Tendo em vista a Audiência Pública nº 029/2003 anunciada por essa agência, destinada a
debater as disposições que pretende expedir sobre o ressarcimento de danos elétricos
sofridos por consumidores, provocados por perturbação no sistema elétrico, apresentamos a
seguir nossa contribuição a esse debate.
A contribuição foi elaborada com o propósito primordial de oferecer elementos para reflexão.
Por isso, nos sentiremos plenamente recompensados se ela vier a ser útil, servindo nesse
sentido como ponto de partida para o aprofundamento das questões e sugestões aqui
contidas.
É, tanto quanto podemos garantir, uma manifestação isenta. O caráter pessoal com que a
formulamos, somado ao fato de que não somos vinculados profissionalmente a nenhuma
concessionária de energia elétrica, a qualificaria, talvez, como representativa de
consumidores. Mas, como se verá, é uma apreciação estritamente técnica do assunto,
acrescida de ponderações que nos parecem de senso comum. O que não significa que
esteja isenta de equívocos, particularmente em aspectos com os quais os proponentes não
têm, confessadamente, nenhuma intimidade, como os jurídicos.
Isso para registrar, ainda introdutoriamente, que a contribuição procura respeitar os mesmos
limites com que a minuta de resolução da Aneel circunscreve sua manifestação sobre o
assunto, assumindo, portanto, que a discussão envolve:
– disposições exclusivamente de caráter administrativo, consoante as competências da agência;
– exclusivamente ressarcimento do dano elétrico, isto é, reposição do equipamento elétrico,
nas mesmas condições de funcionamento anteriores à ocorrência constatada no sistema elétrico;
– exclusivamente equipamentos elétricos de unidades consumidoras alimentadas diretamente pela rede de distribuição pública em baixa tensão.
Pois bem. O que se propõe aqui é, essencialmente, o aprofundamento do papel atribuído à
futura resolução, como anunciado nos considerandos da própria minuta, onde se salienta “a
necessidade de estabelecer procedimentos e critérios técnicos para a análise de
ressarcimento solicitado pelos consumidores às concessionárias de distribuição de energia
elétrica”.
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Ora, para levar mais adiante esse objetivo, a resolução deveria explicitar, em seu próprio
corpo ou na forma de anexos, os casos em princípio passíveis de ressarcimento e,
corolariamente, os casos em que não cabe indenização. Por exemplo, a queima de aparelho
ou lâmpada por sobretensão decorrente de perda do neutro nos domínios da rede da
concessionária, incluindo ramal de ligação, pode ser considerada como um caso líquido e
certo de ressarcimento? Por outro lado, um dano devido a sobretensão de origem
atmosférica não se enquadraria no caso de força maior de que fala a minuta de resolução?
Naturalmente, classificar os danos em indenizáveis e não-indenizáveis segundo o evento
gerador constitui apenas um dos lados da moeda. O outro, mais espinhoso e desafiador, tem
a ver com a identificação, a mais inequívoca possível, da ocorrência ou fenômeno do qual
resultou o dano, sem o que o enquadramento do caso tornar-se-ia impossível. Mas essa
dificuldade, independentemente de quão freqüente ela seja, não impede e nem deve impedir
a fixação de regras claras quanto à natureza dos eventos que dariam ou não margem a
ressarcimento. Até porque trata-se de estabelecer uma base mais objetiva para a
manifestação da concessionária, da autoridade reguladora ou seus agentes delegados, e
também do consumidor, que poderia inclusive recorrer à perícia de terceiros na contestação
que viesse a oferecer ao pronunciamento da concessionária sobre a natureza do fenômeno
gerador. Além disso, os casos em que a identificação do evento porventura se revelar
impossível, ou quase, poderiam ser então resolvidos in limine conforme o que a Aneel ou a
jurisprudência dispuser a respeito, seja consagrando a responsabilidade objetiva, seja “pró
réu” — matéria sobre a qual, como observado inicialmente, os proponentes não dispõem de
competência para opinar.
Assim, associando-se os danos elétricos a suas causas prováveis, visando classificá-los,
quais deles seriam automaticamente indenizáveis, quais seriam a priori não-indenizáveis e
quais poderiam recair num ou noutro caso, dependendo das circunstâncias?
A resposta passa, como se vê, pelo levantamento de todas as possíveis causas dos danos
elétricos. Depois, pela análise técnica detida de cada um desses eventos: a quem compete a
prevenção ou proteção contra o evento em questão, à concessionária ou ao consumidor?
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Comecemos pela enumeração dos possíveis eventos causadores de “danos elétricos”.
Neste particular, e considerando o significado bem preciso e específico que o texto da Aneel
atribui a “dano elétrico” — traduzível, numa linguagem mais popular, por “queima” de
equipamentos elétricos do consumidor, o que inclui desde lâmpadas a máquinas industriais,
passando por aparelhos eletrodomésticos, aparelhos eletroprofissionais, computadores, etc.
—, todas as possíveis causas podem ser agrupadas sob a rubrica comum de sobretensões.
De fato, qualquer que seja o fenômeno original — raios, operações de
manobra/chaveamento, atuação de proteções, faltas à terra, perda ou mau contato do
neutro, etc. —, o efeito resultante responsável pela “queima” do equipamento será uma
sobretensão.
Tradicionalmente as sobretensões são divididas em quatro categorias:
1) as de origem atmosférica (classificadas, por sua vez, em diretas e indiretas, ou induzidas);
2) as de manobra/chaveamento, nas quais são catalogadas tanto as resultantes de ações
intencionais, quanto as de caráter não-intencional, como as decorrentes de faltas e de sua
eliminação;
3) as temporárias (TOV, temporary overvoltages), muitas das quais similares às de chaveamento no que se refere ao incidente gerador, mas delas diferindo em pelo menos dois parâmetros essenciais: a freqüência, que é a da rede, e a maior duração; e, por fim,
4) as resultantes de interação entre sistemas, como as que ocorrem entre linhas de energia
e de comunicação quando uma delas é percorrida por surto de corrente.
Há uma vasta literatura disponível sobre o assunto, incluindo publicações da IEC, com a
qual é possível proceder, sem muito esforço, a uma compilação exaustiva das perturbações
pertinentes, conforme a categoria em que se enquadram, e elaborar sua ficha de identidade
precisa. Assim, seria ocioso nos alongarmos aqui nesse detalhamento.
O que importa, por ora, é refletir a respeito dos critérios que conduziriam esta ou aquela
sobretensão (doravante tomada então, no contexto que nos interessa, como sinônima de
“dano elétrico”) a ser qualificada como “indenizável” e “não-indenizável”. Nesse sentido, a
diferenciação básica nas quatro categorias enumeradas acima já é o suficiente, para fins
ilustrativos.
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Comecemos com a categoria das sobretensões temporárias. Há aqui casos que apontam
claramente na direção do ressarcimento. Um deles, já citado inicialmente, é o da
perda/rompimento do neutro em território da concessionária — vale dizer, em algum ponto
da rede de distribuição, incluindo o ramal de ligação. Em fornecimentos 2F+N ou 3F+N,
cargas ligadas entre fase e neutro estarão sujeitas a sobretensões, podendo então vir a
“queimar”. Mesmo quando a anormalidade envolvendo o neutro for devida não a deficiências
de manutenção da rede, mas a acidentes como o abalroamento de postes por veículos de
terceiros, imagina-se que a concessionária responderia pelo “dano elétrico” que o incidente
viesse a acarretar a seus consumidores e que, por sua vez, buscaria se ressarcir, junto ao
causador do acidente, de todos os prejuízos incorridos, incluindo o desembolso feito a título
de ressarcimento de “danos elétricos”.
Mas a categoria das sobretensões temporárias comporta também casos em que a
responsabilidade do “dano elétrico” não pode ser atribuída, de forma simplista, à
concessionária, mesmo que a perturbação causadora do dano tenha irrompido em seu
território, isto é, na rede. As ponderações que conduzem a esse reconhecimento são
aquelas mesmas que podem ser feitas, e de forma ainda mais reveladora, em torno de outra
categoria de sobretensões, as de origem atmosférica.
Quem é o culpado pelos estragos provocados pelos raios nos sistemas elétricos? Aliás, há
algum culpado? Seria a concessionária? Seria o consumidor? Ou cada qual deveria zelar
pelo seu patrimônio — para não mencionar aspectos de segurança —, face a um fenômeno
que pode afetar as instalações, ora de um, ora de outro, ora de ambos ao mesmo tempo?
Estudos realizados por especialistas brasileiros, sobre os efeitos das sobretensões de
origem atmosférica nas redes de baixa tensão — mais precisamente, redes aéreas
convencionais — convergem na constatação de que a proteção contra sobretensões provida
no âmbito da rede, propriamente dita (incluindo MT e BT), pode reforçar significativamente a
integridade de seus componentes e, portanto, a qualidade de serviço, mas é insuficiente
para assegurar a proteção também das instalações consumidoras por ela alimentadas. As
análises apontam para a necessidade de que a instalação consumidora seja, ela própria,
equipada com dispositivos de proteção contra surtos (DPS). O que não dispensa a
concessionária, é bom que se diga, de aplicar à sua rede as medidas necessárias a um
resultado global satisfatório, como o provimento de dispositivos de proteção, o encurtamento
de suas redes secundárias e assim por diante.
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Assim, como o uso de DPSs na instalação consumidora é indispensável para a proteção
contra o “dano elétrico” decorrente de sobretensões de origem atmosférica (ou sobretensões
transitórias em geral, dada a prevalência das de origem atmosférica), a questão então passa
a ser: quem deve provê-los? A concessionária? Ou, ao invés, o DPS deveria ser parte
integrante da instalação elétrica consumidora, um item tão rotineiro quanto os disjuntores de
um quadro de distribuição?
Aí é forçoso verificar o que diz a norma de instalações elétricas, a NBR 5410. Afinal, como
adianta a minuta da resolução colocada em debate pela Aneel, e como estabelece, antes, a
Resolução Aneel nº 456, de 29 de novembro de 2000, excluem-se da possibilidade de
ressarcimento os danos “provocados por deficiências técnicas nas instalações internas da
unidade consumidora ou da má utilização das mesmas”.
A inexistência de DPS na instalação “interna” da unidade consumidora seria uma deficiência
técnica? Se entendido, como sugere o senso comum, que a não-observância da norma
técnica aplicável é uma “deficiência técnica”, fica claro que sim.
Pois a NBR 5410, cujo campo de aplicação corresponde justamente às “instalações elétricas
de unidades consumidoras”, prescreve o uso de DPS em edificações atendidas por rede
aérea e em edificações dotadas de SPDA (sistema de proteção contra descargas
atmosféricas) . Essa exigência foi explicitada ainda mais no projeto de revisão da norma, ora
em processo de consulta pública. E é reforçada por uma nota, vinculada à prescrição, que
curiosamente parece sinalizar em sentido oposto, o da exceção. É que, na prática, a nota só
faz confirmar a regra — pelo menos para efeito dos “danos elétricos” aqui debatidos. O que
diz essa nota? Ela admite que a proteção contra sobretensões possa não ser provida “se as
conseqüências dessa omissão, do ponto de vista estritamente material, constituírem um
risco calculado e assumido” (grifo nosso). E acrescenta, ainda, que “em nenhuma hipótese a
proteção pode ser dispensada se essas conseqüências puderem resultar em risco direto ou
indireto à segurança e à saúde das pessoas.”
Ora, se o profissional técnico responsável pela instalação ou o proprietário (o “consumidor”)
decide dispensar o uso de DPS, optando por sujeitar seus equipamentos ao risco de
sobretensões destrutivas, como poderia ainda pleitear o ressarcimento por uma omissão
conscientemente assumida?
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Outras normas de instalações, de outros países, adotam uma abordagem semelhante.
Chegam mesmo a oferecer subsídios técnicos para o interessado estimar os riscos. O que
faz supor que, nesses países, nenhuma concessionária seja obrigada a indenizar o
consumidor por danos decorrentes de sobretensões transitórias. Seria um contra-senso
imaginar a disposição para riscos premiada.
Note-se, ademais, que a NBR 5410 traz ainda regras quanto à suportabilidade que os
componentes da instalação elétrica, incluindo os equipamentos de utilização, devem
apresentar. Por exemplo, na entrada da instalação só devem ser usados produtos capazes
de suportar as solicitações que aí podem ser previstas, numa base estatística — e que são
superiores, naturalmente, àquelas que podem se produzir no extremo interior da instalação,
junto às tomadas de corrente. Trata-se, em resumo, da conhecida “coordenação do
isolamento”.
Há mais. A norma estabelece outras regras igualmente relevantes para a discussão aberta
com a resolução cujo teor a Aneel submete agora a audiência pública. É caso da prescrição
que requer, de forma enfática, a realização de uma eqüipotencialização geral, dita
“eqüipotencialização principal”, envolvendo todas as linhas e elementos condutivos que
integram a edificação. Essa disposição garante, por exemplo, que uma falta na rede de
média tensão que provoque uma elevação de potencial perigosa do neutro não traga
nenhuma conseqüência danosa à instalação consumidora — justamente graças à
“eqüipotencialização principal”.
Tudo isso demanda uma postura coerente por parte da Aneel, em seus atos regulamentares.
A propósito, é interessante notar que a minuta de resolução descarta a possibilidade de
ressarcimento (por “danos elétricos”) a consumidores do Grupo A sob a justificativa de que
estes “devem prover suas instalações de proteções adequadas aos seus equipamentos”.
Assim, e examinando-se a diferença de tratamento adotada pela minuta apenas do ângulo
conceitual, bastaria então à concessionária impor ao consumidor BT, como faz com os de
MT e AT, a obrigatoriedade de proteção contra surtos na entrada para que ele fosse
excluído da hipótese de ressarcimento por “dano elétrico”? Não temos aí uma contradição?
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A conclusão a que se chega, diante do exposto, é que a Aneel deveria se valer de
oportunidades como a da resolução em debate para reconhecer e reforçar disposições
pertinentes que existem e que devem ser observadas. Às vezes fica-se com a impressão de
que a Aneel, e também as concessionárias, preferem por algum motivo deliberar sobre
assuntos envolvendo as instalações consumidoras como se não existisse uma norma
técnica brasileira, oficialmente reconhecida, aplicável a esse domínio. Por quê? As normas
técnicas brasileiras, como as resoluções da Aneel, são abertas à discussão e à participação
públicas. Não estão livres, como os atos da Aneel, de uma eventual distorção ou mesmo
falha. Mas são referências fundamentais, sem as quais não se constrói uma ordenação
coerente e consistente de relações na sociedade.
O consumidor deve estar atento à qualidade da energia que lhe é fornecida, inclusive porque
os negócios e o lazer, nessa nossa agora sociedade da informação, dependem cada vez
mais desse insumo. Mas deve estar atento também à qualidade da instalação que lhe é
entregue. Não existe qualidade de energia sem instalação de qualidade. Se o conhecimento
técnico é aí uma barreira para o efetivo exercício dos diretos do consumidor, e de fato é, não
seria o caso então de a Aneel contribuir de forma mais decidida para o avanço das
propostas de certificação das instalações que têm sido levadas até ela?
Essas são as principais observações que nos ocorreram a propósito do debate lançado pela
Aneel. O fato de terem sido expostas com um tom de convicção é porque elas refletem,
realmente, convicções pessoais. O que não significa, como assinalado inicialmente, que elas
não contenham equívocos. Aliás, participamos desse debate com a convicção maior de que
debates são uma oportunidade para aprender.
Finalmente, registramos antecipadamente nosso reconhecimento a todos que,
demonstrando interesse e paciência, cometerem a gentileza de atentar para essa nossa
contribuição.
José Rubens Alves de Souza
João Gilberto Cunha
Jobson Modena
Engenheiros eletricistas, membros da Comissão de Estudos CE-64.1 do CB-3/ABNT, responsável pela norma NBR 5410 – Instalações Elétricas de Baixa Tensão.
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Tendo em vista a Audiência Pública nº 029/2003 anunciada