2. Verdade Desidério Murcho Universidade Federal de Ouro Preto 1. “A verdade não existe” Segundo o Evangelho de João (14:6), Jesus terá declarado: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Esta afirmação é muito estranha, pois mesmo uma divindade parece insusceptível de ser, literalmente, a verdade. Imagine-se o que seria Platão dizer que é o número quatro, ou a cor azul; a reacção natural e apropriada seria pensar que a afirmação não deve ser entendida literalmente, pois parece um erro categorial pensar que alguém possa ser um número, ou uma cor. Do mesmo modo, é um erro categorial pensar que uma ideia possa literalmente comer batatas fritas, ou pintar-se de azul. Cometemos um erro categorial quando pressupomos que uma entidade pertence a uma categoria a que de facto não pertence. Há uma diferença radical entre pensar que uma ideia é banal quando afinal é interessante, e pensar que uma ideia se pintou de azul. No segundo caso, cometemos um erro categorial, ao passo que no primeiro estamos apenas enganados. A afirmação atribuída a Jesus, entendida literalmente, parece um erro categorial porque uma pessoa, mesmo que divina, parece tão incapaz de ser a verdade quanto uma árvore, ou um seixo da praia. Talvez Jesus quisesse apenas dizer, o que parece mais plausível pelo contexto, que por meio dele e com a sua ajuda os seres humanos poderiam descobrir a verdade mais importante acerca de si próprios e do universo; nomeadamente, que foram criados por Deus, que tem um plano emocionalmente reconfortante para a humanidade. Neste caso, a afirmação de Jesus é bastante prosaica, ainda que verbalmente estrondosa. Há uma tendência nas religiões para sacralizar a verdade, o que confunde mais do que esclarece. De um ponto de vista religioso, a verdade parece sobrenatural, eterna e muitíssimo além das nossas vidas comuns. Uma pessoa que continue a aceitar algo como esta concepção religiosa de verdade ao mesmo tempo que rejeite a religião, tende por isso a rejeitar a única concepção de verdade de que tem conhecimento. O romancista José Saramago parece dar voz a esta perspectiva: PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO “A verdade não existe. Se a verdade existisse, teria de existir desde sempre e então ter-nos-íamos apercebido de que, além das mudanças de todo o tipo que acontecem, e continuarão a acontecer, haveria qualquer coisa que se manteria imutável, constante, e essa seria a verdade. Não há nenhuma verdade dessas; há muitas verdades, e têm de lutar umas com as outras e depois logo se vê o que resulta. Resultará uma ou outra verdade, mas serão sempre verdades transitórias, que abrem ou fecham caminhos. A verdade com maiúscula não é coisa que exista”. (Saramago, “Todos os Nomes”, p. 42) Encontramos aqui dois aspectos iniciais surpreendentes, o primeiros dos quais é a presença, ainda que não muito explícita, de uma forma argumentativa conhecida como modus tollens: Se a verdade existisse, seria imutável. Mas não há uma verdade imutável. Logo, a verdade não existe. Qualquer argumento que tenha esta forma é válido, o que significa que nenhum deles terá premissas verdadeiras e conclusão falsa. Isto significa que se as premissas de Saramago forem verdadeiras, a conclusão também o será. O que há de surpreendente é alguém defender que não há verdades usando um argumento. Isto porque os argumentos só estabelecem a conclusão desejada se forem sólidos. Ora, um argumento só é sólido quando, além de válido, só tem premissas verdadeiras. Sem verdades não há argumentos sólidos e sem argumentos sólidos não há argumentos que estabeleçam seja o que for. Consequentemente, o primeiro aspecto surpreendente no raciocínio de Saramago é que ele tem de pressupor que há verdades para que o seu modus tollens possa estabelecer a conclusão desejada; mas se houver verdades, a conclusão do modus tollens é falsa. Ficamos assim na seguinte situação: se não houver realmente verdades, Saramago não tem nem pode ter um argumento sólido a favor dessa ideia; mas se ele tiver um argumento sólido a favor dessa ideia, essa mesma ideia é falsa. Em qualquer dos casos, Saramago não nos oferece uma boa razão para aceitar que não há verdades. O segundo aspecto inicial surpreendente é Saramago começar por afirmar que a verdade não existe, afirmando logo de seguida que há muitas. Isto é surpreendente porque é logicamente impossível haver muitas verdades (dez mil, por exemplo) e não haver uma 23 OCT 2015 23 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO verdade. O que Saramago queria talvez dizer, mas não disse, é que não há apenas uma verdade; há várias. Porém, mesmo nesta interpretação a sua posição não é plausível. Pois imaginemos que há apenas três verdades: “A Ana está na biblioteca”, “O Artur está na biblioteca” e “O Paulo está na biblioteca”. Seria este um caso em que não há apenas uma verdade, mas várias? Não, pois a partir do momento em que temos essas três verdades, temos outra verdade equivalente a elas: “A Ana, o Artur e o Paulo estão na biblioteca”. A conjunção das três verdades resulta numa só verdade equivalente às três anteriores, o que parece mostrar que é logicamente impossível haver várias verdades sem que ao mesmo tempo exista uma só verdade equivalente a todas as outras. Contudo, este é apenas um pormenor talvez pouco importante; afinal, tudo depende de como distinguimos as verdades entre si, e não é óbvio que critério poderemos usar para dizer que estamos perante uma só verdade, ou várias. Outra ideia mais promissora de Saramago, e que tem uma linhagem filosófica antiga, é que a verdade só poderia existir caso fosse imutável ou eterna. A ideia subjacente é que a mudança constante de que fala Luís de Camões seria, de algum modo, incompatível com a existência da verdade: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Camões tem em mente a mudança constante que todos observamos. E a ideia de Saramago é que esta mudança constante impede a existência da verdade: mudam-se os tempos, poderíamos dizer, muda-se a verdade, no sentido em que o que ontem era verdadeiro hoje já não o é. Será esta ideia razoável? Considere-se o facto de estar chovendo no dia 22 de Janeiro de 2013 em Ouro Preto. Este é um acontecimento transitório, que faz parte da mudança constante. No dia seguinte, dia 23, já não está chovendo em Ouro Preto. A ideia é, assim, a seguinte: é verdadeiro que está chovendo no dia 22, mas já não é verdadeiro que está chovendo no dia 23. Por isso, não há apenas uma verdade, há várias — todas transitórias, que contrastam com as verdades eternas, fixas, imutáveis, que seriam as verdades genuínas, talvez religiosas. Será esta uma maneira adequada de entender as coisas? Há razões para pensar que não. Pois veja-se o que acontece quando alguém profere a palavra “eu”. Como é evidente, a mesma palavra refere diferentes pessoas. 23 OCT 2015 24 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Quando Eça diz “eu” está falando de Eça, mas quando Saramago diz “eu”, não está falando de Eça, mas antes de Saramago. Não seria particularmente perspicaz afirmar que Eça é Saramago porque a mesma palavra é usada ora para falar de um ora de outro. O mesmo acontece com a frase “Está chovendo”. Proferida em Ouro Preto no dia 22 de Janeiro de 2013, quer dizer que está chovendo nesse dia e nesse local; não quer dizer que está chovendo no dia 23, por exemplo. A mesma frase, proferida no dia 23, quer dizer que está chovendo no dia 23 e não no 22. O que isto significa é que temos de distinguir cuidadosamente as frases do que as frases exprimem no contexto em que são proferidas. Tanto há frases diferentes que exprimem a mesma verdade (ou a mesma falsidade), como há frases iguais que exprimem verdades diferentes (ou falsidades diferentes). Por exemplo, as frases “Saramago foi um romancista” e “Saramago was a novelist” são claramente diferentes, mas exprimem a mesma verdade; e a frase “Sou um romancista” tanto exprime uma verdade quando é proferida por Saramago como uma falsidade quando é proferida por Picasso. Assim, quando parece que uma mesma frase ora é verdadeira ora é falsa, o que tornaria a verdade instável, digamos, o que se passa afinal é que a verdade é perfeitamente estável, se olharmos para o que as palavras dizem em vez de vermos apenas as próprias palavras. Se choveu no dia 22 de Janeiro de 2013 em Ouro Preto, esta verdade não é de modo algum anulada devido ao facto de não chover no dia 23, nem devido a qualquer outro facto posterior ou anterior. Que nesse dia choveu em Ouro Preto é algo que não irá sofrer qualquer mudança. Para que a mudança seja uma ameaça à verdade é preciso que se faça uma confusão linguística entre o que afirmamos com as nossas palavras e as próprias palavras. Isto significa pelo menos que não é óbvio que a mudança seja incompatível com verdades imutáveis. Todavia, talvez Saramago tenha em mente uma ideia diferente no que respeita à mutabilidade das verdades. Talvez pense que a verdade de que a Terra se move é transitória porque houve um tempo em que não era tida como verdadeira. Para nós, poderia Saramago dizer, a Terra move-se, mas para o papa que condenou Galileu não se movia. Será esta perspectiva defensável? Há razões para pensar que não, porque é uma confusão entre metafísica e epistemologia, ou seja, entre o que é verdadeiro e o que as pessoas pensam que é verdadeiro. Se for verdadeiro que a Terra se move, as pessoas que acreditavam que estava imóvel não acreditavam numa verdade, mas antes numa falsidade, sem o saberem. E se for verdadeiro que a Terra está imóvel, as pessoas que hoje acreditam que não está imóvel acreditam numa falsidade, pensando erradamente que é uma verdade. Caso não se aceite 23 OCT 2015 25 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO esta banalidade acerca das pessoas, teremos de admitir que as pessoas são infalíveis, coisa que obviamente não são. Isto porque se for realmente verdadeiro seja o que for que as pessoas pensam que é verdadeiro, então as pessoas nunca poderão estar enganadas. Como é evidente que as pessoas se enganam muitas vezes, esta ideia é inequivocamente falsa. Esta confusão entre metafísica e epistemologia está presente quando se diz que para o papa que condenou Galileu, a Terra estava imóvel. Tudo o que isto quer dizer é que o papa tinha essa convicção; mas a expressão é enganadora porque parece dizer que a imobilidade da Terra é relativa ao papa. Em conclusão, Saramago queria dizer que há diversas convicções — e não diversas verdades — e que as convicções das pessoas mudam com o tempo, pensando elas mais tarde que é falso o que antes pensavam que era verdadeiro e vice-versa. Daí que Saramago fale metaforicamente das verdades que lutam entre si; o que ele tem em mente é que diferentes pessoas defendem diferentes convicções, e depois logo se vê, com o passar do tempo, quem tinha razão. Contudo, isto significa que não está em causa a transitoriedade da verdade; o que está em causa é a transitoriedade das nossas convicções. Ora, a transitoriedade das nossas convicções não implica que as verdades são transitórias, a menos que sejamos infalíveis. Saramago não parece, pois, oferecer-nos uma perspectiva promissora sobre a verdade. Oferece-nos ele uma perspectiva razoável quanto à mutabilidade das convicções humanas? A resposta é que não, pois apesar de algumas convicções humanas terem mudado, nem todas mudaram. Por exemplo, as convicções humanas acerca da aritmética e da geometria bidimensional não sofreram qualquer mudança pelo menos desde o tempo de Euclides; e muitas das convicções astronómicas fundamentais não sofreram qualquer mudança desde que Galileu olhou com olhos de ver pelo telescópio e raciocinou com cuidado. Além disso, certamente que todos os seres humanos, desde a pré-história, têm a convicção de que o fogo é quente e o gelo frio. Apesar de ser verdadeiro que muitas convicções humanas sofreram mudanças ao longo do tempo, é inválido concluir daí que todas mudam, como Saramago parece sugerir. Revisão 1. O que é um erro categorial? Dê exemplos elucidativos. 2. Explique qual é a dificuldade de tentar concluir com um raciocínio sólido que não há verdades. 23 OCT 2015 26 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO 3. Se nenhum raciocínio sólido puder estabelecer que não há verdades, de que outro modo se poderia estabelecer essa ideia adequadamente? 4. Explique como as verdades da geometria contrariam a ideia de que todas as verdades estão em mudança constante. 5. É a existência de verdades incompatível com a mudança constante de que fala Luís de Camões? Porquê? 6. É a existência de verdades incompatível com a mudança constante de convicções humanas? Porquê? 7. “A verdade é relativa”. Concorda? Porquê? 8. Concorda com Saramago? Porquê? 2. A verdade fundamental A ideia de verdades fundamentais das quais todas as outras resultam é razoavelmente bem conhecida em filosofia pelo menos desde a Grécia da antiguidade. Em algumas áreas, como a geometria e a lógica, assim como na física, conseguimos deduzir todas as verdades dessa área de um conjunto bastante restrito de verdades iniciais, a que por vezes se chama axiomas ou leis. Por exemplo, na lógica proposicional clássica temos um número infinito de verdades e validades lógicas; mas partindo apenas de algumas validades (dez, nas teorias comuns de dedução natural) conseguimos demonstrar todas as outras. Do mesmo modo, se todas as verdades da física resultarem de um punhado apenas de leis fundamentais, então estas leis constituem as verdades fundamentais daquela área. Uma boa teoria não é apenas uma colecção avulsa de um número imenso de verdades; é um conjunto limitado de verdades fundamentais, das quais resultam todas as verdades desse domínio. Teorizar é isso mesmo, em grande parte: procurar um conjunto limitado de verdades fundamentais que explicam e unificam vários fenómenos aparentemente díspares. Isto significa que esse conjunto limitado de verdades não pode ser a mera conjunção de várias verdades díspares. Por exemplo, imagine-se que num dado domínio conhecemos um milhão de verdades particulares, sobre cada fenómeno particular. Do ponto de vista puramente lógico, a partir do momento em que temos um milhão de verdades, temos também uma só verdade, que é a conjunção de todas elas. A teoria que resulta desta conjunção, contudo, não tem qualquer interesse porque nem explica nem unifica esse milhão de verdades com base num punhado de verdades fundamentais. Consequentemente, se o problema metafísico da verdade fosse uma questão de encontrar uma só verdade fundamental acerca de toda a realidade da qual todas as outras 23 OCT 2015 27 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO resultassem, essa verdade não seria a mera conjunção de milhões de verdades particulares acerca dos vários aspectos da realidade. Ao invés, seria uma verdade interessante, da qual todas as outras verdades resultariam, unificando-as e explicando-as. Porém, há duas boas razões para pensar que essa verdade não existe. Imagine-se que temos uma verdade fundamental, “p”, da qual resultam todas as outras, incluindo “q”. Mas o que é isso de “q” resultar de “p”? Se não for magia, só poderá ser porque “p” implica “q”, o que é o mesmo que dizer que, partindo da primeira, se deduz validamente a segunda. Ora, isto significa que afinal não há apenas uma verdade, “p”, da qual resulta outra verdade, “q”; há uma segunda verdade fundamental: “p” implica “q”. Esta verdade é tão fundamental quanto “p”, pois sem ela nenhumas outras verdades resultarão de “p”, pelo que esta deixaria de ser fundamental no sentido indicado. Em conclusão: não parece logicamente possível haver apenas uma verdade da qual todas as outras resultem. Talvez exista um grupo muitíssimo restrito de verdades fundamentais das quais as outras resultem, como acontece na física e na lógica, mas não uma única. Eis uma segunda razão, mais indirecta e pitoresca, para pensar que não poderá haver uma só verdade fundamental da qual todas as outras resultem. Imagine-se que nos aparece uma divindade omnisciente e totalmente honesta, prometendo responder a qualquer pergunta que tenhamos — mas só uma. Ficamos maravilhados com a oportunidade, mas imediatamente nos damos conta de que não é fácil saber qual será a melhor pergunta a fazer. Qual será a pergunta mais informativa? Se perguntarmos algo como “Qual é aquela verdade fundamental da qual todas as outras resultam?”, a resposta talvez seja ininteligível; ou, mesmo que não seja ininteligível, talvez sejamos incapazes de derivar dela todas as outras verdades — e de que vale uma verdade fundamental se não conseguirmos ver como dela resultam todas as outras? Além disso, se não existir tal verdade fundamental, a divindade irá responder apenas que não há tal verdade. Dada a nossa dificuldade, dizemos à divindade que precisamos de pensar sobre qual será a melhor pergunta a fazer. Amavelmente, ela aceita voltar no dia seguinte para responder então à pergunta que decidirmos fazer. Nas vinte e quatro horas mais atarefadas da nossa vida, consultamos enciclopédias, falamos com os mais eminentes filósofos, cientistas e matemáticos, com os nossos amigos e familiares, tentando encontrar a melhor pergunta a fazer. Algumas pessoas dizem que nunca conseguiremos encontrar a melhor pergunta, sendo por isso mais avisado perguntar como se consegue ter governantes que 23 OCT 2015 28 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO sejam a um tempo realmente competentes e honestos, ou se será melhor comprar um computador Windows ou Apple; outras dizem-nos que o melhor é realmente perguntar qual é o sentido da vida, ou o que é a verdade, só porque é divertido ver qual será a resposta, mesmo que seja ininteligível. Quando o prazo está prestes a acabar, um talentoso estudante de lógica dá-nos então uma sugestão engenhosa: Qual é aquele par ordenado cujo primeiro membro é a melhor pergunta a fazer, e cujo segundo membro é a resposta a essa pergunta? Ficamos entusiasmados porque, no fundo, fazemos duas perguntas numa: perguntamos qual é a melhor pergunta a fazer, coisa que obviamente não fomos capazes de encontrar, e ao mesmo tempo qual é a resposta. Além disso, o conceito lógico de par ordenado certamente que não oferecerá dificuldades a uma divindade omnisciente.2 Aliviados e entusiasmados, aguardamos tranquilamente o regresso da divindade, tomando tranquilamente um Martini. Quando ela chega, pergunta-nos se já temos a pergunta pronta. Dizemos que sim, com uma ponta de orgulho, e fazemo-la. A divindade olha para nós com um olhar misericordioso, e responde: É essa pergunta que acaba de me fazer, sendo a resposta esta mesma. E, puff!, desaparece. Esta história divertida parece mostrar que não há uma pergunta maximamente informativa. Isto porque se a pergunta original for a mais informativa a fazer, então não é a mais informativa a fazer. E se não for a mais informativa a fazer, então é a mais informativa a fazer. Uma vez que isto é impossível, isso significa que não há uma pergunta maximamente informativa. Por que razão se a pergunta que fizemos for a mais informativa a fazer, então não é a mais informativa? Pela simples razão de que se for a mais informativa a fazer, então a resposta correcta é a que a divindade nos deu; mas como esta resposta não é informativa, 2 Um par ordenado é apenas uma sequência ordenada de duas coisas quaisquer, distinguindo- se de um mero conjunto não-ordenado de duas coisas. Por exemplo, quando aguardamos a nossa vez para sermos atendidos no banco, juntamente com outra pessoa, temos um par ordenado de duas pessoas, pois é relevante se é ela ou nós que estamos à frente. Mas quando consideramos um casal que mora numa casa, é apenas um conjunto não-ordenado de duas pessoas. 23 OCT 2015 29 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO a pergunta não é informativa. Portanto, se aquela pergunta for a mais informativa a fazer, então não é a mais informativa. Resta ver por que razão se a pergunta que fizemos não foi a mais informativa a fazer, então foi a mais informativa a fazer. Imaginemos, pois, que a nossa pergunta não foi a mais informativa a fazer. Isso significa que a divindade nos diria, na sua resposta, qual seria a pergunta mais informativa a fazer, e nos daria a resposta a essa pergunta. Contudo, isto significa que afinal a nossa pergunta teria sido a mais informativa a fazer, precisamente porque teria feito a divindade dizer-nos qual é a pergunta mais informativa, dando-nos ao mesmo tempo a resposta. Portanto, se a pergunta que fizémos não foi a mais informativa, foi a mais informativa. Esta história parece mostrar indirectamente que a ideia de uma só verdade fundamental da qual todas as outras resultem talvez seja uma ilusão, um pouco como pensar que há um número par maior do que qualquer outro. Talvez existam várias verdades fundamentais das quais resultem outras verdades — e conhecemos várias, em física, matemática e lógica — mas a hipótese de que há apenas uma dessas verdades fundamentais parece falsa porque conduz a impossibilidades. Revisão 1. “Se o problema metafísico da verdade fosse uma questão de encontrar uma só verdade fundamental acerca de toda a realidade da qual todas as outras resultassem, essa verdade não seria a mera conjunção de milhões de verdades particulares acerca dos vários aspectos da realidade”. Porquê? 2. Qual é a primeira razão apresentada a favor da ideia de que não poderá haver uma só verdade fundamental acerca de toda a realidade da qual todas as outras resultem? Concorda com essa razão? Porquê? 3. Concorda que a história apresentada mostra que não há uma pergunta maximamente informativa? Porquê? 4. Caso tenhamos razões para pensar que não há uma pergunta maximamente informativa, será isso uma boa razão para pensar que não há uma verdade fundamental acerca de toda a realidade da qual todas as outras resultem? Porquê? 23 OCT 2015 30 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO 3. O truismo da verdade Qual é então o problema metafísico da verdade? Expresso da maneira mais simples, é apenas este: quando uma frase é verdadeira, o que explica que o seja? Não se trata de perguntar se a frase “Eça era humano”, por exemplo, é realmente verdadeira ou não; nem se trata de perguntar como sabemos que é verdadeira, caso o seja. Este último é um problema epistemológico, e não metafísico. Quanto ao primeiro, diz respeito exclusivamente àquela frase, mudando consoante a frase em causa: neste caso, é um problema de biologia, mas se a frase fosse “O universo começou com o Big Bang” seria um problema de física. Ora, o problema metafísico da verdade não diz respeito apenas àquela frase, mas a qualquer frase que seja verdadeira: o que explica que uma fase qualquer verdadeira seja verdadeira? Em português confunde-se por vezes o adjectivo “verdadeiro” (“true”, em inglês) com o substantivo “verdade” (“truth”), escrevendo-se “O que Eça disse é verdade”, em vez do mais correcto “O que Eça disse é verdadeiro”. Esta confusão talvez faça pensar erradamente que no problema metafísico da verdade se trata de esclarecer a natureza de uma coisa, a verdade, concebida como se fosse uma montanha ou uma galáxia, ou uma coisa mística; ao invés, trata-se de esclarecer o que ocorre sempre que temos uma frase verdadeira. Do mesmo modo, em física, queremos saber o que é a gravidade, mas não esperamos encontrar uma coisa única que seja como uma montanha; antes estamos cientes de que quando um objecto cai ou um planeta atrai um satélite, estamos perante um exemplo do mesmo fenómeno, sendo unicamente por isso que usamos o termo “gravidade” ao invés de “gravidades”. No caso da metafísica, queremos esclarecer o que ocorre sempre que temos uma frase verdadeira, e por isso dizemos mais economicamente que estudamos o problema da verdade, em vez de dizer que estudamos o problema das frases verdadeiras; mas esta segunda maneira de falar seria menos enganadora. A expectativa, contudo, é que o fenómeno das frases verdadeiras seja susceptível de ser explicado de uma maneira unificada, de modo que sempre que uma frase qualquer é verdadeira tenhamos à nossa disposição uma mesma explicação esclarecedora. Compreende-se melhor o problema metafísico da verdade se partirmos daquilo a que iremos chamar truismo da verdade, que exprime de maneira económica o uso fundamental do predicado “é verdadeiro”: A frase “Eça é humano” é verdadeira se e só se Eça for humano. 23 OCT 2015 31 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO A exótica expressão “se e só se” exprime uma bicondicional: queremos dizer, por um lado, que se aquela frase for verdadeira, então Eça é humano; e, por outro, se Eça for humano, então aquela frase é verdadeira. Uma bicondicional só é falsa quando uma das frases ligadas por “se e só se” é verdadeira e a outra falsa; caso sejam ambas verdadeiras, ou ambas falsas, a bicondicional é verdadeira. Assim, a seguinte bicondicional também é verdadeira, dado que as duas frases ligadas por “se e só se” são falsas: A frase “Eça é um chinelo de quarto” é verdadeira se e só se Eça for um chinelo de quarto. Em contraste, a seguinte bicondicional é falsa, porque uma das frases é verdadeira e a outra falsa, não exprimindo por isso o truismo da verdade: A frase “Eça é humano” é verdadeira se e só se Eça for um chinelo de quarto. O truismo da verdade tem, pois, a forma seguinte, usando “sse” para abreviar “se e só se”, e representando “p” qualquer frase declarativa: “p” é verdadeira sse p. O problema metafísico da verdade é explicar este fenómeno de “p” ser verdadeira sse p. Claro que, literalmente, nenhuma letra “p”, por si própria, é verdadeira; estamos usando “p” para falar de qualquer frase declarativa, verdadeira ou falsa, como “Eça era português”, “Saramago era marciano”, “2 + 2 = 6”, etc. Assim, o que queremos explicar é muito geral, dizendo respeito a qualquer frase declarativa, verdadeira ou falsa. Queremos saber o que é exactamente isso de uma frase ser verdadeira ou falsa. Precisamente para podermos falar indiferentemente da verdade ou da falsidade, iremos usar uma expressão filosófica curiosa: “valor de verdade”. O valor de verdade de uma frase é a sua verdade ou falsidade. Assim, o valor de verdade da frase “Klaus Schulze é polaco” é falso, sendo verdadeiro o valor de verdade da frase “Júlio Verne era francês”. O problema metafísico da verdade não diz respeito ao nosso conhecimento do valor de verdade. Para ver porquê, imagine-se que há extraterrestres inteligentes num planeta de uma galáxia quinhentas mil galáxias distante da nossa, e que nunca conseguiremos saber que eles existem. Mesmo assim, o truismo da verdade continua a aplicar-se: 23 OCT 2015 32 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO A frase “Há extraterrestres inteligentes num planeta de uma galáxia quinhentas mil galáxias distante da nossa” é verdadeira sse há extraterrestres inteligentes num planeta de uma galáxia quinhentas mil galáxias distante da nossa. O que isto significa é que quando as frases têm valor de verdade, isso não depende do que sabemos nem das nossas convicções. Por um lado, porque não somos omniscientes, desconhecemos muitas frases que são verdadeiras. Por outro lado, as frases falsas que erradamente pensamos que são verdadeiras continuarão falsas por mais que acreditemos com muita convicção que são verdadeiras. Os valores de verdade são largamente independentes da nossa vontade; e se não o são totalmente é porque podemos, por exemplo, fazer uma mesa, e nesse caso tornamos verdadeiras várias frases acerca da mesa, incluindo “Esta mesa foi feita por mim”. Contudo, do facto de podermos tornar algumas frases verdadeiras não se conclui validamente que podemos fazer o mesmo com todas — e é óbvio que não podemos fazer o mesmo com todas. Compare-se o truismo da verdade com as seguintes bicondicionais: “p” é verdadeira sse não conseguirmos evitar pensar que p. “p” é verdadeira sse toda a gente pensar que p. “p” é verdadeira sse tivermos boas razões para pensar que p. Estas bicondicionais são muitíssimo diferentes do truismo da verdade. Em primeiro lugar, não são truismos: são falsas, pelo menos quando temos em mente seres humanos falíveis. Talvez algumas pessoas não consigam evitar pensar que Deus existe; mas isso é perfeitamente compatível com a falsidade da frase “Deus existe”. E, claro, mesmo que toda a gente pense que a Terra está imóvel, isso é perfeitamente compatível com a falsidade da frase “A Terra está imóvel”. Quanto à terceira, vemos a mesma desadequação: por mais que tenhamos boas razões para pensar que há gelo na Lua, podemos estar brutalmente enganados, porque somos falíveis, e não haver qualquer gelo na Lua, caso em que a frase “Há gelo na Lua” é falsa. Assim, o problema metafísico da verdade é muito diferente do problema epistemológico da verdade. Em metafísica, não se trata de investigar como sabemos que uma frase qualquer é verdadeira, ou sequer se realmente o sabemos; estes são problemas epistemológicos. Trata-se de investigar o próprio fenómeno de ser verdadeira. Porém, não será desavisado investigar algo ainda antes de fazermos uma investigação epistemológica 23 OCT 2015 33 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO para garantir que não é uma ilusão? E não temos todos os argumentos dos cépticos que militam contra a ideia de que conhecemos algumas verdades? A resposta a este desafio é que as coisas são exactamente ao contrário: seria desavisado fazer parar a investigação metafísica da verdade devido aos argumentos epistemológicos dos cépticos, mesmo admitindo que não fosse possível dar-lhes uma resposta adequada. Compare-se com a investigação da gravidade e note-se como seria uma má ideia fazer parar o estudo da física com o argumento céptico de que não temos a certeza se os objectos realmente caem porque não conseguimos excluir a possibilidade lógica de ser tudo uma ilusão da nossa parte. A investigação humana é sempre condicional: aceitando algumas coisas por hipótese, estudamos outras. O próprio céptico faz a mesma coisa, pois aceita por hipótese que os seus argumentos são sólidos, quando defende que não podemos saber coisa alguma (o que significa que a sua posição é incoerente). No problema metafísico da verdade, pressupomos que há verdades, conhecidas ou não, e é isso que queremos compreender melhor. Vejamos um último desafio à investigação do problema metafísico da verdade. O truismo da verdade é uma banalidade; significa isso que nada há de interessante para investigar? Não; descobrimos muitas vezes que uma banalidade inicial esconde dificuldades importantes, cuja solução promete alargar a nossa compreensão e satisfazer a nossa curiosidade intelectual. Compare-se, uma vez mais, com a investigação da gravidade, na física: seria uma má ideia fazer parar o estudo da física dizendo que é óbvio que os objectos caem e nada mais há para estudar. O mesmo acontece com o problema metafísico da verdade: queremos estudar uma banalidade inicial, expressa no truismo da verdade, mas há uma grande diferença entre ver que é um truismo e explicá-lo adequadamente, tal como há uma grande diferença entre ver que os objectos caem e conseguir explicar adequadamente tal fenómeno. Revisão 1. Explique qual é a diferença entre o problema metafísico e o problema epistemológico da verdade. 2. O que é o truismo da verdade? 3. O que é o valor de verdade? 4. Por que razão o valor de verdade das frases é largamente independente das nossas convicções? 23 OCT 2015 34 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO 4. Representações verdadeiras O problema metafísico da verdade, como veremos, é afinal uma tríade de problemas interrelacionados. O primeiro deles é o seguinte: que entidades podem ter literalmente valor de verdade? Poderá uma casa, um chinelo de quarto ou uma pessoa como Jesus ter valor de verdade, no mesmíssimo sentido em que uma frase o tem? Haverá factos verdadeiros ou falsos? Ou pinturas e sinfonias? Claro que praticamente qualquer palavra que usamos tem mais de um significado, em diferentes contextos. Quando fazemos ciência ou filosofia temos de delimitar cuidadosamente o significado que temos em mente, para evitar confusões verbais. No caso da verdade, o significado literal que temos em mente é o que se aplica a frases declarativas, e que obedece ao truismo da verdade. Por isso, entidades que não possam desempenhar o papel das frases não podem ter valor de verdade. Quadros, sinfonias, factos, pessoas (divinas ou não), casas e chinelos de quarto não podem ter valor de verdade, no mesmo sentido em que uma frase o tem. Contudo, por que razão isso é assim? Que características tem uma entidade de ter para que possa ter valor de verdade? A primeira característica que uma entidade tem de ter para que possa ter valor de verdade é representar algo. Uma entidade só é verdadeira quando representa as coisas como elas são; em parte, é isso mesmo que o truismo da verdade exprime e que Aristóteles tinha em mente quando escreveu o seguinte: “Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, e dizer do que é que é, e do que não é que não é, é verdadeiro”. (Metafísica 1011b25) Para que uma entidade possa “dizer que é” tem de representar o que é; e só será verdadeira se representar bem. Contudo, não é qualquer boa representação que pode ter valor de verdade. Pois considere-se uma pintura comum que representa bem uma rosa; poderá ela ter valor de verdade no sentido que procuramos? A resposta é que não pode, por três razões. Primeiro, porque as representações pictóricas carecem, regra geral, de suficiente delimitação. Uma pintura de uma rosa não representa apenas, regra geral, a cor vermelha das suas pétalas; representa também um certo número de pétalas, dispostas de uma certa maneira e com uma certa dimensão relativa. Não é fácil encontrar um equivalente pictórico da simples frase “As pétalas daquela rosa são vermelhas”, que delimita muito bem o que representa (a cor das pétalas da rosa), sem precisar de representar um certo número de 23 OCT 2015 35 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO pétalas. Assim, regra geral, as pinturas não têm valor de verdade porque carecem de suficiente delimitação. Todavia, se pensarmos noutros tipos de representação pictórica, as coisas são menos óbvias. Um gráfico científico, por exemplo, é uma entidade pictórica, mas não carece de delimitação, pois pode representar apenas, por exemplo, a diferença proporcional entre as populações de diversas cidades. E não trairia uma confusão da nossa parte dizer que o gráfico é verdadeiro se representar bem essa diferença proporcional. Contudo, um gráfico dificilmente poderia representar ideias muitíssimo gerais e teóricas acerca das rosas: quando surgiram, o modo como devem ser podadas e quantos tipos de rosas há. Ainda que possamos imaginar um sistema pictórico que talvez conseguisse ter este poder de representação, não é para representar as coisas deste modo que usamos, comummente, sistemas pictóricos. E a nossa modesta pintura da rosa não tem certamente esse poder. A terceira razão é que as frases permitem-nos, além disso, relacionar muito facilmente diferentes verdades acerca da rosa. Podemos dizer, por exemplo, que do seu aspecto já com pouca vivacidade é razoável concluir que a rosa foi cortada há bastante tempo, talvez mais de uma semana. Numa pintura, podemos apenas representar a rosa já algo murcha; e o observador perspicaz talvez tire por si a conclusão de que a rosa foi cortada há mais de uma semana. Porém, ainda que seja possível representar pictoricamente não apenas aquela conclusão, como a razoabilidade da mesma, isso não seria fácil, nem é comum. Em conclusão, para que uma entidade possa ter valor de verdade, tem de representar algo, mas não basta que represente algo para que tenha valor de verdade. É preciso, além disso, que possa delimitar o que representa, que possa representar aspectos muitíssimo gerais e teóricos, e que possa representar relações lógicas. Presumivelmente, os primeiros seres humanos foram desenvolvendo a linguagem verbal articulada precisamente para ter estas propriedades, entre outras. Um grito de uma ave, por exemplo, pode assinalar que se aproxima um predador, mas é incapaz de especificar que tipo de predador é ele, e se vem do norte ou do leste, se vem correndo ou voando, se é lento ou rápido. As linguagens articuladas humanas, com a sua maravilhosa capacidade para representar aspectos delimitados, teóricos e lógicos, constituem instrumentos poderosíssimos não apenas para comunicarmos entre nós, mas também para alargarmos sobremaneira a nossa compreensão da realidade. E são estas linguagens articuladas que introduzem no mundo entidades plenamente susceptíveis de ter valor de 23 OCT 2015 36 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO verdade. Assim, a nossa primeira ideia acerca dos portadores de valor de verdade é que têm de ser entidades como as frases, que representem articuladamente as coisas. 5. Frases É porque as frases têm um poder impressionante de representação que podem ter literalmente valor de verdade; porém, nem todas podem tê-lo. As frases imperativas e interrogativas, por exemplo, não podem ter valor de verdade, pois usamo-las para dar ordens (“Abre a janela, por favor”) e fazer perguntas (“O que é a verdade?”). Em contraste, as frases declarativas podem ter valor de verdade porque as usamos habitualmente para isso mesmo: para exprimir verdades ou falsidades. Porém, o que é exactamente uma frase? Uma frase é parcialmente uma entidade física localizada no espaço e no tempo: um conjunto de marcas num papel (ou um conjunto de sons, quando falamos). Contudo, uma frase é mais do que isso, pois para ser uma frase tem de ser dotada de significado. Uma frase interrogativa só exprime uma pergunta, por exemplo, precisamente porque é dotada de significado. Uma marca dotada de significado, ou conjunto de marcas, é um símbolo ou conjunto de símbolos. Assim, para que um conjunto de marcas seja uma frase tem de ser um conjunto de símbolos. Todavia, não basta que seja um conjunto de símbolos. As marcas “dkkmal nasn lkmasldkn”, por exemplo, constituem um conjunto de símbolos: várias letras do alfabeto português. Todavia, estes símbolos não estão simbolicamente organizados, ao contrário de “Eça é o autor de Os Maias”. Assim, para que uma sequência de marcas seja uma frase não basta que seja constituída por símbolos; é preciso também que estes símbolos estejam simbolicamente organizados. As marcas dotadas de significado são apenas entidades físicas, localizadas no espaço e no tempo, usadas como símbolos; e qualquer entidade física pode ser usada como um símbolo. Por exemplo, vários amigos vão acampar e combinam que um assobio significa um pedido de ajuda; um casal pode combinar que a luz acessa do quarto quando não está ninguém em casa significa que um deles foi ao supermercado. Apesar de qualquer entidade física poder ser usada como símbolo, nem todas as entidades físicas podem ser usadas para qualquer finalidade simbólica. Por exemplo, não é possível, ou é pelo menos muitíssimo difícil, representar literalmente as ideias da Crítica da Razão Pura numa sonata para piano; mas é substancialmente mais fácil representar musicalmente alguns aspectos emocionais que aquela obra produz em alguns leitores. 23 OCT 2015 37 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Fisicamente, nada distingue um conjunto simbólico de entidades físicas de um conjunto não-simbólico das mesmas entidades; a diferença é o uso que os agentes linguísticos (como os seres humanos) fazem delas. Isto significa que os símbolos são entidades relacionais. Para ver o que isto quer dizer, imagine-se que queremos descobrir se Eça tinha um irmão. Como é evidente, este não é o género de característica que Eça possa ter sozinho, o que significa que por mais que o examinemos isoladamente, nunca iremos descobrir tal coisa. Para descobri-lo é preciso examinar a origem biológica de Eça, e ver se os seus progenitores tiveram outros filhos além dele. Isto é apenas a explicitação do facto óbvio de ninguém ser irmão sozinho; ser irmão é sê-lo em relação a alguém. O mesmo acontece com as entidades físicas usadas como símbolos: nada nelas próprias mostra que são símbolos, sendo o seu uso pelas pessoas (ou por outros agentes linguísticos) que fazem delas símbolos. Um símbolo é uma entidade física usada pelos seres humanos (ou outros agentes) para representar algo; se olharmos apenas para a entidade física, excluindo o uso que os seres humanos fazem dela, não conseguimos compreender como pode ela representar seja o que for. Temos assim um triângulo linguístico: num dos vértices encontramos coisas como sons ou marcas, entidades físicas que, por si mesmas, não são símbolos. No outro vértice, contudo, encontramos agentes linguísticos que, socialmente, coordenam entre si admiravelmente bem o uso simbólico desses sons ou marcas para representar o que está no terceiro vértice do triângulo: aquilo de que querem falar, como árvores, pessoas, divindades, sentimentos, e até linguagens e símbolos. Os símbolos são extensões plenamente linguísticas dos sinais naturais, nomeadamente causais. Um sinal de fogo é o fumo, por exemplo, assim como as pegadas de um elefante são um sinal de que um elefante passou por ali. Os sinais precisam de ser interpretados por agentes protolinguísticos (como um chimpanzé) ou plenamente linguísticos (como um ser humano) para que sejam propriamente sinais; todavia, quando os sinais têm uma relação causal com aquilo de que são sinais, como nos exemplos anteriores, não precisam de qualquer mediação interpretativa para que tenham uma conexão com aquilo de que são sinais. Isto raramente ou nunca acontece no caso dos símbolos; neste caso, raramente ou nunca há qualquer conexão relevante entre os símbolos e as coisas simbolizadas, para lá da relação introduzida pelos seres humanos. Por exemplo, a palavra “água” não tem qualquer relação relevante com a água, a não ser a que é introduzida pelos portugueses. E como na Alemanha os seres humanos não introduziram essa relação, as mesmas marcas físicas, “água”, não têm lá qualquer relação com a água. 23 OCT 2015 38 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Assim, uma frase não se reduz à sua componente física; para que seja uma frase é preciso que os seres humanos, ou outros agentes plenamente linguísticos, usem essa componente física para exprimir verdades ou falsidades (no caso das frases declarativas), para dar ordens (no caso das frases imperativas) ou para fazer perguntas (frases interrogativas), inter alia. Os seres humanos conseguem tal façanha em grande parte porque se coordenam entre si admiravelmente, usando sons e marcas semelhantes para exprimir as mesmas verdades (ou dar as mesmas ordens ou fazer as mesmas perguntas). Isto significa que se não existissem seres humanos, ou outros agentes linguísticos, não haveria frases interrogativas, nem imperativas, nem declarativas. Consequentemente, não haveria verdades — isto, se as frases forem as únicas entidades que podem ter, directamente, valor de verdade. Revisão 1. Por que razão podem as frases declarativas ter valor de verdade, mas os chinelos de quarto e as árvores não podem tê-lo? 2. Por que razão as representações pictóricas comuns não podem ter valor de verdade? 3. Por que razão nem todos os conjuntos de símbolos são simbólicos? 4. Explique por que razão uma frase não se reduz à sua componente física. 5. Por que razão os símbolos são entidades relacionais? 6. Explique o que é o triângulo linguístico. 7. Que razões nos dá o texto para pensar que caso não existissem seres humanos, ou outros agentes linguísticos, não existiriam verdades? 6. Proposições A partir do século XIX, recuperou-se em filosofia a ideia de que as frases só têm valor de verdade porque exprimem proposições que o têm; ou seja, as frases teriam valor de verdade secundariamente, e as proposições teriam valor de verdade primariamente. Mas o que é uma proposição? A ideia é que várias frases declarativas sinónimas, e até de diferentes línguas, exprimem o mesmo; e esse mesmo seria, precisamente, a proposição. Assim, as proposições seriam o conteúdo verdadeiro ou falso expresso pelas frases. 23 OCT 2015 39 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Ao passo que falamos das frases usando aspas,3 não podemos falar das proposições desse modo porque não são frases. Repare-se no contraste seguinte: 1. A frase “Rómulo de Carvalho era perspicaz” é verdadeira. 2. A proposição de que Rómulo de Carvalho era perspicaz é verdadeira. 3. A proposição expressa pela frase “Rómulo de Carvalho era perspicaz” é verdadeira. No primeiro caso estamos falando da entidade linguística que está ente aspas, que é uma frase; poderíamos também ter dito que tem cinco palavras. No segundo caso, contudo, em vez de aspas usamos a expressão “de que” porque se usássemos aspas estaríamos de novo falando da frase, e não do que a frase exprime, que é a proposição; na terceira alternativa falamos explicitamente do que a frase mencionada exprime. As frases são compostas por um certo número de palavras, e pertencem a uma dada língua, coisa que não acontece às proposições. As frases “A neve é branca”, “Snow is white” e “Schnee ist weiß” exprimem, em línguas diferentes e com diferentes números de palavras, a mesma proposição — que não pertence a qualquer língua nem é constituída por palavras. Às proposições chama-se por vezes também pensamento, no sentido que Gottlob Frege deu ao termo Gedanke. Ora, este termo sofre da chamada ambiguidade actoobjecto: tanto podemos usá-lo para falar da ocorrência particular, psicológica, de um pensamento que uma pessoa tem, caso em que estamos falando do acto de formar o pensamento, como podemos usá-lo para falar do conteúdo do pensamento. É este segundo sentido que temos em mente ao falar de proposições; assim, várias ocorrências particulares do pensamento de que Ockham era brilhante, por exemplo, ocorrências que têm lugar em diferentes pessoas e em diferentes momentos do tempo, teriam em comum um mesmo conteúdo — a proposição de que Ockham era brilhante, que em português se exprime com a frase “Ockham era brilhante”. Além disso, as crenças seriam precisamente como os pensamentos. Em filosofia, por “crença” não se entende apenas crenças religiosas, mas antes qualquer representação 3 As aspas são também usadas para outros fins, nomeadamente para manifestar distanciamento perante um termo que um autor usa e que consideramos inadequado ou problemático, e para citar as palavras de alguém. Nenhum destes usos deve ser confundido com o uso das aspas para falar das próprias palavras e frases. 23 OCT 2015 40 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO verdadeira ou falsa. Assim, entre os seres humanos tanto encontramos a crença de que Deus existe, como a crença menos estrondosa de que os triângulos têm três lados. O termo “crença” sofre da mesma ambiguidade acto-objecto. Tanto podemos falar de várias ocorrências particulares da crença de que os triângulos têm três lados, como podemos falar do conteúdo comum a todas essas crenças: a proposição de que os triângulos têm três lados. O conceito de proposição foi originalmente introduzido pelos filósofos estóicos, na antiguidade grega, aproximadamente pelas mesmas razões dos seus congéneres novecentistas, mas tinha sido largamente abandonado a favor de uma concepção mais psicologista pelos filósofos modernos. Uma confusão terminológica a que é preciso dar atenção é que os filósofos medievais chamavam propositio ao que hoje chamamos frase, ou seja, às entidades linguísticas com valor de verdade (seja primária seja secundariamente). Os modernos pensavam que uma entidade linguística não poderia ter primariamente valor de verdade; só as ideias ou representações mentais poderiam tê-lo. A confusão verbal aqui presente é que eles passaram então a usar o termo “juízo”, que acaba por ser precisamente como “crença” e “pensamento” (no sentido fregiano): sofre da ambiguidade acto-objecto. E, claro, o que tinham em mente é precisamente o que no século XIX se começou a chamar proposição: o conteúdo do juízo e não o acto de ajuizar. Revisão 1. Distinga frase de proposição. 2. Por que razão não podemos falar das proposições usando aspas? 3. Explique o que é a ambiguidade acto-objecto, usando o conceito de proposição. 7. Portadores de valor de verdade Poderão as proposições ser os portadores primários de valor de verdade, tendo as frases valor de verdade apenas quando exprimem proposições e só porque as exprimem, o mesmo acontecendo às crenças, aos juízos e aos pensamentos? Este é o problema dos portadores de valor de verdade. Porém, este problema está intimamente ligado a um problema mais obviamente metafísico: que tipo de entidade exactamente é uma proposição? Uma maneira de entender as proposições é aproximadamente fregiana. Deste ponto de vista, as proposições são entidades abstractas, contrastando por isso com as 23 OCT 2015 41 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO entidades concretas. Uma árvore, por exemplo, é uma entidade concreta, pois está localizada no espaço e no tempo. Porém, o que é uma entidade abstracta? Temos duas famílias de concepções: a platonista e a lockiana, inspiradas em Platão e Locke, respectivamente. Na concepção platonista, uma entidade abstracta é exactamente como uma entidade concreta, mas sem localização no espaço nem no tempo. Nesta concepção, as entidades abstractas são independentes dos seres humanos, tal como as concretas. Do mesmo modo que os dinossauros, por exemplo, não precisaram dos seres humanos para existir — até porque os seres humanos ainda não existiam — também as proposições não precisam dos seres humanos para existir. Assim, nesta concepção, as proposições são independentes dos seres humanos; a proposição de que os triângulos têm três lados, por exemplo, já era verdadeira muito antes de haver seres humanos ou quaisquer outros agentes cognitivos capazes de a apreender. Esta concepção de proposição enfrenta uma imensa dificuldade: explicar como pode uma entidade abstracta, entendida desse modo, representar seja o que for. Uma entidade abstracta entendida de maneira platonista é exactamente como uma entidade física, mas não é física; por essa razão, herda a dificuldade em explicar como pode uma entidade física representar seja o que for. No caso das entidades físicas mais modestas, como um som ou marca num papel, o triângulo linguístico é esclarecedor: os seres humanos usam coordenadamente uma coisa física com a qual todos têm contacto para falar de árvores, por exemplo. Mas se numa das pontas do triângulo linguístico está uma entidade abstracta entendida em termos platonistas, não se vê muito bem como podem os seres humanos fazer tal façanha, porque não se vê como possam estar em contacto comum com tal coisa. Além disso, os platonistas tendem a defender um triângulo linguístico diferente, o que torna a sua perspectiva ainda mais implausível. Em vez do triângulo linguístico que inclui agentes, marcas e as coisas de que queremos falar com as marcas, os platonistas tiram os agentes do triângulo e pensam que as marcas exprimem essas tais entidades abstractas que são as proposições, tendo estas a capacidade, por si próprias e sem qualquer intervenção de qualquer agente linguístico, o poder para representar coisas. O triângulo linguístico é assim exclusivamente constituído por marcas, as proposições que as marcas exprimem e as coisas de que falam as proposições. Presumivelmente, o defensor desta teoria terá de admitir que as marcas só exprimem proposições porque os agentes as usam para fazê-lo; mas o que caracteriza esta posição é a ideia de que as proposições 23 OCT 2015 42 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO representam por si mesmas a realidade. Seria por isso que as proposições teriam valor de verdade independentemente da existência dos seres humanos. Ora, é muitíssimo difícil explicar como poderia uma proposição representar a realidade sem que os agentes linguísticos a usem com esse fim. Pois imagine-se que a proposição de que os círculos não têm ângulos é verdadeira por si mesma, sem que os agentes linguísticos tenham de usá-la para falar de círculos. Como poderia isso acontecer? Mesmo que o platonista defenda o indefensável — que essa entidade abstracta é, de algum modo, semelhante ao que representa — isso não explicaria o poder de representação que a proposição tem de ter para que possa ter valor de verdade. Isto porque a semelhança não é uma condição necessária nem suficiente para que uma entidade represente outra. Para ver porquê, pense-se em duas folhas brancas de papel A4; são muitíssimo semelhantes entre si, mas não se representam uma à outra. Isto mostra que a semelhança não é condição suficiente da representação. E também não é condição necessária, pois as palavras portuguesas “folha de papel A4” representam perfeitamente bem qualquer folha de papel A4, mas não tem qualquer semelhança com qualquer delas. Consequentemente, o platonista tem uma tarefa difícil pela frente: explicar como pode uma entidade abstracta, por si mesma, representar seja o que for, sem a intervenção de agentes linguísticos. Uma alternativa mais plausível é conceber as proposições como entidades abstractas lockianas. Uma entidade abstracta lockiana não tem existência independente dos seres humanos; é abstracta apenas no sentido em que foi obtida pelos seres humanos por abstracção. Um triângulo concreto é uma figura desenhada num papel, por exemplo; um triângulo abstracto é algo que obtemos considerando aquilo que é comum a todos os triângulos particulares. Os triângulos particulares têm uma dada dimensão e são isósceles ou não, têm uma dada cor e existem num dado momento e não noutro. Os triângulos abstractos, em contraste, representam todos esses triângulos particulares precisamente porque retêm deles apenas o que lhes é comum. Perguntar se um triângulo abstracto é azul ou verde é não entender que essa entidade se limita a representar qualquer triângulo, mas não tem, em si, cor. Deste ponto de vista, a proposição de que os círculos não têm ângulos não existia antes de haver seres humanos com uma linguagem capaz de exprimila. Neste aspecto, a concepção lockiana de proposição é mais plausível do que a platonista. A dificuldade desta concepção é que parece difícil de harmonizar com a ideia de que são as proposições, e não as frases, que são os portadores primários de valor de verdade. Considere-se a proposição de que Sócrates era grego. Em si, a proposição 23 OCT 2015 43 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO resulta apenas de desconsiderarmos todas as diferenças existentes entre as frases “Sócrates era grego”, “Socrates was greek”, etc. Ao desconsiderar todas as diferenças, temos a proposição, obtida por abstracção, de que Sócrates era grego. O que isto significa, a rigor, é que a proposição representa cada uma das frases das quais foi obtida por abstracção. Ora, se a proposição não representa directamente que Sócrates é grego, mas apenas indirectamente, representando todas as frases que representam tal coisa, então são essas frases que são primariamente verdadeiras e não a proposição. Revisão 1. Explique o que é o problema do portador primário de valor de verdade. 2. Distinga o conceito platonista de entidade abstracta do conceito lockiano. 3. Poderá uma entidade abstracta ter poder representacional só por si? Porquê? 4. Do seu ponto de vista, os portadores primitivos de valor de verdade são as proposições platonistas? Porquê? 5. Do seu ponto de vista, os portadores primitivos de valor de verdade são as proposições lockianas? Porquê? 8. Veridadores O problema metafísico da verdade é afinal uma tríade de problemas, o primeiro dos quais é saber qual é o portador primário de valor de verdade. Este primeiro problema diz respeito ao lado esquerdo do truismo; o problema dos veridadores diz respeito ao lado direito: “p” é verdadeira sse p. O truismo exprime a ideia intuitiva de que algo é responsável pela verdade das frases. No caso da frase “Marguerite Yourcenar escreveu A Obra ao Negro”, o que a torna verdadeira é aquela romancista ter escrito aquele romance. Ao que é responsável pela verdade de uma frase chamamos veridador (“truthmaker”, em inglês). Parece inicialmente razoável defender que toda a frase verdadeira tem um veridador. Contudo, como acontece amiúde, uma ideia inicialmente plausível rapidamente se torna problemática. O que dizer da frase “Sócrates não era chinês”? Qual será o seu veridador? Usando este exemplo, o truismo fica com este aspecto: “Sócrates não era chinês” é verdadeira sse Sócrates não era chinês. 23 OCT 2015 44 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Uma razão para aceitar a tese de que toda a frase verdadeira tem um veridador é que isso parece resultar do próprio truismo da verdade. Porém, ao passo que o veridador da frase sobre Yourcenar não levanta perplexidades iniciais, o veridador desta frase acerca de Sócrates deixa-nos desde logo perplexos. No caso da frase sobre Yourcenar, imaginamos algo como um facto, ainda que não saibamos muito bem o que é um facto exactamente. Porém, se fizermos o mesmo no caso de Sócrates temos de imaginar o que parece uma monstruosidade metafísica: um facto negativo. O que seria tal coisa? Uma maneira de responder à dificuldade dos factos negativos é introduzir uma distinção entre frases que são primitivamente verdadeiras e frases que só são derivadamente verdadeiras, defendendo então que são os veridadores das primeiras que desempenham também o papel de ser veridadores das segundas. Assim, a frase “Sócrates não era chinês” seria apenas derivadamente verdadeira porque a sua verdade se infere validamente da verdade da frase “Sócrates era grego”. O veridador desta última frase é Sócrates ter nascido na Grécia; e é este mesmo veridador que é responsável pela verdade de “Sócrates não era chinês”. Em geral, quando uma frase tem um veridador, esse mesmo veridador é responsável por todas as verdades que se inferem validamente da primeira. Por exemplo, o veridador de “p” é também o veridador de “p ou q” porque esta última frase infere-se validamente da primeira.4 Esta resposta aplica-se também aos veridadores das verdades lógicas. Tome-se uma verdade lógica qualquer, como “O Sol é composto de hélio ou não”. Uma vez que as verdades lógicas são verdadeiras aconteça o que acontecer, poderia parecer que não teriam veridadores específicos: qualquer veridador, seja ele qual for, seria responsável pela verdade de qualquer verdade lógica. Uma vez que seria estranho defender que o veridador de “O Sol é composto de hélio ou não” é Sócrates ter bebido a cicuta, seríamos obrigados a abandonar a ideia de que as verdades lógicas têm veridadores. O conceito anterior de verdade primitiva e verdade derivada, porém, permite responder a esta perplexidade: o veridador de “O Sol é composto de hélio ou não” é o Sol ser composto de hélio, dado que a frase “O Sol é composto de hélio” implica que o Sol é composto de hélio ou não. E, se acaso o Sol não fosse composto de hélio mas antes de hortaliça, o veridador daquela verdade lógica seria este facto porque a frase “O Sol é composto de hortaliça” implica que 4 Uma frase qualquer “q” infere-se validamente de “p” quando não é possível que “p” seja verdadeira e “q” falsa. Quando isto acontece, diz-se também que “p” implica “q”. 23 OCT 2015 45 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO o Sol não é composto de hélio, que por sua vez implica que o Sol é composto de hélio ou não. Talvez esta maneira de ver as coisas seja plausível; é, sem dúvida, metafisicamente interessante, pois significaria que, afinal de contas, há realmente verdades mais fundamentais do que outras. Do ponto de vista desta proposta, as verdades mais fundamentais serão aquelas cujos veridadores são responsáveis por muitas outras verdades. Esta maneira de ver as coisas harmoniza-se muitíssimo bem com a nossa experiência na teorização científica e matemática, em que descobrimos que há algumas verdades fundamentais, com base nas quais se consegue explicar adequadamente muitíssimos fenómenos do universo. Vejamos outra dificuldade com respeito aos veridadores: qual seria o veridador de “Pégaso não existe”? Dado que a frase é verdadeira, parece uma vez mais que precisaríamos de um veridador metafisicamente problemático, que seria a inexistência de Pégaso; e agora não podemos dizer, aparentemente, que a verdade desta frase é derivada de outra. Contudo, o que significa exactamente dizer que Pégaso não existe? Pégaso existe, num certo sentido, mas não noutro: é uma entidade ficcional ou mítica, e nesse sentido existe; mas, claro, não existe no mesmo sentido não-ficcional em que William Shatner existe. Se considerarmos que ser uma entidade ficcional implica não ser uma entidade não-ficcional, o veridador de “Pégaso não existe (como entidade não-ficcional)” é o veridador de “Pégaso existe (como entidade ficcional)”: a presença de Pégaso em várias histórias, míticas ou não. Esta resposta, contudo, limita-se a chamar a atenção para o pressuposto da frase original, sem responder ao problema mais profundo: qual é o veridador de frases verdadeiras de inexistência que não envolva uma confusão com existência ficcional? Um exemplo seria “Não há vida em Marte”. A dificuldade seria que o veridador óbvio neste caso parece carecer de especificidade: a inexistência de vida em Marte, se é de todo um facto, é muito geral. A objecção é então que os veridadores deveriam ser, digamos, específicos. A resposta é que não temos de pensar que há veridadores gerais, entendidos primitivamente; estes resultam apenas da conjunção de vários veridadores específicos. Considere-se a frase “Os seres humanos são mortais”; qual é o seu veridador? Num certo sentido, é a mortalidade inescapável de todos os seres humanos; porém, vistas as coisas mais rigorosamente, não precisamos deste veridador geral, desde que tenhamos um veridador para cada uma das frases verdadeiras acerca da mortalidade de cada ser 23 OCT 2015 46 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO humano: “Frank Sinatra é mortal”, “Tomás de Aquino é mortal”, etc. O mesmo aconteceria com a inexistência de vida em Marte: os veridadores de todas as frases como “A entidade tal e tal não tem vida” são responsáveis pela verdade de “Não há vida em Marte”. Revisão 1. O que é um veridador? 2. Qual é a dificuldade com o veridador de “Sócrates não era chinês”? 3. Qual é a resposta dada à dificuldade com o veridador de “Sócrates não era chinês”? 4. Que razão é apresentada para pensar que há verdades mais fundamentais do que outras? 5. Terá a frase “Não há vida em Marte” um só veridador? Porquê? 9. Correspondência Até agora, limitámo-nos a usar um conceito aberto de veridador, entendendo-o como seja o que for que é responsável pela verdade dos portadores primários de valor de verdade. Será que os veridadores são factos? Nesse caso, o que é um facto? Serão os factos o mesmo do que estados de coisas? Mas o que é um estado de coisas? Teremos de deixar estas perplexidades para mais tarde. O nosso objectivo para já é compreender os aspectos fundamentais do problema metafísico da verdade; e um dos aspectos é a ideia de veridador, que esclarecemos suficientemente. Também não sabemos ainda exactamente o que são os portadores primários de valor de verdade: talvez sejam as frases, ou talvez sejam as proposições, as crenças, os pensamentos ou os juízos. O que fizémos foi explorar brevemente estes conceitos porque, uma vez mais, o que nos interessa é esclarecer o problema metafísico da verdade, que estamos agora em condições de formular mais rigorosamente: Que relação existe exactamente entre os portadores primários de valor de verdade (sejam eles o que forem) e os veridadores (sejam eles o que forem)? Este não é apenas o terceiro da tríade de problemas que constitui o problema metafísico; é também o fundamental. O problema dos portadores primários de valor de verdade diz respeito à primeira parte do truismo da verdade, antes do “sse”, dizendo o problema dos veridadores respeito à segunda. O terceiro problema diz respeito à relação entre essas duas partes. Que relação é essa, exactamente? 23 OCT 2015 47 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Uma resposta comum é que se trata de uma relação de correspondência: um portador de valor de verdade é verdadeiro quando corresponde ao seu veridador. Todavia, o que é exactamente esta relação de correspondência? Se concebermos a correspondência mais ou menos como mimetismo, a teoria é inequivocamente falsa. Isto porque basta uma compreensão adequada do conceito de representação para afastar a ideia de mimetismo: para que uma entidade represente outra não é uma condição necessária, nem suficiente, que sejam iguais, parecidas ou sequer estruturalmente idênticas. Duas cadeiras da mesma mobília não se representam uma à outra apesar de serem maximamente semelhantes; e a palavra “cadeira” não tem qualquer semelhança com as cadeiras, mas representa perfeitamente bem as cadeiras. Assim, podemos afastar já qualquer tentação de entender o conceito de correspondência como se fosse uma questão de espelhar a realidade. A relação entre os portadores primários de valor de verdade e os veridadores, seja ela qual for, não tem de ser uma relação de espelhamento; e, mesmo que o fosse, não seria isso que explicaria o fenómeno da verdade. Contudo, parece intuitivo insistir na ideia de correspondência; e o que caracteriza as teorias da verdade como correspondência é a ideia de que é possível desenvolver este conceito de um modo que seja esclarecedor. Vejamos uma dessas tentativas, que devemos a Bertrand Russell. Russell deita mão do conceito de n-tuplo ordenado. Um par ordenado é, como vimos, uma sequência ordenada de duas entidades, que se distingue de um conjunto nãoordenado de duas entidades. Quando duas pessoas conversam, constituem um conjunto não-ordenado de entidades; mas quando duas pessoas esperam a sua vez para serem sequencialmente atendidas, constituem um par ordenado. Um n-tuplo ordenado é apenas uma sequência ordenada de um número qualquer n entidades: um triplo ordenado, ou um quádruplo ordenado, etc. Em matemática, a notação para n-tuplos ordenados é a seguinte: “<Joana, Maria>” representa o par ordenado dessas duas pessoas, que é diferente do par ordenado “<Maria, Joana>”; mas “{Joana, Maria}” representa o conjunto dessas duas pessoas, que é uma sequência não-ordenada, igual ao conjunto representado por “{Maria, Joana}”. A frase “A Joana ama a Maria” é evidentemente diferente de “A Maria ama a Joana”, o que faz pensar que estamos perante uma sequência ordenada. E é precisamente assim que pensa Russell. No primeiro caso, temos um triplo ordenado, <Joana, amar, Maria>: a Joana tem uma certa relação com a Maria, a relação de amá-la. No segundo caso, claro, temos um triplo ordenado diferente, <Maria, amar, Joana>. Estes triplos 23 OCT 2015 48 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO ordenados são constituídos por aquelas duas pessoas, relacionadas pelo amor. O amor é uma relação, como ser irmão. Russell não pensa que o triplo ordenado <Maria, amar, Joana> tenha valor de verdade, pois esse triplo ordenado não representa o facto de a Maria amar a Joana; esse triplo ordenado é o próprio facto de a Maria amar a Joana. O portador primário de valor de verdade, do ponto de vista de Russell, é uma crença que alguém tem acerca de algo. O objecto da crença, contudo, não é, do seu ponto de vista, uma proposição ou uma entidade qualquer representacional: o objecto da crença é a própria realidade. A ideia de que as nossas crenças são acerca da realidade é muito intuitiva. Afinal, é razoável pensar que a crença de que a Maria ama a Joana é acerca da Maria, da Joana e do amor entre elas, e não acerca de uma entidade representacional qualquer, como uma proposição ou outra entidade deste género que fosse o conteúdo da crença. Todavia, este ponto de vista levanta imediatamente uma dificuldade: como poderíamos nós ter crenças falsas, se o objecto das crenças é a própria realidade? Por exemplo, imagine-se que a Maria não ama a Joana; como poderá alguém ter a crença falsa de que ela a ama? O objecto da crença, que é um triplo ordenado, <Maria, amar, Joana>, não existe; mas como poderia existir uma crença sem objecto? Seria como pensar que poderia existir um irmão que não tem irmãos. A crença é uma relação entre um agente que tem a crença e o objecto da crença; sem objecto, ou sem agente, não há crença. Russell, contudo, defende que o objecto da crença de que a Maria ama a Joana não é aquele triplo ordenado, que realmente não existe, mas antes a própria Maria, a relação de amar, e a Joana. Estes são os objectos da crença; mas a crença não se limita a ter objectos: tem também uma estrutura. A estrutura da crença que alguém tem de que a Maria ama a Joana é um quíntuplo ordenado: <Alguém, crença, Maria, amar, Joana>. Precisamente porque a crença tem uma estrutura, é diferente da crença de que a Joana ama a Maria, sem que precisemos de admitir que o objecto da crença é um triplo ordenado. E quando é aquela crença falsa? Quando a sua estrutura não corresponde à estrutura da realidade; ou seja, quando o triplo ordenado <Maria, amar, Joana> não existe, apesar de existir a Maria, e a Joana, assim como a relação de amor. Assim, o veridador da crença não é apenas os objectos da crença; é os objectos da crença juntamente com a estrutura entre eles. 23 OCT 2015 49 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Uma dificuldade da teoria de Russell é que significa que não podemos ter crenças acerca de coisas que não existem; contudo, é óbvio que podemos ter crenças acerca de marcianos. Como responder a esta dificuldade? A resposta é que nem todas as crenças que parece que são directamente acerca de coisas o são de facto. As crenças acerca de coisas que não existem são descritivas, e os termos dessas descrições existem. Por exemplo, a crença de que os marcianos são simpáticos tem como objectos a relação de simpatia, estar localizado em Marte e ser um organismo inteligente. Todas estas coisas existem, mas não estruturadas do modo como a crença as estrutura: há pessoas simpáticas e por isso a simpatia existe, há rochas em Marte, e há organismos inteligentes; o que não há é organismos inteligentes em Marte que sejam simpáticos. Do ponto de vista de Russell, o truismo da verdade é algo enganador, pois sugere que as frases em si — ou as proposições — têm valor de verdade; ao invés, pensa ele, o que tem valor de verdade é essa relação peculiar entre os agentes linguísticos e o mundo: a crença. Um truismo menos enganador seria então o seguinte: Se aCvp, então p. Ou seja: se um agente tem uma crença verdadeira de que p, então p. Não temos uma bicondicional precisamente porque Russell quer evitar a ideia, que considera obviamente falsa, de que a existência de veridadores é suficiente para que existam verdades. Quando não havia qualquer organismo na Terra, por exemplo, o Sol já era composto de hélio, mas ninguém tinha essa crença e por isso não era verdadeiro que o Sol era composto de hélio (apesar de ser verdadeiro hoje que nessa altura o Sol era composto de hélio). Assim, o truismo com que começámos o nosso estudo revelou-se não apenas profícuo para esclarecer o conceito de verdade, mas talvez… literalmente falso. Revisão 1. Qual é a ideia central das teorias da verdade como correspondência? 2. Será o espelhamento ou mimetismo entre os portadores primários de valor de verdade e os veridadores que explica o que é a verdade? Porquê? 3. O que é um n-tuplo ordenado? Dê exemplos esclarecedores. 4. Por que razão pensa Russell que o objecto da crença de que a Maria ama a Joana não pode ser o triplo ordenado <Maria, amar, Joana>? 23 OCT 2015 50 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO 5. Por que razão, do ponto de vista de Russell, o veridador da crença de que a Joana ama a Maria não é apenas a Joana, a Maria e a relação de amar? 6. Como explicaria Russell a existência de crenças acerca de coisas que não existem? 7. Por que razão é o truismo da verdade enganador, do ponto de vista de Russell? 10. Críticas e alternativas As teorias da verdade como correspondência, de que vimos um exemplo, são alvo de várias críticas, que deram origem a teorias alternativas. Vejamos brevemente algumas dessas críticas e dessas alternativas, começando por estas últimas. Na teoria da verdade como coerência, o conceito central para compreender a verdade não é qualquer correspondência entre as nossas representações da realidade e a realidade, mas antes a coerência entre as nossas representações. Assim, em vez de nos perguntarmos se a nossa crença de que Eça era humano era verdadeira pensando na realidade que supostamente corresponde a tal crença, devemos antes perguntar se essa crença é coerente com outras crenças nossas. A verdade é pura e simplesmente o que obtemos quando temos crenças coerentes. A vantagem desta teoria é usar um conceito muitíssimo menos problemático do que o de correspondência: o conceito de coerência, que é o mesmo que consistência, no sentido lógico do termo. Um grupo de crenças é consistente se e só se é logicamente possível que sejam todas verdadeiras. A teoria pragmatista da verdade é a ideia de que a verdade é seja o que for que funcione na prática. Assim, em vez de compararmos as nossas representações com a realidade, digamos, para ver se são verdadeiras, ou em vez de as compararmos entre si para vermos se são consistentes, limitamo-nos a ver se funcionam na prática; se funcionam, são verdadeiras. Uma crença funciona na prática quando nos permite ser bemsucedidos ao fazer coisas com base nessa crença. Uma crença é verdadeira se e só se funciona na prática. Estas duas teorias visam evitar duas críticas à teoria da correspondência. A primeira é que não temos maneira alguma de sair do nosso sistema de representações da realidade para as comparar com a própria realidade. A segunda é que as nossas representações nunca podem corresponder exactamente à realidade, pelo que se a sua verdade depende disso, nunca podem ser realmente verdadeiras. Tanto a teoria da coerência como a teoria pragmatista evitam muito facilmente estas dificuldades. Na teoria da coerência, não se trata de sair do nosso sistema de representações para as comparar com a realidade, mas antes de comparar diferentes representações entre si; e como não se trata de fazer 23 OCT 2015 51 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO corresponder representações à realidade, a segunda dificuldade não existe. Também na teoria pragmatista não se trata de sair do nosso sistema de representações para ver se correspondem à realidade, mas antes de agir sobre a realidade; e não se trata de fazer corresponder as nossas crenças à realidade, mas antes de ter crenças que funcionam na prática. Eis três objecções a que a teoria da verdade como coerência tem de responder. A primeira é que não parece possível definir o conceito de coerência sem usar o conceito de verdade: um grupo de frases são coerentes se e só se podem ser todas verdadeiras. Assim, esta teoria é inadequada porque depende de um conceito de verdade prévio, independente do conceito de coerência. A segunda objecção é que nada impede um conjunto de frases coerentes de serem todas falsas. Por exemplo, uma pessoa que pense que a Terra está imóvel e que há monstros em Marte tem um conjunto coerente de crenças, mas ambas são falsas. Claro que o defensor da teoria da coerência limita-se a dizer que tem em mente a totalidade das nossas crenças, e não apenas um pequeno grupo delas. Assim, a crença de que a Terra está imóvel, por exemplo, ainda que seja coerente com a crença de que há monstros em Marte, é incoerente com outras crenças que temos acerca da Terra e da melhor maneira de explicar o movimento dos corpos celestes; e é por isso que é falsa. Esta resposta, contudo, é inadequada porque pressupõe que as nossas crenças não podem ser todas falsas, o que é falso se a verdade for apenas a coerência entre crenças. Contudo, é a terceira das críticas que é a mais devastadora: terá o defensor desta teoria compreendido sequer o problema metafísico da verdade? O problema metafísico da verdade não é o problema epistemológico do critério de verdade; este último é o problema de especificar o critério que nos permite saber quando uma crença é verdadeira. O defensor da teoria da coerência parece confundir as coisas e pensar que se trata de fornecer um critério de verdade; como ele pensa que o critério não pode ser a comparação das nossas crenças com a própria realidade, defende então que o critério é a comparação meramente lógica entre crenças. Todavia, o que estava em causa desde o início não era um critério para que saibamos quando as nossas crenças são verdadeiras ou falsas, mas antes o que as torna verdadeiras ou falsas, quer nós saibamos quer não que são verdadeiras. Por sua vez, a teoria pragmatista da verdade tem de responder a duas objecções. A primeira é semelhante à última objecção apresentada à teoria da verdade como coerência: o seu defensor parece ter confundido o problema metafísico da verdade com o problema epistemológico da verdade. É certamente razoável pensar que um critério falível mas 23 OCT 2015 52 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO adequado de verdade é a sua verificação prática: as nossas crenças sobre mecânica automóvel revelam-se falsas quando o carro não anda. O critério é falível porque há crenças falsas que funcionam na prática: podemos fazemos pontes que não caem sem saber física newtoniana, como faziam os romanos da antiguidade, e tendo até crenças mágicas falsas sobre o que sustenta as pontes. Contudo, o problema metafísico da verdade não dizia respeito desde o início ao critério de verdade ou à nossa verificação da verdade, mas antes ao que faz uma crença verdadeira ser verdadeira. A segunda crítica é que o pragmatista parece ver as coisas ao contrário, afirmando que é porque as nossas crenças funcionam na prática que são verdadeiras, ao passo que parece mais razoável afirmar que é porque são verdadeiras, ou pelo menos parcialmente verdadeiras, que funcionam na prática — o que significa que é a verdade que explica o que funciona na prática, e não o que funciona na prática que explica a verdade. Além disso, tanto a teoria da verdade como coerência como a teoria pragmatista parecem partir de críticas inadequadas à teoria da verdade. A primeira dessas críticas, como vimos, é a ideia de que segundo a teoria da correspondência teríamos de comparar as nossas representações da realidade com a própria realidade para saber se são verdadeiras; mas como obviamente não podemos sair do nosso sistema de representações para as comparar com a realidade, algo estaria errado com a ideia de correspondência. Todavia, esta crítica é inadequada porque a teoria da correspondência não pretende dizer-nos quando sabemos que uma crença é verdadeira, mas antes quando é verdadeira, porquê e como. A segunda crítica é menos obviamente inadequada porque não se baseia numa confusão entre metafísica e epistemologia. A crítica seria que nunca poderá haver uma correspondência exacta entre as nossas representações da realidade e a realidade. Esta objecção não é epistemológica; trata-se de insistir que nunca poderá uma crença corresponder à realidade. A ideia é que a crença de que a água é H2O nunca poderá corresponder à água porque a água é molhada, é composta de oxigénio e de hidrogénio, e a crença não é qualquer uma dessas coisas. Todavia, o conceito de correspondência que esta crítica pressupõe é mero mimetismo, coisa que uma teoria da correspondência não tem de aceitar. Na verdade, qualquer concepção adequada da representação tem de rejeitar a ideia de que o mimetismo seja uma condição suficiente ou necessária da representação, como vimos. Vejamos uma crítica mais promissora à teoria da verdade como correspondência. A ideia de uma teoria metafísica da verdade é esclarecer o predicado “verdadeiro”: quando um portador de valor de verdade é verdadeiro, o que está acontecendo? Na teoria da 23 OCT 2015 53 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO correspondência, a resposta seria: esse portador corresponde à realidade porque esta é como o portador diz que é. Por mais que a teoria inclua pormenores interessantes, como no caso da teoria de Russell, o conceito filosófico que queríamos esclarecer — a verdade — nunca é adequadamente esclarecido precisamente porque todos os outros conceitos usados são menos elementares ou igualmente problemáticos. No máximo, conseguimos dizer aproximadamente o que já sabíamos sobre o conceito de verdade, mas de uma maneira um pouco mais técnica. Isso é particularmente visível no caso de Russell: uma crença é verdadeira quando, além de ser acerca do que existe, representa as relações realmente existentes entre essas coisas. Todavia, isto não esclarece sobremaneira a razão pela qual uma crença é verdadeira; limita-se a repetir o truismo aristotélico: é verdadeira quando representa as coisas como elas são. É devido a críticas deste género que surgiram em meados do século XX abordagens deflacionistas do problema metafísico da verdade. Deste ponto de vista, nenhuma teoria filosófica poderá fazer um trabalho interessante quanto ao problema metafísico da verdade porque nada há de metafisicamente especial para esclarecer que o próprio truismo da verdade não esclareça já. Em vez de haver um suposto problema metafísico, o deflacionista pensa que há apenas uma prática linguística para ser clarificada: a prática de atribuir discursos ou crenças verdadeiras a outras pessoas. O papel que teria o conceito de verdade seria tão-somente esse e outros semelhantes, de modo que procurar um problema metafísico na verdade seria um pouco como procurar um problema metafísico no uso das aspas. O deflacionista que defende uma teoria descitacional insiste, precisamente, que nada há no conceito da verdade a não ser o que é directamente revelado no truismo da verdade, no qual tiramos as aspas de “p”. Um indício favorável a esta teoria é que tanto faz dizer 1 como 2: 1. A competência entre políticos é rara. 2. A frase “A competência entre políticos é rara” é verdadeira. O deflacionista que defende a teoria descitacional sustenta que esta equivalência entre 1 e 2 mostra que o predicado “é verdadeiro” é prescindível na maior parte dos contextos, servindo apenas para fazer comentários acerca do que os outros afirmam, como no seguinte caso: 3. De tudo o que a presidente afirmou, quase nada era verdadeiro. 23 OCT 2015 54 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Ora, um conceito que na maior parte dos contextos não precisa de ser usado e que pode ser eliminado sem perdas e sem precisarmos de usar outro conceito no seu lugar não desempenha certamente qualquer papel importante na nossa teorização científica, ainda que tenha importantes papéis sociais e morais: basta pensar na importância de não mentir, não enganar os outros e relatar as coisas tal como pensamos que são. Revisão 1. Caracterize as teorias da verdade como coerência. 2. Qual é a vantagem principal das teorias da verdade como coerência? 3. O que é a consistência? 4. Caracterize as teorias pragmatistas da verdade. 5. Explique quais são as críticas às teorias da correspondência que as teorias da coerência e as pragmatistas evitam. Como evitam elas essas críticas? 6. Quais são as objecções às teorias da verdade como coerência? 7. Quais são as objecções às teorias pragmatistas da verdade? 8. Explique qual é a crítica às teorias da correspondência que as teorias deflacionistas visam evitar. 9. Caracterize as teorias deflacionistas da verdade. 10. O que é a verdade? Estudo complementar O conceito de erro categorial foi introduzido por Gilbert Ryle no primeiro capítulo de The Concept of Mind, mas tornou-se tão comum que hoje é registado em vários dicionários de língua inglesa. A citação de Saramago foi retirada da revista Ler. Os conceitos lógicos de modus tollens, implicação e validade dedutiva surgem em vários livros introdutórios de lógica, e também na Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, org. de João Branquinho et al. O paradoxo da pergunta surgiu num pequeno artigo de Ned Markosian, “O Paradoxo da Pergunta”. No primeiro capítulo de Linguagens da Arte, Nelson Goodman esclarece o conceito de representação em geral, ao esclarecer o conceito mais específico de representação pictórica realista. No capítulo “Uma Rosa com Outro Nome”, esclareço alguns aspectos quanto à natureza da linguagem. Na mencionada Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos encontramos o artigo “Proposição, Teorias da” de Guido Imaguire, com ampla informação histórica e conceptual, assim como o artigo “Verdade, Teorias da”, de 23 OCT 2015 55 PROBLEMAS DE METAFÍSICA — DESIDÉRIO MURCHO Paul Horwich. Trenton Merricks apresenta no artigo “Veridador” algumas das ideias sobre este conceito. Finalmente, no capítulo “Verdade e Falsidade”, Russell apresenta o seu esboço de uma teoria da verdade como correspondência. Referências Branquinho, João; Murcho, Desidério; Gomes, Nelson Gonçalves, orgs. (2006) Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes. Goodman, Nelson (1976) Linguagens da Arte. Trad. Vítor Moura e Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 2006. Markosian, Ned (1996) “O Paradoxo da Pergunta”, trad. Desidério Murcho. Disputatio, 1. Merricks, Trenton (2009) “Veridador”, trad. Vítor Guerreiro, Crítica, 5 de Julho de 2010, http:// criticanarede.com/veridador.html. Murcho, Desidério (2011) “Uma Rosa com Outro Nome”, in Sete Ideias Filosóficas Que Toda a Gente Deveria Conhecer. Lisboa: Bizâncio. Newton-Smith, W. H. (1985) Lógica: Um Curso Introdutório. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1998. Russell, Bertrand (1912) “Verdade e Falsidade”, in Os Problemas da Filosofia. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Edições 70, 2008. Ryle, Gilbert (1949) The Concept of Mind. Chicago: University of Chicago Press, 2000. Saramago, José (2010) “Todos os Nomes”. Ler 93 Julho/Agosto 2010. 23 OCT 2015 56