ENSAIOS SOBRE A ARTE DA PALAVRA 1 ensaios sobre a arte da palavra © 2002 by Paulo Cezar Konzen Edunioeste Universidade Estadual do Oeste do Paraná Rua Universitária, 1619 Jardim Universitário Cascavel - PR CEP: 85814-110 - Caixa Postal 801 Tel.: (45) 220-3000 Fax: (45) 225-4590 www.unioeste.br [email protected] Coleção Thésis Diretores Marcos Antônio Lopes Pery Francisco A. Shikida Capa e projeto gráfico Marcos Antônio Lopes Paulo Cezar Konzen Revisão técnica Marcos Antônio Lopes Preparação de originais Paulo Cezar Konzen Apoio editorial Luis Cesar Yanzer Portela Apoio técnico Antonio da Silva Júnior Douglas L. S. Ganança Joaquim Moita dos Santos Ficha catalográfica Marilene de Fátima Donadel (CRB 9/924) Imagem da capa (Antrum Platonicum) K82e Konzen, Paulo Cezar Ensaios sobre a arte da palavra / Paulo Cezar Konzen. -Cascavel : Edunioeste, 2002. 164 p. -- (Coleção Thésis) ISBN : 85-86571-64-4 1. Teoria Literária 2. Crônica 3. Comicidade 4. Literatura brasileira-Crônica 5. Literatura brasileira-Sátira e humor 6. Cultura pós-moderna I. T. CDD-20.ed. 2 801.95 B869.8 Paulo Cezar Konzen ENSAIOS SOBRE A ARTE DA PALAVRA Edunioeste Cascavel 2002 3 ensaios sobre a arte da palavra 4 Para Nani: presença, paciência e paixão. 5 ensaios sobre a arte da palavra 6 SUMÁRIO •♦• PREFÁCIO .................................................................................. 11 INTRODUÇÃO ............................................................................. 15 I RETRATOS DA CRÔNICA ........................................................... 21 MOMENTOS REPRESENTATIVOS: CRONISTAS BRASILEIROS ......... 26 APONTAMENTOS DIVERSOS ............................................................... 41 II FORMAS E EFEITOS DA COMICIDADE ...................................... 45 ANATOMIA DA COMICIDADE .............................................................. Intertexto cômico: aproximações e deslocamentos ........................... Outras formas de instauração da comicidade ................................... DEGRAUS DO RISO .............................................................................. Carnaval e riso ................................................................................... A seriedade do riso ............................................................................ 46 49 54 59 60 64 III SOBRE O PÓS-MODERNISMO ................................................... 73 QUESTIONAMENTOS, INICIATIVAS E PERSPECTIVAS ..................... SABORES DAS CULTURAS PÓS-MODERNAS ..................................... Dissabores .......................................................................................... Saberes ............................................................................................... 74 82 87 90 IV CENAS E LEITURAS DE UM MESTRE DA PALAVRA .................... 95 COMENTÁRIOS PANORÂMICOS .......................................................... A APROXIMAÇÃO DO OLHAR: NARRATIVAS EM FOCO .................... “Criaturas” .......................................................................................... “Nova carta de intenções” .................................................................. “Racismo” ............................................................................................ “Apraga” .............................................................................................. “O ator” ............................................................................................... “A verdade” ......................................................................................... 97 116 116 122 127 132 137 141 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................... 153 REFERÊNCIAS ............................................................................ 157 7 ensaios sobre a arte da palavra 8 AGRADECIMENTOS •♦• Este livro foi escrito, originalmente, como dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina. A releitura deu origem a uma série de alterações no trabalho, resultado de pesquisas posteriores ao curso. Além disso, o texto foi lido por algumas pessoas que contribuíram para diminuir seus equívocos. Esta página tem, portanto, a finalidade de fazer o registro dos agradecimentos àqueles que colaboraram para a sua realização. Inicialmente, gostaria de registrar meus sinceros agradecimentos ao Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon pela indicação de caminhos seguros a serem seguidos no trajeto da pesquisa; ao Prof. Dr. Marcos Antônio Lopes, leitor atento e perspicaz destes ensaios; à Universidade Estadual do Oeste do Paraná pela concessão de licença com vencimentos, passo fundamental para o custeio do primeiro ano do curso; aos professores do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas dessa instituição; à CAPES pela concessão de bolsa de estudos na fase de redação da dissertação; à Universidade Estadual de Londrina; à Fundação Araucária pelo auxílio para a publicação desta obra. Quero ressaltar ainda a atuação sempre prestimosa dos funcionários da Biblioteca, tanto da UEL quanto da Unioeste; da Coordenação do Programa de Mestrado em Letras, representada nos nomes de Vanderci de Andrade Aguilera e Américo Kato. Um registro especial deve ser feito também à atuação de todos os professores e colegas do Programa de Mestrado em Letras, Área de Concentração em Estudos Literários. Em especial, agradeço à Profa. Dra. Adelaide César, à Profa. Dra. Gizêlda do Nascimento e à Profa. Dra. Beatriz Resende, pela argüições instigantes e pelas valiosas sugestões de aprimoramento do trabalho. Aos meus pais, Oswaldo e Valéria, pelo amor e dedicação aos seus muitos filhos de forma reconhecidamente igualitária; aos meus irmãos Henrique, Ana, Maria, Jorge, Janete, João e Marcelo; à Eliane, Cecília, Janete, Cláudio, Marjorie e Stephanie, minha segunda família; e, finalmente, aos amigos — é ocioso dizer que as omissões são pecados a serem perdoados — Alex Larsen, Claércio Schneider, Claídes Schneider, Evaldo dos Santos, Iara Dahmer, Josias Penna, Jucenei Frandoloso, Luis Portela, Antônio Benatte, Neiva Kern Maccari, Róbi Schmidt e Rovilson Silva. Obrigado a todos. 9 ensaios sobre a arte da palavra 10 PREFÁCIO •♦• O que desperta a atenção já no índice desta obra de Paulo Cezar Konzen é o conjunto de aspectos pouco favorecidos no debate acadêmico brasileiro. Crônica, comicidade, pós-modernismo, Luis Fernando Verissimo: de todos estes temas a Academia ou passa longe ou se abstém de verificar as especificidades. Neste momento, o leitor que pular do índice ou desta apresentação para as referências bibliográficas no mínimo suspeitará de contradições e exageros. Como explicar, por exemplo, a fartura de títulos reunidos na bibliografia? Pode-se adiantar uma das qualidades deste livro: o tino de pesquisador que o autor demonstra ter. De qualquer modo, vale retomar o fio da distância entre os estudos universitários e os pontos explorados neste livro. A crônica já deu ao Brasil grandes obras e autores. Ninguém ousa questionar a excelência de Rubem Braga, que se destacou na literatura brasileira quase exclusivamente pelo valor de suas crônicas. No entanto, o material sobre o gênero poucas vezes é encontrado fora de artigos isolados em livros e revistas. Mais complicado ainda que localizar a produção bibliográfica sobre a crônica é constatar o descompasso entre seu lugar nos currículos de graduação dos cursos de Letras e sua projeção nos livros didáticos do ensino fundamental. O resultado na escola tende a ser uma abordagem simplória dos textos ⎯ realizada por professores pouco habituados a lidar criticamente com a crônica ⎯ que não poderia ser confundida com o ideal de simplicidade expresso nos mesmos. O cômico parece continuar ocupando um patamar inferior no que diz respeito à eleição de objetos de estudo. Quando transferimos nosso olhar da literatura para o cinema, que tem obviamente outra história e outros propósitos mais próximos da idéia de entretenimento, podemos detectar alguns sintomas. O 11 ensaios sobre a arte da palavra Globo de Ouro, premiação do cinema norte-americano, estabelece categorias diferenciadas para os trabalhos indicados: melhor drama, melhor comédia, melhor ator de drama, melhor ator de comédia, etc. Outra associação cinematográfica, o Oscar, já não prevê distinções: destina sistematicamente os prêmios às produções mais “sérias”, reservando o cômico apenas para as piadas infames na cerimônia de apresentação dos filmes e artistas candidatos. Se no cinema o quadro é este, na literatura, então... Quanto ao pós-modernismo, é preciso fazer ressalvas. Não é possível sustentar que o assunto é ignorado no meio acadêmico. Aliás, pode-se dizer que há mais de duas décadas surgem seguidas publicações, propiciando uma febre pós-moderna, especialmente no ambiente universitário norte-americano. E no Brasil? No Brasil, o termo se encontra cercado de estigmas. De um lado, o estigma de ter sido cunhado em terra estrangeira, o que, para alguns, inviabilizaria uma apropriação para discutir nossas produções culturais ou representaria uma importação equivocada. Do outro, o estigma da vulgarização: o termo aparece na mídia com assiduidade e sem critérios. Seus significados são muito diversos, embora desponte com certa regularidade em meio a comentários irônicos e depreciativos. Luis Fernando Verissimo publica livros há mais de vinte anos, parte deles figurando em listas de mais vendidos. Tal condição não é bastante para transformá-lo em objeto de grande atenção nos estudos literários. Alguns fatores contribuem para isso: trata-se de um autor contemporâneo, de quem algumas parcelas das instituições universitárias insistem em manter distância; o espaço de atuação de Verissimo também inibe uma aproximação mais convicta (as gargalhadas que ele nos proporciona em seus artigos de jornais e revistas e em suas adaptações para televisão, parecem vulgarizá-lo, colocando-o à margem do circuito acadêmico). Sinais disso podem ser verificados nos congressos de literatura: é muito mais comum ver trabalhos sobre Rubem Fonseca, um escritor coetâneo e com trajetória semelhante, do que sobre Luis Fernando Verissimo. Antes que surja nova suspeita ⎯ a de estar sendo traçado um quadro excessivamente sombrio dos estudos literários ⎯ é necessário reconhecer que há uma movimentação para mudar a 12 prefácio face da pesquisa literária nas universidades. Tais movimentos, influenciados sobretudo pela efervescência dos Estudos Culturais, incorporam novos objetos e métodos, propondo o acréscimo de diferentes direcionamentos e a revisão do cânone para a área das Letras. Este livro de Konzen integra-se a este processo de renovação. Com méritos. Deve-se ressaltar a coragem com que o pesquisador encara o desafio de se debruçar sobre todos os aspectos comentados: crônica, comicidade, pós-modernismo. Além disso, elege um autor como Luis Fernando Verissimo, muito lido porém pouco analisado academicamente. Tudo isso com uma fundamentação teórica e crítica atualizada e sem resvalar em “impressionismos” e preconceitos. Neste sentido, é importante que se continue lendo Verissimo com toda a graça que sempre encontramos em seus textos. É saudável também que se possa agora, com a presente obra, ler e refletir sobre o autor e suas correlações com os aspectos analisados. Para isso, não é preciso empilhar mais tijolos nos muros da Academia e sim torná-los mais permeáveis, como faz Konzen, ampliando o acesso para se compreender melhor a contemporaneidade. Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon Universidade Estadual de Londrina 13 ensaios sobre a arte da palavra 14 INTRODUÇÃO •♦• As visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de caracteres minúsculos e maiúsculos, de pontos, de vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia, representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto. Italo Calvino O crítico literário Terry Eagleton argumenta que as tentativas de definir a literatura não podem ser realizadas de maneira objetiva, pois qualquer definição está baseada em juízos de valor historicamente variáveis, devido ao fato de estarem intimamente irmanados às ideologias sociais. As ideologias são compreendidas pelo autor como a forma como aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos. Estas relações, por sua vez, são definidas como crenças (profundamente enraizadas e, muitas vezes, inconscientes) e modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar que se relacionam de alguma forma com a manutenção e reprodução desta estrutura do poder (Cf. EAGLETON, 1997). Se o autor demonstra as dificuldades em definir o que é literatura, este problema não ocorre quando se propõe a definir o que não é literatura. Terry Eagleton apresenta um inventário minucioso das definições existentes, para, a seguir, questioná-las quanto à pretensão de aceitabilidade. Seus apontamentos classificam como precárias as definições que concebem a literatura como produto da imaginação, emprego de uma linguagem peculiar, discurso nãopragmático, desvio da norma, e escrita altamente valorizada. Entre suas críticas, destacam-se aquelas que se referem ao processo, realizado pelos estruturalistas, de adaptação pura e simples para 15 ensaios sobre a arte da palavra o texto literário das análises realizadas pela área de estudos lingüísticos. Para Eagleton, a literatura, por não possuir essência, não pode ser definida objetivamente e, sendo assim, só pode ser conceituada historicamente, a partir dos juízos de valor relacionados às ideologias sociais. Em outros termos, de acordo com o autor, a pergunta “O que é literatura?” — a partir da qual grande parte dos manuais de teoria literária inicia suas discussões — deve ser substituída por outra: “Quando é literatura?”. Antonio Candido parece discordar da natureza provisória da definição de literatura, pois a apresenta como “transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos” (1973: 53). O autor de Literatura e sociedade elenca três elementos interdependentes para a efetiva caracterização da literatura: 1) vinculação à realidade natural ou social; 2) manipulação técnica; 3) atitude de gratuidade (tanto do criador quanto do receptor). Além de apontar para algumas transformações sofridas pelo texto literário quando submetido à institucionalização escolar, o autor discute ainda a literatura como forma de satisfação da necessidade universal de fantasia por parte do ser humano, a partir da análise da função formadora da literatura. Para ele, a literatura “humaniza em sentido profundo (...) ao facultar uma maior inteligibilidade de uma dada realidade social e humana, da qual constitui representação” (CANDIDO, 1972: 804). A definição de Antonio Candido é mais abrangente por apresentar aspectos tanto estruturalistas quanto histórico-sociológicos, fazendo com que o autor conquiste maior permanência em termos de teorização acerca da literatura. Este parece ser o motivo pelo qual esta definição exerce influência sobre as análises de outros estudiosos. Regina Zilberman, por exemplo, compreende a literatura como forma de expressão que, utilizando-se da linguagem verbal, incorpora a particularidade dessa de construir um mundo coerente e compreensível, logo, racional. Para Zilberman, é a partir da fantasia que o autor elabora suas imagens interiores para estabelecer a comunicação com o leitor. O texto concilia a racionalidade da linguagem, de que é testemunha sua estrutura gramatical, com a invenção nascida na intimidade de um indivíduo, e pode lidar com a ficção mais exacerbada, sem perder o contato com a realidade, pois precisa 16 introdução condicionar a imaginação à ordem sintática da língua (Cf. ZILBERMAN, 1991: 18). Esta concepção faz crer que a literatura talvez não ensine nada. Mas seu consumo leva a práticas socializantes. Pode-se cogitar numa certa afinidade teórica entre as concepções de Antonio Candido e Regina Zilberman na medida em que ambos abordam a conjugação existente, por meio da manipulação técnica, entre fantasia e realidade, visando a construção de experiências socialmente relevantes, diferentemente de autores que definem a leitura proveitosa pelo trabalho de desautomatização da linguagem, na medida em que ocasionaria um efeito de estranhamento no leitor. Pode-se inferir dessas abordagens o conceito de leitura subjacente às teorias apresentadas: por ser uma atividade que propicia uma experiência única com o texto literário, a leitura pode ser concebida como instrumento de interação social, na qual autor e leitores mantêm um diálogo aberto sobre experiências, tentando responder às necessidades de auto-afirmação e identificação dos seres em seu mundo. Como resposta a este diálogo, a literatura é o meio pelo qual o indivíduo encontra subsídios para a leitura do mundo, possibilitando a elaboração de imagens subjetivas e o conhecimento do outro na estrutura social, devido às especificidades do texto literário: resultado de um movimento criativo que se serve da linguagem não só para retratar a realidade social existente, mas também para acrescentar à realidade histórica algo inexistente até então. Nesse sentido, as reflexões reunidas neste livro se apresentam, sobretudo, como espaço analítico que objetiva mostrar aspectos da literatura de hoje e de sempre. Compreender a literatura como arte da palavra empresta ao termo um vínculo fundamental com sua matéria-prima: na era da civilização da imagem, destacar o papel da palavra é de suma importância já que é a partir dela que a literatura procura preservar uma posição privilegiada para a formação cultural de seus leitores.1 Num primeiro momento, é realizada a abordagem de textos ligados ao gênero crônica e à comicidade, pois tais textos são, em muitos casos, desconsiderados pelos estudos literários e sua análise pretende evidenciar a importância que assumem na sociedade. Desse modo, discutir questões relacionadas à crônica é a pretensão do primeiro ensaio, intitulado Retratos da crônica. Busca-se enfatizar 17 ensaios sobre a arte da palavra o fato de que apesar de muitos autores escreverem suas crônicas para serem publicadas em jornais ou revistas, isto não impede sua divulgação em coletâneas, marcando assim a presença expressiva do gênero no quadro da literatura brasileira. Devido à sua semelhança com a reportagem, a crônica muitas vezes é contaminada pela fugacidade do evento que narra. Contudo, os próprios cronistas pretendem fazer valer a natureza literária de sua criação quando selecionam certos textos para posterior publicação em livro, conferindo-lhes um estatuto de maior permanência, pelo menos não inferior à de outras obras de ficção. Analisar a utilização da comicidade como forma de persuasão do interlocutor nas narrativas literárias é o objetivo de Formas e efeitos da comicidade. O texto tem por objetivo indicar aquelas características que fazem da comicidade um dos elementos fundamentais na configuração temática e formal de determinadas produções literárias. Procura-se inventariar de que maneira o uso da comicidade como forma de contestação social revela a preocupação da literatura em mostrar como os paradigmas de determinadas épocas podem ser questionados pela problematização de estruturas forjadoras de realidades sociais. Sobre o pós-modernismo é uma exposição de elementos vinculados ao pós-modernismo, concebido como conjunto de manifestações que interferem decisivamente nas atividades culturais contemporâneas, o que passa a ser demonstrado com maior ênfase nas últimas décadas do século XX. O texto procura investigar caminhos percorridos pelo movimento e tal prática visa apontar alguns caracteres presentes na literatura brasileira. Como lugar de destino, Cenas e leituras de um mestre da palavra procura realizar uma apreciação crítica da obra produzida pelo escritor Luis Fernando Verissimo. As narrativas do autor são apresentadas como exemplo significativo da literatura brasileira contemporânea. Sua escrita pode ser inserida no conjunto daquelas produções literárias que visam à problematização e ao aprofundamento crítico de seus leitores, ao contrário de parte considerável dos empreendimentos relacionados aos meios de comunicação de massa. Contribui para isto a autoconsciência sobre sua herança literária e sobre os limites da linguagem. Apesar disso, o autor busca refazer o vínculo entre seus leitores e o mundo 18 introdução exterior à página. Ou seja, mesmo sendo marcadamente autoreflexivas, as narrativas de Luis Fernando Verissimo inscrevem situações e formas que visam sinalizar para elementos relevantes de seu contexto histórico, político e social. Ao eleger temas da atualidade, tais como o pós-modernismo e a obra de um autor contemporâneo, é preciso esclarecer algumas questões relacionadas à suposta necessidade de distanciamento por parte do pesquisador com relação ao objeto de estudo, atitude prescrita para uma análise científica. A imparcialidade é, em muitos casos, sugerida pelo simples distanciamento “cronológico”, fazendo com que as análises de acontecimentos e manifestações relativamente recentes sejam alvos de questionamentos. Procurando validar estas análises, é utilizado, como caso exemplar, o trajeto dos estudos sobre a obra machadiana. A importância que Machado de Assis assumiu na cultura literária brasileira explica-se pela riqueza expressiva de seus textos. Contudo, é preciso considerar que parte significativa do sucesso de sua canonização deve-se à fortuna crítica levada a termo por diversos estudiosos de sua obra. Em outras palavras, pode-se assinalar que Machado de Assis é famoso tanto pelo que escreveu quanto pelo que escreveram sobre suas obras. Dentre seus estudiosos, figura o nome de José Veríssimo, crítico literário contemporâneo de Machado de Assis, e, por tal motivo, acusado de realizar leituras limitadas de seus escritos. Assim, sob vários aspectos, o valor de suas análises é considerado bastante discutível. No entanto, seus apontamentos foram importantes para a elaboração de análises posteriores — tais como a diferenciação entre fase romântica e fase realista da obra machadiana — e é nisto que reside seu grande trunfo: sua crítica configurou-se como uma interpretação preliminar que suscitou possibilidades de abordagem. A relevância assumida pelos estudos de José Veríssimo sobre os escritos de Machado de Assis sinaliza, sobretudo, para a reconhecida lição de que é fácil ser mestre das obras feitas. O difícil é se aventurar por caminhos não trilhados ou ainda pouco iluminados, revelando que é da incerteza que nasce, em muitos casos, a obsessão pelos acertos.2 19 ensaios sobre a arte da palavra Notas 1. A definição da literatura como arte da palavra é de Afrânio Coutinho (Notas de Teoria Literária. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a). 2. Alguns depoimentos que atestam tais acertos: em 1956, para marcar o quadragésimo aniversário da morte de José Veríssimo, Manuel Bandeira registra o seguinte comentário: “Quarenta anos são passados e estamos constatando que o seu nome vem crescendo sempre. ‘Só a posteridade teve bastante isenção para apreciar-lhe bem a probidade’, escreveu a propósito dele mestre Otto Maria Carpeaux na Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira” (1986a: 12); confirmando os depoimentos dos “mestres” citados, Lúcia Miguel Pereira destaca que “embora não infalível, já que humano, o senso crítico de José Veríssimo muito raramente o traiu; em regra, ao contrário, constitui para todos os que se ocupam da história literária um guia, um orientador firme e da maior probidade” (apud Montenegro, 1958: 115). 20 * * * CAPÍTULO I RETRATOS DA CRÔNICA •♦• A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou singularidade insuspeitadas (...). Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. Antonio Candido O presente texto aborda alguns momentos importantes do percurso da crônica. Este percurso inclui reflexões de críticos e escritores que realizaram a exposição de características relevantes da escrita da crônica. Contudo, antes de entrar nesses temas, é necessário apresentar algumas considerações sobre a noção de gênero literário adotada neste trabalho e que servirá de suporte para demonstrar alguns traços importantes em torno dos quais a crônica se consolida. Em texto considerado como uma das iniciativas dos formalistas russos de incluir em seus estudos alguns aspectos relacionados ao campo extraliterário — já que foram acusados de restringirem suas análises à imanência das obras — Jurij Tynianov, um dos mais destacados teóricos da escola formalista, discute a conceituação de literatura como processo linear e continuado, embutida na noção clássica de “tradição”, contrapondo à mesma o princípio dinâmico de evolução literária. Este é caracterizado então como um processo no qual ocorrem rupturas, revoltas de novas escolas e conflitos entre gêneros concorrentes, já que em toda época existem simultaneamente várias escolas literárias: o que ocorre é que uma delas representa o ápice canonizado da literatura. Diante disso, o autor enfatiza que a canonização de uma forma literária conduz à automatização, provocando, na camada inferior, a construção de novas formas, as quais conquistam o lugar das 21 ensaios sobre a arte da palavra antigas, adquirindo a dimensão de um fenômeno de massa e, por fim, são elas próprias compelidas de volta à periferia. Assim, para o autor o que marca a natureza artística de uma obra é a sua função (construtiva, literária, verbal), entendida como sistema, que possibilita correlacionar-se com outros elementos do mesmo sistema, e, por conseguinte, com todo o sistema (Cf. TYNIANOV, 1987: 130). A relevância dessas teorizações está no fato de estabelecerem relações tanto entre as séries fechadas em si mesmas quanto entre as séries de diferentes gêneros, intentando destacar a “interação evolutiva das funções e das formas (...) [pois] nunca se consideram os fenômenos literários fora de suas correlações, tanto estéticas quanto históricas” (TYNIANOV, 1987: 134). O autor toma como exemplo os problemas advindos das definições de prosa e poesia: devido às funções e formas comuns que integram, só poderiam ser definidas a partir de suas correlações. Assim, “a variabilidade da função de um ou de outro elemento formal, o aparecimento de uma ou de outra função num elemento formal, a sua associação com uma função, são problemas importantes da evolução literária” (TYNIANOV, 1987: 136). Apesar de a noção de evolução ser problemática, por implicar em juízos de valor amplamente discutíveis, o estudo do autor adquire relevância devido às considerações importantes acerca das mudanças ocorridas no desenvolvimento da criação literária. Tynianov empreende, assim, uma abordagem mais ampla do processo de surgimento, canonização e decadência dos gêneros, definindo-os como sucessão histórica de sistemas estético-formais que estabelecem relações tanto internas quanto externas entre as obras literárias. Contrariando Benedetto Croce, que enxergava nos gêneros apenas um simples nome, Austin Warren e René Wellek classificam os gêneros como: instituições imperativas que exercem pressão sobre o escritor e são por ele também pressionadas e modificadas; princípios de ordem e classificação, segundo os quais a literatura é dividida em tipos literários de organização e estrutura; artifícios estéticos, à disposição do escritor e inteligíveis ao leitor; convenções estéticas de que a obra participa, modelando-lhes a forma e o caráter (WARREN; WELLEK, 1971: 285-293). Em conclusão, o gênero, segundo os 22 retratos da crônica autores, “deve ser concebido como um agrupamento de obras literárias, baseado teoricamente tanto sobre a forma exterior (métrica ou estrutura específica), quanto sobre a forma interna (atitude, tom, propósito)” (WARREN; WELLEK, 1971: 294). A partir dessas considerações, a noção de gênero pode ser compreendida como complexo de símbolos que fornece direções para encontrar uma imagem das estruturas narrativas registradas na tradição literária. Este complexo procura orientar os passos na construção e/ou na leitura das obras literárias: o que ele faz é informar, tanto aos autores como aos leitores, alguns traços característicos que assumem o papel de familiarizá-los, ou seja, fornecer parâmetros para a compreensão das estruturas narrativas contidas nos artefatos literários. Essas características não implicam necessariamente numa função normalizadora, o que impossibilitaria “as relações entre os diversos gêneros, os gêneros mistos, as obras que incluem os vários gêneros, a flexibilidade das fronteiras dos gêneros, a sua transformação e morte, o seu reaparecimento, a adequação melhor de certos gêneros a épocas estilísticas e às preferências dos autores, a sua modificação e enriquecimento por certos autores” (COUTINHO, 1978a: 29). Dessa maneira, a adoção do gênero como conceito poliédrico, multiforme e, portanto, suscetível de mutabilidade, procura evitar uma concepção tanto absolutista quanto nominalista, fazendo da noção uma aliada na análise dos caracteres das obras literárias e não um elemento estanque que defina compromissos apriorísticos com relação aos estudos literários. Feita essa ressalva, pode-se então iniciar o trabalho de apresentação de caminhos percorridos pela crônica até se afirmar como gênero literário, tentanto evidenciar que tais momentos revelam os diferentes matizes impressos na crônica ao longo de seu itinerário. Cabe assinalar que essa descrição será realizada por meio de “crônicas-fotografias”, entendidas como possibilidades de retorno textual a determinadas experiências, tal como ocorre com o trabalho fotográfico. Ao eleger apenas alguns autores, buscase revelar algumas nuanças panorâmicas do fazer cronístico, sendo que este exercício procura sua validade nos entretons que podem ser visualizados em meio ao cotejo de textos de diversos autores que escrevem em tempos também diversos. 23 ensaios sobre a arte da palavra A palavra crônica, e suas variantes chronica, caronica, cronicão e cronicon, está etimologicamente ligada ao termo Chronos, deus da mitologia grega que representa o tempo.1 Com a tradução para o latim — de Chronos para Saturnus, ou seja, “saturado de anos” — o termo passou a significar o registro dos fatos atuais. Esta pode ser considerada uma forma “ingênua” de crônica, porquanto as categorias “tempo” e “espaço” serviram apenas de princípios interpretativos inspiradores. Nessa acepção, a crônica assume o papel de registrar os fatos reais ao longo de sua evolução no tempo. Tal sentido pode ser facilmente identificado nas crônicas medievais portuguesas já que estas visam, primordialmente, a apresentar determinadas seqüências de fatos organizados na ordem temporal de sua ocorrência original. Cronistas como Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Ruy de Pina, entre outros, procuraram desenvolver um trabalho de compilação de situações e temas relacionados, principalmente, ao paço real e aos caminhos e descaminhos da expansão ultramarina de Portugal a partir do século XIV. Em tal conjuntura, esses escritos assumem uma dimensão pedagógica, na medida em que se inscrevem no circuito das manifestações dos Espelhos de Príncipes da nação portuguesa, entendidos como manuais para a educação dos membros da corte real pelos exempla dos feitos grandiosos retidos pela pena dos cronistas. O cronista-mor da casa real portuguesa, Gomes Eanes de Zurara, procurava confirmar a importância dos exemplos na formação das gerações futuras, sinalizando a prescrição de ações nobilitantes dos reis ante seus súditos. Deste modo, um rei “não pode dar herança de maior riqueza, nem jóia de maior valor a qualquer nobre, e excelente, que sua imagem pintada de virtudes, na qual, como um espelho, se possa guardar o lume de seus feitos ante a presença de todos” (ZURARA apud QUEIRÓZ, 1997: 75). Agindo de tal forma, o cronista conclui que as pessoas passariam a adotar a conduta do rei como modelo, pois “vendo-se homens como aqueles, por vergonha poderão contar usarem de menos virtude que os outros” (ZURARA apud QUEIRÓZ, 1997: 75). Se as virtudes e atitudes dos reis são exemplos para os que “hão de vir”, acrescidas da natureza oficial desses documentos, os cronistas são 24 retratos da crônica os responsáveis pela permanência de tais exemplos, construindo assim “a grandeza futura de Portugal para os que descenderem de suas linhagens, pois “sempre terão razão de se lembrarem de tamanhos feitos” porque terão tido escritores capazes de escrever seus feitos para ensinamento e exemplo dos pósteros” (QUEIRÓZ, 1997: 78). Além da crônica medieval, que empresta, sobretudo, o nome ao gênero, outros moldes de narrativas européias, ligadas ao surgimento da imprensa como divulgadora de textos literários, principalmente a partir do século XVIII , são extremamente importantes para a construção da crônica. É por intermédio do jornal que se notabilizam, por exemplo, o ensaio inglês e o folhetim francês. Na crônica brasileira, pode-se cogitar que ocorre uma espécie de fusão desses dois tipos de textos. A partir do ensaio, a crônica adota a noção de tentativa (“essay”), desprezando, em grande parte, os apelos do rigor acadêmico e levando a um tratamento mais informal dos assuntos abordados. Do folhetim absorve a dimensão “ficcional” dos eventos e temas descritos nesta forma literária. Com relação ao ensaio, Afrânio Coutinho sinaliza para a originalidade de Montaigne, escritor francês que, em seus Essais ( 1596 ), teria inspirado vários autores ingleses na escrita de dissertações breves, concisas e em linguagem familiar. O crítico enfatiza ainda a oposição entre o ensaio inglês e o sentido que a palavra assumiu no Brasil: estudo crítico, histórico, político ou filosófico, comumente publicado em livros e revistas científicas ligadas geralmente à academia (COUTINHO, 1978: 247-249). No que se refere ao folhetim, pode-se destacar que a crônica guarda afinidades com este gênero devido principalmente à destinação para o consumo imediato. Mas se distingue dele uma vez que não possui qualquer compromisso com a sucessividade ou com o movimento diacrônico (PORTELLA, 1998: 34). Como resultado, a crônica se afirma como espaço heterogêneo em que convivem, por exemplo, o pequeno ensaio, o conto ou o poema em prosa e sua identidade resulta também dessa diferença. A caracterização da crônica como espaço heterogêneo pode ser definida então como uma decorrência da variedade de tipos em que pode ser escrita: crônica poema-em-prosa, que apresenta 25 ensaios sobre a arte da palavra conteúdo lírico; crônica-comentário, na qual se apreciam os acontecimentos, acumulando assuntos diferentes; crônica metafísica, que promove reflexões de conteúdo filosófico; crônica narrativa, que tem por eixo uma história ou episódio; crônicainformação, que divulga fatos, tecendo sobre eles comentários ligeiros. 2 Esta combinação de gêneros é uma das características primordiais da crônica brasileira. Contudo, a escrita da crônica no Brasil não se resume a este aspecto. Ela possui uma longa história e esta história apresenta personagens considerados fundamentais no contexto da literatura brasileira. MOMENTOS REPRESENTATIVOS: CRONISTAS BRASILEIROS Um dos principais enfoques desse momento do percurso da crônica talvez deva ser direcionado ao alastramento do jornal a partir da segunda metade do século XIX, quando ocorre a abertura de espaço para a publicação de textos curtos. É desse movimento da imprensa escrita no século XIX que se afirma no Brasil a publicação de contos traduzidos e o folhetim — compreendido em suas acepções mais correntes: tanto como romance em capítulos quanto como crônica. Assim, como outro momento importante dessa trajetória, agora em solo brasileiro, merece destaque o papel desempenhado por alguns escritores no trabalho de “elevação” da crônica à arte literária. Nomes como os de José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, França Júnior, Machado de Assis, Raul Pompéia, Júlia Lopes de Almeida, João do Rio, Lima Barreto, entre outros, figuram na lista daqueles escritores que passaram a desenvolver o “exercício” da crônica cada vez mais preocupados em alcançar uma dimensão “poética” quando do registro jornalístico dos fatos que marcaram sua época. No entanto, na maioria desses autores brasileiros, a crônica apresenta um ar de aprendizado de uma matéria literária nova e complicada, pelo grau de heterogeneidade e discrepância de seus componentes, exigindo também novos meios lingüísticos de penetração e organização artística: é que nela afloravam, em meio ao material do passado, (...) as novidades burguesas trazidas pelo processo de modernização do país, de que o jornal era um dos instrumentos (ARRIGUCCI JR., 1987: 57). 26 retratos da crônica Um dos nomes citados acima merece destaque para mostrar algumas características da crônica brasileira produzida na segunda metade do século XIX . Trata-se de José de Alencar, escritor romântico marcado pelo esforço de mapeamento dos caracteres nacionais por meio de obras que visam retratar a “realidade brasileira” presente em alguns elementos considerados expressivos no que se refere à verdadeira nacionalidade. Entre estes elementos, o Romantismo irá privilegiar a identificação do índio como herói nacional, a descrição das relações sociais oriundas da crescente urbanização e modernização da sociedade carioca, as facetas regionais de um Brasil ainda a ser descrito, entre outros. Apesar das críticas direcionadas a este “instinto de nacionalidade”, devido à ingênua noção de pureza nacional, sua produção literária possui um valor incontestável no que se refere principalmente à valorização dos temas brasileiros por meio do fazer literário. Como cronista, Alencar escreve no tempo em que a crônica ainda era denominada de folhetim ou, em outras palavras, aquele espaço no rodapé da primeira página dos jornais que tinha como função primordial passar em revista os principais fatos da semana, além de ser dedicado à publicação de capítulos de romances. Nesse espaço, geralmente utilizado aos domingos, cabiam as informações mais diversificadas, resultando, por exemplo, na reunião, em um único texto, de apreciações sobre as estréias de espetáculos teatrais, comentários sobre os bailes e as festividades religiosas mais concorridas, críticas às especulações na bolsa, entre outros fatos que marcavam as semanas cariocas. Enfim, “é toda a fisionomia de uma cidade vivendo o seu primeiro grande momento de progresso e modernização em moldes capitalistas, embora incipientes, que se desenha nas páginas de Alencar” (FARIA, 1995: 12). Em texto de 19 de novembro de 1854, espécie de mitologia folhetinística, Alencar sugere: Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de fada ou ninfa, às semanas, como o fez com as horas, não me veria às vezes em tão sérios embaraços para escrever esta revista. [Dessa maneira] (...) em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições e traços para desenhar o meu original (ALENCAR, 1995: 53). 27 ensaios sobre a arte da palavra O trabalho do escritor, portanto, seria facilitado com a personificação das semanas, pois teria apenas o trabalho de qualificá-las de acordo com sua índole: “alegre e risonha” ou “calma e tranqüila”. Já que não é assim, não resta outra alternativa ao escritor “senão deixar as comparações e voltar ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia” (ALENCAR, 1995: 53). Característica visível no trecho transcrito, esse tipo de crônica pode ser qualificado como uma espécie de relato sociocultural da sociedade carioca na medida em que se prende intimamente aos acontecimentos semanais, tendo a relação semana/crônica fundamental importância para a construção do texto, já que esta relação parece ser encarada como uma espécie de exigência, restringindo em certa medida a liberdade temática de seu autor. Sendo assim, a crônica-folhetim é muito mais noticiosa do que propriamente literária, apesar dos esforços de Alencar – nas suas “conversas, ao correr da pena, com leitores e leitoras” – em conferir aos seus textos determinadas características ligadas ao mundo fictício, por meio do recurso à fantasia, ao humor, ao sonho, ao devaneio, acrescentando à crônica, além da informação, as funções de entretenimento e de diversão. Outro escritor ligado ao século XIX merece menção honrosa. Para Valentim Faccioli, no Brasil deste século “a crônica nasce, na prática da escritura cotidiana, com o surgimento dos primeiros jornais e revistas. Depois de 1860 passa a existir um número proporcionalmente grande de jornalistas e escritores que praticam a crônica moderna e lhe dão dignidade de gênero literário” (1982: 139). Esta dignidade, de acordo com o crítico, é acentuada por Machado de Assis, que “ultrapassou amplamente sua característica inicial de simples amenidade, de comentário descompromissado dos pequenos sucessos do cotidiano” (FACCIOLI, 1982: 139). Numa entrevista, o escritor Carlos Drummond de Andrade, enfatiza que, devido à sua natureza “fugitiva e fugidia”, a crônica passa depressa. No entanto, o autor alerta que, não obstante, deve-se reconhecer que: Crônicas escritas há mais de cem anos por um cidadão chamado Machado de Assis estão hoje vivas como naquele tempo. Os acontecimentos perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu, 28 retratos da crônica porque ela traduz uma visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva da realidade, que o acontecimento fica valendo pela interpretação que Machado de Assis deu (D. ANDRADE, 1999: 13). Como forma de comprovar as palavras de Drummond apresenta-se fragmento de uma crônica de 06 de setembro de 1892, na qual, através do diálogo com seu leitor, Machado adverte que “o livro da semana foi um obituário, e não terás lido outra cousa, fora daqui, senão mortes e mais mortes” (ASSIS, 1994: 51). O tema é a morte e a narrativa se estende através da apresentação dos nomes das pessoas que “partiram” naquela semana. No entanto, apesar de estes nomes perderem a atualidade, a introdução do texto é extremamente interessante devido à alusão do autor à morte com prazo determinado: Qualquer de nós teria organizado este mundo melhor do que saiu. A morte, por exemplo, bem podia ser tão-somente a aposentadoria da vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia ou desastre, mas por natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz, não a poria a cargo dos seus ou dos outros. Como isto andaria assim desde o princípio das cousas, ninguém sentiria dor nem temor, nem os que se fossem, nem os que ficassem. Podia ser uma cerimônia doméstica ou pública; entraria nos costumes uma refeição de despedida, frugal, não triste, em que os que iam morrer dissessem as saudades que levavam, fizessem recomendações, dessem conselhos, e se fossem alegres, contassem anedotas alegres. Muitas flores, não perpétuas, nem dessas outras de cores carregadas, mas claras e vivas, como de núpcias. E melhor seria não haver nada, além das despedidas verbais e amigas... (ASSIS, 1994: 49-51). Estas linhas apresentam um encanto que permanece através dos tempos, pois as conjeturas inusitadas presentes no texto levam o leitor à reflexão sobre a fugacidade da vida, tema que não perde a atualidade em nenhuma época da “comédia humana”. Além disso, a morte geralmente é retratada como algo doloroso e traumático, aspecto que o escritor procura relativizar com a sugestão da morte não apenas como perda, mas, devido à previsibilidade, como algo programado e, de tal forma, isento de surpresas. Alguns estudos recentes investigam nas crônicas machadianas alguns dos traços característicos de seus romances e contos, narrativas através das quais se notabilizou.3 Desse modo, nas crônicas machadianas seria notável a “arte da desconversa: refinada, alusiva, muitas vezes 29 ensaios sobre a arte da palavra maldosa e sempre irresistível. Ninguém escapa a tanta movimentação e humor, mesmo depois de todos esses anos do desaparecimento dos fatos que motivaram aquelas páginas extraordinárias” (ARRIGUCCI JR., 1987: 59). Como se vê, Machado de Assis, apesar de ter como prérequisito o comentário dos fatos semanais, investe suas impressões sobre estes fatos de uma “literariedade” mais expressiva na medida em que, parafraseando Drummond, o fato fica em segundo plano e o que prevalece é a interpretação dada ao mesmo. Nesse sentido, Machado procura desvencilhar-se da obrigatoriedade de retratar as semanas, qualidade que evita que se tornem datadas e situadas, já que este pode ser compreendido como um dos empecilhos para a permanência da crônica. Além disso, outra característica fundamental da produção machadiana encontra-se na provocação do leitor, pois, em suas páginas, o leitor está sempre presente, como visto nos fragmentos acima citados. O leitor é então “o interlocutor assíduo e participativo que tanto pode ser aliado ou adversário, personagem principal ou simples coadjuvante, sempre, porém, referência destacada. Daí resulta uma infatigável cumplicidade entre escritor e leitor, porque as provocações do primeiro estimulam, no segundo, um estado de vigília permanente” (PORTELLA, 1998: 31). Tais circunstâncias podem ser identificadas também em suas crônicas, nas quais o diálogo constante com seus leitores estabelece uma maior aproximação entre os interlocutores. Adquirindo fama a partir do início do século XX, outro autor que merece ser mencionado é João do Rio — pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto — por fazer também o registro de aspectos relevantes da sociedade brasileira daquele período. Vale destacar em João do Rio seu papel na estruturação da crônica nos moldes atuais: comentário aparentemente banal sobre determinada situação, com injeção de elementos ficcionais, numa fusão entre reportagem de jornal e conto. Dessa forma, o narrador de suas crônicas pode ser definido como “narrador-repórter”, por fazer a aliança entre ficção e realidade, de tal maneira que leva ao desenvolvimento de um gênero híbrido (SÁ, 1985: 07-10). Este narrador se transforma em flâneur — palavra de origem francesa ligada ao verbo flanar, ou seja, nas palavras do próprio autor, “perambular com inteligência” —, podendo assim contemplar 30 retratos da crônica elementos que fazem da então capital do Brasil um espaço singular, onde convivem as mais diferentes profissões, crenças religiosas, festas, vícios e virtudes, ligados, com certa freqüência, às camadas populares. Os textos produzidos pelo autor, notadamente aqueles reunidos em obras como A alma encantadora das ruas, podem ser descritos como uma homenagem à cidade, em que o acento tônico recai sobre a rua, personagem principal em grande parte do registro de acontecimentos, à primeira vista, sem importância. Como protagonista, a rua aparece personificada por imagens que revelam a dimensão poética inscrita nas narrativas do autor. Em uma de suas crônicas mais famosas, ao procurar nos dicionários elementos para definir sua personagem, o narrador declara que a rua aparece ali apenas como “um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações...” (RIO, 1987: 04). Afirma então que essa definição peca por não captar a essência da rua: “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!” (RIO, 1987: 04). É o caso da Rua da Misericórdia, descrita como palco no qual aparecem marcas expressivas da história brasileira: Com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da influência jesuítica. Índios batidos, negros presos a ferros, domínio ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo atirado aos céus. Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas, soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes, ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão augustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de lhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele grito de mendiga velha: — Misericórdia! (RIO, 1987: 08). O Rio de Janeiro que aparece nas páginas do autor é uma cidade que se modernizava. Entretanto, o autor registra facetas inusitadas que emergem nesse processo. Assim, a cidade mostrase em palavras por intermédio de um procedimento incomum, operado pelo autor em relação à matéria real que se fazia crônica: 31 ensaios sobre a arte da palavra Em lugar de permanecer na redação, esperando que os informes chegassem até ele, João do Rio saía às ruas, procurava o fato diverso, o ângulo diferenciado. Assim, seus textos revelam o movimento da cidade, comentando fatos e pessoas que antes eram meramente transplantados para o jornal (OLIVEIRA; GENS, 1987: XII). É com este procedimento que seus textos irão incorporar falas e imagens curiosas da cidade. Destaca-se a profissão dos caçadores de gatos: “São os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo. Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais” (RIO, 1987: 25). Caso curioso é ainda o das pessoas que marcam seus corpos com tatuagens: Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas. A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem. As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis idéias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem (...), e marcam o mesmo no pé, no calcanhar. — Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado. É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher... (RIO, 1987: 33). Tatuadores, mendigos, pivettes, cantores e versos populares, cordões carnavalescos, presidiários, modinhas, pintores, meretrizes, consumidores de ópio, lundus, músicos ambulantes, orações, velhos cocheiros, mercadores de livros, entre outros tipos e manifestações humanas-urbanas, compõem o universo das crônicas de João do Rio, mostrando assim um painel proteiforme de situações que desembocam ou se originam da “alma encantadora das ruas”. Outro momento marcante na história da crônica brasileira, como não poderia deixar de ser, está ligado à escola que alteraria substancialmente a linguagem e os temas abordados pela literatura brasileira a partir das primeiras décadas do século XX : o modernismo, demarcado cronologicamente pelo advento da Semana 32 retratos da crônica de Arte Moderna de 1922. Esta escola iria primar pela incorporação de elementos ligados à linguagem coloquial na busca de uma arte mais próxima do povo e, desse modo, influenciaria decisivamente em alguns traços da escrita da crônica literária: “Voltada para as miudezas do cotidiano, as fraturas expostas da vida social, a finura dos perfis psicológicos, o quadro de costumes, o ridículo de cada dia e até a poesia mais alta que ela chega alcançar” (ARRIGUCCI JR., 1987: 59). O momento modernista caracteriza-se pela difusão ainda maior da já expressiva produção jornalística do século XIX, auxiliada também pela publicação de diversas revistas literárias que iriam defender e disseminar as propostas do movimento. Em tal cenário, é preciso ressaltar aquelas características de contestação do modernismo que libertaram os escritores brasileiros de uma imemorial e voluntária subordinação aos cânones clássicos de Portugal, “permitindo-lhes adotar uma linguagem mais livre, mais solta, mais natural, de inspiração regional e popular, o que representou sem dúvida um enriquecimento e uma libertação para a nossa língua literária, tornando realidade aquilo que os românticos (...) apenas tentaram fazer” (PEREGRINO JR. apud COUTINHO, 1978: 275). Como movimento, o modernismo se apresenta como concepção de vida, “gerando um estilo novo de enfrentar a realidade brasileira, fosse nos processos de dominá-la, fosse nas formas de representá-la artisticamente” (COUTINHO, 1978: 280). Como figura modelar da crônica modernista é selecionado aqui o nome de Mário de Andrade, um dos defensores mais destacados das bandeiras modernistas, de tal forma que: Se um movimento deve a uma grande personalidade parte significativa de seu êxito, é inegável que, no caso do Modernismo, assim na fase demolidora e heróica, que também em seu período mais construtivo, essa personalidade dirigente foi a de Mário de Andrade, que, no conto, na epopéia do Macunaíma, na poesia, na crítica e teoria literárias, na linguagem, nos estudos folclóricos, para não referir os vários outros setores onde sua ação se fez sentir, deixou o sinete de sua capacidade criadora e inovadora em conquistas definitivas para a inteligência brasileira, conquistas tão importantes como realizações positivas quanto como lições e exemplos da genuína e correta atitude do espírito brasileiro, de agora em diante, no que concerne à literatura, seja no aspecto temático ou formal, na inspiração ou na técnica (COUTINHO, 1978: 281-282). 33 ensaios sobre a arte da palavra A crônica escolhida, intitulada “Esquina” e publicada em 17 de dezembro de 1939 , retrata exemplarmente uma das características relevantes da prosa do modernismo, entrevista na abordagem de temas ligados ao cotidiano, quando a arte imita a vida de maneira mais plural, adicionando elementos obscurecidos em outras obras. Sem prender-se necessariamente aos fatos da semana, o narrador do texto faz a descrição de todo o emaranhado de relações que se estabelecem em torno de uma esquina da Rua do Catete, no Rio de Janeiro, mostrando a visão crítica com que o autor absorve os detalhes mais recônditos da vida urbana brasileira. Primeiramente, merece destaque a direção do olhar que o escritor procura focalizar em sua descrição: a esquina, espaço de cruzamentos, encontros e interseções de pessoas e situações. Como forma de identificar seu endereço, o narrador descreve a quais classes pertencem os transeuntes que “habitam” a esquina. A primeira é a pequena burguesia, na qual o autor identifica “um lento exército de infiéis, que fazem todos os esforços imagináveis para não pertencer à classe operária” (M. ANDRADE, 1991: 68). Numa referência ao preconceito disseminado de que o trabalho é encarado ainda como coisa de escravo, o autor ilustra com alguns exemplos o mascaramento da condição social. Após a descrição desses personagens pequeno-burgueses, o narrador acrescenta que “(...) há o caso da gorda, o do paralítico a quem morreu a mulher que o tratava, o das duas irmãs, mas tenho que descer para o andar térreo. Na rua quem vive são os operários. Este operariado do Catete, que mora por aqui mesmo, nos fundos da casa, no oco dos quarteirões, ou nos vários cortiços que se arriscam a desembocar na própria rua” (M. ANDRADE, 1991: 71). Nesse texto, o narrador compara a sociedade brasileira ao prédio onde reside: as classes abastadas vivem nos andares superiores, os operários no andar térreo. Dessa maneira, faz desfilar diante de seus leitores uma galeria de figuras representativas dessas classes sociais. De início, o olhar é direcionado à frente e, como está num prédio, focaliza as classes que “moram no alto”. Depois, o olhar vai para o “térreo”, mostrando a dinâmica do cotidiano do operariado: Gente do povo, sempre em mangas de camisa ou nas mais ralas camisas de meia e tamancos de pau batucando. Muitos vivem de 34 retratos da crônica pé no chão, mesmo aqui, bem junto da sublime Praça Paris... Não é uma gente triste, embora todos inalteravelmente sejam de físico tristonho. O nível de vida é baixíssimo, só as mocinhas se disfarçam mais. Os outros, mesmo os jovens, mesmo os lusíadas resistentes, mostram sempre qualquer ruga, qualquer ombro tombado ou peito fundo, marca de imperfeição. Deles, a vida não é instável, pelo contrário, graniticamente imóvel (...). Esta gente não viaja, não se movimenta, é gente que vem até a esquina. De noite após a janta, ou então aos domingos de camisa limpa, eles têm que descansar e se divertir um bocado. Então vêm até a esquina, se encostam nos lampiões, nas árvores, ou se ajuntam, na porta dos botequins, conversandinho. Os bondes passam cheios do futebol que nos faz esquecer de nós mesmos. Mas estes homens, nem de futebol precisam. Só conseguem é vir até a esquina, reumáticos de miséria e embolorados de inconsciência (M. ANDRADE, 1991: 71). Em suma, Mário de Andrade opera com uma espécie de “alegoria formal” ao descrever as relações que ocorrem em torno do prédio onde mora: quando olha para frente, enfatiza elementos ligados às pessoas da pequena burguesia; quando “desce ao térreo” faz a leitura do cotidiano dos operários transeuntes que vêm até à esquina. Esta atitude alegórica pode ser problematizada como uma das estratégias modernistas para inscrever, por meio da literatura, aspectos da realidade social brasileira daquele momento histórico. A crônica modernista, seguindo a tendência da época e de outros gêneros: (...) se convertia num meio de mapear e descobrir um país heterogêneo e complexo, largamente desconhecido de seus próprios habitantes, caracterizado pelo desenvolvimento histórico desigual, de modo que o processo de modernização podia ser acompanhado pelos contrastes entre bolsões de prosperidade e vastas áreas de mistura com traços remanescentes de velhas estruturas da sociedade tradicional. (...) Provinciana e moderna a uma só vez, a crônica modernista revela uma tensão contínua entre tempos diversos e espaços heterogêneos, fundindo numa liga complexa componentes discrepantes, provenientes de formas de vida distintas, mas mescladas (ARRIGUCCI JR., 1987: 63). A crônica de Mário de Andrade pode ser entendida, portanto, como amostra importante do percurso do movimento modernista brasileiro. A inserção de temas e linguagem ligados às classes populares parece ser a chave para a compreensão de uma das características essenciais da releitura da realidade brasileira preconizada pelo modernismo: tentativa, bem sucedida, de alargar 35 ensaios sobre a arte da palavra os horizontes da literatura a partir de uma maior abertura, tanto temática quanto formal, aos vários aspectos que colaboram para a formação da “brasilidade”, possibilitando a revelação de elementos poucas vezes registrados pelos escritores brasileiros. As relações entre o jornal e a crônica apresentam-se como uma das características fundamentais dessa atividade literária. Tais relações são expostas de forma pormenorizada por Carlos Drummond de Andrade: A crônica é fruto do jornal, onde aparece entre notícias efêmeras. Trata-se de um gênero literário que se caracteriza por estar perto do dia-a-dia, seja nos temas, ligados à vida cotidiana, seja na linguagem despojada e coloquial do jornalismo. Mais do que isso, surge inesperadamente como um instante de pausa para o leitor fatigado com a frieza da objetividade jornalística. De extensão limitada, essa pausa se caracteriza exatamente por ir contra as tendências fundamentais do meio em que aparece (...). Se a notícia deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal. Se a linguagem jornalística deve ser precisa e enxuta, a crônica é impressionista e lírica. Se o jornalista deve ser metódico e claro, o cronista costuma escrever pelo método da conversa fiada, do assunto-puxa-assunto, estabelecendo uma atmosfera de intimidade com o leitor (D. ANDRADE, 1999: 13). Desse modo, apesar de “ser no e para o jornal” (MOISÉS, 1983: 247), a crônica não respira os mesmos ares de objetividade comuns ao discurso jornalístico, pois este “assenta-se em técnicas de composição, montagem, texto e ilustração que asseguram um estatuto de verdade —objetiva e imparcial — ao fato relatado. Ou seja, à medida que [o jornal] se torna cada vez mais moderno, mais perfeito, consegue promover a ilusão de uma acessibilidade imediata ao real” (HOLLANDA, 1979-1980: 68). De forma diversa do que ocorre com o discurso jornalístico, a crônica caracteriza-se como “pausa subjetivizada” que procura fugir do simples registro dos acontecimentos, possibilidade para a instauração do lírico e do lúdico em meio à necessidade da “verdade” jornalística. Apesar de sua fugacidade, ainda de acordo com o mesmo Drummond, a crônica não é assim tão passageira. Falando especificamente de suas crônicas, o escritor enfatiza que elas não perderam a atualidade porque nem sempre comentam um fato do dia, ou, quando comentam, procuram dar outra dimensão a esse fato e fazer uma reflexão qualquer sobre a vida, sobre os costumes, 36 retratos da crônica sobre a política, sobre os homens, à margem de um acontecimento transitório. “Sendo assim, a crônica tem uma certa chance de permanecer” (D. ANDRADE, 1999: 13). Como se vê, um dos ingredientes fundamentais para a permanência da crônica parece estar nesse jogo de estender a análise não apenas aos fatos, mas procurar transmitir ao texto qualidades que levem o leitor à reflexão. Esta receita já era reconhecida pelos cronistas do século XIX. Cabe então a pergunta: o que muda na configuração da crônica a partir da segunda metade do século XX? Uma abordagem possível pode ser visualizada quando a resposta não for procurada apenas na produção e sim na recepção desses textos, pois, a partir desse período, a crônica, além de ganhar adeptos que a praticam com certa exclusividade — tais como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Luis Fernando Verissimo, entre outros — passa a ser publicada em livro com maior regularidade que em décadas anteriores. Nesse cenário, pode-se sugerir que a crônica da segunda metade do século XX apresenta mudanças no que se refere principalmente à atitude do leitor diante do texto, já que, quando reunida em antologias, possibilita a leitura de diversas crônicas de um mesmo autor — ou até de autores diferentes quando da reunião de diversos cronistas em uma mesma obra —, levando a uma maior exclusividade na leitura. A partir desse momento, a crônica não disputa mais espaço com as notícias do jornal devido à ampliação de seu espaço de divulgação, resultante do maior número de publicações em forma de livro. Assim, outro aspecto importante do percurso da crônica brasileira refere-se às possibilidades de mudança de suporte ocorridas com essas narrativas nas últimas décadas, na medida em que vários escritores têm seus textos publicados não mais somente em periódicos, mas também a partir da reunião em antologias. Novamente é Carlos Drummond de Andrade quem esclarece algumas questões ligadas ao processo de transposição da crônica publicada na imprensa periódica para o livro: Eu devo reconhecer que muitas das crônicas escritas por mim não podem perdurar porque, em primeiro lugar, eu não as achei adequadas a formarem um livro, e depois porque o jornal, que é tão vivo no dia, é uma sepultura no dia seguinte. Então, essas 37 ensaios sobre a arte da palavra coisas escritas ao sabor do tempo perdem completamente não só a atualidade como o sabor, o sentido, a significação (...). Então a crônica que aborda um fato ou circunstância de vida de determinada pessoa perdeu completamente o sentido, porque essa própria pessoa perdeu o sentido. Então não é propriamente a crônica, é o acontecimento que ela reflete que perdeu a significação (D. ANDRADE, 1999: 13). As considerações de Drummond são extremamente importantes no que se refere ao processo de seleção efetuado pelo escritor — ou por outra pessoa encarregada de organizar a seleção — quando da passagem da crônica do jornal ou revista para o livro. Tendo como suporte o livro, esses textos procuram adquirir maior permanência, além de possibilitar maiores cuidados quando de sua avaliação crítica. A reunião de crônicas em antologias guarda afinidades com um percurso tradicional de difusão de obras literárias no Brasil: muitos romances do final do século XIX tiveram sua publicação realizada inicialmente por meio do jornal, usando como recurso a divulgação em forma de capítulos. Após esta publicação prévia, essas obras passaram a ser divulgadas em forma de livro, como é o caso de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (publicada no suplemento “A Pacotilha” do jornal Correio Mercantil de 27 de junho de 1852 a 31 de julho de 1853); Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (publicada na Revista Brasileira de 15 de março de 1879 a 15 de dezembro de 1880), entre outras. A diferença fundamental entre estes romances e as crônicas está relacionado ao conjunto, pois os romances são construídos com base na ligação existente entre os diversos capítulos, levando a uma maior unidade temática dos mesmos. O que parece unir as crônicas de autores diversos é o fato de estarem relacionadas aos comentários da vida cotidiana. Assim, falar sobre os costumes, a política, as manifestações culturais mais diversificadas parece caracterizar-se como fio condutor dessas narrativas. Na obra A crônica Jorge de Sá busca desenvolver um trabalho de levantamento dos escritores que praticam a crônica como um de seus gêneros literários prediletos. O autor procura identificar as características que fazem desse exercício um momento de reflexão, a pausa necessária diante da conturbada relação com a 38 retratos da crônica alteridade. Seu estudo envereda pela análise de narrativas de diversos cronistas contemporâneos, com destaque para Rubem Braga, Fernando Sabino, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Lourenço Diaféria, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes. Analisando o trabalho de Rubem Braga, Jorge de Sá enfatiza alguns aspectos relacionados à transitoriedade da crônica. Segundo o crítico, esse gênero literário “(...) é uma tenda de cigano enquanto consciência da nossa transitoriedade; no entanto é casa — e bem sólida até — quando reunida em livro, onde se percebe com maior nitidez a busca da coerência no traçado da vida, a fim de torná-la mais gratificante e, somente assim, mais perene” (SÁ, 1985: 17). Dessa maneira, são relevantes as reflexões de Jorge de Sá, pois corroboram as considerações de Drummond apresentadas em linhas anteriores sobre alguns aspectos que envolvem a transposição da crônica do jornal para o livro, principalmente quando afirma que: Nessa transposição, é claro que o escritor está buscando fazer da tenda precária e cigana uma casa sólida e mais duradoura. Mas ele procura selecionar seus melhores textos, atribuindo-lhes uma seqüência cronológica e temática capaz de mostrar ao leitor um painel que se fragmentara nas páginas jornalísticas, ou cuja unicidade não fora percebida por nós. Nessa seleção, que é feita como se a própria vida estivesse sendo passada a limpo, o cronista elimina as crônicas que envelheceram porque ficaram excessivamente ligadas a um acontecimento datado e situado, hoje sem nenhuma importância, agrupando na coletânea aquelas que conservam o seu poder de provocar a nossa reflexão (1985: 19). Ligada à transitoriedade do jornal, a crônica é direcionada inicialmente aos leitores apressados desse veículo de informação diária, cuja elaboração tem como característica primordial a urgência, pois os acontecimentos são extremamente rápidos, e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Por tais motivos, sua sintaxe parece muitas vezes estar desestruturada, muito mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito (SÁ, 1985: 10). Essa característica leva a uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade. O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo tratados numa determinada crônica. 39 ensaios sobre a arte da palavra A aparência de simplicidade da crônica não implica necessariamente em desconhecimento das artimanhas artísticas, já que tal aparência decorre, em grande parte, do fato de que a crônica surge primeiro no jornal, “herdando a sua precariedade, esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal” (SÁ, 1985: 10). Nesse sentido, a reunião de crônicas em antologias merece destaque como momento importante do percurso histórico da crônica, principalmente devido à mudança de atitude do leitor, pois as possibilidades de leitura crítica se tornam mais amplas, a riqueza do texto, agora liberto de certas referencialidades, atua com maior liberdade sobre o leitor — que passa a ver novas possibilidades interpretativas a partir de cada releitura. Ao final desse percurso, cabe a interrogação: como falar da crônica brasileira sem citar o trabalho de Rubem Braga? Por meio da comparação entre literatura e movimento, podese qualificar algumas modalidades literárias da seguinte forma: a poesia dança com as palavras, ao “passo” que a prosa anda através delas. O “cronista-m(ai)or” da literatura brasileira, Rubem Braga, parece operar uma espécie de fusão desses movimentos, já que em suas crônicas a prosa é entrecortada constantemente por traços poéticos, ou, se for válida a analogia, o cronista “caminha dançando”. Tal é o trabalho de Rubem Braga que, de acordo com as palavras de um de seus críticos mais atentos, está situado numa encruzilhada entre o ambiente rural e o urbano, entre a província querida da infância e o vasto mundo moderno. Seu espírito parece encantado com os pequenos seres e coisas com que muitas vezes tece seus relatos e, ao mesmo tempo, vaga desejoso, errante e solitário pela cidade (que são muitas cidades), sem encontrar a casa em que se ajuste definitivamente, apenas iluminado por instantes passageiros de revelação (ARRIGUCCI JR., 1987: 64). Um exemplo significativo desse processo pode ser identificado em uma de suas crônicas mais famosas — “O pavão” —, na qual o escritor faz o seguinte comentário: “O pavão é o arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e de luz ele faz 40 retratos da crônica seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade” (BRAGA, 1960: 149-150). O trecho pode ser lido como sincera e singela homenagem à crônica, pois esta aparece em seu trabalho como território literário que — mesmo de forma simples, misturando apenas água e luz — consegue dizer as coisas mais profundas, com a exposição de “instantes passageiros de revelação”, muitas vezes imperceptíveis aos simples mortais, mas que nas palavras do cronista-poeta assumem imagens que podem integrar a fragmentação das plumas, como unidades discretas, num uníssono totalizante. Por tais motivos, “é seguramente o mais subjetivo dos cronistas brasileiros. E o mais lírico. Apresentando a originalidade de uma imaginação poética e erradia, Rubem Braga, em seu lirismo, escreve sem ornatos e alcança às vezes a simplicidade clássica, numa língua despojada, melodiosa, direta” (COUTINHO, 1986: 133). É de Manuel Bandeira a justa homenagem ao “taciturno cidadão de Cachoeiro de Itapemirim”. Para ele, Rubem Braga é o “príncipe da crônica”. E explica a razão de sua superioridade sobre os outros cronistas: Parece-me que o segredo dele é pôr sempre no que escreve o melhor de sua inefável poesia. Os outros cronistas (...) põem também poesia nas suas crônicas, mas é o refugo, poesia barata (...). A boa, eles guardam para os seus poemas. Braga, poeta sem oficina montada e que faz poema uma vez na vida e outra na morte, descarrega os seus bálsamos e os seus venenos na crônica diária (BANDEIRA, 1986b: 289). APONTAMENTOS DIVERSOS Sem pretender resolvê-la, o presente texto buscou alargar a questão da produção do gênero crônica no Brasil. Desse modo, numa espécie de síntese, o percurso da crônica brasileira possui uma trajetória que pode ser definida a partir dos seguintes atributos: tendo seu nome ligado aos escritos da Idade Média, a crônica pode ser qualificada como “prima” do ensaio inglês e “filha” do folhetim francês, sendo que, a partir desse estágio, buscando inspiração nas artimanhas literárias, passa de simples amenidade sobre o cotidiano das semanas cariocas para obra relevante no universo da literatura brasileira, merecedora, assim, da reunião em antologias e da dedicação quase exclusiva por parte de alguns 41 ensaios sobre a arte da palavra escritores. Nesse contexto, “(...) a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma” (CANDIDO, 1992: 15). Ressalva importante: apesar de assim parecer à primeira vista, esse percurso não indica necessariamente que a crônica do século XIX deva ser considerada melhor ou pior do que a crônica produzida no século XX. Ocorrem, isto sim, mudanças significativas no que concerne aos elementos formais, ideológicos e estéticos que passaram a integrar as obras dos escritores contemporâneos. Vale ressaltar, ainda, o emprego do termo “narrativas”. Benedito Nunes, numa análise do Tempo na narrativa, descreve esta última como sendo uma acepção pertinente não apenas às atividades literárias, pois, em sentido amplo, o termo pode ser estendido a outras manifestações culturais. Para o autor, títulos diferentes como o mito, a lenda e o caso, consideradas formas simples, literariamente fecundas, não são propriamente literárias como o conto, a novela e o romance. Contudo, podem ser definidas pelo mesmo nome. Além disso, a definição do autor surge como referência relevante devido ao fato de abranger tanto as: (...) várias espécies de relatos orais e a modalidade escrita – biografias, memórias, reportagens, crônicas e historiografia – sobre eventos ou seres reais, que se excluem do nível ficcional (...) [quanto as] formas visuais, ou obtidas com meios gráficos (histórias em quadrinhos), e com meios pictóricos ou escultóricos (...) ou que são obtidas através da imagem cinematográfica e televisionada (1988: 06). Apesar de não incluir a crônica entre as formas literárias fecundas, a conceituação assume um papel desmistificador na medida em que relativiza as discussões em torno dos limites entre as várias tipologias de gêneros literários, pois estes limites nunca foram precisos, além de levarem a uma valoração desigual relativa a determinadas atividades literárias. Entender a crônica como subgênero ou gênero menor, como fazem alguns teóricos, apresenta-se como perspectiva no mínimo redutora das virtudes do gênero, por especificar o valor de determinadas manifestações literárias pelo seu vínculo ou não a determinadas modalidades literárias. Caso fosse assim, os escritores se dedicariam apenas ao conto, à novela ou ao romance. “Catalogar a crônica como gênero 42 retratos da crônica menor esbarra na evidência de que não existem gêneros menores. Há grandes e pequenos romancistas, grandes e pequenos poetas, grandes e pequenos contistas. Também há bons e maus cronistas” (AMÂNCIO, 1991: 09). Sob esta perspectiva, sugere-se uma sinonímia entre as crônicas analisadas neste artigo e o termo narrativas, por ser este entendido como forma menos depreciativa, já que apresenta características reconhecidas em diversas construções discursivas, nas quais pode ser compreendido como: (...) dispersão sintagmática dos acontecimentos através de uma série temporal apresentada como um discurso em prosa, de modo a mostrar sua progressiva elaboração como uma forma compreensível (...). [Dessa forma] o sentido básico de uma narrativa consistiria, então, na desestruturação de um conjunto de eventos (reais ou imaginários) originariamente codificados num modo tropológico, e na reestruturação progressiva do conjunto num outro modo tropológico (WHITE, 1994: 113). Vista dessa maneira, a narrativa aparece como um processo de decodificação e recodificação em que uma percepção original é esclarecida por achar-se vazada num modo figurativo diverso daquele em que veio a ser codificada por convenção, autoridade ou costume. Tais elementos estão presentes tanto na historiografia, no romance, no conto, na fábula etc., quanto na crônica, o que viabiliza a utilização do termo para designar esses diferentes processos de registro de eventos e temas. Em síntese, percebe-se o papel exercido por trabalhos que privilegiem estudos sobre a crônica, na medida em que lançar luzes sobre esse gênero pode ser encarada como uma das possibilidades de revisão do cânone literário, devido à condição marginal a que foi submetida a crônica ao longo do registro feito por historiadores e críticos literários. Entretanto, tal erro talvez não seja fruto apenas de uma atitude preconceituosa, pois é com o aumento da publicação em livro — e a dedicação cada vez maior de alguns escritores — que se afirma o estudo crítico da crônica, fato que se consolida principalmente a partir da metade do século XX. Contudo, há que se destacar que o “livro alarga consideravelmente o campo de divulgação, mas é enganoso supor que o livro é que dá qualificação definitiva a qualquer escrito” (COUTINHO, 1986: 135). Dessa forma, a relação entre crônica e livro não sugere que sua permanência esteja garantida com a reunião em antologias. Sua permanência está 43 ensaios sobre a arte da palavra inegavelmente ligada às suas qualidades literárias, que não se alteram quando muda o suporte. O que se procura enfatizar é que o trabalho de análise intertextual, um dos possíveis caminhos a serem adotados pela crítica literária, é facilitado quando da publicação em livro. Notas 1. De acordo com a mitologia clássica, “o deus Cronos, filho de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra), destronou o pai e casou com a própria irmã, Réia. Urano e Gaia, conhecedores do futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria, por sua vez, destronado por um dos filhos que gerasse. Para evitar a concretização da profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos de sua união com Réia. Até que esta, grávida mais uma vez, conseguiu enganar o marido, dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança recém-nascida. E, assim, a profecia realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver, deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que havia devorado. E liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado por ele e os irmãos” (L AURITO , 1993: 10). Assim, a lenda de Cronos pode ser lida como alegoria: a de que o tempo, em sua passagem fatal, engole a todos, tanto os criadores como suas criaturas. 2. A presente tipologia de categorias foi proposta por Afrânio Coutinho. O autor ressalta, no entanto, que, devido à flexibilidade do gênero, “essa tentativa de classificação não implica o reconhecimento de uma separação estanque entre os vários tipos, os quais, na realidade, se encontram freqüentemente fundindo traços de uns e outros” (1986: 133). Em outra passagem, o crítico enfatiza ainda que “a estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambigüidade é sua lei (...) [já que] os gêneros literários não se excluem; incluem-se” (1986: 271). 3. Afrânio Coutinho assinala em Machado de Assis uma articulação entre o fato jornalístico e a invenção literária, de tal maneira que “sua fidelidade à técnica realista fazia com que ele mergulhasse no contemporâneo a fim de colher o material da vida que, atingindo o inconsciente, se transformaria num símbolo de arte. Suas crônicas documentaram esse fato: muitos assuntos observados no cotidiano, recolhidos na leitura do ‘fait divers’ dos jornais, iriam servir-lhe como material para crônicas, depois desdobrados em contos ou introduzidos nos romances, perdendo-se no caminho como realidade e ganhando em intangível artístico, através de diversos estratos de significado” (In: Introdução à literatura no Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 211). Ainda sobre estes traços característicos nas crônicas de Machado de Assis, consultar: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Trad. de Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. * * * 44 CAPÍTULO II FORMAS E EFEITOS DA COMICIDADE •♦• Ride, ridentes! Derride, derridentes! Risonhai aos risos, rimente risandai! Derride sorrimente! Risos sobrerrisos, risadas de sorrideiros risores! Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros! Sorrisonhos, risonhos, Sorride, ridiculai, risando, risantes, Hilariando, riando Ride, ridentes! Derride, derridentes! Vladimir Khlébnikov1 Nas discussões sobre a comicidade um dos enfoques obrigatórios deve ser dirigido ao produto por ela criado: o riso. Uma de suas especificidades reside no fato de que o riso ensina pelo divertimento, advertindo sobre as dificuldades impostas àqueles que pretendem, com certa freqüência, eternizar significados sobre determinadas idéias e conceitos. Segundo Luis Fernando Verissimo, a principal função da comicidade “é manter viva uma idéia de irreverência (...) de que nada deve ser reverenciado, de que nada é sagrado, tudo pode ser questionado, criticado, e, sendo criticado, pode ser melhorado” (Citado em WEINHARDT, 1985: 17). Falar sobre comicidade é discutir questões relacionadas às formas de construção de discursos que visam, primordialmente, desestabilizar as certezas e reivindicar um lugar no espaço sociocultural por meio do riso. Nesse sentido, serão comentadas as reflexões de autores considerados expoentes da renovação dos estudos sobre “um dos mais fluidos fenômenos da arte” (BOSI, 1988: 189). 45 ensaios sobre a arte da palavra ANATOMIA DA COMICIDADE É preciso diferenciar os conceitos de comicidade e humor, já que este – etimologicamente ligado ao termo latino humore – possui acepções dicionarizadas que remetem a diferentes campos do conhecimento: para a Biologia, humor é qualquer líquido que atue normalmente no corpo, principalmente dos vertebrados (bílis, sangue, linfa etc.); para a Medicina, humor é a substância mórbida, líquida, formada no corpo doente, como, por exemplo, o pus; em outra acepção, a palavra designa ainda a porção líquida do globo ocular. Além disso, quando ligado ao riso, o conceito está geralmente relacionado à disposição de ânimo (bom ou mau humor) inerente àquelas pessoas que apreciam ou expressam coisas engraçadas (MICHAELIS, 1998: 1117). Portanto, ao adotar preferencialmente o termo comicidade para estudar as atividades humanas que visam despertar o riso, procura-se delimitar o tema no âmbito das realizações artísticas. Destaca-se também o fato de que a comicidade, com certa freqüência, está intimamente ligada ao palco, compreendido como espaço demarcado socialmente para a apresentação de cenas engraçadas. O teatro e a encenação de comédias, as cortes medievais e modernas e as apresentações dos bufões (os chamados “bobos da corte”), os espetáculos circenses e os malabarismos e peripécias risíveis efetuadas pelos palhaços, ou ainda, mais recentemente, alguns programas televisivos. Estes são os espaços nos quais a comicidade aparece como elemento principal. Isto para afirmar que a comicidade sempre esteve presente na vida cotidiana, com mais ênfase nas piadas, cuja difusão fez do riso um expressivo fator de divulgação de valores culturais, notadamente aqueles ligados à cultura popular. Apesar de estabelecer relações com esses e outros espaços, a atenção estará direcionada aos recursos usados para provocar o riso nas produções literárias. Desde a Antigüidade até os dias de hoje, vários são os estudiosos que dedicam parte considerável de suas reflexões ao domínio das manifestações cômicas. Já no século IV a. C., a análise de Aristóteles faz o registro de um de seus aspectos mais evidentes: de todos os seres vivos, somente ao ser humano é dada a faculdade de rir. Dessa forma, “a capacidade de rir (excluído evidentemente o 46 formas e efeitos da comicidade riso de pura alegria física das crianças) está ligada de perto à capacidade de pensar, privativa do homem, o único animal racional” (PAES, 1993: 03). Além disso, é de Aristóteles a formulação segundo a qual a percepção do ridículo, como causa do riso, é o elemento essencial da comédia. Ainda de acordo com o filósofo grego, contrariamente à tragédia, na comédia ocorreria a passagem da infelicidade para a felicidade. As idéias aristotélicas parecem estar relacionadas ao “final feliz” apresentado em muitas comédias tradicionais através da punição e/ou conversão dos culpados em contraposição ao triunfo do amor, da pureza dos sentimentos e da virtude (Cf. ARISTÓTELES, 1982: 246-247). No final do século XIX, em seu famoso ensaio intitulado Le rire (publicado pela primeira vez no ano de 1899), o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) caracteriza o riso como manifestação humana, insensível e social: é o homem que se apresenta como espetáculo ao próprio homem; para despertar o riso é necessária “uma certa anestesia momentânea do coração”; o riso só adquire sentido quando relacionado aos costumes e valores próprios de determinada época ou grupo social (Cf. BERGSON, 1987: 13-14). Para Bergson, a condição primordial para a existência do riso reside na oposição estabelecida entre o mecânico e o vivo: tudo o que é rígido, enrijecido, estereotipado e automático entra em contradição com o que é elástico, movente, individual e irrepetível, provocando o riso (CF. BERGSON, 1987: 15-18). Os comentários desse autor revelam aspectos relacionados aos fenômenos risíveis, principalmente no que se refere às oposições utilizadas para provocar o riso, entendidos como desvios com relação a determinadas normas. Por exemplo, a contradição entre aparência e essência (um palhaço que chora); entre o ser e o dever ser (o hipócrita que prega determinadas ações, mas que não adota as mesmas em sua vida cotidiana); entre a expectativa e sua realização (como alguém que vá a uma “padaria” e não encontre pão para comprar). Essas contradições, quando manipuladas artisticamente, podem servir de instrumentos para a instauração de cenas que despertem o riso no leitor. Enfatizando também a importância da revelação das contradições, o escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936), num 47 ensaios sobre a arte da palavra ensaio de 1920 intitulado L’umorismo, afirma que o riso despertado pelo humor está relacionado ao sentimento do contrário, produzido principalmente pela atividade de reflexão sobre as diversas simulações da luta pela vida, percebidas pela aguda intuição do escritor. Segundo o autor, cabe ao humorista encarnar a atitude de demonstrar os contrastes entre o ser e o parecer, para evidenciar as fissuras de comportamento e a impotência da condição humana. Para tanto, o autor chama a atenção para o fato de que tal procedimento deva ser realizado de forma súbita, rapidamente, sob pena de atenuar, com a inoportuna demora, o berrante das contradições (Cf. PIRANDELLO, 1968: 18-26). Outro estudioso dos elementos da comicidade é Sigmund Freud (1856-1939), que fundamenta sua análise no caráter liberador, frente às sanções sociais, presente em modalidades risíveis como o humor, o cômico e o chiste. A perspectiva psicanalítica freudiana relaciona, com certa freqüência, essas modalidades com a sexualidade e a obscenidade, procurando evidenciar o papel desempenhado por tais fenômenos no reconhecimento e na superação de tabus encontrados na sociedade (Cf. FREUD, 1969: 242247). Fundamentais são também as considerações tecidas pelo pensador russo Vladimir Propp (1895-1970), em sua obra intitulada Comicidade e riso (cuja primeira edição é de 1976). O autor conduz sua pesquisa com o propósito de estabelecer uma tipologia do cômico, tendo como suporte numerosos e variados exemplos de comicidade na literatura, no folclore, no teatro, no cinema, na vida diária, além de realizar uma revisão da teoria produzida sobre o assunto. Propp enfatiza a necessidade do trabalho empírico. Suas teorizações partem sempre de um exemplo retirado de alguma produção artística. Fornecendo definições de diversos aspectos da comicidade, o autor sugere uma espécie de estética do riso, elencando as categorias que podem ser usadas como recursos para suscitar o efeito cômico. Entre os autores recorrentes em estudos sobre manifestações ligadas à comicidade, os mais significativos parecem ser Vladimir Propp e Henri Bergson. O privilégio dado aqui às análises efetuadas por Propp não indica necessariamente 48 formas e efeitos da comicidade desmerecimento do trabalho de Bergson; o que ocorre é que o autor russo, em muitas de suas incursões críticas, realiza o estudo de fenômenos risíveis relacionados a empreendimentos artísticos produzidos no decorrer do século XX, procedimento inacessível para Bergson, posto que a divulgação de sua obra ocorre no final do século XIX. Por tal motivo, privilegia-se as teorizações de Vladimir Propp, apesar de reconhecer no autor certas limitações oriundas da defesa, em alguns casos bastante engajada, do uso do riso como forma de contribuir para a “causa socialista” em voga em seu país quando da elaboração de sua pesquisa. Entre os recursos utilizados para provocar o riso, destacamse a paródia, o exagero cômico, e os instrumentos lingüísticos da comicidade. Dessa maneira, passam a ser apresentadas algumas considerações sobre esses mecanismos de instauração da comicidade nos diversos textos literários, utilizando, em alguns casos, exemplos inseridos no contexto da literatura e da cultura brasileiras, bem como orientações de outros teóricos sobre o tema. Intertexto cômico: aproximações e deslocamentos Reconhecido como um dos elementos mais importantes da comicidade nos vários registros de discurso, a paródia pode ser compreendida como um procedimento que pretende encarnar uma atitude depreciativa com relação ao texto citado, sendo que este serve de veículo para o processo de ridicularização em um texto novo. Por exemplo, o provérbio “O trabalho dignifica o homem” é uma expressão usualmente associada à valorização do trabalho humano. Mas quando esta expressão é alterada para “O trabalho danifica o homem” ela carrega um sentido pejorativo. Este procedimento busca revelar as circunstâncias nas quais o trabalho é encarado de forma diversa, e por isso o verbo “dignificar” passa para “danificar” pelo emprego da paronomásia (palavras com sons semelhantes, mas sentidos diferentes). A alteração, em termos vocabulares, é pequena. No entanto, em termos de sentido, ela se coloca opostamente à versão anterior. Ocorre aí o que se pode chamar de procedimento paródico, pois, usando como recurso o intertexto, é estabelecida a ruptura com o texto anterior, por meio do que esta expressão passa a assumir um sentido completamente distinto. 49 ensaios sobre a arte da palavra As origens do termo paródia estão ligadas à música. A palavra deriva do grego para-ode que significa uma ode que perverte o sentido de outra ode, o que implica na idéia de contracanto (SANT’ANNA, 1985: 12). Nas palavras de Vladimir Propp, a paródia consiste na “imitação das características exteriores de um fenômeno qualquer de vida (das maneiras de uma pessoa, dos procedimentos artísticos etc.), de modo a ocultar ou negar o sentido interior daquilo que é submetido à parodização” (1992: 84). As reflexões do autor russo evidenciam que é possível, a rigor, parodiar vários elementos: “os movimentos e as ações de uma pessoa, seus gestos, o andar, a mímica, a fala, os hábitos de sua profissão e o jargão profissional”. Além disso, é possível parodiar “não só uma pessoa, mas também o que é criado por ela no campo do mundo material”. Assim, o processo paródico é compreendido como “um dos instrumentos mais poderosos de sátira social (...) [pois] revela a fragilidade interior do que é parodiado” (PROPP, 1992: 85-87). Outro exemplo de parodização, agora mais restrito ao campo literário, é o texto de Millôr Fernandes, que usa como intertexto o famoso poema de Manuel Bandeira “Vou me embora pra Pasárgada”. O autor inicia a paródia já no título: “Vou me embora de Pasárgada”: Que o Manuel Bandeira me perdoe, mas... Vou-me embora de Pasárgada! Sou inimigo do rei. Não tenho nada que eu quero não tenho e nunca terei Vou-me embora de Pasárgada Aqui eu não sou feliz. A existência é tão dura as elites tão senis que Joana, a louca da Espanha ainda é mais coerente do que os donos do país. A gente só faz ginástica nos velhos trens da Central. Se quer comer todo dia a polícia baixa o pau. E como já estou cansado sem esperança num país em que tudo nos revolta já comprei ida sem volta pra outro qualquer lugar. Aqui não quero ficar. Pasárgada já não tem nada nem mesmo recordação. Nem a fome e a doença impedem a concepção. Telefone não telefona. A droga é falsificada e prostitutas aidéticas se fingem de namoradas. E se hoje acordei alegre não pensem que eu vou ficar. Nosso presente já era nosso passado já foi. Dou boiada pra ir embora pra ficar só dou um boi. Sou inimigo do rei. Não tenho nada na vida não tenho e nunca terei. Vou-me embora de Pasárgada. (F ERNANDES , Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L& PM , 1994, p. 353). 50 formas e efeitos da comicidade Para entender melhor o processo paródico, seguem abaixo trechos da versão original: Vou-me embora pra Pasárgada. Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei. --------------------------------------------------- E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar. Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar. ------------------------------------- (BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa e verso. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, pp. 146-148). Na versão original, Pasárgada pode ser compreendida como espaço de libertação pelo sonho, de transporte para o futuro imaginário — ou para o passado-infância — dos desejos preservados na memória. O que a Pasárgada de Manuel Bandeira possui de utópica, que não existe em lugar algum, no texto de Millôr Fernandes assume a cara do Brasil com as referências ao contexto brasileiro, tais como: “A gente só faz ginástica/nos velhos trens da Central”. Pasárgada, lugar paradisíaco e imaginário em Bandeira, concretiza-se em lugar decadente na paródia de Millôr, pois todas as vantagens da versão original são contrapostas a vários problemas encontrados no cotidiano brasileiro, já que “Nem a fome e a doença/ impedem a concepção/Telefone não telefona/A droga é falsificada/ e prostitutas aidéticas/se fingem de namoradas”. A inversão do provérbio “Dou um boi pra não entrar numa briga, e uma boiada pra não sair” leva ao riso, porque na Pasárgada parodiada “Dou boiada pra ir embora/pra ficar só dou um boi”. Essa transposição da Pasárgada imaginária para a realidade brasileira encontra sustentação em uma atitude que procura questionar aquelas imagens — não necessariamente as sugeridas pelo poema de Manuel Bandeira; por isso, o pedido de desculpas no início do texto — que fazem do Brasil um lugar paradisíaco, decorrente de todo um conjunto de textos e idéias que caracterizam 51 ensaios sobre a arte da palavra o país como espaço edênico. Ocorre, portanto, uma ruptura com relação a estas imagens anteriores, o que evidencia um processo de descontinuidade alicerçado na parodização presente na reelaboração de Millôr Fernandes: aparecem, ao mesmo tempo, a repetição e a negação dessas imagens. É ocioso dizer que a paródia não é uma invenção recente já que podem ser encontrados exemplos significativos de seu uso na arte tanto na Antigüidade quanto na Idade Média. O que ocorre é que, a partir da segunda metade do século XIX, com os movimentos renovadores da arte ocidental — que culminariam, no contexto brasileiro, nas propostas modernistas de 1922 —, o emprego da paródia foi intensificado na arte, de tal maneira que passou a ser um dos objetos de estudo privilegiados por parte da crítica. Paródia, paráfrase, apropriação, estilização e pastiche podem ser compreendidos como recursos usados pelos artistas para inscrever a alteridade em suas obras. Contudo, na paródia “se introduz naquela outra fala uma intenção que se opõe diretamente à original (...). É possível parodiar o estudo de um outro em direções diversas, aí introduzindo acentos novos, embora só se possa estilizálo, de fato, em uma única direção – a que ele próprio propusera” (BAKHTIN apud SANT’ANNA, 1985: 14). Como forma de auxiliar a compreensão do procedimento paródico, pode-se lançar mão também da paráfrase que, ao contrário, faz o elogio do “texto-fonte”, numa espécie de plágio autorizado. Exemplo de paráfrase é a estrofe do Hino Nacional Brasileiro que faz referência à “Canção do Exílio”, famoso poema de Gonçalves Dias2, mais especificamente a um dos trechos mais carregados pelos tons ufanistas: “Nosso céu tem mais estrelas/ Nossas várzeas têm mais flores/Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida mais amores” (DIAS, 1997: 05). Joaquim Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino Nacional, parafraseia o poema da seguinte forma: “Do que a terra mais garrida/ Teus risonhos, lindos campos têm mais flores/ ‘Nossos bosques têm mais vida’/ ‘Nossa vida’ no teu seio ‘mais amores’”. O que ocorre na citação – o trecho é, inclusive, marcado por aspas – é a concordância com relação às idéias do autor original, o que sugere que a paráfrase opera com uma certa continuidade estilística, característica que se opõe à ruptura provocada pela 52 formas e efeitos da comicidade paródia. Por tal motivo, a paráfrase, mais do que um efeito retórico, pode ser definida como “(...) efeito ideológico de continuidade de um pensamento, fé ou procedimento estético” (SANT’ANNA, 1985: 22). Para muitos lingüistas, a paráfrase pode ser associada à tradução caso esta seja compreendida não apenas como simples conversão da obra de um autor de uma língua para outra, mas também como processo de interpretação e transcriação com base em um texto anterior. Esta associação procura ressaltar a importância das idéias do tradutor quando da passagem de um texto para outra língua, o que contraria a idéia de simples estilização realizada no texto traduzido. Contudo, deve-se reservar o direito aos leitores de suspeitar da tradução (traição?) de alguns autores, problemas já apontados exaustivamente por inúmeros estudiosos. Muito associado à paródia está também o conceito de pastiche. No entanto, os dois procedimentos apresentam diferenças, sobretudo porque, com o pastiche, é realizado um trabalho mais simplório de reunir pedaços de diferentes partes de obra de um ou de vários artistas (Cf. SANT’ANNA, 1985: 13). De acordo com Linda Hutcheon, a paródia é uma representação que, ao contrário do pastiche e da paráfrase, mostra seu deslocamento, distinção e discordância em relação ao texto original, mas nem sempre ridicularizando.3 Para Hutcheon, a paródia é uma síntese bitextual: ao mesmo tempo em que acolhe a tradição para continuá-la, redefine-a e modifica seus significados, exibindo elementos que haviam sido descartados ou pouco destacados por esta tradição. A definição da autora é sustentada pela diversidade de acepções expressas pelo radical “para” (como visto anteriormente, a palavra paródia deriva do grego “para-ode”): além de “contra”, o termo pode assumir o sentido de “ao lado de”. Por estar ligada à primeira acepção, a paródia, na definição corrente, exige a presença do texto parodiado e sua conseqüente ridicularização. Na definição de Linda Hutcheon, sem descartar elementos considerados importantes da definição corrente, aparecem referências a casos em que o procedimento paródico não lida necessariamente com esses recursos, já que “o seu efeito é o deslocamento do texto original, invertendo ou deformando o sentido, mas nem sempre às custas do texto parodiado” (1985: 17). 53 ensaios sobre a arte da palavra Apesar dessas divergências, o que parece destacar-se como denominador comum das várias formas de inserção da fala do outro em determinados textos é a noção de intertextualidade encontrada em recursos artísticos como a estilização, a paráfrase, a apropriação, o pastiche e a paródia. Isto revela que, quanto maior for o desvio efetuado pelo intertexto, maior é a inversão de sentido provocada com relação ao texto-fonte. Por isso, a paródia se encontra num dos extremos desse deslocamento, pois realiza de forma mais radical o processo de distanciamento com o texto anterior. Uma das formas de assegurar o distanciamento reside na alteração do texto-fonte pela inclusão de elementos cômicos na reelaboração paródica. Outras formas de instauração da comicidade Além da paródia, outro recurso bastante usado para instaurar a comicidade nos textos é o exagero. Para ser cômico, o exagero necessita desnudar um defeito, de tal maneira que “se este não existe, o exagero já não se enquadra no domínio da comicidade. É possível demonstrá-lo através do exame das três formas fundamentais do exagero: a caricatura, a hipérbole e o grotesco” (PROPP, 1992: 88). Assim, uma forma de exagero cômico consiste na caricaturização, pela qual “um pormenor, um detalhe (...) é exagerado de modo a atrair para si uma atenção exclusiva” (PROPP, 1992: 89). Entendido dessa forma, o exagero obscurece as demais características de quem ou aquilo que é submetido à caricaturização. O exagero, nesses casos, pode ser físico ou ligado a fenômenos espirituais, a partir do que a propriedade fundamental da “representação cômica, caricatural, de um caráter está em tomar uma particularidade qualquer da pessoa e em representá-la como única, ou seja, exagerá-la” (PROPP, 1992: 89). Estas considerações convergem para as de Henri Bergson, para quem “a arte do caricaturista consiste em captar um pormenor, às vezes imperceptível, e torná-lo evidente a todos através da ampliação de suas dimensões” (1987: 87). 54 formas e efeitos da comicidade Exemplo desse fenômeno pode ser diagnosticado em muitos caricaturistas que publicam trabalhos em jornais, principalmente quando são abordados fatos e personagens ligados à política partidária. Esses personagens geralmente aparecem com algum detalhe realçado, o que desperta o riso (as sobrancelhas de Leonel Brizola; o “topete” de Itamar Franco etc.). Com relação à hipérbole pode-se constatar que ela se apresenta como uma variedade da caricatura, pois enquanto nesta ocorre o exagero de um pormenor, naquela o exagero se amplia para dar conta do todo. A hipérbole, como instrumento de depreciação, é ridícula somente quando ressalta as características negativas e não as positivas. A forma extrema do exagero é o grotesco: ele atinge tais dimensões que aquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso. Por extrapolar os limites da realidade, o grotesco faz fronteira com o terrível, principalmente ao conferir caráter fantástico a uma determinada imagem ou obra. Nas palavras de Propp, O grotesco é a forma de comicidade preferida pela arte popular desde a Antigüidade. As máscaras da comédia grega antiga são grotescas. O descomedimento violento na comédia contrapõe-se ao comedimento e ao majestoso na tragédia. Porém o exagero não é a característica única do grotesco. O grotesco nos faz sair dos limites de um mundo realmente possível. Assim, o conto de Gógol O nariz constitui pela trama um caso de grotesco: um nariz passeia livremente pela rua (...). O grotesco é cômico quando (...) encobre o princípio espiritual e revela os defeitos. Ele se torna terrível quando o princípio espiritual se anula no homem. O grotesco é possível apenas na arte e impossível na vida. Sua condição sine qua non é uma certa relação estética com os horrores representados (1992: 92). Relativamente aos instrumentos lingüísticos da comicidade é preciso enfatizar que a língua constitui um arsenal muito rico de instrumentos de comicidade e de zombaria. Desse arsenal fazem parte os trocadilhos, os paradoxos, as “tiradas” de todo tipo a eles relacionadas (chistes, pilhérias etc.), bem como algumas formas de ironia. Entre estes instrumentos, o trocadilho consiste essencialmente no uso do sentido próprio de uma palavra, em lugar de seu sentido figurado. Em outras palavras, existem termos que 55 ensaios sobre a arte da palavra possuem dois ou mais significados; alguns significados têm um sentido amplo, de certo modo geral, abstrato, e outros os têm mais restrito, concreto, aplicado. Ocorre assim um jogo de palavras quando um interlocutor compreende a palavra em seu sentido amplo ou geral e o outro substitui esse significado por aquele mais restrito; com isso ele suscita o riso, na medida em que anula o argumento do interlocutor e mostra sua inconsistência. Fazendo uso das propriedades polissêmicas das palavras, no trocadilho o riso é despertado quando o significado mais geral da palavra passa a ser substituído pelo significado restrito. Contudo, esse tipo de comicidade “não pode ser nem moral nem imoral em si mesmo: tudo depende do modo como ele é empregado, do alvo que ele visa. O trocadilho dirigido contra os aspectos negativos da vida torna-se uma arma de sátira afiada e precisa” (PROPP, 1992: 123). O jogo com o significado das palavras ocorre também pelo uso dos paradoxos. Estes se constituem em sentenças nas quais o predicado contradiz o sujeito ou a definição não corresponde ao que passa a ser definido. Em outros termos, no paradoxo, conceitos que se excluem mutuamente são reunidos, apesar de sua incompatibilidade. Esse aspecto pode ser contraposto às artimanhas usadas pelo texto irônico, na medida em que, neste, expressa-se com as palavras um conceito, mas subentende-se (sem expressálo por palavras) um outro, contrário. Para delinear a maneira como é instaurada a ironia nos textos torna-se relevante a definição do que seja o ato de linguagem. Este pode ser compreendido como um conjunto de elementos interdependentes: um indivíduo real (sujeito comunicante) que cria um sujeito enunciador (sujeito da palavra), responsável pelos efeitos que o uso da linguagem pode ter sobre o sujeito interpretante (leitor ou ouvinte). Este sujeito enunciador, por sua vez, cria/fala/escreve para um sujeito interpretante (destinatário) ideal. O objetivo do sujeito comunicante-enunciador é fazer com que as interpretações desse destinatário ideal coincidam com as do destinatário real, entendido como sujeito interpretante real, sendo portanto exterior ao texto, ao circuito interno da palavra. Finalmente, o texto aparece como representação do mundo real (Cf. BRAIT, 1996: 55-62). Portanto, quem escolhe a ironia como meio escrito para argumentar deve preocupar-se primordialmente com o modo pelo 56 formas e efeitos da comicidade qual ela pode ser construída, ou seja, o “ironista” deve dispor de estratégias que instaurem a ironia em seus enunciados. Dessa maneira, o sujeito comunicante pensa “não-X”; o sujeito enunciador diz “X” ao destinatário ideal. O sujeito enunciador instaura no texto pistas para que o destinatário ideal perceba que sua enunciação não é séria ou direta, ou que “X” é igual a “não-X”. Por meio desse processo, a ironia pode apresentar elementos cômicos, sobretudo quando revela alegoricamente os defeitos daqueles ou daquilo de que se fala. O texto “Alerta Irmão Branco”, de autoria do escritor Flávio José Cardozo, é um bom exemplo do uso da ironia. Para chamar a atenção para o extermínio dos índios brasileiros, o autor do texto inverte a perspectiva ao alertar, ironicamente, o “aumento” da população indígena. Um dos trechos da narrativa defende um guarda florestal da acusação de estupro de uma índia. As pistas deixadas no texto alertam o leitor sobre a leitura a ser feita. Uma menor, a caminho da escola, foi vítima de uma tentativa de sedução e agressão. O acusado é um guarda florestal e o comentário que se impõe à inteligência é logo este: indecorosa e pérfida mentira dessa menor! Então um homem branco, com todos os séculos de civilização que traz nas costas, ia descer à animalidade de abusar duma indiazinha? Não gosto de lidar com conjeturas, mas conhecendo como conheço o nível da depuração moral a que nós, todos os brancos, chegamos no correr da História, vejo com clareza o que realmente aconteceu. Aconteceu que estava o guarda cumprindo o seu trabalho quando dele se aproximou a citada moça. Íntegro por natureza, o homem nem sonhava que pudesse ocorrer no mundo aquilo que acabou ocorrendo ali mesmo naquele trecho da mata: de repente, a mulherzinha atirou-se sobre ele, impetuosa, com o transparente propósito de desonrá-lo. Ele defendeu-se com galhardia, mas a pequena fera insistiu no assalto. Parecia tomada pelo mais furioso e lascivo dos demônios. De tal modo que acabou não restando ao agredido senão usar um pouco de sua humilhada força varonil. A virtude às vezes tem de apelar para a energia e então o virtuoso recebe a pecha de mau, por vingança, mas isso é da vida. Foi o que houve. (CARDOZO, 1982: 63). A utilização da estrutura fônica da língua pode ser usada também para criar elementos de comicidade no texto, o que significa que a comicidade “se realiza desviando-se a atenção do conteúdo do discurso para as formas exteriores de sua expressão. Com isso a língua perde o significado (...). A perda de sentido do discurso realiza-se intensificando a atenção sobre o processo, a expensas de seu conteúdo” (PROPP, 1992: 126). Algumas crônicas de Luis 57 ensaios sobre a arte da palavra Fernando Verissimo são verdadeiros ensaios sobre o jogo insólito proporcionado pela sonoridade de algumas palavras. Exemplo disso pode ser descrito no texto intitulado “Defenestração”: Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra. Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria. - Os hermeneutas estão chegando! - Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada. ------------------------------------------------------------------Traquinagem devia ser uma peça mecânica. - Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto. Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água (1984: 29). O narrador investiga as possibilidades de mudança no sentido de alguns termos — suscitando efeitos risíveis marcados pela comparação inusitada — quando analisados especificamente com relação ao aspecto fônico. Ao domínio da comicidade, realizada a partir de meios lingüísticos, pertence ainda aquela que surge do emprego dos mais variados jargões profissionais ou de classes sociais. Nesses casos, a comicidade não é apenas lingüística, pois “um discurso estranho ou insólito distingue uma pessoa das outras, tal como o fazem uma roupa esquisita ou um jeito todo especial” (PROPP, 1992: 128). Exemplos desse tipo de procedimento podem ser encontrados na utilização cômica da língua do sábio, da tecnologia profissional, da terminologia científica, entre outras. Esse é o tipo de recurso, descrito em forma de diálogo, manipulado por Luis Fernando Verissimo para ridicularizar alguns termos ligados ao “Economês”: – Você no momento aconselharia que tipo de aplicação? – Bom, depende do Jeld pretendido, do throwback e do ciclo refratário. Na faixa de papéis topmarket, ou o que nós chamamos de “topi-marque”, o throwback recai sobre o repasse e não sobre o release, entende? (1978: 89). O que o autor procura tornar risível é o fato de que palavras como “Jeld”, “throwback”, “ciclo refratário”, entre outras presentes 58 formas e efeitos da comicidade no texto, além de serem índice de um transplante equivocado de termos estrangeiros (sem uma efetiva tradução para o contexto brasileiro: “ou o que nós chamamos de ‘topi-marque’”), aparecem então como formas verbais altamente especializadas. Estas formas provocam reações de estranhamento em interlocutores desavisados ao serem retiradas de seu espaço específico de uso, no caso, o “mercado de investimos financeiros”. DEGRAUS DO RISO Outra das especificidades do cômico está ligada às diversas gradações possíveis do movimento realizado pelos lábios humanos quando da manifestação risível, podendo este ir desde o sorriso fraco até o estouro fragoroso de uma risada desenfreada. Essas gradações, em certa medida, podem ser relacionadas aos vários tipos de riso encontrados junto aos grupos sociais. Entre estes tipos destacam-se: o riso bom, o riso maldoso, o riso ritual e o riso de zombaria. O riso bom será a primeira exploração dessas gradações. Esse tipo de riso pode ser caracterizado como aquele em que não aparece a intenção derrisória, ou seja, o escárnio, a mofa ou a atitude de desprezo, de tal maneira que “os pequenos defeitos daqueles que nós amamos só embaçam seus lados positivos e atraentes. Se estes defeitos existem, nós os desculpamos de bom grado” (PROPP, 1992: 159). Esse seria então um tipo de riso atenuado e inofensivo, pois o autor se encontra do lado do objeto do riso. Nessa acepção, o riso se enquadra naquelas manifestações próprias do humor, na medida em que este seja entendido como “aquela disposição de espírito que em nossas relações com os outros, pela manifestação exterior de pequenos defeitos, nos deixa entrever uma natureza internamente positiva” (PROPP, 1992: 152). O riso bom pode ser adjetivado ainda como riso alegre, já que “este tipo de riso elimina qualquer emoção negativa e a torna impossível; ele apaga a cólera e a ira, vence a perturbação e eleva as forças vitais, o desejo de viver e de tomar parte na vida” (PROPP, 1992: 163). De forma diversa do riso bom, o riso maldoso muitas vezes concentra suas forças em defeitos falsos (imaginados ou inventados) 59 ensaios sobre a arte da palavra levando à maledicência. De acordo com Propp, “deste riso, em geral, riem as pessoas que não acreditam em nenhum impulso nobre, que vêem em todo lugar a falsidade e a hipocrisia, os misantropos que não compreendem como por trás das manifestações exteriores das boas ações haja realmente alguma louvável motivação. Nessas motivações eles não acreditam” (1992: 159). Interligado ao riso maldoso, está o riso cínico, aquele que se prende ao prazer pela “desgraça dos outros”: “a infelicidade alheia pode levar um ser humano árido, incapaz de entender o sofrimento dos outros, a um riso que tem as características do cinismo. Mesmo o simples riso que zomba não está desprovido de um matiz de maldade, mas não passa de matiz” (1992: 160-161). Além do riso bom e do riso maldoso, pode ser enfocado ainda o riso ritual, comumente destacado quando da análise dos cultos relacionados à fertilidade da terra, à iniciação sexual, ao parto, à ressurreição dos mortos, entre outros elementos cerimoniais. Por tais razões, esta forma de riso está relacionada ao que geralmente é identificado como a gargalhada. Carnaval e riso O riso ritual foi estudado por Mikhail Bakhtin (1895-1975) num livro fundamental para a compreensão das relações entre a obra rabelaisiana e a cultura popular de seu tempo: A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Francois Rabelais. Com base nas palavras de Rabelais – eternizadas em obras de crítica satírica dos costumes como Pantagruel (1532) e Gargântua (1534) – a análise bakhtiniana envereda para o estudo das fontes populares, apreendidas como chave para a compreensão dessas obras, dando destaque ao carnaval. Este seria o mito e o rito através dos quais confluem a inversão brincalhona dos valores e das hierarquias constituídas; a exaltação da fertilidade e da abundância; o sentido cósmico do fluir destruidor e regenerador do tempo, representado pela encenação sincrética de imagens ambivalentes que aproximam, reúnem e amalgamam o sagrado e o profano, a juventude e a velhice, o sublime e o desprezível, a sabedoria e a tolice, o grande e o pequeno, a morte e o nascimento etc. 60 formas e efeitos da comicidade De acordo com Bakhtin, os temas carnavalescos da cultura popular, representada por artesãos e camponeses, assumem características tais que revelam uma complementaridade entre elementos aparentemente opostos, o que evidencia uma infração a tudo o que é comum e usual. A concepção de carnaval bakhtiniana procura captar a essência dessa festa popular a partir da investigação de suas origens e de seu apogeu. Para tanto, o autor irá enfocar aquelas características carnavalescas presentes na Idade Média e no Renascimento – com raízes na Antigüidade – quando o carnaval se apresenta como uma visão do mundo, muito mais vasta e popular, de um passado remoto, ao contrário do que é comumente aceito nos dias de hoje: o carnaval como simples espetáculo teatralizado, como festejo de mascarados ou como festa vulgar: O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível (Bakhtin, 1996: 03). A percepção carnavalesca estaria, dessa maneira, inserida numa esfera de relacionamentos livres e íntimos sustentados pela alegria nas mudanças e numa alegre relatividade, o que se opõe ao sério oficial que é moroso, monológico e dogmático, realizado, sobretudo, pelo medo, inimigo da mudança, pois sinaliza para a absolutização do estado existente nas coisas e na ordem social. Por esse motivo, a percepção carnavalesca do mundo se opõe a todo fim que se pretenda definitivo já que considera o fim como um novo começo. Daí a importância das imagens que revelam um contínuo renascer. O carnaval, apesar de não se constituir especificamente num fato literário, possui implicações com a literatura na medida em que se apresenta como espetáculo de forma sincrética, de caráter ritual, apresentando diversas variantes, segundo os povos e as épocas. Nesse espetáculo, geralmente sem palco e sem separação entre atores e espectadores, todos participam ativamente. Quando 61 ensaios sobre a arte da palavra as leis do carnaval estão em vigor, todos se submetem a elas, aceitando uma forma de vida inabitual, espaço propício para o questionamento das mais dimensões dos valores nas sociedades. Desse modo, no carnaval, “ninguém é de ninguém”: as leis, as proibições, as restrições que normalmente condicionam a vida cotidiana, deixam de vigorar no período carnavalesco. A primeira a desaparecer é a ordem hierárquica e, com ela, as formas de respeito que acarreta: a veneração, a piedade, a etiqueta e aquelas decorrentes das desigualdades sociais. Pautado em Bakhtin, Propp denomina a gargalhada, por apresentar-se sem moderação, como riso rabelaisiano: Ele é acompanhado de voracidade e outros tipos de dissolução. Nós agora condenamos a voracidade e por isto o riso rabelaisiano nos parece estranho. A condenação, porém, não tem apenas um caráter psicológico, mas também social. Ela é característica daquela camada de pessoas que sabem o que significa um bom apetite, mas que não sabem e nunca souberam o que é uma fome longa e terrível. Pois justamente a uma fome prolongada e à subalimentação eram condenados os camponeses de todos os países europeus, especialmente na Idade Média e nos séculos sucessivos. Do ponto de vista destas camadas sociais, comer e beber à saciedade, até empanturrar-se a ponto de perder os sentidos, sem respeitar limites de espécie alguma, não apenas não era inconveniente, mas era até considerado uma coisa boa. A essa comilança todos se entregavam em conjunto e publicamente nos dias das grandes festas, que eram acompanhadas de um riso alto e exultante (1992: 167). Por intermédio de um processo de rebaixamento dos símbolos elevados, o riso rabelaisiano supera as distâncias hierárquicas. Ao aproximar da realidade atual da representação os eventos do passado, este tipo de riso os familiariza com essa atualidade, e nessa familiarização os torna objeto de análise. Isto revela que o riso pode aproximar o objeto e permitir sondar várias de suas facetas, abalando o medo e a reverência diante do mundo, estabelecendo um contato familiar com esse objeto, com isto criando a condição para que ele seja estudado com maior liberdade. Na análise de Bakhtin destacam-se duas modalidades narrativas consideradas essenciais: os diálogos socráticos e a sátira menipéia, fundada por Menipo de Gádara no século IV a. C. Com relação a esta última, ainda de acordo com Bakhtin, a sátira menipéia teve em Luciano de Samósata a expressão maior (125- 62 formas e efeitos da comicidade 180 d. C., aproximadamente). Produto direto da cultura do riso, ela subverte a hierarquia dos objetos da representação, a hierarquia do espaço e do tempo, dos acontecimentos históricos, suprimindo os resquícios de barreiras hierárquicas, sociais, etárias, sexuais, religiosas, nacionais, lingüísticas. Em seus diálogos, em nome da liberdade de expressão, não subsistem a reverência, as regras de decoro, a etiqueta e o medo. O riso desempenha um papel de magnitude até então desconhecida. A ausência de formas de reverência cria uma impressão caótica relativa à ordem universal das coisas, desaparecendo assim a sensação de seriedade no comportamento das personagens e na sua relação com o mundo. Na visão carnavalesca do mundo, a abolição das relações hierárquicas possuía uma significação muito especial. Nas festas oficiais, com efeito, as distinções hierárquicas destacavam-se intencionalmente, cada personagem apresentavase com as insígnias dos seus títulos, graus e funções e ocupava o lugar reservado para o seu nível. Essa festa tinha por finalidade a consagração da desigualdade, ao contrário do carnaval, em que todos eram iguais e onde reinava uma forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, idade e situação familiar (BAKHTIN, 1996: 09). As instituições, portanto, são alvos a serem atingidos com o rebaixamento e as inversões ousadas. Nestas, os momentos elevados do mundo, da vida e função dos deuses, dos heróis e das grandes personalidades históricas e da expressão do discurso oficial aparecem invertidos, com uma faceta claramente oposta àquela com que anteriormente se manifestavam. O caos que toma conta do mundo representa a negação do seu status habitual, o presente está em processo de formação e o passado é uma categoria que ainda não desapareceu, mas não serve mais de modelo. O riso aproxima e dá o tom às coisas, sua ambivalência vislumbra uma nova perspectiva de construção do universo e assume, em casos particulares, conotações utópicas. A familiaridade vislumbrada pelo riso afasta a possibilidade de representação do passado e o espaço da representação constituise numa zona de contato familiar. Como predomina a familiarização entre os objetos representados, não há qualquer restrição espaçotemporal para o enredo, que se desloca com total liberdade de 63 ensaios sobre a arte da palavra fantasia do céu para a terra, do Olimpo para o inferno, do presente para o passado, e vice-versa. O reino do além-túmulo é o espaço do congraçamento universal; aí todos os heróis do passado absoluto e distante, dos tempos lendários, sagrados e históricos, com os contemporâneos vivos, debatem de modo livre e familiar. Surge, assim, um modelo utópico de mundo ideal, onde cada indivíduo é dono de si mesmo e da sua palavra, que flui livre de muitas injunções usuais, uma vez que o comportamento humano está fora do alcance das regras de reverência, convívio e etiqueta e das leis que imperam no cotidiano da sociedade. Em síntese, “durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do carnaval, seu modo particular de existência” (BAKHTIN, 1996: 07). A seriedade do riso Nessa trajetória das peculiaridades de alguns tipos de riso, merece destaque também uma das modalidades de riso mais importantes para os estudos literários: o riso de zombaria, despertado principalmente pela sátira. Para Vladimir Propp, este é o tipo de riso mais freqüente, pois “é o tipo fundamental de riso humano e (...) todos os outros tipos encontram-se muito mais raramente” (PROPP, 1992: 151). Em outra passagem, o autor adverte que o riso de zombaria “é justamente o tipo de riso que mais se encontra na vida e na arte, e está sempre ligado à comicidade. E isto é compreensível. A comicidade costuma estar associada ao desnudamento de defeitos, manifestos ou secretos, daquele ou daquilo que suscita o riso” (PROPP, 1992: 171). Por este motivo, o riso de zombaria é importante, nesta reflexão, pela propriedade fundamental de gerar condições para o questionamento de alguns aspectos socioculturais presentes nas relações cotidianas. Ainda de acordo com Propp, a grande maioria dos estudiosos afirma que a comicidade decorre de uma contradição entre forma e conteúdo, aparência e essência. Segundo ele, essa contradição deve ser vista como um fenômeno que ocorre a partir da interação entre estas instâncias, pois “a contradição suscitadora do riso é a contradição entre algo que, por um lado, encontra-se no homem que dá risada, e, por outro lado, naquilo que está em frente dele e 64 formas e efeitos da comicidade que se manifesta no mundo que está à volta dele, no objeto de seu riso” (PROPP, 1992: 173). Assim, afirma que a idéia segundo a qual o cômico é um conceito correlativo está correta na medida em que não venha a ser procurada no interior do objeto ou no sujeito do riso, mas em sua relação recíproca (cf. PROPP, 1992: 173). Partindo desse conceito de contradição, o autor sugere as condições necessárias para a configuração da comicidade e para o riso que ela suscita. Segundo o autor, quem ri tem algumas concepções do que seria justo, moral, correto ou, antes, um certo instinto completamente inconsciente daquilo que (...) é considerado justo e conveniente. Nessas exigências nada há de sublime ou de majestoso, trata-se apenas do instinto do que é certo (...). A segunda condição para que surja o riso é observar que no mundo à nossa volta existe algo que contradiz esse sentido do certo que está dentro de nós e não lhe corresponde. A contradição ente esses dois princípios é a condição fundamental, o alicerce para o nascimento da comicidade (PROPP, 1992: 174). Desse modo, o riso que zomba é considerado como aquele que nasce do desmascaramento de defeitos da vida espiritual das pessoas. Por isso, esses defeitos referem-se ao âmbito dos princípios morais, dos impulsos da vontade e das operações intelectuais. Em muitos casos, os defeitos são visíveis por si sós e não têm necessidade de ser desmascarados. Contudo, na maioria dos casos, não é isso o que acontece: os defeitos estão escondidos e precisam ser desmascarados. Para Propp, a arte ou o talento do cômico, do humorista e do satírico estão justamente em mostrar o objeto de riso em seu aspecto externo, de modo a revelar sua insuficiência interior ou sua inconsistência. O riso é então suscitado por certa dedução inconsciente que parte do visível para chegar ao que se esconde atrás desta aparência: “o riso surge quando a esta descoberta se chega de repente e de modo inesperado, quando ela tem o caráter de uma descoberta primordial e não de uma observação cotidiana e quando ela adquire o caráter de um desmascaramento mais ou menos repentino” (PROPP, 1992: 175). Por este ângulo, Propp expressa uma fórmula geral da teoria do cômico nesses termos: “rimos quando em nossa consciência os princípios positivos do homem são obscurecidos pela descoberta repentina de defeitos ocultos, que se revelam por trás do invólucro 65 ensaios sobre a arte da palavra dos dados físicos, exteriores. (...) O riso surge quando o defeito exterior é percebido como sinal, como signo de uma insuficiência ou de um vazio interior” (PROPP, 1992: 177). Uma das propriedades fundamentais do riso está no fato de revelar defeitos como sendo descobertas inesperadas, apresentadas de forma repentina. Esta propriedade leva a outra: o riso é de curta duração, pois não pode prolongar-se muito, já que o riso contínuo e ininterrupto é impossível. De onde provém então o prazer provocado pelo riso de zombaria? Segundo Propp, no riso de zombaria a pessoa compara involuntariamente aquele que é motivo de riso consigo próprio e parte do pressuposto de não possuir os defeitos do outro, pois “rindo de um tolo [...] eu pareço a mim mesmo muito superior a ele. O cômico desperta em nós o sentimento do nosso valor” (1992: 180). Tais características já haviam sido esboçadas por Aristóteles, pois, enfatizando a encenação de uma “mímese inferior”, para o filósofo grego o que individualizaria a comédia é o fato de que as personagens desse tipo de gênero imitam ações iguais ou inferiores às ações praticadas pelos homens comuns, ao passo que as personagens da tragédia são seres superiores (heróis guerreiros, varões de ilustre linhagem, deuses e semideuses) e perseguem um fim nobre: Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes não podem ser senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quase só nestas duas categorias, diferindo apenas pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas ou melhores ou piores ou iguais a todos nós (...). A mesma diferença distingue a tragédia da comédia: uma propõe-se imitar os homens, representando-os piores, a outra melhores do que são na realidade (ARISTÓTELES, 1982: 242). Como se vê, para Aristóteles, esses elementos enfatizam a comédia como gênero que se define por oposição às características da tragédia, concebida como imitação da ação de homens superiores, envolvendo a dor e a violência. Apesar da visão maniqueísta, utilizada pelo autor para diferenciar as ações representadas pelos personagens dos diferentes gêneros, suas discussões apontam para aspectos importantes sobre o relacionamento palco-platéia (ou texto-leitor). Dessa maneira, quando o espectador/leitor se envolve com as personagens, de modo 66 formas e efeitos da comicidade a quase se identificar com elas, tem-se uma relação de estilo grave, próprio do drama trágico; pelo contrário, quando o espectador/leitor rejeita as personagens, situando-se num mundo do qual ele se julga distante, tem-se um relacionamento de estilo cômico. Pode-se sugerir que, em ambos os casos, ocorre o que Aristóteles define como purificação (catarse). Contudo, enquanto na tragédia a purificação se estabelece pela identificação do espectador/leitor com as ações das personagens — sustentada pelo temor e pela piedade provocados pelas cenas de violência e dor —, na comédia essa purificação parece ocorrer a partir do distanciamento provocado pela ridicularização e pela conseqüente condenação de determinadas ações. Em suma, no que se refere à recepção dos textos, essas considerações remetem a possíveis diferenciações entre a tragédia e a comédia, pois enquanto esta ressalta a importância do “estranhamento” do leitor/espectador devido à condenação de determinados comportamentos, aquela opera com a identificação do leitor/espectador com as ações das personagens das narrativas, enfatizando a relação catártica entre as duas instâncias (palco/ texto e espectador/leitor). Sendo assim, o riso, principalmente aquele despertado pela zombaria, pela sátira etc., pode ser caracterizado como detentor da propriedade fundamental de produzir questionamentos, permitindo romper o espaço das convenções e normas por meio do processo de exclusão de determinadas ações. Entretanto, o descaso em relação às possibilidades de análise crítica das manifestações cômicas parece encontrar apoio nas interpretações equivocadas dadas às idéias de Horácio (e também de Aristóteles), principalmente no Renascimento, a partir das quais foi estabelecida uma diferenciação social dos gêneros, sustentada pela compartimentação dos estilos em elevado, médio e baixo. A épica e a tragédia passam assim a ser considerados gêneros reservados a descrições mais nobres, enquanto a comédia, a sátira e a farsa são caracterizados como espaços da representação popular e, portanto, inferiores àquelas modalidades artísticas. Ressalte-se o aspecto normativo de tal classificação ao defender a doutrina da pureza dos gêneros (cf. SOARES, 1989: 11-12). 67 ensaios sobre a arte da palavra O processo de desierarquização dos gêneros, ocorrido com mais vigor nos últimos séculos, revela, no entanto, que a comicidade pode ser compreendida como uma das mais importantes armas para despertar as pessoas sobre as contradições presentes nas diversas esferas da organização social. Além disso, a integração dos diferentes gêneros possibilitou o surgimento de modalidades híbridas. Entre elas, destaca-se a tragicomédia (ou drama moderno), que apresenta simultaneamente caracteres trágicos e cômicos, expressos na encenação de acontecimentos ora alegres ora sinistros. Este procedimento visa negar a oposição sistemática entre tragédia e comédia, pois a problemática pode ser ao mesmo tempo transcendental ou banal, as personagens nobres ou vulgares, a ação dramática pode provocar riso e/ou choro. Tomando como suporte teórico as análises de V. G. Belínski, Propp ressalta que cada ser humano tem duas faculdades de visão: uma, física, para a qual é acessível apenas a evidência exterior, e outra espiritual, que penetra na evidência interior, como necessidade que brota da natureza da idéia. A partir dessa duplicidade da visão, o autor analisa a reflexão que ocorre após o riso, pois “rindo, nos olhamos (...). Após ter olhado para o mundo de seu lado exterior e físico, quem ri passa depois a olhar normalmente para o mundo interior das coisas, isto é, para o aspecto não cômico, ele, por assim dizer, desloca o olhar” (PROPP, 1992: 183). Este deslocamento do olhar caracteriza a comicidade como elemento configurador da percepção crítica do mundo. Abordando a concepção burguesa de comicidade, que valorizaria apenas alguns de seus aspectos, Propp analisa a reformulação que ocorre nessa teoria, chamando a atenção para a inviabilidade da distinção entre sátira e humorismo, pois, em ambos os casos, os procedimentos são perfeitamente idênticos. Como chegar à sátira sem a comicidade? A interdependência entre sátira e comicidade é assim definida: “a comicidade é o meio, a sátira é o fim. A comicidade pode subsistir fora da sátira, mas a sátira não pode existir fora da comicidade” (1992: 186). Propp alerta ainda para o fato de que a sátira como tal muitas vezes não cura nem corrige aqueles contra os quais ela é dirigida: Se assim fosse, para a cura, digamos, do alcoolismo, ou da marginalidade, bastaria reunir os portadores destas mazelas, levá- 68 formas e efeitos da comicidade los para um teatro ou cinema e mostrar-lhes uma comédia contra a bebedeira ou a desocupação, esperando que saíssem de lá sóbrios e bem-educados. Isso porém não ocorre. No que, então, está o significado da sátira? A sátira age sobre a vontade daqueles que permanecem indiferentes diante desses vícios, ou que fingem não vê-los, ou que são condescendentes, ou mesmo que não sabem realmente nada sobre eles. Ela levanta e mobiliza a vontade de lutar, cria ou reforça a reação de condenação, de inadmissibilidade, de não-compactuação com os fenômenos representados e, por isso mesmo, contribui para intensificar a luta para removê-los (PROPP, 1992: 211). Com relação às obras literárias, pode-se eleger a sátira como instrumento utilizado por vários escritores para desestabilizar a aura de autoridade presente em algumas instituições: rindo da autoridade ocorre a aproximação entre as diversas esferas sociais. Mas isto não é um fato recente. Além dos já citados Luciano de Samósata e Francois Rabelais, escritores renomados como Miguel de Cervantes, Jonathan Swift, William Shakespeare, Jean-Baptiste Poquelin (Moliére), Fiódor Dostoievski, entre muitos outros, operaram um progressivo refinamento das manifestações do cômico. No mundo ibérico, ressalta-se o nome de Gil Vicente: escrevendo num período de transição – que marca a decadência do trovadorismo e anuncia o “Século de Ouro Português”, engendrado pelo desenvolvimento cada vez maior das navegações marítimas e a posterior conquista de novos territórios (séculos XIV a XVI) –, o escritor português destacase pelo uso da sátira social em seus Autos. Nesse cenário, a obra vicentina, elegendo o verso como forma de expressão, aproveitou toda a variedade de sugestões anteriores ou contemporâneas do teatro medieval, tais como os milagres, os mistérios, as moralidades, as farsas, entre outras, que lhe inspiraram as peças de grande aparato e rica encenação. A humanização característica desse período se deve à sustentação por parte dos monarcas de uma intelligentsia portuguesa, com a oferta de incentivos para a realização de estudos no exterior, tendo como objetivo viabilizar a formação de um grupo de intelectuais ligados à corte portuguesa. Portanto, é nesse período humanista que aparece a obra de Gil Vicente, retratando o cotidiano português da Baixa Idade Média. 69 ensaios sobre a arte da palavra Contudo, apesar da caracterização do período como o apogeu do povo português, o teatro de Gil Vicente teria sido prejudicado pela repressão exercida por parte dos tribunais da Santa Inquisição. Tal fato deve-se, indubitavelmente, à utilização por parte do autor da sátira social como forma de contestar os valores correntes de sua época: as peças de Gil Vicente são descritas como instrumento de crítica social, por serem flagradas como um diagnóstico dos “males” da sociedade portuguesa. Tais males aparecem quando o autor dirige sua pena em direção às práticas abusivas de estratos sociais como o clero, a nobreza e a justiça, pois seus vícios são mais condenáveis devido à maior responsabilidade social inscrita em suas práticas: reis e bispos não são inocentados pela posição que ocupam na sociedade. Pelo contrário, para o autor, a punição para seus crimes é muito mais severa devido à responsabilidade assumida diante da organização social. Procurando corrigir os costumes mediante o ridículo, a obra de Gil Vicente é caracterizada pelo uso de elementos narrativos que irão levar à sátira de aspectos da realidade portuguesa, identificada assim como uma poderosa arma de crítica social. Tentando evidenciar que “a capacidade de convencer artisticamente é uma das primeiras condições para convencer ideologicamente [pois] quanto mais elevado o nível artístico, tanto mais forte a ação de suas idéias” (PROPP, 1992: 191), sugere-se que, para convencer artisticamente pelo riso, os escritores necessitam manejar com desenvoltura os meios necessários à instauração da comicidade. Como exemplos dessas “normas” de natureza artística, podem ser citados elementos como a configuração sistemática do clímax inesperado ou, em outras palavras, o que comumente é identificado como “explosão do riso”; a não-repetição de fenômenos risíveis; a brevidade; a fusão entre o fantástico – compreendido como alteração das leis da natureza na narrativa – e o realista; a simulação da mais completa seriedade e de uma total imparcialidade em relação àquilo que está sendo narrado, entre outras. Em síntese, foram apresentados alguns dos aspectos que contribuem para compreender a comicidade, e sua intenção primordial, o riso, como fenômenos que possuem mecanismos para se efetivar e resultados a alcançar. A pequena amostra, apresentada nos parágrafos anteriores, aponta para a necessidade de 70 formas e efeitos da comicidade compreender o cômico como uma daquelas modalidades lúdicas — tais como o jogo — que merecem destaque, apesar de muitas vezes não serem consideradas sérias o suficiente para uma análise por parte das ciências humanas. Notas 1. Poema de autoria do poeta russo Vladimir Klébnikov. Traduzido por Haroldo de Campos e citado por Rubem Fonseca (Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 471). 2. Sem dúvida, um dos mais parodiados e mais parafraseados poemas de todos os tempos da literatura brasileira, como comprovam as posteriores leituras e releituras de Casimiro de Abreu (“Canção do Exílio”); Oswald de Andrade (“Canto de regresso à pátria”); Murilo Mendes (“Canção do Exílio); Carlos Drummond de Andrade (“Nova canção do exílio”); Mário Quintana (“Uma canção”) (In: RIEDEL , Dirce Cortes [et al]. Literatura Brasileira em curso. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1969, pp. 373-378). Mais recentemente, outros autores reelaboraram a “canção”, tais como Antônio Carlos de Brito (Cacaso) através do poema “Jogos florais” (In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 poetas hoje. 3. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998, p. 41). Arnaldo Antunes também revisita o poema através da música “Eva e eu” (In: ANTUNES , Arnaldo. O silêncio. São Paulo: WEA , 1996). 3. Um exemplo disso é o texto de Millôr Fernandes analisado em páginas anteriores: o autor ridiculariza, não a Pasárgada-imaginária de Bandeira, mas a Pasárgada que se quer construir com base no contexto brasileiro. * * * 71 ensaios sobre a arte da palavra 72 CAPÍTULO III SOBRE O PÓS-MODERNISMO •♦• Antes mundo era pequeno porque terra era grande. Hoje mundo é muito grande porque terra é pequena. --------------------------------Antes longe era distante perto só quando dava, quando muito ali defronte e o horizonte acabava. Hoje lá trás dos montes dende casa, camará. Ê, volta do mundo, camará. Ê, mundo dá volta, camará. Gilberto Gil Partindo do conceito de civilização da imagem1 pretende-se enfatizar nesta análise alguns aspectos relacionados ao que se tem denominado como produções culturais pós-modernas. Estas podem ser caracterizadas por um crescente incremento no uso da imagem, em todas as suas formas, possibilidades e objetivos, levando a um processo de auto-referência constante, uma espécie de reciclagem imagética jamais vista na história da humanidade. Entretanto, ao analisar essas manifestações culturais como pós-modernas é prudente enfatizar o modo pelo qual o termo procura ser compreendido. Tal questão é pertinente devido ao fato de que vários são os conceitos de pós-moderno, pois o mesmo encontra-se ligado a um campo de estudos em formação, cujas fronteiras não estão ainda claramente delimitadas. Esta falta de delimitação é devida, em grande parte, ao largo uso do conceito em diferentes áreas. 73 ensaios sobre a arte da palavra Elementos importantes de análise são aquelas características do movimento que destacam seu potencial crítico; sua valorização de modalidades não-hegemônicas de textos; e, com maior destaque, a dissolução das fronteiras entre os diferentes níveis de cultura: erudito, popular e de massa. QUESTIONAMENTOS, INICIATIVAS E PERSPECTIVAS Apesar de se apresentar como conjunto de manifestações relativamente recente, podem ser estabelecidas algumas rotas que visualizem aquelas transformações que atuaram significativamente para a eclosão do pós-modernismo. Uma delas pode ser relacionada à perda das ilusões quanto à obtenção de respostas conclusivas sobre o sentido do universo e da vida, entrevistas no sonho de unidade e poder representados primordialmente na figura de Deus ou qualquer outro grande referente tipo História, Natureza, Conhecimento (Cf. SANTOS, 1995: 59). Ou ainda quanto aos sistemas de organização social baseados na racionalidade e no maquinismo que se mostram como formas utópicas, no sentido “negativo” do termo, quando calcadas na ingenuidade da “igualdade perfeita, produzida pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela arte” (SEVCENKO, 1995: 47). Em muitas das manifestações artísticas pós-modernas aparece um certo desencanto em relação aos grandes discursos produzidos e difundidos tanto no século XIX quanto no século XX — sejam eles denominados de “metarrelatos” (Jean-François Lyotard) ou “narrativas-mestras” (Linda Hutcheon) — que procuraram explicar a condição histórica do homem ocidental, nos seus aspectos econômicos, sociais e culturais. Tal desencanto decorre da acusação de que essas narrativas/relatos seriam responsáveis pela constituição, na modernidade, de grandes atores, grandes heróis, grandes perigos e, principalmente, de grandes objetivos sociopolíticos e econômicos. O ponto de partida dessas narrativas/relatos estaria localizado no ideal libertário da Revolução Francesa, fundamentado nos princípios da razão iluminista. A condenação desses princípios está relacionada, principalmente, às suas pretensões totalitárias, a partir das quais teriam sido interpretadas e/ou moldadas, de 74 sobre o pós-modernismo forma homogênea, as diferentes realidades sociais nos tempos modernos. Tais princípios unificadores são compreendidos então como “ilusões, que, ao fazerem flutuar ideais impossíveis diante de nossos olhos, nos afastam de todas as mudanças políticas modestas, porém eficazes, que temos reais condições de criar” (EAGLETON, 1997: 316-317). Na busca de novos objetos, o pós-modernismo é compreendido por muitos de seus analistas como o espaço para a construção de enfoques antitotalitários, a partir do cotejo, democraticamente fragmentado, dos discursos heterogêneos, marginais e cotidianos presentes na configuração social. Isso ocorreria porque no pós-modernismo, em muitos casos, os artistas não acreditam mais no absoluto, nem se deixam levar por suas falsas promessas ( Cf. SEVCENKO, 1995: 50). Dentre as atividades artísticas que têm sido postas sob a legenda do pós-modernismo não existe ainda unidade possível, de tal forma que para alguns autores o movimento é definido numa relação direta com o desenvolvimento da tecnologia pós-industrial, baseada na informatização social e sustentada pela ampliação ostensiva dos avanços da cibernética e da informática; para outros, o pós-modernismo aparece como movimento de oposição às convenções estéticas engendradas pelo modernismo; na direção oposta, o pós-modernismo é muitas vezes denunciado como conjunto de idéias responsável por um processo de pasteurização dos recursos artísticos promovidos pelas vanguardas. Muitas das concepções relacionadas ao pós-modernismo se caracterizam pelo tom nostálgico próprio daqueles autores que não conseguem (ou não querem) perceber elementos que balizam o sentido crítico do movimento. Em seu repertório estão incluídas propostas de práticas culturais alternativas, identificadas com o pacifismo, a ecologia, o feminismo, os movimentos de liberação sexual e manifestações afins. Sendo assim, as propostas pósmodernas revelam, em muitas de suas incursões artísticas, a sensibilidade para a expressão de uma realidade entremeada por elementos como o acaso, o contraditório, o aleatório, o humor, o prazer e a contemplação. Revela-se, portanto, como espaço para “o aprendizado humilde da convivência difícil, mas fundamental, com o imponderável, o incompreensível, o inefável — depois de séculos 75 ensaios sobre a arte da palavra da fé brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado, controlado” (SEVCENKO, 1995: 54). Tais aspectos evidenciam “a pluralidade do conceito – para a idéia de que não há um só pós-modernismo, mas vários – e para a crítica, presente em todos eles, ao discurso dos universais, que favorece, com a máscara do consenso, o interesse de grupos hegemônicos” (E. F. COUTINHO, 1995: 424). Em linhas gerais, o pósmodernismo pode ser relacionado ao questionamento do papel do Iluminismo para a identidade cultural do Ocidente e à problematização dos efeitos gerados pela perda da credibilidade nas metanarrativas fundadoras, notadamente o marxismo e o liberalismo (Cf. HOLLANDA, 1991: 08). No que se refere especificamente à criação literária, o pósmodernismo ataca uma de suas convenções mais caras: o realismo e sua crença numa realidade objetiva que seria singelamente captada na linguagem por um sujeito-narrador atento e forte, em franca afinidade com as coisas (Cf. S ANTOS, 1995: 59 ). A nova complexidade social e cultural das últimas décadas relega a segundo plano a intenção realista de descrever pessoas e coisas, pois seus meios já não são suficientes para codificar a realidade fragmentária e irracional que se dissolve a partir da colagem de signos, cujos referentes são remotos ou se perderam. Esta colagem, por sua vez, é formada e consolidada pelos mass media e modelada principalmente pela televisão, pela moda, pela publicidade, pelo design etc., despertando os indivíduos para uma nova sensibilidade, na qual ressalta a descontinuidade. Um dos enfoques relacionados à pós-modernidade incide sobre o fato de que, na civilização da imagem, o que prevalece é o olhar. Isto advém, em grande parte, das implicações entre meios de comunicação de massa e normatização das relações sociais, estabelecidas a partir da utilização, principalmente, dos elementos visuais. Como resultado, de acordo com Silviano Santiago, “as pessoas já não conseguem hoje narrar o que experimentaram na própria pele” (1989: 40). Apesar de, à primeira vista, esta formulação apresentar-se como visão “biografista” da literatura – na medida em que se pode argumentar, por exemplo, que grande parte dos escritores certamente não experimentou todas as situações descritas em suas narrativas – ela parece encontrar fundamento 76 sobre o pós-modernismo no gradativo “impulso homogeneizante da sociedade de consumo do capitalismo recente” ( H UTCHEON, 1991: 30). Este processo é responsável, em certa medida, pela crescente uniformização do imaginário social produzida pela constante padronização exercida pelos meios transmissores de imagens. Como conseqüência, o “visual” torna-se onipresente na pós-modernidade: as imagens televisuais aparecem em todos os lugares. No entanto, pode-se cogitar que a imagem não prevalece de forma solitária, já que se pode considerar que também a sonorização, quando aliada à imagem, exerce um papel significativo na padronização do imaginário social. Em outras palavras, a combinação precisa entre som e imagem efetuada pelos meios de comunicação de massa teletransmissores de imagens, representados principalmente pela televisão e pelo cinema, atua decisivamente na recepção dos textos veiculados nesses meios. Este processo parece decorrer de uma das maiores criações humanas do século XX: a ampliação progressiva das possibilidades de gravação das memórias, surgidas, num primeiro momento, a partir do daguerreótipo (em seus diversos sucedâneos: fotografia, vídeo, fita cassete, entre outros) — indo muito além das possibilidades da imprensa e da pintura de períodos anteriores — alcançando seu auge com a informatização social ocorrida nas últimas décadas, quando os grupos sociais passaram a recontextualizar o passado pelo emprego desses recursos. Esta recontextualização gera, por sua vez, uma maior predominância da imagem quando da narrativização da realidade social. Desenvolvendo um modelo de análise baseado na arquitetura pós-moderna — setor, segundo a autora, no qual pode ser identificada mais claramente a utilização de um complexo de temas e formas pós-modernas — Linda Hutcheon, em sua Poética do pósmodernismo, procura assumir uma postura crítica com relação ao tema, alertando para o fato de que o pós-modernismo é uma atividade cultural em andamento. Tendo em vista tal perspectiva, a autora propõe, ao invés de uma definição estável e estabilizante, uma poética, ou seja, uma estrutura teórica aberta, em constante mutação, com a qual possamos organizar nosso conhecimento cultural e nossos procedimentos críticos. 77 ensaios sobre a arte da palavra Para tanto, defende a ampliação dos estudos literários de tal maneira que estes possam ser inseridos em uma “tipologia dos discursos” na qual tanto a arte quanto a teoria a respeito da arte (e da cultura) devam ser partes integrantes. A autora canadense compreende que tal empreendimento ultrapassaria o estudo do discurso literário e chegaria ao estudo da prática e da teoria culturais. Contudo, uma poética do pós-modernismo não proporia nenhuma relação de causalidade ou identidade entre as artes ou entre a arte e a teoria. Ofereceria apenas, como hipóteses provisórias, sobreposições constatadas de interesse. Para Linda Hutcheon, seria uma questão de ler a literatura por intermédio dos discursos teóricos que a circundam, e não como sendo contígua à teoria (Cf. HUTCHEON, 1991: 32). Essa posição parece estar ligada a uma das características tanto da arte quanto da teoria pós-modernas: o intercâmbio constante entre diferentes disciplinas. Nesse contexto, as relações estabelecidas entre disciplinas diversas, antes compartimentadas, passa a ser uma fonte para a discussão de questões entendidas como estando interligadas: “essa indeterminação disciplinar assinala um esgotamento da tradicional divisão do trabalho intelectual (...) [o que] indica que as maneiras clássicas de dividir o conhecimento em partes acham-se hoje, por duras razões históricas, em grandes apuros” (EAGLETON, 1997: 327). Assim, é por meio do diálogo entre Literatura, História, Lingüística, Antropologia, Psicanálise, Sociologia, entre outras áreas, que se avolumam estudos empenhados em demonstrar a validade das análises realizadas com base na interação entre os diferentes campos de conhecimento. Diante deste quadro de referências, tanto a literatura como a história pós-modernas rejeitaram o ideal de representação que por tanto tempo as dominou. Atualmente, as duas disciplinas encaram seu trabalho como “exploração, testagem, criação de novos significados, e não como exposição ou revelação de significados que, em certo sentido, já ‘existiam’ mas não eram percebidos imediatamente” (HUTCHEON, 1991: 21). Como resultado da descrença nas práticas racionais surgidas com o processo de mitificação da ciência, que passou a ser encarada como um dos caminhos mais seguros para a obtenção de respostas 78 sobre o pós-modernismo “necessárias” à organização das sociedades, o pós-modernismo procura propor novas leituras da realidade social, sem, no entanto, esquecer de alertar sobre a condição provisória de tais leituras. Portanto, de forma diversa do modernismo, principalmente europeu e norte-americano, que acreditava poder impor uma nova ordem de idéias, muitas das produções pós-modernas procuram “problematizar mais do que manipular os códigos culturais, interpelar mais do que dissimular as articulações políticas e sociais” (HOLLANDA, 1991: 09). Dessa maneira, “as abordagens pós-modernas (...) questionam o ideal totalizante modernista de progresso por meio da racionalidade e da forma purista” (HUTCHEON, 1991: 46). Contudo, à ingenuidade da rejeição, ideológica e esteticamente motivada, do modernismo em relação ao passado (em nome do futuro) não se opõe um saudosismo igualmente ingênuo por parte do pósmodernismo. A História, o eu individual e os conceitos de identidade e autoria, a relação da linguagem com seus referentes e dos textos com outros textos, essas são algumas das noções que, em diversos momentos, pareceram ‘naturais’ ou pareceram, de maneira não problemática, fazer parte do senso comum. E é para elas que se volta o questionamento. A cultura é desafiada a partir de seu próprio interior: desafiada, questionada ou contestada, mas não implodida (Cf. HUTCHEON, 1991: 16). Enfatizando algumas características do movimento, Linda Hutcheon destaca que o pós-modernismo se caracterizaria pelo fascínio diante de categorias como o diferente, o paradoxal, o múltiplo e o provisório, priorizando “o desafio da certeza, a formulação de perguntas, a revelação da criação ficcional de alguma ‘verdade’ absoluta” (1991: 72-73). Ainda de acordo com as palavras da teórica — falando sobre a autoconsciência crítica do movimento — os discursos pós-modernistas, tanto teóricos como práticos, “precisam dos mitos e convenções a que contestam e reduzem (...). [No entanto] o impulso pós-moderno não é buscar nenhuma visão total. Ele se limita a questionar. Caso encontre uma dessas visões, ele questiona a maneira como, na verdade, a fabricou” (HUTCHEON, 1991: 21, grifos da autora). Andreas Huyssen procura contextualizar, a partir da década de 1960 , a emergência e a constituição das alterações 79 ensaios sobre a arte da palavra paradigmáticas que caracterizariam o pós-moderno tanto na prática como na teoria, principalmente no contexto norte-americano. O autor enfatiza assim a noção de que o pós-modernismo deve ser visto como condição histórica e aponta algumas questões relacionadas ao debate entre modernismo e pós-modernismo: A revolta dos anos 60 nunca foi uma rejeição do modernismo per se, mas uma revolta contra a versão do modernismo que havia sido domesticada nos anos 50, incorporada pelo consenso liberalconservador da época e transformada em arma de propaganda no arsenal cultural e político da guerra fria anticomunista. O modernismo contra o qual os artistas se rebelaram já não era mais percebido como uma cultura de oposição. Não mais se opunha a uma classe dominante e a sua visão de mundo, nem havia preservado sua pureza programática, livre da contaminação da indústria cultural. Em outras palavras, a revolta surgiu precisamente a partir do sucesso do modernismo, do fato de nos Estados Unidos, como na Alemanha Ocidental e na França, o modernismo ter sido pervertido, convertendo-se em uma forma de cultura afirmativa (1991: 34). A partir daí o autor estabelece alguns fatores que teriam interferido decisivamente para a consolidação da fase inicial do movimento pós-moderno: o predomínio de uma “imaginação temporal” com um forte sentido do futuro e de novas fronteiras, de ruptura e de descontinuidade, de crise e de conflito de gerações; o ataque à institucionalização da chamada “grande arte” — guardada em museus, galerias, concertos, discos, livros etc. — por meio de manifestações alternativas ligadas à contracultura, tais como a arte pop, a arte psicodélica, o acid rock, o teatro de rua, entre outras; uma visão eufórica da estética tecnológica produzida pela sociedade pós-industrial; e a valorização da cultura popular, incorporada pelos meios de comunicação de massa, como um desafio aos cânones da arte tradicional. Em suma, para o autor, o pós-modernismo dos anos 1960, especialmente nos Estados Unidos, teria alguns traços de um genuíno movimento de vanguarda. Tais traços seriam redefinidos nas décadas de 1970 e 1980 devido à crescente circulação comercial dessas manifestações, privando-as de seu estatuto vanguardista (1991: 36-43). Além disso, o sentimento de euforia teria sido abalado pela agonia da Guerra do Vietnã, pela crise do petróleo, pela permanência da guerra-fria alimentada pela ameaça atômica, 80 sobre o pós-modernismo entre outras circunstâncias que dificultavam a manutenção da confiança no futuro profetizada na década anterior. Com relação a esses aspectos, o autor afirma que: Uma das principais diferenças entre o alto modernismo e a arte e a literatura que se lhe seguiram nos anos 70 e 80 consiste, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, numa relação nova e criativa entre a grande arte e certas formas de cultura. E é precisamente a recente auto-afirmação de culturas minoritárias e sua emergência na consciência pública que têm minado a crença modernista de que a alta cultura e as culturas inferiores devem permanecer rigorosamente separadas (1991: 41). Como visto anteriormente, essa “crença modernista” na separação rigorosa das culturas pode ser questionada com relação ao modernismo brasileiro, já que o movimento no Brasil se caracteriza, entre outros fatores, pela inserção de elementos ligados à cultura popular. Um ponto que merece atenção especial quando se direcionam as discussões sobre o pós-modernismo no Brasil – e poderia se dizer, apesar das especificidades, também na América Latina – é a necessidade de indicar alguns elementos que atuaram e atuam decisivamente na configuração histórico-cultural desses países, tornando-os distintos de outras culturas, tais como a européia e a norte-americana. Tal posição deve ser assinalada devido ao fato de que parte considerável dos estudos que abordam o tema referencia a defesa da heterogeneidade encontrada nas formações socioculturais latinoamericanas como ingrediente fundamental que contribuiria para a afirmação de que o continente pode ser considerado o “berço do pós-modernismo”. Nessas formações, seria marcante a presença de produções artísticas caracterizadas como descontínuas, híbridas e alternativas. Isto ocorreria devido à “coexistência de mundos absolutamente distintos” como fator responsável pelo surgimento de manifestações pós-modernas. Contrariando tal perspectiva, Eduardo Coutinho adverte que devem ser assinalados os riscos e os limites daí decorrentes, uma vez que os diferentes estágios de modernização — dos países comumente denominados como “centrais” em relação aos também comumente denominados “periféricos” — podem ser identificados como elementos cruciais para o surgimento dessa heterogeneidade. 81 ensaios sobre a arte da palavra Segundo o autor, tal argumento “peca sobretudo por não levar em conta o fato de que as formações socioculturais referidas não são o resultado de estratégias pós-modernas, mas, ao contrário, produzem-se (...) pela implementação desigual da modernização”. Nesse cenário, as narrativas heterogêneas produzidas nos países periféricos são, antes de mais nada, “respostas ou propostas estético-ideológicas locais diante da transnacionalização capitalista não apenas na América do Norte e na Europa, mas em todo o mundo” (E. F. COUTINHO, 1995: 425). Nesse sentido, é válido que se insiram as manifestações artísticas produzidas na América Latina no quadro pós-moderno, desde que se atente para o fato de elas apresentarem “signos peculiares que encerram inclusive contradições como as que sinalizam as diferenças entre as sociedades pós-industriais altamente tecnicizadas e o contexto latino-americano” (E. F. COUTINHO, 1995: 425). Por meio da crítica anticolonialista, os debates entre modernidade e pós-modernidade adquirem força especial nas culturas periféricas, que se vêem cada vez mais arrastadas para a órbita de um Ocidente pós-moderno sem que ainda nem mesmo tenham, para o bem ou para o mal, passado por um processo de plena modernidade ao estilo europeu (Cf. EAGLETON, 1997: 324). Uma atitude prudente teria que considerar então que o processo de modernização ocorrido nas últimas décadas na América Latina apresenta uma feição peculiar, característica de uma economia dependente e de uma realidade social fortemente matizada e diferenciada, e as manifestações estéticas aqui surgidas estão em constante diálogo com estes aspectos. É preciso, portanto, destacar, em muitos casos, algumas particularidades das produções artísticas surgidas nas últimas décadas no cenário latino-americano – aqui, nesse estudo, mais especificamente no Brasil. Isto porque tentar estender determinados conceitos, de forma ampla, a manifestações culturais de diferentes países, apresenta-se como posição, em certa medida, incoerente: como combater “narrativas-mestras”, uma das propostas centrais do movimento, pela instituição de respostas totalizantes. Apesar da ênfase na diferença, muitos dos estudos empreendidos por pesquisadores ligados aos países “centrais” — que merecem elogios por servirem, sobretudo, como resposta à 82 sobre o pós-modernismo atitudes etnocêntricas que privilegiam apenas obras produzidas no contexto euro-norte-americano — são acusados, no entanto, de congregar equivocadamente sociedades muito diferentes sob uma mesma categoria, tais como a de “Terceiro Mundo”. Como resultado, “sua linguagem tem, com muita freqüência, traído um prodigioso obscurantismo absurdamente distante dos povos pelos quais ela fala” (EAGLETON, 1997: 325). Um exemplo desse procedimento pode ser detectado na réplica feita por Aijaz Ahmad às considerações de Fredric Jameson sobre a literatura produzida por escritores africanos, asiáticos e latino-americanos: o problema da análise de Jameson, segundo Ahmad, estaria no fato de qualificar, de maneira reducionista, toda a literatura do “Terceiro Mundo” como sendo necessariamente alegórica (AHMAD, 1988: 157-181). 2 Entretanto, apesar dessa ressalva, alguns traços pósmodernos podem ser identificados nesses diferentes contextos. Um deles é a crescente reestruturação dos níveis de cultura, difundida principalmente pelos meios de comunicação de massa, já que, “inegavelmente, mesmo vivendo numa economia periférica, a cultura brasileira não está imune aos efeitos globalizantes que a televisão (sobretudo a TV a cabo), as redes de informatização, a partilha simultânea das informações trazem até ela” (RESENDE, 1995: 119). SABORES DAS CULTURAS PÓS-MODERNAS Sobre os empreendimentos críticos realizados em torno do pós-modernismo Luiz Carlos Simon adverte que “entre a recusa do termo, ou a participação no debate sobre ele, e a adoção cega de uma visão unilateral, há muitos caminhos que podem ser percorridos. Um deles, possivelmente o mais produtivo, é o que parte em busca de uma análise das reações apresentadas diante da relação pós-modernismo/modernismo ou pós-modernidade/ modernidade” (SIMON, 1998: 10). Essas relações são de fundamental importância devido ao caráter de “endividamento” das narrativas pós-modernas com relação ao modernismo, principalmente no que se refere às especificidades do movimento no Brasil: a inscrição de elementos da cultura popular em suas atividades literárias e a 83 ensaios sobre a arte da palavra vinculação entre o estético e o político pela utilização da comicidade crítica. Tais aspectos indicam que as ligações com o modernismo ainda estão presentes, mesmo que seja na atitude de digestão e/ ou superação da tradição instaurada pela arte moderna. A reformulação da linguagem e a renovação do sistema de convenções literárias, vigentes até o modernismo, será um marco na produção literária brasileira que propiciará novas perspectivas estético-literárias e a busca de novas formas de expressão para, praticamente, todos os literatos brasileiros. Opostamente à convenção, o modernismo se caracterizou por priorizar a inovação através do questionamento das possibilidades da linguagem e da instituição de uma maior gratuidade do ato criador. Pode-se constatar, porém, que as técnicas e as formas modernistas diluíram-se com a exposição constante em diversos autores posteriores, fato que contraria seus próprios fundamentos, principalmente aqueles ligados à não-institucionalização das formas artísticas propostas pelo movimento. Mesmo depreciada pelo uso constante de suas artimanhas, a escola modernista aparece como fator decisivo na conquista de um maior distanciamento dos escritores brasileiros em relação às “influências estrangeiras”. Dessa forma, passa a ocorrer uma maior predominância do material artístico produzido no país como fonte para a escrita da literatura, resultado de uma maior afirmação das letras brasileiras e, sob vários aspectos, também latinoamericanas. Tal processo de afirmação possui implicações com o modernismo na medida em que se passou a realizar atividades literárias que privilegiassem a incorporação crítica das idéias oriundas dos países estrangeiros: o que os modernistas ressaltaram foi a necessidade, não da negação dessas idéias, mas de sua reelaboração, com base no contexto sociocultural brasileiro. Para os modernistas, portanto, não cabia apenas a atitude simplória de afastar as idéias das vanguardas estrangeiras, mas buscar compreender o que acontece com essas idéias quando inseridas em solo brasileiro, procurando sinalizar para as conseqüências desastrosas de um transplante puro e simples. Como resultado dessa reelaboração, o movimento modernista alcança um prestígio expressivo junto aos escritores 84 sobre o pós-modernismo da segunda metade do século XX, quando serve de referencial para a elaboração de muitas das obras fundamentais desse período: O modernismo representa a instalação de um tipo de discurso batizado por Auerbach de “mescla estilística”, isto é, de estilo impuro, porque, contrariamente aos preceitos da poética do classicismo, aspira à apresentação de acontecimentos ou de situações sérias, trágicas ou problemáticas mediante o emprego de uma linguagem prosaica ou “vulgar” por oposição à terminologia aristocrática a que a norma clássica, através da observância da regra de separação hierárquica dos estilos (nobre, médio, vulgar), reserva em exclusividade ao domínio da tragédia, da épica e da lírica (MERQUIOR, 1977: 123). A miscigenação de diferentes registros socioculturais pode ser identificada já no modernismo, marcado, principalmente no Brasil, pela reação estético-literária ao conservadorismo e à estagnação que perduravam na grande maioria das obras literárias, desde o final do século XIX, sacralizando o culto da forma e os purismos lingüísticos. Em muitos dos escritos modernistas, pelo emprego de recursos corrosivos como a paródia e a ironia, o ataque era dirigido à noção de linguagem que, tanto na prosa como na poesia, era a do intelectual para o intelectual, desprezando muitas vezes a fala popular, o folclore ou qualquer outra forma de manifestação cultural menos erudita. Em processos como esse se evidenciava o preconceito com relação à cultura popular. De acordo com Carlo Ginsburg, tal fato se deve, em grande parte, à persistência de uma concepção aristocrática de cultura, já que idéias ou crenças originais são “consideradas, por definição, produto das classes superiores, e sua difusão entre as classes subalternas um fato mecânico de escasso ou mesmo de nenhum interesse; como se não bastasse, enfatiza-se presunçosamente a ‘deterioração’, a ‘deformação’, que tais idéias ou crenças sofreram durante o processo de transmissão” (1996: 17). Nesse cenário, apesar da complexidade das produções pósmodernas, é instigante correr o risco de eleger alguns problemas postos em circulação por estas produções: entre as características fundamentais da literatura pós-moderna pode ser citado o procedimento que procura visualizar a coexistência de gêneros heterogêneos numa mesma narrativa. Apresenta-se assim uma 85 ensaios sobre a arte da palavra complexa combinação de registros de discurso diversos: fábulas, contos de fadas, piadas, casos, contos, parábolas, reportagens jornalísticas, diálogos teatrais, poesia, memórias, entre outras estruturas narrativas, tornam-se ingredientes que se alternam em diversas produções. Isto mostra que os gêneros estão cada vez mais fluidos, contrariando de forma decisiva a teoria clássica, normativa e prescritiva por acreditar não só que cada gênero difere dos outros quanto à natureza e quanto ao prestígio, mas também que devam ser compartimentados e mantidos separados, evitando assim a miscigenação advinda do intercâmbio entre as diferentes modalidades de criação artística. A ênfase na mescla estilística presente nas produções brasileiras pós-modernas pode ser então relacionada ao modernismo. O que muda no quadro do final do século XX parece ser a presença cada vez maior da cultura de massa como fator de interpenetração entre as diversas manifestações culturais. Muitos dos ataques direcionados à cultura de massa, ao longo da segunda metade do século XX, parecem encontrar argumento ainda na “deformação” de idéias consideradas originais e sugeridas como produto exclusivo da cultura erudita. Contudo, esta posição revela o descaso com categorias específicas desse fenômeno, pois entender a cultura de massa como simples deformação da cultura erudita é uma atitude que impossibilita avaliar, com relativa isenção, os procedimentos colocados em prática por manifestações ligadas à cultura de massa. O que o pós-modernismo procura questionar acima de tudo são os limites estabelecidos comumente entre as esferas culturais. Isto ocorre porque as culturas pós-modernas, em muitas de suas manifestações, “operam num campo de tensão entre tradição e inovação, conservação e renovação, cultura de massas e grande arte, em que os segundos termos já não são automaticamente privilegiados em relação aos primeiros” (HUYSSEN, 1991: 74). Ao negar a oposição pura e simples entre categorias dicotômicas, tais como direita versus esquerda, presente versus passado, modernismo versus realismo, vanguarda versus kitsch, o pós-modernismo quer alertar para a existência de realidades complexas que não mais podem ser explicadas por meio destas oposições reducionistas. Em outros termos, pode-se cogitar o papel desempenhado pela 86 sobre o pós-modernismo cultura de massa na divulgação não apenas da cultura erudita, mas sim na fusão entre os diferentes níveis de cultura presentes na sociedade, fazendo com que não se encontrem mais as culturas nos respectivos lugares onde comumente costumavam estar localizadas. Dissabores O que talvez seja passível de questionamento é a banalização a que tais fusões são submetidas tendo em vista o aspecto mercantilista presente em muitas dessas produções. Este processo decorre de uma realidade social calcada sobretudo no consumismo – entendido como satisfação individual dos desejos – podendo este fenômeno ser relacionado à queda dos projetos coletivos vislumbrados pelo Iluminismo. Tal queda parece ter suporte em grande parte na dimensão mercantilista assumida pelos meios de comunicação de massa : Tudo parece tornar-se acessível e consumível: as coisas, os serviços, os símbolos, o tempo (sob a aparência de lazer), o espaço (graças aos novos meios de mobilidade) e até mesmo a vida (pelo recuo das fronteiras da morte e, de uma certa maneira, a escamoteação desta última). O consumidor apaga o cidadão; o que produz, segundo as interpretações que somente são contraditórias nas aparências, uma despolitização progressiva ou uma politização do cotidiano, portanto, generalizada (BALANDIER, 1982: 66).3 Tais circunstâncias apontam para um quadro no qual as informações sobre acontecimentos diversos se tornam facilmente acessíveis; entretanto, o desenvolvimento progressivo das técnicas audiovisuais responsáveis pela disponibilidade das informações esbarra num obstáculo paradoxal: a capacidade cada vez maior de divulgação das informações é enfraquecida por seu próprio uso. Isto quer dizer, em muitos casos, que elas se tornam banais e se desgastam, o que exige renovações freqüentes ou a criação de aparências de novidade. O grande palco desse jogo é o cenário urbano que aparece então como locus da novidade, do progresso e da eficiência — simbolizando o próprio e “inevitável” avanço social, alicerçado na inventividade e na operosidade da indústria urbana 87 ensaios sobre a arte da palavra — elementos contrapostos ao tradicional, ao marasmo e ao retrógrado, relacionados, muitas vezes, ao espaço rural. O culto às cidades, no entanto, alimenta-se de sentimentos contraditórios, tais como o fascínio e a repulsa: por um lado, o ambiente urbano oferece diversificadas opções de lazer, cultura e entretenimento; por outro, intensificam-se problemas sociais como a poluição (ambiental, sonora, visual etc.), a violência, o stress, o consumo de drogas, os contrastes entre miserabilidade e abundância etc. A vitrine privilegiada para a exposição dessas cenas é a televisão. Já no final do século XIX, no conto “Teoria do Medalhão”, Machado de Assis procurava mostrar como se manter em evidência numa sociedade capitalista. Usando como recurso o diálogo entre um pai e seu filho, a narrativa aparece como aula detalhada sobre os mecanismos a serem utilizados para a projeção pública da imagem. Pode-se argumentar que muitas das estratégias usadas atualmente encontram-se esboçadas nessa narrativa machadiana: a atualidade de Machado, guardadas as proporções, reside no fato de antecipar algumas características e estratégias adotadas pelos “astros e estrelas” da pós-modernidade (ligados à televisão, ao cinema, aos esportes etc.). Como figuras de expressivo destaque, elas necessitam da cobertura constante da mídia para manterem sua imagem em evidência, que, por sua vez, será utilizada pela publicidade televisual. Um exemplo: muitas dessas “personalidades” fazem doações em dinheiro para instituições filantrópicas, mas, para tanto, “exigem” a presença da imprensa para cobrir os momentos de caridade. No entanto, elas recebem quantias estratosféricas, que superam em muito o valor das doações, o que demonstra a insignificância de tais atos se comparados aos milhões que giram em torno de sua imagem pública, que passa a ser valorizada ainda mais. Assim, a montagem de tais situações coloca esses personagens “diante dos olhos do mundo” e, dessa forma, procurase obter os benefícios daí advindos. No conto-novela “O alienista”, Machado de Assis descreve cenas em que a publicidade assume o papel de elemento instaurador de reputações. Exemplo disso pode ser encontrado na 88 sobre o pós-modernismo descrição do uso da matraca, meio através do qual eram divulgadas notícias e informações relevantes para as comunidades da época: De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele [o operador da matraca] anunciava o que lhe incumbiam (...). O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores (...) desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema (ASSIS, 1994: 18). A televisão, nesse contexto, pode ser compreendida como a “matraca do século XX”, pois serve como instrumento para o sucesso ou obscuridade de determinadas situações ou pessoas, de tal maneira que parece que a realidade só se efetiva quando transportada para a tela, pois o que não é mostrado na televisão parece não ter existência de fato. Além disso, grande parte dos programas televisivos refaz o percurso do medalhão machadiano ao oferecerem aos telespectadores a mesmice, desencadeada pelo controle exercido pela “mentalidade-índice-de-audiência” dominante atualmente e que privilegia a difusão do óbvio, do “já visto”. Um estudo interessante sobre a televisão pode ser encontrado nas Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina, “mostradas” pela pesquisadora Beatriz Sarlo. Destacam-se aqui as análises sobre as alterações provocadas na produção televisiva com o advento do zapping: acionamento constante do controle remoto por parte dos telespectadores — recurso originalmente utilizado pelos estúdios de televisão (várias tomadas de uma cena a partir de várias câmeras) que passou para o ambiente doméstico. A autora assinala que o zapping — por provocar uma relativa perda de intensidade por parte da imagem devido à descontinuidade das cenas — fez com que o discurso televisivo procurasse se proteger da mudança de canal através da ênfase na velocidade e na obscenidade e da eliminação do silêncio, do “branco” e da permanência de uma mesma imagem. Com isso, “espera-se que o alto impacto e a velocidade compensem a ausência 89 ensaios sobre a arte da palavra de brancos e silêncios, que devem ser evitados porque abrem as fendas pelas quais passa o zapping” (1997: 61). Além de mostrar de que formas o controle remoto altera as relações entre telespectador-televisão e como o discurso televisivo se adapta a estas alterações, a autora apresenta ainda comentários relacionados à institucionalização televisiva, na medida em que a televisão passa a ter credibilidade maior do que algumas instituições tradicionais. Esta credibilidade está alicerçada, segundo a autora, em estratégias como a “gravação ao vivo transmitida ao vivo” que causa nos telespectadores a impressão de estarem diante da vida “tal como ela é”, sem as manipulações que poderiam ocorrer com a montagem das cenas realizada em programas gravados: Diante da gravação ao vivo pode-se pensar que a única autoridade é o olho da câmera: como desconfiar de algo tão socialmente neutro como uma lente? Neste ponto, a gravação ao vivo parece anular o antigo debate sobre a relação entre mundo e representação (...). [Assim] diante da opacidade crescente de outras instituições, diante da complexidade infernal dos problemas públicos, a televisão apresenta o que acontece tal como está acontecendo e, em seu cenário, as coisas parecem sempre mais verdadeiras e mais simples. Investida da autoridade que as igrejas, os partidos e as escolas perderam, a televisão faz soar a voz de uma verdade que todo mundo pode compreender rapidamente. A epistemologia televisiva é, neste sentido, tão realista quanto populista, e submeteu a uma demolidora crítica prática todos os paradigmas de transmissão do saber conhecidos pela cultura letrada (1997: 73-76, grifos da autora). Saberes Apesar desse quadro, a cultura de massa pode ser considerada como uma das conseqüências do progresso intensificado pelos avanços da ciência e da tecnologia que, de diversos modos, influem na melhoria do nível de vida de considerável parcela da comunidade humana. A consolidação dos meios de comunicação de massa é uma das conseqüências desse processo, com os defeitos e as qualidades que lhe são inerentes. Numa sociedade marcada por tais caracteres a comercialização da arte é inevitável e, mais que isso, é o caminho que ela tem para satisfazer as novas necessidades emocionais e 90 sobre o pós-modernismo espirituais do homem. Se a cultura de massa pode ser condenada por se fundar muitas vezes em formas estereotipadas, devido à sua eficiência comprovada, por outro lado, deve-se fazê-lo “(...) sem perder a noção real do problema da arte contemporânea e sem perder de vista as circunstâncias em que os artistas do passado realizaram suas obras (...) [já que] há uma tendência a idealizar as condições de trabalho destes, que só prejudica a avaliação do problema na atualidade” (GULLAR, 1978: 137). Como alerta Umberto Eco, toda modificação dos instrumentos culturais, na história da humanidade, se apresenta como uma profunda colocação em crise do ‘modelo cultural’ precedente. Tais crises podem ser localizadas, segundo o autor, na invenção da escrita na Antigüidade, da imprensa no Renascimento e, mais recentemente, dos novos instrumentos audiovisuais (Cf. ECO, 1979: 34). A partir das duas últimas décadas do século XX, pode ser acrescentada a esse processo a invenção da internet como fator decisivo para a mudança dos modelos culturais existentes até então. Muitas das discussões sobre tal fenômeno ainda estão por serem feitas, mas já aparecem alguns aspectos significativos para designar a comunicação realizada via computadores como elemento fundamental na redefinição do acesso ao conhecimento por parte dos grupos sociais. A internet pode ser definida, a rigor, como mecanismo através do qual ocorre a fusão entre alguns elementos cruciais dos meios de comunicação anteriores: a escrita, o som e a imagem aparecem combinados no hipertexto de tal forma que as possibilidades de acesso à informação são mais diversificadas. Muitos dos limites de produção e divulgação, presentes, por exemplo, na televisão e na imprensa periódica, são redimensionados na medida em que qualquer pessoa, dentro de certas condições, pode divulgar suas páginas na rede de computadores, disponibilizando seu acesso aos inúmeros usuários do sistema. Além disso, o número de “canais” de acesso à informação é ilimitado, fazendo com que a escolha do que se quer ver, ler ou ouvir torne-se mais ampla. Uma das dificuldades encontradas na utilização da internet está relacionada, em muitos casos, aos altos custos dos equipamentos. A história da difusão da televisão como meio de comunicação de massa pode ser usada como índice para sinalizar 91 ensaios sobre a arte da palavra que as possibilidades de acesso à “rede mundial de computadores” serão facilitadas no futuro. A televisão, em seu início, era um equipamento usado por uma minoria; no entanto, sustentada por constantes transformações, passou a ser um objeto de uso disseminado por toda a sociedade. Este parece ser o caminho da internet, tendo em vista sua utilização cada vez maior por parte de instituições públicas e empresas dos mais diversos setores ou até mesmo com a ampliação do uso doméstico dos chamados computadores pessoais. Portanto, um aspecto a ser destacado com relação ao desenvolvimento gradativo dos meios de comunicação de massa é que tal fenômeno redimensiona a difusão de normas, valores, gostos e padrões de comportamento, antes sob a tutela quase exclusiva de instituições tradicionais, tais como a igreja, a família, a escola etc. Aquela rede de privilégios gerava, por motivos diversos, uma maior limitação do acesso ao conhecimento. Como leitores, ouvintes e telespectadores, as pessoas passam a obter informações sobre o mundo por meios que podem ser definidos, em certo sentido, como alternativos, por apresentarem maiores possibilidades de aproximação das pessoas com realidades outrora distantes, debilitando a eficácia de instituições tradicionais e locais. Surgidos num primeiro momento na Europa e nos Estados Unidos, os impulsos contraculturais da década de 1960 parecem ser um dos exemplos fundadores desse tipo de manifestação: as revoltas estudantis, os concertos musicais promovidos pelo movimento hippie, além de outras práticas ligadas à contracultura, foram divulgados em praticamente todo o mundo. É claro que a divulgação desse fenômeno teve reações as mais diversas possíveis. No Brasil, por exemplo, marcado pela repressão exercida pelo regime militar instaurado a partir de 1964, tais imagens e idéias interferiram consideravelmente na estruturação de grupos contrários ao regime. O que prevalece, no entanto, é a amplitude planetária assumida pela divulgação dessas imagens e idéias. O emprego dos meios de comunicação de massa não pode ser entendido apenas como “ferramenta alienante” nas mãos de produtores mal-intencionados ou com interesses duvidosos, já que muitas de suas realizações apresentam caracteres que incorporam abordagens críticas das relações sociais. Além disso, deve-se 92 sobre o pós-modernismo atentar para a impossibilidade de identificar de forma igualitária a recepção de produções ligadas à cultura de massa, já que a complexidade das formações sociais enfraquece tal suposição, devido principalmente à diversidade de atitudes receptivas possíveis frente à divulgação de formas e temas ligados à cultura de massa. Em suma, a multiplicação e a difusão dos mass media marcaram profundamente as relações socioculturais, com mais ênfase nas décadas que delimitam a segunda metade do século XX. Como observa Umberto Eco, graças aos meios audiovisuais e à consolidação da imprensa escrita, o acesso ao conhecimento adquire dimensões que não se encontram em nenhuma das sociedades do passado : Quando imaginamos o cidadão de um país moderno lendo numa revista ilustrada notícias sobre a estrela de cinema e informações sobre Miguel Angelo, não devemos compará-lo ao humanista antigo, movendo-se com límpida autonomia pelos vários campos do cognoscível, mas ao trabalhador braçal, ou ao pequeno artesão de alguns séculos atrás, excluído da fruição dos bens culturais (1979: 45). A cultura de massa, portanto, precisa ser inserida num contexto que, principalmente a partir da década de 1960, passou a imprimir traços de uma crescente revolução nas noções de espaço, poder, linguagem e identidade correntes em diversos grupos sociais. Tais traços podem ser detectados em alguns fatores que colaboraram decisivamente para compor o cenário da segunda metade do século XX. Entre eles, destacam-se: O colapso dos grandes impérios europeus, sua substituição pela hegemonia econômica mundial dos Estados Unidos, a erosão do Estado-nação e das fronteiras geopolíticas tradicionais, juntamente com as migrações globais em grande escala e a criação das chamadas sociedades multiculturais, a crescente exploração de grupos étnicos no Ocidente e nas sociedades periféricas em outras partes do mundo, o imenso poder das novas corporações transnacionais (EAGLETON, 1997: 322). Merecem destaque, neste processo, as relações estabelecidas entre o contexto histórico, político e sociocultural e as obras definidas como pós-modernas: aspecto marcante em muitas obras pós-modernas, como negar a interação entre cultura de massa e 93 ensaios sobre a arte da palavra literatura nos tempos atuais? Como querer definir obras anteriores com base nesta característica quando a interferência da cultura de massa na sociedade era ainda incipiente, pois restrita aos jornais das primeiras décadas do século XX? Tais circunstâncias são visíveis a partir da inserção cada vez maior dos meios de comunicação de massa nas relações sociais, por meio de veículos diversos, sejam eles consagrados como o próprio jornal, sejam eles novas invenções humanas como o cinema, a televisão ou ainda a internet. Além disso, outro fator importante nesse cenário pós-moderno está relacionado à expansão da publicidade nesses meios como forma de divulgação de produtos e serviços. Incluso nesse processo está o próprio mercado editorial, que passa a se configurar como espaço para a ampliação do consumo de livros. Notas 1. Expressão sugerida por Italo Calvino ao analisar a “inflação” da imagem, através do cinema, da televisão, da publicidade, das histórias em quadrinhos, entre outros meios, que ocorre de maneira mais significativa a partir da segunda metade do século XX. In: CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 108. 2. Ainda com relação a esse debate, algumas considerações significativas sobre as relações entre modernidade e pós-modernidade podem ser encontradas nas páginas escritas por Néstor García-Canclini, a partir das quais o autor desenvolve um estudo pertinente sobre as especificidades que configuram o cenário de países latino-americanos (Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997). 3. Para o contexto brasileiro – assim como para muitos dos chamados países “periféricos” – a frase de Georges Balandier (“o consumidor apaga o cidadão”) necessita de alguns reparos, já que nesses países, para um número considerável da população, pode-se sugerir que o desejo de se tornar consumidor obscurece o desejo de se tornar cidadão. * * * 94 CAPÍTULO IV CENAS E LEITURAS DE UM MESTRE DA PALAVRA •♦• Geralmente quando o texto está saindo fácil, a gente vai ver é porque está escrevendo obviedades ou repetindo fórmulas. Faz parte da preguiça mental, da minha pelo menos, a rendição ao lugar-comum. É preciso resistir. Mas também é preciso resistir à preocupação de ser original demais. Isto é, de escrever tão “diferente”, que dificulta a leitura. Acho que o importante é ser claro. Em segundo lugar, se possível, original. Luis Fernando Verissimo Este pode ser considerado um estudo ligado às produções culturais pós-modernas na medida em que se encarrega de levar a efeito a apresentação de um entre os vários relatos que caracterizam esse momento: o da literatura brasileira contemporânea. No interior desses limites, optou-se por um escritor pouco prestigiado pelos estudos literários: Luis Fernando Verissimo. Apenas algumas crônicas do autor foram selecionadas, já que a análise de toda a sua produção será uma tarefa prazerosa, mas no horizonte de um futuro próximo. Entende-se que tal tarefa seja possível como releitura, tanto de sua obra quanto de suas avaliações críticas. Filho do também escritor Érico Verissimo, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, no dia 26 de setembro de 1936. Sua formação intelectual tem como referências o Instituto Porto Alegre e o Theodore Roosevelt High School, em Washington, apesar de se considerar um autodidata. Seu percurso literário inicia-se no Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, a partir de 1967, quando desempenhou as funções de copidesque, redator, editor de variedades e editor internacional. Mas, foi como cronista que se firmou na carreira literária. Em 1970, passa a colaborar com o jornal Folha da Manhã. A partir de 1973 publicou seus primeiros livros, projetando-se nacionalmente. Trata-se da coletânea de crônicas intitulada O popular, seguida, em 1975, por A grande mulher nua. 95 ensaios sobre a arte da palavra Nessa época, ingressa no Jornal do Brasil e, no início da década de 1980, passa a integrar a equipe da revista Veja. Esses serão os espaços editoriais em que suas crônicas alcançariam destaque cada vez maior. Atualmente, além de reunir parte considerável de suas crônicas em livros, continua a colaborar com importantes jornais, revistas e emissoras de televisão. Nestas, desempenhou várias funções, destacando-se sua participação na adaptação de textos de Monteiro Lobato para a série O Sítio do Pica-pau Amarelo. Ademais, merece ser mencionada a transposição de suas Comédias da Vida Privada para o programa televisivo homônimo devido ao sucesso editorial alcançado pelos textos que integram a obra. A comicidade está entre as características constantes em suas narrativas — nas mais inusitadas formas. A descontração em falar de qualquer tema, e uma visão sólida sobre os fatos, revelam análises inteligentes e precisas da vida cotidiana: a arte de Luis Fernando Verissimo reside, fundamentalmente, na capacidade de captar cenas, muitas vezes insignificantes à primeira vista, e torná-las visíveis e risíveis, pelo emprego de recursos diversificados. A perspicácia em analisar a alma humana e suas (i)limitações, revelando-as ao leitor de forma transparente, torna suas obras referências para o estudo de algumas questões ligadas ao contexto brasileiro das duas últimas décadas do século XX. Além disso, seus textos possuem traços que vinculam sua obra ao pós-modernismo, criando assim uma fórmula crítica aliada ao prazer da leitura proporcionado pela sua comicidade. Desse modo, como forma de mostrar aspectos da ficção brasileira contemporânea, nas páginas que seguem são apresentadas reflexões sobre narrativas de um dos escritores mais significativos da cena literária na atualidade. A arte da palavra desenvolvida por Luis Fernando Veríssimo incorpora elementos apresentados nos capítulos anteriores e serve como exercício de análise desses elementos. O texto investe nas formas que o autor utiliza para conquistar a adesão de seus leitores a partir do uso da comicidade, sendo esta comicidade instaurada em suas narrativas por meio de recursos diversificados como a paródia, a ironia, o sarcasmo, a alegoria, o nonsense, a inversão de papéis, a transposição de situações, et caetera. 96 cenas e leituras de um mestre da palavra Lançando mão desses recursos, o autor realiza um processo de desautomatização de estereótipos, desmistificando comportamentos alienados, compreendidos em sentido amplo. Além disso, pretende-se discutir as relações existentes entre esses artefatos literários e outros textos a partir do conjunto de elementos presentes nas crônicas que apontam o modo como é construída a representação do cotidiano. Suas narrativas possuem uma composição que articula de forma constante vários planos — tais como o do conteúdo histórico e o da matéria ficcional — a partir dos quais se pode inventariar, problematizar e discutir questões relativas às fronteiras do texto literário com outras produções artísticas. Devido às especificidades do gênero praticado, serão analisadas também as leituras de fatos históricos realizadas pelo autor. Trabalhando com essa problemática e inscrevendo-se de forma singular na tradição da narrativa literária brasileira, as crônicas de Luis Fernando Verissimo apresentam uma variedade de temas e formas que buscam incentivar a participação ativa do leitor. Essa participação é incentivada e, até certo ponto, exigida através da desarticulação do “real”, a partir da qual os limites da criação e da imaginação são mais amplos, possibilitando, assim, o estabelecimento de uma reflexão sobre as possibilidades de problematização da história pela representação literária, próximo daquilo que é identificado na ficção pós-moderna e na ficção latinoamericana contemporânea. Suas crônicas configuram assim uma dialogia, território compartilhado pela linguagem e pelo discurso, onde se cria o espaço para a manifestação ideológica, através da percepção cômica de um intervalo entre as convenções e a realidade. Nas palavras de Luis Filipe Ribeiro: Não há que pensar em dialogismo apenas na forma evidente do diálogo, seja nas obras de ficção, seja no cotidiano da vida. O dialogismo está presente onde houver discurso. E, por isso mesmo, o enunciado será sempre entendido como a expressão material de uma passagem: por ele trafegarão as versões de mundo, as indagações, as perplexidades dos atores desse drama curioso. Em uma palavra, os valores (1998: 13). 97 ensaios sobre a arte da palavra Revela-se, portanto, extremamente relevante, para a análise das crônicas de Luis Fernando Verissimo, estabelecer as relações de debate, de polêmica, de paródia etc., entre os enunciados, assim como as pausas, a atitude implícita e outras particularidades que caracterizam suas narrativas. De acordo com Mikhail Bakhtin, “cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados, com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação verbal (...). Cada enunciado refuta, confirma, complementa e depende dos outros; pressupõe que já são conhecidos, e de alguma forma os leva em conta” (BAKHTIN apud STAM, 1992: 73). Essa interdependência dos enunciados emerge como matéria para o cronista ao utilizar-se do que se pode denominar de “lógica do avesso”, ou, em outras palavras, de um processo de inversão de significados e valores, revelando uma atitude de desprezo em relação às convenções sociais, na qual aparecem os diálogos com outros enunciados. Suas fontes são os contos de fadas, as fábulas, os provérbios, as “versões oficiais” sobre fatos históricos, o cinema, a música, a fala coloquial, entre outras. A análise intenta esboçar as possibilidades de leitura das crônicas de Luis Fernando Verissimo. Para tanto, explora as implicações de categorias analíticas específicas, tais como aquelas derivadas dos empreendimentos críticos ligados ao pós-modernismo e à comicidade, com o intuito de contribuir para o estudo das relações entre linguagem e poder, já que “cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se (...) como o produto da interação viva das forças sociais” (BAKHTIN apud STAM, 1992: 73). As crônicas de Luis Fernando Verissimo apresentam várias instâncias características das concepções acima referidas, resultando na subversão das certezas e no questionamento da hierarquização social presente nas relações do cotidiano. Além das concepções apontadas, o presente texto intenta ainda identificar as propriedades da comicidade dos textos no que se refere aos seus aspectos de crítica e contestação sociais, ampliando o espaço do riso como forma de mudança e transição, pois “o riso nasce da observação de alguns defeitos no mundo em que o homem vive e atua” (PROPP, 1992: 174). As relações entre 98 cenas e leituras de um mestre da palavra literatura e história para essa análise são fundamentais, pois é através dessa relação que se pode averiguar a existência de um modelo de subversão na escrita de Luis Fernando Verissimo. O texto divide-se em dois momentos: no primeiro são realizadas análises que visam estabelecer comentários gerais sobre a obra do autor; no segundo, são realizadas análises pormenorizadas de algumas narrativas. Em relação a esse aspecto, faz-se uma ressalva: apesar da citação direta de trechos durante a análise, as narrativas utilizadas na segunda parte do texto serão apresentadas na íntegra, buscando manter a sua configuração original para que o leitor possa ter acesso à leitura dos textos antes de serem efetuadas suas análises. Tal proposta é justificável, pois, como narrativas curtas, as crônicas prestam-se com mais desenvoltura a esse tipo de exercício: deixar que o autor fale através da inserção de seus textos no corpo do trabalho. COMENTÁRIOS PANORÂMICOS Entre as obras de Luis Fernando Verissimo, destacam-se as Comédias da vida privada, uma síntese de situações cotidianas da classe média — personagem predileta do autor — e seus encontros e desencontros sociais. O livro é uma análise da natureza humana em geral, composto de crônicas sobre relacionamentos conjugais, extraconjugais, familiares, amizades, a tecnologia moderna, costumes, comunicação, cultura e intelectualidade, amor, política, entre outros. Em todos esses temas o que predomina é o sentido de oportunidade da percepção crítica para destacar facetas curiosas do comportamento humano e criar inversões insólitas em suas relações com o mundo. Maria Heloísa Martins, em sua resenha da coletânea de crônicas intitulada O suicida e o computador, ressalta que “em L. F. Verissimo a originalidade se expressa no caráter transgressor da linguagem, utilizada de modo a provocar efeitos de estranhamento (há muito defendidos pelo Formalismo russo) graças às curiosas soluções formais” (MARTINS, 1994: 262). Além dessas, suas Comédias da vida pública são uma referência importante sobre fatos recentes da história do Brasil. 99 ensaios sobre a arte da palavra São mais de duzentas crônicas, que, segundo o autor, “valem como anotações na margem desse tempo estranho que vivemos, tentando conciliar duas exigências conflitantes: ser brasileiro e manter um mínimo de compostura. Todos os tempos são estranhos, os nossos são mais porque acontecem com a nossa presença, a nossa consciência e – quando temos este privilégio – o nosso testemunho” (1996: 08). Tal testemunho encontra substância, em muitas de suas crônicas, na criação de alguns personagens-tipo, que aparecem com maior freqüência. O primeiro desses personagens a ser apresentado aqui é Ed Mort, uma versão tupiniquim “subdesenvolvida” como contraponto tanto ao investigador Sherlock Holmes de Conan Doyle quanto ao espião cinematográfico James Bond. Assim, “Mort, Ed Mort” é um detetive brasileiro em carne e osso, muito mais osso do que carne, já que seus casos nunca lhe dão dinheiro e ele vive tendo que penhorar seus pertences: uma mesa e uma Bic. Trabalha em um “escri” (já que escritório é uma palavra grande demais para descrever o local), que compartilha geralmente com algumas baratas e um ratão albino chamado Voltaire. Seus casos são os mais estranhos e as aventuras hilárias, principalmente porque procuram mostrar como um detetive pobre, sem os recursos sofisticados da Scotland Yard ou do cinema, tenta solucionar os enigmas apresentados pelos seus clientes. O autor reelabora elementos peculiares aos contos policiais, tais como a carga de mistério e suspense presente em tais produções. No que se refere mais especificamente ao contexto brasileiro, o autor procura incorporar algumas questões relacionadas ao espaço da malandragem: o personagem, em muitas situações, precisa recorrer ao “jeitinho” para dar conta das dificuldades surgidas em seu cotidiano. Contudo, Ed Mort é, ao mesmo tempo, “malandro e otário”. É nessa reelaboração que se sustenta a comicidade, pois o personagem aparece como figura ridícula que leva o leitor ao riso, devido à extrema confiança depositada em si mesmo, a qual não se efetiva nas tentativas de resolução de seus casos. Outra personagem recorrente nas histórias de Luis Fernando Verissimo é A Velhinha de Taubaté: trata-se de uma senhora de idade que, obviamente, mora em Taubaté, e, por acreditar em tudo, 100 cenas e leituras de um mestre da palavra é, portanto, a última pessoa que acredita no governo. Em sua casa, com seu gato, assiste pela televisão as justificativas do governo para todo tipo de problema e acredita em tudo, sendo por este motivo paparicada pelos políticos. Ela é a última pilastra que impede o Brasil de desabar no caos, pois quando ela deixar de acreditar no governo, é porque ninguém mais acredita. Em suas histórias, Luis Fernando Verissimo utiliza a personagem para ironizar atos e fatos políticos, principalmente aqueles ligados à fase de transição entre ditadura militar e a redemocratização. Seu ataque está direcionado primordialmente àquelas pessoas ligadas ao movimento TFP – Tradição, Família e Propriedade – famoso nas últimas décadas da história brasileira pela visão reacionária assumida diante da nova realidade vivida pelo mundo atual e , em particular, pela sociedade brasileira contemporânea. O personagem mais famoso, no entanto, é O Analista de Bagé: descrição da rotina de um “bajeense típico” e seus encontros com pacientes em seu consultório. Ele é um herói anônimo, identificado tão-somente pela profissão – a de analista – e uma procedência – a cidade de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul. Esta e mais a descrição de sua indumentária, hábitos cotidianos, vocabulário e estilo configuram o caráter regional do protagonista, aparecendo então como gaúcho autêntico. Note-se, porém, que sua autenticidade (associada à vida no campo) contrasta com a profissão: um gaúcho típico não pode, à primeira vista, atuar como analista, profissão geralmente ligada ao ambiente urbano. É nesse jogo de contrastes que o personagem encarna situações que levam ao riso. “Freudiano de carteirinha”, trata seus pacientes, com sucesso, pelo emprego de técnicas desenvolvidas na prática diária da profissão: “o joelhaço”; “o tapa”, “o cabeçaço”, “o cotovelaço”, entre outras. Durante as sessões, o Analista enfrenta megalômanos, paranóicos, problemas sexuais, crises de identidade e todo tipo de “loucura”. Com esse personagem, o autor trata dos problemas comuns que afligem a classe média e que muitas vezes, segundo o próprio Analista, são meramente “frescuras”. O personagem foi criado inicialmente para um programa de Jô Soares, e era um garçom gaúcho em um restaurante francês; como não foi muito utilizado pelo humorista televisivo, Luis Fernando Verissimo 101 ensaios sobre a arte da palavra reutilizou o mesmo em suas crônicas, mudando a profissão, mas mantendo a estrutura cômica: o contraste criado entre o personagem e o ambiente. Em outras palavras, as do próprio autor, o personagem é usado para “explorar a incongruência (...). A velha história do touro na loja de cristais” (TORNQUIST, 1984: 05). De acordo com Regina Zilberman, no que diz respeito ao analista, Luis Fernando Verissimo, “ao compor o protagonista de modo contraditório, em que elementos antagônicos convivem sem se harmonizar, questiona a natureza do tipo regional e seu anacronismo numa sociedade moderna e cultivada”. Além disso, o autor seria responsável pelo desmascaramento do “artificialismo daquele processo de modernização urbana, no qual se associam, também de modo contraditório, o arcaísmo originário do meio rural conservador e a aspiração à novidade, configurada na adoção de padrões de comportamento ditos progressistas” (1985: 105). Vejase um exemplo: O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta: - Agora, qual é o causo? - É depressão, doutor. O analista de Bagé retira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar o cigarro. - Tô te ouvindo – diz. - É uma coisa existencial, entende? - Continua, no más. ------------------------------------------------------------------------ Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta... - Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem? - Me alimento. - Tem casa de galpão? - Bem... Apartamento. - Não é veado? - Não. - Tá com os carnê em dia? - Estou. - Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito. - O Freud não me diria isso. - O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão? - Não. - Então te fecha. E olha os pés no meu pelego (1981: 24). 102 cenas e leituras de um mestre da palavra Se a profissão pode ser considerada como índice anacrônico do tipo regional, ele, por sua vez, desnuda a inautenticidade das doenças de seus pacientes, cuja superficialidade é revelada tão logo o médico emprega as técnicas originais que desenvolveu. Como ponto comum na construção desses diferentes personagens, emerge a posição irônica assumida pelo narrador, já que este apresenta as histórias sem aderir ao que está sendo relatado, mantendo assim um certo distanciamento em relação aos “casos” contados.1 Esses personagens-tipo podem ser inseridos naquela categoria de literatura produzida pelo autor que se caracteriza pelo deboche descompromissado, que não causa grande repercussão no que se refere ao questionamento de padrões socioculturais vigentes na sociedade. Isto se explica pela utilização, em muitos casos, do humor sem derrisão — compreendido como aquele que desperta o riso benevolente — como forma de construir tais narrativas. Nesse aspecto, em Luis Fernando Verissimo, um dos recursos recorrentes para instaurar a comicidade nas narrativas é o paradoxo, a partir do qual o autor reúne, apesar de sua incompatibilidade, conceitos que se excluem mutuamente. Exemplo: “Cheio de dedos” (1983: 124-127) é uma crônica que fala da importância das mãos para a história da humanidade: “a civilização começou com o dedão opositor. A evolução mais importante de toda a história da espécie, batendo longe a invenção da roda, do transistor e da azeitona sem caroço, foi o desenvolvimento da junta giratória que permite ao dedão – o Pai de Todos – se opor aos outros dedos” (1983: 125). Ao falar da evolução da espécie, o narrador enfatiza invenções humanas como a roda e o transistor, comumente aceitas como verdadeiros avanços, no que se refere ao domínio da natureza pelo ser humano. Incluir aí a articulação entre o polegar e os outros dedos das mãos (apesar de não ser uma invenção), tudo bem. Mas, quanto é que a “invenção” da “azeitona sem caroço” contribuiu para a evolução da espécie? Provavelmente, bem pouco. Ao reunir informações como essas, Luis Fernando Verissimo desperta o riso no leitor com a utilização do paradoxo. Na mesma narrativa, pode ser destacada outra construção paradoxal. Continuando a exposição da evolução humana, o narrador enfatiza 103 ensaios sobre a arte da palavra que “no momento em que pôde juntar as pontas do dedão e do indicador com delicada precisão, para segurar uma borboleta ou esmagar um piolho, o homem passou a integrar uma ordem mais alta de mamíferos” (1983: 125). Sendo assim, através do diálogo com o leitor, o narrador encerra dizendo que o que “distingue o homem dos primatas não é, como você [leitor] sempre pensou, a alma (...). É o dedão. Sem o dedão o homem não teria uma história. Jamais teria desenvolvido qualquer técnica mais avançada do que o bolinho de barro. Ainda andaria de quatro sem desfrutar das maravilhas do mundo moderno, como a poluição, a bomba de nêutron e o baixo fender” (1983: 126). A inclusão do “baixo fender”, instrumento musical famoso pela sua qualidade sonora, como uma das maravilhas do mundo moderno é até aceitável. Mas “a poluição e a bomba de nêutron” são maravilhas a serem desfrutadas? Ao utilizar-se dos paradoxos, o escritor procura chamar a atenção para a necessidade de estar atento à leitura, tanto dos textos quanto do mundo, pois muitas vezes os “leitores” não percebem as contradições presentes nas interações sociais. A inclusão proposital de construções paradoxais desperta o leitor para essas contradições: o que ocorre é um processo no qual os leitores precisam estar em vigília permanente e refazer a leitura para que obtenham a confirmação da leitura anterior; é aí que o texto adquire a capacidade de provocar o riso, devido ao agrupamento de informações incompatíveis. A reelaboração dos acontecimentos leva à reflexão, revelando sua força persuasiva no riso ambíguo despertado nos leitores. Apesar de essas narrativas poderem ser classificadas como instrumentos relevantes para despertar o interesse pela leitura, papel primordial desempenhado pela “literatura de entretenimento” (PAES, 1990: 25), o que interessa para o presente estudo, no entanto, são aquelas narrativas do autor que empreendem um percurso de contestação, representado pelos recursos estilísticos que primam pela incorporação da crítica à institucionalização de determinados comportamentos sociais. Nesse tipo de narrativas, destacam-se as formas capazes de despertar no leitor a condenação de determinadas atitudes feita com base no riso reflexivo, suscitado por recursos como a paródia e a ironia, que procuram relativizar determinados consensos existentes na sociedade. 104 cenas e leituras de um mestre da palavra Nesse sentido, muitas das crônicas de Luis Fernando Verissimo podem ser caracterizadas como narrativas “excêntricas”2, por enfatizarem que o centro passa para a periferia, mas sem instituir novos centros: todos passam para a periferia. Com tal estratégia, o que se procura contestar são os discursos vinculados ao humanismo liberal que sugerem a liberdade, a autodeterminação e a racionalidade para todos, mas que se concentram nas palavras do “homem branco de classe-média/alta, heterossexual e ocidental” (HUTCHEON, 1991: 29). Seus textos se caracterizam, em muitos aspectos, como instrumentos para exteriorizar os conflitos políticos e ideológicos presentes no cotidiano das relações humanas, já que a atitude subversiva se mostra alicerçada na revelação da fragilidade dos pressupostos consensuais presentes nas estruturas socioculturais. A valiosa associação entre questões de classe, de etnia, de sexo e de raça, pode ser compreendida como contribuição das discussões empreendidas pelos chamados discursos “minoritários” – que de minoria possuem muito pouco – de mulheres, negros, homossexuais, “terceiro-mundistas”, entre outros, que passam a se manifestar de maneira mais organizada a partir das décadas de 1960 e 1970, quando começa a se evidenciar o debate, hoje irreversível nos meios políticos e acadêmicos, em torno da questão da “alteridade”. No plano político e social, esse debate ganha terreno a partir dos movimentos anticoloniais, étnicos, raciais, de mulheres, de homossexuais e ecológicos que se consolidam como novas forças políticas emergentes. No plano acadêmico, filósofos franceses pósestruturalistas como Foucault, Barthes, Kristeva, Derrida e Ricoeur intensificam a discussão sobre a crise e o descentramento da noção de sujeito, introduzindo, como temas centrais do debate acadêmico, as idéias de marginalidade, alteridade e diferença (HOLLANDA, 1994: 09). Contudo, um perigo enfrentado pelo pós-modernismo reside no fato de poder vir a “essencializar sua ex-centricidade ou se tornar cúmplice das noções do humanismo liberal sobre universalidade (falar em nome de todos os ex-cêntricos) e eternidade (para sempre)” (HUTCHEON, 1991: 98). Daí a recorrência constante a artifícios como a paródia e a ironia como forma de relativizar as afirmações que possam ser apresentadas por essas manifestações artísticas. 105 ensaios sobre a arte da palavra Uma das principais estruturas narrativas das crônicas de Luis Fernando Verissimo se acha corporificada no diálogo, geralmente através da alternância entre pergunta e resposta. Essa estrutura adquire propriedade ao colocar em evidência os confrontos entre diferentes concepções sobre fatos, crenças, convicções, enfim, sobre complexos discursivos convencionalizados na/pela/para a sociedade. Este recurso, aliado à paródia e à ironia, possibilita ao autor conquistar um distanciamento que reivindique a problematização das contradições presentes nos relacionamentos humanos, sejam eles políticos, de classe, familiares, profissionais etc. Em outras palavras, o diálogo entre as personagens adquire força expressiva como processo de comunicação por meio do qual são confrontadas as diversas posições presentes nas relações sociais. A conciliação desses recursos revela-se como estratégia poderosa para problematizar questões diversas. Um dos recursos a ser destacado é a paródia. Nesse sentido, pode-se argumentar que a paródia não é um procedimento artístico inventado pelo modernismo. Contudo, no caso brasileiro, é a partir desse movimento estético-literário que a paródia passa a ser enfatizada como arma a ser utilizada para a problematização das convenções. Isto ocorre porque o uso da paródia demonstra a consciência crítica pela atribuição de novos sentidos a velhos esquemas de pensamento, embora muitas vezes o faça com ironia, o que evidencia, em certa medida, uma posição cautelosa no que se refere à instituição de novos paradigmas. A eficácia do procedimento paródico reside na interação entre texto e leitor, pois a leitura do texto, atravessada e entrecortada por outro(s) texto(s), está em relação direta com a formação cultural de quem se dispõe a ler determinada obra: por exemplo, como compreender a reelaboração que Oswald de Andrade faz da Carta de Pero Vaz de Caminha sem ter conhecimento desse texto? Nas interpretações paródicas de Luis Fernando Verissimo, os mesmos elementos são muitas vezes preservados, mas agora são executados em novos meios de expressão, alertando para os diferentes pontos de vista inclusos em uma mesma situação. O leitor da narrativa é colocado numa espécie de contra-expectativa, que o instiga a ser espectador ativo e não passivo, em relação às 106 cenas e leituras de um mestre da palavra cenas que está presenciando. Exemplo disso pode ser encontrado na crônica intitulada “Frases” (1980: 87-90), por meio da qual Luis Fernando Verissimo procura problematizar algumas convenções relacionadas às ditas “frases feitas”. No texto, o narrador começa a pensar que tem problemas no dia em que, conversando com os amigos, refere-se a alguém possuidor de uma paciência de “Lot”. Eles lhe objetam que se diz paciência de “Jó”, mas ele insiste, e sua insistência com os amigos o faz duvidar como “Macbeth”. Decide consultar um colega que ainda não se manifestara, esperando que ele desse o voto de “Mecenas”, pois o considerava justo como “Moisés”. Consolado pelos amigos, elabora uma pequena teoria segundo a qual “havia um jeito certo de dizer as coisas e um jeito errado. Milhares de anos de civilização tinham nos legado exemplos e frases para todas as situações. Esquecê-las seria trair a nossa herança. A cultura helênica, a romana, nossas tradições judaico-cristãs, os clássicos, o próprio dom da comunicação entre os povos” (1980: 88). Trair tal herança seria como voltar à torre de “Babilônia”. O homem vai para casa derrotado, como Napoleão depois de “Watergate”. À noite, desesperado, sente que falta pouco para tomar cicuta, como “Aristóteles”. Sozinho, fica pensando em como as frases erradas o tornariam vulnerável, seriam seu calcanhar de “Ulisses”. De Ulisses não, de “Átila”. No dia seguinte, decide recomeçar. Afinal, “Esparta” não fora feita num só dia. Decide ir ao médico, que fez ouvidos de “marceneiro” em relação às suas queixas, embora fosse insuspeito, como a mulher de “Nero”. Quando o médico lhe diz que está tudo bem, o personagem afirma que é esclerose precoce. O médico responde: - Imaginação sua. - Sonho de uma tarde de outono – disse eu, amargamente. - Ou de uma noite de verão. - Por que você disse isso? – perguntei desconfiado. - O quê? - Noite de verão em vez de tarde de outono? - Por nada. Tanto faz. - Tanto faz, não. Qual é o certo? - Não existe certo ou errado. Cada um diz como quer... - Você não sabe o que está dizendo! Há só uma maneira de dizer as coisas. A maneira certa. Obrigatória! - Escute... - Você não vai me receitar nada? 107 ensaios sobre a arte da palavra - Nada. - Estou com uma saúde de... de... - De ferro. - Quer dizer que você lava as mãos? - Como Pilatos. - Como Herodes. - Pilatos. - HERODES! Ele me receitou um calmante. Não saio mais de casa. Não me comunico com ninguém. Não abro mais a boca com medo de me trair e trair a minha formação. O silêncio é de prata (1980: 89-90). O que suscita o riso nessa narrativa é a paródia aliada ao exagero cômico em uma de suas gradações intermediárias: a hipérbole. Esta figura de linguagem pode ser posicionada entre a caricatura e o grotesco, pois enquanto a caricatura exagera apenas um pormenor, “no grotesco o exagero atinge tais dimensões que aquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso. Ele extrapola os limites da realidade e penetra no domínio do fantástico. Por isso o grotesco delimita-se com o terrível” (PROPP, 1992: 91). Assim, nesse texto pode ser indicada uma forma de hiperbolização na medida em que o exagero não se restringe a um pormenor, mas também não atinge os limites do fantástico. O que se exagera é o todo, mas com certas reservas: o exagero está direcionado à preocupação por parte do personagem em utilizar-se de frases consideradas sintomáticas de uma ampla formação erudita. Outro elemento significativo da narrativa reside no fato de que, concomitantemente à invenção, ocorre a padronização, ou seja, quando o narrador altera as frases, essas procuram manter uma proximidade com as frases “certas”. Este processo está sustentado pela alteração nas mesmas categorias: Lot e Jó são personagens bíblicos; Macbeth e Hamlet são personagens de Shakespeare; Roma e Esparta são cidades (antigas); tarde e noite são períodos de tempo; outono e verão são estações do ano; prata e ouro são metais, marceneiro e mercador são profissões, Watergate e Waterloo são derrotas de políticos famosos etc. Com tal procedimento, o autor cita (aludindo) as fórmulas “corretas” que se ouvem por detrás das que aparecem no texto. Esse processo mostra que a narrativa “demanda um leitor que reconheça as fórmulas aludidas, pois sem isso o texto não funciona 108 cenas e leituras de um mestre da palavra – se onde uns riem outros ficam constrangidos, tudo bem, mas se ninguém ri, o texto fracassa” (POSSENTI, 1998: 10). Como toda paródia, a literatura pós-moderna poderia ser considerada elitista, na medida em que os códigos necessários à sua compreensão não pertencerem tanto ao autor quanto ao destinatário. Para contornar esse perigo, o autor utiliza indícios explícitos como forma de aproximar o leitor e assim evitar a tendência do procedimento paródico, em muitos casos, de privatizar o sentido. Por isso, a invenção procura estar atrelada a um esquema de realização que não perca de vista as frases anteriores, já que para sua compreensão é necessário que se faça uma leitura que leve em conta duas referências: uma presente (frases alteradas) e outra ausente (frases originais). O texto ressalta a importância da interação entre as várias instâncias envolvidas na leitura: o autor que inventa, o texto que quebra a expectativa e o leitor que precisa se posicionar criticamente para compreender as alusões paródicas. É nessa interação que a narrativa adquire eficácia, ao problematizar o uso convencionalizado que se faz da linguagem cotidiana. O papel desempenhado pelas campanhas publicitárias na definição de compra por parte do consumidor é outro assunto abordado pelo autor que procura mostrar como esse tipo de atividade tem implicações cada vez maiores na indicação de comportamentos. Numa sociedade de consumo, a construção da imagem das empresas deve ser cuidadosamente planejada, visando causar o impacto necessário para acelerar essa definição. Para tanto, as empresas buscam catalisar essa reação dos consumidores através da produção de materiais publicitários, veiculados tanto por meios de comunicação quanto por recursos “menos” sofisticados como slogans estampados em camisetas, bonés, placas de anúncio etc. Entre as estratégias adotadas pelas empresas para convencer o consumidor na hora da compra está a integração entre o produto e a forma discursiva adequada como requisito primordial para a aquisição de determinada marca. A importância crescente assumida pela publicidade nas últimas décadas parece estar atrelada ao fato de que, cada vez mais, o que move as pessoas são as possibilidades de acúmulo de riquezas. 109 ensaios sobre a arte da palavra Como protagonista desse processo, a publicidade televisiva, em muitos casos, reduz seus telespectadores a potenciais consumidores, o que leva à valorização cada vez maior da propriedade: as pessoas desejam ser proprietárias dos produtos expostos na vitrine da televisão e este desejo é um dos combustíveis fundamentais que alicerçam as ações humanas; as pessoas passam a ser valorizadas, em grande parte, pelas posses materializadas por carros, casas, móveis, eletrodomésticos, roupas etc. Em suma, o valor humano é exteriorizado numa amplitude assustadora: o importante não é o que se pensa, o que se fala e o que se faz, mas sim o que se pensa, se fala e se faz através dos objetos adquiridos.3 Como visto, está claro que numa sociedade de consumo a ênfase estará direcionada, obviamente, ao consumismo. Dessa maneira, os consumidores são alvos a serem atingidos e as formas utilizadas para conquistar o maior número de pessoas devem ser cuidadosamente articuladas para atingir os objetivos propostos. É nesse quadro que a publicidade assume um papel privilegiado na configuração de comportamentos e o comercial de televisão é um dos instrumentos mais poderosos para acelerar a definição de compra por parte dos consumidores. Em “O estranho procedimento de Dona Dolores” (1983: 63-65), Luis Fernando Verissimo retrata o ambiente doméstico de uma família de classe média na qual a mãe, de tanto assistir aos comerciais de televisão, pensa ser uma “garota-propaganda” em tempo integral: Começou na mesa do almoço. A família estava comendo – pai, mãe, filho e filha – e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse: — Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso (1983: 63). A partir daí, Dona Dolores só conversa com os outros membros da família por meio de frases de efeito, como as que são usadas em campanhas publicitárias. O pai e os filhos acham que Dona Dolores está louca, mas resolvem dar um tempo para ela se recuperar: “É uma fase. Passa logo” (1983: 65). A mãe continua a desempenhar seu papel, dirigindo-se a uma câmera que só ela vê e a um público imaginário que a família não consegue identificar. O pai e os filhos terminam o almoço e ela anuncia o que tem de sobremesa: “Gelatina Quero Mais, uma festa 110 cenas e leituras de um mestre da palavra em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga”. Mais tarde, o marido entra na cozinha e encontra a mulher segurando uma lata de óleo à altura do rosto: “A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar”. O marido abre a geladeira para pegar uma cerveja e a mulher fala para a parede: “Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo” (1983: 64-65). A narrativa segue com a descrição da rotina diária da família e termina no quarto do casal, onde Dona Dolores, sentada em frente ao espelho, passa um creme no rosto: “Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris” (1983: 66). O marido assiste a cena deitado na cama. Como se estivesse num comercial, Dona Dolores caminha, “languidamente”, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfia-se entre os lençóis e beija o marido na boca: “Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigese outra vez para a câmera. – Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...” (1983: 65). A crônica encerra quando o marido resolve aproveitar o clima de sedução instaurado pela mulher: “Fazia tanto tempo. Apagou a luz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhuma câmera por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas” (1983: 65). A partir dessa narrativa, os meios de comunicação de massa podem ser caracterizados como mecanismos eficazes no que se refere à sugestão de comportamentos: roupas a vestir, cortes de cabelo, postura física, música para ouvir, prática de exercícios para manter a saúde, candidatos a cargos políticos, receitas culinárias, indicação de medicamentos, entre outros. Estes são exemplos da institucionalização de modelos a serem seguidos pelo público. É claro que o texto exagera esse processo e é sustentada pelo exagero que a narrativa leva ao riso. 111 ensaios sobre a arte da palavra Contudo, apesar de parecer uma simples piada, ela faz o registro da presença e interferência crescentes desses veículos na sugestão de produtos a comprar e atitudes a serem adotadas como exemplares, devido à força, cada vez maior, assumida pelos meios de comunicação no cotidiano das pessoas. Outro aspecto recorrente nas narrativas de Luis Fernando Verissimo pode ser identificado na condenação, feita a partir do riso reflexivo, de determinados valores que se presumem universais (para todos), o que revela a preocupação em diagnosticar de que maneiras se dão as relações estabelecidas pelas pessoas com a alteridade, ou seja, as narrativas procuram mostrar de que forma as pessoas encaram a diferença. Como pode ser visto, o ambiente familiar é um espaço privilegiado para retratar as relações com a alteridade. Muitas das crônicas de Luis Fernando Verissimo abordam relações familiares, sendo que o convívio entre jovens e idosos, adultos e crianças, pais e filhos (os famosos “conflitos de gerações”), maridos e esposas aparece como um dos temas privilegiados nesse tipo de narrativas. Nelas, a comicidade direcionada à institucionalização de determinadas posições sociais pode ser entendida como forma de ridicularizar situações nas quais as pessoas privilegiam determinadas idéias. Dessas possibilidades de relacionamento, a relação homemmulher aparece em situações diferenciadas. Na análise anterior, evidencia-se uma estrutura familiar patriarcal em que os espaços destinados ao homem e à mulher aparecem demarcados de forma tradicional: a mulher aparece transitando pela casa, ocupada com o bem estar da família e os afazeres domésticos. Mas essa visão tradicional, muitas vezes, é questionada por Luis Fernando Verissimo. Em crônica intitulada “Homens” (1994b: 98-100), o autor reorienta a visão tradicional da superioridade masculina por meio da paródia de um dos textos, em certa medida, fundadores de uma estrutura patriarcal de sociedade: no Gênesis, primeiro “capítulo” da Bíblia Sagrada, a mulher é descrita como criação divina oriunda de uma costela do homem. O autor refaz os passos divinos da criação do universo, com alguns detalhes inusitados: Deus, que não tinha problemas de verba, nem uma oposição para ficar dizendo “Projetos faraônicos! Projetos faraônicos!”, resolveu, 112 cenas e leituras de um mestre da palavra numa semana em que não tinha mais nada para fazer, criar o mundo. E criou o céu e a terra e as estrelas, e viu que eram razoáveis. Mas achou que faltava vida na sua criação e – sem uma idéia muito firme do que queria – começou a experimentar com formas vivas. Fez amebas, insetos, répteis. As baratas, as formigas etc. Mas, apesar de algumas coisas bem resolvidas – a borboleta, por exemplo –, nada realmente o agradou. Decidiu que estava se reprimindo e partiu para grandes projetos: o mamute, o dinossauro e, numa fase especialmente megalomaníaca, a baleia. Mas ainda não era bem aquilo. Não chegou a renegar nada do que fez – a não ser o rinoceronte, que até hoje Ele diz que não foi Ele – e tem explicações até para a girafa, citando Lê Corbusier (“A forma segue a função”). Mas queria outra coisa. E então bolou um bípede. Uma variação do macaco, sem tanto cabelo. Era quase o que ele queria. Mas ainda não era bem aquilo (1994b: 98). Até aqui, a descrição parece se orientar para um desfecho previsível: Deus cria o homem. No entanto, a narrativa encaminha outra possibilidade: Entusiasmado, Deus trancou-se na sua oficina e pôs-se a trabalhar. E moldou sua criatura, e abrandou suas afeições, e arredondou suas formas, e tirou um pouquinho daqui e acrescentou um pouquinho ali. E criou a Mulher, e viu que era boa. E determinou que ela reinaria sobre a sua criação, pois era a sua obra mais bemacabada. Infelizmente, o Diabo andou mexendo na lata de lixo de Deus e, com o que sobrou da Mulher, criou o Homem (1994b: 9899). A crônica encerra com a descrição de uma situação, agora nos dias atuais, que comprova o corporativismo masculino: numa conversa em um bar, a personagem Lalinha descobre que Teixeira, seu namorado atual, havia pedido informações a Vinicius, seu namorado anterior, sobre suas preferências, a fim de conquistá-la: “Mas eu sou uma imbecil! (...) O primeiro disco que você me dá é justamente um disco do Ivan Lins. Meu Deus, até o beijo atrás da orelha!” (1994b: 99). Tanto a inversão brincalhona do texto bíblico quanto o diálogo entre os sexos opostos, sinaliza para uma superioridade de caráter presente no universo feminino. Contudo, esta superioridade nem sempre prevalece em todas as situações descritas por Luis Fernando Verissimo. Por exemplo, em “O Maridinho e a Mulherzinha” (1980: 3942), o autor procura realizar um exercício de desmascaramento 113 ensaios sobre a arte da palavra das relações desiguais estabelecidas entre homens e mulheres. São duas pequenas histórias: a primeira tem como tema a submissão masculina e a segunda a submissão feminina. Dessa maneira, a primeira história tem como fio condutor um encontro de amigos no qual o “maridinho” se apresenta a um novo membro do grupo dizendo, “faceiro”, que sua mulher o adora: “Agora mesmo ela me vestiu, me penteou e me deixou sair para dar uma volta”. O estranho no grupo pergunta: “É a sua mulher que veste você?” ao que o “maridinho” responde: “É. Depois de me dar banho”. O homem é descrito com características que lembram o tratamento dispensado às crianças: necessita de cuidados especiais e vigilância ostensiva, para “evitar que se machuque”. Dando continuidade ao diálogo, o novato do grupo pergunta se o “maridinho” pode ficar na rua o tempo que quiser, ao que ele responde que sim, “o tempo que quiser. Até escurecer, é claro”, pois sua mulher havia lhe dito que havia uma carrocinha que pegava “maridinho” que ficava solto na rua, depois que escurece, para fazer sabão. O outro pergunta se ele não gostaria de ficar tomando uns chopes e o “maridinho” adverte que não pode nem dizer esta palavra porque “senão eu chego em casa, minha mulher cheira o meu hálito e diz: ‘Você andou dizendo chope’”. Quando isto ocorre, ele é castigado, ficando sem comida. Seu interlocutor pergunta: - E você aceita isso? - Claro que não! Está pensando o quê? Mulher nenhuma vai me dominar. Depois que ela dorme eu vou na cozinha e como uma bolacha. Comigo é assim. - Dureza... - Dureza. Levantou a voz comigo, já sabe. - O que é que acontece? - Eu choro (1980: 40-41). O “maridinho” encarna atitudes, em certa medida, infantis, o que revela sua dependência em relação à mulher. Esta descrição ridiculariza a submissão masculina, principalmente quando o homem, guardadas as proporções, procura idealizar, não uma esposa, mas sim “uma mãe que faça sexo com ele”. A segunda história descreve um marido que costumava referir-se à sua esposa, de forma “carinhosa”, como “minha 114 cenas e leituras de um mestre da palavra mulherzinha”. O marido olhava para a esposa “como se olha para um cachorrinho (...). A mulherzinha vivia na sombra do marido. Quando tentava dar a sua opinião sobre algum assunto mais sério, ele piscava o olho, afagava sua cabeça e dizia: ‘ – Não preocupa essa cabecinha linda com essas coisas. Vai fazer um cafezinho pra gente, vai’” (1980: 41). A mulher é descrita como animalzinho de estimação que, no entanto, não deve deixar de satisfazer as exigências do marido no que se refere às tarefas domésticas. Apresentadas as formas em que se dão as relações entre marido e esposa, a narrativa extrapola os limites da realidade e envereda no domínio do fantástico, ao descrever a gradativa diminuição do tamanho da esposa. A cada dia que passava a mulher encolhia mais e mais. O marido leva a (cada vez mais) “mulherzinha” ao médico, que não sabe explicar o fenômeno: “A mulher permanecia perfeitamente proporcionada, só menor” (1980: 41 ). O marido preocupa-se com o encolhimento da esposa. Sua preocupação, no entanto, não reside apenas no fato de não ter mais uma mulher para abraçar, mas, principalmente, nas dificuldades que ela teria para realizar as tarefas domésticas já que, reduzida de tamanho, ela “levava três dias para cerzir uma meia. Tinha que trazer o cafezinho xícara por xícara (...). Não podia mais cozinhar sob risco de cair numa panela” (1980: 41-42). O tamanho da mulher reduz-se de tal maneira que “um dia, aconteceu (...). Tinha desaparecido. Estava, provavelmente, do tamanho de um cisco. E até hoje o marido anda pela casa na ponta dos pés, cuidando onde pisa, para não pisar na sua mulherzinha. Desconsolado” (1980: 42). A narrativa problematiza a tradicional divisão do trabalho: o homem trabalha fora e a mulher deve ater-se aos afazeres da casa. Isto revela afinidades com o discurso feminista das últimas décadas, principalmente em questões relacionadas à crítica de determinadas situações: “Se alguém deve realizar as tarefas da casa, por que, necessariamente, este alguém deve ser do sexo feminino? Quem foi que disse que este é papel apenas da mulher?”. Em “O maridinho e a mulherzinha”, portanto, Luis Fernando Verissimo descreve duas pequenas histórias que apresentam cenas em que a submissão é condenada a partir da comicidade presente na narrativa. Mas, repare-se que tanto a submissão feminina quanto 115 ensaios sobre a arte da palavra a masculina são condenadas pelo uso do diminutivo para referirse aos personagens: “maridinho e mulherzinha”, o que sugere, ao invés de uma posição sobreposta a outra, a busca da “igualdade” na distribuição do poder estabelecida nas relações de gênero. Se a submissão é condenada pelo riso, o que resulta como dado a ser elogiado é a instauração do questionamento das posições tradicionais ocupadas por homens e mulheres na sociedade. Essas considerações demonstram a preocupação crítica do autor ao explorar em seus textos a suposta superioridade masculina, mas sem instituir a posição feminina como necessariamente superior. Tal característica pode ser avaliada como um procedimento inerente ao pós-modernismo, pois muitos dos discursos pós-modernos, ao questionar o que é qualificado como o “centro” na sociedade, procuram questionar também a instituição de um novo centro, ou, em outros termos, procuram evitar, com o elogio acrítico dos “marginais”, a instituição de novos centros a partir destes. O melhor é que não haja centro, ou seja, que todos sejam o centro e que, ao mesmo tempo, nenhum seja o centro, como forma de driblar os abusos advindos de atitudes absolutistas. A APROXIMAÇÃO DO OLHAR: NARRATIVAS EM FOCO “Criaturas” – Ora – disse Martins, com desdém – ele pensa que está sendo original. Mas este truque é tão antigo quanto Pirandello. – Mais antigo até – disse Romualdo, sacudindo o gelo no seu copo. – Se não me engano, Flaubert já tinha escrito alguma coisa sobre o Autor como um Deus pairando sobre o próprio texto, invisível e onipresente ao mesmo tempo, guiando os destinos de seus personagens indefesos. – Criaturas se rebelando contra o Criador – continuou Martins. – Francamente. Não duvido nem que Ele use a palavra “metalinguagem”. Olha aí, já usou. Aristides olhou em volta, confuso. Não havia mais ninguém na sala, toda decorada em estilo Luiz XV, além dos três. – De quem é que vocês estão falando? – perguntou. – Dele – disse Romualdo, fazendo um gesto vago com seu copo. – Ele quem? – O Autor deste texto. Aristides sorriu, condescendente. – Não vão me dizer que vocês acreditam que existe um Autor que nos criou e que guia nossos passos. Logo vocês, pessoas sofisticadas, esclarecidas... 116 cenas e leituras de um mestre da palavra – Você não acredita? – perguntou Martins. – Num Autor onipotente que rege as nossas vidas? Não. – Você não acredita que existe um Autor que nos criou, nos colocou nesta página, numa sala decorada em estilo Luiz XV e nos deu estes diálogos para dizer? – Não. Martins e Romualdo trocaram um sorriso de cumplicidade. Romualdo aproximou seu rosto de Aristides. – Então me diga: como é que você está aqui? Você de repente se materializou no meio de um texto, com um copo de uísque na mão? Sem mais nem menos? – Meu caro – disse Aristides –, eu não pretendo ter uma explicação para todos os mistérios da existência humana. Só sei que a idéia de que eu sou um produto da imaginação de Alguém que na sua infinita bondade me botou nesta página é absurda. – Ninguém falou em infinita bondade – interrompeu Martins. – Existe um Autor que nos criou e que nos tem em suas mãos, mas o seu caráter é discutível. – Se o Autor realmente é bom – disse Romualdo – que Ele faça abrir aquela porta e por ela entrar... a Bruna Lombardi! Nisto, a porta se abriu. Os três levantaram-se, cheios de expectativa. Pela porta entrou... o Fantoni!4 – O que é que eu estou fazendo aqui? – perguntou o técnico. – Nada, nada. Você deve ter entrado pela porta errada – disse Romualdo. Fantoni retirou-se e fechou a porta. – Viu só? – disse Martins. – Existe um Autor que determina o nosso destino. Mas Ele zomba de nós. Assim como nos colocou numa sala Luiz XV, poderia ter-nos botado numa mina de sal, ou sentados em cadeiras duras ouvindo o Bolero de Ravel. Nada o impede de me matar agora mesmo. Ou de me transformar num sapo. Romualdo afastou sua cadeira ligeiramente, com medo que Martins caísse fulminado aos seus pés. Aristides protestou: – Ridículo! Eu comando o meu próprio destino. Se eu quiser, posso me levantar e sair por aquela porta agora mesmo. Nós todos podemos nos levantar, ir embora e acabar esta crônica na metade. – Então levanta e sai – desafiou Romualdo. Aristides continuou sentado. – Se você é livre para fazer o que bem entender, então abra a porta e saia desta página – insistiu Romualdo. Aristides não se moveu. – Outra coisa – continuou Romualdo. – Se você, como personagem, fosse dono do seu próprio destino, você escolheria estar logo aqui, num texto d’Ele? Eu preferia estar num texto de Drummond! – Eu sou livre – disse, calmamente, Asdrúbal. Martins sorriu, tristemente. – Não sei se você notou. Mas Ele mudou o seu nome. Agora, em vez de Aristides, você é Asdrúbal. E não pode fazer nada a respeito... – Mas eu não aceito isto – disse Asdrúbal. – E vocês notaram? Ele só se refere a Ele mesmo com maiúscula. 117 ensaios sobre a arte da palavra – É um tirano. Um megalomaníaco. Tem o poder absoluto. Enche uma página inteira com as palavras que Ele quer, com os personagens que Ele inventa. Dispõe de nossas vidas como se... – Mas nós temos que nos rebelar! – gritou Asdrúbal. – Temos que impor nossa liberdade! Nem que seja... – O quê? – disse Martins, desconfiado. Asdrúbal baixou a voz. Tinha tomado uma decisão. – Nem que seja pelo suicídio – disse. – Ele nos criou, e isso o torna superior. Mas nós, como Ele, podemos nos matar, e isto nos torna iguais. – Mas aqui não tem arma nenhuma – disse Martins, escondendo o seu copo. Um revólver materializou-se sobre uma mesinha laqueada. Asdrúbal o pegou. – Não! – disse Martins. – Você não vê? Ele está usando você. Ele precisa de uma cena forte para o clímax da crônica e está forçando você a estourar seus miolos. Os olhos de Asdrúbal brilharam. – E se eu matar um de vocês? Ou os dois? Assim eu me igualo a Ele. Eu também tenho a vida de vocês em minhas mãos. Os três agora estavam de pé. Romualdo recuou alguns passos. Martins ficou onde estava. Martins falou: – Isto é o que Ele quer, também. Criar suspense. À nossa custa. Asdrúbal continuou apontando sua arma para Martins. Romualdo começou a andar de lado, lentamente. Talvez pudesse se aproximar de Asdrúbal por trás e roubar a arma. – O que é que Ele quer de nós, afinal? – perguntou Asdrúbal, sem baixar a arma. – O que Ele queria, já conseguiu. – E o que era? – Encher esta página até aqui. Romualdo estava quase às costas de Asdrúbal. Preparava-se para atirar-se sobre ele. – Onde é que isto vai acabar? – perguntou Asdrúbal. – Aqui – disse Martins. (In: VERISSIMO, L. F. Sexo na cabeça. Porto Alegre: L&PM, 1980, pp. 71-74). A narrativa acima transcrita apresenta elementos que procuram instaurar considerações relevantes sobre o processo de criação literária, apresentando-se como crítica de si mesma ao colocar em questão o seu próprio fazer, o seu próprio inventar, fazendo com que passe a ser criadora e, concomitantemente, inquiridora de seus valores. O autor incorpora discussões teóricas sobre a construção da crônica, numa clara referência metalingüística, que se distingue pelo fato de ser apresentada por meio dos diálogos entre os personagens da narrativa, revelando fatores tanto intertextuais (nas alusões a escritores como Luigi 118 cenas e leituras de um mestre da palavra Pirandello, Gustave Flaubert e Carlos Drummond de Andrade) quanto intratextuais (quando o texto retoma expressões do próprio texto). Este procedimento pode ser identificado na fala do personagem Martins, quando de sua revolta contra a onipresença do autor: “Criaturas se rebelando contra o Criador (...). Francamente. Não duvido nem que Ele use a palavra ‘metalinguagem’. Olha aí, já usou”. Além disso, em tom “autodifamatório”, o narrador apresenta as preferências de seus personagens, inscrevendo a comicidade no texto, pois “se você, como personagem, fosse dono do seu próprio destino, você escolheria estar logo aqui, num texto d’Ele? Eu preferia estar num texto de Drummond!”. A comicidade encontra-se ainda no uso pelo autor da letra maiúscula para referir-se a si próprio: “E vocês notaram? Ele só se refere a Ele mesmo com maiúscula”. Como se pode notar, os personagens, após a ação, lêem a crônica da qual participam. No que se refere aos elementos intertextuais presentes na narrativa, destaca-se a referência a Luigi Pirandello. O intertexto, nesse caso, está relacionado à peça Seis personagens à procura de um autor, marco fundamental da obra dramática do escritor italiano. Nessa peça, o autor mostra um grupo de atores em ensaio, sob a supervisão de um diretor; o trabalho é interrompido pela chegada de seis pessoas que se apresentam como personagens – nascidas da imaginação de um autor que depois se recusou a escrever sua história – e que pedem aos atores que representem as cenas do drama inscrito nelas e “vivido” por elas. A peça prossegue pela luta das personagens com o diretor, transformado em autor; e da luta entre as várias personagens em desacordo constante sobre o significado ou mesmo sobre os fatos da história que cada uma viveu a seu modo. O diálogo entre o Diretor (personagem “real”) e o Pai (personagem “fictício”) revela a independência assumida pelas personagens quando do processo de sua criação pelo autor: O DIRETOR (de repente, pondo-se diante do Pai, com uma idéia que lhe surgiu): Eu queria saber, porém, quando é que se viu um personagem sair do seu papel e pôr-se a perorar assim, como o senhor está fazendo, e a propô-lo, a explicá-lo. Pode dizer-me? Eu jamais o vi! 119 ensaios sobre a arte da palavra O PAI: Jamais o viu, senhor, porque os autores costumam esconder os tormentos de sua criação. Quando os personagens são vivos, realmente vivos, diante de seu autor, este não faz outra coisa senão segui-los, nas palavras, nos gestos que, precisamente, eles lhe propõem. E é preciso que ele os queira como eles querem ser; e ai dele se não fizer isso! Quando uma personagem nasce, adquire logo tal independência, mesmo em relação ao seu autor, que pode ser imaginado por todos, em outras várias situações, nas quais o autor nem pensou colocá-lo, e adquirir também, às vezes, um significado que o autor nunca sonhou dar-lhe! (PIRANDELLO, 1981: 447). O que o texto de Pirandello procura enfatizar é que os personagens produzidos pelos escritores adquirem vida própria e são transpostos para a realidade de formas diversas. A partir da narrativa, Luis Fernando Verissimo retoma a idéia de Pirandello sem, no entanto, “seguir seus personagens”, pois opera com certas restrições quanto à independência das criaturas em relação ao seu criador. O autor brasileiro, além de enfatizar o papel desempenhado pela subjetividade quando da seleção dos eventos a serem narrados, aborda ainda aspectos relacionados à estrutura narrativa, tais como a necessidade de prender a atenção do leitor por meio da instauração do “clímax”: – É um tirano. Um megalomaníaco. Tem o poder absoluto. Enche uma página inteira com as palavras que Ele quer, com os personagens que Ele inventa. Dispõe de nossas vidas como se... – Mas nós temos que nos rebelar! – gritou Asdrúbal. – Temos que impor nossa liberdade! Nem que seja... – O quê? – disse Martins, desconfiado. Asdrúbal baixou a voz. Tinha tomado uma decisão. – Nem que seja pelo suicídio – disse. – Ele nos criou, e isso o torna superior. Mas nós, como Ele, podemos nos matar, e isto nos torna iguais. – Mas aqui não tem arma nenhuma – disse Martins, escondendo o seu copo. Um revólver materializou-se sobre uma mesinha laqueada. Asdrúbal o pegou. – Não! – disse Martins. – Você não vê? Ele está usando você. Ele precisa de uma cena forte para o clímax da crônica e está forçando você a estourar seus miolos (1980: 73-74). Compreendendo o clímax de uma narrativa como “o ponto alto da complicação, aquele em que ela se encontra com a solução 120 cenas e leituras de um mestre da palavra (...). Momento que pede a solução, aponta para ela, onde o conflito entre protagonista e antagonista atinge o máximo de violência” (COUTINHO, 1978a: 40), o narrador enfatiza que esta é uma crônica que fala sobre as características dos artefatos narrativos e, dessa forma, falar sobre clímax é o próprio clímax da crônica, ou seja, a tentativa de suicídio por parte de um dos personagens. Tal processo se repete em relação ao suspense instaurado no final do texto, quando “os olhos de Asdrúbal brilharam. – E se eu matar um de vocês? Ou os dois? Assim eu me igualo a Ele. Eu também tenho a vida de vocês em minhas mãos. Os três agora estavam de pé. Romualdo recuou alguns passos. Martins ficou onde estava. Martins falou: – Isto é o que Ele quer, também. Criar suspense. À nossa custa”. Para criar o suspense, o autor sabe que precisa dispor o seu material de tal forma que desperte e mantenha o interesse do leitor, pois a narrativa não causa o efeito de modo instantâneo, mas por uma progressiva revelação de suas partes. A impressão e o interesse são obtidos e mantidos pelo suspense, isto é, o estado emocional criado no leitor pela incerteza do que vai ocorrer depois, e de como será o desenlace da estória (Cf. COUTINHO, 1978a: 44). O autor fala sobre a necessidade do suspense na crônica e logo após cria esse suspense: “Asdrúbal continuou apontando sua arma para Martins. Romualdo começou a andar de lado, lentamente. Talvez pudesse se aproximar de Asdrúbal por trás e roubar a arma”. Este procedimento evidencia que “o efeito de intensidade se relaciona com momentos de complicação na trama” (CUNHA, 1994: 39). Expressões como “Os olhos de Asdrúbal brilharam”; “Romualdo recuou alguns passos. Martins ficou onde estava”; “Romualdo começou a andar de lado, lentamente”; entre outras, são artifícios usados para criar a expectativa no que se refere ao desfecho da narrativa, despertando o interesse do leitor. Metalinguagem, intertextualidade, subjetividade, clímax e suspense são teorizações sobre a criação literária. Assim, a narrativa pode ser inscrita nas características pós-modernas da literatura, pois discute a si própria como construção discursiva, numa tentativa de conciliar teoria e prática: falar sobre a criação literária a partir de uma criação literária, característica que pode ser definida como auto-reflexiva, e, por conta disso, fundamentalmente pós- 121 ensaios sobre a arte da palavra moderna (HUTCHEON, 1991: 33). O ensaísmo que perpassa essa crônica de Luis Fernando Verissimo aparece como um exercício metalingüístico, a partir do qual o autor examina os elementos do texto em elaboração. “Nova carta de intenções” Parece que ficou assim a nova carta de intenções do Brasil ao FMI: “Querido Efe: Não é preciso dizer que estamos envergonhadíssimos porque não cumprimos nenhuma das promessas da nossa última carta. Sei que você ficou aborrecido conosco e com razão. A Ana Maria (que moça simpática!) esteve aqui e nos passou um pito merecido. Mas depois aceitou nossa explicação técnica para o ocorrido – “o Brasil é assim mesmo” – e na hora de ela embarcar já éramos amigos de novo. Por sinal, você recebeu a goiabada? Bom proveito. Corre uma história por aqui que achamos que você gostaria de saber. Só como amostra do espírito irreverente do brasileiro. Como você sabe, muita gente aqui diz que a receita do FMI para pôr ordem na economia brasileira é muito ortodoxa e não leva em conta fatores locais. E estão lembrando, como comparação, a história da ajuda soviética aos egípcios, na guerra deles contra Israel. É assim. Você vai dar boas risadas. Israel estava invadindo o Egito e os egípcios não sabiam como se defender. Pensaram, pensaram e decidiram pedir conselhos à Rússia. Afinal, quem entendia mais de expulsar invasores do que a Rússia? Napoleão tinha invadido a Rússia e sido derrotado. Hitler tinha invadido a Rússia e sido derrotado. Pediram ajuda aos russos. Da mesma maneira que o Brasil pediu ajuda ao FMI, certo? Você vai adorar. Não havia tempo para chegar um conselheiro militar russo ao Egito. As consultas tinham que ser feitas por telegrama. E a primeira mensagem dos egípcios foi transmitida: - Tropas israelenses avançam nosso território. O que fazer? Os russos responderam: - Deixa eles virem. Mas como? Nenhuma resistência? Nada? Mas os russos entendiam do assunto e os egípcios deixaram os israelenses virem. Seguiu a segunda mensagem dos egípcios: - Tropas israelenses continuam avançando nosso território. O que fazer? - Deixa eles virem. Os egípcios estranharam, mas aceitaram o conselho. Os russos entendiam do assunto. Mas chegou a um ponto em que os egípcios entraram em pânico. Era preciso fazer alguma coisa. Os israelenses não paravam de avançar. Logo estariam no Cairo. Nova mensagem: - Israelenses a poucos quilômetros capital. O que fazer? - Deixa eles virem. 122 cenas e leituras de um mestre da palavra Os egípcios não se contiveram e mandaram outro telegrama em seguida, pedindo explicações sobre a estratégia russa. E os russos responderam: - Inverno chegando. Breve neve imobilizará inimigo. Não é boa? Eu sabia que você ia gostar. Claro que não reflete, em absoluto, o nosso pensamento. Se bem que estranhamos quando a Ana Maria desceu do avião de casaco de pele...Não, não. É brincadeira. Pelo amor de Deus. Você ficou sentido? Foi só uma piada. Sabe como é o pessoal. Brasileiro gosta tanto de piadas que duas, hoje, são presidenciáveis. Mas, falando sério. Estas são nossas intenções. Desta vez para valer. Mesmo. Por tudo que é mais sagrado. Que caiam o Delfim e o bustier da Xuxa, se estivermos mentindo. Desta vez a inflação abaixa ou não nos chamamos Bolívia. Nosso plano é o seguinte: ninguém mais come. É um antigo hábito brasileiro que precisa acabar. Assim, não só cai a pressão inflacionária do item alimentação como diminuem os casos de intoxicação alimentar e os conseqüentes gastos com a saúde. Diminuirão também, obviamente, os investimentos em esgotos, obras de saneamento, etc. Todo o alimento produzido no país poderá ser exportado para criar divisas. Claro que haverá protestos. Mas donos de restaurantes e clínicas de emagrecimento podem passar para o rendoso negócio das funerárias. Hein? Hein? Você ainda se orgulhará de nós, Efe! Um abraço do Brasil”. (In: VERISSIMO, L. F. A mulher do Silva. Porto Alegre: L&PM, 1984, pp. 106-108). Nesta narrativa, destaca-se o uso da comicidade crítica, pois Luis Fernando Verissimo, por meio da voz emprestada aos representantes do governo brasileiro, cria um narrador que se proclama como porta-voz da nação e suas palavras levam à denúncia, séria, da dependência tanto econômica quanto cultural. Tal atitude literária aparece disfarçada pela instauração de uma voz, que se quer imparcial, a introduzir o assunto da crônica: “Parece que ficou assim a nova carta de intenções do Brasil ao FMI”. A expressão “parece que ficou assim” cria a ilusão de falta de endereço quanto à origem das informações. No entanto, sabe-se que as relações internacionais são feitas por pessoas ligadas ao poder público. Dessa forma, pode-se evidenciar a crítica à política de relações exteriores empreendida pelas autoridades brasileiras. Como visto, na linha inicial que separa as vozes que dialogam na crônica, quem fala é uma voz que se quer imparcial, servindo para indicar o assunto de que trata a narrativa: uma carta de intenções escrita pelo governo brasileiro expondo um relatório sobre a situação atual do país. Logo após, o autor insere o que seria este 123 ensaios sobre a arte da palavra relatório, caracterizado por ser redigido numa linguagem coloquial, adotada por amigos íntimos (como se vê no uso do apelido “Querido Efe” e de estratégias para acalmar o F.M.I. – Fundo Monetário Internacional –, tais como a bajulação inscrita na oferta da goiabada). Com relação a este aspecto, pode-se evidenciar que o riso é deflagrado pela transposição da linguagem solene deste tipo de documento para a linguagem trivial, acarretando, com isso, a mudança de tonalidade da “carta” e emprestando ao texto uma de suas qualidades risíveis fundamentais. O teor da carta posiciona o governo na condição de subordinado a grupos financeiros de capital estrangeiro: “Não é preciso dizer que estamos envergonhadíssimos porque não cumprimos nenhuma das promessas da nossa última carta”. Nesse trecho, o narrador faz referência ao não-cumprimento das metas anteriores e, pedindo desculpas (pois “o Brasil é assim mesmo”), tenta subornar o FMI com um “presentinho”. Em outras palavras, a descrição possibilita caracterizar o autor do relatório como subserviente e corrupto: “Querido Efe: Sei que você ficou aborrecido conosco e com razão. A Ana Maria (que moça simpática!) esteve aqui e nos passou um pito merecido. Mas depois aceitou nossa explicação técnica para o ocorrido (...) e na hora de ela embarcar já éramos amigos de novo. Por sinal, você recebeu a goiabada? Bom proveito”. A narrativa leva ao riso, mas este riso encobre críticas às instituições governamentais devido ao uso do fenômeno irônico que, ao estabelecer relações com dado público, procura modificar seu posicionamento frente a determinadas questões, o que aponta para a seriedade presente em muitas manifestações cômicas, contrariando o ditado popular: “muito riso, pouco siso”. Após a exposição temática, o narrador apresenta as medidas impostas pelo Fundo Monetário Internacional: elas são descontextualizadas, por não levarem em conta fatores locais. O narrador instaura a comicidade fazendo uso da ilustração: cita o exemplo do pedido de ajuda que teria sido feito pelos egípcios aos russos por ocasião da Guerra dos Seis Dias, ocorrida entre Israel e os países árabes, que culminaria com a vitória dos judeus. Após o relato da fracassada solicitação aos russos, o narrador enfatiza que ela “não reflete, em absoluto, o nosso pensamento. [No entanto] 124 cenas e leituras de um mestre da palavra estranhamos quando a Ana Maria desceu do avião de casaco de pele... Não, não. É brincadeira. Pelo amor de Deus. Você ficou sentido?”. Se não reflete o pensamento brasileiro, por que então fazer uso da ilustração? Pode-se cogitar que o respeito excessivo, a reverência diante do objeto impede que se tenha em relação a ele uma atitude crítica, que se possa vê-lo nos aspectos também negativos: é preciso que se crie a perspectiva de destemor no trato com o mundo para que se tenha frente a ele uma atitude efetivamente crítica. Este pode ser entendido como um dos papéis do riso irônico despertado pelo texto. Assim, o riso nivela ao desierarquizar a autoridade das vozes presentes no texto, processo engendrado por uma certa carnavalização instaurada pelo autor. Dando continuidade à narrativa, as autoridades brasileiras informam suas intenções, de forma “séria”, pois “desta vez para valer. Mesmo. Por tudo que é mais sagrado. Que caiam o Delfim e o bustier da Xuxa, se estivermos mentindo. Desta vez a inflação abaixa ou não nos chamamos Bolívia”. Com este recurso, o narrador afirma algo para que se infira o contrário. No final do texto, é apontada a solução para o Brasil: eliminar o hábito de comer já que este “é um antigo hábito brasileiro que precisa acabar”. As conseqüências de tal medida trariam resultados imediatos: “não só cai a pressão inflacionária do item alimentação como diminuem os casos de intoxicação alimentar e os conseqüentes gastos com a saúde. Diminuirão também, obviamente, os investimentos em esgotos, obras de saneamento, etc. Todo o alimento produzido no país poderá ser exportado para criar divisas”. No entanto, as autoridades brasileiras previnem quanto aos protestos que tal medida possa gerar. Este protesto não virá da população de baixa renda, mas sim dos “donos de restaurantes e clínicas de emagrecimento [que] podem passar para o rendoso negócio das funerárias. Hein? Hein?” e a crônica termina com a promessa de que “Você ainda se orgulhará de nós, Efe! Um abraço do Brasil”. Como se percebe, o absurdo da proposta é ridicularizado pelo autor na medida em que esta é apresentada pelo governo brasileiro, caracterizado agora como impopular por implantar soluções antidemocráticas: sem peso para a resolução dos 125 ensaios sobre a arte da palavra problemas surgidos na área social. Portanto, a narrativa pode ser caracterizada por duas qualidades fundamentais: a comicidade crítica (ao ridicularizar o governo, realiza um processo de desierarquização, pois o riso despertado por esta ridicularização nivela as pessoas, destituindolhes a aura de autoridade); e a incorporação de elementos ligados à linguagem oral inscrita no estilo informal da narrativa, característico das cartas enviadas a amigos íntimos. A linguagem coloquial é empregada principalmente no que se refere à intimidade das formas de tratamento, tais como o apelido “Querido Efe”, por meio do qual o autor refere-se à instituição internacional; e através do uso de frases como “corre uma história por aqui que achamos que você gostaria de saber”. Esse último aspecto pode ser descrito como sintoma de um processo de busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo, o que reafirma o fato de que “num país como o Brasil, onde se costumava identificar superioridade intelectual e literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo nos nossos dias” (CANDIDO, 1992: 16). De acordo com Linda Hutcheon, a cultura pós-moderna, por ser deliberadamente contraditória, usa e abusa das convenções do discurso: “Ela sabe que não pode escapar ao envolvimento com as tendências econômicas (capitalismo recente) e ideológicas (humanismo liberal) de seu tempo. Não há saída. Tudo o que ela pode fazer é questionar a partir de dentro” (1991: 16). Na crônica analisada, destaca-se o fato de que não é alguém que fala sobre o governo brasileiro: é o próprio governo que faz o uso da palavra na narrativa. Ocorre assim a inserção das palavras do poder público para que estas sejam ridicularizadas por meio do riso irônico sugerido pelo texto, o que mostra a preocupação em criticar as instituições, a partir do que seria seu próprio discurso. Revela-se assim a utilização da comicidade por parte do autor com o objetivo de desafiar a autoridade a partir de seu próprio interior, empregando a ironia para comprometer e também para criticar determinadas atitudes. Tal posição assume tons cômicos quando o autor transforma a “carta de intenções” — documento 126 cenas e leituras de um mestre da palavra oficial produzido pelos dirigentes públicos dos países “pobres”, com o objetivo de apresentar uma espécie de prestação de contas e apontar as metas futuras a serem alcançadas — em simples “carta”, forma de comunicação mais informal. “Racismo” Escuta aqui, ó criolo... — O que foi? — Você andou dizendo por aí que no Brasil existe racismo. — E não existe? — Isso é negrice sua. E eu que sempre te considerei um negro de alma branca... É, não adianta. Negro quando não faz na entrada... — Mas aqui existe racismo. — Existe nada. Vocês têm toda a liberdade, têm tudo o que gostam. Têm carnaval, têm futebol, têm melancia... E emprego é o que não falta. Lá em casa por exemplo, estão precisando de empregada. Pra ser lixeiro, pra abrir buraco, ninguém se habilita. Agora pra uma cachacinha e um baile estão sempre prontos. Raça de safados. E ainda se queixam! — Eu insisto, aqui tem racismo. — Então prova, Beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara? Naquela vez que te encontrei conversando com a minha irmã, não te pedi com toda a educação que não aparecesse mais na nossa rua? Hein, Tição? Quem apanhou de toda a família foi minha irmã. Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinha confundido a menina com alguma empregadoza de cabelo ruim, não, que foi só um engano porque negro é burro mesmo. Fui teu amigão. Isso é racismo? — Eu sei, mas... — Onde é que está o racismo então? Fala, Macaco. — É que outro dia eu quis entrar de sócio num clube e não me deixaram. — Bom, mas pera um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês não têm clubes de vocês? Vão querer entrar nos nossos também? Pera um pouquinho. — Mas isso é racismo. — Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente faz diferença entre as pessoas por causa da cor da pele, como nos Estados Unidos. É uma coisa completamente diferente. Nós estamos falando do crioléu começar a freqüentar clube de branco, assim sem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo. — Sim, mas... — Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar nos clubes de vocês? Deus me livre! — Pois é, mas... — Não, tem paciência. Eu não faço diferença entre negro e branco, pra mim é tudo igual. Agora, eles lá e eu aqui. Quer dizer, há um limite. 127 ensaios sobre a arte da palavra — Pois então. O... — Você precisa aprender qual é o seu lugar, só isso. — Mas... — E digo mais. É por isso que não existe racismo no Brasil. Porque aqui o negro conhece o lugar dele. — É, mas... — E enquanto o negro conhecer o lugar dele, nunca vai haver racismo no Brasil. Está entendendo? Nunca. Aqui existe diálogo. — Sim, mas... — E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba aí que é isso que tu faz bem. (VERISSIMO, L. F. Comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1996, pp. 59-60). Engraçado, não? Seguem abaixo considerações, nada engraçadas, sobre alguns artifícios usados no texto para ironizar o preconceito para com os negros na sociedade brasileira. A narrativa é um bom exemplo para verificar a eficácia do procedimento irônico, haja vista ser ele explicitamente irônico. Pode-se constatar que a ironia aparece no texto acima como um dos instrumentos que marcam sua heterogeneidade. Trabalhando sob duas perspectivas — colocando-se na voz do branco e, ao mesmo tempo, chamando a atenção sobre o negro —, o texto faz o jogo do interesse estratégico da ironia: “o autor de uma enunciação irônica produz um enunciado que possui, a um só tempo, dois valores contraditórios, sem, no entanto, ser submetido às sanções que isso deveria acarretar” (MAINGUENEAU, 1997: 100). Fica evidente que a narrativa tem por objetivo criticar e chamar a atenção da opinião pública para o racismo no Brasil. Mas, chamar a atenção para esse fato, no texto, não partiu de um extenso levantamento histórico e de índices para expor a situação atual do negro. Estrategicamente, o autor partiu de um mesmo enunciado para dois destinatários: dirige-se ao branco, desqualificando-o por meio de sua descrição como personagem arrogante; e ao negro defensivamente, revelando a sua situação de vítima da crueldade do branco. Em outras palavras: no texto, anulase, paradoxalmente, o que se enuncia no próprio ato de enunciar. Para transcrever a ironia, o enunciador confiou no contexto e nele recuperou elementos contraditórios: a situação do negro brasileiro e a atitude, historicamente marcada, do branco frente aos negros. A ironia aparece, assim, como uma espécie de armadilha que permite frustrar “o assujeitamento dos enunciadores às regras da 128 cenas e leituras de um mestre da palavra racionalidade e da conveniência públicas” (MAINGUENEAU, 1997: 100). O texto evidencia, portanto, o caráter ambíguo da ironia e o valor contraditório encontrado em alguns enunciados. Além disso, revela a diversificação de meios a serem utilizados para sua transcrição: caráter hiperbólico, aspas, pontos de exclamação etc. Com tais estratégias, o enunciador pode assumir as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam. Muitas das narrativas de Luis Fernando Veríssimo, com certa freqüência, buscam realçar o perigo da universalização dos valores, relacionando-a ao risco que se corre ao pretender tornar familiar o que é estranho através do uso de valores pré-determinados. O ataque, nesse caso, está direcionado a todas as formas de preconceitos, no sentido que a palavra adquire quando é separada pelo hífen: pré-conceitos, ou seja, conceitos definidos antes de um efetivo contato ou compreensão daquilo ou daqueles que apresentam valores diferentes. Como amostra desse tipo de procedimento, destaca-se aqui o texto acima transcrito, por meio do qual o autor procura ridicularizar aquelas idéias que fazem do cenário brasileiro um espaço onde conviveriam democraticamente todas as raças. Trata-se de uma crônica – intitulada “Racismo”, publicada em jornal no dia 14/05/1975 e depois reunida em livro (Comédias da vida pública, 1996) – que apresenta como estrutura narrativa o diálogo entre um branco e um negro. Ao invés de realizar um estudo sobre a situação marginalizada dos negros no Brasil, o autor dá voz ao branco para que este então se denuncie. Tal característica é reforçada pela linguagem adotada para se referir ao negro: “Criolo”, “negrice”, “negro de alma branca”, “negro quando não faz na entrada...”, são expressões comumente relacionadas a atitudes preconceituosas em relação aos negros. Com isso, o autor procura mostrar que o preconceito está presente no cotidiano brasileiro em expressões muitas vezes consideradas inocentes. Além disso, seu discurso está carregado de imagens que relegam ao negro profissões e valores considerados inferiores. Um dos trechos mais corrosivos do texto está relacionado à delimitação de espaços e situações comumente relacionadas aos negros: — Eu insisto, aqui tem racismo. — Então prova, Beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara? 129 ensaios sobre a arte da palavra Naquela vez que te encontrei conversando com a minha irmã, não te pedi com toda a educação que não aparecesse mais na nossa rua? Hein, Tição? Quem apanhou de toda a família foi minha irmã. Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinha confundido a menina com alguma empregadoza de cabelo ruim, não, que foi só um engano porque negro é burro mesmo. Fui teu amigão. Isso é racismo? — Eu sei, mas... — Onde é que está o racismo então? Fala, Macaco. — É que outro dia eu quis entrar de sócio num clube e não me deixaram. — Bom, mas pera um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês não têm clubes de vocês? Vão querer entrar nos nossos também? Pera um pouquinho. — Mas isso é racismo. O branco, a partir de resposta marcadamente contraditória, explica o que entende por racismo, usando como exemplo o contexto norte-americano: — Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente faz diferença entre as pessoas por causa da cor da pele, como nos Estados Unidos. É uma coisa completamente diferente. Nós estamos falando do crioléu começar a freqüentar clube de branco, assim sem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo. — Sim, mas... — Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar nos clubes de vocês? Deus me livre! (1996: 60). Ao final da narrativa, o branco explica que no Brasil não existe racismo porque, “aqui”, o negro conhece o seu lugar: — É, mas... — E enquanto o negro conhecer o lugar dele, nunca vai haver racismo no Brasil. Está entendendo? Nunca. Aqui existe diálogo. — Sim, mas... — E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba aí que é isso que tu faz bem (1996: 60). Nesse último trecho, aparecem dois elementos fundamentais relacionados ao preconceito racial ainda hoje disseminado no contexto brasileiro. O branco diz que no Brasil “existe diálogo”, mas a própria narrativa enfatiza o privilégio do qual o branco se investe, já que o negro não consegue expor sua opinião sobre o tema, o que fica evidente no uso de expressões como “É, mas...”; 130 cenas e leituras de um mestre da palavra “Sim, mas...”; “Eu sei, mas...”. A reincidência na utilização da conjunção adversativa “mas”, bem como as reticências presentes nas frases proferidas pelo negro, procuram realçar o fato de que o negro possui opiniões que divergem das do branco; contudo, suas falas são interrompidas constantemente pelo branco. Assim, o que era diálogo, acaba tornando-se um monólogo, no qual o branco ocupa a maior parte das cenas. Quando quer continuar a expor suas opiniões, o negro é acusado de impertinente. E aí aparece novamente a demarcação (apartheid?) de espaços destinados ao negro: bater samba seria função exclusiva do negro, única coisa que ele sabe fazer bem. Recurso constante na produção de Luis Fernando Verissimo, a arma utilizada para ridicularizar a atitude preconceituosa do branco com relação ao negro é a ironia. O autor faz com que o branco exponha opiniões que revelam posições contraditórias. O texto indica questões pertinentes: se a democracia racial no Brasil não funciona nem no discurso, imagine-se então na prática? Ou ainda que uma coisa pode ser compreendida como decorrente da outra: por não haver respeito no discurso, também não há na prática? O texto de Luis Fernando Verissimo é ainda um exemplo significativo de como a comicidade pode servir para fins opostos: ao incorporar em seu texto algumas das expressões ligadas às piadas preconceituosas contadas sobre os negros, o autor inverte o ataque, fazendo do riso uma arma para condenar o preconceito, ao invés de realçá-lo, o que ocorre constantemente em muitas dessas piadas. A narrativa aponta, portanto, para o fato de que sustentar a idéia de democracia racial brasileira é uma atitude equivocada sob vários aspectos, já que serve primordialmente para frear as reivindicações dos negros, no que se refere à conquista de maior espaço na sociedade. Como manifestação que pode ser relacionada ao pós-modernismo, essas reivindicações procuram sustentar-se, por sua vez, no direito à existência de coletividades culturais étnicas, religiosas, morais, diversas umas das outras (Cf. PELOSO, 1991: 169). Contudo, na identificação dessas diferenças aparece, como aspecto significativo, o fato de que as atenções podem ser direcionadas também às possibilidades de articulação de interesses comuns – presentes em reivindicações como as dos “periféricos”, 131 ensaios sobre a arte da palavra das mulheres, entre outros –, para evitar, sobretudo, uma fixação estreita na diferença (Cf. EAGLETON, 1997: 324). “A praga” Ninguém sabe como se entenderam, mas se entenderam. E a primeira coisa que o índio deu a Colombo foi — um tomate. Era o primeiro encontro na primeira ilha no primeiro dia, e o próprio sol parecia ter chegado mais perto para não perder a cena. Fazia calor, e o tomate brilhava ao sol como uma maçã dourada. — Um pomo d’oro! – exclamou Colombo. — Um tomate – explicou o índio. — Para a salada. Para o molho. — Finalmente, algo para pôr fim à brancura do espaguete! – disse Colombo, emocionado. — Marco Polo só descobriu a massa. Eu descobri a macarronada. E Colombo aceitou o tomate e deu em troca uma miçanga. O índio deu uma batata a Colombo, que o olhou com desprezo. Mas o índio descreveu (com mímica, com a linguagem mágica dos encontros míticos) sua importância para a história ocidental, desde a alimentação das massas camponesas da Europa até sua versão noisette, ou fritas com um Big Mac. E Colombo a aceitou e deu em troca um espelhinho. E o índio deu a Colombo o fruto do cacaueiro e falou no que o chocolate significaria para o mundo, em especial para a Bahia e a Suíça, e nas delícias do bombom por vir. E Colombo guardou o cacau na algibeira e deu em troca um vintém. E o índio deu a Colombo uma folha de tabaco, e falou nos prazeres do fumo, e de como ele afetaria os hábitos civilizados. E se quisessem algo mais forte, tinham uma planta que dava coca, e um barato ainda maior. E tudo isto Colombo aceitou em troca de contas. E mais uma espiga de milho. E mais um papagaio. Até que, com a algibeira cheia, Colombo disse: — Chega de miudezas. Agora eu quero o ouro. — O quê? — Ouro. Isso que você tem no nariz. — E o que você dá em troca? – perguntou o índio, antevendo algo espetacular, como uma luneta. Mas Colombo apontou sua pistola para a cabeça do índio e disse “Isto”, e disparou. Depois mandou seus homens recolherem todo o ouro da ilha, nem que precisassem arrancar narizes. No chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo e praguejou. Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolate enchesse suas artérias de colesterol, que o fumo desse câncer, a cocaína o corrompesse e o ouro destruísse sua alma. E que o tomate — desejou o índio com seu último suspiro — se transformasse em ketchup. E assim aconteceu. (In: VERISSIMO, L. F. Comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1995, pp. 54-55). 132 cenas e leituras de um mestre da palavra Destaca-se nessa crônica o papel representado pela ironia na construção paradoxal do texto, já que a ironia pode ser definida como uma das “marcas deixadas pela enunciação no enunciado, elementos do discurso que remetem ao eu que o organiza” (FIORIN, 1994: 55). Este fenômeno faz parte de um processo comunicativo no qual um locutor procura transmitir sua opinião sobre alguma coisa ou sobre alguém a um interlocutor utilizando-se do disfarce, espécie de contra-verdade interna, pois o que o sujeito falante deseja transmitir não pode ou não deve ser dito de maneira explícita. No discurso irônico, o autor instaura intencionalmente a contradição em seu texto, deixando pistas para que o leitor perceba que o que está sendo dito deve ser lido de outra forma. Desse modo, a ironia é usada como uma poderosa arma para levar adiante o jogo da argumentação e para realçar o ridículo das opiniões que se quer combater. Trata-se, nesse caso, da argumentação pelo ridículo, na qual certas atitudes ou palavras, difíceis de se suportarem, devem ser sancionadas pelo riso: não o riso despretensioso e ingênuo provocado pela comicidade benevolente, aquela que perdoa, mas sim o riso que integra elementos de sarcasmo e de prazer maldoso existentes no riso de zombaria, que condena determinadas situações e atitudes. Para Vladimir Propp, a definição da ironia não apresenta grandes dificuldades: “diz-se algo positivo, pretendendo, ao contrário, expressar algo negativo, oposto ao que foi dito” (1992: 125). De acordo com Propp, a ironia constitui um dos aspectos da zombaria e nisto está sua comicidade: “o fato de o defeito vir a ser definido por meio da qualidade que se lhe opõe, coloca em evidência e realça o próprio defeito. A ironia é particularmente expressiva na linguagem falada, quando faz uso de uma particular entonação escarnecedora” (1992: 125). Como não dispõe do apoio da gesticulação, própria da linguagem oral, o sujeito enunciador precisa articular de forma criteriosa as estratégias ligadas à palavra escrita, tais como os elementos figurativos – metáforas, hipérboles etc. – ou palavras que toma emprestado de outras vozes, de outros discursos e de outras situações de comunicação. Essas estratégias são utilizadas tendo como meta subverter o significado primeiro das palavras dos “outros”. 133 ensaios sobre a arte da palavra Com relação à crônica de Luis Fernando Verissimo, o autor, sem abandonar as figuras, privilegia a segunda estratégia, pois subverte o discurso do “bom branco europeu” ao descrever situações nas quais o mesmo aparece como bárbaro, caracterizandoo a partir de enunciados como “o índio deu uma batata a Colombo, que o olhou com desprezo”; “chega de miudezas. Agora eu quero o ouro”; ou ainda “Colombo apontou sua pistola para a cabeça do índio (...) e disparou”. O discurso irônico, dentro dessa perspectiva, faz parte de processos nos quais um mesmo texto aparece em formações discursivas diferentes, acarretando com isso variações de sentido, o que “pode servir para a idéia de que um determinado texto, dependendo de seu espaço de realização, atualizará elementos que autorizam diferentes significações, ou mesmo significações contraditórias” (BRAIT, 1996: 36). É o que ocorre no texto do cronista ao expor conceitos e idéias ligadas à “descoberta” da América, em que transparece a relação conflituosa estabelecida entre Velho e Novo Mundos, encontro compreendido por alguns como benéfico aos americanos, mas que para outros marca o extermínio de culturas inteiras, simbolizado na morte do índio, devido à intolerância por parte do europeu ganancioso. Num estudo sobre as relações estabelecidas em torno da alteridade, Tzvetan Todorov descreve as justificativas dos espanhóis para “civilizar os bárbaros da América”. O trecho a seguir, extraído da obra de Todorov, foi elaborado em 1550 pelo filósofo espanhol Gines de Sepúlveda e serve para ilustrar as concepções do mundo europeu em relação aos nativos americanos: Em prudência como em habilidade, e em virtude como em humanidade, esses bárbaros são tão inferiores aos espanhóis quanto as crianças aos adultos e as mulheres aos homens; entre eles e os espanhóis, há tanta diferença quanto entre gente feroz e cruel e gente de uma extrema clemência, entre gente prodigiosamente intemperante e seres temperantes e comedidos e, ousaria dizer, tanta diferença quanto entre os macacos e os homens (TODOROV, 1996: 150). Como se pode notar, o que Luis Fernando Verissimo procura ridicularizar em seu texto é a noção eurocêntrica tradicionalmente veiculada pelos conquistadores de que o “descobrimento da América” empreendido pelos europeus foi uma ação civilizadora e, 134 cenas e leituras de um mestre da palavra portanto, uma contribuição ao desenvolvimento dos povos que habitavam este continente. A narrativa busca expor, a partir da inversão de características comumente veiculadas, o choque ocorrido entre culturas diferentes, no qual o europeu, por se considerar culturalmente superior, incumbe-se da tarefa de “civilizar” os índios americanos em troca do enriquecimento advindo das riquezas da nova terra. O autor ironiza este encontro ao descrever os efeitos destruidores ocasionados pelo uso desmedido dos produtos americanos que, por serem obtidos de forma injusta, trouxeram prejuízos aos “filhos de Colombo”. Tal ironização aparece com maior ênfase na caracterização depreciativa do personagem Colombo, apresentado como alguém pouco “civilizado”, incapaz de reconhecer as riquezas do Novo Mundo: os alimentos e as palavras proféticas do índio. Utilizando estas estratégias, o que a narrativa permite enfatizar é a continuidade do passado no presente: a inserção de anacronismos propositais — expressos na alternância entre informações ligadas à época do “descobrimento” e outras ligadas ao momento atual (“ketchup” e “Big Mac”) — sugere que os valores eurocêntricos, em voga no passado, são os antecedentes dos valores norte-americanos vigentes na atualidade pela afirmação constante do “american way of life”, compreendido como estilo de vida exportado com razoável sucesso para o mundo inteiro. Entendido como atividade cultural que pode ser detectada na maioria das formas de arte e em muitas correntes de pensamento atuais, o pós-modernismo é considerado “fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político. [Contudo] não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade” (HUTCHEON, 1991: 20). Nesse sentido, o papel preponderante da ironia no pósmodernismo pode ser detectado na reelaboração crítica dos vários discursos, sem ser necessariamente um “retorno nostálgico”, já que sua forma é irônica, sobretudo, por desconfiar de verdades e certezas estabelecidas (Cf. EAGLETON, 1997: 318). O texto oferece informações que podem ser consideradas “sérias”, tais como o mau caráter dos chamados “descobridores” e a disposição de ânimo (bom humor), a generosidade e a perspicácia dos chamados “selvagens”. Essas informações aparecem na 135 ensaios sobre a arte da palavra descrição das atitudes de Colombo: “E Colombo aceitou o tomate e deu em troca uma miçanga”; “E Colombo aceitou [a batata] e deu em troca um espelhinho”; “E Colombo guardou o cacau na algibeira e deu em troca um vintém”. Tais atitudes contrastam com as do índio: “E o índio deu a Colombo uma folha de tabaco, e falou nos prazeres do fumo, e de como ele afetaria os hábitos civilizados. E se quisessem algo mais forte, tinham uma planta que dava coca, e um barato ainda maior. (...) E [deu] mais uma espiga de milho. E [deu] mais um papagaio”. Além das informações sérias, a crônica apresenta uma argumentação pelo absurdo, enfatizando o ridículo como estratégia crítica do texto, ou seja, a “descoberta” da América é contraposta à modernidade do índio, mostrada em suas palavras e em sua maldição: No chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo e praguejou. Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolate enchesse suas artérias de colesterol, que o fumo lhe desse câncer, a cocaína o corrompesse e o ouro destruísse sua alma. E que o tomate – desejou o índio com seu último suspiro – se transformasse em ketchup. E assim aconteceu (1995: 55). Dessa forma, servindo-se da ironia como procedimento argumentativo, reunindo informações “sérias” e informações “nãosérias”, o autor expõe uma idéia tomando elementos do mundo passíveis de receber um significado irônico. A leitura desse texto certamente provocará o riso, no entanto, o riso da ironia é ambíguo “sacudindo o leitor e despertando o mesmo para outra ‘realidade’” (BERGSON, 1987: 128). Portanto, como meio de expressão, o texto irônico pode ser definido como paradoxal ao veicular contradições presentes na sociedade, pois leva o leitor a realizar um esforço intelectual para com ele dialogar, transformando-se, enfim, em seu interlocutor. Ressalte-se, assim, o fato de que muitas das narrativas de Luis Fernando Verissimo — corroborando a idéia de que o aprendizado também está embutido no lúdico divertimento —, reafirmam o objetivo de fazer o leitor, enquanto se diverte, despertar para a interpretação crítica de sua realidade sociocultural. Os traços constitutivos da crônica (simplicidade, brevidade e graça) são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa 136 cenas e leituras de um mestre da palavra que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas (Cf. CANDIDO, 1992: 19). “O ator” O homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os dois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar um banho, trocar de roupa e preparar-se para algumas horas de sossego na frente da televisão antes de dormir. Quando está abrindo a porta do seu quarto ouve uma voz que grita: — Corta! O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta das suas mãos. Uma mulher vem ver se a sua maquilagem está bem e põe um pouco de pó no seu nariz. Aproxima-se um homem com um script na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de beijar as crianças. — O que é isso? - pergunta o homem. - Quem são vocês? O que estão fazendo dentro da minha casa? Que luzes são essas? — O que, enlouqueceu? - pergunta o diretor. — Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que você está cansado, mas... — Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama. Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos! Saiam! O diretor fica parado de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão e diz: — Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e... — Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os meus filhos! O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura da família. O diretor e um assistente tentam agarrá-lo. E então ouvese uma voz que grita: — Corta! Aproxima-se outro homem com um script na mão. O homem descobre que o cenário, na verdade, é um cenário. O homem com um script na mão diz: — Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente. — Que-quem é você? — Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada. — Eu não entendo... — Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não. — Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde 137 ensaios sobre a arte da palavra está minha mulher? Os meus filhos? A minha casa? — Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para a sua marca. Atenção, luzes... — Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendo as minhas próprias falas... — Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom. — Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é um filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Isto é simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores... Porcaria! — Boa, boa. Está convincente. Mas espere até começar a filmar. Atenção... O homem agarra o diretor pela frente da camisa. — Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa. O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se uma voz que grita: — Corta! (In: VERISSIMO, L. F. O suicida e o computador. Porto Alegre: L&PM, 1992, pp. 84-86). O show de Truman (1998), filme dirigido por Peter Weir e protagonizado por Jim Carrey e Ed Harris, retrata o que se pode denominar de “publicização” da intimidade pessoal, ou seja, a história acompanha, a partir da captura das imagens, o cotidiano de uma pessoa, desde o seu nascimento até quando ela descobre que sua vida é, na realidade, um programa, fenômeno de enorme audiência, exibido pela televisão. O ingênuo Truman Burbank é a estrela do show... mas não sabe disso. O personagem nem imagina que sua antiquada cidade é um estúdio gigantesco, dirigido por um visionário produtor/diretor/criador, nem que as pessoas que vivem e trabalham lá são atores, e que até sua esposa é uma atriz contratada. O filme é ambientado num estúdio de tevê, explorando recursos metalingüísticos, ou seja, o filme é um filme dentro de outro filme. Além disso, a audiência é duplamente testada tanto pelo público interno (no próprio filme) como pelos espectadores externos (aqueles que conhecem a história através das salas de cinema, do videocassete, da televisão etc.). Apesar de oferecer opções alternativas ao público externo, o público interno é apresentado como telespectador, entendido como o indivíduo que assiste à televisão e um dos aspectos marcantes 138 cenas e leituras de um mestre da palavra do filme está relacionado à presença onipresente da publicidade na configuração do programa: em meio às cenas domésticas, são exibidos produtos que financiam a execução do programa. Sendo assim, o filme sugere que as possibilidades alcançadas pelos meios de comunicação de massa, no que se refere à interferência decisiva nas ações humanas, são um dos elementos que levam ao privilégio da imagem nas últimas décadas. Mas o que isso tem a ver com literatura pós-moderna? Esse processo de publicização da vida privada é um dos temas recorrentes nas crônicas de Luis Fernando Verissimo, sendo, por esse motivo, interessante para uma análise comparativa entre transmissão televisual e literatura. Assim como no filme, o autor aborda em algumas de suas crônicas a importância assumida pela televisão, pelo cinema, enfim, pelo script como forma de indicar os passos dos indivíduos, ou seja, um processo que desperta nas pessoas a sensação de ter sua vida filmada ou de já ter visto algo parecido em alguma cena cinematográfica ou televisiva. Antes era a vida que inspirava a tela; agora cada vez mais é a tela que sugere comportamentos a serem encenados na vida diária. Dessa maneira, a narrativa acima transcrita sugere a necessidade de adoção de diferentes papéis para diferentes contextos: o social, o profissional, o intelectual, o doméstico; tantos quantos exigir a variedade dos interlocutores. A narrativa sinaliza para o fato de que a formação de uma personalidade autoconsciente está intimamente ligada aos relacionamentos estabelecidos através do convívio social. Para que este convívio se efetive, existem determinados “scripts” a serem seguidos. Ir para casa descansar depois do trabalho é a representação de um desses papéis: “o homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os dois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para jantar e dirige-se para o seu quarto”. A repetição das cenas sugere ainda o filme dentro do filme dentro do filme..., o que enfatiza a importância da metalinguagem nas produções culturais pós-modernas. Com relação à literatura, esse processo revela que a “diferença que separa uma obra literária de um trabalho de crítica literária (...) tem-se neutralizado freqüentemente na literatura contemporânea, devido à tendência 139 ensaios sobre a arte da palavra de se produzir uma narrativa que seja ao mesmo tempo uma criação fictícia e uma teorização sobre esta ficção” (E. F. COUTINHO, 1985: 37). Para Terry Eagleton, a arte pós-moderna, por saber que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, “pode atingir uma espécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica consciência desse fato (...), chamando a atenção para seu próprio status de artifício construído” (1997: 318). Aspecto interessante da metalinguagem está relacionado então à aplicação da autocrítica no texto, ou seja, quando o “ator” faz perguntas sobre o que está acontecendo, a explicação do diretor revela a análise das cenas anteriores como forma metalingüística interna ao texto. Em outros termos, o texto explica as cenas anteriores e, com isso, revela aspectos metalingüísticos importantes para a compreensão do enredo do filme-crônica que está sendo produzido: — Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente. — Que-quem é você? — Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada. -------------------------------------------------------------------------— Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é um filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Isto é simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores... Porcaria! Além disso, a circularidade sugerida pelos vários cortes internos da narrativa, que são novamente retomados a posteriori, revela implicações com categorias oníricas relacionadas ao devaneio e à fantasia. Como num labirinto, no qual, quando não é encontrada a saída, volta-se sempre a lugares já percorridos, o texto enfatiza as seqüências aleatórias, a presença do acaso nas relações humanas. Com relação à representação das ações humanas, o texto aparece como narrativa literária que incorpora elementos próprios de uma produção cinematográfica, entrevistos no acompanhamento das cenas pelo olhar de uma câmera que “captura” a movimentação dos personagens no ambiente; no corte abrupto das cenas; na montagem da narrativa em feixes de ações sobrepostas etc. A crônica revela, portanto, aspectos relacionados ao reconhecimento 140 cenas e leituras de um mestre da palavra da fragmentação do indivíduo frente à sociedade, a partir das imagens forjadas nos relacionamentos humanos, e que prescrevem certas atitudes a serem adotadas em diferentes situações. A unidade do sujeito é questionada pela sugestão da diversidade de atuações perante a sociedade: o sujeito julga ser “um para todos”, quando, na realidade, as distintas possibilidades de relacionamento revelam vários papéis possíveis a serem desempenhados; um com esta pessoa, outro com aquela. O personagem, incapaz de vislumbrar unidade em termos de consciência, não consegue compreender as personalidades que a sociedade construíra para fixá-lo em uma forma estável, resultado sugerido pelo final do texto, que indica a continuidade da encenação, mesmo sob os protestos do “ator”. “A verdade” Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho, deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse: — Agora me lembro, não era um homem, eram dois. E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem, e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse: — Então está com o terceiro! Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram, e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela. — Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo, e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões. – Matem-no! — Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu! E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos. O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem 141 ensaios sobre a arte da palavra honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra. Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço. Antes de morrer, a donzela disse para o pescador: — A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade? O pescador deu de ombros e disse: — A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador. (In: VERISSIMO, L. F. Comédias da vida privada. Porto Alegre: 1994b, pp. 358-59). A análise dessa narrativa partirá das discussões empreendidas pelo escritor e crítico literário Silviano Santiago que, desenvolvendo o percurso histórico do narrador traçado por Walter Benjamin, se empenha em demonstrar de que forma alguns traços da pós-modernidade interferem na configuração do narrador pósmoderno. Segundo o autor, agora mais do que nunca, o narrador pós-moderno “sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem” (1989: 40). Em “A verdade”, Luis Fernando Verissimo mostra aspectos que estão relacionados a esta visão das realidades sociais. Nessa crônica, como visto através de sua leitura anterior, o autor conta a história, aparentemente banal, de uma moça que perde um anel de diamante à beira de um riacho. Como explicação ao pai severo, a moça “inventa” o relato de um assalto. O pai e os irmãos saem em busca do criminoso e encontram um homem dormindo no bosque e o matam. No entanto, não encontram o anel. A donzela alega haver um segundo assaltante e novamente ocorre o processo de busca e morte de outro inocente. Dessa forma, através da mentira (também compreendida como construção de linguagem), a donzela consegue persuadir o pai e os irmãos, alegando agora a existência de um terceiro assaltante e novamente eles saem à procura do malfeitor. Nessa terceira tentativa – estrutura típica encontrada em alguns contos maravilhosos –, o pai e os irmãos da donzela, “fartos de sangue”, após levá-lo à aldeia, resolvem revistar o suposto assaltante (na 142 cenas e leituras de um mestre da palavra realidade, um pescador) e, para a surpresa da própria donzela, encontram o diamante. A partir daí, o autor revela as possibilidades persuasivas da linguagem na medida em que apresenta “‘a verdade’ como construção de linguagem”: a defesa do pescador mostra que as habilidades no uso das palavras auxiliam na exposição das idéias e dos fatos como sendo verdadeiros. Como exemplo dessas habilidades podem ser citados o conhecimento, por parte do pescador, do consenso comunitário de que histórias de pescador são mentirosas; o apelo aos valores prestigiados pela comunidade (honra, casamento, família, dignidade etc.) através da inclusão de cenas de violência (suborno feito por parte da donzela) e sexo (a perda da virgindade): O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz [carrasco] da honra (1994b: 359, grifos nossos). Portanto, a verdade aparece na narrativa como uma mentira que foi bem contada. Sendo assim, ela é uma ação construída pelo discurso. Além disso, a verdade está ancorada em valores consensuais prestigiados pelos “aldeões” e conhecidos pelo pescador, pois, mesmo sabendo da “verdade verdadeira”, este não pode fazer sua exposição sob pena de ser desacreditado pelo grupo social no qual está inserido. O pescador sabe que a verdade não é o que parece, mas é essa que o liberta. Então faz uso da que lhe convém. Portanto, o texto apresenta diferentes versões sobre o mesmo fato: a versão “válida” é aquela que integra a construção discursiva mais elaborada. Pode-se questionar como é que as outras pessoas não ouvem o que o pescador diz à donzela no final do texto? É nesse detalhe que reside a comicidade da narrativa: o leitor sabe que tanto a donzela quanto o pescador estão mentindo e o narrador, usando como recurso a ocultação de alguns fatos, faz com que o pescador 143 ensaios sobre a arte da palavra não seja desmascarado aos olhos dos personagens que tomam parte na ação, com exceção da donzela: o narrador desmascara os mentirosos diante do leitor, o que leva ao riso. Desse modo, no que se refere às possíveis atitudes do leitor diante do texto, pode ser destacado um fato curioso. Nas linhas finais do texto, falando para o pescador, a donzela afirma: “A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua”. Tanto a donzela quanto o pescador utilizamse da mentira para convencer as pessoas; sendo assim, ambos são criminosos. Por que então a condenação da donzela pode ser aceita como sendo “mais” justa? Pode ser visualizada como uma das respostas para esta imparcialidade o fato de que a história do pescador, apesar de ser uma mentira também, “vinga” a morte anterior de dois inocentes. Nesse aspecto, relacionam-se no texto diferentes noções de justiça: a donzela deve ser castigada já que foi a autora das mentiras que geraram todo o conflito – levando seu pai e seus irmãos a cometerem dois assassinatos; ao ser identificado no texto como vítima, o pescador revela perspicácia ao relatar sua história com maior ênfase, e, como tal, sua libertação pode ser encarada de forma menos problemática. Em certo sentido, estas considerações contribuem para revelar algumas propriedades do riso, pois quando o texto faz rir, este riso condena certas atitudes que contradizem noções do que seja “certo” e “justo”. No caso, é justo e é certo que o pescador seja inocentado, mesmo que seja através da mentira, recurso utilizado também pela donzela. A mentira é condenável, mas a reparação de uma injustiça anterior pode ser classificada como mérito do pescador por estar amparada em uma defesa consistente. A mentira adquire assim um valor positivo ao ser utilizada como arma para reparar uma injustiça. Nesse aspecto, sendo os contos maravilhosos e os contos de fadas, por definição, histórias de índole maniqueísta — isto é, focalizam geralmente o eterno conflito entre o bem e o mal, entre heróis e bandidos —, sua alusão suscita no leitor, como que por um mecanismo de reflexos condicionados, uma expectativa eticamente orientada, uma vontade de tomar partido. 144 cenas e leituras de um mestre da palavra Contudo, a narrativa subverte o maniqueísmo elegendo a mentira como forma de salvação, tanto da donzela, num primeiro momento, quanto do pescador ao final do texto. Assim, a escolha do cenário para ambientar a história (aldeia) e personagens estereotípicos (donzela) ligam-se aos contos maravilhosos e contos de fadas; entretanto, a subversão do maniqueísmo atua como fator diferencial, já que a mentira nessas histórias geralmente está associada a atitudes malignas. Com relação ao final irônico do texto, a ironia pode ser enquadrada entre as estratégias colocadas em prática na língua e nos diferentes discursos, visando passar idéias, estabelecer relações com dado público e, se possível, modificar seu posicionamento frente a determinadas questões. Assim, nessa narrativa, Luis Fernando Verissimo encerra através da expressão “O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador” numa referência ao privilégio dado atualmente – através da cultura de massa, desde a televisão e o cinema até os jornais, as revistas etc. –, à obscenidade com que são expostas determinadas imagens. Tal processo sugere então que “já não há mais a obscenidade tradicional entendida como algo escondido, reprimido, proibido ou obscuro; pelo contrário, é a obscenidade do visível, do tudo-muito-visível, do mais-visívelque-o-visível. É a obscenidade do que já não tem nenhum segredo, do que se dissolve completamente em informação e comunicação”.5 Outro ponto importante da narrativa está direcionado às relações estabelecidas entre cultura popular, cultura erudita e cultura de massa expressas na utilização pelo autor da estrutura típica dos contos maravilhosos, compreendidos enquanto narrativas populares que sofreram um processo de canonização que resultou, por sua vez, na “padronização” desses contos tal como se apresentam atualmente. Esse aspecto é reforçado em certa medida através da ambientação medieval da narrativa evidenciada na descrição de situações típicas de uma aldeia desse período — entre eles, a condenação sumária dos criminosos, o que evidencia a ausência de todo um aparato jurídico e legal — e no uso de termos que se enquadram nos moldes dos contos maravilhosos, tais como “donzela” e “canteiro de margarida” que aparecem de forma “caracterizante” no início da narrativa. 145 ensaios sobre a arte da palavra Apesar dessa caracterização, o texto revela implicações com a relativa homogeneização discursiva realizada pelos meios de comunicação no que se refere à sedimentação do imaginário sociocultural ocorrida nos “tempos pós-modernos” e incentivada pela cultura de massa. Isto transparece principalmente no que se refere ao fato de a originalidade da representação ter sua importância reduzida, já que a fim de satisfazer ao maior número possível de seus consumidores, “as obras dessa cultura se abstêm de usar recursos de expressão que, por demasiado originais ou pessoais, se afastem do gosto médio, frustrando-se as expectativas. Daí que ela se limite, na maioria dos casos, ao uso de recursos de efeito já consagrados, mesmo arriscando a banalizá-los pela repetição” (PAES, 1990: 26). Dessa maneira, a narrativa mostra ainda que a reiteração de esquemas formais consolidados junto aos destinatários é de fundamental importância: cenas de violência e sexo seriam então os ingredientes básicos das estratégias usadas para convencer o público. A referência às histórias de pescador aponta para a utilização de aspectos relacionados a este tipo de estrutura narrativa na medida em que ressalta o inusitado das interpretações dadas aos fatos através do encadeamento narrativo logicamente previsível, caminhando para um desfecho de forte impacto, sendo esta estrutura a responsável pela surpresa e pelo riso. Esses aspectos podem ser relacionados à combinação de diferentes registros de discurso adotada para a exposição da história: o autor “chama” de crônica o que apresenta elementos presentes nos contos maravilhosos e nas piadas, entre outras formas de “contar histórias”. Assim, a narrativa incorpora todas essas estruturas e nenhuma delas, pois os elementos de ambas são utilizados para criar a forma nova, inscrevendo-se no debate, tanto moderno quanto pós-moderno, sobre as fronteiras e os limites entre os vários gêneros. Jane Flax, elencando as crenças postas em dúvida pelas teorias desconstrutivistas, enfatiza que uma delas está relacionada à noção de que “a linguagem é de certo modo transparente”. Com isso, essas teorias procurariam questionar a idéia de que “assim como o uso correto da razão pode resultar no conhecimento que representa o real, também a linguagem é meramente o meio no 146 cenas e leituras de um mestre da palavra qual e através do qual tal representação ocorre”. Assim, de acordo com a autora, este redirecionamento colocaria em dúvida a idéia de que “os objetos não são lingüisticamente (ou socialmente) construídos, [pois, se afirmava até então que] eles são meramente trazidos à consciência pela nomeação e pelo uso correto da linguagem” (1991: 222-3). Sendo assim, o uso racional da ciência passa a ser discutido pelo pós-modernismo através do questionamento das “narrativas-mestras” que sustentavam os diversos discursos, pois já “não existem hierarquias naturais, só existem aquelas que construímos” (HUTCHEON, 1991: 30-31). Como visto, o narrador de “A verdade” sugere que aquilo que é compreendido como verdadeiro pode ser exposto como estando vinculado à competência discursiva do falante. O discurso aparece, dessa forma, não como entidade estável e contínua que possa ser discutida como um texto formal fixo: “por ser o local da associação entre o poder e o conhecimento, o discurso vai alterar sua forma e sua relevância dependendo de quem está falando, da posição de poder dessa pessoa e do contexto institucional em que o falante esteja situado” (FOUCAULT, 1997: 96). A narrativa estabelece considerações sobre questões ligadas à autoridade e à legitimação do poder a partir da palavra. De acordo com Luis Fernando Verissimo, “o perigo da palavra lhe confere sua grandeza (...). A origem da palavra não é garantia de autenticidade. Seu valor depende menos de quem diz do que quando e como diz [pois] com a palavra se mobiliza qualquer um, e se explica qualquer coisa” (1994a: 7-8). A narrativa apresenta importantes características auto-reflexivas, principalmente ao mostrar de quem é a noção de verdade que passa a ter poder e autoridade sobre as outras e depois evidenciar o processo através do qual isto ocorre. Portanto, a análise da narrativa, quando aliada à problematização das relações entre discurso e poder, sinaliza para o fato de que este se caracteriza substancialmente por estar constantemente sendo produzido, ou seja, o poder não é uma estrutura nem instituição: é um processo, e não um produto. O poder da palavra está intimamente ligado então ao contexto em que é utilizada, o que sugere a eficácia da “polivalência tática dos discursos” (FOUCAULT, 1997: 95). É assim que as palavras do pescador, sustentadas pelos valores prestigiados pelo grupo no qual está 147 ensaios sobre a arte da palavra inserido, adquirem poder e autoridade, fazendo com que os aldeões aceitem sua defesa como sendo passível de crédito e condenando a donzela à morte. O estudo aqui empreendido apresenta-se como esboço das possibilidades de análise das narrativas de Luis Fernando Verissimo. Como maneira de condensar essas possibilidades podese indicar que elas apresentam algumas peculiaridades relacionadas ao momento pós-moderno vivenciado nas produções culturais das últimas décadas: inter-relações entre cultura popular, cultura de massa e cultura erudita; utilização da comicidade para surpreender seus leitores, principalmente pelo emprego da ironia e da paródia; incorporação de teorizações acadêmicas; implicações formais e estéticas com o modernismo, entre outras abordadas no decorrer da exposição realizada. Mais especificamente em relação à cultura de massa merece destaque o fato de Luis Fernando Verissimo poder ser considerado um autor de destaque significativo no mercado editorial brasileiro. Apesar desse destaque — pode-se sugerir que, em grande parte, por conta dele —, o autor consegue questionar os limites e as tendências das manifestações que se apresentam na atualidade como veículos do “êxtase da comunicação”. Ademais, muitas das crônicas do autor redimensionam algumas peculiaridades características do gênero. Como exemplo, pode ser citada a utilização de artifícios de distanciamento narrativo. O gênero costuma ser definido muitas vezes pelo uso do narrador em primeira pessoa, ou seja, quem fala na crônica é o próprio cronista. De acordo com o modo como o autor se dirige ao leitor, para transmitir-lhe a sua interpretação artística da realidade, os gêneros literários são classificados da seguinte forma: Fazendo-o diretamente, em seu próprio nome, explanando seus pontos de vista, temos os gêneros ensaísticos: ensaio, crônica, discurso, máximas, carta; se, ao contrário, o faz indiretamente, isto é, usando artifícios que veiculam a sua interpretação, resultam três variedades conforme o artifício é: a) uma estória que encorpa a interpretação - gêneros de literatura narrativa (epopéia, ficção, etc.); b) uma representação mimética da realidade - gêneros de literatura dramática (tragédia, comédia, etc.); c) símbolos, imagens, música, ritmo, - gêneros de literatura lírica ou lirismo (COUTINHO, 1978a: 13). 148 cenas e leituras de um mestre da palavra Evidenciando a fusão entre elementos dessa classificação tradicional dos gêneros, em várias de suas narrativas Luis Fernando Verissimo utiliza-se de diálogos entre personagens como procedimento para encarnar os comentários a respeito de temas diversos. Esse aspecto pode ser definido como contra-corrente na crônica. Isto não é novidade no gênero, mas um recurso freqüente na obra deste autor. Além disso, o trabalho de concisão, de síntese narrativa, peculiar ao conto, aparece em suas crônicas como elemento fundamental para sustentar a agilidade desses diálogos. Na combinação que realiza em sua prosa de formas e temas ligados aos meios de comunicação de massa, procura se apropriar de imagens e idéias ligadas ao cotidiano, com o intuito de fazer o registro de mudanças significativas ocorridas nas últimas décadas em algumas esferas socioculturais. Alguns mecanismos usados em campanhas publicitárias exibidas na televisão podem ilustrar o modo como a literatura vem incorporando elementos ligados à cultura de massa. O olhar filtrado pela câmera parece ser um dos recursos mais expressivos nas produções culturais contemporâneas. Mas existem outros. Em muitas campanhas publicitárias, uma das maneiras de atingir o maior número de consumidores reside na utilização da comicidade. Os produtores de comerciais para a televisão sabem que o tempo de tele-transmissão é limitado e não pode ser gasto com mensagens simplórias. Sendo assim, a repetição constante desses comerciais encontra um obstáculo: o efeito cômico está relacionado com a surpresa, com o inesperado. Este obstáculo pode ser definido pela seguinte questão: quem ri de uma piada quando já sabe do seu final? Para driblar este obstáculo os produtores desses comerciais lançam mão de um recurso engenhoso: o comercial não necessita, e nem deve, provocar o riso no telespectador apenas pelo seu final inusitado; ao invés disso, ele deve conter vários momentos risíveis para que o telespectador, quando estiver assistindo novamente ao mesmo comercial, possa ater-se a detalhes que antes não foram percebidos. Isto requer um trabalho meticuloso devido ao intervalo de tempo reduzido da maioria dos comerciais. Esta estratégia passa a ser utilizada como artifício para veicular mensagens que atraiam o consumidor para a frente da 149 ensaios sobre a arte da palavra televisão, pois, rindo das cenas cômicas de um comercial, o telespectador estará fazendo a associação desse momento prazeroso – já que “rir é o melhor remédio” – com o produto exibido na tela. Mas quais são as implicações entre comerciais televisivos e as crônicas de Luis Fernando Verissimo? Pois bem. À semelhança dos comerciais de televisão – no que se refere às estratégias para provocar o riso e não aos objetivos desse riso – a escrita de Luis Fernando Verissimo procura desenvolver uma comicidade caracterizada pela sutileza. Por este motivo, o autor consegue atrair o leitor ao provocar, em muitos casos, uma manifestação de riso de certa forma contida. Este recurso, apesar de não provocar a gargalhada, mostra o conhecimento por parte do autor das artimanhas para pontuar seus textos de pequenos episódios risíveis. Esta sutileza no emprego da comicidade parece possuir paralelos na publicidade televisiva: um comercial de televisão deve entreter os telespectadores de tal forma que, a cada aparição, estes percebam um detalhe antes não percebido. De forma semelhante, as narrativas de Luis Fernando Verissimo procuram amenizar os efeitos do riso, ou, em outros termos, o riso provocado não deve ser muito prolongado e não deve ser limitado apenas ao final da narrativa. Por este motivo, o uso de recursos diversos para provocar o riso no leitor, em diferentes momentos de seus textos, parece ser uma das estratégias mais eficazes adotadas pelo autor. Essa estratégia está relacionada ao fato de que os fenômenos risíveis tornam-se enfadonhos quando ouvidos ou lidos novamente devido à “perda da graça”, pois já não causam mais surpresa, quando sustentados apenas pelo final inesperado. Em síntese, de que maneiras a escrita de Luis Fernando Verissimo faz uma releitura dos problemas da sociedade brasileira? A resposta parece estar nos recursos discursivos utilizados pelo autor como a paródia, a ironia, a réplica sarcástica, a biografia autocrítica, entre outros. Estes recursos relativizam os significados, ao citar e aludir a outros discursos, servindo a um amplo leque de atitudes por parte do autor, desde a homenagem até a brincadeira ou a transgressão. O que fica evidenciado é que o autor articula uma espécie de crítica pautada no riso, sustentada pela recusa subversiva das definições pré-fabricadas e pela insinuação de novas definições, mesmo que sejam provisórias. Essa crítica 150 cenas e leituras de um mestre da palavra adquire força na instabilidade gerada pela contestação dos padrões estabelecidos no convívio social: “o mirante escolhido pelo escritor apresenta um mundo engraçado, mas trágico. Faz-nos rir, mas faz-nos ver também que fala de coisas sérias” (SILVA, 1984: 19). Portanto, Luis Fernando Verissimo pode ser inscrito no quadro daqueles escritores que apostam na certeza da dúvida e revelam um expressivo desencanto em relação à ditadura do consenso, atitudes constantes em sua arte, ao alertar sobre o perigo dos clichês e dos lugares-comuns produzidos pela sedimentação da linguagem. O autor investe, assim, no potencial subversivo da comicidade que atua decisivamente contra as pretensões universalizantes, baseadas na sua grande maioria nos discursos considerados “sérios”. Na análise aqui efetuada, os pontos altos da prosa de Luis Fernando Verissimo identificam-se com a inserção de caracteres ligados ao pós-modernismo e com a manipulação artística de elementos cômicos em suas narrativas, legando à crônica a força e a vivacidade necessárias à sua permanência. Notas 1. Além dos personagens-tipo citados, Luis Fernando Verissimo criou ainda outros que, no entanto, não (re)aparecem com tanta freqüência. Entre estes, destaca-se o “Doutor Pundonor de Azevedo”, defensor da moral e dos bons costumes da família brasileira (O popular, 1973); e “Dora Avante”, uma “socialite” em decadência (A mulher do Silva, 1984; Orgias, 1989). 2. Expressão criada por Linda Hutcheon para designar aquelas manifestações que procuram se contrapor às narrativas-mestras, principalmente aquelas formuladas com base nas idéias do humanismo liberal. 3. Numa sociedade sustentada pela possibilidade de acúmulo de riquezas, não é de surpreender que os velhos preconceitos ligados à raça, à nacionalidade, ao sexo etc. sejam redimensionados, muitas vezes, em termos financeiros, passando a predominar o preconceito econômico: o tratamento dispensado a ricos e pobres é então diferenciado cada vez com mais ênfase. 4. Referência a Orlando Fantoni, técnico de futebol “linha-dura”, famoso nas décadas de 1970 e 1980. O técnico aparece como ícone oposto à leveza de Bruna Lombardi. 5. “It is no longer the traditional obscenity of what is hidden, repressed, forbidden or obscure; on the contrary, it is the obscenity of the visible, of the all-toovisible, of the more-visible-than-the-visible. It is the obscenity of what no longer has any secret, of what dissolves completely in information and communication.” (B AUDRILLARD , Jean. “The ecstasy of communication”. Transl. John Johnston. In: FOSTER, Hal [Ed.]. The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Port Tousend, Washington: Bay Press, 1983, p. 131). * * * 151 ensaios sobre a arte da palavra 152 CONSIDERAÇÕES FINAIS •♦• Ao longo deste livro foram apresentadas questões sobre temáticas consideradas importantes para a análise da literatura produzida nas últimas décadas do século XX. Como forma de indicar as possibilidades de pesquisa na área são arrolados a seguir elementos que podem sinalizar alguns caminhos para a crítica literária no próximo século. As narrativas e as imagens veiculadas pelos mass media difundem os símbolos, os mitos e os recursos que informam, em muitas regiões do mundo, a constituição de uma cultura comum para a maioria dos indivíduos. A cultura veiculada nesses meios faz circular as informações que sedimentam as identidades por meio das quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global. A formulação de teorias sobre o intercâmbio entre mídia e cultura, um dos caminhos da crítica literária na atualidade, requer estudos específicos relacionados às ocorrências da história efetiva. Isto porque estes estudos precisam ser inseridos na realidade de sua própria história. Para interrogar de modo crítico a literatura contemporânea é preciso realizar estudos sobre o modo como os escritores criam produções que dialogam com os discursos socioculturais encravados nos conflitos e nos fundamentos de sua época. Embora uma parte das teorias pós-modernas elucide certas características novas e mais evidentes de nossa cultura e de nossa sociedade, a afirmação de que há uma nova ruptura pós-moderna na sociedade e na história é exagerada. No contexto brasileiro, as últimas décadas do século XX apresentam-se como uma era de transição entre o moderno e o pós-moderno, o que exige a análise 153 ensaios sobre a arte da palavra tanto das estratégias e teorias modernas quanto das pós-modernas. Esta posição assinala a resistência à tentação de denunciar a necessidade de uma teoria e de estudos pós-modernos inteiramente novos. O estudo de obras literárias precisa atentar para fatores ligados à comercialização da arte, já que este é o caminho inevitável da literatura, numa época de predomínio da publicidade, pilar de uma sociedade organizada a partir do consumismo. Nesse cenário, o livro passa a ser cada vez mais objeto de fetiche e admiração. Isto porque as belas palavras inscritas na contracapa ou em resenhas encomiásticas e sob encomenda — para o bem ou para o mal — publicadas em revistas e jornais são veículos eficazes para a divulgação das obras. Além disso, o apuro do projeto gráfico, o esmero com o tipo de papel ou a fonte escolhidos para impressão, entre outros fatores técnicos, interferem decisivamente para a aquisição de determinada obra. Contudo, as novas tecnologias da mídia e da informática apresentam resultados ambíguos. De um lado, tem-se uma maior diversidade de escolha, o que amplia as chances de autonomia cultural, tendo em vista a abertura para as intervenções de outras culturas e idéias. De outro, elas possibilitam novas formas de exposição e vigilância, por meio do que os olhos e sistemas eletrônicos instalados em locais de trabalho e residências funcionam como elementos que confirmam as previsões mais pessimistas (orwellianas) acerca de um sistema panóptico de controle dos indivíduos. Além disso, estas novas tecnologias são definidas por muitos estudiosos como novas formas de controle social alicerçadas em técnicas de doutrinação e manipulação mais sutis e, por tal motivo, mais eficientes. Isto porque sua presença constante faz com que as pessoas se recolham ao espaço doméstico, o que as distancia das multidões e dos locais públicos de ação política. A presença da televisão como forma de entretenimento doméstico é relativamente recente, considerando o período de sua disseminação até alcançar o lugar central no sistema de cultura e comunicação em muitas regiões do mundo. A indústria cultural, tal como definida pela Escola de Frankfurt, tomou corpo somente a partir do pós-guerra, transformando-se em elemento dominante 154 considerações finais na cultura e na política. Além da TV a cabo e por satélite, outras tecnologias acrescentaram particularidades expressivas ao fenômeno da indústria cultural, tal como o videocassete e o computador pessoal, o que acelera o predomínio da imagem nos dias atuais. É preciso utilizar modelos diversificados de abordagem para interpretar as formas visuais e verbais veiculadas pelos mass media, numa sociedade em que a cultura do livro foi suplantada pelos novos suportes culturais. A importância do estudo da cultura de massa reside, portanto, no fato de que a televisão tornou-se o principal elemento de socialização, alterando formas de interação social, ao substituir a família, a igreja e a escola como juízes a determinar valores, gostos e idéias. Com suas celebridades e imagens atraentes, a televisão interfere poderosamente na constituição de novos modelos de estilo, moda e comportamento (identidades) a serem adotados pelas pessoas. A produção de novas formas de cultura e a profusão de novas realidades culturais alteram as percepções do tempo e do espaço, o que dificulta a distinção entre as experiências virtuais e a vida real. Estas alterações vinculam-se à substituição do Estado-nação pelas empresas transnacionais, principalmente no que se refere aos fatores que regulam a produção e a circulação de produtos, apagando fronteiras anteriores da geografia convencional. Em síntese, modos de produção cultural e formas de vida social e política são atingidas pelas alterações ocorridas em diversos setores da sociedade. Há que se considerar neste processo a posição ocupada pelas empresas de comunicação. Elas veiculam uma forma comercial de cultura que visa a lucratividade. Este tipo de produção cultural gera conseqüências significativas. A indústria dos mass media procura produzir coisas que vendam ou que atraiam a audiência. Em grande parte dos casos, isto significa apresentar narrativas e imagens que seduzam as pessoas e atraiam o maior número de consumidores. Por outro lado, isto obriga as produções culturais a incorporarem em seus temas e motivos a vivência social, tendo em vista a necessidade da oferta de produtos atraentes. Para tanto, é preciso que elas traduzam tramas envolventes, transgridam convenções ou expressem idéias correntes, possivelmente originadas por acontecimentos recentes. 155 ensaios sobre a arte da palavra Como resultado, é preciso destacar as intervenções de movimentos progressistas que requisitam maior espaço na estruturação dos grupos sociais. A teoria feminista, as práticas anti-racistas, a defesa do meio-ambiente, o pós-colonialismo, entre outros, aparecem como discursos que ampliam o alcance das análises tradicionais, em detrimento das questões ligadas exclusivamente à posição social. Portanto, o diálogo entre as diversas teorias, que procuram explicar aspectos relevantes da sociedade contemporânea, parece ser um dos meios a partir do qual se pode refletir sobre a criação literária na atualidade. * * * 156 REFERÊNCIAS •♦• AHMAD , Aijaz. “A retórica da alteridade de Jameson e a ‘alegoria nacional’”. Trad. João Moura Jr. In: Novos Estudos CEBRAP ; n. 22, 1988, pp. 157-181. 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Os recursos financeiros utilizados pela Fundação têm origem no Fundo Paraná, que destina 2% da receita tributária do Estado ao desenvolvimento científico e tecnológico. Fundação Araucária Av. Comendador Franco, 1341 CIETEP Jardim Botânico 80215-090 Curitiba PR Telefones: (41) 218-7803 e 218-7752 www.fundacaoaraucaria.org.br COLEÇÃO THÉSIS Impressa na Gráfica da Unioeste Miolo em papel Off Set 75 g/m2 Capa em papel Cartão Supremo 240 g/m2 164