A PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL:
ALGUMAS REFLEXÕES
GONÇALVES, Ana Cecilia Teixeira; PINTON, Francieli Matzenbacher
UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL (UFFS)
[email protected]
Resumo
Este trabalho tem como objetivo promover uma reflexão sobre o ensino de produção textual nas séries finais
do Ensino Fundamental. Para isso, pretendemos expor um projeto de extensão realizado pelo Curso de
Letras da Universidade Federal da Fronteira Sul durante o ano de 2011. O projeto A produção de textos nas
séries finais do Ensino Fundamental apresenta como principal característica o fato de promover um
ambiente de debate sobre o ensino de Língua Portuguesa. A metodologia de trabalho está centrada na
ação-reflexão-ação da prática docente: o professor reflete sobre o seu fazer pedagógico para encontrar
novas formas de agir no espaço escolar no qual está inserido. Para tanto, foram oportunizados encontros
cujo eixo temático eram questões relacionadas à teoria e à metodologia do ensino de produção textual. Com
este trabalho, esperamos promover um espaço permanente de debate sobre o ensino de textos, com vistas
a mudanças nas práticas de letramento.
Palavras-chave: Formação de professores, língua portuguesa, ensino, produção textual.
Introdução
A metodologia adotada por professores no ensino de produção textual é um tema que tem
sido discutido já há algum tempo por especialistas e teóricos da área da linguagem. Inúmeras
pesquisas mostram que, no âmbito escolar, em especial no ensino fundamental, a prática docente
é voltada para atividades de reflexão sobre a língua, pautadas no ensino da Gramática
Tradicional. Assim, destina-se um grande tempo das aulas de Língua Portuguesa ensinando-se
nomenclaturas e regras de utilização da língua padrão e, consequentemente, não sobra muito
para a realização de atividades que preconizem o desenvolvimento das habilidades de ler e de
escrever. Com isso, a dificuldade de produzir textos é cada vez mais comum entre os estudantes.
A produção de textos envolve uma multiplicidade de capacidades ou competências
desenvolvidas ao longo da educação básica que foram sendo objeto de investigação de teorias e
pesquisas (ROJO, 2009). Apesar disso, a prática docente do ensino fundamental e médio, com
relação à produção de textos, permanece, em muitos contextos, com a crença de que produzir é
um dom. Em razão disso, o texto literário aparece como modelo padrão, o foco recai no
desenvolvimento de temas e a avaliação está centrada na correção gramatical (BONINI, 2002).
De acordo com Rojo (2009), a escola precisa dar conta das demandas da vida, da
cidadania e do trabalho numa sociedade globalizada e de alta circulação de comunicação e de
informação, sem perda da ética plural e democrática, por meio do fortalecimento das identidades e
da tolerância às diferenças. Sendo assim, o ato de produzir um texto requer uma visão de língua
em uso, linguagem e texto e práticas didáticas plurais e multimodais, que as diferentes teorias de
texto e de gêneros favorecem e possibilitam.
Diante desse contexto, foi proposto o curso A
produção de textos nas séries finais do Ensino Fundamental com o objetivo de refletir acerca do
ensino de produção de textos sob a ótica dos gêneros discursivos nas escolas, promovendo a
(re)construção teórica e prática dos docentes e dos estudantes de Letras da UFFS, participantes
do projeto.
O curso foi desenvolvido no campus de Cerro Largo durante o ano de 2011 e veio
reiterar o objetivo principal do curso de Letras Português/Espanhol desta universidade que é a
formação de profissionais de atuação consciente e autônoma na busca por uma formação
continuada e abrangente como profissional da educação.
Panorama do ensino de escrita no Brasil
O ensino de Língua Portuguesa no Brasil, tradicionalmente, se volta para a gramática
normativa numa perspectiva prescritiva (imposição de um conjunto de regras a ser seguido, como,
por exemplo, as regras de concordância nominal e verbal) e analítica (identificação das partes
constitutivas do todo, com suas respectivas funções, como as funções sintáticas dos termos da
oração, elementos mórficos das palavras) (BEZERRA, 2007, p. 37). Essa constatação nos faz
refletir sobre a ideia de que tradicionalmente não haveria então um ensino de escrita no contexto
de sala de aula no cenário brasileiro. Em razão disso, neste primeiro momento, apresentamos um
breve panorama do ensino de escrita no Brasil, a fim de analisarmos historicamente a
constatação.
Segundo Marcuschi (2000), até a década de 50 do século XX, há o predomínio da língua
como sistema de regras, concepção esta impulsionada pelos estudos estruturalistas, cuja ênfase
recai nas análises fonológica, morfológica e sintática da língua. Como reflexo disso, o ensino de
Língua Portuguesa é visto como o ensino de gramática normativa, ou seja, o ensino de uma
língua estática. Bezerra (2007, p.42) não apresenta uma justificativa linguística para este fato,
mas,
principalmente,
sócio-histórica,
afirmando
que
o
ensino
de
português
baseado
exclusivamente nos livros de gramática ocorre porque o público que tinha acesso à escola falava
o português padrão, cujo modelo deveria ser seguido. Além disso, esse grupo tinha práticas de
leitura e de escrita em seu contexto familiar. Dessa maneira, à escola era reservado apenas o
dever de ensinar explicitamente as regras gramaticais, sem tantas dificuldades. O ensino de
gramática tradicional remete à ideia de que o mundo pode ser descrito em termos de fatos, regras
e regularidades sintetizados em tabelas de conjugação de verbos e declinação de nomes. Nessa
visão, a linguagem é algo que pode ser aprisionado e visualizado por meio de taxonomias e a
escrita é algo que represente o “correto uso da gramática” (cf.: COPE; KALANTZIS, 1993, p. 3).
Nas décadas subsequentes (60 e 70), no entanto, um novo cenário surge no contexto
educacional brasileiro: novos alunos chegam às salas de aula, oriundos de outras camadas
sociais, com diferentes letramentos daqueles conhecidos até então.
Com o aumento do número de alunos nas escolas, houve a necessidade de formar
rapidamente novos professores para atender a esta nova demanda. Geraldi (1997) ressalta a
consequência dessa “democratização na educação”: professores sem embasamento teórico e
metodológico necessários ao processo de ensino-aprendizagem. Como forma de solucionar
rapidamente o problema, foram oferecidos livros didáticos, cuja concepção era de que o professor
apenas seguisse as prescrições, sem questionar ou propor qualquer atividade em sala de aula:
Assim, a solução para o despreparo do professor, em dado momento, pareceu
simples: bastaria oferecer-lhe um livro que sozinho, ensinasse aos alunos tudo o
que fosse preciso. Os livros didáticos seriam de dois gêneros: verdadeiros livros
de textos para os alunos, e os livros feitos para os professores, para que
aprendesse a servir-se bem daqueles. Automatiza-se, a um tempo, o mestre e o
aluno, reduzidos a máquinas de repetição material. (GERALDI, 1997, p. 117.)
Nesse mesmo contexto, começa a emergir um novo pensamento educacional que
vislumbra a educação como um fator de desenvolvimento – social, político e econômico. O novo
pensamento educacional é oficializado no Brasil na reforma de ensino de 1º e 2º graus, com a Lei
5.692/71. A disciplina de língua portuguesa passa a ser denominada “Comunicação e Expressão”
no ensino de 1º grau e “Comunicação” no 2º grau. Essa mudança é impulsionada pelas teorias
linguísticas que concebem a língua como um código por meio do qual as mensagens são
enviadas de emissores a receptores, com funções diferenciadas: função emotiva (centrada no
emissor), função conativa (centrada no receptor), função referencial (centrada no contexto),
função fática (centrada no canal), função metalinguística (centrada no código) e função poética
(centrada na própria mensagem). (Ver Jakobson, 1976 [2005]).
Conforme Reinaldo (2005, p. 89), é justamente na década de 70 que há uma tendência em
separar as regras gramaticais dos processos mentais envolvidos na compreensão e produção de
texto. Para Bunzen (2006, p.144), nesse momento é que surge efetivamente um ensino
sistemático de escrita, observando-se um incentivo à questão da criatividade, pois os textos de
leitura eram considerados estímulos para a escrita. Apesar desse novo enfoque, não há uma
ruptura com o contexto anterior, pelo menos não completa. O desenvolvimento da escrita continua
sendo visto como resultado da prática de imitação de boa escrita, baseado na clássica tipologia:
narração, descrição, argumentação, explicação e diálogo.
Como garantia da aprendizagem dessa tipologia, os modelos são apresentados
linearmente assumindo a perspectiva de um ensino prescritivo e normativo. Isso pode ser
verificado em programas de ensino em que a descrição e a narração são ensinadas nas quintas e
sextas séries, e a dissertação nas sétimas e oitavas séries do 1º grau. A ênfase continua recaindo
na imitação, dado os inúmeros exercícios de cópias e reproduções de textos que estão presentes
nas escolas. Nesse sentido, o texto não é visto como constitutivo de uma prática social, é visto
apenas como um conjunto de unidades linguísticas por meio do qual se expressa um pensamento.
No final dos anos 70, início dos 80, novamente há um processo de questionamento e
revisão do ensino vigente. Há um movimento de mudança nos objetos de ensino, não somente no
Brasil, mas em outros países como Portugal, França e Austrália. Esse novo momento para o
ensino de língua privilegia a noção de interação e de atividade verbal, em oposição à língua como
instrumento de comunicação. O texto passa a ser o centro do ensino e, em consequência disso,
há a diversificação das situações de leitura e escrita na sala de aula, a partir de exemplares
variados.
No final dos anos 80, Geraldi apresenta importantes reflexões acerca do ensino de
produção textual, em especial, na obra intitulada “Portos de Passagem”:
Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto
de chegada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua. E isto não
apenas por inspiração ideológica de devolução do direito à palavra às classes
desprivilegiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não contada, da grande
maioria que hoje ocupa os bancos escolares. Sobretudo, é porque no texto que a
língua – objeto de estudos – se revela em sua totalidade quer enquanto discurso
que remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de
enunciação marcada pela temporalidade e suas dimensões. (1997, p. 135).
Com essas reflexões iniciais, alerta sobre uma realidade escolar: há muita escrita e pouco
texto. Em razão disso, faz uma pertinente distinção entre produção de textos e redação: nesta,
produzem-se textos para escola; naquela produzem-se textos na escola (GERALDI, 1997, p.137).
Segundo o autor, para produzir um texto é necessário que:
a) se tenha o que dizer;
b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;
c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;
d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz (o que implica
responsabilizar-se, no processo, por suas falas)
e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d).
Podemos detectar na proposta de Geraldi (1997) um prenúncio para o ensino de produção
textual com foco em gêneros, ou seja, um movimento no sentido de que a língua é interação e
como tal pressupõe atividade verbal que conduza a isso. Tal fato pode ser comprovado, quando o
autor sugere algumas práticas possíveis para o ensino de produção de textos na escola, tendo por
base o esquema interlocutivo (GERALDI, 1997, p. 162-165):
1) Definição dos interlocutores: a escola como instância pública de uso da linguagem pode
definir um projeto de produção de textos com destinação a interlocutores reais ou possíveis.
2) Razões para dizer: a sustentação do projeto está condicionada ao envolvimento dos
integrantes, os quais devem encontrar uma motivação interna ao próprio trabalho a executar, para
que este não se torne uma mera tarefa a cumprir.
3) Ter o que dizer: o ato de produzir texto não como uma reprodução dos saberes
escolares, mas como transformação do vivido particular, somado a outros vividos particulares
revelados por seus colegas que requerem a reflexão e a construção de categorias para
compreender o particular no geral em que se inserem (GERALDI, 1997, p. 164).
4) A escolha de estratégias: a seleção ou a construção das estratégias tanto em função do
que se tem a dizer quanto das razões para dizer a quem se diz. Momento em que se dará a maior
contribuição do professor-interlocutor, que sugere, questiona, testa o texto do aluno como leitor e
aponta os possíveis caminhos para o aluno dizer o que deseja dizer na forma que escolheu.
Para finalizar, Geraldi (idem) argumenta que centrar o ensino na produção de textos é
tomar a palavra do aluno como indicador dos caminhos a serem seguidos no que diz respeito à
compreensão dos fatos sobre os quais se fala e também dos modos pelos quais se fala.
Nessa mesma perspectiva, Guedes (2003) publica o manual de redação intitulado Da
redação escolar ao texto, cujo ponto de partida são suas anotações sobre o que lhe intrigava nos
textos de seus alunos, nas décadas de 70 e 80. A confluência entre a sua prática docente e a
teoria resultou na configuração das qualidades discursivas que toda produção textual deve conter.
Utilizamos neste momento o termo produção textual porque o manual foi revisado e passou a ser
intitulado Da redação à produção textual.
As qualidades discursivas são denominadas como o conjunto de características que
determinam a relação que o texto estabelece com seus leitores por meio do diálogo e também
com os outros textos que o precederam nessa relação (GUEDES, 2009, p.94). Diante disso, o
autor nomeia-as de: unidade temática, objetividade, concretude e questionamento.
A unidade temática, segundo Guedes (2009, p.59-60), permite uma chave e uma direção
no trabalho de atribuição de sentido a cada uma das palavras que o leitor lê, assim como a
relação que ele estabelece com e entre elas. Já a objetividade consiste no fornecimento de todos
os dados necessários para que a mensagem seja clara para o leitor. Nesse sentido, é a
concretude que irá garantir que a mensagem seja expressa com precisão, permitindo que o leitor
atribua sentido ao escrito, a partir dos recursos expressivos empregados pelo escritor. Além disso,
é necessário que o escritor envolva seu leitor, mobilize suas energias intelectuais, convocando-o a
participar do texto, esta seria a última qualidade – o questionamento.
Em seu manual, o autor apresenta ainda uma distinção entre a composição, a redação e a
produção de texto. A palavra composição, usada para designar textos escritos na escola, é a
mais antiga: vincula-se à mesma teoria que dá embasamento à gramática tradicional e vê a
linguagem como instrumento de organização e de expressão do pensamento dentro dos princípios
da chamada lógica formal. Interessa mais a correção do processo de raciocinar do que a
finalidade com que o raciocínio é enunciado. Já a palavra redação expressa a eficiência
tecnocrática, cujo objetivo é seguir modelos de textos. Nessa visão, a linguagem é um meio de
comunicação, um código pelo qual o emissor cifra sua mensagem, que será decifrada pelo
receptor. Finalmente, a produção de texto é a ação de escrever. Nesse sentido, trata-se de
produzir, de transformar, mudar, mediante a ação humana, o estado da natureza com vistas a um
interesse humano. Em razão disso, a linguagem é vista como forma de ação, processo de
estabelecer vínculos, de criar compromissos entre os interlocutores (GUEDES, 2009, p. 88-90).
A visão de ensino de produção textual tanto para Geraldi (1997) como para Guedes (2009)
está pautada na interação, já que concebem a escrita como uma maneira de interagir na
sociedade. No final dos anos 90, emergem novas propostas para o ensino de produção textual
voltadas agora, de fato, à noção de gênero de texto/discurso.
Essa nova visão ganha significativa força, no Brasil, quando são publicados os
documentos de regulação do sistema educacional - Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1997). Conforme Machado e Guimarães (2009, p.26), a proposta de ensino de gêneros de textos
feita nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino de Língua Portuguesa para o
terceiro e quarto ciclos foi fundamental para o desenvolvimento de publicações acadêmicas sobre
a questão dos gêneros, tanto do ponto de vista teórico quanto didático. No Brasil, na década de
90, conforme Motta-Roth (2008, p.346), há uma produção intensa de trabalhos voltados ao ensino
e à pesquisa da língua escrita com base em gêneros no Brasil, anteriores ou concomitantes à
publicação do documento oficial: Motta-Roth (1995); Bonini (1998); Motta-Roth e Hendges (1996);
Rojo (1997); Machado (1998) e Araújo (1998). Ainda nessa década, inúmeras pesquisas de
mapeamento de diversos gêneros são apresentadas: gênero editorial de revistas femininas
(HEBERLE, 1995), apresentações acadêmicas (BALOCCO; DANTAS, 1997), textos de auto-ajuda
(MEURER; 1998), sentenças jurídicas em casos de estupro (FIGUEIREDO, 1995), bate-papo
virtual (BRAGA, 1999), resumos de dissertações (BIASI-RODRIGUES, 1999) e gêneros
empresariais (BÁRBARA E SCOTT, 1999).
Evidentemente, a normalização do conhecimento proposta nos documentos oficiais
sinaliza a existência de uma dinâmica de pesquisa e ensino em torno do conceito de gênero que
se dirige à maturação do debate na área (MOTTA-ROTH, 2008, p. 349). Os PCN constituem um
grande avanço para o ensino no sentido de que representam uma desestabilização das práticas
pedagógicas tradicionais. Conforme análise realizada por Motta-Roth (2006, p. 497):
a perspectiva de linguagem adotada nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(doravante PCN) é orientada para a vida social e se configura em um avanço, se
comparada à visão estruturalista amplamente adotada na escola até bem
recentemente, em que se definia um programa de curso em termos de categorias
da gramática normativa a serem trabalhadas de modo descontextualizado, tais
como a concordância verbal e o emprego de advérbios.
Ao apresentar uma proposta voltada para uma visão social da linguagem, os documentos
oficiais enfatizam a necessidade de um ensino que permita ao educando a mobilização e a
articulação de competências discursivas, fazendo com que este faça uso da linguagem nas mais
variadas situações. Diante disso, o ensino de linguagem sob a perspectiva dos gêneros contribui
para que se vivencie na escola atividades sociais, das quais a linguagem é parte essencial,
atividades das quais o aluno, muitas vezes, não terá acesso senão pela escola (MOTTA-ROTH,
2006, p. 503).
De acordo com Rojo (2006), os PCN preveem um novo leitor/produtor de textos, ou seja:
um usuário eficaz e competente da linguagem escrita, imerso em práticas sociais
e em atividades de linguagem letradas, que, em diferentes situações
comunicativas, utiliza-se dos gêneros do discurso para construir ou reconstruir os
sentidos de textos que lê ou produz. Esta visão é bastante diferente da visão
corrente do leitor/escrevente como aquele que domina o código escrito para
decifrar ou cifrar palavras, frases e textos e, mesmo, daquele leitor/escrevente
que, dentre os seus conhecimentos de mundo, abriga, na memória de longo
prazo, as estruturas gráficas necessárias para compreender e produzir,
estrategicamente, textos com variadas metas comunicativas (2006, p. 121).
Em conformidade com isso, o leitor/produtor de textos é um ser consciente do que a escrita
pode acarretar sobre o indivíduo e sobre a sociedade como um todo. Nesse sentido, o ato de
escrever traz consequências sociais, políticas, culturais, econômicas, cognitivas, linguísticas, seja
para o grupo social em que seja introduzida a escrita, seja para o indivíduo que aprenda a usá-la
(SOARES, 2006, p.17), por isso
Qualquer contexto social ou cultural que envolva a leitura e/ou a escrita é um
evento de letramento; o que implica a existência de inúmeros gêneros textuais,
culturalmente determinados, de acordo com diferentes instituições e usados em
situações comunicativas reais. Sendo culturalmente determinados, os gêneros
textuais não são aprendidos e usados igualmente por todos: aqueles que são
rotinizados por grupos sociais influentes não chegam à população em geral
(BEZERRA, 2007, p.40).
Portanto, um ensino sob a perspectiva dos gêneros favorece o desenvolvimento da
competência comunicativa dos alunos, já que os conhecimentos que os seres humanos possuem,
sua identidade, seus relacionamentos sociais e sua própria vida são em grande parte
determinados pelos gêneros textuais a que estão expostos, que produzem e consomem. Pode-se
afirmar que a própria cultura de um país, como um todo, é caracterizada pelo conjunto dos
gêneros textuais produzidos e utilizados pelos seus cidadãos. Consequentemente, a investigação
e o ensino sistemáticos dos diversos tipos de texto em uso – escritos por quem, para que fins,
como, em que ambientes, com que grau de transparência ou de camuflagem hegemônica e
ideológica – são essenciais para a formação dos profissionais responsáveis pelo ensino da
linguagem no país (MEURER, 2000, p. 152-53).
Muda-se, assim, de uma concepção de ensino de Língua Materna voltada para a
prescrição de regras gramaticais para um ensino voltado para os usos e funções da linguagem
numa situação comunicativa. Nesse novo contexto, a compreensão do funcionamento dos
gêneros na sociedade significa compreender também como funciona esta mesma sociedade.
Metodologia
Assim, analisando o paradigma de ensino de escrita no Brasil, encontramos professores
angustiados, que não têm autonomia para ministrar sua aula em função de todo um programa de
ensino que existe e prescreve seu trabalho. Um exemplo claro disso são os chamados planos curriculares que preveem o que deve ser dado pelo professor de acordo com a série/ano em que
atua. É interessante salientar que, embora haja um esforço grande para que se trabalhem as competências comunicativas dos estudantes – e a escrita tem lugar de destaque nesse ínterim -, destacado nos PCN, por exemplo, nos planos curriculares, volta-se para o ensino de gramática. E o
que pode ser observado é que os professores de LP não conseguem se desprender de um ensino
tradicional justamente em função desses textos prescritivos.
Nesse contexto, foi pensado o projeto de extensão que envolvesse não só professores que
já atuam na sala de aula, mas também estudantes de Letras, professores em formação que certamente irão se deparar com essas questões em sua vida profissional. Durante os encontros do projeto, buscamos promover um espaço de debate permanente sobre os conhecimentos teóricos e
metodológicos que norteiam o ensino de produção textual na escola de Ensino Fundamental,
identificando novas possibilidades de ação a partir da reflexão como reconstrução da experiência.
Procuramos, ainda, refletir sobre o que significa ensinar a produzir textos na escola, o que levou a
uma análise crítica das diferentes concepções teóricas e metodológicas sobre o ensino de produ-
ção textual. No intuito de entender o novo paradigma de ensino de LP, procuramos também ler criticamente os Parâmetros Curriculares Nacionais, relacionando-os com as propostas de ensino de
produção textual com foco em gêneros discursivos.
Durante os encontros, priorizamos a experiência profissional de cada professor. Os docentes tinham a oportunidade de compartilhar experiências, angústias, enfim, questões relacionadas
ao ensino de língua materna.
Telles defende que essa prática reflexiva pode funcionar como um recurso didático-metodológico, contribuindo, desse modo, com a formação e a prática de professores de Língua Portuguesa. O compartilhamento de situações que fazem parte da rotina do professor pode funcionar
como um mecanismo “deflagrador”, que provoque uma reflexão sobre o que se faz e como seria o
ideal de se fazer e uma retomada de conceitos, de experiências, de sentimentos experimentados
nos mais diversos contextos de atuação profissional. (2007, p. 328)
Resultados e discussões
As manifestações
linguísticas dos professores e dos estudantes permitiram observar
pressupostos sobre a concepção de linguagem apresentada, como também pressupostos sobre o
trabalho educacional na sociedade contemporânea, mais precisamente, o trabalho do professor
de língua portuguesa e, por fim, pressupostos sobre a relação existente entre a concepção de
linguagem e a prática em sala de aula.
Conforme Machado (2009), para se compreender o trabalho docente é necessário tomar
como objeto de análise não as condutas diretamente observáveis desses profissionais, mas os
textos que são produzidos acerca dessa atividade. Nesse contexto, primeiramente, utilizamos
mecanismos de reflexão sobre o ensino de língua portuguesa que auxiliaram a compreender o
trabalho docente em questão. Em um segundo momento, observamos a representação dos
professores sobre questões relacionadas à linguagem e ao ensino de língua. Para isso, levamos
em consideração que estes profissionais possivelmente agiram movidos por referências sociais
que tendem a ter um caráter prescritivo sobre o seu trabalho.
A interpretação dos dados obtidos a partir da reflexão realizada possibilitou compreender
aspectos relevantes sobre a prática docente e sobre o ensino de produção textual. Duas questões
foram recorrentes e, por isso, merecem destaque: primeira delas está relacionada com a
concepção de linguagem expressa pelos professores e sua relação com a prática; a segunda está
relacionada à autonomia do profissional de língua materna.
Em primeiro lugar, contatamos que os docentes não apresentam uma concepção clara de
linguagem e esse fato interfere, de forma latente, na prática em sala de aula. Questionados sobre
sua representação de linguagem, a maioria dos professores respondeu que a linguagem era um
instrumento de comunicação, concepção esta que não está de acordo com o ensino voltado para
os gêneros textuais. Esse fato contribui para que, na maioria das vezes, a aula de LP seja voltada
para atividades tradicionais de reflexão linguística, o que, segundo os professores é cobrado nos
planos curriculares. O trabalho com escrita, nesse sentido, fica em segundo plano e ocorre com
menos frequência, com foco em questões mecânicas. A maioria dos professores listou como
principais preocupações nesse tipo de atividade a questão ortográfica, embora aspectos como a
coesão e coerência textual tenham sido citadas também. Conforme depoimentos de professores,
o trabalho com redação é o mais importante na disciplina de LP, mas existem muitos pontos que
não deixam tempo para isso, como o ensino de gramática previsto no currículo escolar.
Foi possível notar também que os professores não têm autonomia para gerenciar sua aula.
Questionados sobre a
importância de
atividade
de desenvolvimento das habilidades
comunicativas, como a leitura e a escrita, muitos docentes responderam que tinham dificuldades
em organizar aulas desse tipo em função de um olhar negativo por parte dos demais colegas de
outras áreas, assim como diretores e coordenadores. Para os docentes, as aulas de leitura e de
produção textual, por apresentarem como característica o fato de serem mais agitadas, são vistas
pelos outros profissionais como perda de tempo. Essa preocupação com o olhar do outro
demonstrou falta de autonomia por parte dos docentes, que acabam evitando tais atividades ou
realizando-as com menos frequência.
É possível observar, portanto, que esses dois fatores estão interligados: a falta de uma
concepção clara de linguagem, que daria fundamentação teórico-metodológica e nortearia a
prática do professor, acarreta na ausência de autonomia por parte do profissional, o que gera
insegurança e insatisfação. Notamos que os professores querem mudar o paradigma de ensino
tradicional de LP, mas não conseguem porque não têm preparo teórico-metodológico para isso.
Considerações finais
Em meio a tantas mudanças, principalmente na forma como compreender a linguagem,
encontramos muitos professores de língua portuguesa que se veem, ainda hoje, com dificuldade
de manifestar uma concepção clara de linguagem e desenvolver um trabalho a partir dela. Nesse
sentido, o projeto desenvolvido com os professores buscou, primeiramente, trabalhar com
questões referentes à representação de linguagem e de ensino de língua, para, depois, refletir
sobre a sua atividade docente.
Constatamos que a falta de uma concepção de linguagem e a ausência de autonomia por
parte dos professores, resulta numa prática em sala de aula caracterizada pela insegurança e pela
insatisfação desses profissionais. O desenvolvimento destes aspectos seria de grande
importância para que o paradigma de ensino de LP sofresse alterações. Sugerimos, então, que
sejam proporcionados contextos nos quais se possa refletir sobre questões voltadas para o ensino
de textos, com vistas a mudanças nas práticas de letramento; cursos de formação continuada nos
quais haja um diálogo entre os trabalhos realizados no âmbito universitário com a realidade
escolar.
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