processo de
seleção do quadro docente, porquanto percebe-se que os autores do
projeto sequer escondem a intenção de selecionar a dedo quem poderá
21
lecionar no curso. (Grifo nosso)
21
Relato do Desembargador Valdemar Capeletti, Processo n° 2007.04.00.037679-1.
92
O desembargador relator votou pelo parcial provimento do Agravo, como
segue:
Por fim, tomo em consideração, que, agora, por ocasião do exame do
mérito do presente recurso, o exame vestibular em discussão, restrito aos
assentados do INCRA, poderá já ter sido realizado. Acaso assim tenha
ocorrido, ficam suspensos todos os efeitos produzidos pela realização
do aludido concurso. Caso contrário, a tutela concedida restringir-se-á a
impedir a concretização do certame, impondo-se ditas restrições, em
ambos os casos, até o trânsito em julgado da ação de origem. Ante o
exposto, voto por dar parcial ao presente agravo de instrumento. 22
Com essa decisão proferida em 26/2/2008, o curso de Medicina Veterinária
da UFPEL foi interrompido.
A sentença em 1° Grau foi proferida em 23/3/2009, tendo o Juiz Federal
Everson Guimarães Silva julgado improcedentes os pedidos do MPF. O referido
Juiz reitera os argumentos que apresentou no julgamento do pedido de tutela
antecipada. Firma não haver inconstitucionalidade, pois o convênio não é capaz de
suscitar sequer possibilidade de violação à garantia de acesso igualitário e universal
ao ensino público. Salienta que não há ilegalidade no procedimento interno da
universidade para a deliberação e convalidação do convênio em questão.
Embora tenha havido improcedência dos pedidos propostos na ACP, o Juiz
destaca que “subsiste na íntegra a medida antecipatória deferida pela 4ª Turma do
TRF da 4ª Região, visto que deferida até o trânsito em julgado da decisão final do
presente feito”. 23
Em 17/4/2009 o MPF interpõe recurso de apelação ao TRF, 4ª Região. Em
30/8/2010, a 4ª Turma nega provimento à apelação do MPF, tendo sido vencido o
voto da Relatora Desembargadora Marga Inge Barth Tessler.
22
Idem.
Disponível em
Hhttp://www.trf4.jus.br/trf4/processos/visualizar_documento_gedpro.php?local=jfrs&documento=4498
818&DocComposto=&Sequencia=&hash=9122c5cb18d4c78038dedb30012a028fH
Acesso
em
21/4/2012.
23
93
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL. PÚBLICA. CURSO DE GRADUAÇÃO EM
MEDICINA VETERINÁRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS.
CONVÊNIO
RS/4330/2006/2006,
CELEBRADO
ENTRE
A
SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL DO INCRA DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL E A FUNDAÇÃO DE APOIO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE PELOTAS SIMON BOLÍVAR. O convênio firmado entre a
UFPEL e o INCRA não está violando a garantia do acesso igualitário e
universal ao ensino público, pois dele resultará a criação de uma turma do
curso de Medicina Veterinária destinada às famílias de assentados, em
decorrência do programa de reforma agrária federal. . Política oficial,
envolvendo instituições da Administração pública indireta, da qual não se
verifica qualquer indício de favorecimento ou desvio de finalidade no ajuste.
. A decisão que antecipa a tutela, em sede cognição sumária, deixa de
produzir efeitos com o julgamento da demanda em cognição plena. Situação
que se revela mais latente diante do provimento do recurso especial
interposto contra decisão da Turma que havia concedido o provimento
precário. . Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido
pelas razões de decidir. Apelação do Ministério Público Federal
improvida. Apelações da Universidade Federal de Pelotas e do INCRA
providas. ACÓRDÃO. Vistos e relatados estes autos em que são partes as
acima indicadas, decide a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal
da 4ª Região, por maioria, negar provimento à apelação do Ministério
Público Federal e dar provimento às apelações da Universidade Federal de
Pelotas/RS e do INCRA, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas
que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 30 de
agosto de 2010. Des. Federal Silvia Goraieb Relatora. (BRASIL, TRF 4ª
Região)
Antes do julgamento em primeira instância da ACP, o INCRA recorreu ao
STF para fins de suspensão da tutela cautelar conseguida pelo MPF no
TRF/RS. Entretanto, o recurso do INCRA não foi acolhido pelo Ministro do STF,
Gilmar Mendes. Os argumentos apresentados pelo MPF foram acatados pelo
Ministro do STF, no final de 2009.
Em 27/4/2009, o Ministro Gilmar Mendes apresentou a sua decisão, cuja
argumentação
é
articulação
em
torno
dos
princípios
da
isonomia,
da
proporcionalidade e da autonomia universitária:
O princípio da isonomia
Questão essencial refere-se à observância do princípio da isonomia. A
medida impugnada, por certo, parte do pressuposto de que os assentados
pelo programa nacional de reforma agrária, no tocante às condições de
acesso ao ensino superior em instituições públicas, mereceriam um
tratamento favorecido em relação aos demais cidadãos brasileiros. Segundo
a autarquia fundiária, o escopo do convênio celebrado com a Universidade
94
Federal de Pelotas seria a superação de quadro de desigualdade fática
preexistente. A medida, portanto, constituiria exemplo das chamadas “ações
afirmativas”, nas quais se busca, por meio de um tratamento juridicamente
desigual, a igualação fática, com a promoção de grupos ou setores
‘historicamente desfavorecidos. No que toca ao tema da isonomia, recordo
a síntese oferecida por Robert Alexy, em sua célebre teoria dos direitos
fundamentais. Na perspectiva de Alexy, a máxima segundo a qual se deve
"tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais" daria origem a
duas normas: "Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de
um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual" (norma
de tratamento igual) e "Se há uma razão suficiente para ordenar um
tratamento desigual, então está ordenado um tratamento desigual" (norma
de tratamento desigual) (ALEXY, Robert, Teoría de los Derechos
Fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 408).
Ainda na perspectiva de Alexy, a observância do princípio da isonomia
estaria vinculada ao oferecimento de razões suficientes, aptas a autorizar
um tratamento desigual ou mesmo exigi-lo. A identificação de uma não
identidade permitiria apenas a avaliação da medida em que as razões
potencialmente justificadoras do tratamento diferenciado poderiam vir a ser
consideradas suficientes ou normativamente relevantes para sustentar a
compatibilidade de determinada não-identidade com o princípio da
isonomia. Percebe-se, pois, que o princípio da isonomia não impede que
uma diferença de tratamento seja estabelecida entre certas categorias de
pessoas, desde que o critério de distinção seja suscetível de justificação
objetiva e razoável. A existência de tal justificação deve ser apreciada tendo
em conta o objetivo e os efeitos da medida examinada, bem como a
natureza dos princípios em causa. O princípio da igualdade é violado
quando se conclui que não há relação razoável de proporcionalidade
entre os meios empregados e os objetivos visados. É cediço que nem
todo quadro de desigualdade fática revela-se apto a autorizar um tratamento
juridicamente desigual, mas apenas aqueles considerados relevantes à luz
das finalidades constitucionais. Vejo aqui, portanto, a possibilidade de
avaliar, em juízo de delibação, a existência ou não de razões suficientes
para a criação de turma especial no âmbito de uma universidade pública
para o atendimento exclusivo de assentados pelo programa nacional de
reforma
agrária.
Há,
evidentemente,
interesses
e
direitos
constitucionais que potencialmente estão contrapostos a esse direito
que se quer conferir aos beneficiados pelo convênio impugnado no
processo de origem. Esse é um típico caso em que se faz necessária uma
avaliação de proporcionalidade, no sentido de se investigar se houve ou
não um excesso do Poder Público. O princípio da proporcionalidade,
também denominado princípio do devido processo legal em sentido
substantivo, ou ainda, princípio da proibição do excesso, constitui uma
exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos de
direitos fundamentais, de modo a estabelecer um "limite do limite" ou uma
"proibição de excesso" na restrição de tais direitos. A máxima da
proporcionalidade, na expressão de Alexy, coincide igualmente com o
chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo
relativo – tal como o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou
máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de
restrição legítima de determinado direito fundamental. A par dessa
vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade
alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios
constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da
proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos
entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito
entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma
das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de
aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do
peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a
95
fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplicase o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre
distintos bens constitucionais. Em síntese, a aplicação do princípio da
proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado
direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios
constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de
cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram
o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas
parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a
proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre
a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ("A
Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal", in
Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de
Direito Constitucional, 2ª ed., Celso Bastos Editor: IBDC, São Paulo, 1999,
p. 72), há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se
em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato
impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado
desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e
igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece
uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau
de realização do princípio contraposto). Os interesses contrapostos, no caso
em exame, são relativamente claros. O primeiro deles está baseado no
próprio princípio da isonomia. De fato, em primeiro lugar, temos como
potencialmente afetado o interesse de todos os demais cidadãos não
beneficiados pela medida impugnada. Mais especificamente, temos os
demais cidadãos brasileiros, ricos ou pobres, que pleiteiam vagas nas
instituições públicas de ensino superior, devendo, para tanto, submeter-se a
fatigante e complexo processo seletivo. Não se pode olvidar, ademais, a
existência de outros produtores rurais que, conquanto não beneficiados pelo
programa nacional de reforma agrária, também carecem de uma maior
atenção do Estado, uma vez que se encontram em situação em muito
similar à dos assentados. Outro interesse potencialmente violado refere-se
às próprias universidades. E aqui estamos diante de instituições que se
inserem em uma moldura constitucional específica. Nesse ponto, penso que
é necessário desenvolver algumas considerações sob a perspectiva das
normas constitucionais relativas à educação e ao ensino universitário. O
princípio da autonomia universitária. Outro princípio constitucional
envolvido é o da autonomia universitária. Conforme elucida Anita Lapa
Borges de Sampaio em dissertação de mestrado por mim orientada e
intitulada “Autonomia Universitária: um modelo de interpretação do artigo
207 da Constituição Federal”, essa garantia constitucional pode ser
desmembrada em: a) didático-científica; b) administrativa; e c) financeira e
patrimonial. Relativamente à autonomia didático-científica, o próprio texto
constitucional determina, expressamente, a observância ao parâmetro da
qualidade de ensino (art. 206, VII) e do pluralismo de idéias e de
concepções pedagógicas no âmbito das instituições de ensino (art. 206, III).
Causa, portanto, perplexidade a participação do INCRA e de “movimentos
sociais” na supervisão pedagógica (item 1.3.2 do Projeto – fls. 213-237). Ou
seja, indivíduos não pertencentes aos quadros da universidade (docentes e
discentes) poderão influir de forma decisiva no programa do curso a ser
ministrado. Ademais, no referido Projeto, está consignado (item 1.5) que a
turma especial destina-se exclusivamente a “assentados e filhos de
assentados que possuam ensino médio completo e que tenham perspectiva
de contribuir com os assentamentos de reforma agrária” (fl. 215). Em
acréscimo, há, nos autos, transcrição de notícia veiculada no sítio do
Ministério do Desenvolvimento Agrário em 29.7.2007(fl.107), dando conta
de que a inscrição no procedimento seletivo estaria condicionada à
indicação do candidato pelo assentamento onde reside e à obtenção de
carta de anuência junto ao Superintendente Regional do INCRA. De certo,
tais dispositivos violam o estatuído no art. 206, I, da Constituição, que
96
preconiza a igualdade de condições para o acesso e a permanência nas
instituições de ensino. Diversamente de outras “ações afirmativas”, nas
quais apenas é destacado um percentual das vagas existentes – caso das
“cotas”, cuja constitucionalidade é objeto de impugnação perante esta Corte
-, o convênio celebrado pela autarquia fundiária com a Universidade Federal
de Pelotas interdita o acesso de outras pessoas ou grupos ao curso de
graduação. Além disso, o fato de a escolha dos participantes contar com a
ingerência das lideranças dos assentamentos revela-se em descompasso
com a norma constitucional que determina o acesso aos níveis mais
elevados do ensino segundo a capacidade individual (art. 208, V). Abre-se,
também, a possibilidade de ingerência política e de arbitrariedade na
escolha dos graduandos. Creio, por conseguinte, não ser possível sustentar
a legitimidade da medida adotada pelo INCRA e pela Universidade Federal
de Pelotas. Apesar de se reconhecer a validade e a necessidade de se
oferecer aos assentamentos condições favoráveis ao seu desenvolvimento
sustentável, as providências adotadas para o atendimento dessa finalidade
não podem ocorrer de maneira a comprometer o delineamento
constitucional do ensino superior em nosso país. Nesse sentido, a criação,
no âmbito de universidade pública, de turma especial para o atendimento
exclusivo de determinado grupo é medida de tal forma gravosa aos
referidos princípios constitucionais que não seria despropositado cogitar a
existência de outros meios, tão ou mais eficazes, para a consecução da
mesma finalidade. O convênio impugnado no processo de origem descura a
necessidade de atendimento aos diversos interesses e direitos conflitantes
sem o sacrifício absoluto de quaisquer deles. Dos requisitos específicos
dos incidentes de contra cautela Assim, tendo em vista as considerações
acima desenvolvidas, entendo que a decisão impugnada revela-se, de fato,
necessária e adequada ao resguardo de princípios constitucionais de
indubitável relevância axiológica (atinentes à disciplina do ensino superior),
restando claramente evidenciada a legitimidade da providência cautelar
adotada pelo juízo de origem. Desse modo, não restou caracterizada a
alegada violação à ordem pública, haja vista que o ato judicial impugnado,
ao impedir a pronta execução do convênio celebrado entre o requerente, a
Universidade Federal de Pelotas e a Fundação Simon Bolívar, nada mais
fez do que acautelar a ordem jurídico-constitucional, até que sobrevenha
pronunciamento definitivo do Poder Judiciário sobre a controvérsia
constitucional. O órgão judicante apenas garantiu a utilidade do provimento
final da ação civil pública, tendo em vista que o imediato funcionamento da
turma especial destinada a beneficiários do programa de reforma agrária
poderia gerar incontáveis prejuízos ao Poder Público e à coletividade, caso,
ao fim, o Ministério Público lograsse êxito em sua postulação. Isso porque,
além da violação aos referidos princípios constitucionais atinentes à
educação pública, também restariam frustradas as expectativas dos
eventuais participantes do curso, que, a despeito dos esforços envidados,
não lograriam obter diploma válido ou exercer licitamente a profissão
escolhida, o que poderia gerar um sem-número de contestações judiciais. O
programa de capacitação dos assentados revelar-se-ia inócuo, em
detrimento de seus beneficiários. Por fim, no tocante à alegação acerca da
probabilidade de configuração do chamado “efeito multiplicador”, tendo em
vida a existência de cursos similares em outras unidades da Federação,
cumpre assinalar que esse fato, ao invés de confirmar a alegada lesão à
ordem pública, apenas reforça a necessidade de maior aprofundamento do
debate sobre o tema, imprescindível para a definição dos rumos do ensino
público em nosso país. Conclusão: Ante o exposto, tendo em vista carecer
de plausibilidade a tese sustentada pela autarquia fundiária e não ter sido
comprovada lesão à ordem, saúde, segurança ou economia públicas,
indefiro o pedido de suspensão de tutela antecipada. Publique-se.
97
Brasília, 27 de abril de 2009. Ministro GILMAR MENDES. Presidente. (Grifo
nosso) 24
Ao STJ foi interposto recurso especial pela UFPEL e INCRA, cujo relator foi
o Ministro Herman Benjamin, em 11/5/2010. Os argumentos apresentados pelo
Ministro estão transcritos a seguir:
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA.
SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. EXTENSÃO DOS EFEITOS ATÉ
TRÂNSITO EM JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. PREJUDICIALIDADE DO
JUÍZO SUMÁRIO DE VEROSSIMILHANÇA. CONTROLE JUDICIAL DE
POLÍTICAS PÚBLICAS. REFORMA AGRÁRIA. LEI 9.394/96 (LEI DAS
DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL). AUTONOMIA
UNIVERSITÁRIA. POLÍTICAS AFIRMATIVAS.
1. A tutela antecipada pelo Tribunal a quo, ao julgar Agravo de Instrumento
contra decisão interlocutória que indefere a medida, não tem efeitos
prolongados até o trânsito em julgado da demanda, tornando-se
prejudicada, caso a decisão do juízo monocrático seja de improcedência.
2. A eficácia das medidas liminares – as quais são fruto de juízo de mera
verossimilhança e dotadas de natureza temporária – esgota-se com a
superveniência de sentença cuja cognição exauriente venha a dar
tratamento definitivo à controvérsia. Precedentes do STJ.
3. A efetividade das Políticas Públicas não pode ser frustrada mediante
decisões pautadas em mera cognição sumária quando há sentença que
exaure o meritum causae por completo.
4. Para a solução do Recurso Especial in casu, bastam os fundamentos de
natureza processual, não obstante o acórdão e as partes tenham
alinhavado argumentos de ordem substantiva, sobretudo quanto à
pertinência de sindicabilidade judicial de Políticas Públicas, tema que, por
ocioso, somente é enfrentado em obiter dictum.
5. Como regra geral, descabe ao Judiciário imiscuir-se na formulação ou
execução de programas sociais ou econômicos. Entretanto, como tudo no
Estado de Direito, as políticas públicas se submetem a controle de
constitucionalidade e legalidade. Precedentes do STJ.
6. A autonomia universitária (art. 53 da Lei 9.394/98) é uma das conquistas
científico-jurídico-políticas da sociedade contemporânea e, por isso, deve
ser prestigiada pelo Judiciário. No seu âmbito, desde que preenchidos os
requisitos legais, garante-se às universidades públicas a mais ampla
liberdade para a criação de cursos, inclusive por meio da celebração de
convênios.
7. Da universidade se espera não só que ofereça a educação escolar
convencional, mas também que contribua para o avanço científicotecnológico do País e seja partícipe do esforço nacional de eliminação ou
mitigação, até por políticas afirmativas, das desigualdades que,
infelizmente, ainda separam e contrapõem brasileiros.
8. Entre os princípios que vinculam a educação escolar básica e superior no
Brasil está a "igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola" (art. 3°, I, da Lei 9.394/98). A não ser que se pretenda conferir
caráter apenas retórico ao princípio de igualdade de condições para o
acesso e permanência na escola, deve-se a esta assegurar a possibilidade
de buscar formas criativas de propiciar a natureza igualitária do ensino.
24
Consulta ao processo físico citado nas referências.
98
9. Políticas afirmativas, quando endereçadas a combater genuínas
situações fáticas incompatíveis com os fundamentos e princípios do Estado
Social, ou a estes dar consistência e eficácia, em nada lembram privilégios,
nem com eles se confundem. Em vez de funcionarem por exclusão de
sujeitos de direitos, estampam nos seus objetivos e métodos a marca da
valorização da inclusão, sobretudo daqueles aos quais se negam os
benefícios mais elementares do patrimônio material e intelectual da Nação.
Freqüentemente, para privilegiar basta a manutenção do status quo, sob o
argumento de autoridade do estrito respeito ao princípio da igualdade.
10. Sob o nome e invocação do mencionado princípio, praticam-se ou
justificam-se algumas das piores discriminações, ao transformá-lo em
biombo retórico e elegante para enevoar ou disfarçar comportamentos e
práticas que negam aos sujeitos vulneráveis direitos básicos outorgados a
todos pela Constituição e pelas leis. Em verdade, dessa fonte não jorra o
princípio da igualdade, mas uma certa contra-igualdade, que nada tem de
nobre, pois referenda, pela omissão que prega e espera de administradores
e juízes, a perpetuação de vantagens pessoais, originadas de atributos
individuais, hereditários ou de casta, associados à riqueza, conhecimento,
origem, raça, religião, estado, profissão ou filiação partidária.
11. Recurso Especial provido para determinar a limitação dos efeitos
da tutela, antecipada pela Corte de origem, até a sentença de
improcedência.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de
Justiça: "Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro
Mauro Campbell Marques, acompanhando o Sr. Ministro Herman Benjamin,
a Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto
do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Mauro Campbell
Marques (voto-vista), Eliana Calmon, Castro Meira e Humberto Martins
votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília, 11 de maio de 2010(data do
julgamento). MINISTRO HERMAN BENJAMIN, Relator. 25
O curso retomou o rumo em março de 2011, encontrando-se em fase de
aguardo da decisão de Recurso Extraordinário interposto pelo MPF, admitido em
21/11/2011 pela desembargadora Marga Inge Barth Tessler, do TRF da 4ª Região.
O processo foi distribuído à Ministra Rosa Weber do STF.
Como se verifica nos argumentos dos juízes, desembargadores, ministros,
procuradores federais e Advocacia Geral da União, os princípios constitucionais são
analisados sob prismas diferentes, o que leva a questionar qual é a concepção
predominante de princípio. Os mesmos princípios são convocados para formar
argumentos prós e contra a existência de cursos para beneficiários da reforma
25
Consulta ao processo físico citado nas referências.
99
agrária, donde é possível concluir que há um peso ideológico na formulação do feito
judicial.
Ferraz (2007) em sua dissertação de mestrado em Direito destaca que no
cenário denominado pós-positivista:
[...] constata-se a assunção dos princípios à categoria de normas jurídicas
dotadas de coercitividade e executoriedade plenas, de sorte que a aplicação
do Direito passa a ganhar novos contornos, exigindo do intérprete não mais
uma aplicação silogística de regras, mas uma atuação comprometida com o
binômio segurança jurídica/justiça, assentada sobre a tênue linha da
cômoda tentação de se adotar um subjetivismo desmesurado ou de partir
para pautas alternativas de aplicação do Direito fora dos contornos jurídicos
institucionalizados.
No que se refere ao princípio da proporcionalidade, Bonavides (2008, p. 393)
salienta que esse princípio pretende instituir “[...] a relação entre fim e meio,
confrontando o fim e o fundamento de uma intervenção com os efeitos desta para
que se torne possível um controle do excesso”. Três elementos ou subprincípios dão
conformidade à proporcionalidade, a saber: a pertinência ou aptidão (meio certo
para levar a cabo um fim baseado no interesse público); necessidade (a medida não
há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se
almeja) e proporcionalidade stricto sensu (a escolha recai sobre os meios que, no
caso específico, levarem mais em conta o conjunto de interesses em jogo).
(BONAVIDES, 2008, p. 397-398)
100
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] A ordem é ninguém passar fome, progresso é o povo feliz, a reforma agrária é a volta do
agricultor a raiz [...] (Música Ordem e Progresso, Letra de Zé Pinto)
Tomando como referência a questão central desta pesquisa, “Quais são as
decisões do Judiciário sobre as ações civis públicas?”, é possível afirmar que há um
conjunto de princípios gerais presentes nos três casos investigados. São três os
princípios gerais convocados nas ações civis públicas, a saber: legalidade, isonomia
e proporcionalidade. Dentre os princípios específicos, em todas as ações, nas
decisões nos tribunais, nas sentenças em 1° grau e nas decisões junto ao STF e
STJ, a autonomia didático-científica da universidade foi destacada.
Aliada à questão dos princípios constitucionais, vem a pergunta: Como os
princípios podem servir à argumentação para extinção de um curso superior e ao
mesmo tempo como fundamentação das decisões judiciais que promovem a
continuidade do curso?
Talvez o estudo sobre a teoria geral dos princípios possa auxiliar nessa
resposta, como foi indicação do professor orientador logo no início da pesquisa.
Palavras dele: “você precisará desenvolver muitas leituras sobre teoria geral dos
princípios para que possa trabalhar com princípios constitucionais” (RABELLO
FILHO, 6/7/2011). Ao invés de aprofundar teoricamente a questão, o caminho
adotado no estudo foi o de “vasculhar” as fontes primárias, com o intuito de
101
compreender o trâmite judicial que os cursos superiores para os beneficiários da
reforma agrária têm enfrentado na sociedade brasileira. Portanto, o ponto de
chegada deste trabalho é a descrição breve do que se passa no plano do Judiciário,
entretanto, com muitas lacunas teóricas as serem preenchidas, o que demandaria
uma pesquisa de natureza bibliográfica em profundidade sobre o assunto.
Além das fontes primárias, artigos recentes versando sobre os três cursos
superiores foram estudados. Eles também são descritivos, carecendo de maior
análise. A produção de conhecimento nessa área se faz necessária, haja vista que o
próximo passo no Poder Judiciário será a decisão do STF sobre a legalidade desses
cursos. O Ministro Gilmar Mendes manifestou-se contrário aos mesmos, quando
julgou um pedido de antecipação de tutela. Já, o Ministro Herman Benjamin do STJ
determinou a limitação dos efeitos da tutela antecipada pela Corte de origem. O
princípio constitucional da igualdade constituiu o foco do relato do referido Ministro.
É possível perceber duas matrizes de pensamento numa primeira análise do
conteúdo das ações civis públicas e nas decisões nos tribunais. A primeira matriz é
idealista e positivista, ainda que sob o manto do denominado pós-positivismo. O fato
é que para os idealistas a lei funciona como “camisa de força”, haja vista que se
trabalha com o plano “ideal” da sociedade, da “ordem e do progresso”. Por isso,
construir uma organização diferenciada do trabalho pedagógico e ampliar o acesso à
universidade, abrindo outras portas dessa instituição, bastante elitizada, é tido como
ofensa ao princípio da igualdade. Como aplicar a máxima “Todos são iguais perante
a lei”? O Ministro Herman foi feliz ao afirmar que “A não ser que se pretenda conferir
caráter apenas retórico ao princípio da igualdade de condições para acesso e
permanência na escola, deve-se a esta assegurar a possibilidade de buscar
formas criativas de propiciar a natureza igualitária do ensino”.
102
Na sociedade brasileira, desde meados do século XX, inúmeras são as
discussões sobre a construção de instituições escolares, de fato, democráticas.
Essas experiências acadêmico-pedagógicas, construídas coletivamente, revelam
que a universidade pode ter caráter público ampliado. Não se trata do públicoestatal, mas do público-participação efetiva da sociedade.
Em síntese, a primeira matriz está bem explícita no conteúdo das ACPs e do
Tribunal Federal de Justiça do Rio Grande do Sul, bem como da decisão de uma
Juíza de 1° grau do estado de Goiás. Todos eles analisaram a questão da educação
superior pelo plano dedutivo, ideal, e com vieses positivistas. O MPF, por exemplo,
vem se mostrando, nos dois casos em que é autor, “nada guardião” dos direitos
fundamentais. Quando eu pensava em escrever sobre a face conservadora das
ações do MPF, defrontei-me com a frase de Santos et. al. (2009, p. 8):
[...] pode-se afirmar que a posição do Ministério Público Federal é
contraditória no que tange aos preceitos constitucionais que delimitam sua
função. Ao invés de ser o guardião da efetividade dos direitos fundamentais,
conforme previsto nos artigos 127 a 130-A, da nossa carta constitucional,
age na sua maioria, questionando ações das instituições que visam à
efetividade de um dos direitos fundamentais básicos, que é o direito a
educação – que todos os cidadãos possuem.
Como pode uma Associação de profissionais – no caso engenheiros
agrônomos - sugerir que ao invés de um diploma de Engenharia Agronômica, o
estudante tenha um certificado de realização de um curso técnico-profissional? Os
trabalhadores dos assentamentos têm que ficar reduzidos ao estudo das primeiras
letras? Alguns professores do curso de Direito diriam: “O seu trabalho é ideológico”.
E, eu tenho que responder: “qual trabalho não é ideológico?”. Mas, para superar o
discurso do “meramente ideológico” é fundamental que o profissional do Direito,
antes de ir contra a efetividade dos direitos e princípios constitucionais, abra os
olhos para o que se passa na sociedade brasileira. Como falar dos assentamentos
103
sem nunca ter visto um assentamento, sem nunca ter sentido um pouco do que é o
modo de vida e de trabalho na terra? Como criticar o acesso aos cursos superiores
em turmas especiais quando não se tem conhecimento do como é o acesso à escola
por parte da maior parte dos moradores do campo? Quantas horas no transporte
escolar? Quantos dias sem ir às aulas devido as condições intransitáveis das
estradas? Quantas pessoas “fadadas ao fracasso escolar” e, a autora deste trabalho
seria mais uma a compor a lista dos desistentes escolares em função da “ausência
do Poder Público local” na efetivação do direito à educação – condições para acesso
e permanência.
Como dizem os profissionais críticos do Direito, os profissionais dessa área
têm que ser intérpretes do direito, da lei, dos princípios constitucionais. Para ser um
“aplicador” da lei basta um curso técnico. Por que o MPF não aventa essa
possibilidade de criação de cursos técnicos para os profissionais do direito que
desejam aplicar a lei sem analisar as contradições sociais?
O ensinamento de Leandro Konder (2002, p. 259), é pertinente,
especialmente quando afirma que “Onde há conhecimento há ideologia. Mas, onde
há ideologia há algum conhecimento, alguma coisa a ser aproveitada”. Konder relata
que Karl Marx passou anos na biblioteca do Museu Britânico. Ele questionava a
cientificidade dos economistas ingleses e denunciava o caráter ideológico das obras.
Entretanto, o próprio Konder destaca que:
Reencontramos, então, a reflexão do velho Marx. A questão da ideologia é
uma questão teórica crucial mas não tem solução no plano da teoria: é
aquela questão a que se refere uma das ‘Teses sobre Feuerbach’, quando
Marx nos diz que se trata, efetivamente, de uma questão teórica que é
prática, que deverá ser resolvida pela práxis. (KONDER, 2002, p. 261).
O que é buscar solução na práxis? É o que fazem as universidades que
ousam e lutam (internamente) pela organização de cursos para beneficiários da
104
reforma agrária. Há um conjunto de professores lutadores no templo universitário, e,
de fato, é preciso ter “muita garra” para não desistir no meio do caminho. São muitos
os enfrentamentos internos e externos que sofrem todos os que se envolvem em
processos que buscam transformação social, em especial com as questões que
direta ou indiretamente dizem respeito à reforma agrária e à propriedade.
Há uma segunda matriz teórica de pensamento que está por trás dos
argumentos favoráveis ao desenvolvimento dos cursos superiores. Essa matriz é
materialista e é histórica. Dessa forma, a realidade será analisada à luz da
contradição (inerente ao modo de produção capitalista) e da totalidade. Em função
disso, no conteúdo das decisões e sentenças favoráveis ao funcionamento dos
cursos, há sempre uma análise da questão social. Os princípios da isonomia e da
proporcionalidade são convocados à luz da questão social. Esses princípios são
iluminados por uma teoria crítica e pelo entendimento de que a igualdade jurídica
nem sempre corresponde à igualdade fática.
Só consigo encontrar explicações de natureza epistemológica para a
utilização dos mesmos princípios, na análise de um fato jurídico-social, com
respostas opostas. Onde estará a verdade? Uma análise cuidadosa das
contradições sociais brasileiras certamente revelará que o país tem necessidade de
mais e mais cursos superiores para os beneficiários da reforma agrária. Afinal,
alguém pensa em como é o acesso à saúde entre os assentados? Em como é o
acesso às informações jurídicas? O assentamento de reforma agrária carece de
políticas públicas efetivas, e, em função dessa carência e ausência do Poder
Público, assentamentos ficam fadados ao fracasso. Por que o MPF não demanda do
Poder Público a efetivação dos direitos sociais e fundamentais dos beneficiários da
reforma agrária e dos demais povos do campo brasileiro?
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analise critica das decisoes do judiciario sobre a - TCC On-line