CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA Análise do «Ensaio para a Reorganização da Estrutura Judiciária» Declaração Acompanhando ‒ tal como a «Análise» que precede ‒ os importantes objectivos cuja realização o «Ensaio» e a reforma nele prefigurada têm em vista e acompanhando também genericamente essa exaustiva «Análise» (cuja qualidade e relevância, como contributo positivo para aquela reforma, mesmo nas preocupações que manifesta, devo sublinhar), entendo não poder deixar de acrescentar, às suas considerações mais gerais, o seguinte: a) Comungo das preocupações que em tal «Análise» se manifestam quanto à implementação da nova matriz territorial da organização judiciária. Mas, para além delas, pergunto-me se a dimensão do «distrito administrativo» (em termos territoriais, demográficos e também, se não sobretudo, em termos de número e «unidades orgânicas» judiciárias incluídas) – e mesmo partindo desse critério básico – será sempre a mais adequada aos objectivos visados pela própria reforma. Afigura-se-me, na verdade, que em alguns casos, pelo menos, vão criar-se circunscrições judiciais com uma dimensão tal que a sua gestão (processual, pessoal e logística) se vai tornar necessariamente muito complexa (se inteiramente viável, nos termos desejáveis). Penso, naturalmente, e desde logo, nos casos de Lisboa e do Porto, mas também das restantes «novas comarcas» em que está previsto o «desdobramento» da instância central cível e criminal (Braga, Aveiro, Setúbal e Faro, além dos Açores) – e porventura ainda em alguma outra. De resto, esse «desdobramento» da «grande instância» (chame-se-lhe assim) é já índice de uma certa dificuldade (dir-se-á mesmo, da impossibilidade) de estender a correspondente competência a todo o território do distrito – e de que a dimensão deste aponta para (ou impõe) uma sua sub-divisão. O que se me afigura, assim, é que nesses casos, em lugar de manter estritamente o critério distrital (a mesma «comarca» em todo o distrito), será preferível abandoná-lo 1 e criar uma «comarca» na área correspondente ao território de cada uma (porventura, em Lisboa e Porto, de mais de uma) das secções da instância central previstas no «Ensaio». (Notarei, de resto, que isto não anda longe – ao contrário – da ideia da «agregação de círculos judiciais» de que se faz eco a precedente «Análise»; e que, num caso e no outro, se vai ao encontro da dimensão dos «círculos judiciais» primitivamente criados – o número dos quais (convém lembrá-lo) era consideravelmente menor do que o actual. Não é um acaso: é que o território do país mantém-se o mesmo, e portanto haverá sempre certas invariâncias na sua divisão territorial, seja para que efeito for). b) Comungo inteiramente, também, das observações da «Análise» do Conselho relativamente à nova terminologia ‒ em particular quanto ao abandono das denominações de «tribunal» e de «comarca» para as unidades orgânica e territorial de dimensão mais reduzida. Essas denominações têm uma carga tradicional muito intensa, com as quais os cidadãos e as comunidades locais se identificam e em que se revêem – e de tal modo que se pode e deve mesmo perguntar se a sua «trasmudação» não acaba por ir ao revés daquela «função simbólica» da justiça e dos tribunais, a que pertinentemente se alude no «Ensaio». Entendo, por isso, que as denominações de «tribunal» («tribunal judicial») e de «comarca» devem continuar reservadas para as unidades a que tradicionalmente correspondem, e que deverão adoptar-se as denominações de «círculo judicial» e de «tribunal de círculo» (porventura - por que não? - «vara») para as unidades «comarca» e «instância central» delineadas no «Ensaio». Dir-se-á que com a trasmudação de denominações referida se quis, justamente, produzir e acentuar uma «ruptura» com um certo modelo de organização judiciária. Só que não vejo que, para operar essa «ruptura», tal mudança «terminológica» seja necessária; o que importa á a mudança «substantiva», e essa pode perfeitamente fazerse: tratar-se-á de organizar o sistema judiciário, e de optimizar e racionalizar os seus recursos, em torno, já não da unidade territorial «comarca», mas da unidade «círculo judicial». Não vejo que haja qualquer obstáculo a que seja assim – e, designada, mas seguramente, que um obstáculo desse tipo possa estar no artigo 210º, nº 3, da 2 Constituição, ao dispor que «os tribunais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca». Basta logo a circunstância de que, dizendo as coisas assim, a Constituição deixa afinal ao legislador uma larga margem de «liberdade» para a conformação da organização judiciária – o que, na verdade, só por si possibilita que aquele não tenha de tomar como «centro» dessa organização, para efeitos de «gestão» dela (nas suas diversas vertentes) a unidade «comarca». (Ao que se poderá aduzir que não parece, sequer, que seja essa perspectiva da «gestão» daquela organização a que subjaz ao preceito constitucional). Ao que fica dito acresce, entretanto, que a manutenção das denominações «tradicionais» e a adopção das denominações acima sugeridas para as novas unidades territoriais e orgânicas facilitará, porventura, a concepção, a fixação e a própria formulação das regras de distribuição da competência territorial entre os tribunais. c) O «Ensaio» não se estende à definição (ou re-definição) dos «distritos judiciais». Assim sendo, na «Análise» a que esta declaração vai junta, a «nova» comarca de Aveiro foi incluída, para efeito desse tratamento analítico, no distrito judicial de Coimbra – a que hoje pertence a comarca-piloto do Baixo Vouga, com sede naquela cidade. Mas, tomando justamente esse exemplo, adverte-se na mesma «Análise» (nº 3.6) para a necessidade de, vindo a ser implementada a reorganização, nos termos contemplados no «Ensaio», ser necessário reconsiderar a área e os limites daqueles distritos judiciais. Ora, a este propósito, impõe-se-me dizer que – seja qual for a figuração final que o modelo de reorganização apresentado pelo «Ensaio» venha a assumir – será sempre inteiramente inadequado, injustificado e inaceitável que os tribunais (ou «instâncias») com jurisdição nas actuais comarcas do norte do distrito de Aveiro (abrangendo os actuais círculos judiciais de Santa Maria da Feira e Oliveira de Azeméis, ou seja, os municípios, além destes, de Espinho, S. João da Madeira, Vale de Cambra, Arouca e Castelo de Paiva) fiquem fora do Distrito Judicial do Norte, mais precisamente, fora da jurisdição do Tribunal da Relação do Porto. A inclusão dos mesmos tribunais ou instâncias na jurisdição deste impõe-se por óbvias razões geográficas – as mesmas que 3 determinam a pertença dos correspondentes municípios à CCDR Norte e de quase todos (salvo Castelo de Paiva) à Área Metropolitana do Porto, e que são atestadas por uma longuíssima tradição (que vem, dir-se-á, desde sempre). Claro que não haveria qualquer dificuldade nisso, se ainda viesse a ocorrer uma revisão do estrito «modelo distrital» apresentado no «Ensaio», em função de considerações como as expendidas supra [alínea a)] ou da mesma ordem, e no sentido aí aventado: isso levaria a que na área no distrito de Aveiro houvesse duas comarcas, ficando a correspondente à parte norte do distrito integrada, naturalmente, na Relação do Porto. Mas, ainda vindo as coisas a ficar, no final, tal constam do «Ensaio», ainda aí se impõe a solução acima referida – a qual poderá passar inclusivamente, em meu modo de ver (que não será, aqui, porventura, inteiramente coincidente com o implícito na «Análise» que estou a acompanhar), pela distribuição da área da «nova comarca» de Aveiro por dois distritos judiciais. Não vejo nisso qualquer impossibilidade, nem sequer inconveniência (desde que mantida a «homogeneidade» da afectação territorial); mas acresce que uma tal solução já hoje está contemplada e é viabilizada pelo disposto no artigo 30º, nº 1, da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto (e foi mesmo transitoriamente adoptada, quanto às actuais comarcas-piloto, pelo artigo 174º da mesma Lei). Mas, se, de todo em todo, não puder ou dever ser assim, então a solução sem dúvida mais razoável (comparando as afinidades geográficas, as distâncias relativas, as acessibilidades e a facilidade de comunicações) será a da integração da «nova comarca» de Aveiro na área do Tribunal da Relação do Porto (à qual, de resto, também já pertenciam as antigas comarcas de Ovar e de Estarreja, hoje na comarca do BaixoVouga). d) Chamaria ainda a atenção para um último ponto, de bastante mais pormenor na sua concretização, mas que considerarei em termos gerais – ponto esse relativo à distribuição da competência territorial das secções da instância central ou de secções especializadas, tal como prefigurada no «Ensaio». Se vi bem, nas «comarcas» em que há mais do que uma secção cível ou criminal e de que uma ou mais secções especializadas dessa instância central, nem sempre há 4 coincidência ou «homogeneidade» territorial da competência dessas secções, segundo os municípios (vejam-se, por exemplo, na «comarca» de Braga, os casos de Póvoa de Lanhoso e Vieira do Minho, abrangidos, por um lado, pelas secções cível ou criminal de Guimarães, e, por outro, pela Secção de Família e Menores de Braga; ou na «comarca» de Aveiro, o caso de Oliveira de Azeméis, abrangido pela Secção de Família e Menores de Estarreja, quando a homogeneidade territorial levaria a que fosse abrangido pela mesma Secção especializada com sede prevista em Santa Maria da Feira). Situações destas são fatalmente perturbadoras para os cidadãos (nos quais, antes de tudo, importa pensar), directamente e pela sua repercussão na actividade forense, e, possível, se não provavelmente, poderão ter mesmo reflexos negativos em termos processuais e de administração da justiça. Afigura-se-me, por isso, que devem ser evitadas (e eliminadas), não devendo razões de outra ordem (que terão estado na sua base, como, porventura, a do equilíbrio de distribuição os serviço) sobrepor-se àquelas primeiras. JOSÉ MANUEL M. CARDOSO DA COSTA 5