Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo & Flávia Florentino Varella (org.). Caderno de resumos & Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9) O HISTORIADOR EM WEBER: ENTRE O SÁBIO E O POLÍTICO Fernando Gomes Garcia Tal como Michel de Certeau1, compreendo que todo trabalho de teoria da História é funciona como uma confissão; momento íntimo do historiador de se interrogar sobre sua prática, refletir sobre sua metodologia, a validade de seus resultados, a pertinência de seu trabalho. E – como em toda atividade introspectiva – nessa tarefa, encontramo-nos numa tarefa difícil, incômoda, inconveniente, até, não obstante indispensável. Aquele que não reflete sobre o que faz corre o risco de cair no dogmatismo, imperativos categóricos, nas verdades eternas e axiologias que não passam de erros de julgamento. Tarefa indispensável, portanto. Neste esforço reflexivo, íntimo do historiador e seu trabalho, há limitações intransponíveis, surgem questões irrespondíveis, que nem por isto justificariam o silêncio; se a História, podemos dizer, é fruto da necessidade do historiador de problematizar o mundo que vive, sua teoria provém desta inquietação, da vontade (ou necessidade?) de oferecer respostas para as perguntas surgidas, em suma, de buscar verdades quando tudo ao seu redor e toda sua experiência só podem indicar que a verdade, se existir, jamais é unívoca. Por este raciocínio podemos concluir: o trabalho historiográfico2 quando volta para si (ou seja, em sua dimensão teórica, meta-histórica) assume uma dupla posição: por um lado, essa intimidade que é oculta do resultado e apresentação da pesquisa propriamente dita; por outro, um momento de falsidade inerente a qualquer auto-reflexão. Expliquemos melhor. Primeiramente, falemos desta “falsidade” presente no trabalho teórico do historiador para descartar o tema de uma vez, já que não é objetivo observar suas implicações neste trabalho, mas urge identificá-lo. A teoria da história, por ser tarefa de um historiador, não pode nunca ser completamente sincera – afinal de contas, temos um historiador falando sobre o que faz. É um momento de abstração com seus inevitáveis riscos, que pode facilmente levar a uma idealização do que a historiografia deveria ser. Mesmo tomando os devidos cuidados e 1 Todas as referências feitas a Michel de Certeau no presente trabalho serão retiradas de CERTEAU, Michel de. A Escrita da História; tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão técnica de Arno Vogel. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 2 Tal como Certeau, na medida do possível, privilegiarei o conceito de historiografia ao de História, por refletir de maneira mais explícita da “dupla natureza”: a de uma prática e a de um discurso. No entanto, adicionaremos aqui uma “terceira natureza” da História: sua imersão na vida efetiva, considerando-a como um desdobramento da “natureza prática” da História. 1 realizando uma análise do que a historiografia efetivamente é (ou seja, tal como se a pratica ou pretende-se praticar), os riscos não são eliminados. Sabendo que sua atividade não possui um sentido imanente, sendo antes dado pela própria comunidade de historiadores, esta “dimensão efetiva” do que é a historiografia torna-se uma construção social e as respostas às perguntas podem não ser satisfatórias, submetendo-se às premissas. Uma metáfora que entendo retratar bem a situação é a de um sujeito que, querendo avaliar sua sanidade, aplica ele mesmo os métodos da análise psicanalítica para estudar-se a si mesmo. Sendo ele louco ou são, o diagnóstico, provavelmente, seria o mesmo e insuficiente. Este pequeno comentário sobre a “opacidade” teórica deverá bastar e servir de introdução sobre o referido momento da “intimidade”, o qual se dá pela “tomada de consciência” dos próprios limites do trabalho, da capacidade de historicizar o próprio conhecimento e prática historiográficas. Este ato provém, justamente, da impossibilidade de trazer respostas definitivas para as questões levantadas. Como coloca Certeau, reflete o não-dito de nossa atividade. Quando interrompe sua “deambulação erudita pelas salas do arquivo”3 e se pergunta sobre sua própria prática, vê-se forçado a atribuir a si mesmo um lugar, um tempo. O lugar de que fala o historiador é a “marca indelével” presente em seu trabalho, que, no entanto, não coloca-se manifesta explicitamente em seu trabalho – aparece, justamente, nesse momento de introspecção. A sinceridade do historiador se dá, quando ele, por seu turno, aplica um tratamento histórico à sua disciplina: deixa de vê-la como uma consciência flutuante, ironicamente a-histórica; como a concretização racional de uma idéia, como o progresso da razão, como a verdade científica desvelada pelo tratamento metódico do objeto por parte de um sujeito. Não obstante a incapacidade de impôr algo definitivo, a teoria da História, é uma atitude honesta do historiador, ou antes, a plena consciência de sua atividade e o caráter maior da pesquisa histórica. Louco ou são, ao fazer uma teoria da história, que supostamente elimina o “outro” (o passado, o estranho, etc.) com o qual tratamos, colocamo-nos em seu lugar, sendo a historiografia seu próprio objeto de estranheza. Entende-se seu caráter “ficcional”, seu aspecto temporário, passageiro, uma prática como outra prática qualquer, em qualquer parte do tempo – enfim, uma produção, no sentido mesmo atribuído por Marx à palavra. Entendendo, pois, todo esforço teórico como espécie de “confissão”, ao pretender enquadrar este trabalho na categoria de pesquisa, devo eu mesmo tecer algumas considerações 3 CERTEAU, Michel de. Op.cit. p.65 2 sobre os limites e possíveis falhas da mesma. Seja qual for o caminho que eu siga para começar o trabalho, provavelmente o resultado será o mesmo. Entretanto, o modo de se o obter é decisivo para a clareza de idéias e a harmônia do texto. Tal tarefa tornou-se particularmente trabalhosa, uma vez que, a idéia original deste trabalho foi ampliando-se a tal ponto que a pesquisa até então efetuada, e mesmo o recorte necessário para a escrita de um trabalho, não pudessem abarcar os aspectos pretendidos. Os pormenores deste processo não merecem ser citados, ao contrário da reafirmação de seus objetivos. Assim sendo, começarei o trabalho antecipando as considerações últimas, tornando sua trajetória mais segura. A partir de alguns textos de Weber, após 1903, através de uma revisitação e, mais ainda, apropriação de suas idéias, pretendo trabalhar as condições e limites do fazer histórico de acordo com a epistemologia desenvolvida por ele (numa primeira abordagem) e, também, pensar a posição do historiador na sociedade, partindo da distinção que este faz do cientista e do político. Weber, ao entender a ciência como parte da cultura, não se resumindo a um tratamento frio da realidade por um sujeito racional separado de um objeto (que lhe seria estranho), sendo, na verdade, o contrário, possível apenas pelas “relações de pertencimento”4, coloca uma questão fundamental, cara à epistemologia contemporânea das ciências sociais, qual seja, a de que a estasa inserem-se em uma determinada cultura, não pairando soberana sobre a vida dos homens. Podemos, assim, aproximar Weber da hermenêutica de Gadamer e da “filosofia trágica” de Nietzsche5. Mesmo assumindo que a aproximação, nesse sentido, seja, talvez, forçosa, a relação destes dois alemães, principalmente no concernente à crítica realizada por ambos à tradição idealista, talvez seja possível deslumbrar a posição do historiador na sociedade e as implicações decorrentes (através de conjecturas pessoais). Outro motivo me faz voltar a Weber. Nossa cultura historiográfica parece sentir prazer em alimentar um mito de que somos tributários da historiografia francesa, principalmente da “revolução” dos Annales6, reservando ao sombrio cantos raramente visitados pela 4 O termo é de Dilthey, e, à parte as diferenças notáveis entre os dois pensadores que, podemos dizer, faziam parte de uma “reação hermenêutica” contra o positivismo, podemos tê-lo como análogo às “relações de valor” de que fala Rickert, influência notável no Weber do início do século XX. Fazemos a associação, contudo, não esquecemos as diferenças que os dois conceitos carregam. 5 “A história é pertinente ao vivente em três aspectos: ela lhe é pertinente conforme ele age e aspira, preserva e venera, sofre e carece de libertação. (...) A história diz respeito antes de tudo ao homem ativo e poderoso.” Citado de: NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva; tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2003. 6 Evidentemente, não é intenção anular as grandes contribuições da escola francesa para a atual cultura historiográfica. Quer-se apenas ressaltar a importância de oturas escolas e a influência que elas exerceram na própria “Escola dos Annales” 3 historiografia, o abandono e esquecimento de influências e tradições riquíssimas, como a da Escola Histórica Alemã. Pretendemos, pois, resgatar algo da importância desta, centrando, no atual estágio da pesquisa, na figura de Weber. Um indício da relevância deste pensador para a historiografia podem ser visto em Paul Veyne, ele próprio representante dos Annales, quando admite ser a história conceitual a única maneira científica de se fazer história – muito embora esta opinião não fosse consenso nem em sua própria obra. Outro seria uma afirmação de Robert Darton7, em entrevista, quando avalia a influência da sociologia na História Cultural e constata ser ela ainda hoje forte. Não se daria, entretanto, a partir da clássica presença da sociologia durkheimiana, encontrando agora em Weber um novo interlocutor. Tenho o diagnóstico por verdadeiro, exceto por um reparo: se não erra em ver em Weber como uma influência da sociologia sobre a história, peca pelo exagero, esquecendo-se de que Weber também fora historiador. Com este resgate, então, quer-se mostrar a influência de uma tradição alemã na historiografia (ainda mais na atual), recuperar a atividade historiográfica desenvolvida por Weber e pensar, a partir das reflexões do intelectual alemão, questões como o limite do conhecimento histórico e as relações do historiador com o mundo e a vida. Logo não se deseja, com o trabalho, dar nenhuma resposta, apenas indicar alguns pontos que acredito serem premissas da prática historiográfica. WEBER HISTORIADOR X DURKHEIM SOCIÓLOGO Neste tópico, buscaremos analisar brevemente as diferenças essenciais entre os dois autores, o que me permitirá, de certa forma e com alguma segurança, afirmar que Weber, se comparado a Durkheim, pode ser considerado historiador, num sentido mais contemporâneo do termo8. Evidenciando um antagonismo entre ambos, pretendemos ressaltar as diferenças 7 Entrevista concedida a Lúcia Hippolito, publicada em Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4. 1989, p.232-24. 8 Seria um anacronismo, sem dúvidas, atribuir a Weber o mérito de manter uma interdisciplinaridade entre essas duas disciplinas tal como é feito hoje, de maneira alguma coisa harmônica, ou ainda, como talvez possa parecer em alguns momentos, dar-lhe uma “roupagem pós-moderna”. O que se pretende não é colocar Weber na vanguarda, como precursor de algo que só viria a se desenvolver décadas após seu falecimento. Unicamente, assinalando os pontos de discordância entre o pensamento de um e outro, é demonstrar que, é lícito colocar o alemão unicamente como historiador, tampoco o é considerá-lo apenas sociólogo. Apesar de não reflexão pouco sistemática quanto ao tema, procuro contribuir para a dissolução de um “mito”, que uma cultura sociológica insiste em reforçar, onde Weber torna-se pai-fundador de uma nova sociologia, principalmente religiosa, ao se tratar d’ A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo; cultura esta que não pode passar por nós silenciada, tal como dogma. Queremos justamente ressaltar, neste momento, como a epistemologia desenvolvida por Weber, influenciada por certa tradição neokantiana, não dá margens a uma interpretação nestes termos. Importante trabalho desenvolvido pela temática é conduzido por Sérgio da Mata, em especial no artigo O mito de “A ética 4 próprias entre a própria sociologia e a história, vislumbrando no pensamento do segundo, características que o relacionam diretamente com a história. Durkheim, um positivista9, quer fazer da sociologia uma ciência “similar”10 à física e a biologia. Para este fim, desenvolve uma metodologia a ser seguida, em ordem definida: a definição inicial, a observação do fato social, a distinção entre os fatos normais e os patológicos, a constituição dos tipos sociais e as regras relativas à explicação e prova. Tal metodologia pressupunha uma separação entre sujeito e objeto, uma ignorância de um por outro, um livramento das idéias pré-concebidas, para que se pudesse proceder uma análise científica da vida social. Era necessário tratar o fato social como “coisa”, exterior ao homem e estranha a ele, através de uma “atitude mental”, que permitisse a análise científica e neutra do objeto. Nisso, deve-se destacar a importância da “definição inicial” no pensamento durkheimiano, pois só através dele é possível um tal tratamento do fato social. Este fato não existe a priori, sendo necessário antes ser construído. Há um construtivismo prévio, necessário, juntamente com uma valorização da experiência sensível, esta a única capaz de captar a “verdadeira essência” da coisa social. Notamos, então, em Durkheim, a necessidade de tratar o objeto como “coisa” exterior ao homem, e a verdade sendo “cativa do método”. Podemos também notar no sociólogo francês presença marcante de Kant, no que diz respeito à sua definição de fato social11, onde percebemos a centralidade da moral na vida em sociedade. Contudo, diferem-se radicalmente quanto à procedência desta moral. Para Kant, ela seria fruto da Razão da individualidade humana, enquanto Durkheim cria um sujeito transcendental, o qual ditaria as normas da moralidade – este sujeito seria a própria sociedade. Há, contudo, no francês, sintomas de um imperativo categórico. Talvez possa-se dizer que há um Kant de distância entre Weber e Durkheim. A metodologia apresentada por Weber é fruto de um desdobramento de uma certa neokantismo, e podemos dizer que enquanto Weber faz uso de um apriorismo, um construtivismo, que precede a análise propriamente dita, em Durkheim (apesar de sua definição inicial, que pode ser tida como um construtivismo), Kant transparece no momento posterior à análise, principalmente quando a função da ciência é tida a de melhorar o mundo. Em Weber, vemos protestante e o espírito do capitalismo” como obra de sociologia, publicado em Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 113-126, 2006. 9 Emprego o termo aqui sem muitas ressalvas, mas julgo necessário deixar claro que “positivismo” não deve servir como uma categoria generalizante, dado os diversos aspectos e as dsicordâncias que há entre os autores aos quais se atribuem o mesmo epíteto. 10 Chamo a atenção para as aspas empregadas, uma vez que não signigica que, Durkheim, ingenuamente, transplanta a metodologia das ciências naturais para as sociais. 11 Maneiras de agir e pensar exteriores ao indivíduo e que exercem poder coercitivo sobre ele. 5 justamente o contrário12. Aproveitando-se do conceito cunhado por Dilthey de crítica da Razão histórica, Weber vê a possibilidade de se fazer uma ciência que da vida, sobre o devenir constante do mundo. Apoiado também no estudo da lógica desenvolvido por Rickert, Weber vê a construção de conceitos, de uma ideal-tipologia o método adequado e único possível para se fazer uma ciência. Não trataremos neste trabalho, em absoluto, da importância dos tipos ideais na metodologia weberiana, mas vejamos como essa “herança hermenêutica” em Weber o distancia de sobremaneira do sociólogo francês. Partindo do princípio de que a história é irrepetível, seus fenômenos são individuais, logo, é impossível que o estabelecimento de leis gerais para os eventos históricos, sendo, consequentemente, impossível fazer uma ciência histórica13. Esta concepção contrapõe, uma vez mais, Durkheim que acreditava ser possível estabelecer leis gerais para a ciência a partir de um “quadro de referências” a Weber. Para este, o estabelecimento de leis gerais, impossível ou não para o campo das ciências cultuais, é antes indesejável e nocivo, dado que para os fenômenos particulares, da vida cultural e do agir no mundo, o interessante seria uma compreensão, capaz de apreender a qualidade de uma determinada ação. As leis, possíveis somente para eventos gerais, aqui perderiam completamente o sentido – se eventualmente pudessem ser encontradas, fariam com que o evento perdesse sua especificidade, logo, aquilo que o tornaria único, interessante14. Outra implicação da referida “herança”, pode ser sentida na supressão da coisa-em-si. Não mais se acreditava em uma essência imanente a um determinado objeto, coisa, fato, evento. O mundo fenomênico, do “para-nós”, em outras palavras, o mundo do caos, não admitia fins últimos para sua existência, nem prerrogativas morais em formato de imperativos categóricos, verdades absolutas a serem alcançadas pela ciência – esta, apenas instrumental heurístico, formalismo lógico lógica subjetivamente construído para a ordenação consciente do mundo. Tanto em seu artigo/editorial para o Archiv quanto em seu célebre texto Wissenschaft als Beruf15, Weber coloca-nos uma questão fundamental: a da utilidade da ciência. Oras, vemos suprimido a coisa-em-si e rejeitado quaisquer imperativos categóricos 12 Outra diferença que vale citar, é a oposição de “fato social” em Durkheim com a “ação social” weberiana. Apesar desta consideração, juntamente com uma aproximação de Dilthey com Weber, poder sugerir uma ênfase no caráter compreensivo das ciências culturais, não se trata disso em absoluto. Vemos no próprio tipoideal e na imputação causal uma convivência harmônica entre compreensão e explicação. 14 Desta mesma perspectiva resulta a importância da “compreensão” em sua epistemologia, uma vez que mesmo uma realidade finita, isolada em sua particularidade, poderia ser descrita exaustiva e infinitamente. 15 Para a elaboração do trabalho, foi consultada a tradução: WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo. Martin Claret, 2002. 13 6 que possam indicar um sentido a ser alcançado. Se o mundo não tem alvo, tampoco teria a ciência condições para indicar o caminho a ser seguido; menos ainda para guiar os homens rumo a seus objetivos. Weber faz aqui o papel de anti- Durkheim. Ao sociólogo dos fatos sociais, da separação sujeito-objeto, da imparcialidade, da ciência como guia do mundo, visando seu aperfeiçoamento, opõe-se o alemão, oferecendo um método, sem muitos exageros, totalmente diverso, para o qual a ciência tem apenas condições de esclarecer os valores de cada ação, fornecer um quadro de possíveis consequências de seu ato. A “ciência” weberiana resume-se aos meios, sendo completamente alheia aos fins; é capaz de indicar quais as possíveis alternativas, os possíveis caminhos e para por aí. A resolução, o modo de proceder do indivíduo trata-se de escolha pessoal, a qual a ciência não deve interferir. Fiel a estas considerações, ao que parece, durante o itinerário intelectual posterior à primeira década do século XX, em Wissenschaft als Beruf, ao tratar da questão acima posta, Weber cita Tolstoi, indagando-se sobre a utilidade da vida. A tônica deste trabalho dar-se-á pelo desdobramento da reflexão acima posta. MUNDO CULTURAL E NEUTRALIDADE AXIOLÓGICA Para iniciar este tópico, julgo adequado um paralelo entre Weber e Nietzsche, por ser notável a influência deste último, principalmente no que tange a uma crítica da modernidade, em especial à tradição filosófica (ou teológica?) alemã, sobre o primeiro. Ele deve se dar em torno do que tomo como a tese principal de Nietzsche em sua Segunda Consideração Intempestiva, onde reflete sobre as vantagens e desvantagens da História para a Vida. O problema da História como ciência, para o filósofo trágico, era o sepultamento da vida, o fim da força plástica e criativa causada pelo excesso de cultura histórica, que em nome da crítica, da submissão ao processo, ou mesmo da fraqueza daqueles que escrevem a História, impossibilitariam a vida presente. Para a vida poder desenvolver-se, ou, em outras palavras, para o homem poder exercer sua vontade de potência era necessária uma harmonia entre a consciência do passado e o esquecimento do mesmo16. Para Nietzsche, esta deveria ser a função da História, servir ao homem, servir à vida. 16 Para evitar mal-entendidos, cabe-nos dizer que esse esquecimento não se trata de uma anamnese; lembrar e esquecer, selecionar eventos e emoções, variáveis durante o tempo é uma função da memória. Função indispensável para continuar a vida, pois uma lembrança do passado, sem uma força plástica, pesaria de sobremaneira sobre o indivíduo e anularia seu potencial de ação, seu instinto artístico. 7 Consideração esta que não passou desapercebida para Weber. Aliás, entre os “cientistas da cultura” há um consenso: a função da ciência é servir aos interesses imediatos da vida, resolver questões pendentes. Mesmo Durkheim e Weber, neste aspecto, estão de acordo. A diferença dá-se em torno daquilo que poderíamos, a título de aproximação de “definição inicial weberiana”. É o ponto onde, mais diretamente, podemos notar a influência de Rickert em Weber. Trata-se das “relações de valor” pelas quais o cientista conduz seu estudo. Abordemos primeiro o que chamo de “aspecto global”, ou melhor colocado, o lado cultural dessa relação de valor. Como vimos anteriormente, o mundo do qual como concebe Weber é apenas fenomênico, caótico e o dever da ciência seria ordená-lo conceitualmente. Entretanto, visto desta forma, como poderíamos acessar este mundo sem nenhuma lógica emsi? No artigo La ‘Objetividad’, em certa altura, Weber chega a afirmar que a realidade é infinita e o homem só tem acesso a uma parte finita, a qual corresponderia ao mundo cultural. Nestes termos, observamos que o acesso à significação do mundo se dá por via de uma relação de valores do homem com o mundo, através do contato com ele e do sentido que atribui as coisas. Efetivamente, a ciência só faz sentido se se trata de um fenômeno que se mostra atual, pertinente para a vida cultural das pessoas que o estudam. Não faria sentido tratar de um problema que não se apresentasse ao homem por meio dessas relações de valores, nem mesmo seria possível. É antes necessário, não apenas um contato prévio, mas uma sensação de incômodo, que um dado problema provocasse no cientista. Assim, não faz sentido falar de uma separação sujeito/objeto. Em descrição igualmente sucinta, tratemos agora do que podemos chamar de “aspecto subjetivo” ou individual da relação de valor. Para Weber, a paixão individual não deveria ser tida como oposta aos objetivos da ciência. Antes pelo contrário, seria por estas paixões individuais, defesas veementes de pontos de vista específicos que o interesse do cientista por determinado tema pudesse aparecer. Interesse e visão pessoal nada teria de contrário com a ciência, sendo esta, antes, possível apenas por este ponto de vista subjetivo, particular e pessoal. Uma tradição sociológica, representada na figura de Raymond Aron, ao tratar das relações de valores, pretendendo expulsar uma filosofia da história que julgava que, a partir de um método adequado, a verdade pudesse ser desvelada, valorizou de maneira irresponsável esta dimensão, esquecendo-se por completo da anterior, que corresponderia à vida cultural, ao espaço onde se faz a ciência, às instituições do saber. Desta feita, puderam colocar, mais uma vez, Weber como um anti-Marx, por não reconhecer na produção científica as marcas de um 8 lugar, que tornasse o discurso elaborado uma produção social. Mas Weber jamais desconsiderou este aspecto, ressaltando-o, antes, com todas as palavras possíveis, ao comparar a universidade alemã com a americana. Cabe agora, para concluir a temática tratada, ressaltar os limites inerentes de uma tal ciência. Não podendo fazer mais do que organizar o mundo através de conceitos e sendo incapaz de recorrer a princípios objetivantes – tais como leis gerais ou regularidade –, menos ainda fornecendo ao indivíduo qualquer resposta sobre o caminho a ser trilhado, o conhecimento das ciências da cultura é sufocantemente restrito. O mundo, em seu eterno devenir, não se conformaria (nem nunca conformar-se-á) da mesma forma; os problemas nem sempre serão os mesmos, consequentemente, os conceitos que se relacionam a ele, devem ser constantemente reelaborados. A “objetividade” seria garantida apenas por um formalismo lógico, constructo mental para comparar mundo e conceitos, através de uma análise profunda da realidade. A “ciência”, inscrita no eterno devenir do mundo, estando intimamente relacionada a ele, estava fadada a seus mesmos destinos. Assim como a vida muda, a “ciência” também há de mudar. A objetividade das ciências da cultura, assim, pode ser comparada com a tarefa de Penélope, que bordava seu tapete de dia e o desfazia a noite, esperançosa da volta de Ulisses. A História, inserida neste campo das ciências culturais, está fadada ao mesmo destino: faz-se com a mesma frequência com que se desfaz, na esperança de encontrar sua verdade. Caminhamos, apesar da persistência milenar, no mesmo tapete, no mesmo solo descontínuo, construído e reconstruído ad aeternum; não em um solo fértil, onde poderíamos plantar a árvore da verdade ou o carvalho do conhecimento. HISTÓRIA, VIDA, E A POSIÇÃO DO HISTORIADOR Retomaremos aqui algumas conclusões das considerações anteriores e colocar algumas questões no lugar de algumas outras, talvez ultrapassadas pelos novos desafios da historiografia. Ao considerar a historiografia como parte integrante da vida, os problemas de sua utilidade e limites devem ser feitos, não em um sentido de meios para determinados fins mais nobres, ao contrário, como fins em si mesmos A partir disso, desconsideramos a “ciência” como capaz de indicar caminhos a serem trilhados ou como reveladora de verdades. Lembrando também de uma metáfora weberiana, a da teodisséia: os deuses combatem entre si, e combaterão eternamente; a escolha de qual é o deus verdadeiro não passa de uma 9 convicção pessoal do crente, com o qual a ciência não há de ter nenhum compromisso. Como esse limite da razão influencia no locus do historiador? Retomemos, brevemente, Hannah Arendt, quando demarca uma separação entre política e da filosofia na polis grega, sem entrar em detalhamentos de sua tese e argumentação. Para ela, desde a morte de Sócrates17, inaugura uma oposição entre filosofia e política, identificada em Platão, o qual reconhece a diversidade de opinião um mal a ser superado, sendo que em sua República, oferece caminhos para esta superação. A filosofia deveria desvelar a verdade do mundo e o político deveria ser o rei-filósofo. Inviabilizado este sonho, por uma atividade requerer a dispensa da ourta, o espaço da polis ateniense se viu dividido entre a política e a filosofia18. A separação verificada permanece em Weber, embora por motivos diversos, considerando a crítica que este faz ao idealismo – aliás, a separação entre político e sábio por ele defendida baseia-se no justo oposto do sugerido por Arendt. As atividades de demagogo e de sábio não são de forma alguma conciliáveis. O sábio deveria ter a “virilidade” para viver em um “mundo desencantado” e saber manter sua neutralidade axiológica, não servindo de guru para a juventude. Sábio e político estariam fadados à segregação. Esta reflexão, contudo, não quer dizer que o sábio esteja localizado à margem da sociedade onde vive, ao contrário, constituiria um outro grupo desta sociedade, localizado em instituições específicas, através das quais poderia desenvolver seu pensamento. Ela forneceria as possibilidades e os limites. Organizados em instituições próprias, os intelectuais criam sua prórpia rede de relacionamentos, com suas particularidades, ao mesmo tempo em que inserem-se num campo mias amplo, da sociedade da polis, para usar a expressão de Arendt. Vejamos uma crítica de Weber a Kant, ao citar Fichte19. Não podendo falar de um fim a ser alcançado pelo mundo, proibidos de se misturar as figuras de intelectual com a de demagogo, como pensar a historiografia? Onde residiria nosso direito de julgar, frente à eterna batalha dos deuses, alheia à ciência? Discutir nossa relação com a verdade a-discursiva faz algum sentido? Abandonando a almã cristã ocidental, concordando com Nietzsche, o qual afirma que viver é ser inusto, a História teria algum direito a militância? Pode reivindicar-se poder de prova? A vocação do cientista, perpassada por uma intuição artística pelo acaso,dá17 Platão e Sócrates são centrais em sua teoria, para entender como, em seu pensamento, as ciências da cultura devem relacionar-se com a política. Para ela, a morte de Sócrates significa uma vitória da política sobre a filosofia, uma vez que a diversidade do pensamento democrático (no sentido ateniense, evidentemente) venceu a razão dialética. 18 Arendt propõe, inspirada em Kant, uma nova política, baseada na capacidade de espanto (thaumatzein). 19 Este diz que não temos direito de pressupor a bondade humana, principalmente conhecendo seu histórico. 10 nos autoridade para um monopólio corporativista?20 Colocamo-nos, ainda, uma outra questão: temos por consenso de que História é aquilo que fazem os historiadores, mas em verdade, o que nós fazemos? Finalmente, pensando sobre nosso lugar, podemos contrapor duas alegorias sobre a relação do homem com a verdade: a de Platão, com seu mito da caverna, e a de Nietzsche, com seu Zaratustra. Na primeira, a caverna é o lugar da ignorância, das sombras, obstáculo à verdade, o verdadeiro movimento das coisas, que o aliena do mundo real. Na segunda, seria o lugar do espírito-livre, obeservando os homens de lugar privilegiado, vendo-a vê-la em toda sua miséria e pequenez. O historiador habita ou deve habitar alguma delas? Essas questões só podem ser respondidas, a meu ver, considerando a história como parte constituinte da cultura, da vida, sendo indissociável desta. BIBLIOGRAFIA BÁSICA ARENDT, Hannah. O que é política? Org. Ursula Ludz. Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História; tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão técnica de Arno Vogel. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Sao Paulo: Cia. Editora Nacional, 1978. MATA, Sérgio. O mito de “A ética protestante e o espírito do capitalismo” como obra de sociologia. Locus: Revista de História (22), p. 113-126, 2006. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva; tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2003. WEBER, Max. “La ‘objetividad’cognoscitiva de la ciência social y de la politica social. (1904)” in: Ensayos sobre Metodologia Sociológica. Buenos Aires: Amorrotu Editores, 1958. ________, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo. Martin Claret, 2002. 20 Weber nos distinguiria apenas pela dedicação e refinamento teórico, mas ainda desprezaria os conceitos cotidianos. 11