Preço predatório no mercado de revenda de combustíveis
Arthur Villamil
Advogado, sócio do Escritório Neves & Villamil Advogados Associados, Doutor em
Direito Público pela UFMG, Mestre em Direito Econômico pela UFMG, bacharel em
Direito pela UFMG, Ex-Professor de Direito Econômico da UFMG, professor do
curso de Pós-Graduação em Direito do Instituto de Autos Estudos em Direito do
Centro Jurídico Brasileiro – CJB, advogado Coordenador do Departamento
Jurídico Cível-Comercial do MINASPETRO, assessor especializado de Direito da
Concorrência e Direito Econômico da FECOMBUSTÍVEIS/CNC, palestrante em
cursos de aperfeiçoamento em gestão de projetos e claims em obras de
Engenharia junto ao SINDUSCON-MG (Belo Horizonte e Juiz de Fora), advogado
atuante em arbitragens no setor de Engenharia e Infraestrutra nas Câmaras de
Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas-RJ e na CAMARB-MG, autor de artigos,
monografias e capítulos de livros jurídicos especializados.
RESUMO
O presente artigo tempo por objetivo analisar a complexa temática relativa ao ilícito
concorrencial denominado preço predatório, de modo a elucidar os elementos específicos
para a sua caracterização no mercado da revenda varejista de combustíveis.
ABSTRACT
This article time to analyze the complex issue concerning the unlawful competition called
predatory pricing, in order to elucidate the specific elements for its characterization of the
resale market in retail fuels.
I – O TEMA E O PROBLEMA
As relações econômicas são vivas e dinâmicas. No mercado, muitas vezes os agentes
econômicos se comportam de maneira inusitada ou até mesmo de modo aparentemente
contraditório, despertando a atenção dos seus clientes, concorrentes e mesmo do Estado
enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica.
Dentre as várias práticas restritivas da livre concorrência, uma assume feições especiais e
intrincadas, e muitas vezes mal compreendida pelo mercado e pelas autoridades
fiscalizadoras. Não raro se confunde preço baixo com preço predatório e agentes
econômicos são acusados de práticas ilícitas muitas vezes inexistentes na realidade.
Visando elucidar essa questão, este estudo tem por referência teórica os aportes da análise
econômica do Direito e as contribuições do Direito Econômico, mais especificamente do
Direito de Proteção da Concorrência.
2 II – A MATRIZ CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE PROTEÇÃO DA CONCORRÊNCIA E
A IDENTIFICAÇÃO DO PREÇO PREDATÓRIO COMO MODALIDADE DE ABUSO DE
PODER ECONÔMICO
O Direito de Proteção da Concorrência pode ser entendido como um dos campos de
especialização científica do Direito Econômico, sendo este o ramo do Direito que tem por
objeto a regulação jurídica das medidas de políticas econômicas constitucionais referentes
às relações de interesses individuais e coletivos1. Já o Direito da Concorrência, enquanto
sub-ramo do Direito Econômico, tem por objeto o regramento legal da tutela da livre
concorrência e do bom funcionamento dos mercados, com o objetivo de prevenção e
repressão das infrações contra a ordem econômica, de acordo com os princípios
constitucionais da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da
propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso de poder econômico
(Lei n° 8.884/94 – art. 1°).
A matriz constitucional do Direito da Concorrência, ou Direito Antitruste, como comumente
chamado2, reside nos artigos 170, IV e 173, § 4°, ambos da Constituição da República,
que assim preceituam:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano
e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
IV - livre concorrência;
(...)”
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração
direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando
necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo, conforme definidos em lei.
1
SOUZA, Washington Albino Peluso de. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 3
Entendemos ser equivocado designar como sinônimos as expressões Direito da Concorrência e Direito
Antitruste. Na realidade, o Antitruste é uma sub-área específica do Direito da Concorrência, ou seja, trata-se
do campo específico do Direito Concorrencial atinente ao controle das condutas dos agentes econômicos e
dos atos de concentração econômica. Porém, o Direito da Concorrência como um todo é mais vasto e
abrangente que o Direito Antitruste, comportando a análise de temática mais ampla, tal como as questões
relacionadas à atuação do Estado no domínio econômico para preservação de concorrência, políticas de
defesa comercial e antidumping, medidas de incentivo da atividade econômica, dentre outras temáticas
gerais do Direito de Proteção da Concorrência.
2
3 (...)
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos
mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
(...)” (grifamos)
Sob o prisma da normatividade infraconstitucional, o Direito da Concorrência encontra-se
regulado por leis e por vários decretos presidenciais, portarias do Ministério da Justiça e
do Ministério da Fazenda, portarias interministeriais, resoluções do CADE – Conselho
Administrativo de Defesa Econômica e por outras normas regulamentares. Sob o ponto de
vista legal, os dois principais diplomas normativos em vigor são a Lei n° 8.884/94,
conhecida como Lei de Proteção da Concorrência (ou Lei Antitruste) e a Lei n° 8.137/90,
conhecida como Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as
Relações de Consumo.
A questão em exame será analisada sob o prisma das infrações administrativas da ordem
econômica, previstas na Lei n° 8.884/94, não se tendo aqui a pretensão de analisar o caso
sob o aspecto do Direito Penal, ou seja, sob a hipótese de incidência da Lei n° 8.137/90.
Desse modo, o presente artigo circunscreve-se à análise da conduta de revendedor
varejista de combustíveis que atua praticando preços significativamente inferiores aos
seus concorrentes, à luz dos princípios e ditames da Lei n° 8.884/94, que tem como
objetivo a prevenção e a repressão, em âmbito administrativo, de infrações da ordem
econômica e das condutas que visem a dominação de mercados ou o aumento arbitrário
de lucros.
III – LIVRE CONCORRÊNCIA E REGULAÇÃO DO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS NO
BRASIL
Para uma correta compreensão do funcionamento do mercado de revenda varejista de
combustíveis no Brasil, há que se iniciar a presente análise com a identificação do atual
paradigma jurídico-econômico adotado constitucionalmente.
Durante décadas o mercado brasileiro de distribuição de combustíveis e de outros
derivados de petróleo sofreu forte regulação estatal, a ponto de existir, em épocas não tão
4 remotas, tabelamento de preços para os combustíveis automotivos, em evidente
demonstração de uma forte intervenção estatal no mercado de distribuição e revenda de
derivados de petróleo.
O antigo DNC - Departamento Nacional de Combustíveis3, órgão subordinado ao
Ministério de Minas e Energia, era responsável pela elaboração e publicação de tabelas
de preços de combustíveis em todo o território nacional. Naquele contexto, os preços dos
combustíveis eram fixados rigidamente pelo Estado, e praticamente não havia espaço
para o estabelecimento de livre concorrência entre os agentes de mercado.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o papel do Estado na economia
sofreu mudanças significativas diante da passagem (ainda que formal) do paradigma do
Estado Social (de cunho excessivamente intervencionista) para o paradigma do Estado
Democrático de Direito (em que o Estado passa a ser agente normativo e regulador da
atividade econômica), sendo certo que a atuação direta do Estado no domínio econômico
somente passou a ser permitida nos casos previstos na própria Constituição ou então para
resguardar relevante interesse coletivo ou os imperativos da segurança nacional, nestes
dois últimos casos, sempre respeitado o princípio da estrita legalidade.4 Por outro lado, a
Constituição vigente atribuiu prioritariamente ao Estado o papel de agente indireto da
economia, ou seja, de agente normativo e regulador da atividade econômica, devendo
exercer tal papel através das funções de fiscalização, incentivo e planejamento da
atividade econômica.5
Retraindo-se paulatinamente da intervenção direta no domínio econômico, o Estado
passou a exercer prioritariamente as atividades de atuação indireta no domínio
econômico, através da regulação e normatização das atividades econômicas, o que
3
O DNC foi extinto nos termos do art. 78, da Lei n° 9.478/97 (Lei do Petróleo).
O artigo 173 da Constituição Federal de 1988 assim determina: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos
nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando
necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em
lei.”
5
O artigo 174 da Constituição Federal de 1988 assim determina: “Art. 174. Como agente normativo e
regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo
e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”
4
5 corresponde à adoção de um modelo de “economia de mercado” como instrumento para o
desenvolvimento das atividades econômicas no país.
Assim, o novo papel do Estado no domínio econômico não mais se afeiçoa a intensiva
intervenção direta, devendo prevalecer, tanto quanto possível, a liberdade dos agentes
econômicos de acordo com as forças e regras de mercado, agindo o Estado
subsidiariamente nos termos dos artigos 173 e 174 da Constituição da República.
Nesse contexto, os preços dos combustíveis e demais derivados de petróleo foram sendo
paulatinamente liberados após 1988, ou seja, a formação dos preços passou a não mais
depender de um tabelamento ou fixação por parte de órgãos estatais. Desde a década de
1990 o tabelamento do preço dos combustíveis foi abolido, liberando-se os preços nos
termos da Portaria n° 59, de 20 de março de 1996, do Ministério da Fazenda. A partir de
então, os preços de combustíveis devem se formar de acordo com a lógica de oferta e
demanda, em um sistema de livre mercado que privilegia os princípios da livre iniciativa e
da livre concorrência como mecanismos para a geração, circulação e distribuição de
riquezas. Por isso, a atuação estatal no domínio econômico somente se justifica quando
constatadas falhas de mercado, ou seja, quando a autoregulação do mercado não for
suficiente para assegurar maior eficiência econômica ou para a consecução das
finalidades maiores da ordem econômica constitucional.
Assim é que atualmente cada agente da cadeia de distribuição de combustíveis, seja ele
atacadista (distribuidoras) ou varejista (postos revendedores), poderá fixar livremente os
seus preços, sem qualquer ingerência estatal prévia, desde que na fixação de tais preços
não incorra em infração da ordem econômica, ou seja, desde que lance os seus preços ao
mercado sem abusar do seu poder econômico.
Os preços de combustíveis atualmente praticados pelos postos revendedores não mais se
sujeitam ao controle direto do Estado, mas apenas ao controle indireto, ou seja,
subordinam-se tão somente à fiscalização e à regulação normativa do setor, esta exercida
prioritariamente pela Agência Nacional do Petróleo, Biocombustíveis e Gás Natural – ANP
(criada pela Lei n° 9.478/97). Sobre o tema, oportuna é a lição de Pedro Dutra, in verbis:
6 “Atendendo ao princípio constitucional da livre concorrência que, como
visto acima – e assim em todos os mercados de bens e serviços – o
legislador vinculou expressamente a disciplina do mercado de petróleo à
livre concorrência – desde a formulação das diretrizes de “Política
Energética Nacional”, a cargo do Conselho Nacional de Política
Energética, à ação regulatória a ser exercida pela ANP.” 6
Desse modo, são os postos revendedores livres para praticar os preços que bem
entenderem, desde que tais preços não sejam fruto de colusão entre concorrentes ou de
abuso de poder econômico por parte de um ou alguns dos concorrentes.
Logo, a fim de se invocar a tutela do Direito da Concorrência, há que se verificar se a
conduta sob suspeita decorreria de simples competição entre concorrentes (livre
concorrência) ou se derivaria de eventual abuso de poder econômico por parte de
revendedor varejista que estaria, em tese, praticando preços inferiores aos custos com o
intuito de eliminar concorrentes. Para tanto, há que se identificar, sob o aspecto normativo,
no que consiste a prática de preço predatório, diferenciando-o, inclusive, da infração de
dumping que muitas vezes é confundida com preço predatório, mas que apresenta
elementos fáticos e jurídicos distintos.
IV – DUMPING E PREÇO PREDATÓRIO: DIFERENCIAÇÃO DAS CONDUTAS
Para uma melhor compreensão do tema e correta significação dos termos, cumpre
distinguir duas condutas similares, mas que apresentam contornos distintos e tratamentos
legais diferentes. A despeito de suas similaridades, dumping e preço predatório não
podem ser considerados sinônimos.
A definição legal de preço predatório e de dumping encontra guarida no art. 21, da Lei n°
8.884/94, respectivamente em seus incisos XVIII e XIX, que assim preceituam:
“Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que
configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam
infração da ordem econômica;
(...)
6
DUTRA, Pedro. Livre Concorrência e Regulação de Mercados: estudos e pareceres. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 299.
7 XVIII - vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo;
XIX - importar quaisquer bens abaixo do custo no país exportador, que
não seja signatário dos códigos Antidumping e de subsídios do Gatt;”
(grifamos)
Muito embora a lei não utilize expressamente os termos “preço predatório” e “dumping”, a
doutrina assim passou a se referir às condutas típicas supracitadas, ganhando o nomen
juris de “preço predatório” a conduta vedada no inciso XVIII e o nomem juris de “dumping”
a conduta vedada no inciso XIX do art. 21, da Lei n° 8.884/94.
Da leitura dos dispositivos legais supracitados, depreende-se que o preço predatório
consiste na venda, sem justificativas legais ou de ordem econômica, de mercadoria abaixo
do seu preço de custo, ao passo que o dumping ocorre quando um agente econômico
localizado no Brasil importa para o país bens abaixo do seu custo no país exportador.
Desse modo, percebe-se que o dumping exige sempre a articulação de mais de um
mercado nacional, ou seja, a conduta somente ocorre quando envolvida a importação,
para o Brasil (pais importador), de um produto abaixo do seu custo no país de origem
(país exportador). Com isso, o dumping assume feições muito ligadas à Defesa Comercial
brasileira em âmbito internacional do que propriamente uma infração pura e simples da
ordem econômica interna. A prática de dumping será objeto de análise sob o prisma da
defesa comercial e não diretamente sob a ótica do direito antitruste, devendo-se levar em
consideração, para a caracterização do dumping, os códigos Antidumping e de subsídios
do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade).
No caso de dumping, portanto, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE,
somente poderá atuar quando o país de onde forem importados os bens, abaixo do seu
custo na origem, não for signatário do GATT. Isto porque, se o país de onde estiverem
sendo importadas mercadorias for signatário do GATT, a questão então será decidida com
fundamento no Direito Econômico Internacional presente nos tratados e nas convenções
firmadas pelo Brasil, competindo a instauração do processo à Secretaria de Comércio
Exterior – SECEX, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, não
se aplicando diretamente a Lei n° 8.884/94. Desse modo, não se tratando de importação
8 de combustíveis por preços inferiores ao seu custo no país de origem, não há que se
cogitar da prática de dumping.
Nos termos do art. 21, XVIII, da Lei de Proteção da Concorrência, o preço predatório
ocorre quando um fornecedor vende, injustificadamente, mercadoria abaixo do seu preço
de custo. Desse modo, para se configurar o preço predatório, mister se faz verificar as
seguintes condições objetivas: i) venda de um produto abaixo do preço de custo; e ii) que
o preço abaixo do custo seja injustificado, isto é, que não tenha justificativa legal ou
econômica. Além disso, há que se verificar que a finalidade do preço predatório, como o
próprio nome sugere, é a de predar os concorrentes, ou seja, de eliminar do mercado os
efetivos e potenciais competidores, tomando-lhes a clientela com preços abaixo dos
custos, o que inviabilizaria as vendas dos demais concorrentes e os expulsaria do
mercado.
O preço predatório exige o estabelecimento de uma estratégia de mercado agressiva e
bastante arriscada, sendo certo que os preços deverão ser mantidos abaixo dos custos de
aquisição por um período de tempo suficiente para eliminar os concorrentes, para então,
em um segundo momento, eliminados os concorrentes, o infrator poder elevar seus
preços a um patamar de monopólio, recuperando as perdas incorridas durante a prática
da conduta lesiva e maximizando os seus lucros de modo perene.
Por isso, simples promoções, com certo tempo definido de duração (ainda que os
produtos sejam vendidos abaixo do custo) dificilmente poderiam configurar preço
predatório, visto que a duração de tais promoções é por tempo limitado e não há, com
elas, o intuito e tampouco a possibilidade, ainda que remota, de inviabilizar a atuação e a
permanência dos concorrentes no mercado. Nesse aspecto distinguem-se preço
predatório e promoções ou liquidações de estoques. A racionalidade econômica do preço
predatório é a eliminação ardilosa de concorrentes, com evidente abuso de poder
econômico. Já as promoções e liquidações representam simples estratégia comercial de
um agente no mercado, em geral para facilitar a sua entrada no mercado (vide as
promoções de inauguração de lojas, supermercados, montadoras de automóveis que se
estabelecem no Brasil, etc.) ou para fazer crescer as suas vendas.
9 As vendas de produtos promocionais abaixo do preço de custos poderiam, então, ser
conceituadas como uma estratégia comercial de um agente econômico na busca de
ampliação de sua participação de mercado, não se constituindo, portanto, em prática
ilícita, já que com as promoções o agente não poderá, ainda que potencialmente,
prejudicar a livre concorrência através da eliminação de concorrentes. Muito pelo
contrário, com as promoções em geral é acirrada a competição entre os concorrentes em
busca de maiores fatias do mercado.
Na prática, contudo, muitas vezes é difícil estabelecer os contornos distintivos entre preço
predatório e promoções e liquidações já que para um observador do mercado, num caso
como no outro os produtos são vendidos abaixo do seu preço de custo. Porém, uma
análise mais acurada do caso, sob a perspectiva da racionalidade econômica revelará se
tais vendas são realizadas com a potencialidade de efetivamente eliminar os concorrentes
ou se não passa de simples estratégia comercial competitiva.
Desse modo, divisadas as condutas de dumping e de preço predatório, e feita a ressalva
acerca da prática de promoções especiais há que se verificar quais seriam os elementos
para a caracterização do preço predatório nos termos da Lei n° 8.884/94.
V - ELEMENTOS LEGAIS PARA CARACTERIZAÇÃO DO PREÇO PREDATÓRIO
Para a caracterização de infração da ordem econômica, nos termos da legislação em
vigor, não basta a simples prática de uma das condutas descritas nos incisos do art. 21 da
Lei de Proteção da Concorrência. Pelo contrário, há que se analisar se a conduta
praticada pelo agente econômico realmente poderia, ainda que potencialmente, causar
prejuízos à livre concorrência, à livre iniciativa e aos adquirentes (consumidores finais ou
não) de um produto ou serviço.
Para tanto, a Lei n° 8.884/94, ao dispor sobre as infrações da ordem econômica, dispôs
que as condutas elencadas exemplificativamente no art. 21, somente configurarão
infração quando configurarem as hipóteses previstas no art. 20. Desse modo, a simples
prática de uma das condutas listadas no art. 21 da Lei não é suficiente para caracterizar
10 infração da ordem econômica se dela não puderem, ainda que potencialmente, derivar as
conseqüências danosas listadas nos incisos do art. 20, que assim dispõe:
“Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de
culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou
possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a
livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros;
IV - exercer de forma abusiva posição dominante.”
Da leitura do dispositivo legal supracitado depreende-se com clareza que constituem
infração da ordem econômica todo e qualquer ato, seja de que forma venha a se
manifestar, que possa produzir, ainda que não produza (a lei acolhe a possibilidade de
mera potencialidade de dano), a limitação ou o falseamento da livre concorrência e da
livre iniciativa, a dominação de mercado relevante, o aumento arbitrário dos lucros ou o
exercício abusivo de posição dominante.
Por sua vez, o inciso XVIII, do art. 21, da Lei Antitruste assim determina:
“Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que
configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam
infração da ordem econômica;
(...)
XVIII - vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo;
Desse modo, para a constatação da infração denominada preço predatório, é preciso
verificar se o agente está ou não vendendo combustíveis (mercadoria) injustificadamente
abaixo do preço de custo e, ainda, se tal conduta é capaz de gerar os efeitos prejudiciais à
livre concorrência listados nos incisos do art. 20 da Lei, já que as condutas vedadas pelo
art. 21 somente configurarão infração da ordem econômica se e quando configurarem as
hipóteses previstas no art. 20. Assim, a conduta do revendedor de combustíveis teria de
satisfazer, simultaneamente, as hipóteses normativas do art. 21, XVIII e do art. 20.
A finalidade da Lei n° 8.884/94 consiste justamente em proteger a livre concorrência, e
não em proteger os concorrentes contra a competitividade de agentes estabelecidos no
11 mercado que venham a rivalizar efetivamente com seus concorrentes. A esse respeito,
veja-se a lição de José Ignácio Gonzaga Franceschini:
“A legislação antitruste não visa proteger agentes econômicos
unitariamente considerados, mas preservar o mercado como instituição de
coordenação das decisões econômicas, adequada ao modo de produção
capitalista.”7
Se um posto revendedor vende combustível a preços baixos (e ainda que abaixo do
custo), mas com isso não tenha a capacidade de efetivamente incorrer na limitação ou no
falseamento da livre concorrência, na dominação do mercado relevante, em aumento
arbitrário de lucros ou no exercício abusivo de posição dominante, enfim, nas hipóteses
listadas nos incisos do art. 20, não há que se falar em prática de preço predatório
enquanto infração da ordem econômica, já que a conduta do agente não é capaz, ainda
que potencialmente, de prejudicar a livre concorrência tutelada por lei.
O preço predatório, então, poderá ser definido como a venda injustificada de produtos ou
mercadorias abaixo do preço de custo, capaz de gerar, em um determinado período de
tempo, a eliminação de concorrentes, e, por conseqüência, limitar a livre concorrência e a
livre iniciativa, dominar mercado relevante, aumentar arbitrariamente os lucros e exercer
de forma abusiva a posição dominante. Sobre o conceito de preço predatório, vejam-se as
mais variadas lições da doutrina nacional e estrangeira:
“Preços predatórios ocorrem quando os agentes econômicos aplicam
estratégia de mercado, baixando os preços de seus produtos a valores
inferiores ao seu preço de custo. Desta forma, objetivam eliminar os
demais agentes econômicos concorrentes, uma vez que os mesmos não
poderão manter seus preços nos mesmos patamares. Observe-se que, a
princípio, tal prática pode até parecer simpática ao consumidor, tendo em
vista que este poderá adquirir bens a preços baixos. Todavia, a longo
prazo, ante a eliminação da concorrência, ficará sujeito a imposição
arbitrária de preços, ante a criação de monopólios ou oligopólios.” 8
No mesmo sentido leciona Cláudio Henrique de Almeida Souza:
7
FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Introdução ao Direito da Concorrência. São Paulo: Malheiros,
1996. p. 19.
8
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 271.
12 “O inciso 18 do artigo 21 da Lei 8.884/94, dispõe que a venda injustificada
da mercadoria abaixo do preço de custo que produza os efeitos ou tenha
como objeto prejudicar a livre concorrência, dominar mercado relevante de
bens ou serviços, aumentar arbitrariamente os lucros ou exercer de forma
abusiva a posição dominante como sendo uma infração à ordem
econômica.
Essa conduta é denominada como prática de preços predatórios, e se
verifica quando uma firma reduz o preço de venda de seu produto abaixo
do seu custo, incorrendo em perdas no curto prazo, objetivando eliminar
rivais do mercado, ou possíveis entrantes, para, posteriormente, quando
os rivais saírem do mercado, elevar os preços novamente, obtendo,
assim, ganhos no longo prazo.” 9
Os ex-conselheiros do CADE, Gesner Oliveira e João Grandino Rodas, em seu Direito e
Economia da Concorrência, com apoio em Viscusi, Vernon e Harrington assim definem
preço predatório, in verbis:
“Embora exista controvérsia acerca da definição de “preço predatório”,
uma noção preliminar está associada à “precificação em um nível
calculado de forma a excluir do mercado competidores tão eficientes ou
mais”.10
Richard Posner, Juiz da Corte de Apelações do 7° Circuito nos Estados Unidos da
América, um dos mais influentes doutrinadores do Direito Antitruste, assim define preço
predatório:
“A firm sells below cost in some markets; after its competitors are driven
out, it sets a monopoly price. Lesss dramatically, the firm sells below cost
in order to punish a price cutter or to deter new entry into the market. 11
Por sua vez, a o Anexo I, da Resolução n° 20/99 do CADE, assim define preço predatório:
9
SOUZA, Cláudio Henrique de Almeida. Preços predatórios: elementos conceituais. Cases norteamericano, europeu e brasileiro. In Temas de Direito da Concorrência. Org. João Bosco Leopoldino da
Fonseca. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – Pós-Graduação,
2005. p. 137.
10
OLIVEIRA, Genser.; RODAS, João Grandino. Direito e Economia da Concorrência. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. p. 57.
11
POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007. p. 317.
(Tradução livre: “Uma empresa vende abaixo do custo em alguns mercados; depois que seus concorrentes
são excluídos, ela fixa um preço de monopólio. De modo menos dramático, a empresa vende abaixo do
custo de modo a punir agente que pratica preços baixos ou para deter novos entrantes no mercado.”
13 “4. Preços predatórios: prática deliberada de preços abaixo do custo
variável médio, visando eliminar concorrentes para, em momento
posterior, poder praticar preços e lucros mais próximos do nível
monopolista. O exame desta prática requer análise detalhada das
condições efetivas de custos e do comportamento dos preços ao longo do
tempo, para afastar a hipótese de práticas sazonais normais ou de outras
políticas comerciais da empresa, além da análise de comportamento
estratégico, avaliando-se as condições objetivas de ganhos
potencialmente extraordinários posteriores suficientemente elevados e
capazes de compensar as perdas decorrentes das vendas abaixo do
custo.” (grifamos)
Do mesmo modo, a SEAE – Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da
Fazenda, integrante do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC, dispõe em
sua Resolução n° 70/2002 que:
“1. A Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, que dispõe sobre a prevenção
e a repressão às infrações contra a ordem econômica2, estipula em seu
art. 21, inciso XVIII, que a venda injustificada da mercadoria abaixo do
preço de custo que produza os efeitos ou tenha como objeto prejudicar a
livre concorrência, dominar mercado relevante de bens ou serviços,
aumentar arbitrariamente os lucros ou exercer de forma abusiva posição
dominante como sendo uma infração à ordem econômica.
2. Na literatura econômica essa conduta é denominada como prática de
preços predatórios, e se verifica quando uma firma reduz o preço de
venda de seu produto abaixo do seu custo, incorrendo em perdas no curto
prazo, objetivando eliminar rivais do mercado, ou possíveis entrantes,
para, posteriormente, quando os rivais saírem do mercado, elevar os
preços novamente, obtendo, assim, ganhos no longo prazo.” (sem grifos
no original)
Mais adiante, a Resolução supracitada estabelece um “Guia para Análise Econômica da
Prática de Preços Predatórios”, donde se colhem as seguintes lições:
“5. Conforme estipulado pela lei, a venda de mercadoria abaixo do preço
de custo não constitui uma infração. Esta venda tem que produzir o efeito,
ou ter como objeto, prejudicar a livre concorrência. Assim sendo, para a
constatação de uma estratégia de preços predatórios é necessário provar,
além da venda abaixo do custo, que as condições necessárias para que
essa estratégia seja lucrativa (ou seja, que no longo prazo a concorrência
irá se reduzir e com isto a firma predadora terá poder de mercado)
estejam presentes, a saber: participação de mercado significativa da firma
predadora, elevadas barreiras à entrada, capacidade produtiva para
14 atender o incremento da demanda no curto prazo e capacidade de
financiamento devido as perdas incorridas nessa estratégia.
(...)
O conceito de preços predatórios pode ser ilustrado através de uma firma
dominante que impõe preços abaixo do custo médio de produção, durante
um período de tempo suficientemente longo, tendo por intenção expulsar
alguns rivais ou deter a entrada de outras para que, no momento seguinte,
possa elevar seus preços, significativamente, na tentativa de recuperar
suas perdas iniciais em um mercado menos competitivo. De acordo com
esta ordem, a estratégia de preços predatórios constitui um investimento
em perdas, por um determinado período de tempo, com a perspectiva de
se obter retornos suficientemente altos no futuro.”
Como se vê, a simples venda de produtos ou de mercadorias, no caso, de combustíveis,
abaixo do preço de custo não é suficiente para caracterização de infração da ordem
econômica. É preciso, pois, analisar com maior densidade e profundidade a racionalidade
econômica da conduta (independentemente da vontade ou da intenção do agente), a fim
de averiguar se, no caso concreto, o revendedor efetivamente detém poder econômico de
mercado capaz de lhe assegurar a eliminação real e efetiva de concorrentes e a sua
manutenção no mercado para posteriormente praticar preços monopolísticos a fim de
recuperar as perdas incorridas durante a prática lesiva.
Analisando a racionalidade da conduta da infração de preço predatório, assim se
manifesta Paula Forgioni:
“É bastante evidente que a prática de preços predatórios somente poderá
ser atuada de forma eficaz por empresa capacitada a suportar custos
elevados durante certo período, ou seja, detentora de razoável poder
econômico. Por esse motivo, são colocados alguns requisitos de
racionalidade para a prática dos preços predatórios. A uma, os demais
agentes econômicos que atuam no mercado relevante deverão ser
suficientemente fracos para que se possibilite sua aniquilação. A duas, o
mercado relevante deve estar estruturado de tal forma que permita ao
agente econômico prever quanto tempo deverá praticar o preço
predatório. A três, os lucros a serem obtidos com a prática deverão
compensar os prejuízos incorridos pelo agente econômico ao sustentar o
baixo preço.
Em outras palavras, a racionalidade da conduta do agente econômico que
pratica preços predatórios está relacionada (i) ao prejuízo à concorrência
que pode ser acusado e, consequentemente, (ii) ao poder de mercado
detido pelo mesmo agente. Dessa forma, na análise da licitude do preço
15 predatório devem ser levados em consideração vários fatores, tais como a
existência de barreiras à entrada de novos agentes econômicos e a
possibilidade de alienação dos ativos das “vítimas” do preço predatório.” 12
Para se saber se o agente econômico realmente está praticando preços predatórios, isto
é, se sua conduta é efetivamente capaz de gerar os efeitos anticompetitivos listados nos
incisos do art. 20 da Lei Antitruste, há que se delimitar, em primeiro lugar, o mercado
relevante em que atua, a fim de estabelecer se está ou não tal agente em posição
dominante no mercado relevante. Isto porque, se o agente não detiver posição dominante,
a sua conduta, ainda que se amolde à descrição típica do art. 21, XVIII, não será capaz de
produzir as conseqüências listadas no art. 20 e, com isso, não se aperfeiçoará o ilícito
concorrencial.
Nesse sentido, entende-se como mercado relevante13 a delimitação espacial (aspecto
geográfico) do lugar onde ocorre a procura e a oferta relativamente de um bem ou serviço
específico
(aspecto
do
produto/serviço
relevante)
em
condições
razoavelmente
homogêneas em termos de preços, preferências do consumidor e características do
produto ou do serviço. Veja-se a respeito a definição constante do Anexo V, da Resolução
n° 15 do CADE14:
“1.6. DOS MERCADOS RELEVANTES
1.6.1. MERCADO (S) RELEVANTE(S) DO(S) PRODUTO(S) Um mercado
relevante do produto compreende todos os produtos/serviços
considerados substituíveis entre si pelo consumidor devido às suas
características, preços e utilização. Um mercado relevante do produto
pode eventualmente ser composto por um certo número de
produtos/serviços que apresentam características físicas, técnicas ou de
comercialização que recomendem o agrupamento.
1.6.2 MERCADO(S) RELEVANTE(S) GEOGRÁFICO(S). Um mercado
relevante geográfico compreende a área em que as empresas ofertam e
12
FORGIONI, Paula. Os Fundamentos do Antitruste. 2. ed. 2. tir. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2005. p. 364.
13
A expressão “mercado relevante”, constante da Lei n° 8.884/94 adveio da literal tradução para o
português do termo em inglês “relevant market”, que quer significar o mercado que importa, ou o mercado
em causa. Na doutrina e na legislação francesa o termo talvez seja mais próximo do real significado que a
expressão assumiu em português. Em França a expressão é le marche em cause, ou seja, o mercado em
causa, aquele que deve ser considerado para o julgamento de uma causa. Melhor seria se a expressão
tivesse sido traduzida em nossa legislação por “mercado em causa” ou “mercado de relevância”.
14
Muito embora a Resolução n° 15/98 do CADE tenha sido revogada pela Resolução n° 45, os seus anexos
não foram revogados e continuam servindo como base para a conceituação legal de mercado relevante.
16 procuram
produtos/serviços
em
condições
de
concorrência
suficientemente homogêneas em termos de preços, preferências dos
consumidores, características dos produtos/serviços. A definição de um
mercado relevante geográfico exige também a identificação dos
obstáculos à entrada de produtos ofertados por firmas situadas fora dessa
área. As firmas capazes de iniciar a oferta de produtos/serviços na área
considerada após uma pequena mas substancial elevação dos preços
praticados fazem parte do mercado relevante geográfico. Nesse mesmo
sentido, fazem parte de um mercado relevante geográfico, de um modo
geral, todas as firmas levadas em conta por ofertantes e demandantes nas
negociações para a fixação dos preços e demais condições comerciais na
área considerada.”
O levantamento do mercado relevante é de fundamental importância para a análise das
infrações da ordem econômica. Isto porque, conforme já explanado anteriormente,
somente a partir da correta definição do mercado relevante é que se poderá verificar se
uma empresa possui ou não posição dominante, ou seja, se tal empresa possui poder de
mercado de que possa abusar no sentido de que suas vendas abaixo dos custos
configurarem efetivamente a prática de preços predatórios, ou seja, que a sua conduta é
capaz, ainda que hipoteticamente, de prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa.
Assim, uma vez delimitado o mercado relevante geográfico e tratando-se os produtos
relevantes de combustíveis líquidos para veículos automotores, ter-se-á de verificar se o
revendedor em questão possui ou não posição dominante em tal mercado relevante.
A posição dominante é definida pelo art. 20, §§ 2° e 3° da Lei de Proteção da
Concorrência, que assim dispõem:
“ § 2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de
empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como
fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto,
serviço ou tecnologia a ele relativa.” (grifos nossos)
“ § 3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é
presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte
por cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alterado
pelo CADE para setores específicos da economia.” (grifamos)
Como visto acima, tecnicamente a posição dominante significa o controle de parcela
substancial de um dado mercado relevante, e a Lei presume (presunção juris tantum) que
17 esteja em posição dominante o agente ou o grupo de agentes que detenha 20% (vinte por
cento) ou mais de um mercado relevante.
Sob o ponto de vista da análise econômica do Direito, a posição dominante ocorrerá
sempre que um agente econômico, isoladamente ou em conjunto com outros
concorrentes, tenha efetivo poder econômico, ou seja, quando for capaz de alterar as
relações entre oferta e demanda ou impor preços ao mercado (aos seus adquirentes ou
fornecedores). Nesse sentido, veja-se o elucidativo entendimento esposado pelo Tribunal
de Justiça da Comunidade Européia, no célebre julgamento do caso United Brands, em
que ficou assentado que a posição dominante significa:
“ uma posição de poder econômico detida por uma empresa que lhe
permite afastar a manutenção de uma concorrência efectiva no mercado
em causa e lhe possibilita comportar-se, em medida apreciável, de modo
independente em relação aos seus concorrentes, aos seus clientes e,
finalmente, aos consumidores.” 15
No Brasil, o critério mais usual para a aferição de posição dominante pauta-se na análise
do faturamento bruto das empresas que atuam em determinado mercado relevante.
Assim, estaria em posição dominante a empresa ou o grupo de empresas que sejam
responsáveis, pelo menos, por 20% (vinte por cento) do faturamento bruto total em um
determinado mercado. Porém, em diversos casos envolvendo pretensos cartéis de postos
revendedores de combustíveis o CADE não considerou o faturamento bruto, mas sim o
número de postos existentes no mercado relevante. De nossa parte, entendemos que o
critério do faturamento seria mais adequado, pois, como é cediço, muitos postos tem
faturamento pequeno e alguns postos tem faturamento grande, muitas vezes maior do que
a soma do faturamento de vários pequenos postos, a depender da galonagem
comercializada mensalmente.
De toda sorte, tomemos em consideração que a posição dominante será definida em
relação ao número de postos existentes no mercado relevante geográfico. Assim, estará
15
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPÉIAS – Processo de autos n° 27/76, de 14 de
fevereiro de 1978.
18 em posição dominante a empresa ou o grupo de empresas que detenha controle de pelo
menos 20% (vinte por cento) dos postos revendedores localizados no mercado em causa.
Nessa ordem de idéias, aceitando-se hipoteticamente que o mercado relevante geográfico
seja o de uma cidade ou município16, há que se verificar se o revendedor varejista
suspeito de praticar preços predatórios estaria ou não em posição dominante, ou seja, se
deteria 20% (vinte por cento) ou mais dos da cidade ou município, ou, noutro norte, se
seria responsável por, pelo menos 20% (vinte por cento) do faturamento total da venda de
combustíveis no mercado em causa. Isto porque, caso o revendedor em questão não goze
de posição dominante, não será capaz de efetivamente prejudicar o mercado e limitar a
livre concorrência através da conduta chamada de preço predatório.
Como se vê, um agente econômico que não detém poder econômico de mercado jamais
poderá ser acusado de abusar de poder econômico que não detém17. E, nesse caso, se
um revendedor vender combustíveis abaixo do preço de custo, não será capaz de
sustentar tal prática por um período de tempo suficiente para excluir os concorrentes do
mercado relevante. Muito pelo contrário, a conduta de tal revendedor seria qualificada
como economicamente irracional e provavelmente a consequência mais provável que lhe
sobrevirá será a sua aniquilação própria e não a quebra de todos os outros concorrentes
que atuam no mesmo mercado em causa.
16
A grande maior parte dos julgados do CADE em matéria envolvendo o comércio varejista de combustíveis tem identificado a base territorial do mercado relevante com a cidade ou com a região metropolitana onde ocorre a conduta analisada. 17
Note-se que, eventualmente, a prática de preços predatórios pode ser fomentada ou mesmo custeada
total ou parcialmente por um agente financiador (não necessariamente uma Instituição Financeira oficial),
que tenha interesse em efetuar colusão com o agente direto para fraudar o mercado e posteriormente
partilhar o lucro monopolístico a ser auferido depois de eliminados os concorrentes. Todavia, tal situação,
além se ser bastante rara, parece-nos improvável no caso da revenda varejista de combustíveis em geral, já
que o mercado é tipicamente um mercado contestável, ou seja, não apresenta um alto grau de barreiras à
entrada de novos concorrentes, o que faltamente dificultaria a manutenção dos lucros monopolísticos do
infrator pelo tempo necessário a recuperar as perdas incorridas durante a prática lesiva de venda abaixo do
preço de custo. Sobre esta questão, veja-se o que diz Hovenkanp: “The predator’s worst nightmare goes
like this: after a long, expensive period of predation the victim files for bankruptcy and its plant and
equipment are auctioned off to a prospective rival Who intends to stay in the market.” (HOVENKANP,
Herbert. Federal Antritust Policy: the law of competition and its practice. Saint Paul: West Publishing Co.,
1994, p. 312)
19 Desse modo, para que se caracterize eventual abuso de posição dominante, ou abuso de
poder econômico, é imprescindível que o agente acusado de tal prática efetivamente
esteja em posição dominante no mercado relevante, já que, do contrário, não haverá
como tal agente abusar de um poder econômico que efetivamente não detém.
VI - ANÁLISE DA RACIONALIDADE ECONÔMICA DA CONDUTA: DURAÇÃO
TEMPORAL DA PRÁTICA, CONTESTABILIDADE DO MERCADO RELEVANTE,
CAPACIDADE DE ABSORÇÃO DA CLIENTELA E NECESSIDADE DE PROVA DE QUE
OS PREÇOS DE VENDA SÃO INFERIORES AO CUSTO DA MERCADORIA
Uma vez definidos mercado relevante e posição dominante, há que se indagar, finalmente,
se a conduta praticada realmente se amolda à racionalidade econômica dos preços
predatórios, e, em caso positivo, se existe, de fato, prova de que os preços praticados são
efetivamente inferiores aos custos dos produtos.
VI.I – TEMPO DE DURAÇÃO DA CONDUTA
A fim de verificar a racionalidade econômica dos preços predatórios, inicialmente é preciso
analisar o tempo de duração da prática. Isto porque, o elemento temporal é um dos
indicativos da real capacidade do possível infrator eliminar os seus concorrentes
vendendo abaixo dos custos por certo período de tempo. Se as vendas abaixo dos custos
se prolongam por muito tempo (meses ou anos, a depender do tipo de mercado), sem que
sejam excluídos os concorrentes, há sérios indícios de que o preço não é predatório,
ainda que esteja abaixo do custo.
Caso o revendedor já esteja praticando preços supostamente inferiores ao custo em
médio prazo, isto é, por alguns meses e os seus concorrentes mais diretos ainda não
tenham sido excluídos do mercado, dificilmente se poderá acatar a existência de preço
predatório. Isto porque, se o preço realmente fosse predatório, os concorrentes já teriam
sido eliminados do mercado. Se se mantiveram no mercado os concorrentes, depois de
médio ou longo prazo, é por que os preços não são realmente predatórios.
20 Sobre o tema, veja-se o célebre julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos da
América no “Caso Matsushita” (Zenith et al vs. Matsushita et. al – 475-US-574), no qual a
Corte entendeu que, se passados mais de 20 (vinte) anos da prática de preços
supostamente predatórios e nenhum dos concorrentes da Mastushita foi eliminado do
mercado, haveria fortes indícios de que os preços não eram, de fato, predatórios. A
Suprema Corte entendeu que seria pouco provável que as indústrias japonesas, acusadas
pela Zenith Radio Corp. e por outras fabricantes de praticarem preços predatórios,
pudessem se ressarcir das perdas incorridas durante esse longo período de prejuízos
acumulados (mais de duas décadas), sem conseguir diluir a participação de mercado da
RCA e da Zenith (suas principais concorrentes). Veja-se o entendimento da Suprema
Corte norte americana a respeito:
“Predatory pricing conspiracies are by nature speculative. They require the
conspirators to sustain substantial losses in order to recover uncertain
gains. The alleged conspiracy is therefore implausible. Moreover, the
record discloses that the alleged conspiracy has not succeeded in over two
decades of operation. This is strong evidence that the conspiracy does not
in fact exist.
(…)
Two decades after their conspiracy is alleged to have commenced,
petitioners appear to be far from achieving this goal: the two largest shares
of the retail market in television sets are held by RCA and respondent
Zenith, not by any of petitioners.”18
Como se vê, quando a prática de preços baixos se prolongar no tempo, sem que fique
demonstrado que o seu praticante tem efetivamente a capacidade de excluir do mercado
os concorrentes, dificilmente se estará diante de real e efetivo caso de preços predatórios:
a uma, porque o tempo revelou que a prática de preços baixos não foi capaz de excluir os
concorrentes do mercado; e, a duas, porque dificilmente seria economicamente viável ao
18
Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte – Autos n° 83-2004, 475 U.S. 574
MATSUSHITA ELECTRIC INDUSTRIAL CO., LTD, ET AL. v. ZENITH RADIO CORP. ET AL. (1986).
Tradução livre: “Conspirações para formação de preços predatórios são naturalmente especulativas. Elas
exigem que os conspiradores suportem perdas substanciais para recuperar ganhos incertos. A alegada
conspiração é, portanto, implausível. Além disto, pelos registros descobertos, a alegada conspiração não
conseguiu ter sucesso durante duas décadas de operação. Isto é forte evidência de que a conspiração de
fato não existiu. Duas décadas depois que a conspiração teria se iniciado, os recorrentes parecem estar
longe de atingir tal objetivo: as duas maiores fatias (cotas) de mercado da revenda de aparelhos de
televisão são detidas pela RCA e pela recorrida Zenith, não por nenhum dos recorrentes.”
21 suposto infrator passar muitos meses ou até mesmo anos suportando perdas reais e
certas na expectativa de auferir ganhos futuros e hipotéticos e incertos. Com o passar do
tempo, o custo de oportunidade e mesmo o risco da estratégia predatória passam a ser
muito altos, indicando a insubsistência da conduta.
VI.II – CONTESTABILIDADE DO MERCADO RELEVANTE
Uma segunda questão a ser levada em consideração é o que os economistas chamam de
contestabilidade de mercado, ou seja, a plausibilidade de que outros concorrentes possam
ingressar facilmente no mercado depois ou conjuntamente com a eliminação do atuais
concorrentes.
Em mercados com maior grau de fluidez, isto é, mercados com menor presença de
barreiras à entrada de novos concorrentes, a prática de preços predatórios pode ser de
difícil implementação ou mesmo desinteressante para o agente econômico. Isto porque,
se não houver barreiras à entrada de novos concorrentes (se o mercado for altamente
contestável), quando o agente predador ficar sozinho no mercado e começar a praticar
preços de monopólio (ou até de oligopólio), outros fornecedores ingressarão no mercado
na tentativa de se beneficiar de tais preços e, com isso, instalar-se-á novamente forte
concorrência no setor, fazendo fracassar a estratégia de recuperação das perdas que o
agente predador teve de suportar enquanto praticava preços predatórios. Este é o
entendimento, dentre outros, do Prof. Gesner de Oliveira, Ex-Presidente do CADE:
“A caracterização de preço predatório requer uma estimativa do custo da
predação alegada, e uma análise detalhada do esquema alegado e da
estrutura e condições do mercado relevante. Por exemplo, a
predominância de mercados difusos ou competitivos, sem barreiras
significativas à entrada ou a incapacidade da empresa predadora de
absorver a participação de mercado da empresa vítima, tornam difícil,
quando não impossível, tal caracterização.” 19
No mesmo sentido, veja-se a lição de Paula Forgioni:
19
OLIVEIRA, Genser.; RODAS, João Grandino. Direito e Economia da Concorrência. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. p. 70.
22 “Com efeito, a prática de preço predatório não seria racional (ou seja, não
é apta a causar prejuízos à concorrência) se o mercado considerado for
contestável, pois, após o aniquilamento dos atuais concorrentes, a
concorrência potencial poderia tornar-se efetiva, com a entrada de novos
agentes.” 20
Por isso, é preciso verificar quais são as reais e efetivas condições de contestabilidade do
mercado relevante, não bastando a simples afirmação de que mercado seria fechado. Há
que se analisar efetivamente se existem barreiras significativas à entrada de novos postos
revendedores no mercado. A julgar pela realidade da revenda de combustíveis em geral e
em nível nacional, entendemos que o mercado da revenda de combustíveis é bastante
contestável, existindo, na maior parte das cidades, poucas barreiras à entrada de novos
concorrentes, o que faltamente desestimularia a prática de preços predatórios.
VI.III – CAPACIDADE DE ABSORÇÃO DA CLIENTELA DOS AGENTES EXCLUÍDOS DO
MERCADO: ANÁLISE DA CAPACIDADE INSTALADA OCIOSA
Outro ponto fundamental na análise da racionalidade da prática de preços predatórios
consiste justamente em avaliar se o agente predador realmente tem capacidade produtiva
ociosa, já instalada ou em vias de sê-lo, para absorver a clientela das empresas predadas.
Nesse passo, veja-se que não haveria qualquer racionalidade econômica na conduta de
um agente que resolvesse eliminar seus concorrentes e depois não conseguisse absorver
a clientela dos competidores excluídos do mercado para se ressarcir das perdas
suportadas durante a guerra de preços deflagrada com os mesmos.
Por isso, é indispensável realizar o levantamento da capacidade instalada ociosa do
possível predador para saber se ele teria ou não condições de absorver a maior parte da
clientela de seus concorrentes que forem eliminados do mercado. Caso isso não possa
ocorrer facilmente, estaremos novamente diante de um forte indício de que não há preço
predatório.
20
FORGIONI, Paula. Os Fundamentos do Antitruste. 2. ed. 2. tir. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2005. p. 364.
23 Além disso, outro ponto relevante é a verificação da capacidade de financiamento (própria
ou através de terceiros) de que disporia o agente acusado de preço predatório. Se ele não
tiver acesso ao financiamento de suas atividades enquanto estiver vendendo abaixo do
preço de custo, dificilmente conseguirá se manter no mercado e derrubar todos (ou a
maior parte) de seus concorrentes.
VI.IV – APURAÇÃO DO PREÇO DE CUSTO E PROVA DE QUE OS PREÇOS ESTÃO
ABAIXO DOS CUSTOS DE PRODUÇÃO
Finalmente, um último ponto a ser discutido diz respeito à dificuldade de se definir o que é
preço de custo de modo objetivo, bem como a grande dificuldade de comprovar como se
dá a formação de tal custo, que, em geral, varia um pouco para cada revendedor varejista
de combustíveis.
O preço de custo poderá ser entendido tecnicamente como o valor total despendido pelo
agente econômico para produzir, vender ou revender um bem. Estariam incluídos no
preço de custo todos os valores incorridos efetivamente pelo fornecedor para formar a
oferta da mercadoria ao adquirente (consumidor final ou não). Em postos revendedores de
combustíveis os custos geralmente abrangem o valor pago pelos produtos à distribuidora,
acrescido dos tributos incidentes na operação, aluguel (arrendamento) do imóvel,
despesas com pessoal e folha de pagamento, leis sociais, gastos com energia elétrica,
água e esgoto, manutenção de equipamentos, taxas anuais diversas (alvarás municipais e
de órgãos ambientais, ANP, etc.), capital de giro, perdas por assaltos ou roubos, seguros
(contra incêndio, dentre outros) e até mesmo o retorno sobre o capital investido.
Diante do levantamento de tais despesas incorridas ordinariamente pelo agente na
atividade de revenda, poder-se-á então calcular o seu custo variável médio e o seu custo
médio total. Veja-se a respeito o que dispõe a Portaria SEAE n° 70/2002:
“35. Na análise dos custos de produção, serão levados em conta os
custos médio total e o variável médio. Serão considerados como custos
variáveis os custos do trabalho, materiais, energia, gastos promocionais,
depreciação da planta relacionada ao uso e outros custos que variem com
a produção; como custos fixos aqueles associados aos investimentos em
24 capital físico e maquinaria, bem como os demais ativos fixos que não
variam com a produção; e como custo médio total a soma do custo
variável médio e do custo fixo médio. Sempre que possível, os custos
devem ser avaliados por antecipação, e não por lançamento contábil
(custo histórico).
36. Para averiguar se uma determinada empresa está praticando preços
predatórios é necessário analisar a relação entre as variáveis preço, custo
variável médio e custo médio total. Esta comparação gera três possíveis
hipóteses:
37. A primeira seria quando o preço fosse igual ou superior ao custo
médio total de produção. Neste caso, não há preço predatório e, dessa
forma, o parecer será favorável à representada e o processo será
arquivado.
38. Já na segunda, seria quando o preço estivesse entre o custo médio
total e o custo variável médio. Neste caso, a firma é considerada sob
suspeita de prática predatória. As condições de demanda e de oferta terão
que ser analisadas, pois há a possibilidade dessa firma estar realizando
uma política de minimização de perdas, em face do custo elevado para
saída do mercado.” (grifamos)
Como se vê, para apurar e quantificar todos esses custos será necessário realizar um
esforço bastante grande, já que cada revendedor varejista possui uma estrutura interna de
custos relativamente diferenciada. E para se afirmar se um revendedor está ou não
vendendo abaixo do preço de custo (custo variável médio) será necessário ter acesso aos
seus custos efetivos e verificar se realmente a venda é feita abaixo do custo variável
médio. Se não forem demonstrados os custos reais para fins de cálculo do custo variável
médio do revendedor, não será possível concluir se os preços são ou não predatórios. Por
isso, destaca-se a necessidade de comprovação de que os preços realmente estejam
sendo praticados abaixo do custo médio variável incorrido pela agente econômico no
desempenho de sua atividade de comercialização. Nesse sentido, mais uma vez
elucidativa a Portaria SEAE n° 70/2002, que aprova o documento denominado Guia para
Análise de Preços Predatórios, onde se colhe o seguinte entendimento:
“33. Um elemento fundamental na determinação de condutas predatórias
é a obtenção de provas da ocorrência injustificada de vendas a preços
abaixo do custo, tal como o determina a Lei no 8.884, de 1994, art. 21,
inciso XVIII. Este procedimento requer portanto o estabelecimento de um
padrão de comparação e, a despeito de algumas eventuais imperfeições,
é amplamente utilizado por agências antitruste ao redor do mundo,
25 principalmente quando acompanhado por considerações adicionais, como
feito neste Guia.
34. Uma definição excessivamente inclusiva do que seria uma “venda
abaixo do custo” poderia ter conseqüências danosas ao bem estar do
consumidor, pois haveria a possibilidade de confundir-se uma prática
predatória com uma competição vigorosa, inibindo-se ou constrangendo
esta última. Por exemplo, não raro se confunde “preços abaixo do custo”
com “preços abaixo dos preços de mercado”, o que é evidentemente
impróprio, dado que um entrante mais eficiente poderia facilmente realizar
vendas a preços inferiores aos anteriormente praticados em um dado
mercado.” (grifamos)
Da leitura do excerto supracitado depreende-se claramente que a existência de provas de
que os preços praticados são realmente inferiores aos preços de custo é fator decisivo e
fundamental para a caracterização da conduta. E, como visto acima, tal prova é bastante
complexa e de difícil realização. Além disso, há que se ter em mente que o preço
predatório não significa a simples prática de preços abaixo dos preços de mercado, mas
sim a prática de preços abaixo do real e efetivo custo variável médio incorrido pela agente
para a comercialização de seus produtos.
VI.V – OUTRAS PECULIARIDADES DO MERCADO DE REVENDA DE COMBUSTÍVEIS
LÍQUIDOS
Finalmente, também há que se verificar se os possíveis preços predatórios são praticados
em todos os combustíveis ou apenas em algum deles. Isto porque, se um posto
revendedor vende um combustível a preços muito baixos, mas vende outros combustíveis
a preço de mercado, é possível, em tese, que tal revendedor esteja baixando o preço de
um combustível como simples estratégia comercial para atrair clientela, o que poderia, em
tese, justificar a venda abaixo do custo não se configurando preço predatório capaz de
eliminar concorrentes e prejudicar a livre concorrência.
Assim como lojistas e supermercadistas muitas vezes colocam em promoção certos
produtos, vendendo-os abaixo do preço de custo para atrair a clientela que comprará
outros produtos no mesmo estabelecimento, é possível, em tese, apesar de remotamente
provável, que um posto revendedor de combustíveis venda um determinado tipo de
combustível abaixo do custo apenas para atrair clientela e compensar suas perdas através
26 da venda de outros combustíveis ou mesmo da prestação de serviço ou vendas de lojas
de conveniência. Um exemplo corriqueiro é a venda de gasolina aditivada a preços iguais
ao da gasolina comum. O revendedor que atua desse modo poderá até mesmo estar
eventualmente vendendo o combustível aditivado a preços inferiores ao seu custo (o que
raramente ocorre na realidade), porém faz isto não para eliminar concorrentes, mas sim
para atrair clientela para os demais produtos, agindo de modo competitivo no mercado em
geral. Outro exemplo já discutido em processos levados a julgamento perante o CADE é o
dos postos de combustíveis instalados em estacionamento de hipermercados e shopping
centers. Não raro tais postos vendem combustíveis a preços significativamente inferiores à
média de mercado (mas geralmente não abaixo do custo variável médio), mas fazem isso
para atrair clientela para o hipermercado, onde as possíveis perdas do empresário com a
venda de combustível serão compensadas com as compras de outros produtos pelos
consumidores atraídos para o local.
Além disso, é fato comum no mercado de combustíveis a imposição, por parte das
distribuidoras atacadistas de combustíveis, de aquisição de uma galonagem mínima para
cada tipo de combustível, em especial no caso dos postos bandeirados com contratos de
longo prazo. Assim, pode ocorrer, por exemplo, que postos localizados em rodovias ou
locais por onde circulam muitos veículos movidos a óleo diesel façam sistemáticas
promoções no preço da gasolina ou do etanol, de modo a desocupar os seus tanques e
dar vazão à galonagem imposta pela distribuidora. Isto porque, a lucratividade de tais
postos está diretamente relacionada com o comércio de óleo diesel, que muitas vezes
representa mais de 80% (oitenta por cento) das vendas, e não com a venda de gasolina
ou de etanol. Assim, muitas vezes a venda de um combustível secundário pelo posto
revendedor torna-se um verdadeiro empecilho, daí a liquidação, a preços baixíssimos, de
tais combustíveis, com o único propósito de se desfazer rapidamente da cota mínima de
tais combustíveis e manter ativo o contrato com a distribuidora, que lhe é lucrativo no óleo
diesel e prejudicial em outros combustíveis. Porém, ressalte-se que nesses casos, que
são raríssimos e geralmente ocorrem em postos situados em rodovias com grande
movimento de caminhões e carretas, os preços dos demais combustíveis devem
permanecer na faixa média de preços de mercado para que a prática seja racionalmente
27 econômica e sustentável a longo prazo. Por isso, em casos que tais a venda abaixo do
custo seria justificada, não se aplicando o disposto no art. 21, XVIII da Lei Antitruste.
Desse modo, também estas considerações especiais sobre o mercado de revenda de
combustíveis líquidos devem ser consideradas na análise da racionalidade econômica de
eventual prática de preço predatório, de modo a se retratar fielmente a estrutura dinâmica
do mercado.
Para concluir a análise da racionalidade econômica dos preços predatórios, colacionamos
abaixo o didático e elucidativo fluxograma elaborado pela SEAE – Secretaria de
Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, órgão componente do SBDC –
Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência que analisa condutas de preços
predatórios:
28 VII – CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto ao longo do presente artigo, pode-se afirmar que para a
constatção de efetiva prática de preços predatórios, nos termos da legislação de regência,
há que se proceder a uma análise detalhada das condições concretas de mercado, com
identificação prévia e precisa do mercado em causa e da posição dominante do agente
suspeito de praticar preços predatórios, de modo a identificar se o mesmo possui ou não
poder econômico do qual possa efetivamente abusar.
A proteção da livre concorrência tem matriz constitucional nos artigos 170, IV e 173 §4° da
Constituição da República, sendo que as leis que regulamentam tais dispositivos
constituicionais são a Lei n° 8.137/90 e a Lei n° 8.884/94.
Na sistemática legal vigente, o que se combate é o efetivo abuso de poder econômico, ou
seja, o mau uso do poder econômico que possa resultar nas distorções concorrenciais
listadas nos incisos do art. 20 da Lei Antitruste. Por sua vez, o art. 21, XVIII, da Lei n°
8.884/94 tipifica como infração da ordem econômica a venda, injustificada, de mercadoria
abaixo do preço de custo, desde que tal venda possa, nos termos do art. 20 do mesmo
diploma legal, implicar a limitação ou o falseamento da livre concorrência ou da livre
iniciativa, a dominação de mercado relevante de bens ou serviços, o aumento arbitrário
dos lucros ou o exercício abusivo de posição dominante.
Como visto, somente é capaz de prejudicar o mercado e a livre concorrência a venda de
mercadorias abaixo do seu preço de custo, o agente econômico que, isoladamente ou em
conjunto com outros agentes, detenha posição dominante (poder econômico) no mercado
relevante, sendo que a legislação presume a posição dominante do agente que detenha
20% (vinte por cento) ou mais do mercado revelante. O que se combate não é
simplesmente a venda de mecadorias abaixo do preço de custo, mas sim o abuso do
poder econômico. Daí porque, não tendo o agente poder econômico, não poderá dele
abusar e tampouco ser punido por isso.
29 Se a conduta de vender injustificadamente mercadorias abaixo do preço de custo for
praticada por agente econômico que não goza de posição dominante no mercado
relevante, não estarão satisfeitas as condições legais para a caracterização de infração da
ordem econômica, já que a prática não será capaz de produzir os efeitos anticompetitivos
listados nos incisos do art. 20 da Lei n° 8.884/94.21
Foram apresentadas as principais etapas para a análise da conduta de preços
predatórios: i) necessidade de definição do mercado relevante e da posição dominante, ii)
análise da racionalidade econômica da conduta, através da verificação dos efeitos que tal
pratica poderia acarretar à livre concorrência, sob a perspectiva do tempo de duração da
prática, da contestabilidade do mercado relevante, da capacidade de absorção da clientela
e da necessidade de prova de que os preços de venda são inferiores ao custo dos
produtos, além de outras peculiaridades específicas do mercado da revenda varejista de
combustíveis.
Ao final, foi apresentado o fluxograma contendo o resumo geral do Guia para Análise
Econômica da Prática de Preços Predatórios, aprovado pela Portaria n° 70/2002, da
Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda – SEAE, que
auxiliará eventuais futuros estudos sobre o tema e que poderá ser aplicado para uma
análise preliminar do mercado da revenda varejista de combustíveis no mercado em
causa.
Em conclusão, pode-se afirmar que o preço predatório constitui um tipo especial de
infração da ordem econômica previsto no art. 21, XVIII da Lei nº 8.884/94. Enquanto
infração da ordem econômica a prática de preços predatórios deve ser analisada sob o
aspecto do abuso de poder econômico, já que a matriz constitucional das Leis nº 8.137/90
e 8.884/94 é justamente o parágrafo quarto do art. 173 da Constituição da República. Por
isso, a infração de preço predatórios somente se configurará quando um agente
21
Ressalve-­‐se que no regime legal das licitações públicas (Lei nº 8.666/93 e Lei nº 10.520/2002) é possível que um concorrente apresente preços que não chegam a configurar a prática de preços predatórios, mas que possam configurar a prática de preços inexeqüíveis, nos termos do art. 48, II e § 1º da Lei nº 8.666/93. Assim, em termos de licitações públicas não se confundem preços predatórios com preços inexeqüíveis, sendo que a prática de qualquer um deles é motivo para a desclassificação do licitante. 30 econômico detentor de poder econômico vender injustificadamente produtos abaixo do
seu preço médio de custo com a real possibilidade de eliminar concorrentes. Isto é o preço
predatório.
Referências
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Oficial da União, 5 de outubro de 1988.
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Defesa Econômica (CADE) em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às
infrações contra a ordem econômica e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da
União, 13.6.1994.
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Oficial da União, 7.8.1997.
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Análise Econômica da Prática de Preços Predatórios. disponível em www.mj.gov.br/sde
BRASIL – MINISTÉRIO DA FAZENDA, SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO
ECONÔMICO.
PORTARIA
SEAE
N°
70/2002.
disponível
em
www.receita.fazenda.gov.br/seae
BRASIL – CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA – CADE. Resolução
N. 15, de 19 de agosto de 1998. disponível em www.cade.gov.br
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Preço predatório no mercado de revenda de combustíveis