2. Verdade
Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto
1. “A verdade não existe”
Segundo o Evangelho de João (14:6), Jesus terá declarado: “Eu sou o caminho, a verdade
e a vida”. Esta afirmação é muito estranha, pois mesmo uma divindade parece
insusceptível de ser, literalmente, a verdade. Imagine-se o que seria Platão dizer que é o
número quatro, ou a cor azul; a reacção natural e apropriada seria pensar que a afirmação
não deve ser entendida literalmente, pois parece um erro categorial pensar que alguém
possa ser um número, ou uma cor. Do mesmo modo, é um erro categorial pensar que uma
ideia possa literalmente comer batatas fritas, ou pintar-se de azul. Cometemos um erro
categorial quando pressupomos que uma entidade pertence a uma categoria a que de
facto não pertence. Há uma diferença radical entre pensar que uma ideia é banal quando
afinal é interessante, e pensar que uma ideia se pintou de azul. No segundo caso,
cometemos um erro categorial, ao passo que no primeiro estamos apenas enganados.
A afirmação atribuída a Jesus, entendida literalmente, parece um erro categorial
porque uma pessoa, mesmo que divina, parece tão incapaz de ser a verdade quanto uma
árvore, ou um seixo da praia. Talvez Jesus quisesse apenas dizer, o que parece mais
plausível pelo contexto, que por meio dele e com a sua ajuda os seres humanos poderiam
descobrir a verdade mais importante acerca de si próprios e do universo; nomeadamente,
que foram criados por Deus, que tem um plano emocionalmente reconfortante para a
humanidade. Neste caso, a afirmação de Jesus é bastante prosaica, ainda que
verbalmente estrondosa.
Há uma tendência nas religiões para sacralizar a verdade, o que confunde mais do
que esclarece. De um ponto de vista religioso, a verdade parece sobrenatural, eterna e
muitíssimo além das nossas vidas comuns. Uma pessoa que continue a aceitar algo como
esta concepção religiosa de verdade ao mesmo tempo que rejeite a religião, tende por isso
a rejeitar a única concepção de verdade de que tem conhecimento. O romancista José
Saramago parece dar voz a esta perspectiva:
PROBLEMAS DE METAFÍSICA
— DESIDÉRIO MURCHO
“A verdade não existe. Se a verdade existisse, teria de existir desde sempre e então
ter-nos-íamos apercebido de que, além das mudanças de todo o tipo que
acontecem, e continuarão a acontecer, haveria qualquer coisa que se manteria
imutável, constante, e essa seria a verdade. Não há nenhuma verdade dessas; há
muitas verdades, e têm de lutar umas com as outras e depois logo se vê o que
resulta. Resultará uma ou outra verdade, mas serão sempre verdades transitórias,
que abrem ou fecham caminhos. A verdade com maiúscula não é coisa que exista”.
(Saramago, “Todos os Nomes”, p. 42)
Encontramos aqui dois aspectos iniciais surpreendentes, o primeiros dos quais é a
presença, ainda que não muito explícita, de uma forma argumentativa conhecida como
modus tollens: Se a verdade existisse, seria imutável.
Mas não há uma verdade imutável.
Logo, a verdade não existe.
Qualquer argumento que tenha esta forma é válido, o que significa que nenhum deles terá
premissas verdadeiras e conclusão falsa. Isto significa que se as premissas de Saramago
forem verdadeiras, a conclusão também o será.
O que há de surpreendente é alguém defender que não há verdades usando um
argumento. Isto porque os argumentos só estabelecem a conclusão desejada se forem
sólidos. Ora, um argumento só é sólido quando, além de válido, só tem premissas
verdadeiras. Sem verdades não há argumentos sólidos e sem argumentos sólidos não há
argumentos que estabeleçam seja o que for. Consequentemente, o primeiro aspecto
surpreendente no raciocínio de Saramago é que ele tem de pressupor que há verdades
para que o seu modus tollens possa estabelecer a conclusão desejada; mas se houver
verdades, a conclusão do modus tollens é falsa. Ficamos assim na seguinte situação: se
não houver realmente verdades, Saramago não tem nem pode ter um argumento sólido a
favor dessa ideia; mas se ele tiver um argumento sólido a favor dessa ideia, essa mesma
ideia é falsa. Em qualquer dos casos, Saramago não nos oferece uma boa razão para
aceitar que não há verdades.
O segundo aspecto inicial surpreendente é Saramago começar por afirmar que a
verdade não existe, afirmando logo de seguida que há muitas. Isto é surpreendente porque
é logicamente impossível haver muitas verdades (dez mil, por exemplo) e não haver uma
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
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verdade. O que Saramago queria talvez dizer, mas não disse, é que não há apenas uma
verdade; há várias. Porém, mesmo nesta interpretação a sua posição não é plausível. Pois
imaginemos que há apenas três verdades: “A Ana está na biblioteca”, “O Artur está na
biblioteca” e “O Paulo está na biblioteca”. Seria este um caso em que não há apenas uma
verdade, mas várias? Não, pois a partir do momento em que temos essas três verdades,
temos outra verdade equivalente a elas: “A Ana, o Artur e o Paulo estão na biblioteca”. A
conjunção das três verdades resulta numa só verdade equivalente às três anteriores, o que
parece mostrar que é logicamente impossível haver várias verdades sem que ao mesmo
tempo exista uma só verdade equivalente a todas as outras. Contudo, este é apenas um
pormenor talvez pouco importante; afinal, tudo depende de como distinguimos as
verdades entre si, e não é óbvio que critério poderemos usar para dizer que estamos
perante uma só verdade, ou várias.
Outra ideia mais promissora de Saramago, e que tem uma linhagem filosófica
antiga, é que a verdade só poderia existir caso fosse imutável ou eterna. A ideia subjacente
é que a mudança constante de que fala Luís de Camões seria, de algum modo,
incompatível com a existência da verdade:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Camões tem em mente a mudança constante que todos observamos. E a ideia de
Saramago é que esta mudança constante impede a existência da verdade: mudam-se os
tempos, poderíamos dizer, muda-se a verdade, no sentido em que o que ontem era
verdadeiro hoje já não o é. Será esta ideia razoável?
Considere-se o facto de estar chovendo no dia 22 de Janeiro de 2013 em Ouro
Preto. Este é um acontecimento transitório, que faz parte da mudança constante. No dia
seguinte, dia 23, já não está chovendo em Ouro Preto. A ideia é, assim, a seguinte: é
verdadeiro que está chovendo no dia 22, mas já não é verdadeiro que está chovendo no
dia 23. Por isso, não há apenas uma verdade, há várias — todas transitórias, que
contrastam com as verdades eternas, fixas, imutáveis, que seriam as verdades genuínas,
talvez religiosas. Será esta uma maneira adequada de entender as coisas?
Há razões para pensar que não. Pois veja-se o que acontece quando alguém
profere a palavra “eu”. Como é evidente, a mesma palavra refere diferentes pessoas.
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
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Quando Eça diz “eu” está falando de Eça, mas quando Saramago diz “eu”, não está
falando de Eça, mas antes de Saramago. Não seria particularmente perspicaz afirmar que
Eça é Saramago porque a mesma palavra é usada ora para falar de um ora de outro. O
mesmo acontece com a frase “Está chovendo”. Proferida em Ouro Preto no dia 22 de
Janeiro de 2013, quer dizer que está chovendo nesse dia e nesse local; não quer dizer que
está chovendo no dia 23, por exemplo. A mesma frase, proferida no dia 23, quer dizer que
está chovendo no dia 23 e não no 22. O que isto significa é que temos de distinguir
cuidadosamente as frases do que as frases exprimem no contexto em que são proferidas.
Tanto há frases diferentes que exprimem a mesma verdade (ou a mesma falsidade), como
há frases iguais que exprimem verdades diferentes (ou falsidades diferentes). Por exemplo,
as frases “Saramago foi um romancista” e “Saramago was a novelist” são claramente
diferentes, mas exprimem a mesma verdade; e a frase “Sou um romancista” tanto exprime
uma verdade quando é proferida por Saramago como uma falsidade quando é proferida
por Picasso.
Assim, quando parece que uma mesma frase ora é verdadeira ora é falsa, o que
tornaria a verdade instável, digamos, o que se passa afinal é que a verdade é perfeitamente
estável, se olharmos para o que as palavras dizem em vez de vermos apenas as próprias
palavras. Se choveu no dia 22 de Janeiro de 2013 em Ouro Preto, esta verdade não é de
modo algum anulada devido ao facto de não chover no dia 23, nem devido a qualquer
outro facto posterior ou anterior. Que nesse dia choveu em Ouro Preto é algo que não irá
sofrer qualquer mudança. Para que a mudança seja uma ameaça à verdade é preciso que
se faça uma confusão linguística entre o que afirmamos com as nossas palavras e as
próprias palavras. Isto significa pelo menos que não é óbvio que a mudança seja
incompatível com verdades imutáveis.
Todavia, talvez Saramago tenha em mente uma ideia diferente no que respeita à
mutabilidade das verdades. Talvez pense que a verdade de que a Terra se move é
transitória porque houve um tempo em que não era tida como verdadeira. Para nós,
poderia Saramago dizer, a Terra move-se, mas para o papa que condenou Galileu não se
movia. Será esta perspectiva defensável?
Há razões para pensar que não, porque é uma confusão entre metafísica e
epistemologia, ou seja, entre o que é verdadeiro e o que as pessoas pensam que é
verdadeiro. Se for verdadeiro que a Terra se move, as pessoas que acreditavam que estava
imóvel não acreditavam numa verdade, mas antes numa falsidade, sem o saberem. E se for
verdadeiro que a Terra está imóvel, as pessoas que hoje acreditam que não está imóvel
acreditam numa falsidade, pensando erradamente que é uma verdade. Caso não se aceite
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esta banalidade acerca das pessoas, teremos de admitir que as pessoas são infalíveis,
coisa que obviamente não são. Isto porque se for realmente verdadeiro seja o que for que
as pessoas pensam que é verdadeiro, então as pessoas nunca poderão estar enganadas.
Como é evidente que as pessoas se enganam muitas vezes, esta ideia é inequivocamente
falsa. Esta confusão entre metafísica e epistemologia está presente quando se diz que para
o papa que condenou Galileu, a Terra estava imóvel. Tudo o que isto quer dizer é que o
papa tinha essa convicção; mas a expressão é enganadora porque parece dizer que a
imobilidade da Terra é relativa ao papa.
Em conclusão, Saramago queria dizer que há diversas convicções — e não diversas
verdades — e que as convicções das pessoas mudam com o tempo, pensando elas mais
tarde que é falso o que antes pensavam que era verdadeiro e vice-versa. Daí que
Saramago fale metaforicamente das verdades que lutam entre si; o que ele tem em mente
é que diferentes pessoas defendem diferentes convicções, e depois logo se vê, com o
passar do tempo, quem tinha razão. Contudo, isto significa que não está em causa a
transitoriedade da verdade; o que está em causa é a transitoriedade das nossas
convicções. Ora, a transitoriedade das nossas convicções não implica que as verdades são
transitórias, a menos que sejamos infalíveis.
Saramago não parece, pois, oferecer-nos uma perspectiva promissora sobre a
verdade. Oferece-nos ele uma perspectiva razoável quanto à mutabilidade das convicções
humanas? A resposta é que não, pois apesar de algumas convicções humanas terem
mudado, nem todas mudaram. Por exemplo, as convicções humanas acerca da aritmética
e da geometria bidimensional não sofreram qualquer mudança pelo menos desde o tempo
de Euclides; e muitas das convicções astronómicas fundamentais não sofreram qualquer
mudança desde que Galileu olhou com olhos de ver pelo telescópio e raciocinou com
cuidado. Além disso, certamente que todos os seres humanos, desde a pré-história, têm a
convicção de que o fogo é quente e o gelo frio. Apesar de ser verdadeiro que muitas
convicções humanas sofreram mudanças ao longo do tempo, é inválido concluir daí que
todas mudam, como Saramago parece sugerir.
Revisão
1. O que é um erro categorial? Dê exemplos elucidativos.
2. Explique qual é a dificuldade de tentar concluir com um raciocínio sólido que não há
verdades.
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3. Se nenhum raciocínio sólido puder estabelecer que não há verdades, de que outro modo se
poderia estabelecer essa ideia adequadamente?
4. Explique como as verdades da geometria contrariam a ideia de que todas as verdades estão
em mudança constante.
5. É a existência de verdades incompatível com a mudança constante de que fala Luís de
Camões? Porquê?
6. É a existência de verdades incompatível com a mudança constante de convicções
humanas? Porquê?
7. “A verdade é relativa”. Concorda? Porquê?
8. Concorda com Saramago? Porquê?
2. A verdade fundamental
A ideia de verdades fundamentais das quais todas as outras resultam é razoavelmente bem
conhecida em filosofia pelo menos desde a Grécia da antiguidade. Em algumas áreas,
como a geometria e a lógica, assim como na física, conseguimos deduzir todas as
verdades dessa área de um conjunto bastante restrito de verdades iniciais, a que por vezes
se chama axiomas ou leis. Por exemplo, na lógica proposicional clássica temos um número
infinito de verdades e validades lógicas; mas partindo apenas de algumas validades (dez,
nas teorias comuns de dedução natural) conseguimos demonstrar todas as outras. Do
mesmo modo, se todas as verdades da física resultarem de um punhado apenas de leis
fundamentais, então estas leis constituem as verdades fundamentais daquela área.
Uma boa teoria não é apenas uma colecção avulsa de um número imenso de
verdades; é um conjunto limitado de verdades fundamentais, das quais resultam todas as
verdades desse domínio. Teorizar é isso mesmo, em grande parte: procurar um conjunto
limitado de verdades fundamentais que explicam e unificam vários fenómenos
aparentemente díspares. Isto significa que esse conjunto limitado de verdades não pode
ser a mera conjunção de várias verdades díspares. Por exemplo, imagine-se que num dado
domínio conhecemos um milhão de verdades particulares, sobre cada fenómeno particular.
Do ponto de vista puramente lógico, a partir do momento em que temos um milhão de
verdades, temos também uma só verdade, que é a conjunção de todas elas. A teoria que
resulta desta conjunção, contudo, não tem qualquer interesse porque nem explica nem
unifica esse milhão de verdades com base num punhado de verdades fundamentais.
Consequentemente, se o problema metafísico da verdade fosse uma questão de
encontrar uma só verdade fundamental acerca de toda a realidade da qual todas as outras
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resultassem, essa verdade não seria a mera conjunção de milhões de verdades particulares
acerca dos vários aspectos da realidade. Ao invés, seria uma verdade interessante, da qual
todas as outras verdades resultariam, unificando-as e explicando-as. Porém, há duas boas
razões para pensar que essa verdade não existe.
Imagine-se que temos uma verdade fundamental, “p”, da qual resultam todas as
outras, incluindo “q”. Mas o que é isso de “q” resultar de “p”? Se não for magia, só poderá
ser porque “p” implica “q”, o que é o mesmo que dizer que, partindo da primeira, se deduz
validamente a segunda. Ora, isto significa que afinal não há apenas uma verdade, “p”, da
qual resulta outra verdade, “q”; há uma segunda verdade fundamental:
“p” implica “q”.
Esta verdade é tão fundamental quanto “p”, pois sem ela nenhumas outras verdades
resultarão de “p”, pelo que esta deixaria de ser fundamental no sentido indicado. Em
conclusão: não parece logicamente possível haver apenas uma verdade da qual todas as
outras resultem. Talvez exista um grupo muitíssimo restrito de verdades fundamentais das
quais as outras resultem, como acontece na física e na lógica, mas não uma única.
Eis uma segunda razão, mais indirecta e pitoresca, para pensar que não poderá
haver uma só verdade fundamental da qual todas as outras resultem. Imagine-se que nos
aparece uma divindade omnisciente e totalmente honesta, prometendo responder a
qualquer pergunta que tenhamos — mas só uma. Ficamos maravilhados com a
oportunidade, mas imediatamente nos damos conta de que não é fácil saber qual será a
melhor pergunta a fazer. Qual será a pergunta mais informativa? Se perguntarmos algo
como “Qual é aquela verdade fundamental da qual todas as outras resultam?”, a resposta
talvez seja ininteligível; ou, mesmo que não seja ininteligível, talvez sejamos incapazes de
derivar dela todas as outras verdades — e de que vale uma verdade fundamental se não
conseguirmos ver como dela resultam todas as outras? Além disso, se não existir tal
verdade fundamental, a divindade irá responder apenas que não há tal verdade.
Dada a nossa dificuldade, dizemos à divindade que precisamos de pensar sobre
qual será a melhor pergunta a fazer. Amavelmente, ela aceita voltar no dia seguinte para
responder então à pergunta que decidirmos fazer. Nas vinte e quatro horas mais atarefadas
da nossa vida, consultamos enciclopédias, falamos com os mais eminentes filósofos,
cientistas e matemáticos, com os nossos amigos e familiares, tentando encontrar a melhor
pergunta a fazer. Algumas pessoas dizem que nunca conseguiremos encontrar a melhor
pergunta, sendo por isso mais avisado perguntar como se consegue ter governantes que
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sejam a um tempo realmente competentes e honestos, ou se será melhor comprar um
computador Windows ou Apple; outras dizem-nos que o melhor é realmente perguntar qual
é o sentido da vida, ou o que é a verdade, só porque é divertido ver qual será a resposta,
mesmo que seja ininteligível. Quando o prazo está prestes a acabar, um talentoso
estudante de lógica dá-nos então uma sugestão engenhosa: Qual é aquele par ordenado cujo primeiro membro é a melhor pergunta a fazer, e
cujo segundo membro é a resposta a essa pergunta?
Ficamos entusiasmados porque, no fundo, fazemos duas perguntas numa: perguntamos
qual é a melhor pergunta a fazer, coisa que obviamente não fomos capazes de encontrar, e
ao mesmo tempo qual é a resposta. Além disso, o conceito lógico de par ordenado
certamente que não oferecerá dificuldades a uma divindade omnisciente.2 Aliviados e
entusiasmados, aguardamos tranquilamente o regresso da divindade, tomando
tranquilamente um Martini. Quando ela chega, pergunta-nos se já temos a pergunta pronta.
Dizemos que sim, com uma ponta de orgulho, e fazemo-la. A divindade olha para nós com
um olhar misericordioso, e responde:
É essa pergunta que acaba de me fazer, sendo a resposta esta mesma.
E, puff!, desaparece.
Esta história divertida parece mostrar que não há uma pergunta maximamente
informativa. Isto porque se a pergunta original for a mais informativa a fazer, então não é a
mais informativa a fazer. E se não for a mais informativa a fazer, então é a mais informativa
a fazer. Uma vez que isto é impossível, isso significa que não há uma pergunta
maximamente informativa.
Por que razão se a pergunta que fizemos for a mais informativa a fazer, então não é
a mais informativa? Pela simples razão de que se for a mais informativa a fazer, então a
resposta correcta é a que a divindade nos deu; mas como esta resposta não é informativa,
2
Um par ordenado é apenas uma sequência ordenada de duas coisas quaisquer, distinguindo-
se de um mero conjunto não-ordenado de duas coisas. Por exemplo, quando aguardamos a nossa vez
para sermos atendidos no banco, juntamente com outra pessoa, temos um par ordenado de duas
pessoas, pois é relevante se é ela ou nós que estamos à frente. Mas quando consideramos um casal
que mora numa casa, é apenas um conjunto não-ordenado de duas pessoas.
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a pergunta não é informativa. Portanto, se aquela pergunta for a mais informativa a fazer,
então não é a mais informativa.
Resta ver por que razão se a pergunta que fizemos não foi a mais informativa a
fazer, então foi a mais informativa a fazer. Imaginemos, pois, que a nossa pergunta não foi a
mais informativa a fazer. Isso significa que a divindade nos diria, na sua resposta, qual seria
a pergunta mais informativa a fazer, e nos daria a resposta a essa pergunta. Contudo, isto
significa que afinal a nossa pergunta teria sido a mais informativa a fazer, precisamente
porque teria feito a divindade dizer-nos qual é a pergunta mais informativa, dando-nos ao
mesmo tempo a resposta. Portanto, se a pergunta que fizémos não foi a mais informativa,
foi a mais informativa.
Esta história parece mostrar indirectamente que a ideia de uma só verdade
fundamental da qual todas as outras resultem talvez seja uma ilusão, um pouco como
pensar que há um número par maior do que qualquer outro. Talvez existam várias verdades
fundamentais das quais resultem outras verdades — e conhecemos várias, em física,
matemática e lógica — mas a hipótese de que há apenas uma dessas verdades
fundamentais parece falsa porque conduz a impossibilidades.
Revisão
1. “Se o problema metafísico da verdade fosse uma questão de encontrar uma só verdade
fundamental acerca de toda a realidade da qual todas as outras resultassem, essa verdade
não seria a mera conjunção de milhões de verdades particulares acerca dos vários aspectos
da realidade”. Porquê?
2. Qual é a primeira razão apresentada a favor da ideia de que não poderá haver uma só
verdade fundamental acerca de toda a realidade da qual todas as outras resultem?
Concorda com essa razão? Porquê?
3. Concorda que a história apresentada mostra que não há uma pergunta maximamente
informativa? Porquê?
4. Caso tenhamos razões para pensar que não há uma pergunta maximamente informativa,
será isso uma boa razão para pensar que não há uma verdade fundamental acerca de toda
a realidade da qual todas as outras resultem? Porquê?
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3. O truismo da verdade
Qual é então o problema metafísico da verdade? Expresso da maneira mais simples, é
apenas este: quando uma frase é verdadeira, o que explica que o seja? Não se trata de
perguntar se a frase “Eça era humano”, por exemplo, é realmente verdadeira ou não; nem
se trata de perguntar como sabemos que é verdadeira, caso o seja. Este último é um
problema epistemológico, e não metafísico. Quanto ao primeiro, diz respeito
exclusivamente àquela frase, mudando consoante a frase em causa: neste caso, é um
problema de biologia, mas se a frase fosse “O universo começou com o Big Bang” seria
um problema de física. Ora, o problema metafísico da verdade não diz respeito apenas
àquela frase, mas a qualquer frase que seja verdadeira: o que explica que uma fase
qualquer verdadeira seja verdadeira?
Em português confunde-se por vezes o adjectivo “verdadeiro” (“true”, em inglês)
com o substantivo “verdade” (“truth”), escrevendo-se “O que Eça disse é verdade”, em vez
do mais correcto “O que Eça disse é verdadeiro”. Esta confusão talvez faça pensar
erradamente que no problema metafísico da verdade se trata de esclarecer a natureza de
uma coisa, a verdade, concebida como se fosse uma montanha ou uma galáxia, ou uma
coisa mística; ao invés, trata-se de esclarecer o que ocorre sempre que temos uma frase
verdadeira. Do mesmo modo, em física, queremos saber o que é a gravidade, mas não
esperamos encontrar uma coisa única que seja como uma montanha; antes estamos
cientes de que quando um objecto cai ou um planeta atrai um satélite, estamos perante um
exemplo do mesmo fenómeno, sendo unicamente por isso que usamos o termo
“gravidade” ao invés de “gravidades”. No caso da metafísica, queremos esclarecer o que
ocorre sempre que temos uma frase verdadeira, e por isso dizemos mais economicamente
que estudamos o problema da verdade, em vez de dizer que estudamos o problema das
frases verdadeiras; mas esta segunda maneira de falar seria menos enganadora. A
expectativa, contudo, é que o fenómeno das frases verdadeiras seja susceptível de ser
explicado de uma maneira unificada, de modo que sempre que uma frase qualquer é
verdadeira tenhamos à nossa disposição uma mesma explicação esclarecedora.
Compreende-se melhor o problema metafísico da verdade se partirmos daquilo a
que iremos chamar truismo da verdade, que exprime de maneira económica o uso
fundamental do predicado “é verdadeiro”:
A frase “Eça é humano” é verdadeira se e só se Eça for humano.
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
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A exótica expressão “se e só se” exprime uma bicondicional: queremos dizer, por um lado,
que se aquela frase for verdadeira, então Eça é humano; e, por outro, se Eça for humano,
então aquela frase é verdadeira. Uma bicondicional só é falsa quando uma das frases
ligadas por “se e só se” é verdadeira e a outra falsa; caso sejam ambas verdadeiras, ou
ambas falsas, a bicondicional é verdadeira. Assim, a seguinte bicondicional também é
verdadeira, dado que as duas frases ligadas por “se e só se” são falsas:
A frase “Eça é um chinelo de quarto” é verdadeira se e só se Eça for um chinelo de
quarto.
Em contraste, a seguinte bicondicional é falsa, porque uma das frases é verdadeira e a
outra falsa, não exprimindo por isso o truismo da verdade:
A frase “Eça é humano” é verdadeira se e só se Eça for um chinelo de quarto.
O truismo da verdade tem, pois, a forma seguinte, usando “sse” para abreviar “se e só se”,
e representando “p” qualquer frase declarativa:
“p” é verdadeira sse p.
O problema metafísico da verdade é explicar este fenómeno de “p” ser verdadeira sse p.
Claro que, literalmente, nenhuma letra “p”, por si própria, é verdadeira; estamos usando “p”
para falar de qualquer frase declarativa, verdadeira ou falsa, como “Eça era português”,
“Saramago era marciano”, “2 + 2 = 6”, etc. Assim, o que queremos explicar é muito geral,
dizendo respeito a qualquer frase declarativa, verdadeira ou falsa. Queremos saber o que é
exactamente isso de uma frase ser verdadeira ou falsa.
Precisamente para podermos falar indiferentemente da verdade ou da falsidade,
iremos usar uma expressão filosófica curiosa: “valor de verdade”. O valor de verdade de
uma frase é a sua verdade ou falsidade. Assim, o valor de verdade da frase “Klaus Schulze
é polaco” é falso, sendo verdadeiro o valor de verdade da frase “Júlio Verne era francês”.
O problema metafísico da verdade não diz respeito ao nosso conhecimento do valor
de verdade. Para ver porquê, imagine-se que há extraterrestres inteligentes num planeta de
uma galáxia quinhentas mil galáxias distante da nossa, e que nunca conseguiremos saber
que eles existem. Mesmo assim, o truismo da verdade continua a aplicar-se:
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
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A frase “Há extraterrestres inteligentes num planeta de uma galáxia quinhentas mil
galáxias distante da nossa” é verdadeira sse há extraterrestres inteligentes num
planeta de uma galáxia quinhentas mil galáxias distante da nossa.
O que isto significa é que quando as frases têm valor de verdade, isso não depende do que
sabemos nem das nossas convicções. Por um lado, porque não somos omniscientes,
desconhecemos muitas frases que são verdadeiras. Por outro lado, as frases falsas que
erradamente pensamos que são verdadeiras continuarão falsas por mais que acreditemos
com muita convicção que são verdadeiras. Os valores de verdade são largamente
independentes da nossa vontade; e se não o são totalmente é porque podemos, por
exemplo, fazer uma mesa, e nesse caso tornamos verdadeiras várias frases acerca da
mesa, incluindo “Esta mesa foi feita por mim”. Contudo, do facto de podermos tornar
algumas frases verdadeiras não se conclui validamente que podemos fazer o mesmo com
todas — e é óbvio que não podemos fazer o mesmo com todas.
Compare-se o truismo da verdade com as seguintes bicondicionais:
“p” é verdadeira sse não conseguirmos evitar pensar que p.
“p” é verdadeira sse toda a gente pensar que p.
“p” é verdadeira sse tivermos boas razões para pensar que p.
Estas bicondicionais são muitíssimo diferentes do truismo da verdade. Em primeiro lugar,
não são truismos: são falsas, pelo menos quando temos em mente seres humanos falíveis.
Talvez algumas pessoas não consigam evitar pensar que Deus existe; mas isso é
perfeitamente compatível com a falsidade da frase “Deus existe”. E, claro, mesmo que toda
a gente pense que a Terra está imóvel, isso é perfeitamente compatível com a falsidade da
frase “A Terra está imóvel”. Quanto à terceira, vemos a mesma desadequação: por mais
que tenhamos boas razões para pensar que há gelo na Lua, podemos estar brutalmente
enganados, porque somos falíveis, e não haver qualquer gelo na Lua, caso em que a frase
“Há gelo na Lua” é falsa.
Assim, o problema metafísico da verdade é muito diferente do problema
epistemológico da verdade. Em metafísica, não se trata de investigar como sabemos que
uma frase qualquer é verdadeira, ou sequer se realmente o sabemos; estes são problemas
epistemológicos. Trata-se de investigar o próprio fenómeno de ser verdadeira. Porém, não
será desavisado investigar algo ainda antes de fazermos uma investigação epistemológica
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
— DESIDÉRIO MURCHO
para garantir que não é uma ilusão? E não temos todos os argumentos dos cépticos que
militam contra a ideia de que conhecemos algumas verdades?
A resposta a este desafio é que as coisas são exactamente ao contrário: seria
desavisado fazer parar a investigação metafísica da verdade devido aos argumentos
epistemológicos dos cépticos, mesmo admitindo que não fosse possível dar-lhes uma
resposta adequada. Compare-se com a investigação da gravidade e note-se como seria
uma má ideia fazer parar o estudo da física com o argumento céptico de que não temos a
certeza se os objectos realmente caem porque não conseguimos excluir a possibilidade
lógica de ser tudo uma ilusão da nossa parte. A investigação humana é sempre
condicional: aceitando algumas coisas por hipótese, estudamos outras. O próprio céptico
faz a mesma coisa, pois aceita por hipótese que os seus argumentos são sólidos, quando
defende que não podemos saber coisa alguma (o que significa que a sua posição é
incoerente). No problema metafísico da verdade, pressupomos que há verdades,
conhecidas ou não, e é isso que queremos compreender melhor.
Vejamos um último desafio à investigação do problema metafísico da verdade. O
truismo da verdade é uma banalidade; significa isso que nada há de interessante para
investigar? Não; descobrimos muitas vezes que uma banalidade inicial esconde
dificuldades importantes, cuja solução promete alargar a nossa compreensão e satisfazer a
nossa curiosidade intelectual. Compare-se, uma vez mais, com a investigação da
gravidade, na física: seria uma má ideia fazer parar o estudo da física dizendo que é óbvio
que os objectos caem e nada mais há para estudar. O mesmo acontece com o problema
metafísico da verdade: queremos estudar uma banalidade inicial, expressa no truismo da
verdade, mas há uma grande diferença entre ver que é um truismo e explicá-lo
adequadamente, tal como há uma grande diferença entre ver que os objectos caem e
conseguir explicar adequadamente tal fenómeno.
Revisão
1. Explique qual é a diferença entre o problema metafísico e o problema epistemológico da
verdade.
2. O que é o truismo da verdade?
3. O que é o valor de verdade?
4. Por que razão o valor de verdade das frases é largamente independente das nossas
convicções?
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
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4. Representações verdadeiras
O problema metafísico da verdade, como veremos, é afinal uma tríade de problemas interrelacionados. O primeiro deles é o seguinte: que entidades podem ter literalmente valor de
verdade? Poderá uma casa, um chinelo de quarto ou uma pessoa como Jesus ter valor de
verdade, no mesmíssimo sentido em que uma frase o tem? Haverá factos verdadeiros ou
falsos? Ou pinturas e sinfonias?
Claro que praticamente qualquer palavra que usamos tem mais de um significado,
em diferentes contextos. Quando fazemos ciência ou filosofia temos de delimitar
cuidadosamente o significado que temos em mente, para evitar confusões verbais. No
caso da verdade, o significado literal que temos em mente é o que se aplica a frases
declarativas, e que obedece ao truismo da verdade. Por isso, entidades que não possam
desempenhar o papel das frases não podem ter valor de verdade. Quadros, sinfonias,
factos, pessoas (divinas ou não), casas e chinelos de quarto não podem ter valor de
verdade, no mesmo sentido em que uma frase o tem. Contudo, por que razão isso é
assim? Que características tem uma entidade de ter para que possa ter valor de verdade?
A primeira característica que uma entidade tem de ter para que possa ter valor de
verdade é representar algo. Uma entidade só é verdadeira quando representa as coisas
como elas são; em parte, é isso mesmo que o truismo da verdade exprime e que
Aristóteles tinha em mente quando escreveu o seguinte:
“Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, e dizer do que é que é, e
do que não é que não é, é verdadeiro”. (Metafísica 1011b25)
Para que uma entidade possa “dizer que é” tem de representar o que é; e só será
verdadeira se representar bem. Contudo, não é qualquer boa representação que pode ter
valor de verdade. Pois considere-se uma pintura comum que representa bem uma rosa;
poderá ela ter valor de verdade no sentido que procuramos? A resposta é que não pode,
por três razões.
Primeiro, porque as representações pictóricas carecem, regra geral, de suficiente
delimitação. Uma pintura de uma rosa não representa apenas, regra geral, a cor vermelha
das suas pétalas; representa também um certo número de pétalas, dispostas de uma certa
maneira e com uma certa dimensão relativa. Não é fácil encontrar um equivalente pictórico
da simples frase “As pétalas daquela rosa são vermelhas”, que delimita muito bem o que
representa (a cor das pétalas da rosa), sem precisar de representar um certo número de
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pétalas. Assim, regra geral, as pinturas não têm valor de verdade porque carecem de
suficiente delimitação.
Todavia, se pensarmos noutros tipos de representação pictórica, as coisas são
menos óbvias. Um gráfico científico, por exemplo, é uma entidade pictórica, mas não
carece de delimitação, pois pode representar apenas, por exemplo, a diferença
proporcional entre as populações de diversas cidades. E não trairia uma confusão da
nossa parte dizer que o gráfico é verdadeiro se representar bem essa diferença
proporcional. Contudo, um gráfico dificilmente poderia representar ideias muitíssimo gerais
e teóricas acerca das rosas: quando surgiram, o modo como devem ser podadas e
quantos tipos de rosas há. Ainda que possamos imaginar um sistema pictórico que talvez
conseguisse ter este poder de representação, não é para representar as coisas deste modo
que usamos, comummente, sistemas pictóricos. E a nossa modesta pintura da rosa não
tem certamente esse poder.
A terceira razão é que as frases permitem-nos, além disso, relacionar muito
facilmente diferentes verdades acerca da rosa. Podemos dizer, por exemplo, que do seu
aspecto já com pouca vivacidade é razoável concluir que a rosa foi cortada há bastante
tempo, talvez mais de uma semana. Numa pintura, podemos apenas representar a rosa já
algo murcha; e o observador perspicaz talvez tire por si a conclusão de que a rosa foi
cortada há mais de uma semana. Porém, ainda que seja possível representar
pictoricamente não apenas aquela conclusão, como a razoabilidade da mesma, isso não
seria fácil, nem é comum.
Em conclusão, para que uma entidade possa ter valor de verdade, tem de
representar algo, mas não basta que represente algo para que tenha valor de verdade. É
preciso, além disso, que possa delimitar o que representa, que possa representar aspectos
muitíssimo gerais e teóricos, e que possa representar relações lógicas.
Presumivelmente, os primeiros seres humanos foram desenvolvendo a linguagem
verbal articulada precisamente para ter estas propriedades, entre outras. Um grito de uma
ave, por exemplo, pode assinalar que se aproxima um predador, mas é incapaz de
especificar que tipo de predador é ele, e se vem do norte ou do leste, se vem correndo ou
voando, se é lento ou rápido. As linguagens articuladas humanas, com a sua maravilhosa
capacidade para representar aspectos delimitados, teóricos e lógicos, constituem
instrumentos poderosíssimos não apenas para comunicarmos entre nós, mas também para
alargarmos sobremaneira a nossa compreensão da realidade. E são estas linguagens
articuladas que introduzem no mundo entidades plenamente susceptíveis de ter valor de
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verdade. Assim, a nossa primeira ideia acerca dos portadores de valor de verdade é que
têm de ser entidades como as frases, que representem articuladamente as coisas.
5. Frases
É porque as frases têm um poder impressionante de representação que podem ter
literalmente valor de verdade; porém, nem todas podem tê-lo. As frases imperativas e
interrogativas, por exemplo, não podem ter valor de verdade, pois usamo-las para dar
ordens (“Abre a janela, por favor”) e fazer perguntas (“O que é a verdade?”). Em contraste,
as frases declarativas podem ter valor de verdade porque as usamos habitualmente para
isso mesmo: para exprimir verdades ou falsidades. Porém, o que é exactamente uma
frase?
Uma frase é parcialmente uma entidade física localizada no espaço e no tempo: um
conjunto de marcas num papel (ou um conjunto de sons, quando falamos). Contudo, uma
frase é mais do que isso, pois para ser uma frase tem de ser dotada de significado. Uma
frase interrogativa só exprime uma pergunta, por exemplo, precisamente porque é dotada
de significado. Uma marca dotada de significado, ou conjunto de marcas, é um símbolo ou
conjunto de símbolos. Assim, para que um conjunto de marcas seja uma frase tem de ser
um conjunto de símbolos. Todavia, não basta que seja um conjunto de símbolos. As
marcas “dkkmal nasn lkmasldkn”, por exemplo, constituem um conjunto de símbolos:
várias letras do alfabeto português. Todavia, estes símbolos não estão simbolicamente
organizados, ao contrário de “Eça é o autor de Os Maias”. Assim, para que uma sequência
de marcas seja uma frase não basta que seja constituída por símbolos; é preciso também
que estes símbolos estejam simbolicamente organizados.
As marcas dotadas de significado são apenas entidades físicas, localizadas no
espaço e no tempo, usadas como símbolos; e qualquer entidade física pode ser usada
como um símbolo. Por exemplo, vários amigos vão acampar e combinam que um assobio
significa um pedido de ajuda; um casal pode combinar que a luz acessa do quarto quando
não está ninguém em casa significa que um deles foi ao supermercado. Apesar de
qualquer entidade física poder ser usada como símbolo, nem todas as entidades físicas
podem ser usadas para qualquer finalidade simbólica. Por exemplo, não é possível, ou é
pelo menos muitíssimo difícil, representar literalmente as ideias da Crítica da Razão Pura
numa sonata para piano; mas é substancialmente mais fácil representar musicalmente
alguns aspectos emocionais que aquela obra produz em alguns leitores.
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
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Fisicamente, nada distingue um conjunto simbólico de entidades físicas de um
conjunto não-simbólico das mesmas entidades; a diferença é o uso que os agentes
linguísticos (como os seres humanos) fazem delas. Isto significa que os símbolos são
entidades relacionais. Para ver o que isto quer dizer, imagine-se que queremos descobrir
se Eça tinha um irmão. Como é evidente, este não é o género de característica que Eça
possa ter sozinho, o que significa que por mais que o examinemos isoladamente, nunca
iremos descobrir tal coisa. Para descobri-lo é preciso examinar a origem biológica de Eça,
e ver se os seus progenitores tiveram outros filhos além dele. Isto é apenas a explicitação
do facto óbvio de ninguém ser irmão sozinho; ser irmão é sê-lo em relação a alguém. O
mesmo acontece com as entidades físicas usadas como símbolos: nada nelas próprias
mostra que são símbolos, sendo o seu uso pelas pessoas (ou por outros agentes
linguísticos) que fazem delas símbolos. Um símbolo é uma entidade física usada pelos
seres humanos (ou outros agentes) para representar algo; se olharmos apenas para a
entidade física, excluindo o uso que os seres humanos fazem dela, não conseguimos
compreender como pode ela representar seja o que for.
Temos assim um triângulo linguístico: num dos vértices encontramos coisas como
sons ou marcas, entidades físicas que, por si mesmas, não são símbolos. No outro vértice,
contudo, encontramos agentes linguísticos que, socialmente, coordenam entre si
admiravelmente bem o uso simbólico desses sons ou marcas para representar o que está
no terceiro vértice do triângulo: aquilo de que querem falar, como árvores, pessoas,
divindades, sentimentos, e até linguagens e símbolos.
Os símbolos são extensões plenamente linguísticas dos sinais naturais,
nomeadamente causais. Um sinal de fogo é o fumo, por exemplo, assim como as pegadas
de um elefante são um sinal de que um elefante passou por ali. Os sinais precisam de ser
interpretados por agentes protolinguísticos (como um chimpanzé) ou plenamente
linguísticos (como um ser humano) para que sejam propriamente sinais; todavia, quando os
sinais têm uma relação causal com aquilo de que são sinais, como nos exemplos
anteriores, não precisam de qualquer mediação interpretativa para que tenham uma
conexão com aquilo de que são sinais. Isto raramente ou nunca acontece no caso dos
símbolos; neste caso, raramente ou nunca há qualquer conexão relevante entre os
símbolos e as coisas simbolizadas, para lá da relação introduzida pelos seres humanos.
Por exemplo, a palavra “água” não tem qualquer relação relevante com a água, a não ser a
que é introduzida pelos portugueses. E como na Alemanha os seres humanos não
introduziram essa relação, as mesmas marcas físicas, “água”, não têm lá qualquer relação
com a água.
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Assim, uma frase não se reduz à sua componente física; para que seja uma frase é
preciso que os seres humanos, ou outros agentes plenamente linguísticos, usem essa
componente física para exprimir verdades ou falsidades (no caso das frases declarativas),
para dar ordens (no caso das frases imperativas) ou para fazer perguntas (frases
interrogativas), inter alia. Os seres humanos conseguem tal façanha em grande parte
porque se coordenam entre si admiravelmente, usando sons e marcas semelhantes para
exprimir as mesmas verdades (ou dar as mesmas ordens ou fazer as mesmas perguntas).
Isto significa que se não existissem seres humanos, ou outros agentes linguísticos,
não haveria frases interrogativas, nem imperativas, nem declarativas. Consequentemente,
não haveria verdades — isto, se as frases forem as únicas entidades que podem ter,
directamente, valor de verdade.
Revisão
1. Por que razão podem as frases declarativas ter valor de verdade, mas os chinelos de quarto
e as árvores não podem tê-lo?
2. Por que razão as representações pictóricas comuns não podem ter valor de verdade?
3. Por que razão nem todos os conjuntos de símbolos são simbólicos? 4. Explique por que razão uma frase não se reduz à sua componente física.
5. Por que razão os símbolos são entidades relacionais?
6. Explique o que é o triângulo linguístico.
7. Que razões nos dá o texto para pensar que caso não existissem seres humanos, ou outros
agentes linguísticos, não existiriam verdades?
6. Proposições
A partir do século XIX, recuperou-se em filosofia a ideia de que as frases só têm valor de
verdade porque exprimem proposições que o têm; ou seja, as frases teriam valor de
verdade secundariamente, e as proposições teriam valor de verdade primariamente. Mas o
que é uma proposição? A ideia é que várias frases declarativas sinónimas, e até de
diferentes línguas, exprimem o mesmo; e esse mesmo seria, precisamente, a proposição.
Assim, as proposições seriam o conteúdo verdadeiro ou falso expresso pelas frases.
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Ao passo que falamos das frases usando aspas,3 não podemos falar das
proposições desse modo porque não são frases. Repare-se no contraste seguinte:
1. A frase “Rómulo de Carvalho era perspicaz” é verdadeira.
2. A proposição de que Rómulo de Carvalho era perspicaz é verdadeira.
3. A proposição expressa pela frase “Rómulo de Carvalho era perspicaz” é
verdadeira.
No primeiro caso estamos falando da entidade linguística que está ente aspas, que é uma
frase; poderíamos também ter dito que tem cinco palavras. No segundo caso, contudo, em
vez de aspas usamos a expressão “de que” porque se usássemos aspas estaríamos de
novo falando da frase, e não do que a frase exprime, que é a proposição; na terceira
alternativa falamos explicitamente do que a frase mencionada exprime.
As frases são compostas por um certo número de palavras, e pertencem a uma
dada língua, coisa que não acontece às proposições. As frases “A neve é branca”, “Snow
is white” e “Schnee ist weiß” exprimem, em línguas diferentes e com diferentes números de
palavras, a mesma proposição — que não pertence a qualquer língua nem é constituída
por palavras.
Às proposições chama-se por vezes também pensamento, no sentido que Gottlob
Frege deu ao termo Gedanke. Ora, este termo sofre da chamada ambiguidade actoobjecto: tanto podemos usá-lo para falar da ocorrência particular, psicológica, de um
pensamento que uma pessoa tem, caso em que estamos falando do acto de formar o
pensamento, como podemos usá-lo para falar do conteúdo do pensamento. É este
segundo sentido que temos em mente ao falar de proposições; assim, várias ocorrências
particulares do pensamento de que Ockham era brilhante, por exemplo, ocorrências que
têm lugar em diferentes pessoas e em diferentes momentos do tempo, teriam em comum
um mesmo conteúdo — a proposição de que Ockham era brilhante, que em português se
exprime com a frase “Ockham era brilhante”.
Além disso, as crenças seriam precisamente como os pensamentos. Em filosofia,
por “crença” não se entende apenas crenças religiosas, mas antes qualquer representação
3
As aspas são também usadas para outros fins, nomeadamente para manifestar
distanciamento perante um termo que um autor usa e que consideramos inadequado ou
problemático, e para citar as palavras de alguém. Nenhum destes usos deve ser confundido com o
uso das aspas para falar das próprias palavras e frases.
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verdadeira ou falsa. Assim, entre os seres humanos tanto encontramos a crença de que
Deus existe, como a crença menos estrondosa de que os triângulos têm três lados. O
termo “crença” sofre da mesma ambiguidade acto-objecto. Tanto podemos falar de várias
ocorrências particulares da crença de que os triângulos têm três lados, como podemos
falar do conteúdo comum a todas essas crenças: a proposição de que os triângulos têm
três lados.
O conceito de proposição foi originalmente introduzido pelos filósofos estóicos, na
antiguidade grega, aproximadamente pelas mesmas razões dos seus congéneres
novecentistas, mas tinha sido largamente abandonado a favor de uma concepção mais
psicologista pelos filósofos modernos. Uma confusão terminológica a que é preciso dar
atenção é que os filósofos medievais chamavam propositio ao que hoje chamamos frase,
ou seja, às entidades linguísticas com valor de verdade (seja primária seja
secundariamente). Os modernos pensavam que uma entidade linguística não poderia ter
primariamente valor de verdade; só as ideias ou representações mentais poderiam tê-lo. A
confusão verbal aqui presente é que eles passaram então a usar o termo “juízo”, que acaba
por ser precisamente como “crença” e “pensamento” (no sentido fregiano): sofre da
ambiguidade acto-objecto. E, claro, o que tinham em mente é precisamente o que no
século XIX se começou a chamar proposição: o conteúdo do juízo e não o acto de ajuizar.
Revisão
1. Distinga frase de proposição.
2. Por que razão não podemos falar das proposições usando aspas?
3. Explique o que é a ambiguidade acto-objecto, usando o conceito de proposição.
7. Portadores de valor de verdade
Poderão as proposições ser os portadores primários de valor de verdade, tendo as frases
valor de verdade apenas quando exprimem proposições e só porque as exprimem, o
mesmo acontecendo às crenças, aos juízos e aos pensamentos? Este é o problema dos
portadores de valor de verdade. Porém, este problema está intimamente ligado a um
problema mais obviamente metafísico: que tipo de entidade exactamente é uma
proposição?
Uma maneira de entender as proposições é aproximadamente fregiana. Deste
ponto de vista, as proposições são entidades abstractas, contrastando por isso com as
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entidades concretas. Uma árvore, por exemplo, é uma entidade concreta, pois está
localizada no espaço e no tempo. Porém, o que é uma entidade abstracta? Temos duas
famílias de concepções: a platonista e a lockiana, inspiradas em Platão e Locke,
respectivamente.
Na concepção platonista, uma entidade abstracta é exactamente como uma
entidade concreta, mas sem localização no espaço nem no tempo. Nesta concepção, as
entidades abstractas são independentes dos seres humanos, tal como as concretas. Do
mesmo modo que os dinossauros, por exemplo, não precisaram dos seres humanos para
existir — até porque os seres humanos ainda não existiam — também as proposições não
precisam dos seres humanos para existir. Assim, nesta concepção, as proposições são
independentes dos seres humanos; a proposição de que os triângulos têm três lados, por
exemplo, já era verdadeira muito antes de haver seres humanos ou quaisquer outros
agentes cognitivos capazes de a apreender.
Esta concepção de proposição enfrenta uma imensa dificuldade: explicar como
pode uma entidade abstracta, entendida desse modo, representar seja o que for. Uma
entidade abstracta entendida de maneira platonista é exactamente como uma entidade
física, mas não é física; por essa razão, herda a dificuldade em explicar como pode uma
entidade física representar seja o que for. No caso das entidades físicas mais modestas,
como um som ou marca num papel, o triângulo linguístico é esclarecedor: os seres
humanos usam coordenadamente uma coisa física com a qual todos têm contacto para
falar de árvores, por exemplo. Mas se numa das pontas do triângulo linguístico está uma
entidade abstracta entendida em termos platonistas, não se vê muito bem como podem os
seres humanos fazer tal façanha, porque não se vê como possam estar em contacto
comum com tal coisa.
Além disso, os platonistas tendem a defender um triângulo linguístico diferente, o
que torna a sua perspectiva ainda mais implausível. Em vez do triângulo linguístico que
inclui agentes, marcas e as coisas de que queremos falar com as marcas, os platonistas
tiram os agentes do triângulo e pensam que as marcas exprimem essas tais entidades
abstractas que são as proposições, tendo estas a capacidade, por si próprias e sem
qualquer intervenção de qualquer agente linguístico, o poder para representar coisas. O
triângulo linguístico é assim exclusivamente constituído por marcas, as proposições que as
marcas exprimem e as coisas de que falam as proposições. Presumivelmente, o defensor
desta teoria terá de admitir que as marcas só exprimem proposições porque os agentes as
usam para fazê-lo; mas o que caracteriza esta posição é a ideia de que as proposições
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representam por si mesmas a realidade. Seria por isso que as proposições teriam valor de
verdade independentemente da existência dos seres humanos.
Ora, é muitíssimo difícil explicar como poderia uma proposição representar a
realidade sem que os agentes linguísticos a usem com esse fim. Pois imagine-se que a
proposição de que os círculos não têm ângulos é verdadeira por si mesma, sem que os
agentes linguísticos tenham de usá-la para falar de círculos. Como poderia isso acontecer?
Mesmo que o platonista defenda o indefensável — que essa entidade abstracta é, de
algum modo, semelhante ao que representa — isso não explicaria o poder de
representação que a proposição tem de ter para que possa ter valor de verdade. Isto
porque a semelhança não é uma condição necessária nem suficiente para que uma
entidade represente outra. Para ver porquê, pense-se em duas folhas brancas de papel A4;
são muitíssimo semelhantes entre si, mas não se representam uma à outra. Isto mostra que
a semelhança não é condição suficiente da representação. E também não é condição
necessária, pois as palavras portuguesas “folha de papel A4” representam perfeitamente
bem qualquer folha de papel A4, mas não tem qualquer semelhança com qualquer delas.
Consequentemente, o platonista tem uma tarefa difícil pela frente: explicar como pode uma
entidade abstracta, por si mesma, representar seja o que for, sem a intervenção de agentes
linguísticos.
Uma alternativa mais plausível é conceber as proposições como entidades
abstractas lockianas. Uma entidade abstracta lockiana não tem existência independente
dos seres humanos; é abstracta apenas no sentido em que foi obtida pelos seres humanos
por abstracção. Um triângulo concreto é uma figura desenhada num papel, por exemplo;
um triângulo abstracto é algo que obtemos considerando aquilo que é comum a todos os
triângulos particulares. Os triângulos particulares têm uma dada dimensão e são isósceles
ou não, têm uma dada cor e existem num dado momento e não noutro. Os triângulos
abstractos, em contraste, representam todos esses triângulos particulares precisamente
porque retêm deles apenas o que lhes é comum. Perguntar se um triângulo abstracto é
azul ou verde é não entender que essa entidade se limita a representar qualquer triângulo,
mas não tem, em si, cor. Deste ponto de vista, a proposição de que os círculos não têm
ângulos não existia antes de haver seres humanos com uma linguagem capaz de exprimila. Neste aspecto, a concepção lockiana de proposição é mais plausível do que a
platonista.
A dificuldade desta concepção é que parece difícil de harmonizar com a ideia de
que são as proposições, e não as frases, que são os portadores primários de valor de
verdade. Considere-se a proposição de que Sócrates era grego. Em si, a proposição
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resulta apenas de desconsiderarmos todas as diferenças existentes entre as frases
“Sócrates era grego”, “Socrates was greek”, etc. Ao desconsiderar todas as diferenças,
temos a proposição, obtida por abstracção, de que Sócrates era grego. O que isto
significa, a rigor, é que a proposição representa cada uma das frases das quais foi obtida
por abstracção. Ora, se a proposição não representa directamente que Sócrates é grego,
mas apenas indirectamente, representando todas as frases que representam tal coisa,
então são essas frases que são primariamente verdadeiras e não a proposição.
Revisão
1. Explique o que é o problema do portador primário de valor de verdade.
2. Distinga o conceito platonista de entidade abstracta do conceito lockiano.
3. Poderá uma entidade abstracta ter poder representacional só por si? Porquê?
4. Do seu ponto de vista, os portadores primitivos de valor de verdade são as proposições
platonistas? Porquê?
5. Do seu ponto de vista, os portadores primitivos de valor de verdade são as proposições
lockianas? Porquê?
8. Veridadores
O problema metafísico da verdade é afinal uma tríade de problemas, o primeiro dos quais é
saber qual é o portador primário de valor de verdade. Este primeiro problema diz respeito
ao lado esquerdo do truismo; o problema dos veridadores diz respeito ao lado direito: “p” é verdadeira sse p.
O truismo exprime a ideia intuitiva de que algo é responsável pela verdade das frases. No
caso da frase “Marguerite Yourcenar escreveu A Obra ao Negro”, o que a torna verdadeira
é aquela romancista ter escrito aquele romance. Ao que é responsável pela verdade de
uma frase chamamos veridador (“truthmaker”, em inglês). Parece inicialmente razoável
defender que toda a frase verdadeira tem um veridador.
Contudo, como acontece amiúde, uma ideia inicialmente plausível rapidamente se
torna problemática. O que dizer da frase “Sócrates não era chinês”? Qual será o seu
veridador? Usando este exemplo, o truismo fica com este aspecto:
“Sócrates não era chinês” é verdadeira sse Sócrates não era chinês.
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Uma razão para aceitar a tese de que toda a frase verdadeira tem um veridador é que isso
parece resultar do próprio truismo da verdade. Porém, ao passo que o veridador da frase
sobre Yourcenar não levanta perplexidades iniciais, o veridador desta frase acerca de
Sócrates deixa-nos desde logo perplexos. No caso da frase sobre Yourcenar, imaginamos
algo como um facto, ainda que não saibamos muito bem o que é um facto exactamente.
Porém, se fizermos o mesmo no caso de Sócrates temos de imaginar o que parece uma
monstruosidade metafísica: um facto negativo. O que seria tal coisa?
Uma maneira de responder à dificuldade dos factos negativos é introduzir uma
distinção entre frases que são primitivamente verdadeiras e frases que só são
derivadamente verdadeiras, defendendo então que são os veridadores das primeiras que
desempenham também o papel de ser veridadores das segundas. Assim, a frase “Sócrates
não era chinês” seria apenas derivadamente verdadeira porque a sua verdade se infere
validamente da verdade da frase “Sócrates era grego”. O veridador desta última frase é
Sócrates ter nascido na Grécia; e é este mesmo veridador que é responsável pela verdade
de “Sócrates não era chinês”. Em geral, quando uma frase tem um veridador, esse mesmo
veridador é responsável por todas as verdades que se inferem validamente da primeira. Por
exemplo, o veridador de “p” é também o veridador de “p ou q” porque esta última frase
infere-se validamente da primeira.4
Esta resposta aplica-se também aos veridadores das verdades lógicas. Tome-se
uma verdade lógica qualquer, como “O Sol é composto de hélio ou não”. Uma vez que as
verdades lógicas são verdadeiras aconteça o que acontecer, poderia parecer que não
teriam veridadores específicos: qualquer veridador, seja ele qual for, seria responsável pela
verdade de qualquer verdade lógica. Uma vez que seria estranho defender que o veridador
de “O Sol é composto de hélio ou não” é Sócrates ter bebido a cicuta, seríamos obrigados
a abandonar a ideia de que as verdades lógicas têm veridadores. O conceito anterior de
verdade primitiva e verdade derivada, porém, permite responder a esta perplexidade: o
veridador de “O Sol é composto de hélio ou não” é o Sol ser composto de hélio, dado que
a frase “O Sol é composto de hélio” implica que o Sol é composto de hélio ou não. E, se
acaso o Sol não fosse composto de hélio mas antes de hortaliça, o veridador daquela
verdade lógica seria este facto porque a frase “O Sol é composto de hortaliça” implica que
4
Uma frase qualquer “q” infere-se validamente de “p” quando não é possível que “p” seja
verdadeira e “q” falsa. Quando isto acontece, diz-se também que “p” implica “q”.
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o Sol não é composto de hélio, que por sua vez implica que o Sol é composto de hélio ou
não.
Talvez esta maneira de ver as coisas seja plausível; é, sem dúvida, metafisicamente
interessante, pois significaria que, afinal de contas, há realmente verdades mais
fundamentais do que outras. Do ponto de vista desta proposta, as verdades mais
fundamentais serão aquelas cujos veridadores são responsáveis por muitas outras
verdades. Esta maneira de ver as coisas harmoniza-se muitíssimo bem com a nossa
experiência na teorização científica e matemática, em que descobrimos que há algumas
verdades fundamentais, com base nas quais se consegue explicar adequadamente
muitíssimos fenómenos do universo.
Vejamos outra dificuldade com respeito aos veridadores: qual seria o veridador de
“Pégaso não existe”? Dado que a frase é verdadeira, parece uma vez mais que
precisaríamos de um veridador metafisicamente problemático, que seria a inexistência de
Pégaso; e agora não podemos dizer, aparentemente, que a verdade desta frase é derivada
de outra. Contudo, o que significa exactamente dizer que Pégaso não existe? Pégaso existe,
num certo sentido, mas não noutro: é uma entidade ficcional ou mítica, e nesse sentido
existe; mas, claro, não existe no mesmo sentido não-ficcional em que William Shatner
existe. Se considerarmos que ser uma entidade ficcional implica não ser uma entidade
não-ficcional, o veridador de “Pégaso não existe (como entidade não-ficcional)” é o
veridador de “Pégaso existe (como entidade ficcional)”: a presença de Pégaso em várias
histórias, míticas ou não.
Esta resposta, contudo, limita-se a chamar a atenção para o pressuposto da frase
original, sem responder ao problema mais profundo: qual é o veridador de frases
verdadeiras de inexistência que não envolva uma confusão com existência ficcional? Um
exemplo seria “Não há vida em Marte”. A dificuldade seria que o veridador óbvio neste
caso parece carecer de especificidade: a inexistência de vida em Marte, se é de todo um
facto, é muito geral. A objecção é então que os veridadores deveriam ser, digamos,
específicos.
A resposta é que não temos de pensar que há veridadores gerais, entendidos
primitivamente; estes resultam apenas da conjunção de vários veridadores específicos.
Considere-se a frase “Os seres humanos são mortais”; qual é o seu veridador? Num certo
sentido, é a mortalidade inescapável de todos os seres humanos; porém, vistas as coisas
mais rigorosamente, não precisamos deste veridador geral, desde que tenhamos um
veridador para cada uma das frases verdadeiras acerca da mortalidade de cada ser
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humano: “Frank Sinatra é mortal”, “Tomás de Aquino é mortal”, etc. O mesmo aconteceria
com a inexistência de vida em Marte: os veridadores de todas as frases como “A entidade
tal e tal não tem vida” são responsáveis pela verdade de “Não há vida em Marte”.
Revisão
1. O que é um veridador?
2. Qual é a dificuldade com o veridador de “Sócrates não era chinês”?
3. Qual é a resposta dada à dificuldade com o veridador de “Sócrates não era chinês”?
4. Que razão é apresentada para pensar que há verdades mais fundamentais do que outras? 5. Terá a frase “Não há vida em Marte” um só veridador? Porquê?
9. Correspondência
Até agora, limitámo-nos a usar um conceito aberto de veridador, entendendo-o como seja
o que for que é responsável pela verdade dos portadores primários de valor de verdade.
Será que os veridadores são factos? Nesse caso, o que é um facto? Serão os factos o
mesmo do que estados de coisas? Mas o que é um estado de coisas? Teremos de deixar
estas perplexidades para mais tarde. O nosso objectivo para já é compreender os aspectos
fundamentais do problema metafísico da verdade; e um dos aspectos é a ideia de
veridador, que esclarecemos suficientemente.
Também não sabemos ainda exactamente o que são os portadores primários de
valor de verdade: talvez sejam as frases, ou talvez sejam as proposições, as crenças, os
pensamentos ou os juízos. O que fizémos foi explorar brevemente estes conceitos porque,
uma vez mais, o que nos interessa é esclarecer o problema metafísico da verdade, que
estamos agora em condições de formular mais rigorosamente: Que relação existe exactamente entre os portadores primários de valor de verdade
(sejam eles o que forem) e os veridadores (sejam eles o que forem)? Este não é apenas o terceiro da tríade de problemas que constitui o problema metafísico; é
também o fundamental. O problema dos portadores primários de valor de verdade diz
respeito à primeira parte do truismo da verdade, antes do “sse”, dizendo o problema dos
veridadores respeito à segunda. O terceiro problema diz respeito à relação entre essas
duas partes. Que relação é essa, exactamente?
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
— DESIDÉRIO MURCHO
Uma resposta comum é que se trata de uma relação de correspondência: um
portador de valor de verdade é verdadeiro quando corresponde ao seu veridador. Todavia,
o que é exactamente esta relação de correspondência? Se concebermos a
correspondência mais ou menos como mimetismo, a teoria é inequivocamente falsa. Isto
porque basta uma compreensão adequada do conceito de representação para afastar a
ideia de mimetismo: para que uma entidade represente outra não é uma condição
necessária, nem suficiente, que sejam iguais, parecidas ou sequer estruturalmente
idênticas. Duas cadeiras da mesma mobília não se representam uma à outra apesar de
serem maximamente semelhantes; e a palavra “cadeira” não tem qualquer semelhança
com as cadeiras, mas representa perfeitamente bem as cadeiras. Assim, podemos afastar
já qualquer tentação de entender o conceito de correspondência como se fosse uma
questão de espelhar a realidade. A relação entre os portadores primários de valor de
verdade e os veridadores, seja ela qual for, não tem de ser uma relação de espelhamento;
e, mesmo que o fosse, não seria isso que explicaria o fenómeno da verdade.
Contudo, parece intuitivo insistir na ideia de correspondência; e o que caracteriza
as teorias da verdade como correspondência é a ideia de que é possível desenvolver este
conceito de um modo que seja esclarecedor. Vejamos uma dessas tentativas, que
devemos a Bertrand Russell.
Russell deita mão do conceito de n-tuplo ordenado. Um par ordenado é, como
vimos, uma sequência ordenada de duas entidades, que se distingue de um conjunto nãoordenado de duas entidades. Quando duas pessoas conversam, constituem um conjunto
não-ordenado de entidades; mas quando duas pessoas esperam a sua vez para serem
sequencialmente atendidas, constituem um par ordenado. Um n-tuplo ordenado é apenas
uma sequência ordenada de um número qualquer n entidades: um triplo ordenado, ou um
quádruplo ordenado, etc. Em matemática, a notação para n-tuplos ordenados é a seguinte:
“<Joana, Maria>” representa o par ordenado dessas duas pessoas, que é diferente do par
ordenado “<Maria, Joana>”; mas “{Joana, Maria}” representa o conjunto dessas duas
pessoas, que é uma sequência não-ordenada, igual ao conjunto representado por “{Maria,
Joana}”.
A frase “A Joana ama a Maria” é evidentemente diferente de “A Maria ama a
Joana”, o que faz pensar que estamos perante uma sequência ordenada. E é precisamente
assim que pensa Russell. No primeiro caso, temos um triplo ordenado, <Joana, amar,
Maria>: a Joana tem uma certa relação com a Maria, a relação de amá-la. No segundo
caso, claro, temos um triplo ordenado diferente, <Maria, amar, Joana>. Estes triplos
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ordenados são constituídos por aquelas duas pessoas, relacionadas pelo amor. O amor é
uma relação, como ser irmão.
Russell não pensa que o triplo ordenado <Maria, amar, Joana> tenha valor de
verdade, pois esse triplo ordenado não representa o facto de a Maria amar a Joana; esse
triplo ordenado é o próprio facto de a Maria amar a Joana. O portador primário de valor de
verdade, do ponto de vista de Russell, é uma crença que alguém tem acerca de algo. O
objecto da crença, contudo, não é, do seu ponto de vista, uma proposição ou uma
entidade qualquer representacional: o objecto da crença é a própria realidade.
A ideia de que as nossas crenças são acerca da realidade é muito intuitiva. Afinal, é
razoável pensar que a crença de que a Maria ama a Joana é acerca da Maria, da Joana e
do amor entre elas, e não acerca de uma entidade representacional qualquer, como uma
proposição ou outra entidade deste género que fosse o conteúdo da crença. Todavia, este
ponto de vista levanta imediatamente uma dificuldade: como poderíamos nós ter crenças
falsas, se o objecto das crenças é a própria realidade? Por exemplo, imagine-se que a
Maria não ama a Joana; como poderá alguém ter a crença falsa de que ela a ama? O
objecto da crença, que é um triplo ordenado, <Maria, amar, Joana>, não existe; mas como
poderia existir uma crença sem objecto? Seria como pensar que poderia existir um irmão
que não tem irmãos. A crença é uma relação entre um agente que tem a crença e o objecto
da crença; sem objecto, ou sem agente, não há crença.
Russell, contudo, defende que o objecto da crença de que a Maria ama a Joana
não é aquele triplo ordenado, que realmente não existe, mas antes a própria Maria, a
relação de amar, e a Joana. Estes são os objectos da crença; mas a crença não se limita a
ter objectos: tem também uma estrutura. A estrutura da crença que alguém tem de que a
Maria ama a Joana é um quíntuplo ordenado:
<Alguém, crença, Maria, amar, Joana>.
Precisamente porque a crença tem uma estrutura, é diferente da crença de que a Joana
ama a Maria, sem que precisemos de admitir que o objecto da crença é um triplo
ordenado. E quando é aquela crença falsa? Quando a sua estrutura não corresponde à
estrutura da realidade; ou seja, quando o triplo ordenado <Maria, amar, Joana> não existe,
apesar de existir a Maria, e a Joana, assim como a relação de amor. Assim, o veridador da
crença não é apenas os objectos da crença; é os objectos da crença juntamente com a
estrutura entre eles.
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
— DESIDÉRIO MURCHO
Uma dificuldade da teoria de Russell é que significa que não podemos ter crenças
acerca de coisas que não existem; contudo, é óbvio que podemos ter crenças acerca de
marcianos. Como responder a esta dificuldade?
A resposta é que nem todas as crenças que parece que são directamente acerca de
coisas o são de facto. As crenças acerca de coisas que não existem são descritivas, e os
termos dessas descrições existem. Por exemplo, a crença de que os marcianos são
simpáticos tem como objectos a relação de simpatia, estar localizado em Marte e ser um
organismo inteligente. Todas estas coisas existem, mas não estruturadas do modo como a
crença as estrutura: há pessoas simpáticas e por isso a simpatia existe, há rochas em
Marte, e há organismos inteligentes; o que não há é organismos inteligentes em Marte que
sejam simpáticos.
Do ponto de vista de Russell, o truismo da verdade é algo enganador, pois sugere
que as frases em si — ou as proposições — têm valor de verdade; ao invés, pensa ele, o
que tem valor de verdade é essa relação peculiar entre os agentes linguísticos e o mundo:
a crença. Um truismo menos enganador seria então o seguinte:
Se aCvp, então p.
Ou seja: se um agente tem uma crença verdadeira de que p, então p. Não temos uma
bicondicional precisamente porque Russell quer evitar a ideia, que considera obviamente
falsa, de que a existência de veridadores é suficiente para que existam verdades. Quando
não havia qualquer organismo na Terra, por exemplo, o Sol já era composto de hélio, mas
ninguém tinha essa crença e por isso não era verdadeiro que o Sol era composto de hélio
(apesar de ser verdadeiro hoje que nessa altura o Sol era composto de hélio). Assim, o truismo com que começámos o nosso estudo revelou-se não apenas
profícuo para esclarecer o conceito de verdade, mas talvez… literalmente falso.
Revisão
1. Qual é a ideia central das teorias da verdade como correspondência?
2. Será o espelhamento ou mimetismo entre os portadores primários de valor de verdade e os
veridadores que explica o que é a verdade? Porquê?
3. O que é um n-tuplo ordenado? Dê exemplos esclarecedores.
4. Por que razão pensa Russell que o objecto da crença de que a Maria ama a Joana não pode
ser o triplo ordenado <Maria, amar, Joana>?
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5. Por que razão, do ponto de vista de Russell, o veridador da crença de que a Joana ama a
Maria não é apenas a Joana, a Maria e a relação de amar?
6. Como explicaria Russell a existência de crenças acerca de coisas que não existem? 7. Por que razão é o truismo da verdade enganador, do ponto de vista de Russell?
10. Críticas e alternativas
As teorias da verdade como correspondência, de que vimos um exemplo, são alvo de
várias críticas, que deram origem a teorias alternativas. Vejamos brevemente algumas
dessas críticas e dessas alternativas, começando por estas últimas.
Na teoria da verdade como coerência, o conceito central para compreender a
verdade não é qualquer correspondência entre as nossas representações da realidade e a
realidade, mas antes a coerência entre as nossas representações. Assim, em vez de nos
perguntarmos se a nossa crença de que Eça era humano era verdadeira pensando na
realidade que supostamente corresponde a tal crença, devemos antes perguntar se essa
crença é coerente com outras crenças nossas. A verdade é pura e simplesmente o que
obtemos quando temos crenças coerentes. A vantagem desta teoria é usar um conceito
muitíssimo menos problemático do que o de correspondência: o conceito de coerência,
que é o mesmo que consistência, no sentido lógico do termo. Um grupo de crenças é
consistente se e só se é logicamente possível que sejam todas verdadeiras.
A teoria pragmatista da verdade é a ideia de que a verdade é seja o que for que
funcione na prática. Assim, em vez de compararmos as nossas representações com a
realidade, digamos, para ver se são verdadeiras, ou em vez de as compararmos entre si
para vermos se são consistentes, limitamo-nos a ver se funcionam na prática; se
funcionam, são verdadeiras. Uma crença funciona na prática quando nos permite ser bemsucedidos ao fazer coisas com base nessa crença. Uma crença é verdadeira se e só se
funciona na prática.
Estas duas teorias visam evitar duas críticas à teoria da correspondência. A primeira
é que não temos maneira alguma de sair do nosso sistema de representações da realidade
para as comparar com a própria realidade. A segunda é que as nossas representações
nunca podem corresponder exactamente à realidade, pelo que se a sua verdade depende
disso, nunca podem ser realmente verdadeiras. Tanto a teoria da coerência como a teoria
pragmatista evitam muito facilmente estas dificuldades. Na teoria da coerência, não se
trata de sair do nosso sistema de representações para as comparar com a realidade, mas
antes de comparar diferentes representações entre si; e como não se trata de fazer
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corresponder representações à realidade, a segunda dificuldade não existe. Também na
teoria pragmatista não se trata de sair do nosso sistema de representações para ver se
correspondem à realidade, mas antes de agir sobre a realidade; e não se trata de fazer
corresponder as nossas crenças à realidade, mas antes de ter crenças que funcionam na
prática.
Eis três objecções a que a teoria da verdade como coerência tem de responder. A
primeira é que não parece possível definir o conceito de coerência sem usar o conceito de
verdade: um grupo de frases são coerentes se e só se podem ser todas verdadeiras.
Assim, esta teoria é inadequada porque depende de um conceito de verdade prévio,
independente do conceito de coerência. A segunda objecção é que nada impede um
conjunto de frases coerentes de serem todas falsas. Por exemplo, uma pessoa que pense
que a Terra está imóvel e que há monstros em Marte tem um conjunto coerente de crenças,
mas ambas são falsas. Claro que o defensor da teoria da coerência limita-se a dizer que
tem em mente a totalidade das nossas crenças, e não apenas um pequeno grupo delas.
Assim, a crença de que a Terra está imóvel, por exemplo, ainda que seja coerente com a
crença de que há monstros em Marte, é incoerente com outras crenças que temos acerca
da Terra e da melhor maneira de explicar o movimento dos corpos celestes; e é por isso
que é falsa. Esta resposta, contudo, é inadequada porque pressupõe que as nossas
crenças não podem ser todas falsas, o que é falso se a verdade for apenas a coerência
entre crenças.
Contudo, é a terceira das críticas que é a mais devastadora: terá o defensor desta
teoria compreendido sequer o problema metafísico da verdade? O problema metafísico da
verdade não é o problema epistemológico do critério de verdade; este último é o problema
de especificar o critério que nos permite saber quando uma crença é verdadeira. O
defensor da teoria da coerência parece confundir as coisas e pensar que se trata de
fornecer um critério de verdade; como ele pensa que o critério não pode ser a comparação
das nossas crenças com a própria realidade, defende então que o critério é a comparação
meramente lógica entre crenças. Todavia, o que estava em causa desde o início não era
um critério para que saibamos quando as nossas crenças são verdadeiras ou falsas, mas
antes o que as torna verdadeiras ou falsas, quer nós saibamos quer não que são
verdadeiras.
Por sua vez, a teoria pragmatista da verdade tem de responder a duas objecções. A
primeira é semelhante à última objecção apresentada à teoria da verdade como coerência:
o seu defensor parece ter confundido o problema metafísico da verdade com o problema
epistemológico da verdade. É certamente razoável pensar que um critério falível mas
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adequado de verdade é a sua verificação prática: as nossas crenças sobre mecânica
automóvel revelam-se falsas quando o carro não anda. O critério é falível porque há
crenças falsas que funcionam na prática: podemos fazemos pontes que não caem sem
saber física newtoniana, como faziam os romanos da antiguidade, e tendo até crenças
mágicas falsas sobre o que sustenta as pontes. Contudo, o problema metafísico da
verdade não dizia respeito desde o início ao critério de verdade ou à nossa verificação da
verdade, mas antes ao que faz uma crença verdadeira ser verdadeira. A segunda crítica é
que o pragmatista parece ver as coisas ao contrário, afirmando que é porque as nossas
crenças funcionam na prática que são verdadeiras, ao passo que parece mais razoável
afirmar que é porque são verdadeiras, ou pelo menos parcialmente verdadeiras, que
funcionam na prática — o que significa que é a verdade que explica o que funciona na
prática, e não o que funciona na prática que explica a verdade.
Além disso, tanto a teoria da verdade como coerência como a teoria pragmatista
parecem partir de críticas inadequadas à teoria da verdade. A primeira dessas críticas,
como vimos, é a ideia de que segundo a teoria da correspondência teríamos de comparar
as nossas representações da realidade com a própria realidade para saber se são
verdadeiras; mas como obviamente não podemos sair do nosso sistema de
representações para as comparar com a realidade, algo estaria errado com a ideia de
correspondência. Todavia, esta crítica é inadequada porque a teoria da correspondência
não pretende dizer-nos quando sabemos que uma crença é verdadeira, mas antes quando
é verdadeira, porquê e como.
A segunda crítica é menos obviamente inadequada porque não se baseia numa
confusão entre metafísica e epistemologia. A crítica seria que nunca poderá haver uma
correspondência exacta entre as nossas representações da realidade e a realidade. Esta
objecção não é epistemológica; trata-se de insistir que nunca poderá uma crença
corresponder à realidade. A ideia é que a crença de que a água é H2O nunca poderá
corresponder à água porque a água é molhada, é composta de oxigénio e de hidrogénio, e
a crença não é qualquer uma dessas coisas. Todavia, o conceito de correspondência que
esta crítica pressupõe é mero mimetismo, coisa que uma teoria da correspondência não
tem de aceitar. Na verdade, qualquer concepção adequada da representação tem de
rejeitar a ideia de que o mimetismo seja uma condição suficiente ou necessária da
representação, como vimos.
Vejamos uma crítica mais promissora à teoria da verdade como correspondência. A
ideia de uma teoria metafísica da verdade é esclarecer o predicado “verdadeiro”: quando
um portador de valor de verdade é verdadeiro, o que está acontecendo? Na teoria da
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correspondência, a resposta seria: esse portador corresponde à realidade porque esta é
como o portador diz que é. Por mais que a teoria inclua pormenores interessantes, como
no caso da teoria de Russell, o conceito filosófico que queríamos esclarecer — a verdade
— nunca é adequadamente esclarecido precisamente porque todos os outros conceitos
usados são menos elementares ou igualmente problemáticos. No máximo, conseguimos
dizer aproximadamente o que já sabíamos sobre o conceito de verdade, mas de uma
maneira um pouco mais técnica. Isso é particularmente visível no caso de Russell: uma
crença é verdadeira quando, além de ser acerca do que existe, representa as relações
realmente existentes entre essas coisas. Todavia, isto não esclarece sobremaneira a razão
pela qual uma crença é verdadeira; limita-se a repetir o truismo aristotélico: é verdadeira
quando representa as coisas como elas são.
É devido a críticas deste género que surgiram em meados do século XX abordagens
deflacionistas do problema metafísico da verdade. Deste ponto de vista, nenhuma teoria
filosófica poderá fazer um trabalho interessante quanto ao problema metafísico da verdade
porque nada há de metafisicamente especial para esclarecer que o próprio truismo da
verdade não esclareça já. Em vez de haver um suposto problema metafísico, o
deflacionista pensa que há apenas uma prática linguística para ser clarificada: a prática de
atribuir discursos ou crenças verdadeiras a outras pessoas. O papel que teria o conceito de
verdade seria tão-somente esse e outros semelhantes, de modo que procurar um problema
metafísico na verdade seria um pouco como procurar um problema metafísico no uso das
aspas. O deflacionista que defende uma teoria descitacional insiste, precisamente, que
nada há no conceito da verdade a não ser o que é directamente revelado no truismo da
verdade, no qual tiramos as aspas de “p”. Um indício favorável a esta teoria é que tanto faz
dizer 1 como 2:
1. A competência entre políticos é rara.
2. A frase “A competência entre políticos é rara” é verdadeira.
O deflacionista que defende a teoria descitacional sustenta que esta equivalência entre 1 e
2 mostra que o predicado “é verdadeiro” é prescindível na maior parte dos contextos,
servindo apenas para fazer comentários acerca do que os outros afirmam, como no
seguinte caso:
3. De tudo o que a presidente afirmou, quase nada era verdadeiro.
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Ora, um conceito que na maior parte dos contextos não precisa de ser usado e que pode
ser eliminado sem perdas e sem precisarmos de usar outro conceito no seu lugar não
desempenha certamente qualquer papel importante na nossa teorização científica, ainda
que tenha importantes papéis sociais e morais: basta pensar na importância de não mentir,
não enganar os outros e relatar as coisas tal como pensamos que são.
Revisão
1. Caracterize as teorias da verdade como coerência.
2. Qual é a vantagem principal das teorias da verdade como coerência?
3. O que é a consistência?
4. Caracterize as teorias pragmatistas da verdade.
5. Explique quais são as críticas às teorias da correspondência que as teorias da coerência e
as pragmatistas evitam. Como evitam elas essas críticas?
6. Quais são as objecções às teorias da verdade como coerência?
7. Quais são as objecções às teorias pragmatistas da verdade?
8. Explique qual é a crítica às teorias da correspondência que as teorias deflacionistas visam
evitar. 9. Caracterize as teorias deflacionistas da verdade. 10. O que é a verdade?
Estudo complementar
O conceito de erro categorial foi introduzido por Gilbert Ryle no primeiro capítulo de The
Concept of Mind, mas tornou-se tão comum que hoje é registado em vários dicionários de
língua inglesa. A citação de Saramago foi retirada da revista Ler. Os conceitos lógicos de
modus tollens, implicação e validade dedutiva surgem em vários livros introdutórios de
lógica, e também na Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, org. de João Branquinho
et al. O paradoxo da pergunta surgiu num pequeno artigo de Ned Markosian, “O Paradoxo
da Pergunta”. No primeiro capítulo de Linguagens da Arte, Nelson Goodman esclarece o
conceito de representação em geral, ao esclarecer o conceito mais específico de
representação pictórica realista. No capítulo “Uma Rosa com Outro Nome”, esclareço
alguns aspectos quanto à natureza da linguagem. Na mencionada Enciclopédia de Termos
Lógico-Filosóficos encontramos o artigo “Proposição, Teorias da” de Guido Imaguire, com
ampla informação histórica e conceptual, assim como o artigo “Verdade, Teorias da”, de
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PROBLEMAS DE METAFÍSICA
— DESIDÉRIO MURCHO
Paul Horwich. Trenton Merricks apresenta no artigo “Veridador” algumas das ideias sobre
este conceito. Finalmente, no capítulo “Verdade e Falsidade”, Russell apresenta o seu
esboço de uma teoria da verdade como correspondência. Referências
Branquinho, João; Murcho, Desidério; Gomes, Nelson Gonçalves, orgs. (2006) Enciclopédia de
Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes.
Goodman, Nelson (1976) Linguagens da Arte. Trad. Vítor Moura e Desidério Murcho. Lisboa:
Gradiva, 2006. Markosian, Ned (1996) “O Paradoxo da Pergunta”, trad. Desidério Murcho. Disputatio, 1. Merricks, Trenton (2009) “Veridador”, trad. Vítor Guerreiro, Crítica, 5 de Julho de 2010, http://
criticanarede.com/veridador.html. Murcho, Desidério (2011) “Uma Rosa com Outro Nome”, in Sete Ideias Filosóficas Que Toda a Gente
Deveria Conhecer. Lisboa: Bizâncio. Newton-Smith, W. H. (1985) Lógica: Um Curso Introdutório. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva,
1998.
Russell, Bertrand (1912) “Verdade e Falsidade”, in Os Problemas da Filosofia. Trad. Desidério
Murcho. Lisboa: Edições 70, 2008.
Ryle, Gilbert (1949) The Concept of Mind. Chicago: University of Chicago Press, 2000.
Saramago, José (2010) “Todos os Nomes”. Ler 93 Julho/Agosto 2010.
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Verdade - Desidério Murcho