Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 25 - 2003 - 3º trimestre
USUÁRIOS
O usuário do futuro
Rogerio Belda
AN P
Vice-presidente da ANTP, entidade na qual exerceu,
desde a sua criação até 1993, a função de
diretor-executivo. Atua na Companhia do Metrô de São
Paulo em estudos de planejamento e estratégia, onde
foi gerente e diretor de Planejamento de Transporte.
Atualmente exerce a presidência do Conselho de
Administração da SPTrans. É engenheiro formado pela
Escola Politécnica da Universidade Católica do Rio de
Janeiro e tem cursos de especialização em Transporte
Urbano realizados em Paris
E-mail: [email protected]
O futuro é sempre visto com os olhares do presente e a maior
parte das pessoas acha que não será muito diferente do que é
hoje. Os demais, quando acham que não será igual, projetam-no
como resultado de suas fantasias e desejos. Por isso é comum
dizer-se que todas as projeções são falhas porque é difícil antecipar o novo que o futuro trará.
Entretanto, algumas tendências que apresentam uma evolução
lenta permitem antever determinados aspectos da organização da
sociedade. Estes aspectos combinados com a identificação de
alternativas de mudanças indicam o esboço de quadros coerentes
de situações alternativas possíveis. Estes quadros, ainda que
imprecisos, são chamados de cenários. Como ferramenta de planejamento, cenário corresponde à representação do conjunto de
variáveis sobre as quais não se tem controle.
Para efeito da análise de como será o futuro usuário de transporte
no Brasil, imaginemos três cenários: um cenário onde prevaleça a
preocupação social, com uma população com renda mais equilibrada, vivendo em cidades mais condensadas, como ocorre na Europa.
Outro cenário, onde a orientação pelo mercado predomina sobre a
ética, onde a renda da população é crescente e concentrada e as
cidades são mais espalhadas, bem ao estilo norte-americano. No
terceiro cenário a renda é estagnada e as práticas sociais se caracterizam pela freqüência de improvisadas estratégias de sobrevivência. Haverá uma utilização intensa de motocicletas e a maior parte
das viagens urbanas será atendida por operadores autônomos.
Em qualquer dos três cenários, pode-se prever que o congestionamento do trânsito será maior, que os tempos de viagem serão
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maiores. Nos cenários “padrão Europa e América”, os governos
não terão como se furtar de subsidiar a operação dos transportes
coletivos exigindo em contrapartida melhor organização das
empresas públicas ou privadas que prestam estes serviços. No
terceiro cenário a subvenção é realizada através de isenções na
compra de equipamentos e insumos. Entretanto, estas condições
serão diversas em cada cenário. No cenário “padrão América”, a
população usuária de transporte coletivo será predominantemente de adultos jovens da classe C conforme a classificação das
pesquisas de mercado. No cenário “padrão Europa”, a população
usuária será mais diversificada quanto à idade, gênero e renda.
No cenário “3º mundo” os usuários dos meios improvisados de
transporte serão as camadas mais pobres da população. Feita a
ressalva desta possibilidade de variantes, podemos especular, a
partir de tendências já percebidas, como será o usuário do futuro.
A idéia que durou por décadas de que o usuário é cativo aos tipos
de transporte esboroou-se nestes últimos anos. Não existe mais a
constância de uso garantido a nenhum modo de transporte. As
pessoas usam o transporte que melhor lhes atenda ou que melhor
lhes apraz em cada momento, podendo até fazer o mesmo trajeto por modos diferentes em diferentes momentos.
Não é apenas a aceleração dos ritmos cotidianos com repercussão sobre as formas de consumo que reforçam esta tendência. As
cidades modernas são “cidades terciárias” com predominância de
atividades de serviços. As viagens originadas pelas atividades de
serviços são muito variadas seja no espaço, seja no tempo. E
nada leva a supor que não venham a ser mais inconstantes no
futuro. A especialização levará a destinos ainda mais diversificados, tendência que será acentuada pela redução muito provável
da jornada de trabalho. Aumentará a demanda nos fins de semana como conseqüência de atividades novas ou antigas realizadas
em novos horários.
As transformações que ocorrem na esfera econômica terão, através da organização do trabalho, acentuada influência no padrão
urbano das viagens cotidianas. O trabalho é a base de qualquer
organização social, é fonte de renda das famílias e assegura um
reconhecimento social ao proporcionar às pessoas ativas um status profissional. A participação da mulher no mercado de trabalho, por exemplo, cresce rapidamente e deverá alcançar muito em
breve a participação que seria natural, a de ocupar a metade dos
empregos. Esta nova presença marcará profundamente os transportes por ser um grupo com necessidades específicas e com um
padrão de deslocamento diferenciado da população masculina.
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O usuário do futuro
Além da demanda feminina ser maior, o usuário do futuro será
também mais adulto pelo estreitamento que está ocorrendo na
base da pirâmide de idade da população urbana. Também as
mudanças demográficas têm uma relação estreita com o padrão
de viagens da população. Dentro de uma década haverá proporcionalmente mais idosos e menos jovens do que hoje. A redução
da fecundidade e o ingresso tardio no mercado de trabalho vai
implicar em famílias menores e, em diversos casos, em domicílios
com uma só pessoa, contrastando com o modelo familiar característico do século passado.
Júlio Lobos, em palestra sobre a participação da mulher no mercado de trabalho, para especialistas de planejamento e marketing
do Metrô de São Paulo, sugeriu que se procurasse uma gestão
mercadológica da diversidade. No que se refere à crescente
demanda feminina de viagens comentou que genética e neurologicamente a mulher é diferente do homem assim como o seu comportamento. Se ele se interessa mais pelo resultado de suas
ações, a mulher valoriza mais o relacionamento. Estas características terão mais peso no atendimento às demandas futuras de viagem, não só pela maior participação da mulher, como também por
ser ela como que uma representação de necessidades especiais
de outros públicos como crianças, idosos e pessoas com restrições motoras.
A VANGUARDA DO RETROCESSO
A metrópole de São Paulo, na constelação de cidades brasileiras,
apresenta características peculiares que não permitem tomá-la
como paradigma para outras metrópoles. Ela difere das demais
em tamanho, nas atividades que abriga assim como é especial a
posição geoeconômica que ocupa. Entretanto, algumas das suas
tendências quanto a certos fenômenos urbanos como a terciarização e motorização que já ocorrem em todas podem ser consideradas como indícios da evolução que, possivelmente, ocorrerá em
outras grandes cidades. Isto porque a taxa de motorização das
famílias é maior do que nas demais, conseqüentemente o nível de
congestionamento também é maior, assim como é maior a parte
das viagens por veículos particulares na divisão modal. Pelo
tamanho e dificuldades de locomoção, os tempos médios de viagens são superiores aos observados em outras capitais. Como
estas características estão se acentuando também em outras
grandes cidades, este conjunto de atributos negativos, no que se
refere ao transporte, permite rotular a metrópole paulistana de
vanguarda do retrocesso em termos de circulação urbana.
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A repartição de viagens entre os modos de transporte coletivo e individual que todos os planos desejavam reverter manteve a tendência
de acentuar a passagem de usuários do transporte coletivo para o uso
de automóveis. A divisão modal que nas cidades brasileiras é próximo a 1/3 de viagens por automóvel, chega a ser metade dos deslocamentos motorizados em São Paulo. As dificuldades decorrentes do
congestionamento sobre os sistemas de transporte coletivo de superfície indicam que esta tendência dificilmente será revertida sem uma
política ativa de restrição ao uso do automóvel em meio urbano.
Vale lembrar que devido às dificuldades de circulação, durante o
último quarto de século a quantidade de viagens urbanas realizadas por pessoa vem diminuindo. Este resultado, aparentemente
contraditório, foi observado também em pesquisas nas cidades
do México e Buenos Aires. [Em São Paulo, o índice de viagens
motorizadas per-capita reduziu-se de 1,53 viagens por dia em
1977 para 1,23 em 1997].
O aumento do tempo de viagens por transporte individual, embora crescente, é inferior ao tempo de viagens dos usuários de
transporte coletivo. No sistema de ônibus apresenta valores estabilizados devido à perda de passageiros para o automóvel e também para a rede metro-ferroviária que garante velocidade e o
alcance de maiores distâncias com o pagamento de uma única
tarifa. Em outras cidades que não disponham de linhas modernas
de metrô e ferrovia, a tendência será ainda mais acentuada de
passagem de usuários de transporte coletivo para o uso de automóveis novos ou de 2ª mão, motocicletas ou lotações desregulamentadas do que a observada em São Paulo.
Essas tendências apontam para um cenário negativo cuja percepção antecipada poderá até contribuir para a mudança de valores
dos formadores de opinião e dos grupos com poder de decisão.
Hoje existem, por exemplo, favorecimento de isenção de IPI para
taxistas e promessa de isenção para corretores na compra de
automóveis ao mesmo tempo que este imposto incide sobre a
venda de ônibus e existem tarifas de energia elétrica desfavoráveis para uso nos transportes. Mas, hoje, quem se importa?
A EVOLUÇÃO DOS VALORES
Os valores sociais condicionam as preferências da população,
através das atitudes, como predisposição a adotar certas opiniões e comportamentos. É a sociedade que primordialmente
condiciona os valores dos grupos que a compõem. No entanto
são os diferentes grupos de indivíduos que, ao rejeitá-los ocasionalmente no todo ou em parte, alteram os valores das sociedades.
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O usuário do futuro
Os valores, opiniões, atitudes apresentam assim uma evolução
que embora seja lenta dificilmente é previsível. Entretanto os
prospectivistas franceses e americanos têm relacionado a evolução dos valores ao efeito da mudança de gerações por ter sido
observado que os grupos de idades mantêm ao longo dos anos
uma certa identidade de pensamento. Assim como a “geração
Woodstock” não fazia seguro de vida nos USA, no Brasil a “geração cara-pintada” manterá a disposição de questionar papéis tradicionais e estará ocupando postos chaves nas próximas décadas. E, se a história da humanidade tem mostrado uma crescente
tendência ao individualismo, ela é rica também em exemplos de
movimentos coletivos a serviço de valores individualistas nãoegoístas. Não é uma certeza mas é uma possibilidade de mudança da condição atual dos jovens assumirem sem crítica o carro
como valor social e associarem o transporte coletivo aos valores
negativos de derrota social, pobreza e discriminação, comportamento observado até entre crianças e reforçado nos programas
de televisão.
Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 25 - 2003 - 3º trimestre
e mesmo a ação para que o passageiro nos serviços de transporte coletivo seja tratado como cidadão e consumidor que como tal
quer ser respeitado e atendido. Este anseio, mesmo que não seja
para si, pode se manifestar em favor dos que não podem usar
automóveis como já foi notado, em uma pesquisa recente em São
Paulo, o desagrado que causa o tratamento inadequado no atendimento dos idosos.
Em resumo, o futuro usuário dos transportes coletivos será mais
moderno, mais feminino, mais independente, mais adulto e usará
os meios de transporte que puder dispor como resultado do que
tiver sido feito hoje pela defesa do transporte público e melhoria
da circulação urbana.
A mencionada tendência ao individualismo acentuará a percepção do
mercado de consumo final como constituído de milhões de pessoas
agindo cada um a seu modo segundo suas opções individuais. O que
será novo, propiciado pelo avanço tecnológico, é a evolução das
redes de informação baseadas em satélites e cabos para a transmissão de ondas captadas a todo o momento em qualquer lugar. É uma
condição de telecosmo que, embora ainda não existente, já pode ser
vislumbrada pela expansão das conexões sem fio Wi-Fi (wireless fidelity). A influência desta nova condição alterará não só a forma de operar os serviços de transporte controlados por chips e geoposicionamento por satélites operando on line, como a sua utilização pelos
usuários. A qualquer momento e em qualquer lugar será possível
informar-se sobre os transportes existentes, sua disponibilidade e até
mesmo solicitar serviços ofertados mediante demanda, algo muito
diferente do atendimento nos dias atuais.
O comportamento independente e a facilidade de escolha, mais
do que nunca, farão com que os sistemas de transportes devam
ser organizados acerbadamente em função das necessidades. A
cultura digital será um traço característico das sociedades urbanas. É provável que as empresas de transporte cuja atividade é
usualmente centrada nos veículos se transformarão em empresas
de viagens centradas nos passageiros oferecendo serviços cada
vez mais adaptados às suas necessidades.
As gerações de jovens brasileiros entrando na idade adulta, pela
sua importância na pirâmide de idade, deverão reforçar o desejo
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texto acima foi publicado na Revista dos Transportes