ENSAIOS SOBRE
A ARTE DA PALAVRA
1
ensaios sobre a arte da palavra
© 2002 by Paulo Cezar Konzen
Edunioeste
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
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Jardim Universitário
Cascavel - PR
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Coleção Thésis
Diretores
Marcos Antônio Lopes
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Capa e projeto gráfico
Marcos Antônio Lopes
Paulo Cezar Konzen
Revisão técnica
Marcos Antônio Lopes
Preparação de originais
Paulo Cezar Konzen
Apoio editorial
Luis Cesar Yanzer Portela
Apoio técnico
Antonio da Silva Júnior
Douglas L. S. Ganança
Joaquim Moita dos Santos
Ficha catalográfica
Marilene de Fátima Donadel (CRB 9/924)
Imagem da capa
(Antrum Platonicum)
K82e
Konzen, Paulo Cezar
Ensaios sobre a arte da palavra / Paulo Cezar Konzen. -Cascavel : Edunioeste, 2002.
164 p. -- (Coleção Thésis)
ISBN : 85-86571-64-4
1. Teoria Literária 2. Crônica 3. Comicidade 4. Literatura
brasileira-Crônica
5.
Literatura
brasileira-Sátira
e humor 6. Cultura pós-moderna I. T.
CDD-20.ed.
2
801.95
B869.8
Paulo Cezar Konzen
ENSAIOS SOBRE
A ARTE DA PALAVRA
Edunioeste
Cascavel
2002
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ensaios sobre a arte da palavra
4
Para Nani:
presença, paciência e paixão.
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ensaios sobre a arte da palavra
6
SUMÁRIO
•♦•
PREFÁCIO .................................................................................. 11
INTRODUÇÃO ............................................................................. 15
I
RETRATOS DA CRÔNICA ........................................................... 21
MOMENTOS REPRESENTATIVOS: CRONISTAS BRASILEIROS ......... 26
APONTAMENTOS DIVERSOS ............................................................... 41
II FORMAS E EFEITOS DA COMICIDADE ...................................... 45
ANATOMIA DA COMICIDADE ..............................................................
Intertexto cômico: aproximações e deslocamentos ...........................
Outras formas de instauração da comicidade ...................................
DEGRAUS DO RISO ..............................................................................
Carnaval e riso ...................................................................................
A seriedade do riso ............................................................................
46
49
54
59
60
64
III SOBRE O PÓS-MODERNISMO ................................................... 73
QUESTIONAMENTOS, INICIATIVAS E PERSPECTIVAS .....................
SABORES DAS CULTURAS PÓS-MODERNAS .....................................
Dissabores ..........................................................................................
Saberes ...............................................................................................
74
82
87
90
IV CENAS E LEITURAS DE UM MESTRE DA PALAVRA .................... 95
COMENTÁRIOS PANORÂMICOS ..........................................................
A APROXIMAÇÃO DO OLHAR: NARRATIVAS EM FOCO ....................
“Criaturas” ..........................................................................................
“Nova carta de intenções” ..................................................................
“Racismo” ............................................................................................
“Apraga” ..............................................................................................
“O ator” ...............................................................................................
“A verdade” .........................................................................................
97
116
116
122
127
132
137
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................... 153
REFERÊNCIAS ............................................................................ 157
7
ensaios sobre a arte da palavra
8
AGRADECIMENTOS
•♦•
Este livro foi escrito, originalmente, como dissertação de mestrado,
defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual
de Londrina. A releitura deu origem a uma série de alterações no trabalho,
resultado de pesquisas posteriores ao curso. Além disso, o texto foi lido por
algumas pessoas que contribuíram para diminuir seus equívocos. Esta página
tem, portanto, a finalidade de fazer o registro dos agradecimentos àqueles que
colaboraram para a sua realização.
Inicialmente, gostaria de registrar meus sinceros agradecimentos ao
Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon pela indicação de caminhos seguros a serem
seguidos no trajeto da pesquisa; ao Prof. Dr. Marcos Antônio Lopes, leitor atento
e perspicaz destes ensaios; à Universidade Estadual do Oeste do Paraná pela
concessão de licença com vencimentos, passo fundamental para o custeio do
primeiro ano do curso; aos professores do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas dessa instituição; à CAPES pela concessão de bolsa de estudos na fase
de redação da dissertação; à Universidade Estadual de Londrina; à Fundação
Araucária pelo auxílio para a publicação desta obra.
Quero ressaltar ainda a atuação sempre prestimosa dos funcionários
da Biblioteca, tanto da UEL quanto da Unioeste; da Coordenação do Programa de
Mestrado em Letras, representada nos nomes de Vanderci de Andrade Aguilera
e Américo Kato. Um registro especial deve ser feito também à atuação de todos
os professores e colegas do Programa de Mestrado em Letras, Área de
Concentração em Estudos Literários. Em especial, agradeço à Profa. Dra. Adelaide
César, à Profa. Dra. Gizêlda do Nascimento e à Profa. Dra. Beatriz Resende, pela
argüições instigantes e pelas valiosas sugestões de aprimoramento do trabalho.
Aos meus pais, Oswaldo e Valéria, pelo amor e dedicação aos seus muitos
filhos de forma reconhecidamente igualitária; aos meus irmãos Henrique, Ana,
Maria, Jorge, Janete, João e Marcelo; à Eliane, Cecília, Janete, Cláudio, Marjorie
e Stephanie, minha segunda família; e, finalmente, aos amigos — é ocioso dizer
que as omissões são pecados a serem perdoados — Alex Larsen, Claércio
Schneider, Claídes Schneider, Evaldo dos Santos, Iara Dahmer, Josias Penna,
Jucenei Frandoloso, Luis Portela, Antônio Benatte, Neiva Kern Maccari, Róbi
Schmidt e Rovilson Silva.
Obrigado a todos.
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ensaios sobre a arte da palavra
10
PREFÁCIO
•♦•
O que desperta a atenção já no índice desta obra de Paulo
Cezar Konzen é o conjunto de aspectos pouco favorecidos no debate
acadêmico brasileiro. Crônica, comicidade, pós-modernismo, Luis
Fernando Verissimo: de todos estes temas a Academia ou passa
longe ou se abstém de verificar as especificidades. Neste momento,
o leitor que pular do índice ou desta apresentação para as
referências bibliográficas no mínimo suspeitará de contradições e
exageros. Como explicar, por exemplo, a fartura de títulos reunidos
na bibliografia? Pode-se adiantar uma das qualidades deste livro:
o tino de pesquisador que o autor demonstra ter. De qualquer modo,
vale retomar o fio da distância entre os estudos universitários e os
pontos explorados neste livro.
A crônica já deu ao Brasil grandes obras e autores. Ninguém
ousa questionar a excelência de Rubem Braga, que se destacou na
literatura brasileira quase exclusivamente pelo valor de suas
crônicas. No entanto, o material sobre o gênero poucas vezes é
encontrado fora de artigos isolados em livros e revistas. Mais
complicado ainda que localizar a produção bibliográfica sobre a
crônica é constatar o descompasso entre seu lugar nos currículos
de graduação dos cursos de Letras e sua projeção nos livros
didáticos do ensino fundamental. O resultado na escola tende a
ser uma abordagem simplória dos textos ⎯ realizada por professores
pouco habituados a lidar criticamente com a crônica ⎯ que não
poderia ser confundida com o ideal de simplicidade expresso nos
mesmos.
O cômico parece continuar ocupando um patamar inferior
no que diz respeito à eleição de objetos de estudo. Quando
transferimos nosso olhar da literatura para o cinema, que tem
obviamente outra história e outros propósitos mais próximos da
idéia de entretenimento, podemos detectar alguns sintomas. O
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ensaios sobre a arte da palavra
Globo de Ouro, premiação do cinema norte-americano, estabelece
categorias diferenciadas para os trabalhos indicados: melhor drama,
melhor comédia, melhor ator de drama, melhor ator de comédia,
etc. Outra associação cinematográfica, o Oscar, já não prevê
distinções: destina sistematicamente os prêmios às produções mais
“sérias”, reservando o cômico apenas para as piadas infames na
cerimônia de apresentação dos filmes e artistas candidatos. Se no
cinema o quadro é este, na literatura, então...
Quanto ao pós-modernismo, é preciso fazer ressalvas. Não é
possível sustentar que o assunto é ignorado no meio acadêmico.
Aliás, pode-se dizer que há mais de duas décadas surgem seguidas
publicações, propiciando uma febre pós-moderna, especialmente
no ambiente universitário norte-americano. E no Brasil? No Brasil,
o termo se encontra cercado de estigmas. De um lado, o estigma de
ter sido cunhado em terra estrangeira, o que, para alguns,
inviabilizaria uma apropriação para discutir nossas produções
culturais ou representaria uma importação equivocada. Do outro,
o estigma da vulgarização: o termo aparece na mídia com
assiduidade e sem critérios. Seus significados são muito diversos,
embora desponte com certa regularidade em meio a comentários
irônicos e depreciativos.
Luis Fernando Verissimo publica livros há mais de vinte anos,
parte deles figurando em listas de mais vendidos. Tal condição não
é bastante para transformá-lo em objeto de grande atenção nos
estudos literários. Alguns fatores contribuem para isso: trata-se
de um autor contemporâneo, de quem algumas parcelas das
instituições universitárias insistem em manter distância; o espaço
de atuação de Verissimo também inibe uma aproximação mais
convicta (as gargalhadas que ele nos proporciona em seus artigos
de jornais e revistas e em suas adaptações para televisão, parecem
vulgarizá-lo, colocando-o à margem do circuito acadêmico). Sinais
disso podem ser verificados nos congressos de literatura: é muito
mais comum ver trabalhos sobre Rubem Fonseca, um escritor
coetâneo e com trajetória semelhante, do que sobre Luis Fernando
Verissimo.
Antes que surja nova suspeita ⎯ a de estar sendo traçado
um quadro excessivamente sombrio dos estudos literários ⎯ é
necessário reconhecer que há uma movimentação para mudar a
12
prefácio
face da pesquisa literária nas universidades. Tais movimentos,
influenciados sobretudo pela efervescência dos Estudos Culturais,
incorporam novos objetos e métodos, propondo o acréscimo de
diferentes direcionamentos e a revisão do cânone para a área das
Letras.
Este livro de Konzen integra-se a este processo de renovação.
Com méritos. Deve-se ressaltar a coragem com que o pesquisador
encara o desafio de se debruçar sobre todos os aspectos
comentados: crônica, comicidade, pós-modernismo. Além disso,
elege um autor como Luis Fernando Verissimo, muito lido porém
pouco analisado academicamente. Tudo isso com uma
fundamentação teórica e crítica atualizada e sem resvalar em
“impressionismos” e preconceitos. Neste sentido, é importante que
se continue lendo Verissimo com toda a graça que sempre
encontramos em seus textos. É saudável também que se possa
agora, com a presente obra, ler e refletir sobre o autor e suas
correlações com os aspectos analisados. Para isso, não é preciso
empilhar mais tijolos nos muros da Academia e sim torná-los mais
permeáveis, como faz Konzen, ampliando o acesso para se
compreender melhor a contemporaneidade.
Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon
Universidade Estadual de Londrina
13
ensaios sobre a arte da palavra
14
INTRODUÇÃO
•♦•
As visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidas
nas linhas uniformes de caracteres minúsculos e maiúsculos, de pontos, de
vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns
aos outros como grãos de areia, representando o espetáculo variegado do mundo
numa superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas impelidas pelo
vento do deserto.
Italo Calvino
O crítico literário Terry Eagleton argumenta que as tentativas
de definir a literatura não podem ser realizadas de maneira objetiva,
pois qualquer definição está baseada em juízos de valor
historicamente variáveis, devido ao fato de estarem intimamente
irmanados às ideologias sociais. As ideologias são compreendidas
pelo autor como a forma como aquilo que dizemos e no que
acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações
de poder da sociedade em que vivemos. Estas relações, por sua
vez, são definidas como crenças (profundamente enraizadas e,
muitas vezes, inconscientes) e modos de sentir, avaliar, perceber e
acreditar que se relacionam de alguma forma com a manutenção e
reprodução desta estrutura do poder (Cf. EAGLETON, 1997). Se o autor
demonstra as dificuldades em definir o que é literatura, este
problema não ocorre quando se propõe a definir o que não é
literatura. Terry Eagleton apresenta um inventário minucioso das
definições existentes, para, a seguir, questioná-las quanto à
pretensão de aceitabilidade. Seus apontamentos classificam como
precárias as definições que concebem a literatura como produto
da imaginação, emprego de uma linguagem peculiar, discurso nãopragmático, desvio da norma, e escrita altamente valorizada. Entre
suas críticas, destacam-se aquelas que se referem ao processo,
realizado pelos estruturalistas, de adaptação pura e simples para
15
ensaios sobre a arte da palavra
o texto literário das análises realizadas pela área de estudos
lingüísticos. Para Eagleton, a literatura, por não possuir essência,
não pode ser definida objetivamente e, sendo assim, só pode ser
conceituada historicamente, a partir dos juízos de valor
relacionados às ideologias sociais. Em outros termos, de acordo com
o autor, a pergunta “O que é literatura?” — a partir da qual grande
parte dos manuais de teoria literária inicia suas discussões —
deve ser substituída por outra: “Quando é literatura?”.
Antonio Candido parece discordar da natureza provisória da
definição de literatura, pois a apresenta como “transposição do
real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe
um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos”
(1973: 53). O autor de Literatura e sociedade elenca três elementos
interdependentes para a efetiva caracterização da literatura: 1)
vinculação à realidade natural ou social; 2) manipulação técnica;
3) atitude de gratuidade (tanto do criador quanto do receptor). Além
de apontar para algumas transformações sofridas pelo texto literário
quando submetido à institucionalização escolar, o autor discute
ainda a literatura como forma de satisfação da necessidade
universal de fantasia por parte do ser humano, a partir da análise
da função formadora da literatura. Para ele, a literatura “humaniza
em sentido profundo (...) ao facultar uma maior inteligibilidade de
uma dada realidade social e humana, da qual constitui
representação” (CANDIDO, 1972: 804). A definição de Antonio Candido
é mais abrangente por apresentar aspectos tanto estruturalistas
quanto histórico-sociológicos, fazendo com que o autor conquiste
maior permanência em termos de teorização acerca da literatura.
Este parece ser o motivo pelo qual esta definição exerce
influência sobre as análises de outros estudiosos. Regina Zilberman,
por exemplo, compreende a literatura como forma de expressão
que, utilizando-se da linguagem verbal, incorpora a particularidade
dessa de construir um mundo coerente e compreensível, logo,
racional. Para Zilberman, é a partir da fantasia que o autor elabora
suas imagens interiores para estabelecer a comunicação com o
leitor. O texto concilia a racionalidade da linguagem, de que é
testemunha sua estrutura gramatical, com a invenção nascida na
intimidade de um indivíduo, e pode lidar com a ficção mais
exacerbada, sem perder o contato com a realidade, pois precisa
16
introdução
condicionar a imaginação à ordem sintática da língua (Cf. ZILBERMAN,
1991: 18). Esta concepção faz crer que a literatura talvez não ensine
nada. Mas seu consumo leva a práticas socializantes. Pode-se
cogitar numa certa afinidade teórica entre as concepções de
Antonio Candido e Regina Zilberman na medida em que ambos
abordam a conjugação existente, por meio da manipulação técnica,
entre fantasia e realidade, visando a construção de experiências
socialmente relevantes, diferentemente de autores que definem a
leitura proveitosa pelo trabalho de desautomatização da linguagem,
na medida em que ocasionaria um efeito de estranhamento no leitor.
Pode-se inferir dessas abordagens o conceito de leitura
subjacente às teorias apresentadas: por ser uma atividade que
propicia uma experiência única com o texto literário, a leitura pode
ser concebida como instrumento de interação social, na qual autor
e leitores mantêm um diálogo aberto sobre experiências, tentando
responder às necessidades de auto-afirmação e identificação dos
seres em seu mundo. Como resposta a este diálogo, a literatura é o
meio pelo qual o indivíduo encontra subsídios para a leitura do
mundo, possibilitando a elaboração de imagens subjetivas e o
conhecimento do outro na estrutura social, devido às
especificidades do texto literário: resultado de um movimento
criativo que se serve da linguagem não só para retratar a realidade
social existente, mas também para acrescentar à realidade histórica
algo inexistente até então.
Nesse sentido, as reflexões reunidas neste livro se
apresentam, sobretudo, como espaço analítico que objetiva mostrar
aspectos da literatura de hoje e de sempre. Compreender a literatura
como arte da palavra empresta ao termo um vínculo fundamental
com sua matéria-prima: na era da civilização da imagem, destacar
o papel da palavra é de suma importância já que é a partir dela que
a literatura procura preservar uma posição privilegiada para a
formação cultural de seus leitores.1
Num primeiro momento, é realizada a abordagem de textos
ligados ao gênero crônica e à comicidade, pois tais textos são, em
muitos casos, desconsiderados pelos estudos literários e sua análise
pretende evidenciar a importância que assumem na sociedade.
Desse modo, discutir questões relacionadas à crônica é a pretensão
do primeiro ensaio, intitulado Retratos da crônica. Busca-se enfatizar
17
ensaios sobre a arte da palavra
o fato de que apesar de muitos autores escreverem suas crônicas
para serem publicadas em jornais ou revistas, isto não impede sua
divulgação em coletâneas, marcando assim a presença expressiva
do gênero no quadro da literatura brasileira. Devido à sua
semelhança com a reportagem, a crônica muitas vezes é
contaminada pela fugacidade do evento que narra. Contudo, os
próprios cronistas pretendem fazer valer a natureza literária de
sua criação quando selecionam certos textos para posterior
publicação em livro, conferindo-lhes um estatuto de maior
permanência, pelo menos não inferior à de outras obras de ficção.
Analisar a utilização da comicidade como forma de persuasão
do interlocutor nas narrativas literárias é o objetivo de Formas e
efeitos da comicidade. O texto tem por objetivo indicar aquelas
características que fazem da comicidade um dos elementos
fundamentais na configuração temática e formal de determinadas
produções literárias. Procura-se inventariar de que maneira o uso
da comicidade como forma de contestação social revela a
preocupação da literatura em mostrar como os paradigmas de
determinadas épocas podem ser questionados pela problematização
de estruturas forjadoras de realidades sociais.
Sobre o pós-modernismo é uma exposição de elementos
vinculados ao pós-modernismo, concebido como conjunto de
manifestações que interferem decisivamente nas atividades
culturais contemporâneas, o que passa a ser demonstrado com
maior ênfase nas últimas décadas do século XX. O texto procura
investigar caminhos percorridos pelo movimento e tal prática visa
apontar alguns caracteres presentes na literatura brasileira.
Como lugar de destino, Cenas e leituras de um mestre da
palavra procura realizar uma apreciação crítica da obra produzida
pelo escritor Luis Fernando Verissimo. As narrativas do autor são
apresentadas como exemplo significativo da literatura brasileira
contemporânea. Sua escrita pode ser inserida no conjunto daquelas
produções literárias que visam à problematização e ao
aprofundamento crítico de seus leitores, ao contrário de parte
considerável dos empreendimentos relacionados aos meios de
comunicação de massa. Contribui para isto a autoconsciência sobre
sua herança literária e sobre os limites da linguagem. Apesar disso,
o autor busca refazer o vínculo entre seus leitores e o mundo
18
introdução
exterior à página. Ou seja, mesmo sendo marcadamente autoreflexivas, as narrativas de Luis Fernando Verissimo inscrevem
situações e formas que visam sinalizar para elementos relevantes
de seu contexto histórico, político e social.
Ao eleger temas da atualidade, tais como o pós-modernismo
e a obra de um autor contemporâneo, é preciso esclarecer algumas
questões relacionadas à suposta necessidade de distanciamento
por parte do pesquisador com relação ao objeto de estudo, atitude
prescrita para uma análise científica. A imparcialidade é, em muitos
casos, sugerida pelo simples distanciamento “cronológico”, fazendo
com que as análises de acontecimentos e manifestações
relativamente recentes sejam alvos de questionamentos.
Procurando validar estas análises, é utilizado, como caso exemplar,
o trajeto dos estudos sobre a obra machadiana.
A importância que Machado de Assis assumiu na cultura
literária brasileira explica-se pela riqueza expressiva de seus textos.
Contudo, é preciso considerar que parte significativa do sucesso
de sua canonização deve-se à fortuna crítica levada a termo por
diversos estudiosos de sua obra. Em outras palavras, pode-se
assinalar que Machado de Assis é famoso tanto pelo que escreveu
quanto pelo que escreveram sobre suas obras.
Dentre seus estudiosos, figura o nome de José Veríssimo,
crítico literário contemporâneo de Machado de Assis, e, por tal
motivo, acusado de realizar leituras limitadas de seus escritos.
Assim, sob vários aspectos, o valor de suas análises é considerado
bastante discutível. No entanto, seus apontamentos foram
importantes para a elaboração de análises posteriores — tais como
a diferenciação entre fase romântica e fase realista da obra
machadiana — e é nisto que reside seu grande trunfo: sua crítica
configurou-se como uma interpretação preliminar que suscitou
possibilidades de abordagem.
A relevância assumida pelos estudos de José Veríssimo sobre
os escritos de Machado de Assis sinaliza, sobretudo, para a
reconhecida lição de que é fácil ser mestre das obras feitas. O difícil
é se aventurar por caminhos não trilhados ou ainda pouco
iluminados, revelando que é da incerteza que nasce, em muitos
casos, a obsessão pelos acertos.2
19
ensaios sobre a arte da palavra
Notas
1. A definição da literatura como arte da palavra é de Afrânio Coutinho (Notas
de Teoria Literária. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a).
2. Alguns depoimentos que atestam tais acertos: em 1956, para marcar o
quadragésimo aniversário da morte de José Veríssimo, Manuel Bandeira registra
o seguinte comentário: “Quarenta anos são passados e estamos constatando
que o seu nome vem crescendo sempre. ‘Só a posteridade teve bastante
isenção para apreciar-lhe bem a probidade’, escreveu a propósito dele mestre
Otto Maria Carpeaux na Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira” (1986a:
12); confirmando os depoimentos dos “mestres” citados, Lúcia Miguel Pereira
destaca que “embora não infalível, já que humano, o senso crítico de José
Veríssimo muito raramente o traiu; em regra, ao contrário, constitui para todos
os que se ocupam da história literária um guia, um orientador firme e da
maior probidade” (apud Montenegro, 1958: 115).
20
*
*
*
CAPÍTULO I
RETRATOS DA CRÔNICA
•♦•
A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas
e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos
e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou
singularidade insuspeitadas (...). Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização
lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa
profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem
fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.
Antonio Candido
O presente texto aborda alguns momentos importantes do
percurso da crônica. Este percurso inclui reflexões de críticos e
escritores que realizaram a exposição de características relevantes
da escrita da crônica. Contudo, antes de entrar nesses temas, é
necessário apresentar algumas considerações sobre a noção de
gênero literário adotada neste trabalho e que servirá de suporte
para demonstrar alguns traços importantes em torno dos quais a
crônica se consolida.
Em texto considerado como uma das iniciativas dos
formalistas russos de incluir em seus estudos alguns aspectos
relacionados ao campo extraliterário — já que foram acusados de
restringirem suas análises à imanência das obras — Jurij Tynianov,
um dos mais destacados teóricos da escola formalista, discute a
conceituação de literatura como processo linear e continuado,
embutida na noção clássica de “tradição”, contrapondo à mesma o
princípio dinâmico de evolução literária. Este é caracterizado então
como um processo no qual ocorrem rupturas, revoltas de novas
escolas e conflitos entre gêneros concorrentes, já que em toda época
existem simultaneamente várias escolas literárias: o que ocorre é
que uma delas representa o ápice canonizado da literatura.
Diante disso, o autor enfatiza que a canonização de uma forma
literária conduz à automatização, provocando, na camada inferior,
a construção de novas formas, as quais conquistam o lugar das
21
ensaios sobre a arte da palavra
antigas, adquirindo a dimensão de um fenômeno de massa e, por
fim, são elas próprias compelidas de volta à periferia. Assim, para o
autor o que marca a natureza artística de uma obra é a sua função
(construtiva, literária, verbal), entendida como sistema, que
possibilita correlacionar-se com outros elementos do mesmo
sistema, e, por conseguinte, com todo o sistema (Cf. TYNIANOV, 1987:
130).
A relevância dessas teorizações está no fato de estabelecerem
relações tanto entre as séries fechadas em si mesmas quanto entre
as séries de diferentes gêneros, intentando destacar a “interação
evolutiva das funções e das formas (...) [pois] nunca se consideram
os fenômenos literários fora de suas correlações, tanto estéticas
quanto históricas” (TYNIANOV, 1987: 134). O autor toma como exemplo
os problemas advindos das definições de prosa e poesia: devido às
funções e formas comuns que integram, só poderiam ser definidas
a partir de suas correlações. Assim, “a variabilidade da função de
um ou de outro elemento formal, o aparecimento de uma ou de
outra função num elemento formal, a sua associação com uma
função, são problemas importantes da evolução literária” (TYNIANOV,
1987: 136).
Apesar de a noção de evolução ser problemática, por implicar
em juízos de valor amplamente discutíveis, o estudo do autor
adquire relevância devido às considerações importantes acerca das
mudanças ocorridas no desenvolvimento da criação literária.
Tynianov empreende, assim, uma abordagem mais ampla do
processo de surgimento, canonização e decadência dos gêneros,
definindo-os como sucessão histórica de sistemas estético-formais
que estabelecem relações tanto internas quanto externas entre as
obras literárias.
Contrariando Benedetto Croce, que enxergava nos gêneros
apenas um simples nome, Austin Warren e René Wellek classificam
os gêneros como: instituições imperativas que exercem pressão
sobre o escritor e são por ele também pressionadas e modificadas;
princípios de ordem e classificação, segundo os quais a literatura é
dividida em tipos literários de organização e estrutura; artifícios
estéticos, à disposição do escritor e inteligíveis ao leitor; convenções
estéticas de que a obra participa, modelando-lhes a forma e o caráter
(WARREN; WELLEK, 1971: 285-293). Em conclusão, o gênero, segundo os
22
retratos da crônica
autores, “deve ser concebido como um agrupamento de obras
literárias, baseado teoricamente tanto sobre a forma exterior
(métrica ou estrutura específica), quanto sobre a forma interna
(atitude, tom, propósito)” (WARREN; WELLEK, 1971: 294).
A partir dessas considerações, a noção de gênero pode ser
compreendida como complexo de símbolos que fornece direções
para encontrar uma imagem das estruturas narrativas registradas
na tradição literária. Este complexo procura orientar os passos na
construção e/ou na leitura das obras literárias: o que ele faz é
informar, tanto aos autores como aos leitores, alguns traços
característicos que assumem o papel de familiarizá-los, ou seja,
fornecer parâmetros para a compreensão das estruturas narrativas
contidas nos artefatos literários.
Essas características não implicam necessariamente numa
função normalizadora, o que impossibilitaria “as relações entre os
diversos gêneros, os gêneros mistos, as obras que incluem os vários
gêneros, a flexibilidade das fronteiras dos gêneros, a sua
transformação e morte, o seu reaparecimento, a adequação melhor
de certos gêneros a épocas estilísticas e às preferências dos autores,
a sua modificação e enriquecimento por certos autores” (COUTINHO,
1978a: 29). Dessa maneira, a adoção do gênero como conceito
poliédrico, multiforme e, portanto, suscetível de mutabilidade,
procura evitar uma concepção tanto absolutista quanto nominalista,
fazendo da noção uma aliada na análise dos caracteres das obras
literárias e não um elemento estanque que defina compromissos
apriorísticos com relação aos estudos literários.
Feita essa ressalva, pode-se então iniciar o trabalho de
apresentação de caminhos percorridos pela crônica até se afirmar
como gênero literário, tentanto evidenciar que tais momentos
revelam os diferentes matizes impressos na crônica ao longo de
seu itinerário. Cabe assinalar que essa descrição será realizada
por meio de “crônicas-fotografias”, entendidas como possibilidades
de retorno textual a determinadas experiências, tal como ocorre
com o trabalho fotográfico. Ao eleger apenas alguns autores, buscase revelar algumas nuanças panorâmicas do fazer cronístico, sendo
que este exercício procura sua validade nos entretons que podem
ser visualizados em meio ao cotejo de textos de diversos autores
que escrevem em tempos também diversos.
23
ensaios sobre a arte da palavra
A palavra crônica, e suas variantes chronica, caronica, cronicão
e cronicon, está etimologicamente ligada ao termo Chronos, deus
da mitologia grega que representa o tempo.1 Com a tradução para
o latim — de Chronos para Saturnus, ou seja, “saturado de anos” —
o termo passou a significar o registro dos fatos atuais. Esta pode
ser considerada uma forma “ingênua” de crônica, porquanto as
categorias “tempo” e “espaço” serviram apenas de princípios
interpretativos inspiradores. Nessa acepção, a crônica assume o
papel de registrar os fatos reais ao longo de sua evolução no tempo.
Tal sentido pode ser facilmente identificado nas crônicas medievais
portuguesas já que estas visam, primordialmente, a apresentar
determinadas seqüências de fatos organizados na ordem temporal
de sua ocorrência original.
Cronistas como Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Ruy
de Pina, entre outros, procuraram desenvolver um trabalho de
compilação de situações e temas relacionados, principalmente, ao
paço real e aos caminhos e descaminhos da expansão ultramarina
de Portugal a partir do século XIV. Em tal conjuntura, esses escritos
assumem uma dimensão pedagógica, na medida em que se
inscrevem no circuito das manifestações dos Espelhos de Príncipes
da nação portuguesa, entendidos como manuais para a educação
dos membros da corte real pelos exempla dos feitos grandiosos
retidos pela pena dos cronistas. O cronista-mor da casa real
portuguesa, Gomes Eanes de Zurara, procurava confirmar a
importância dos exemplos na formação das gerações futuras,
sinalizando a prescrição de ações nobilitantes dos reis ante seus
súditos. Deste modo, um rei “não pode dar herança de maior
riqueza, nem jóia de maior valor a qualquer nobre, e excelente, que
sua imagem pintada de virtudes, na qual, como um espelho, se
possa guardar o lume de seus feitos ante a presença de todos”
(ZURARA apud QUEIRÓZ, 1997: 75).
Agindo de tal forma, o cronista conclui que as pessoas
passariam a adotar a conduta do rei como modelo, pois “vendo-se
homens como aqueles, por vergonha poderão contar usarem de
menos virtude que os outros” (ZURARA apud QUEIRÓZ, 1997: 75). Se as
virtudes e atitudes dos reis são exemplos para os que “hão de vir”,
acrescidas da natureza oficial desses documentos, os cronistas são
24
retratos da crônica
os responsáveis pela permanência de tais exemplos, construindo
assim “a grandeza futura de Portugal para os que descenderem de
suas linhagens, pois “sempre terão razão de se lembrarem de
tamanhos feitos” porque terão tido escritores capazes de escrever
seus feitos para ensinamento e exemplo dos pósteros” (QUEIRÓZ, 1997:
78).
Além da crônica medieval, que empresta, sobretudo, o nome
ao gênero, outros moldes de narrativas européias, ligadas ao
surgimento da imprensa como divulgadora de textos literários,
principalmente a partir do século XVIII , são extremamente
importantes para a construção da crônica. É por intermédio do
jornal que se notabilizam, por exemplo, o ensaio inglês e o folhetim
francês. Na crônica brasileira, pode-se cogitar que ocorre uma
espécie de fusão desses dois tipos de textos. A partir do ensaio, a
crônica adota a noção de tentativa (“essay”), desprezando, em
grande parte, os apelos do rigor acadêmico e levando a um
tratamento mais informal dos assuntos abordados. Do folhetim
absorve a dimensão “ficcional” dos eventos e temas descritos nesta
forma literária.
Com relação ao ensaio, Afrânio Coutinho sinaliza para a
originalidade de Montaigne, escritor francês que, em seus Essais
( 1596 ), teria inspirado vários autores ingleses na escrita de
dissertações breves, concisas e em linguagem familiar. O crítico
enfatiza ainda a oposição entre o ensaio inglês e o sentido que a
palavra assumiu no Brasil: estudo crítico, histórico, político ou
filosófico, comumente publicado em livros e revistas científicas
ligadas geralmente à academia (COUTINHO, 1978: 247-249). No que se
refere ao folhetim, pode-se destacar que a crônica guarda afinidades
com este gênero devido principalmente à destinação para o consumo
imediato. Mas se distingue dele uma vez que não possui qualquer
compromisso com a sucessividade ou com o movimento diacrônico
(PORTELLA, 1998: 34). Como resultado, a crônica se afirma como espaço
heterogêneo em que convivem, por exemplo, o pequeno ensaio, o
conto ou o poema em prosa e sua identidade resulta também dessa
diferença.
A caracterização da crônica como espaço heterogêneo pode
ser definida então como uma decorrência da variedade de tipos em
que pode ser escrita: crônica poema-em-prosa, que apresenta
25
ensaios sobre a arte da palavra
conteúdo lírico; crônica-comentário, na qual se apreciam os
acontecimentos, acumulando assuntos diferentes; crônica
metafísica, que promove reflexões de conteúdo filosófico; crônica
narrativa, que tem por eixo uma história ou episódio; crônicainformação, que divulga fatos, tecendo sobre eles comentários
ligeiros. 2
Esta combinação de gêneros é uma das características
primordiais da crônica brasileira. Contudo, a escrita da crônica no
Brasil não se resume a este aspecto. Ela possui uma longa história
e esta história apresenta personagens considerados fundamentais
no contexto da literatura brasileira.
MOMENTOS REPRESENTATIVOS: CRONISTAS BRASILEIROS
Um dos principais enfoques desse momento do percurso da
crônica talvez deva ser direcionado ao alastramento do jornal a
partir da segunda metade do século XIX, quando ocorre a abertura
de espaço para a publicação de textos curtos. É desse movimento
da imprensa escrita no século XIX que se afirma no Brasil a
publicação de contos traduzidos e o folhetim — compreendido em
suas acepções mais correntes: tanto como romance em capítulos
quanto como crônica. Assim, como outro momento importante
dessa trajetória, agora em solo brasileiro, merece destaque o papel
desempenhado por alguns escritores no trabalho de “elevação” da
crônica à arte literária.
Nomes como os de José de Alencar, Joaquim Manuel de
Macedo, França Júnior, Machado de Assis, Raul Pompéia, Júlia
Lopes de Almeida, João do Rio, Lima Barreto, entre outros, figuram
na lista daqueles escritores que passaram a desenvolver o
“exercício” da crônica cada vez mais preocupados em alcançar uma
dimensão “poética” quando do registro jornalístico dos fatos que
marcaram sua época. No entanto, na maioria desses autores
brasileiros, a crônica apresenta
um ar de aprendizado de uma matéria literária nova e complicada,
pelo grau de heterogeneidade e discrepância de seus componentes,
exigindo também novos meios lingüísticos de penetração e
organização artística: é que nela afloravam, em meio ao material
do passado, (...) as novidades burguesas trazidas pelo processo de
modernização do país, de que o jornal era um dos instrumentos
(ARRIGUCCI JR., 1987: 57).
26
retratos da crônica
Um dos nomes citados acima merece destaque para mostrar
algumas características da crônica brasileira produzida na segunda
metade do século XIX . Trata-se de José de Alencar, escritor
romântico marcado pelo esforço de mapeamento dos caracteres
nacionais por meio de obras que visam retratar a “realidade
brasileira” presente em alguns elementos considerados expressivos
no que se refere à verdadeira nacionalidade. Entre estes elementos,
o Romantismo irá privilegiar a identificação do índio como herói
nacional, a descrição das relações sociais oriundas da crescente
urbanização e modernização da sociedade carioca, as facetas
regionais de um Brasil ainda a ser descrito, entre outros. Apesar
das críticas direcionadas a este “instinto de nacionalidade”, devido
à ingênua noção de pureza nacional, sua produção literária possui
um valor incontestável no que se refere principalmente à valorização
dos temas brasileiros por meio do fazer literário.
Como cronista, Alencar escreve no tempo em que a crônica
ainda era denominada de folhetim ou, em outras palavras, aquele
espaço no rodapé da primeira página dos jornais que tinha como
função primordial passar em revista os principais fatos da semana,
além de ser dedicado à publicação de capítulos de romances. Nesse
espaço, geralmente utilizado aos domingos, cabiam as informações
mais diversificadas, resultando, por exemplo, na reunião, em um
único texto, de apreciações sobre as estréias de espetáculos teatrais,
comentários sobre os bailes e as festividades religiosas mais
concorridas, críticas às especulações na bolsa, entre outros fatos
que marcavam as semanas cariocas. Enfim, “é toda a fisionomia de
uma cidade vivendo o seu primeiro grande momento de progresso
e modernização em moldes capitalistas, embora incipientes, que
se desenha nas páginas de Alencar” (FARIA, 1995: 12). Em texto de
19 de novembro de 1854, espécie de mitologia folhetinística, Alencar
sugere:
Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de
fada ou ninfa, às semanas, como o fez com as horas, não me veria
às vezes em tão sérios embaraços para escrever esta revista.
[Dessa maneira] (...) em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar
novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediria
emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições
e traços para desenhar o meu original (ALENCAR, 1995: 53).
27
ensaios sobre a arte da palavra
O trabalho do escritor, portanto, seria facilitado com a
personificação das semanas, pois teria apenas o trabalho de
qualificá-las de acordo com sua índole: “alegre e risonha” ou “calma
e tranqüila”. Já que não é assim, não resta outra alternativa ao
escritor “senão deixar as comparações e voltar ao positivo da
crônica, desfiando fato por fato, dia por dia” (ALENCAR, 1995: 53).
Característica visível no trecho transcrito, esse tipo de crônica pode
ser qualificado como uma espécie de relato sociocultural da
sociedade carioca na medida em que se prende intimamente aos
acontecimentos semanais, tendo a relação semana/crônica
fundamental importância para a construção do texto, já que esta
relação parece ser encarada como uma espécie de exigência,
restringindo em certa medida a liberdade temática de seu autor.
Sendo assim, a crônica-folhetim é muito mais noticiosa do que
propriamente literária, apesar dos esforços de Alencar – nas suas
“conversas, ao correr da pena, com leitores e leitoras” – em conferir
aos seus textos determinadas características ligadas ao mundo
fictício, por meio do recurso à fantasia, ao humor, ao sonho, ao
devaneio, acrescentando à crônica, além da informação, as funções
de entretenimento e de diversão.
Outro escritor ligado ao século XIX merece menção honrosa.
Para Valentim Faccioli, no Brasil deste século “a crônica nasce, na
prática da escritura cotidiana, com o surgimento dos primeiros
jornais e revistas. Depois de 1860 passa a existir um número
proporcionalmente grande de jornalistas e escritores que praticam
a crônica moderna e lhe dão dignidade de gênero literário” (1982:
139). Esta dignidade, de acordo com o crítico, é acentuada por
Machado de Assis, que “ultrapassou amplamente sua característica
inicial de simples amenidade, de comentário descompromissado
dos pequenos sucessos do cotidiano” (FACCIOLI, 1982: 139). Numa
entrevista, o escritor Carlos Drummond de Andrade, enfatiza que,
devido à sua natureza “fugitiva e fugidia”, a crônica passa depressa.
No entanto, o autor alerta que, não obstante, deve-se reconhecer
que:
Crônicas escritas há mais de cem anos por um cidadão chamado
Machado de Assis estão hoje vivas como naquele tempo. Os
acontecimentos perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu,
28
retratos da crônica
porque ela traduz uma visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva da
realidade, que o acontecimento fica valendo pela interpretação que
Machado de Assis deu (D. ANDRADE, 1999: 13).
Como forma de comprovar as palavras de Drummond
apresenta-se fragmento de uma crônica de 06 de setembro de 1892,
na qual, através do diálogo com seu leitor, Machado adverte que “o
livro da semana foi um obituário, e não terás lido outra cousa, fora
daqui, senão mortes e mais mortes” (ASSIS, 1994: 51). O tema é a
morte e a narrativa se estende através da apresentação dos nomes
das pessoas que “partiram” naquela semana. No entanto, apesar
de estes nomes perderem a atualidade, a introdução do texto é
extremamente interessante devido à alusão do autor à morte com
prazo determinado:
Qualquer de nós teria organizado este mundo melhor do que saiu.
A morte, por exemplo, bem podia ser tão-somente a aposentadoria
da vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia ou desastre,
mas por natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz,
não a poria a cargo dos seus ou dos outros. Como isto andaria
assim desde o princípio das cousas, ninguém sentiria dor nem temor,
nem os que se fossem, nem os que ficassem. Podia ser uma
cerimônia doméstica ou pública; entraria nos costumes uma refeição
de despedida, frugal, não triste, em que os que iam morrer dissessem
as saudades que levavam, fizessem recomendações, dessem
conselhos, e se fossem alegres, contassem anedotas alegres. Muitas
flores, não perpétuas, nem dessas outras de cores carregadas, mas
claras e vivas, como de núpcias. E melhor seria não haver nada,
além das despedidas verbais e amigas... (ASSIS, 1994: 49-51).
Estas linhas apresentam um encanto que permanece através
dos tempos, pois as conjeturas inusitadas presentes no texto levam
o leitor à reflexão sobre a fugacidade da vida, tema que não perde
a atualidade em nenhuma época da “comédia humana”. Além disso,
a morte geralmente é retratada como algo doloroso e traumático,
aspecto que o escritor procura relativizar com a sugestão da morte
não apenas como perda, mas, devido à previsibilidade, como algo
programado e, de tal forma, isento de surpresas. Alguns estudos
recentes investigam nas crônicas machadianas alguns dos traços
característicos de seus romances e contos, narrativas através das
quais se notabilizou.3 Desse modo, nas crônicas machadianas seria
notável a “arte da desconversa: refinada, alusiva, muitas vezes
29
ensaios sobre a arte da palavra
maldosa e sempre irresistível. Ninguém escapa a tanta
movimentação e humor, mesmo depois de todos esses anos do
desaparecimento dos fatos que motivaram aquelas páginas
extraordinárias” (ARRIGUCCI JR., 1987: 59).
Como se vê, Machado de Assis, apesar de ter como prérequisito o comentário dos fatos semanais, investe suas impressões
sobre estes fatos de uma “literariedade” mais expressiva na medida
em que, parafraseando Drummond, o fato fica em segundo plano e
o que prevalece é a interpretação dada ao mesmo. Nesse sentido,
Machado procura desvencilhar-se da obrigatoriedade de retratar
as semanas, qualidade que evita que se tornem datadas e situadas,
já que este pode ser compreendido como um dos empecilhos para
a permanência da crônica. Além disso, outra característica
fundamental da produção machadiana encontra-se na provocação
do leitor, pois, em suas páginas, o leitor está sempre presente,
como visto nos fragmentos acima citados. O leitor é então “o
interlocutor assíduo e participativo que tanto pode ser aliado ou
adversário, personagem principal ou simples coadjuvante, sempre,
porém, referência destacada. Daí resulta uma infatigável
cumplicidade entre escritor e leitor, porque as provocações do
primeiro estimulam, no segundo, um estado de vigília permanente”
(PORTELLA, 1998: 31). Tais circunstâncias podem ser identificadas
também em suas crônicas, nas quais o diálogo constante com seus
leitores estabelece uma maior aproximação entre os interlocutores.
Adquirindo fama a partir do início do século XX, outro autor
que merece ser mencionado é João do Rio — pseudônimo de João
Paulo Alberto Coelho Barreto — por fazer também o registro de
aspectos relevantes da sociedade brasileira daquele período. Vale
destacar em João do Rio seu papel na estruturação da crônica nos
moldes atuais: comentário aparentemente banal sobre determinada
situação, com injeção de elementos ficcionais, numa fusão entre
reportagem de jornal e conto. Dessa forma, o narrador de suas
crônicas pode ser definido como “narrador-repórter”, por fazer a
aliança entre ficção e realidade, de tal maneira que leva ao
desenvolvimento de um gênero híbrido (SÁ, 1985: 07-10).
Este narrador se transforma em flâneur — palavra de origem
francesa ligada ao verbo flanar, ou seja, nas palavras do próprio
autor, “perambular com inteligência” —, podendo assim contemplar
30
retratos da crônica
elementos que fazem da então capital do Brasil um espaço singular,
onde convivem as mais diferentes profissões, crenças religiosas,
festas, vícios e virtudes, ligados, com certa freqüência, às camadas
populares.
Os textos produzidos pelo autor, notadamente aqueles
reunidos em obras como A alma encantadora das ruas, podem ser
descritos como uma homenagem à cidade, em que o acento tônico
recai sobre a rua, personagem principal em grande parte do registro
de acontecimentos, à primeira vista, sem importância. Como
protagonista, a rua aparece personificada por imagens que revelam
a dimensão poética inscrita nas narrativas do autor. Em uma de
suas crônicas mais famosas, ao procurar nos dicionários elementos
para definir sua personagem, o narrador declara que a rua aparece
ali apenas como “um alinhado de fachadas, por onde se anda nas
povoações...” (RIO, 1987: 04). Afirma então que essa definição peca
por não captar a essência da rua: “Ora, a rua é mais do que isso, a
rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!” (RIO, 1987: 04).
É o caso da Rua da Misericórdia, descrita como palco no qual
aparecem marcas expressivas da história brasileira:
Com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casas
velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável.
Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram
os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus, os senhores
em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da
influência jesuítica. Índios batidos, negros presos a ferros, domínio
ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi um grito de
misericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo atirado aos céus.
Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela
decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e os
coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas,
soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes,
ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão
augustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas
lisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de
lhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele grito de mendiga
velha: — Misericórdia! (RIO, 1987: 08).
O Rio de Janeiro que aparece nas páginas do autor é uma
cidade que se modernizava. Entretanto, o autor registra facetas
inusitadas que emergem nesse processo. Assim, a cidade mostrase em palavras por intermédio de um procedimento incomum,
operado pelo autor em relação à matéria real que se fazia crônica:
31
ensaios sobre a arte da palavra
Em lugar de permanecer na redação, esperando que os informes
chegassem até ele, João do Rio saía às ruas, procurava o fato diverso,
o ângulo diferenciado. Assim, seus textos revelam o movimento da
cidade, comentando fatos e pessoas que antes eram meramente
transplantados para o jornal (OLIVEIRA; GENS, 1987: XII).
É com este procedimento que seus textos irão incorporar falas
e imagens curiosas da cidade. Destaca-se a profissão dos caçadores
de gatos: “São os apanhadores de gatos para matar e levar aos
restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale
dez tostões no máximo. Uma só das costelas que os fregueses
rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale
muito mais” (RIO, 1987: 25). Caso curioso é ainda o das pessoas que
marcam seus corpos com tatuagens:
Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de
desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas. A
vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a
tatuagem. As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de
facadas têm indeléveis idéias de perversidade e de amor. Um corpo
desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar
corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a
tatuagem (...), e marcam o mesmo no pé, no calcanhar.
— Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te
aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o
seu nome odiado.
É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira,
amassado por todo o peso da mulher... (RIO, 1987: 33).
Tatuadores, mendigos, pivettes, cantores e versos populares,
cordões carnavalescos, presidiários, modinhas, pintores, meretrizes,
consumidores de ópio, lundus, músicos ambulantes, orações,
velhos cocheiros, mercadores de livros, entre outros tipos e
manifestações humanas-urbanas, compõem o universo das
crônicas de João do Rio, mostrando assim um painel proteiforme
de situações que desembocam ou se originam da “alma encantadora
das ruas”.
Outro momento marcante na história da crônica brasileira,
como não poderia deixar de ser, está ligado à escola que alteraria
substancialmente a linguagem e os temas abordados pela literatura
brasileira a partir das primeiras décadas do século XX : o
modernismo, demarcado cronologicamente pelo advento da Semana
32
retratos da crônica
de Arte Moderna de 1922. Esta escola iria primar pela incorporação
de elementos ligados à linguagem coloquial na busca de uma arte
mais próxima do povo e, desse modo, influenciaria decisivamente
em alguns traços da escrita da crônica literária: “Voltada para as
miudezas do cotidiano, as fraturas expostas da vida social, a finura
dos perfis psicológicos, o quadro de costumes, o ridículo de cada
dia e até a poesia mais alta que ela chega alcançar” (ARRIGUCCI JR.,
1987: 59).
O momento modernista caracteriza-se pela difusão ainda
maior da já expressiva produção jornalística do século XIX, auxiliada
também pela publicação de diversas revistas literárias que iriam
defender e disseminar as propostas do movimento. Em tal cenário,
é preciso ressaltar aquelas características de contestação do
modernismo que libertaram os escritores brasileiros de uma
imemorial e voluntária subordinação aos cânones clássicos de
Portugal, “permitindo-lhes adotar uma linguagem mais livre, mais
solta, mais natural, de inspiração regional e popular, o que
representou sem dúvida um enriquecimento e uma libertação para
a nossa língua literária, tornando realidade aquilo que os românticos
(...) apenas tentaram fazer” (PEREGRINO JR. apud COUTINHO, 1978: 275).
Como movimento, o modernismo se apresenta como
concepção de vida, “gerando um estilo novo de enfrentar a realidade
brasileira, fosse nos processos de dominá-la, fosse nas formas de
representá-la artisticamente” (COUTINHO, 1978: 280). Como figura
modelar da crônica modernista é selecionado aqui o nome de Mário
de Andrade, um dos defensores mais destacados das bandeiras
modernistas, de tal forma que:
Se um movimento deve a uma grande personalidade parte
significativa de seu êxito, é inegável que, no caso do Modernismo,
assim na fase demolidora e heróica, que também em seu período
mais construtivo, essa personalidade dirigente foi a de Mário de
Andrade, que, no conto, na epopéia do Macunaíma, na poesia, na
crítica e teoria literárias, na linguagem, nos estudos folclóricos, para
não referir os vários outros setores onde sua ação se fez sentir,
deixou o sinete de sua capacidade criadora e inovadora em
conquistas definitivas para a inteligência brasileira, conquistas tão
importantes como realizações positivas quanto como lições e
exemplos da genuína e correta atitude do espírito brasileiro, de
agora em diante, no que concerne à literatura, seja no aspecto
temático ou formal, na inspiração ou na técnica (COUTINHO, 1978:
281-282).
33
ensaios sobre a arte da palavra
A crônica escolhida, intitulada “Esquina” e publicada em 17
de dezembro de 1939 , retrata exemplarmente uma das
características relevantes da prosa do modernismo, entrevista na
abordagem de temas ligados ao cotidiano, quando a arte imita a
vida de maneira mais plural, adicionando elementos obscurecidos
em outras obras. Sem prender-se necessariamente aos fatos da
semana, o narrador do texto faz a descrição de todo o emaranhado
de relações que se estabelecem em torno de uma esquina da Rua
do Catete, no Rio de Janeiro, mostrando a visão crítica com que o
autor absorve os detalhes mais recônditos da vida urbana brasileira.
Primeiramente, merece destaque a direção do olhar que o
escritor procura focalizar em sua descrição: a esquina, espaço de
cruzamentos, encontros e interseções de pessoas e situações. Como
forma de identificar seu endereço, o narrador descreve a quais
classes pertencem os transeuntes que “habitam” a esquina. A
primeira é a pequena burguesia, na qual o autor identifica “um
lento exército de infiéis, que fazem todos os esforços imagináveis
para não pertencer à classe operária” (M. ANDRADE, 1991: 68). Numa
referência ao preconceito disseminado de que o trabalho é encarado
ainda como coisa de escravo, o autor ilustra com alguns exemplos
o mascaramento da condição social. Após a descrição desses
personagens pequeno-burgueses, o narrador acrescenta que “(...)
há o caso da gorda, o do paralítico a quem morreu a mulher que o
tratava, o das duas irmãs, mas tenho que descer para o andar térreo.
Na rua quem vive são os operários. Este operariado do Catete, que
mora por aqui mesmo, nos fundos da casa, no oco dos quarteirões,
ou nos vários cortiços que se arriscam a desembocar na própria
rua” (M. ANDRADE, 1991: 71).
Nesse texto, o narrador compara a sociedade brasileira ao
prédio onde reside: as classes abastadas vivem nos andares
superiores, os operários no andar térreo. Dessa maneira, faz desfilar
diante de seus leitores uma galeria de figuras representativas dessas
classes sociais. De início, o olhar é direcionado à frente e, como
está num prédio, focaliza as classes que “moram no alto”. Depois,
o olhar vai para o “térreo”, mostrando a dinâmica do cotidiano do
operariado:
Gente do povo, sempre em mangas de camisa ou nas mais ralas
camisas de meia e tamancos de pau batucando. Muitos vivem de
34
retratos da crônica
pé no chão, mesmo aqui, bem junto da sublime Praça Paris... Não
é uma gente triste, embora todos inalteravelmente sejam de físico
tristonho. O nível de vida é baixíssimo, só as mocinhas se disfarçam
mais. Os outros, mesmo os jovens, mesmo os lusíadas resistentes,
mostram sempre qualquer ruga, qualquer ombro tombado ou peito
fundo, marca de imperfeição. Deles, a vida não é instável, pelo
contrário, graniticamente imóvel (...). Esta gente não viaja, não se
movimenta, é gente que vem até a esquina. De noite após a janta,
ou então aos domingos de camisa limpa, eles têm que descansar e
se divertir um bocado. Então vêm até a esquina, se encostam nos
lampiões, nas árvores, ou se ajuntam, na porta dos botequins,
conversandinho. Os bondes passam cheios do futebol que nos faz
esquecer de nós mesmos. Mas estes homens, nem de futebol
precisam. Só conseguem é vir até a esquina, reumáticos de miséria
e embolorados de inconsciência (M. ANDRADE, 1991: 71).
Em suma, Mário de Andrade opera com uma espécie de
“alegoria formal” ao descrever as relações que ocorrem em torno
do prédio onde mora: quando olha para frente, enfatiza elementos
ligados às pessoas da pequena burguesia; quando “desce ao térreo”
faz a leitura do cotidiano dos operários transeuntes que vêm até à
esquina. Esta atitude alegórica pode ser problematizada como uma
das estratégias modernistas para inscrever, por meio da literatura,
aspectos da realidade social brasileira daquele momento histórico.
A crônica modernista, seguindo a tendência da época e de outros
gêneros:
(...) se convertia num meio de mapear e descobrir um país
heterogêneo e complexo, largamente desconhecido de seus próprios
habitantes, caracterizado pelo desenvolvimento histórico desigual,
de modo que o processo de modernização podia ser acompanhado
pelos contrastes entre bolsões de prosperidade e vastas áreas de
mistura com traços remanescentes de velhas estruturas da
sociedade tradicional. (...) Provinciana e moderna a uma só vez, a
crônica modernista revela uma tensão contínua entre tempos
diversos e espaços heterogêneos, fundindo numa liga complexa
componentes discrepantes, provenientes de formas de vida distintas,
mas mescladas (ARRIGUCCI JR., 1987: 63).
A crônica de Mário de Andrade pode ser entendida, portanto,
como amostra importante do percurso do movimento modernista
brasileiro. A inserção de temas e linguagem ligados às classes
populares parece ser a chave para a compreensão de uma das
características essenciais da releitura da realidade brasileira
preconizada pelo modernismo: tentativa, bem sucedida, de alargar
35
ensaios sobre a arte da palavra
os horizontes da literatura a partir de uma maior abertura, tanto
temática quanto formal, aos vários aspectos que colaboram para a
formação da “brasilidade”, possibilitando a revelação de elementos
poucas vezes registrados pelos escritores brasileiros.
As relações entre o jornal e a crônica apresentam-se como
uma das características fundamentais dessa atividade literária. Tais
relações são expostas de forma pormenorizada por Carlos
Drummond de Andrade:
A crônica é fruto do jornal, onde aparece entre notícias efêmeras.
Trata-se de um gênero literário que se caracteriza por estar perto
do dia-a-dia, seja nos temas, ligados à vida cotidiana, seja na
linguagem despojada e coloquial do jornalismo. Mais do que isso,
surge inesperadamente como um instante de pausa para o leitor
fatigado com a frieza da objetividade jornalística. De extensão
limitada, essa pausa se caracteriza exatamente por ir contra as
tendências fundamentais do meio em que aparece (...). Se a notícia
deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal.
Se a linguagem jornalística deve ser precisa e enxuta, a crônica é
impressionista e lírica. Se o jornalista deve ser metódico e claro, o
cronista costuma escrever pelo método da conversa fiada, do
assunto-puxa-assunto, estabelecendo uma atmosfera de intimidade
com o leitor (D. ANDRADE, 1999: 13).
Desse modo, apesar de “ser no e para o jornal” (MOISÉS, 1983:
247), a crônica não respira os mesmos ares de objetividade comuns
ao discurso jornalístico, pois este “assenta-se em técnicas de
composição, montagem, texto e ilustração que asseguram um
estatuto de verdade —objetiva e imparcial — ao fato relatado. Ou
seja, à medida que [o jornal] se torna cada vez mais moderno, mais
perfeito, consegue promover a ilusão de uma acessibilidade imediata
ao real” (HOLLANDA, 1979-1980: 68).
De forma diversa do que ocorre com o discurso jornalístico, a
crônica caracteriza-se como “pausa subjetivizada” que procura fugir
do simples registro dos acontecimentos, possibilidade para a
instauração do lírico e do lúdico em meio à necessidade da “verdade”
jornalística. Apesar de sua fugacidade, ainda de acordo com o
mesmo Drummond, a crônica não é assim tão passageira. Falando
especificamente de suas crônicas, o escritor enfatiza que elas não
perderam a atualidade porque nem sempre comentam um fato do
dia, ou, quando comentam, procuram dar outra dimensão a esse
fato e fazer uma reflexão qualquer sobre a vida, sobre os costumes,
36
retratos da crônica
sobre a política, sobre os homens, à margem de um acontecimento
transitório. “Sendo assim, a crônica tem uma certa chance de
permanecer” (D. ANDRADE, 1999: 13).
Como se vê, um dos ingredientes fundamentais para a
permanência da crônica parece estar nesse jogo de estender a
análise não apenas aos fatos, mas procurar transmitir ao texto
qualidades que levem o leitor à reflexão. Esta receita já era
reconhecida pelos cronistas do século XIX. Cabe então a pergunta:
o que muda na configuração da crônica a partir da segunda metade
do século XX?
Uma abordagem possível pode ser visualizada quando a
resposta não for procurada apenas na produção e sim na recepção
desses textos, pois, a partir desse período, a crônica, além de ganhar
adeptos que a praticam com certa exclusividade — tais como Rubem
Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Luis Fernando
Verissimo, entre outros — passa a ser publicada em livro com maior
regularidade que em décadas anteriores.
Nesse cenário, pode-se sugerir que a crônica da segunda
metade do século XX apresenta mudanças no que se refere
principalmente à atitude do leitor diante do texto, já que, quando
reunida em antologias, possibilita a leitura de diversas crônicas de
um mesmo autor — ou até de autores diferentes quando da reunião
de diversos cronistas em uma mesma obra —, levando a uma maior
exclusividade na leitura. A partir desse momento, a crônica não
disputa mais espaço com as notícias do jornal devido à ampliação
de seu espaço de divulgação, resultante do maior número de
publicações em forma de livro.
Assim, outro aspecto importante do percurso da crônica
brasileira refere-se às possibilidades de mudança de suporte
ocorridas com essas narrativas nas últimas décadas, na medida
em que vários escritores têm seus textos publicados não mais
somente em periódicos, mas também a partir da reunião em
antologias. Novamente é Carlos Drummond de Andrade quem
esclarece algumas questões ligadas ao processo de transposição
da crônica publicada na imprensa periódica para o livro:
Eu devo reconhecer que muitas das crônicas escritas por mim não
podem perdurar porque, em primeiro lugar, eu não as achei
adequadas a formarem um livro, e depois porque o jornal, que é
tão vivo no dia, é uma sepultura no dia seguinte. Então, essas
37
ensaios sobre a arte da palavra
coisas escritas ao sabor do tempo perdem completamente não só a
atualidade como o sabor, o sentido, a significação (...). Então a
crônica que aborda um fato ou circunstância de vida de determinada
pessoa perdeu completamente o sentido, porque essa própria pessoa
perdeu o sentido. Então não é propriamente a crônica, é o
acontecimento que ela reflete que perdeu a significação (D. ANDRADE,
1999: 13).
As considerações de Drummond são extremamente
importantes no que se refere ao processo de seleção efetuado pelo
escritor — ou por outra pessoa encarregada de organizar a seleção
— quando da passagem da crônica do jornal ou revista para o livro.
Tendo como suporte o livro, esses textos procuram adquirir maior
permanência, além de possibilitar maiores cuidados quando de sua
avaliação crítica.
A reunião de crônicas em antologias guarda afinidades com
um percurso tradicional de difusão de obras literárias no Brasil:
muitos romances do final do século XIX tiveram sua publicação
realizada inicialmente por meio do jornal, usando como recurso a
divulgação em forma de capítulos. Após esta publicação prévia,
essas obras passaram a ser divulgadas em forma de livro, como é o
caso de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio
de Almeida (publicada no suplemento “A Pacotilha” do jornal Correio
Mercantil de 27 de junho de 1852 a 31 de julho de 1853); Memórias
póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (publicada na Revista
Brasileira de 15 de março de 1879 a 15 de dezembro de 1880), entre
outras. A diferença fundamental entre estes romances e as crônicas
está relacionado ao conjunto, pois os romances são construídos
com base na ligação existente entre os diversos capítulos, levando
a uma maior unidade temática dos mesmos.
O que parece unir as crônicas de autores diversos é o fato de
estarem relacionadas aos comentários da vida cotidiana. Assim,
falar sobre os costumes, a política, as manifestações culturais mais
diversificadas parece caracterizar-se como fio condutor dessas
narrativas.
Na obra A crônica Jorge de Sá busca desenvolver um trabalho
de levantamento dos escritores que praticam a crônica como um
de seus gêneros literários prediletos. O autor procura identificar
as características que fazem desse exercício um momento de
reflexão, a pausa necessária diante da conturbada relação com a
38
retratos da crônica
alteridade. Seu estudo envereda pela análise de narrativas de
diversos cronistas contemporâneos, com destaque para Rubem
Braga, Fernando Sabino, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta),
Lourenço Diaféria, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony,
Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes. Analisando o
trabalho de Rubem Braga, Jorge de Sá enfatiza alguns aspectos
relacionados à transitoriedade da crônica. Segundo o crítico, esse
gênero literário “(...) é uma tenda de cigano enquanto consciência
da nossa transitoriedade; no entanto é casa — e bem sólida até —
quando reunida em livro, onde se percebe com maior nitidez a busca
da coerência no traçado da vida, a fim de torná-la mais gratificante
e, somente assim, mais perene” (SÁ, 1985: 17). Dessa maneira, são
relevantes as reflexões de Jorge de Sá, pois corroboram as
considerações de Drummond apresentadas em linhas anteriores
sobre alguns aspectos que envolvem a transposição da crônica do
jornal para o livro, principalmente quando afirma que:
Nessa transposição, é claro que o escritor está buscando fazer da
tenda precária e cigana uma casa sólida e mais duradoura. Mas ele
procura selecionar seus melhores textos, atribuindo-lhes uma
seqüência cronológica e temática capaz de mostrar ao leitor um
painel que se fragmentara nas páginas jornalísticas, ou cuja
unicidade não fora percebida por nós. Nessa seleção, que é feita
como se a própria vida estivesse sendo passada a limpo, o cronista
elimina as crônicas que envelheceram porque ficaram
excessivamente ligadas a um acontecimento datado e situado, hoje
sem nenhuma importância, agrupando na coletânea aquelas que
conservam o seu poder de provocar a nossa reflexão (1985: 19).
Ligada à transitoriedade do jornal, a crônica é direcionada
inicialmente aos leitores apressados desse veículo de informação
diária, cuja elaboração tem como característica primordial a
urgência, pois os acontecimentos são extremamente rápidos, e o
cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Por
tais motivos, sua sintaxe parece muitas vezes estar desestruturada,
muito mais próxima da conversa entre dois amigos do que
propriamente do texto escrito (SÁ, 1985: 10). Essa característica leva
a uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da
oralidade. O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e o literário,
permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como
elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão
sendo tratados numa determinada crônica.
39
ensaios sobre a arte da palavra
A aparência de simplicidade da crônica não implica
necessariamente em desconhecimento das artimanhas artísticas,
já que tal aparência decorre, em grande parte, do fato de que a
crônica surge primeiro no jornal, “herdando a sua precariedade,
esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e
morre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitor
transforma as páginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes
que mais lhe interessam num arquivo pessoal” (SÁ, 1985: 10). Nesse
sentido, a reunião de crônicas em antologias merece destaque como
momento importante do percurso histórico da crônica,
principalmente devido à mudança de atitude do leitor, pois as
possibilidades de leitura crítica se tornam mais amplas, a riqueza
do texto, agora liberto de certas referencialidades, atua com maior
liberdade sobre o leitor — que passa a ver novas possibilidades
interpretativas a partir de cada releitura.
Ao final desse percurso, cabe a interrogação: como falar da
crônica brasileira sem citar o trabalho de Rubem Braga?
Por meio da comparação entre literatura e movimento, podese qualificar algumas modalidades literárias da seguinte forma: a
poesia dança com as palavras, ao “passo” que a prosa anda através
delas. O “cronista-m(ai)or” da literatura brasileira, Rubem Braga,
parece operar uma espécie de fusão desses movimentos, já que em
suas crônicas a prosa é entrecortada constantemente por traços
poéticos, ou, se for válida a analogia, o cronista “caminha
dançando”. Tal é o trabalho de Rubem Braga que, de acordo com
as palavras de um de seus críticos mais atentos, está
situado numa encruzilhada entre o ambiente rural e o urbano, entre
a província querida da infância e o vasto mundo moderno. Seu
espírito parece encantado com os pequenos seres e coisas com que
muitas vezes tece seus relatos e, ao mesmo tempo, vaga desejoso,
errante e solitário pela cidade (que são muitas cidades), sem
encontrar a casa em que se ajuste definitivamente, apenas iluminado
por instantes passageiros de revelação (ARRIGUCCI JR., 1987: 64).
Um exemplo significativo desse processo pode ser identificado
em uma de suas crônicas mais famosas — “O pavão” —, na qual o
escritor faz o seguinte comentário: “O pavão é o arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo
de matizes com o mínimo de elementos. De água e de luz ele faz
40
retratos da crônica
seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade” (BRAGA, 1960:
149-150).
O trecho pode ser lido como sincera e singela homenagem à
crônica, pois esta aparece em seu trabalho como território literário
que — mesmo de forma simples, misturando apenas água e luz —
consegue dizer as coisas mais profundas, com a exposição de
“instantes passageiros de revelação”, muitas vezes imperceptíveis
aos simples mortais, mas que nas palavras do cronista-poeta
assumem imagens que podem integrar a fragmentação das plumas,
como unidades discretas, num uníssono totalizante. Por tais
motivos, “é seguramente o mais subjetivo dos cronistas brasileiros.
E o mais lírico. Apresentando a originalidade de uma imaginação
poética e erradia, Rubem Braga, em seu lirismo, escreve sem ornatos
e alcança às vezes a simplicidade clássica, numa língua despojada,
melodiosa, direta” (COUTINHO, 1986: 133). É de Manuel Bandeira a
justa homenagem ao “taciturno cidadão de Cachoeiro de
Itapemirim”. Para ele, Rubem Braga é o “príncipe da crônica”. E
explica a razão de sua superioridade sobre os outros cronistas:
Parece-me que o segredo dele é pôr sempre no que escreve o melhor
de sua inefável poesia. Os outros cronistas (...) põem também poesia
nas suas crônicas, mas é o refugo, poesia barata (...). A boa, eles
guardam para os seus poemas. Braga, poeta sem oficina montada
e que faz poema uma vez na vida e outra na morte, descarrega os
seus bálsamos e os seus venenos na crônica diária (BANDEIRA, 1986b:
289).
APONTAMENTOS DIVERSOS
Sem pretender resolvê-la, o presente texto buscou alargar a
questão da produção do gênero crônica no Brasil. Desse modo,
numa espécie de síntese, o percurso da crônica brasileira possui
uma trajetória que pode ser definida a partir dos seguintes atributos:
tendo seu nome ligado aos escritos da Idade Média, a crônica pode
ser qualificada como “prima” do ensaio inglês e “filha” do folhetim
francês, sendo que, a partir desse estágio, buscando inspiração
nas artimanhas literárias, passa de simples amenidade sobre o
cotidiano das semanas cariocas para obra relevante no universo
da literatura brasileira, merecedora, assim, da reunião em
antologias e da dedicação quase exclusiva por parte de alguns
41
ensaios sobre a arte da palavra
escritores. Nesse contexto, “(...) a fórmula moderna, onde entra um
fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de
poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da
crônica consigo mesma” (CANDIDO, 1992: 15).
Ressalva importante: apesar de assim parecer à primeira vista,
esse percurso não indica necessariamente que a crônica do século
XIX deva ser considerada melhor ou pior do que a crônica produzida
no século XX. Ocorrem, isto sim, mudanças significativas no que
concerne aos elementos formais, ideológicos e estéticos que
passaram a integrar as obras dos escritores contemporâneos.
Vale ressaltar, ainda, o emprego do termo “narrativas”.
Benedito Nunes, numa análise do Tempo na narrativa, descreve
esta última como sendo uma acepção pertinente não apenas às
atividades literárias, pois, em sentido amplo, o termo pode ser
estendido a outras manifestações culturais. Para o autor, títulos
diferentes como o mito, a lenda e o caso, consideradas formas
simples, literariamente fecundas, não são propriamente literárias
como o conto, a novela e o romance. Contudo, podem ser definidas
pelo mesmo nome. Além disso, a definição do autor surge como
referência relevante devido ao fato de abranger tanto as:
(...) várias espécies de relatos orais e a modalidade escrita –
biografias, memórias, reportagens, crônicas e historiografia – sobre
eventos ou seres reais, que se excluem do nível ficcional (...) [quanto
as] formas visuais, ou obtidas com meios gráficos (histórias em
quadrinhos), e com meios pictóricos ou escultóricos (...) ou que são
obtidas através da imagem cinematográfica e televisionada (1988:
06).
Apesar de não incluir a crônica entre as formas literárias
fecundas, a conceituação assume um papel desmistificador na
medida em que relativiza as discussões em torno dos limites entre
as várias tipologias de gêneros literários, pois estes limites nunca
foram precisos, além de levarem a uma valoração desigual relativa
a determinadas atividades literárias. Entender a crônica como
subgênero ou gênero menor, como fazem alguns teóricos,
apresenta-se como perspectiva no mínimo redutora das virtudes
do gênero, por especificar o valor de determinadas manifestações
literárias pelo seu vínculo ou não a determinadas modalidades
literárias. Caso fosse assim, os escritores se dedicariam apenas
ao conto, à novela ou ao romance. “Catalogar a crônica como gênero
42
retratos da crônica
menor esbarra na evidência de que não existem gêneros menores.
Há grandes e pequenos romancistas, grandes e pequenos poetas,
grandes e pequenos contistas. Também há bons e maus cronistas”
(AMÂNCIO, 1991: 09). Sob esta perspectiva, sugere-se uma sinonímia
entre as crônicas analisadas neste artigo e o termo narrativas, por
ser este entendido como forma menos depreciativa, já que apresenta
características reconhecidas em diversas construções discursivas,
nas quais pode ser compreendido como:
(...) dispersão sintagmática dos acontecimentos através de uma
série temporal apresentada como um discurso em prosa, de modo
a mostrar sua progressiva elaboração como uma forma
compreensível (...). [Dessa forma] o sentido básico de uma narrativa
consistiria, então, na desestruturação de um conjunto de eventos
(reais ou imaginários) originariamente codificados num modo
tropológico, e na reestruturação progressiva do conjunto num outro
modo tropológico (WHITE, 1994: 113).
Vista dessa maneira, a narrativa aparece como um processo
de decodificação e recodificação em que uma percepção original é
esclarecida por achar-se vazada num modo figurativo diverso
daquele em que veio a ser codificada por convenção, autoridade ou
costume. Tais elementos estão presentes tanto na historiografia,
no romance, no conto, na fábula etc., quanto na crônica, o que
viabiliza a utilização do termo para designar esses diferentes
processos de registro de eventos e temas.
Em síntese, percebe-se o papel exercido por trabalhos que
privilegiem estudos sobre a crônica, na medida em que lançar luzes
sobre esse gênero pode ser encarada como uma das possibilidades
de revisão do cânone literário, devido à condição marginal a que foi
submetida a crônica ao longo do registro feito por historiadores e
críticos literários. Entretanto, tal erro talvez não seja fruto apenas
de uma atitude preconceituosa, pois é com o aumento da publicação
em livro — e a dedicação cada vez maior de alguns escritores —
que se afirma o estudo crítico da crônica, fato que se consolida
principalmente a partir da metade do século XX. Contudo, há que
se destacar que o “livro alarga consideravelmente o campo de
divulgação, mas é enganoso supor que o livro é que dá qualificação
definitiva a qualquer escrito” (COUTINHO, 1986: 135). Dessa forma, a
relação entre crônica e livro não sugere que sua permanência esteja
garantida com a reunião em antologias. Sua permanência está
43
ensaios sobre a arte da palavra
inegavelmente ligada às suas qualidades literárias, que não se
alteram quando muda o suporte. O que se procura enfatizar é que
o trabalho de análise intertextual, um dos possíveis caminhos a
serem adotados pela crítica literária, é facilitado quando da
publicação em livro.
Notas
1. De acordo com a mitologia clássica, “o deus Cronos, filho de Urano (o Céu)
e de Gaia (a Terra), destronou o pai e casou com a própria irmã, Réia. Urano
e Gaia, conhecedores do futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria, por
sua vez, destronado por um dos filhos que gerasse. Para evitar a concretização
da profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos de sua união
com Réia. Até que esta, grávida mais uma vez, conseguiu enganar o marido,
dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança recém-nascida. E, assim, a
profecia realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver,
deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que havia devorado.
E liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado por ele e os
irmãos” (L AURITO , 1993: 10). Assim, a lenda de Cronos pode ser lida como
alegoria: a de que o tempo, em sua passagem fatal, engole a todos, tanto os
criadores como suas criaturas.
2. A presente tipologia de categorias foi proposta por Afrânio Coutinho. O
autor ressalta, no entanto, que, devido à flexibilidade do gênero, “essa tentativa
de classificação não implica o reconhecimento de uma separação estanque
entre os vários tipos, os quais, na realidade, se encontram freqüentemente
fundindo traços de uns e outros” (1986: 133). Em outra passagem, o crítico
enfatiza ainda que “a estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambigüidade
é sua lei (...) [já que] os gêneros literários não se excluem; incluem-se”
(1986: 271).
3. Afrânio Coutinho assinala em Machado de Assis uma articulação entre o
fato jornalístico e a invenção literária, de tal maneira que “sua fidelidade à
técnica realista fazia com que ele mergulhasse no contemporâneo a fim de
colher o material da vida que, atingindo o inconsciente, se transformaria num
símbolo de arte. Suas crônicas documentaram esse fato: muitos assuntos
observados no cotidiano, recolhidos na leitura do ‘fait divers’ dos jornais, iriam
servir-lhe como material para crônicas, depois desdobrados em contos ou
introduzidos nos romances, perdendo-se no caminho como realidade e
ganhando em intangível artístico, através de diversos estratos de significado”
(In: Introdução à literatura no Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978, p. 211). Ainda sobre estes traços característicos nas crônicas de Machado
de Assis, consultar: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Trad. de
Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
*
*
*
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CAPÍTULO II
FORMAS E EFEITOS DA COMICIDADE
•♦•
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos,
rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos,
risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir,
risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Vladimir Khlébnikov1
Nas discussões sobre a comicidade um dos enfoques
obrigatórios deve ser dirigido ao produto por ela criado: o riso. Uma
de suas especificidades reside no fato de que o riso ensina pelo
divertimento, advertindo sobre as dificuldades impostas àqueles
que pretendem, com certa freqüência, eternizar significados sobre
determinadas idéias e conceitos.
Segundo Luis Fernando Verissimo, a principal função da
comicidade “é manter viva uma idéia de irreverência (...) de que
nada deve ser reverenciado, de que nada é sagrado, tudo pode ser
questionado, criticado, e, sendo criticado, pode ser melhorado”
(Citado em WEINHARDT, 1985: 17). Falar sobre comicidade é discutir
questões relacionadas às formas de construção de discursos que
visam, primordialmente, desestabilizar as certezas e reivindicar
um lugar no espaço sociocultural por meio do riso. Nesse sentido,
serão comentadas as reflexões de autores considerados expoentes
da renovação dos estudos sobre “um dos mais fluidos fenômenos da
arte” (BOSI, 1988: 189).
45
ensaios sobre a arte da palavra
ANATOMIA DA COMICIDADE
É preciso diferenciar os conceitos de comicidade e humor, já
que este – etimologicamente ligado ao termo latino humore – possui
acepções dicionarizadas que remetem a diferentes campos do
conhecimento: para a Biologia, humor é qualquer líquido que atue
normalmente no corpo, principalmente dos vertebrados (bílis,
sangue, linfa etc.); para a Medicina, humor é a substância mórbida,
líquida, formada no corpo doente, como, por exemplo, o pus; em
outra acepção, a palavra designa ainda a porção líquida do globo
ocular. Além disso, quando ligado ao riso, o conceito está geralmente
relacionado à disposição de ânimo (bom ou mau humor) inerente
àquelas pessoas que apreciam ou expressam coisas engraçadas
(MICHAELIS, 1998: 1117). Portanto, ao adotar preferencialmente o termo
comicidade para estudar as atividades humanas que visam
despertar o riso, procura-se delimitar o tema no âmbito das
realizações artísticas.
Destaca-se também o fato de que a comicidade, com certa
freqüência, está intimamente ligada ao palco, compreendido como
espaço demarcado socialmente para a apresentação de cenas
engraçadas. O teatro e a encenação de comédias, as cortes
medievais e modernas e as apresentações dos bufões (os chamados
“bobos da corte”), os espetáculos circenses e os malabarismos e
peripécias risíveis efetuadas pelos palhaços, ou ainda, mais
recentemente, alguns programas televisivos. Estes são os espaços
nos quais a comicidade aparece como elemento principal. Isto para
afirmar que a comicidade sempre esteve presente na vida cotidiana,
com mais ênfase nas piadas, cuja difusão fez do riso um expressivo
fator de divulgação de valores culturais, notadamente aqueles
ligados à cultura popular. Apesar de estabelecer relações com esses
e outros espaços, a atenção estará direcionada aos recursos usados
para provocar o riso nas produções literárias.
Desde a Antigüidade até os dias de hoje, vários são os
estudiosos que dedicam parte considerável de suas reflexões ao
domínio das manifestações cômicas. Já no século IV a. C., a análise
de Aristóteles faz o registro de um de seus aspectos mais evidentes:
de todos os seres vivos, somente ao ser humano é dada a faculdade
de rir. Dessa forma, “a capacidade de rir (excluído evidentemente o
46
formas e efeitos da comicidade
riso de pura alegria física das crianças) está ligada de perto à
capacidade de pensar, privativa do homem, o único animal racional”
(PAES, 1993: 03).
Além disso, é de Aristóteles a formulação segundo a qual a
percepção do ridículo, como causa do riso, é o elemento essencial
da comédia. Ainda de acordo com o filósofo grego, contrariamente
à tragédia, na comédia ocorreria a passagem da infelicidade para a
felicidade. As idéias aristotélicas parecem estar relacionadas ao
“final feliz” apresentado em muitas comédias tradicionais através
da punição e/ou conversão dos culpados em contraposição ao
triunfo do amor, da pureza dos sentimentos e da virtude (Cf.
ARISTÓTELES, 1982: 246-247).
No final do século XIX, em seu famoso ensaio intitulado Le
rire (publicado pela primeira vez no ano de 1899), o filósofo francês
Henri Bergson (1859-1941) caracteriza o riso como manifestação
humana, insensível e social: é o homem que se apresenta como
espetáculo ao próprio homem; para despertar o riso é necessária
“uma certa anestesia momentânea do coração”; o riso só adquire
sentido quando relacionado aos costumes e valores próprios de
determinada época ou grupo social (Cf. BERGSON, 1987: 13-14).
Para Bergson, a condição primordial para a existência do riso
reside na oposição estabelecida entre o mecânico e o vivo: tudo o
que é rígido, enrijecido, estereotipado e automático entra em
contradição com o que é elástico, movente, individual e irrepetível,
provocando o riso (CF. BERGSON, 1987: 15-18). Os comentários desse
autor revelam aspectos relacionados aos fenômenos risíveis,
principalmente no que se refere às oposições utilizadas para
provocar o riso, entendidos como desvios com relação a
determinadas normas. Por exemplo, a contradição entre aparência
e essência (um palhaço que chora); entre o ser e o dever ser (o
hipócrita que prega determinadas ações, mas que não adota as
mesmas em sua vida cotidiana); entre a expectativa e sua realização
(como alguém que vá a uma “padaria” e não encontre pão para
comprar). Essas contradições, quando manipuladas artisticamente,
podem servir de instrumentos para a instauração de cenas que
despertem o riso no leitor.
Enfatizando também a importância da revelação das
contradições, o escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936), num
47
ensaios sobre a arte da palavra
ensaio de 1920 intitulado L’umorismo, afirma que o riso despertado
pelo humor está relacionado ao sentimento do contrário, produzido
principalmente pela atividade de reflexão sobre as diversas
simulações da luta pela vida, percebidas pela aguda intuição do
escritor.
Segundo o autor, cabe ao humorista encarnar a atitude de
demonstrar os contrastes entre o ser e o parecer, para evidenciar
as fissuras de comportamento e a impotência da condição humana.
Para tanto, o autor chama a atenção para o fato de que tal
procedimento deva ser realizado de forma súbita, rapidamente, sob
pena de atenuar, com a inoportuna demora, o berrante das
contradições (Cf. PIRANDELLO, 1968: 18-26).
Outro estudioso dos elementos da comicidade é Sigmund
Freud (1856-1939), que fundamenta sua análise no caráter liberador,
frente às sanções sociais, presente em modalidades risíveis como
o humor, o cômico e o chiste. A perspectiva psicanalítica freudiana
relaciona, com certa freqüência, essas modalidades com a
sexualidade e a obscenidade, procurando evidenciar o papel
desempenhado por tais fenômenos no reconhecimento e na
superação de tabus encontrados na sociedade (Cf. FREUD, 1969: 242247).
Fundamentais são também as considerações tecidas pelo
pensador russo Vladimir Propp (1895-1970), em sua obra intitulada
Comicidade e riso (cuja primeira edição é de 1976). O autor conduz
sua pesquisa com o propósito de estabelecer uma tipologia do
cômico, tendo como suporte numerosos e variados exemplos de
comicidade na literatura, no folclore, no teatro, no cinema, na vida
diária, além de realizar uma revisão da teoria produzida sobre o
assunto.
Propp enfatiza a necessidade do trabalho empírico. Suas
teorizações partem sempre de um exemplo retirado de alguma
produção artística. Fornecendo definições de diversos aspectos da
comicidade, o autor sugere uma espécie de estética do riso,
elencando as categorias que podem ser usadas como recursos para
suscitar o efeito cômico. Entre os autores recorrentes em estudos
sobre manifestações ligadas à comicidade, os mais significativos
parecem ser Vladimir Propp e Henri Bergson. O privilégio dado aqui
às análises efetuadas por Propp não indica necessariamente
48
formas e efeitos da comicidade
desmerecimento do trabalho de Bergson; o que ocorre é que o autor
russo, em muitas de suas incursões críticas, realiza o estudo de
fenômenos risíveis relacionados a empreendimentos artísticos
produzidos no decorrer do século XX, procedimento inacessível
para Bergson, posto que a divulgação de sua obra ocorre no final
do século XIX. Por tal motivo, privilegia-se as teorizações de Vladimir
Propp, apesar de reconhecer no autor certas limitações oriundas
da defesa, em alguns casos bastante engajada, do uso do riso como
forma de contribuir para a “causa socialista” em voga em seu país
quando da elaboração de sua pesquisa.
Entre os recursos utilizados para provocar o riso, destacamse a paródia, o exagero cômico, e os instrumentos lingüísticos da
comicidade. Dessa maneira, passam a ser apresentadas algumas
considerações sobre esses mecanismos de instauração da
comicidade nos diversos textos literários, utilizando, em alguns
casos, exemplos inseridos no contexto da literatura e da cultura
brasileiras, bem como orientações de outros teóricos sobre o tema.
Intertexto cômico: aproximações e deslocamentos
Reconhecido como um dos elementos mais importantes da
comicidade nos vários registros de discurso, a paródia pode ser
compreendida como um procedimento que pretende encarnar uma
atitude depreciativa com relação ao texto citado, sendo que este
serve de veículo para o processo de ridicularização em um texto
novo. Por exemplo, o provérbio “O trabalho dignifica o homem” é
uma expressão usualmente associada à valorização do trabalho
humano. Mas quando esta expressão é alterada para “O trabalho
danifica o homem” ela carrega um sentido pejorativo. Este
procedimento busca revelar as circunstâncias nas quais o trabalho
é encarado de forma diversa, e por isso o verbo “dignificar” passa
para “danificar” pelo emprego da paronomásia (palavras com sons
semelhantes, mas sentidos diferentes).
A alteração, em termos vocabulares, é pequena. No entanto,
em termos de sentido, ela se coloca opostamente à versão anterior.
Ocorre aí o que se pode chamar de procedimento paródico, pois,
usando como recurso o intertexto, é estabelecida a ruptura com o
texto anterior, por meio do que esta expressão passa a assumir um
sentido completamente distinto.
49
ensaios sobre a arte da palavra
As origens do termo paródia estão ligadas à música. A palavra
deriva do grego para-ode que significa uma ode que perverte o
sentido de outra ode, o que implica na idéia de contracanto (SANT’ANNA,
1985: 12). Nas palavras de Vladimir Propp, a paródia consiste na
“imitação das características exteriores de um fenômeno qualquer
de vida (das maneiras de uma pessoa, dos procedimentos artísticos
etc.), de modo a ocultar ou negar o sentido interior daquilo que é
submetido à parodização” (1992: 84).
As reflexões do autor russo evidenciam que é possível, a rigor,
parodiar vários elementos: “os movimentos e as ações de uma
pessoa, seus gestos, o andar, a mímica, a fala, os hábitos de sua
profissão e o jargão profissional”. Além disso, é possível parodiar
“não só uma pessoa, mas também o que é criado por ela no campo
do mundo material”. Assim, o processo paródico é compreendido
como “um dos instrumentos mais poderosos de sátira social (...)
[pois] revela a fragilidade interior do que é parodiado” (PROPP, 1992:
85-87).
Outro exemplo de parodização, agora mais restrito ao campo
literário, é o texto de Millôr Fernandes, que usa como intertexto o
famoso poema de Manuel Bandeira “Vou me embora pra Pasárgada”.
O autor inicia a paródia já no título: “Vou me embora de Pasárgada”:
Que o Manuel Bandeira me perdoe,
mas...
Vou-me embora de Pasárgada!
Sou inimigo do rei.
Não tenho nada que eu quero
não tenho e nunca terei
Vou-me embora de Pasárgada
Aqui eu não sou feliz.
A existência é tão dura
as elites tão senis
que Joana, a louca da Espanha
ainda é mais coerente
do que os donos do país.
A gente só faz ginástica
nos velhos trens da Central.
Se quer comer todo dia
a polícia baixa o pau.
E como já estou cansado
sem esperança num país
em que tudo nos revolta
já comprei ida sem volta
pra outro qualquer lugar.
Aqui não quero ficar.
Pasárgada já não tem nada
nem mesmo recordação.
Nem a fome e a doença
impedem a concepção.
Telefone não telefona.
A droga é falsificada
e prostitutas aidéticas
se fingem de namoradas.
E se hoje acordei alegre
não pensem que eu vou
ficar.
Nosso presente já era
nosso passado já foi.
Dou boiada pra ir embora
pra ficar só dou um boi.
Sou inimigo do rei.
Não tenho nada na vida
não tenho e nunca terei.
Vou-me embora de
Pasárgada.
(F ERNANDES , Millôr. Millôr definitivo:
a bíblia do caos. Porto Alegre: L& PM ,
1994, p. 353).
50
formas e efeitos da comicidade
Para entender melhor o processo paródico, seguem abaixo
trechos da versão original:
Vou-me embora pra Pasárgada.
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei.
---------------------------------------------------
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar.
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar.
-------------------------------------
(BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa e
verso. 4. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986, pp. 146-148).
Na versão original, Pasárgada pode ser compreendida como
espaço de libertação pelo sonho, de transporte para o futuro
imaginário — ou para o passado-infância — dos desejos preservados
na memória. O que a Pasárgada de Manuel Bandeira possui de
utópica, que não existe em lugar algum, no texto de Millôr
Fernandes assume a cara do Brasil com as referências ao contexto
brasileiro, tais como: “A gente só faz ginástica/nos velhos trens da
Central”.
Pasárgada, lugar paradisíaco e imaginário em Bandeira,
concretiza-se em lugar decadente na paródia de Millôr, pois todas
as vantagens da versão original são contrapostas a vários problemas
encontrados no cotidiano brasileiro, já que “Nem a fome e a doença/
impedem a concepção/Telefone não telefona/A droga é falsificada/
e prostitutas aidéticas/se fingem de namoradas”. A inversão do
provérbio “Dou um boi pra não entrar numa briga, e uma boiada
pra não sair” leva ao riso, porque na Pasárgada parodiada “Dou
boiada pra ir embora/pra ficar só dou um boi”.
Essa transposição da Pasárgada imaginária para a realidade
brasileira encontra sustentação em uma atitude que procura
questionar aquelas imagens — não necessariamente as sugeridas
pelo poema de Manuel Bandeira; por isso, o pedido de desculpas
no início do texto — que fazem do Brasil um lugar paradisíaco,
decorrente de todo um conjunto de textos e idéias que caracterizam
51
ensaios sobre a arte da palavra
o país como espaço edênico. Ocorre, portanto, uma ruptura com
relação a estas imagens anteriores, o que evidencia um processo
de descontinuidade alicerçado na parodização presente na
reelaboração de Millôr Fernandes: aparecem, ao mesmo tempo, a
repetição e a negação dessas imagens.
É ocioso dizer que a paródia não é uma invenção recente já
que podem ser encontrados exemplos significativos de seu uso na
arte tanto na Antigüidade quanto na Idade Média. O que ocorre é
que, a partir da segunda metade do século XIX, com os movimentos
renovadores da arte ocidental — que culminariam, no contexto
brasileiro, nas propostas modernistas de 1922 —, o emprego da
paródia foi intensificado na arte, de tal maneira que passou a ser
um dos objetos de estudo privilegiados por parte da crítica.
Paródia, paráfrase, apropriação, estilização e pastiche podem
ser compreendidos como recursos usados pelos artistas para
inscrever a alteridade em suas obras. Contudo, na paródia “se
introduz naquela outra fala uma intenção que se opõe diretamente
à original (...). É possível parodiar o estudo de um outro em direções
diversas, aí introduzindo acentos novos, embora só se possa estilizálo, de fato, em uma única direção – a que ele próprio propusera”
(BAKHTIN apud SANT’ANNA, 1985: 14).
Como forma de auxiliar a compreensão do procedimento
paródico, pode-se lançar mão também da paráfrase que, ao
contrário, faz o elogio do “texto-fonte”, numa espécie de plágio
autorizado. Exemplo de paráfrase é a estrofe do Hino Nacional
Brasileiro que faz referência à “Canção do Exílio”, famoso poema de
Gonçalves Dias2, mais especificamente a um dos trechos mais
carregados pelos tons ufanistas: “Nosso céu tem mais estrelas/
Nossas várzeas têm mais flores/Nossos bosques têm mais vida/
Nossa vida mais amores” (DIAS, 1997: 05).
Joaquim Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino
Nacional, parafraseia o poema da seguinte forma: “Do que a terra
mais garrida/ Teus risonhos, lindos campos têm mais flores/
‘Nossos bosques têm mais vida’/ ‘Nossa vida’ no teu seio ‘mais
amores’”. O que ocorre na citação – o trecho é, inclusive, marcado
por aspas – é a concordância com relação às idéias do autor original,
o que sugere que a paráfrase opera com uma certa continuidade
estilística, característica que se opõe à ruptura provocada pela
52
formas e efeitos da comicidade
paródia. Por tal motivo, a paráfrase, mais do que um efeito retórico,
pode ser definida como “(...) efeito ideológico de continuidade de
um pensamento, fé ou procedimento estético” (SANT’ANNA, 1985: 22).
Para muitos lingüistas, a paráfrase pode ser associada à
tradução caso esta seja compreendida não apenas como simples
conversão da obra de um autor de uma língua para outra, mas
também como processo de interpretação e transcriação com base
em um texto anterior. Esta associação procura ressaltar a
importância das idéias do tradutor quando da passagem de um
texto para outra língua, o que contraria a idéia de simples estilização
realizada no texto traduzido. Contudo, deve-se reservar o direito
aos leitores de suspeitar da tradução (traição?) de alguns autores,
problemas já apontados exaustivamente por inúmeros estudiosos.
Muito associado à paródia está também o conceito de
pastiche. No entanto, os dois procedimentos apresentam diferenças,
sobretudo porque, com o pastiche, é realizado um trabalho mais
simplório de reunir pedaços de diferentes partes de obra de um ou
de vários artistas (Cf. SANT’ANNA, 1985: 13).
De acordo com Linda Hutcheon, a paródia é uma
representação que, ao contrário do pastiche e da paráfrase, mostra
seu deslocamento, distinção e discordância em relação ao texto
original, mas nem sempre ridicularizando.3 Para Hutcheon, a
paródia é uma síntese bitextual: ao mesmo tempo em que acolhe a
tradição para continuá-la, redefine-a e modifica seus significados,
exibindo elementos que haviam sido descartados ou pouco
destacados por esta tradição.
A definição da autora é sustentada pela diversidade de
acepções expressas pelo radical “para” (como visto anteriormente,
a palavra paródia deriva do grego “para-ode”): além de “contra”, o
termo pode assumir o sentido de “ao lado de”. Por estar ligada à
primeira acepção, a paródia, na definição corrente, exige a presença
do texto parodiado e sua conseqüente ridicularização. Na definição
de Linda Hutcheon, sem descartar elementos considerados
importantes da definição corrente, aparecem referências a casos
em que o procedimento paródico não lida necessariamente com
esses recursos, já que “o seu efeito é o deslocamento do texto
original, invertendo ou deformando o sentido, mas nem sempre às
custas do texto parodiado” (1985: 17).
53
ensaios sobre a arte da palavra
Apesar dessas divergências, o que parece destacar-se como
denominador comum das várias formas de inserção da fala do outro
em determinados textos é a noção de intertextualidade encontrada
em recursos artísticos como a estilização, a paráfrase, a apropriação,
o pastiche e a paródia. Isto revela que, quanto maior for o desvio
efetuado pelo intertexto, maior é a inversão de sentido provocada
com relação ao texto-fonte. Por isso, a paródia se encontra num
dos extremos desse deslocamento, pois realiza de forma mais radical
o processo de distanciamento com o texto anterior. Uma das formas
de assegurar o distanciamento reside na alteração do texto-fonte
pela inclusão de elementos cômicos na reelaboração paródica.
Outras formas de instauração da comicidade
Além da paródia, outro recurso bastante usado para instaurar
a comicidade nos textos é o exagero. Para ser cômico, o exagero
necessita desnudar um defeito, de tal maneira que “se este não
existe, o exagero já não se enquadra no domínio da comicidade. É
possível demonstrá-lo através do exame das três formas
fundamentais do exagero: a caricatura, a hipérbole e o grotesco”
(PROPP, 1992: 88).
Assim, uma forma de exagero cômico consiste na
caricaturização, pela qual “um pormenor, um detalhe (...) é
exagerado de modo a atrair para si uma atenção exclusiva” (PROPP,
1992: 89). Entendido dessa forma, o exagero obscurece as demais
características de quem ou aquilo que é submetido à
caricaturização. O exagero, nesses casos, pode ser físico ou ligado
a fenômenos espirituais, a partir do que a propriedade fundamental
da “representação cômica, caricatural, de um caráter está em tomar
uma particularidade qualquer da pessoa e em representá-la como
única, ou seja, exagerá-la” (PROPP, 1992: 89). Estas considerações
convergem para as de Henri Bergson, para quem “a arte do
caricaturista consiste em captar um pormenor, às vezes
imperceptível, e torná-lo evidente a todos através da ampliação de
suas dimensões” (1987: 87).
54
formas e efeitos da comicidade
Exemplo desse fenômeno pode ser diagnosticado em muitos
caricaturistas que publicam trabalhos em jornais, principalmente
quando são abordados fatos e personagens ligados à política
partidária. Esses personagens geralmente aparecem com algum
detalhe realçado, o que desperta o riso (as sobrancelhas de Leonel
Brizola; o “topete” de Itamar Franco etc.).
Com relação à hipérbole pode-se constatar que ela se
apresenta como uma variedade da caricatura, pois enquanto nesta
ocorre o exagero de um pormenor, naquela o exagero se amplia
para dar conta do todo. A hipérbole, como instrumento de
depreciação, é ridícula somente quando ressalta as características
negativas e não as positivas.
A forma extrema do exagero é o grotesco: ele atinge tais
dimensões que aquilo que é aumentado já se transforma em
monstruoso. Por extrapolar os limites da realidade, o grotesco faz
fronteira com o terrível, principalmente ao conferir caráter fantástico
a uma determinada imagem ou obra. Nas palavras de Propp,
O grotesco é a forma de comicidade preferida pela arte popular
desde a Antigüidade. As máscaras da comédia grega antiga são
grotescas. O descomedimento violento na comédia contrapõe-se
ao comedimento e ao majestoso na tragédia. Porém o exagero não
é a característica única do grotesco. O grotesco nos faz sair dos
limites de um mundo realmente possível. Assim, o conto de Gógol
O nariz constitui pela trama um caso de grotesco: um nariz passeia
livremente pela rua (...). O grotesco é cômico quando (...) encobre
o princípio espiritual e revela os defeitos. Ele se torna terrível
quando o princípio espiritual se anula no homem. O grotesco é
possível apenas na arte e impossível na vida. Sua condição sine
qua non é uma certa relação estética com os horrores representados
(1992: 92).
Relativamente aos instrumentos lingüísticos da comicidade
é preciso enfatizar que a língua constitui um arsenal muito rico de
instrumentos de comicidade e de zombaria. Desse arsenal fazem
parte os trocadilhos, os paradoxos, as “tiradas” de todo tipo a eles
relacionadas (chistes, pilhérias etc.), bem como algumas formas
de ironia.
Entre estes instrumentos, o trocadilho consiste
essencialmente no uso do sentido próprio de uma palavra, em lugar
de seu sentido figurado. Em outras palavras, existem termos que
55
ensaios sobre a arte da palavra
possuem dois ou mais significados; alguns significados têm um
sentido amplo, de certo modo geral, abstrato, e outros os têm mais
restrito, concreto, aplicado. Ocorre assim um jogo de palavras
quando um interlocutor compreende a palavra em seu sentido
amplo ou geral e o outro substitui esse significado por aquele mais
restrito; com isso ele suscita o riso, na medida em que anula o
argumento do interlocutor e mostra sua inconsistência.
Fazendo uso das propriedades polissêmicas das palavras, no
trocadilho o riso é despertado quando o significado mais geral da
palavra passa a ser substituído pelo significado restrito. Contudo,
esse tipo de comicidade “não pode ser nem moral nem imoral em si
mesmo: tudo depende do modo como ele é empregado, do alvo que
ele visa. O trocadilho dirigido contra os aspectos negativos da vida
torna-se uma arma de sátira afiada e precisa” (PROPP, 1992: 123).
O jogo com o significado das palavras ocorre também pelo
uso dos paradoxos. Estes se constituem em sentenças nas quais o
predicado contradiz o sujeito ou a definição não corresponde ao
que passa a ser definido. Em outros termos, no paradoxo, conceitos
que se excluem mutuamente são reunidos, apesar de sua
incompatibilidade. Esse aspecto pode ser contraposto às artimanhas
usadas pelo texto irônico, na medida em que, neste, expressa-se
com as palavras um conceito, mas subentende-se (sem expressálo por palavras) um outro, contrário.
Para delinear a maneira como é instaurada a ironia nos textos
torna-se relevante a definição do que seja o ato de linguagem. Este
pode ser compreendido como um conjunto de elementos
interdependentes: um indivíduo real (sujeito comunicante) que cria
um sujeito enunciador (sujeito da palavra), responsável pelos efeitos
que o uso da linguagem pode ter sobre o sujeito interpretante (leitor
ou ouvinte). Este sujeito enunciador, por sua vez, cria/fala/escreve
para um sujeito interpretante (destinatário) ideal. O objetivo do
sujeito comunicante-enunciador é fazer com que as interpretações
desse destinatário ideal coincidam com as do destinatário real,
entendido como sujeito interpretante real, sendo portanto exterior
ao texto, ao circuito interno da palavra. Finalmente, o texto aparece
como representação do mundo real (Cf. BRAIT, 1996: 55-62).
Portanto, quem escolhe a ironia como meio escrito para
argumentar deve preocupar-se primordialmente com o modo pelo
56
formas e efeitos da comicidade
qual ela pode ser construída, ou seja, o “ironista” deve dispor de
estratégias que instaurem a ironia em seus enunciados. Dessa
maneira, o sujeito comunicante pensa “não-X”; o sujeito enunciador
diz “X” ao destinatário ideal. O sujeito enunciador instaura no texto
pistas para que o destinatário ideal perceba que sua enunciação
não é séria ou direta, ou que “X” é igual a “não-X”. Por meio desse
processo, a ironia pode apresentar elementos cômicos, sobretudo
quando revela alegoricamente os defeitos daqueles ou daquilo de
que se fala. O texto “Alerta Irmão Branco”, de autoria do escritor
Flávio José Cardozo, é um bom exemplo do uso da ironia. Para
chamar a atenção para o extermínio dos índios brasileiros, o autor
do texto inverte a perspectiva ao alertar, ironicamente, o “aumento”
da população indígena. Um dos trechos da narrativa defende um
guarda florestal da acusação de estupro de uma índia. As pistas
deixadas no texto alertam o leitor sobre a leitura a ser feita.
Uma menor, a caminho da escola, foi vítima de uma tentativa de
sedução e agressão. O acusado é um guarda florestal e o comentário
que se impõe à inteligência é logo este: indecorosa e pérfida mentira
dessa menor! Então um homem branco, com todos os séculos de
civilização que traz nas costas, ia descer à animalidade de abusar
duma indiazinha? Não gosto de lidar com conjeturas, mas
conhecendo como conheço o nível da depuração moral a que nós,
todos os brancos, chegamos no correr da História, vejo com clareza
o que realmente aconteceu. Aconteceu que estava o guarda
cumprindo o seu trabalho quando dele se aproximou a citada moça.
Íntegro por natureza, o homem nem sonhava que pudesse ocorrer
no mundo aquilo que acabou ocorrendo ali mesmo naquele trecho
da mata: de repente, a mulherzinha atirou-se sobre ele, impetuosa,
com o transparente propósito de desonrá-lo. Ele defendeu-se com
galhardia, mas a pequena fera insistiu no assalto. Parecia tomada
pelo mais furioso e lascivo dos demônios. De tal modo que acabou
não restando ao agredido senão usar um pouco de sua humilhada
força varonil. A virtude às vezes tem de apelar para a energia e
então o virtuoso recebe a pecha de mau, por vingança, mas isso é
da vida. Foi o que houve. (CARDOZO, 1982: 63).
A utilização da estrutura fônica da língua pode ser usada
também para criar elementos de comicidade no texto, o que significa
que a comicidade “se realiza desviando-se a atenção do conteúdo
do discurso para as formas exteriores de sua expressão. Com isso
a língua perde o significado (...). A perda de sentido do discurso
realiza-se intensificando a atenção sobre o processo, a expensas
de seu conteúdo” (PROPP, 1992: 126). Algumas crônicas de Luis
57
ensaios sobre a arte da palavra
Fernando Verissimo são verdadeiros ensaios sobre o jogo insólito
proporcionado pela sonoridade de algumas palavras. Exemplo disso
pode ser descrito no texto intitulado “Defenestração”:
Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo,
devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas
deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia
Amazônica. A misteriosa Falácia Negra. Hermeneuta deveria ser o
membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles
chegassem, tudo se complicaria.
- Os hermeneutas estão chegando!
- Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada.
------------------------------------------------------------------Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água
(1984: 29).
O narrador investiga as possibilidades de mudança no sentido
de alguns termos — suscitando efeitos risíveis marcados pela
comparação inusitada — quando analisados especificamente com
relação ao aspecto fônico.
Ao domínio da comicidade, realizada a partir de meios
lingüísticos, pertence ainda aquela que surge do emprego dos mais
variados jargões profissionais ou de classes sociais. Nesses casos,
a comicidade não é apenas lingüística, pois “um discurso estranho
ou insólito distingue uma pessoa das outras, tal como o fazem
uma roupa esquisita ou um jeito todo especial” (PROPP, 1992: 128).
Exemplos desse tipo de procedimento podem ser encontrados
na utilização cômica da língua do sábio, da tecnologia profissional,
da terminologia científica, entre outras. Esse é o tipo de recurso,
descrito em forma de diálogo, manipulado por Luis Fernando
Verissimo para ridicularizar alguns termos ligados ao “Economês”:
– Você no momento aconselharia que tipo de aplicação?
– Bom, depende do Jeld pretendido, do throwback e do ciclo
refratário. Na faixa de papéis topmarket, ou o que nós chamamos
de “topi-marque”, o throwback recai sobre o repasse e não sobre o
release, entende? (1978: 89).
O que o autor procura tornar risível é o fato de que palavras
como “Jeld”, “throwback”, “ciclo refratário”, entre outras presentes
58
formas e efeitos da comicidade
no texto, além de serem índice de um transplante equivocado de
termos estrangeiros (sem uma efetiva tradução para o contexto
brasileiro: “ou o que nós chamamos de ‘topi-marque’”), aparecem
então como formas verbais altamente especializadas. Estas formas
provocam reações de estranhamento em interlocutores desavisados
ao serem retiradas de seu espaço específico de uso, no caso, o
“mercado de investimos financeiros”.
DEGRAUS DO RISO
Outra das especificidades do cômico está ligada às diversas
gradações possíveis do movimento realizado pelos lábios humanos
quando da manifestação risível, podendo este ir desde o sorriso
fraco até o estouro fragoroso de uma risada desenfreada. Essas
gradações, em certa medida, podem ser relacionadas aos vários
tipos de riso encontrados junto aos grupos sociais. Entre estes
tipos destacam-se: o riso bom, o riso maldoso, o riso ritual e o riso
de zombaria.
O riso bom será a primeira exploração dessas gradações. Esse
tipo de riso pode ser caracterizado como aquele em que não aparece
a intenção derrisória, ou seja, o escárnio, a mofa ou a atitude de
desprezo, de tal maneira que “os pequenos defeitos daqueles que
nós amamos só embaçam seus lados positivos e atraentes. Se estes
defeitos existem, nós os desculpamos de bom grado” (PROPP, 1992:
159). Esse seria então um tipo de riso atenuado e inofensivo, pois
o autor se encontra do lado do objeto do riso.
Nessa acepção, o riso se enquadra naquelas manifestações
próprias do humor, na medida em que este seja entendido como
“aquela disposição de espírito que em nossas relações com os
outros, pela manifestação exterior de pequenos defeitos, nos deixa
entrever uma natureza internamente positiva” (PROPP, 1992: 152). O
riso bom pode ser adjetivado ainda como riso alegre, já que “este
tipo de riso elimina qualquer emoção negativa e a torna impossível;
ele apaga a cólera e a ira, vence a perturbação e eleva as forças
vitais, o desejo de viver e de tomar parte na vida” (PROPP, 1992: 163).
De forma diversa do riso bom, o riso maldoso muitas vezes
concentra suas forças em defeitos falsos (imaginados ou inventados)
59
ensaios sobre a arte da palavra
levando à maledicência. De acordo com Propp, “deste riso, em geral,
riem as pessoas que não acreditam em nenhum impulso nobre,
que vêem em todo lugar a falsidade e a hipocrisia, os misantropos
que não compreendem como por trás das manifestações exteriores
das boas ações haja realmente alguma louvável motivação. Nessas
motivações eles não acreditam” (1992: 159).
Interligado ao riso maldoso, está o riso cínico, aquele que se
prende ao prazer pela “desgraça dos outros”: “a infelicidade alheia
pode levar um ser humano árido, incapaz de entender o sofrimento
dos outros, a um riso que tem as características do cinismo. Mesmo
o simples riso que zomba não está desprovido de um matiz de
maldade, mas não passa de matiz” (1992: 160-161).
Além do riso bom e do riso maldoso, pode ser enfocado ainda
o riso ritual, comumente destacado quando da análise dos cultos
relacionados à fertilidade da terra, à iniciação sexual, ao parto, à
ressurreição dos mortos, entre outros elementos cerimoniais. Por
tais razões, esta forma de riso está relacionada ao que geralmente
é identificado como a gargalhada.
Carnaval e riso
O riso ritual foi estudado por Mikhail Bakhtin (1895-1975)
num livro fundamental para a compreensão das relações entre a
obra rabelaisiana e a cultura popular de seu tempo: A cultura popular
na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Francois Rabelais.
Com base nas palavras de Rabelais – eternizadas em obras de crítica
satírica dos costumes como Pantagruel (1532) e Gargântua (1534) –
a análise bakhtiniana envereda para o estudo das fontes populares,
apreendidas como chave para a compreensão dessas obras, dando
destaque ao carnaval. Este seria o mito e o rito através dos quais
confluem a inversão brincalhona dos valores e das hierarquias
constituídas; a exaltação da fertilidade e da abundância; o sentido
cósmico do fluir destruidor e regenerador do tempo, representado
pela encenação sincrética de imagens ambivalentes que aproximam,
reúnem e amalgamam o sagrado e o profano, a juventude e a velhice,
o sublime e o desprezível, a sabedoria e a tolice, o grande e o
pequeno, a morte e o nascimento etc.
60
formas e efeitos da comicidade
De acordo com Bakhtin, os temas carnavalescos da cultura
popular, representada por artesãos e camponeses, assumem
características tais que revelam uma complementaridade entre
elementos aparentemente opostos, o que evidencia uma infração
a tudo o que é comum e usual. A concepção de carnaval bakhtiniana
procura captar a essência dessa festa popular a partir da
investigação de suas origens e de seu apogeu. Para tanto, o autor
irá enfocar aquelas características carnavalescas presentes na Idade
Média e no Renascimento – com raízes na Antigüidade – quando o
carnaval se apresenta como uma visão do mundo, muito mais vasta
e popular, de um passado remoto, ao contrário do que é comumente
aceito nos dias de hoje: o carnaval como simples espetáculo
teatralizado, como festejo de mascarados ou como festa vulgar:
O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à
cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da
sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas
carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos,
gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias,
a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma
unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica
popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível
(Bakhtin, 1996: 03).
A percepção carnavalesca estaria, dessa maneira, inserida
numa esfera de relacionamentos livres e íntimos sustentados pela
alegria nas mudanças e numa alegre relatividade, o que se opõe ao
sério oficial que é moroso, monológico e dogmático, realizado,
sobretudo, pelo medo, inimigo da mudança, pois sinaliza para a
absolutização do estado existente nas coisas e na ordem social.
Por esse motivo, a percepção carnavalesca do mundo se opõe a
todo fim que se pretenda definitivo já que considera o fim como um
novo começo. Daí a importância das imagens que revelam um
contínuo renascer.
O carnaval, apesar de não se constituir especificamente num
fato literário, possui implicações com a literatura na medida em
que se apresenta como espetáculo de forma sincrética, de caráter
ritual, apresentando diversas variantes, segundo os povos e as
épocas. Nesse espetáculo, geralmente sem palco e sem separação
entre atores e espectadores, todos participam ativamente. Quando
61
ensaios sobre a arte da palavra
as leis do carnaval estão em vigor, todos se submetem a elas,
aceitando uma forma de vida inabitual, espaço propício para o
questionamento das mais dimensões dos valores nas sociedades.
Desse modo, no carnaval, “ninguém é de ninguém”: as leis,
as proibições, as restrições que normalmente condicionam a vida
cotidiana, deixam de vigorar no período carnavalesco. A primeira a
desaparecer é a ordem hierárquica e, com ela, as formas de respeito
que acarreta: a veneração, a piedade, a etiqueta e aquelas
decorrentes das desigualdades sociais. Pautado em Bakhtin, Propp
denomina a gargalhada, por apresentar-se sem moderação, como
riso rabelaisiano:
Ele é acompanhado de voracidade e outros tipos de dissolução. Nós
agora condenamos a voracidade e por isto o riso rabelaisiano nos
parece estranho. A condenação, porém, não tem apenas um caráter
psicológico, mas também social. Ela é característica daquela camada
de pessoas que sabem o que significa um bom apetite, mas que não
sabem e nunca souberam o que é uma fome longa e terrível. Pois
justamente a uma fome prolongada e à subalimentação eram
condenados os camponeses de todos os países europeus,
especialmente na Idade Média e nos séculos sucessivos. Do ponto
de vista destas camadas sociais, comer e beber à saciedade, até
empanturrar-se a ponto de perder os sentidos, sem respeitar limites
de espécie alguma, não apenas não era inconveniente, mas era até
considerado uma coisa boa. A essa comilança todos se entregavam
em conjunto e publicamente nos dias das grandes festas, que eram
acompanhadas de um riso alto e exultante (1992: 167).
Por intermédio de um processo de rebaixamento dos símbolos
elevados, o riso rabelaisiano supera as distâncias hierárquicas. Ao
aproximar da realidade atual da representação os eventos do
passado, este tipo de riso os familiariza com essa atualidade, e
nessa familiarização os torna objeto de análise. Isto revela que o
riso pode aproximar o objeto e permitir sondar várias de suas
facetas, abalando o medo e a reverência diante do mundo,
estabelecendo um contato familiar com esse objeto, com isto criando
a condição para que ele seja estudado com maior liberdade.
Na análise de Bakhtin destacam-se duas modalidades
narrativas consideradas essenciais: os diálogos socráticos e a sátira
menipéia, fundada por Menipo de Gádara no século IV a. C. Com
relação a esta última, ainda de acordo com Bakhtin, a sátira
menipéia teve em Luciano de Samósata a expressão maior (125-
62
formas e efeitos da comicidade
180 d. C., aproximadamente). Produto direto da cultura do riso, ela
subverte a hierarquia dos objetos da representação, a hierarquia
do espaço e do tempo, dos acontecimentos históricos, suprimindo
os resquícios de barreiras hierárquicas, sociais, etárias, sexuais,
religiosas, nacionais, lingüísticas. Em seus diálogos, em nome da
liberdade de expressão, não subsistem a reverência, as regras de
decoro, a etiqueta e o medo. O riso desempenha um papel de
magnitude até então desconhecida. A ausência de formas de
reverência cria uma impressão caótica relativa à ordem universal
das coisas, desaparecendo assim a sensação de seriedade no
comportamento das personagens e na sua relação com o mundo.
Na visão carnavalesca do mundo,
a abolição das relações hierárquicas possuía uma significação muito
especial. Nas festas oficiais, com efeito, as distinções hierárquicas
destacavam-se intencionalmente, cada personagem apresentavase com as insígnias dos seus títulos, graus e funções e ocupava o
lugar reservado para o seu nível. Essa festa tinha por finalidade a
consagração da desigualdade, ao contrário do carnaval, em que
todos eram iguais e onde reinava uma forma especial de contato
livre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida
cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua
fortuna, seu emprego, idade e situação familiar (BAKHTIN, 1996: 09).
As instituições, portanto, são alvos a serem atingidos com o
rebaixamento e as inversões ousadas. Nestas, os momentos
elevados do mundo, da vida e função dos deuses, dos heróis e das
grandes personalidades históricas e da expressão do discurso oficial
aparecem invertidos, com uma faceta claramente oposta àquela
com que anteriormente se manifestavam. O caos que toma conta
do mundo representa a negação do seu status habitual, o presente
está em processo de formação e o passado é uma categoria que
ainda não desapareceu, mas não serve mais de modelo. O riso
aproxima e dá o tom às coisas, sua ambivalência vislumbra uma
nova perspectiva de construção do universo e assume, em casos
particulares, conotações utópicas.
A familiaridade vislumbrada pelo riso afasta a possibilidade
de representação do passado e o espaço da representação constituise numa zona de contato familiar. Como predomina a familiarização
entre os objetos representados, não há qualquer restrição espaçotemporal para o enredo, que se desloca com total liberdade de
63
ensaios sobre a arte da palavra
fantasia do céu para a terra, do Olimpo para o inferno, do presente
para o passado, e vice-versa. O reino do além-túmulo é o espaço
do congraçamento universal; aí todos os heróis do passado absoluto
e distante, dos tempos lendários, sagrados e históricos, com os
contemporâneos vivos, debatem de modo livre e familiar.
Surge, assim, um modelo utópico de mundo ideal, onde cada
indivíduo é dono de si mesmo e da sua palavra, que flui livre de
muitas injunções usuais, uma vez que o comportamento humano
está fora do alcance das regras de reverência, convívio e etiqueta e
das leis que imperam no cotidiano da sociedade. Em síntese,
“durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo
tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica
do carnaval, seu modo particular de existência” (BAKHTIN, 1996: 07).
A seriedade do riso
Nessa trajetória das peculiaridades de alguns tipos de riso,
merece destaque também uma das modalidades de riso mais
importantes para os estudos literários: o riso de zombaria,
despertado principalmente pela sátira. Para Vladimir Propp, este é
o tipo de riso mais freqüente, pois “é o tipo fundamental de riso
humano e (...) todos os outros tipos encontram-se muito mais
raramente” (PROPP, 1992: 151). Em outra passagem, o autor adverte
que o riso de zombaria “é justamente o tipo de riso que mais se
encontra na vida e na arte, e está sempre ligado à comicidade. E
isto é compreensível. A comicidade costuma estar associada ao
desnudamento de defeitos, manifestos ou secretos, daquele ou
daquilo que suscita o riso” (PROPP, 1992: 171). Por este motivo, o riso
de zombaria é importante, nesta reflexão, pela propriedade
fundamental de gerar condições para o questionamento de alguns
aspectos socioculturais presentes nas relações cotidianas.
Ainda de acordo com Propp, a grande maioria dos estudiosos
afirma que a comicidade decorre de uma contradição entre forma e
conteúdo, aparência e essência. Segundo ele, essa contradição deve
ser vista como um fenômeno que ocorre a partir da interação entre
estas instâncias, pois “a contradição suscitadora do riso é a
contradição entre algo que, por um lado, encontra-se no homem
que dá risada, e, por outro lado, naquilo que está em frente dele e
64
formas e efeitos da comicidade
que se manifesta no mundo que está à volta dele, no objeto de seu
riso” (PROPP, 1992: 173). Assim, afirma que a idéia segundo a qual o
cômico é um conceito correlativo está correta na medida em que
não venha a ser procurada no interior do objeto ou no sujeito do
riso, mas em sua relação recíproca (cf. PROPP, 1992: 173). Partindo
desse conceito de contradição, o autor sugere as condições
necessárias para a configuração da comicidade e para o riso que
ela suscita. Segundo o autor,
quem ri tem algumas concepções do que seria justo, moral, correto
ou, antes, um certo instinto completamente inconsciente daquilo
que (...) é considerado justo e conveniente. Nessas exigências nada
há de sublime ou de majestoso, trata-se apenas do instinto do que
é certo (...). A segunda condição para que surja o riso é observar
que no mundo à nossa volta existe algo que contradiz esse sentido
do certo que está dentro de nós e não lhe corresponde. A contradição
ente esses dois princípios é a condição fundamental, o alicerce para
o nascimento da comicidade (PROPP, 1992: 174).
Desse modo, o riso que zomba é considerado como aquele
que nasce do desmascaramento de defeitos da vida espiritual das
pessoas. Por isso, esses defeitos referem-se ao âmbito dos princípios
morais, dos impulsos da vontade e das operações intelectuais. Em
muitos casos, os defeitos são visíveis por si sós e não têm
necessidade de ser desmascarados.
Contudo, na maioria dos casos, não é isso o que acontece: os
defeitos estão escondidos e precisam ser desmascarados. Para
Propp, a arte ou o talento do cômico, do humorista e do satírico
estão justamente em mostrar o objeto de riso em seu aspecto
externo, de modo a revelar sua insuficiência interior ou sua
inconsistência. O riso é então suscitado por certa dedução
inconsciente que parte do visível para chegar ao que se esconde
atrás desta aparência: “o riso surge quando a esta descoberta se
chega de repente e de modo inesperado, quando ela tem o caráter
de uma descoberta primordial e não de uma observação cotidiana
e quando ela adquire o caráter de um desmascaramento mais ou
menos repentino” (PROPP, 1992: 175).
Por este ângulo, Propp expressa uma fórmula geral da teoria
do cômico nesses termos: “rimos quando em nossa consciência os
princípios positivos do homem são obscurecidos pela descoberta
repentina de defeitos ocultos, que se revelam por trás do invólucro
65
ensaios sobre a arte da palavra
dos dados físicos, exteriores. (...) O riso surge quando o defeito exterior
é percebido como sinal, como signo de uma insuficiência ou de um
vazio interior” (PROPP, 1992: 177). Uma das propriedades fundamentais
do riso está no fato de revelar defeitos como sendo descobertas
inesperadas, apresentadas de forma repentina. Esta propriedade
leva a outra: o riso é de curta duração, pois não pode prolongar-se
muito, já que o riso contínuo e ininterrupto é impossível.
De onde provém então o prazer provocado pelo riso de
zombaria? Segundo Propp, no riso de zombaria a pessoa compara
involuntariamente aquele que é motivo de riso consigo próprio e
parte do pressuposto de não possuir os defeitos do outro, pois “rindo
de um tolo [...] eu pareço a mim mesmo muito superior a ele. O
cômico desperta em nós o sentimento do nosso valor” (1992: 180).
Tais características já haviam sido esboçadas por Aristóteles,
pois, enfatizando a encenação de uma “mímese inferior”, para o
filósofo grego o que individualizaria a comédia é o fato de que as
personagens desse tipo de gênero imitam ações iguais ou inferiores
às ações praticadas pelos homens comuns, ao passo que as
personagens da tragédia são seres superiores (heróis guerreiros,
varões de ilustre linhagem, deuses e semideuses) e perseguem um
fim nobre:
Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes não
podem ser senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quase
só nestas duas categorias, diferindo apenas pela prática do vício ou
da virtude), daí resulta que as personagens são representadas ou
melhores ou piores ou iguais a todos nós (...). A mesma diferença
distingue a tragédia da comédia: uma propõe-se imitar os homens,
representando-os piores, a outra melhores do que são na realidade
(ARISTÓTELES, 1982: 242).
Como se vê, para Aristóteles, esses elementos enfatizam a
comédia como gênero que se define por oposição às características
da tragédia, concebida como imitação da ação de homens
superiores, envolvendo a dor e a violência. Apesar da visão
maniqueísta, utilizada pelo autor para diferenciar as ações
representadas pelos personagens dos diferentes gêneros, suas
discussões apontam para aspectos importantes sobre o
relacionamento palco-platéia (ou texto-leitor). Dessa maneira,
quando o espectador/leitor se envolve com as personagens, de modo
66
formas e efeitos da comicidade
a quase se identificar com elas, tem-se uma relação de estilo grave,
próprio do drama trágico; pelo contrário, quando o espectador/leitor
rejeita as personagens, situando-se num mundo do qual ele se julga
distante, tem-se um relacionamento de estilo cômico. Pode-se
sugerir que, em ambos os casos, ocorre o que Aristóteles define
como purificação (catarse). Contudo, enquanto na tragédia a
purificação se estabelece pela identificação do espectador/leitor
com as ações das personagens — sustentada pelo temor e pela
piedade provocados pelas cenas de violência e dor —, na comédia
essa purificação parece ocorrer a partir do distanciamento
provocado pela ridicularização e pela conseqüente condenação de
determinadas ações.
Em suma, no que se refere à recepção dos textos, essas
considerações remetem a possíveis diferenciações entre a tragédia
e a comédia, pois enquanto esta ressalta a importância do
“estranhamento” do leitor/espectador devido à condenação de
determinados comportamentos, aquela opera com a identificação
do leitor/espectador com as ações das personagens das narrativas,
enfatizando a relação catártica entre as duas instâncias (palco/
texto e espectador/leitor). Sendo assim, o riso, principalmente
aquele despertado pela zombaria, pela sátira etc., pode ser
caracterizado como detentor da propriedade fundamental de
produzir questionamentos, permitindo romper o espaço das
convenções e normas por meio do processo de exclusão de
determinadas ações. Entretanto, o descaso em relação às
possibilidades de análise crítica das manifestações cômicas parece
encontrar apoio nas interpretações equivocadas dadas às idéias
de Horácio (e também de Aristóteles), principalmente no
Renascimento, a partir das quais foi estabelecida uma diferenciação
social dos gêneros, sustentada pela compartimentação dos estilos
em elevado, médio e baixo. A épica e a tragédia passam assim a ser
considerados gêneros reservados a descrições mais nobres,
enquanto a comédia, a sátira e a farsa são caracterizados como
espaços da representação popular e, portanto, inferiores àquelas
modalidades artísticas. Ressalte-se o aspecto normativo de tal
classificação ao defender a doutrina da pureza dos gêneros (cf.
SOARES, 1989: 11-12).
67
ensaios sobre a arte da palavra
O processo de desierarquização dos gêneros, ocorrido com mais
vigor nos últimos séculos, revela, no entanto, que a comicidade
pode ser compreendida como uma das mais importantes armas
para despertar as pessoas sobre as contradições presentes nas
diversas esferas da organização social. Além disso, a integração
dos diferentes gêneros possibilitou o surgimento de modalidades
híbridas. Entre elas, destaca-se a tragicomédia (ou drama moderno),
que apresenta simultaneamente caracteres trágicos e cômicos,
expressos na encenação de acontecimentos ora alegres ora
sinistros. Este procedimento visa negar a oposição sistemática entre
tragédia e comédia, pois a problemática pode ser ao mesmo tempo
transcendental ou banal, as personagens nobres ou vulgares, a
ação dramática pode provocar riso e/ou choro.
Tomando como suporte teórico as análises de V. G. Belínski,
Propp ressalta que cada ser humano tem duas faculdades de visão:
uma, física, para a qual é acessível apenas a evidência exterior, e
outra espiritual, que penetra na evidência interior, como
necessidade que brota da natureza da idéia. A partir dessa
duplicidade da visão, o autor analisa a reflexão que ocorre após o
riso, pois “rindo, nos olhamos (...). Após ter olhado para o mundo
de seu lado exterior e físico, quem ri passa depois a olhar
normalmente para o mundo interior das coisas, isto é, para o aspecto
não cômico, ele, por assim dizer, desloca o olhar” (PROPP, 1992: 183).
Este deslocamento do olhar caracteriza a comicidade como elemento
configurador da percepção crítica do mundo.
Abordando a concepção burguesa de comicidade, que
valorizaria apenas alguns de seus aspectos, Propp analisa a
reformulação que ocorre nessa teoria, chamando a atenção para a
inviabilidade da distinção entre sátira e humorismo, pois, em ambos
os casos, os procedimentos são perfeitamente idênticos. Como
chegar à sátira sem a comicidade? A interdependência entre sátira
e comicidade é assim definida: “a comicidade é o meio, a sátira é o
fim. A comicidade pode subsistir fora da sátira, mas a sátira não
pode existir fora da comicidade” (1992: 186). Propp alerta ainda
para o fato de que a sátira como tal muitas vezes não cura nem
corrige aqueles contra os quais ela é dirigida:
Se assim fosse, para a cura, digamos, do alcoolismo, ou da
marginalidade, bastaria reunir os portadores destas mazelas, levá-
68
formas e efeitos da comicidade
los para um teatro ou cinema e mostrar-lhes uma comédia contra
a bebedeira ou a desocupação, esperando que saíssem de lá sóbrios
e bem-educados. Isso porém não ocorre. No que, então, está o
significado da sátira? A sátira age sobre a vontade daqueles que
permanecem indiferentes diante desses vícios, ou que fingem não
vê-los, ou que são condescendentes, ou mesmo que não sabem
realmente nada sobre eles. Ela levanta e mobiliza a vontade de lutar,
cria ou reforça a reação de condenação, de inadmissibilidade, de
não-compactuação com os fenômenos representados e, por isso
mesmo, contribui para intensificar a luta para removê-los (PROPP,
1992: 211).
Com relação às obras literárias, pode-se eleger a sátira como
instrumento utilizado por vários escritores para desestabilizar a
aura de autoridade presente em algumas instituições: rindo da
autoridade ocorre a aproximação entre as diversas esferas sociais.
Mas isto não é um fato recente.
Além dos já citados Luciano de Samósata e Francois Rabelais,
escritores renomados como Miguel de Cervantes, Jonathan Swift,
William Shakespeare, Jean-Baptiste Poquelin (Moliére), Fiódor
Dostoievski, entre muitos outros, operaram um progressivo
refinamento das manifestações do cômico. No mundo ibérico,
ressalta-se o nome de Gil Vicente: escrevendo num período de
transição – que marca a decadência do trovadorismo e anuncia o
“Século de Ouro Português”, engendrado pelo desenvolvimento cada
vez maior das navegações marítimas e a posterior conquista de
novos territórios (séculos XIV a XVI) –, o escritor português destacase pelo uso da sátira social em seus Autos. Nesse cenário, a obra
vicentina, elegendo o verso como forma de expressão, aproveitou
toda a variedade de sugestões anteriores ou contemporâneas do
teatro medieval, tais como os milagres, os mistérios, as moralidades,
as farsas, entre outras, que lhe inspiraram as peças de grande
aparato e rica encenação.
A humanização característica desse período se deve à
sustentação por parte dos monarcas de uma intelligentsia
portuguesa, com a oferta de incentivos para a realização de estudos
no exterior, tendo como objetivo viabilizar a formação de um grupo
de intelectuais ligados à corte portuguesa. Portanto, é nesse período
humanista que aparece a obra de Gil Vicente, retratando o cotidiano
português da Baixa Idade Média.
69
ensaios sobre a arte da palavra
Contudo, apesar da caracterização do período como o apogeu
do povo português, o teatro de Gil Vicente teria sido prejudicado
pela repressão exercida por parte dos tribunais da Santa Inquisição.
Tal fato deve-se, indubitavelmente, à utilização por parte do autor
da sátira social como forma de contestar os valores correntes de
sua época: as peças de Gil Vicente são descritas como instrumento
de crítica social, por serem flagradas como um diagnóstico dos
“males” da sociedade portuguesa.
Tais males aparecem quando o autor dirige sua pena em
direção às práticas abusivas de estratos sociais como o clero, a
nobreza e a justiça, pois seus vícios são mais condenáveis devido à
maior responsabilidade social inscrita em suas práticas: reis e
bispos não são inocentados pela posição que ocupam na sociedade.
Pelo contrário, para o autor, a punição para seus crimes é muito
mais severa devido à responsabilidade assumida diante da
organização social. Procurando corrigir os costumes mediante o
ridículo, a obra de Gil Vicente é caracterizada pelo uso de elementos
narrativos que irão levar à sátira de aspectos da realidade
portuguesa, identificada assim como uma poderosa arma de crítica
social.
Tentando evidenciar que “a capacidade de convencer
artisticamente é uma das primeiras condições para convencer
ideologicamente [pois] quanto mais elevado o nível artístico, tanto
mais forte a ação de suas idéias” (PROPP, 1992: 191), sugere-se que,
para convencer artisticamente pelo riso, os escritores necessitam
manejar com desenvoltura os meios necessários à instauração da
comicidade. Como exemplos dessas “normas” de natureza artística,
podem ser citados elementos como a configuração sistemática do
clímax inesperado ou, em outras palavras, o que comumente é
identificado como “explosão do riso”; a não-repetição de fenômenos
risíveis; a brevidade; a fusão entre o fantástico – compreendido
como alteração das leis da natureza na narrativa – e o realista; a
simulação da mais completa seriedade e de uma total imparcialidade
em relação àquilo que está sendo narrado, entre outras.
Em síntese, foram apresentados alguns dos aspectos que
contribuem para compreender a comicidade, e sua intenção
primordial, o riso, como fenômenos que possuem mecanismos para
se efetivar e resultados a alcançar. A pequena amostra, apresentada
nos parágrafos anteriores, aponta para a necessidade de
70
formas e efeitos da comicidade
compreender o cômico como uma daquelas modalidades lúdicas —
tais como o jogo — que merecem destaque, apesar de muitas vezes
não serem consideradas sérias o suficiente para uma análise por
parte das ciências humanas.
Notas
1. Poema de autoria do poeta russo Vladimir Klébnikov. Traduzido por Haroldo
de Campos e citado por Rubem Fonseca (Contos reunidos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994, p. 471).
2. Sem dúvida, um dos mais parodiados e mais parafraseados poemas de
todos os tempos da literatura brasileira, como comprovam as posteriores leituras
e releituras de Casimiro de Abreu (“Canção do Exílio”); Oswald de Andrade
(“Canto de regresso à pátria”); Murilo Mendes (“Canção do Exílio); Carlos
Drummond de Andrade (“Nova canção do exílio”); Mário Quintana (“Uma
canção”) (In: RIEDEL , Dirce Cortes [et al]. Literatura Brasileira em curso. Rio de
Janeiro: Bloch Editores, 1969, pp. 373-378). Mais recentemente, outros autores
reelaboraram a “canção”, tais como Antônio Carlos de Brito (Cacaso) através
do poema “Jogos florais” (In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 poetas hoje. 3.
ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998, p. 41). Arnaldo Antunes também revisita
o poema através da música “Eva e eu” (In: ANTUNES , Arnaldo. O silêncio. São
Paulo: WEA , 1996).
3. Um exemplo disso é o texto de Millôr Fernandes analisado em páginas
anteriores: o autor ridiculariza, não a Pasárgada-imaginária de Bandeira, mas
a Pasárgada que se quer construir com base no contexto brasileiro.
*
*
*
71
ensaios sobre a arte da palavra
72
CAPÍTULO III
SOBRE O PÓS-MODERNISMO
•♦•
Antes mundo era pequeno
porque terra era grande.
Hoje mundo é muito grande
porque terra é pequena.
--------------------------------Antes longe era distante
perto só quando dava,
quando muito ali defronte
e o horizonte acabava.
Hoje lá trás dos montes
dende casa, camará.
Ê, volta do mundo, camará.
Ê, mundo dá volta, camará.
Gilberto Gil
Partindo do conceito de civilização da imagem1 pretende-se
enfatizar nesta análise alguns aspectos relacionados ao que se tem
denominado como produções culturais pós-modernas. Estas podem
ser caracterizadas por um crescente incremento no uso da imagem,
em todas as suas formas, possibilidades e objetivos, levando a um
processo de auto-referência constante, uma espécie de reciclagem
imagética jamais vista na história da humanidade. Entretanto, ao
analisar essas manifestações culturais como pós-modernas é
prudente enfatizar o modo pelo qual o termo procura ser
compreendido. Tal questão é pertinente devido ao fato de que vários
são os conceitos de pós-moderno, pois o mesmo encontra-se ligado
a um campo de estudos em formação, cujas fronteiras não estão
ainda claramente delimitadas. Esta falta de delimitação é devida,
em grande parte, ao largo uso do conceito em diferentes áreas.
73
ensaios sobre a arte da palavra
Elementos importantes de análise são aquelas características
do movimento que destacam seu potencial crítico; sua valorização
de modalidades não-hegemônicas de textos; e, com maior destaque,
a dissolução das fronteiras entre os diferentes níveis de cultura:
erudito, popular e de massa.
QUESTIONAMENTOS, INICIATIVAS E PERSPECTIVAS
Apesar de se apresentar como conjunto de manifestações
relativamente recente, podem ser estabelecidas algumas rotas que
visualizem aquelas transformações que atuaram significativamente
para a eclosão do pós-modernismo. Uma delas pode ser relacionada
à perda das ilusões quanto à obtenção de respostas conclusivas
sobre o sentido do universo e da vida, entrevistas no sonho de
unidade e poder representados primordialmente na figura de Deus
ou qualquer outro grande referente tipo História, Natureza,
Conhecimento (Cf. SANTOS, 1995: 59). Ou ainda quanto aos sistemas
de organização social baseados na racionalidade e no maquinismo
que se mostram como formas utópicas, no sentido “negativo” do
termo, quando calcadas na ingenuidade da “igualdade perfeita,
produzida pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela arte”
(SEVCENKO, 1995: 47).
Em muitas das manifestações artísticas pós-modernas
aparece um certo desencanto em relação aos grandes discursos
produzidos e difundidos tanto no século XIX quanto no século XX
— sejam eles denominados de “metarrelatos” (Jean-François
Lyotard) ou “narrativas-mestras” (Linda Hutcheon) — que
procuraram explicar a condição histórica do homem ocidental, nos
seus aspectos econômicos, sociais e culturais. Tal desencanto
decorre da acusação de que essas narrativas/relatos seriam
responsáveis pela constituição, na modernidade, de grandes atores,
grandes heróis, grandes perigos e, principalmente, de grandes
objetivos sociopolíticos e econômicos.
O ponto de partida dessas narrativas/relatos estaria
localizado no ideal libertário da Revolução Francesa, fundamentado
nos princípios da razão iluminista. A condenação desses princípios
está relacionada, principalmente, às suas pretensões totalitárias,
a partir das quais teriam sido interpretadas e/ou moldadas, de
74
sobre o pós-modernismo
forma homogênea, as diferentes realidades sociais nos tempos
modernos. Tais princípios unificadores são compreendidos então
como “ilusões, que, ao fazerem flutuar ideais impossíveis diante
de nossos olhos, nos afastam de todas as mudanças políticas
modestas, porém eficazes, que temos reais condições de criar”
(EAGLETON, 1997: 316-317).
Na busca de novos objetos, o pós-modernismo é
compreendido por muitos de seus analistas como o espaço para a
construção de enfoques antitotalitários, a partir do cotejo,
democraticamente fragmentado, dos discursos heterogêneos,
marginais e cotidianos presentes na configuração social. Isso
ocorreria porque no pós-modernismo, em muitos casos, os artistas
não acreditam mais no absoluto, nem se deixam levar por suas
falsas promessas ( Cf. SEVCENKO, 1995: 50).
Dentre as atividades artísticas que têm sido postas sob a
legenda do pós-modernismo não existe ainda unidade possível, de
tal forma que para alguns autores o movimento é definido numa
relação direta com o desenvolvimento da tecnologia pós-industrial,
baseada na informatização social e sustentada pela ampliação
ostensiva dos avanços da cibernética e da informática; para outros,
o pós-modernismo aparece como movimento de oposição às
convenções estéticas engendradas pelo modernismo; na direção
oposta, o pós-modernismo é muitas vezes denunciado como
conjunto de idéias responsável por um processo de pasteurização
dos recursos artísticos promovidos pelas vanguardas.
Muitas das concepções relacionadas ao pós-modernismo se
caracterizam pelo tom nostálgico próprio daqueles autores que não
conseguem (ou não querem) perceber elementos que balizam o
sentido crítico do movimento. Em seu repertório estão incluídas
propostas de práticas culturais alternativas, identificadas com o
pacifismo, a ecologia, o feminismo, os movimentos de liberação
sexual e manifestações afins. Sendo assim, as propostas pósmodernas revelam, em muitas de suas incursões artísticas, a
sensibilidade para a expressão de uma realidade entremeada por
elementos como o acaso, o contraditório, o aleatório, o humor, o
prazer e a contemplação. Revela-se, portanto, como espaço para “o
aprendizado humilde da convivência difícil, mas fundamental, com
o imponderável, o incompreensível, o inefável — depois de séculos
75
ensaios sobre a arte da palavra
da fé brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado, controlado”
(SEVCENKO, 1995: 54).
Tais aspectos evidenciam “a pluralidade do conceito – para a
idéia de que não há um só pós-modernismo, mas vários – e para a
crítica, presente em todos eles, ao discurso dos universais, que
favorece, com a máscara do consenso, o interesse de grupos
hegemônicos” (E. F. COUTINHO, 1995: 424). Em linhas gerais, o pósmodernismo pode ser relacionado ao questionamento do papel do
Iluminismo para a identidade cultural do Ocidente e à
problematização dos efeitos gerados pela perda da credibilidade
nas metanarrativas fundadoras, notadamente o marxismo e o
liberalismo (Cf. HOLLANDA, 1991: 08).
No que se refere especificamente à criação literária, o pósmodernismo ataca uma de suas convenções mais caras: o realismo
e sua crença numa realidade objetiva que seria singelamente
captada na linguagem por um sujeito-narrador atento e forte, em
franca afinidade com as coisas (Cf. S ANTOS, 1995: 59 ). A nova
complexidade social e cultural das últimas décadas relega a
segundo plano a intenção realista de descrever pessoas e coisas,
pois seus meios já não são suficientes para codificar a realidade
fragmentária e irracional que se dissolve a partir da colagem de
signos, cujos referentes são remotos ou se perderam. Esta colagem,
por sua vez, é formada e consolidada pelos mass media e modelada
principalmente pela televisão, pela moda, pela publicidade, pelo
design etc., despertando os indivíduos para uma nova sensibilidade,
na qual ressalta a descontinuidade.
Um dos enfoques relacionados à pós-modernidade incide
sobre o fato de que, na civilização da imagem, o que prevalece é o
olhar. Isto advém, em grande parte, das implicações entre meios
de comunicação de massa e normatização das relações sociais,
estabelecidas a partir da utilização, principalmente, dos elementos
visuais. Como resultado, de acordo com Silviano Santiago, “as
pessoas já não conseguem hoje narrar o que experimentaram na
própria pele” (1989: 40). Apesar de, à primeira vista, esta formulação
apresentar-se como visão “biografista” da literatura – na medida
em que se pode argumentar, por exemplo, que grande parte dos
escritores certamente não experimentou todas as situações
descritas em suas narrativas – ela parece encontrar fundamento
76
sobre o pós-modernismo
no gradativo “impulso homogeneizante da sociedade de consumo
do capitalismo recente” ( H UTCHEON, 1991: 30). Este processo é
responsável, em certa medida, pela crescente uniformização do
imaginário social produzida pela constante padronização exercida
pelos meios transmissores de imagens. Como conseqüência, o
“visual” torna-se onipresente na pós-modernidade: as imagens
televisuais aparecem em todos os lugares.
No entanto, pode-se cogitar que a imagem não prevalece de
forma solitária, já que se pode considerar que também a sonorização,
quando aliada à imagem, exerce um papel significativo na
padronização do imaginário social. Em outras palavras, a
combinação precisa entre som e imagem efetuada pelos meios de
comunicação de massa teletransmissores de imagens,
representados principalmente pela televisão e pelo cinema, atua
decisivamente na recepção dos textos veiculados nesses meios.
Este processo parece decorrer de uma das maiores criações
humanas do século XX: a ampliação progressiva das possibilidades
de gravação das memórias, surgidas, num primeiro momento, a
partir do daguerreótipo (em seus diversos sucedâneos: fotografia,
vídeo, fita cassete, entre outros) — indo muito além das
possibilidades da imprensa e da pintura de períodos anteriores —
alcançando seu auge com a informatização social ocorrida nas
últimas décadas, quando os grupos sociais passaram a
recontextualizar o passado pelo emprego desses recursos. Esta
recontextualização gera, por sua vez, uma maior predominância
da imagem quando da narrativização da realidade social.
Desenvolvendo um modelo de análise baseado na arquitetura
pós-moderna — setor, segundo a autora, no qual pode ser
identificada mais claramente a utilização de um complexo de temas
e formas pós-modernas — Linda Hutcheon, em sua Poética do pósmodernismo, procura assumir uma postura crítica com relação ao
tema, alertando para o fato de que o pós-modernismo é uma
atividade cultural em andamento. Tendo em vista tal perspectiva,
a autora propõe, ao invés de uma definição estável e estabilizante,
uma poética, ou seja, uma estrutura teórica aberta, em constante
mutação, com a qual possamos organizar nosso conhecimento
cultural e nossos procedimentos críticos.
77
ensaios sobre a arte da palavra
Para tanto, defende a ampliação dos estudos literários de tal
maneira que estes possam ser inseridos em uma “tipologia dos
discursos” na qual tanto a arte quanto a teoria a respeito da arte (e
da cultura) devam ser partes integrantes. A autora canadense
compreende que tal empreendimento ultrapassaria o estudo do
discurso literário e chegaria ao estudo da prática e da teoria
culturais. Contudo, uma poética do pós-modernismo não proporia
nenhuma relação de causalidade ou identidade entre as artes ou
entre a arte e a teoria. Ofereceria apenas, como hipóteses
provisórias, sobreposições constatadas de interesse. Para Linda
Hutcheon, seria uma questão de ler a literatura por intermédio
dos discursos teóricos que a circundam, e não como sendo contígua
à teoria (Cf. HUTCHEON, 1991: 32).
Essa posição parece estar ligada a uma das características
tanto da arte quanto da teoria pós-modernas: o intercâmbio
constante entre diferentes disciplinas. Nesse contexto, as relações
estabelecidas entre disciplinas diversas, antes compartimentadas,
passa a ser uma fonte para a discussão de questões entendidas
como estando interligadas: “essa indeterminação disciplinar
assinala um esgotamento da tradicional divisão do trabalho
intelectual (...) [o que] indica que as maneiras clássicas de dividir o
conhecimento em partes acham-se hoje, por duras razões históricas,
em grandes apuros” (EAGLETON, 1997: 327).
Assim, é por meio do diálogo entre Literatura, História,
Lingüística, Antropologia, Psicanálise, Sociologia, entre outras
áreas, que se avolumam estudos empenhados em demonstrar a
validade das análises realizadas com base na interação entre os
diferentes campos de conhecimento. Diante deste quadro de
referências, tanto a literatura como a história pós-modernas
rejeitaram o ideal de representação que por tanto tempo as dominou.
Atualmente, as duas disciplinas encaram seu trabalho como
“exploração, testagem, criação de novos significados, e não como
exposição ou revelação de significados que, em certo sentido, já
‘existiam’ mas não eram percebidos imediatamente” (HUTCHEON, 1991:
21).
Como resultado da descrença nas práticas racionais surgidas
com o processo de mitificação da ciência, que passou a ser encarada
como um dos caminhos mais seguros para a obtenção de respostas
78
sobre o pós-modernismo
“necessárias” à organização das sociedades, o pós-modernismo
procura propor novas leituras da realidade social, sem, no entanto,
esquecer de alertar sobre a condição provisória de tais leituras.
Portanto, de forma diversa do modernismo, principalmente europeu
e norte-americano, que acreditava poder impor uma nova ordem
de idéias, muitas das produções pós-modernas procuram
“problematizar mais do que manipular os códigos culturais,
interpelar mais do que dissimular as articulações políticas e sociais”
(HOLLANDA, 1991: 09).
Dessa maneira, “as abordagens pós-modernas (...) questionam
o ideal totalizante modernista de progresso por meio da
racionalidade e da forma purista” (HUTCHEON, 1991: 46). Contudo, à
ingenuidade da rejeição, ideológica e esteticamente motivada, do
modernismo em relação ao passado (em nome do futuro) não se
opõe um saudosismo igualmente ingênuo por parte do pósmodernismo. A História, o eu individual e os conceitos de identidade
e autoria, a relação da linguagem com seus referentes e dos textos
com outros textos, essas são algumas das noções que, em diversos
momentos, pareceram ‘naturais’ ou pareceram, de maneira não
problemática, fazer parte do senso comum. E é para elas que se
volta o questionamento. A cultura é desafiada a partir de seu próprio
interior: desafiada, questionada ou contestada, mas não implodida
(Cf. HUTCHEON, 1991: 16).
Enfatizando algumas características do movimento, Linda
Hutcheon destaca que o pós-modernismo se caracterizaria pelo
fascínio diante de categorias como o diferente, o paradoxal, o
múltiplo e o provisório, priorizando “o desafio da certeza, a
formulação de perguntas, a revelação da criação ficcional de alguma
‘verdade’ absoluta” (1991: 72-73). Ainda de acordo com as palavras
da teórica — falando sobre a autoconsciência crítica do movimento
— os discursos pós-modernistas, tanto teóricos como práticos,
“precisam dos mitos e convenções a que contestam e reduzem (...).
[No entanto] o impulso pós-moderno não é buscar nenhuma visão
total. Ele se limita a questionar. Caso encontre uma dessas visões,
ele questiona a maneira como, na verdade, a fabricou” (HUTCHEON,
1991: 21, grifos da autora).
Andreas Huyssen procura contextualizar, a partir da década
de 1960 , a emergência e a constituição das alterações
79
ensaios sobre a arte da palavra
paradigmáticas que caracterizariam o pós-moderno tanto na prática
como na teoria, principalmente no contexto norte-americano. O
autor enfatiza assim a noção de que o pós-modernismo deve ser
visto como condição histórica e aponta algumas questões
relacionadas ao debate entre modernismo e pós-modernismo:
A revolta dos anos 60 nunca foi uma rejeição do modernismo per
se, mas uma revolta contra a versão do modernismo que havia sido
domesticada nos anos 50, incorporada pelo consenso liberalconservador da época e transformada em arma de propaganda no
arsenal cultural e político da guerra fria anticomunista. O
modernismo contra o qual os artistas se rebelaram já não era mais
percebido como uma cultura de oposição. Não mais se opunha a
uma classe dominante e a sua visão de mundo, nem havia
preservado sua pureza programática, livre da contaminação da
indústria cultural. Em outras palavras, a revolta surgiu
precisamente a partir do sucesso do modernismo, do fato de nos
Estados Unidos, como na Alemanha Ocidental e na França, o
modernismo ter sido pervertido, convertendo-se em uma forma de
cultura afirmativa (1991: 34).
A partir daí o autor estabelece alguns fatores que teriam
interferido decisivamente para a consolidação da fase inicial do
movimento pós-moderno: o predomínio de uma “imaginação
temporal” com um forte sentido do futuro e de novas fronteiras, de
ruptura e de descontinuidade, de crise e de conflito de gerações; o
ataque à institucionalização da chamada “grande arte” — guardada
em museus, galerias, concertos, discos, livros etc. — por meio de
manifestações alternativas ligadas à contracultura, tais como a arte
pop, a arte psicodélica, o acid rock, o teatro de rua, entre outras;
uma visão eufórica da estética tecnológica produzida pela sociedade
pós-industrial; e a valorização da cultura popular, incorporada pelos
meios de comunicação de massa, como um desafio aos cânones da
arte tradicional.
Em suma, para o autor, o pós-modernismo dos anos 1960,
especialmente nos Estados Unidos, teria alguns traços de um
genuíno movimento de vanguarda. Tais traços seriam redefinidos
nas décadas de 1970 e 1980 devido à crescente circulação comercial
dessas manifestações, privando-as de seu estatuto vanguardista
(1991: 36-43). Além disso, o sentimento de euforia teria sido abalado
pela agonia da Guerra do Vietnã, pela crise do petróleo, pela
permanência da guerra-fria alimentada pela ameaça atômica,
80
sobre o pós-modernismo
entre outras circunstâncias que dificultavam a manutenção da
confiança no futuro profetizada na década anterior. Com relação a
esses aspectos, o autor afirma que:
Uma das principais diferenças entre o alto modernismo e a arte e
a literatura que se lhe seguiram nos anos 70 e 80 consiste, tanto
na Europa quanto nos Estados Unidos, numa relação nova e criativa
entre a grande arte e certas formas de cultura. E é precisamente a
recente auto-afirmação de culturas minoritárias e sua emergência
na consciência pública que têm minado a crença modernista de
que a alta cultura e as culturas inferiores devem permanecer
rigorosamente separadas (1991: 41).
Como visto anteriormente, essa “crença modernista” na
separação rigorosa das culturas pode ser questionada com relação
ao modernismo brasileiro, já que o movimento no Brasil se
caracteriza, entre outros fatores, pela inserção de elementos ligados
à cultura popular. Um ponto que merece atenção especial quando
se direcionam as discussões sobre o pós-modernismo no Brasil – e
poderia se dizer, apesar das especificidades, também na América
Latina – é a necessidade de indicar alguns elementos que atuaram
e atuam decisivamente na configuração histórico-cultural desses
países, tornando-os distintos de outras culturas, tais como a
européia e a norte-americana.
Tal posição deve ser assinalada devido ao fato de que parte
considerável dos estudos que abordam o tema referencia a defesa
da heterogeneidade encontrada nas formações socioculturais latinoamericanas como ingrediente fundamental que contribuiria para a
afirmação de que o continente pode ser considerado o “berço do
pós-modernismo”. Nessas formações, seria marcante a presença
de produções artísticas caracterizadas como descontínuas, híbridas
e alternativas. Isto ocorreria devido à “coexistência de mundos
absolutamente distintos” como fator responsável pelo surgimento
de manifestações pós-modernas.
Contrariando tal perspectiva, Eduardo Coutinho adverte que
devem ser assinalados os riscos e os limites daí decorrentes, uma
vez que os diferentes estágios de modernização — dos países
comumente denominados como “centrais” em relação aos também
comumente denominados “periféricos” — podem ser identificados
como elementos cruciais para o surgimento dessa heterogeneidade.
81
ensaios sobre a arte da palavra
Segundo o autor, tal argumento “peca sobretudo por não levar em
conta o fato de que as formações socioculturais referidas não são o
resultado de estratégias pós-modernas, mas, ao contrário,
produzem-se (...) pela implementação desigual da modernização”.
Nesse cenário, as narrativas heterogêneas produzidas nos países
periféricos são, antes de mais nada, “respostas ou propostas
estético-ideológicas locais diante da transnacionalização capitalista
não apenas na América do Norte e na Europa, mas em todo o
mundo” (E. F. COUTINHO, 1995: 425).
Nesse sentido, é válido que se insiram as manifestações
artísticas produzidas na América Latina no quadro pós-moderno,
desde que se atente para o fato de elas apresentarem “signos
peculiares que encerram inclusive contradições como as que
sinalizam as diferenças entre as sociedades pós-industriais
altamente tecnicizadas e o contexto latino-americano” (E. F. COUTINHO,
1995: 425). Por meio da crítica anticolonialista, os debates entre
modernidade e pós-modernidade adquirem força especial nas
culturas periféricas, que se vêem cada vez mais arrastadas para a
órbita de um Ocidente pós-moderno sem que ainda nem mesmo
tenham, para o bem ou para o mal, passado por um processo de
plena modernidade ao estilo europeu (Cf. EAGLETON, 1997: 324). Uma
atitude prudente teria que considerar então que o processo de
modernização ocorrido nas últimas décadas na América Latina
apresenta uma feição peculiar, característica de uma economia
dependente e de uma realidade social fortemente matizada e
diferenciada, e as manifestações estéticas aqui surgidas estão em
constante diálogo com estes aspectos.
É preciso, portanto, destacar, em muitos casos, algumas
particularidades das produções artísticas surgidas nas últimas
décadas no cenário latino-americano – aqui, nesse estudo, mais
especificamente no Brasil. Isto porque tentar estender determinados
conceitos, de forma ampla, a manifestações culturais de diferentes
países, apresenta-se como posição, em certa medida, incoerente:
como combater “narrativas-mestras”, uma das propostas centrais
do movimento, pela instituição de respostas totalizantes.
Apesar da ênfase na diferença, muitos dos estudos
empreendidos por pesquisadores ligados aos países “centrais” —
que merecem elogios por servirem, sobretudo, como resposta à
82
sobre o pós-modernismo
atitudes etnocêntricas que privilegiam apenas obras produzidas
no contexto euro-norte-americano — são acusados, no entanto,
de congregar equivocadamente sociedades muito diferentes sob
uma mesma categoria, tais como a de “Terceiro Mundo”. Como
resultado, “sua linguagem tem, com muita freqüência, traído um
prodigioso obscurantismo absurdamente distante dos povos pelos
quais ela fala” (EAGLETON, 1997: 325). Um exemplo desse procedimento
pode ser detectado na réplica feita por Aijaz Ahmad às considerações
de Fredric Jameson sobre a literatura produzida por escritores
africanos, asiáticos e latino-americanos: o problema da análise de
Jameson, segundo Ahmad, estaria no fato de qualificar, de maneira
reducionista, toda a literatura do “Terceiro Mundo” como sendo
necessariamente alegórica (AHMAD, 1988: 157-181). 2
Entretanto, apesar dessa ressalva, alguns traços pósmodernos podem ser identificados nesses diferentes contextos. Um
deles é a crescente reestruturação dos níveis de cultura, difundida
principalmente pelos meios de comunicação de massa, já que,
“inegavelmente, mesmo vivendo numa economia periférica, a
cultura brasileira não está imune aos efeitos globalizantes que a
televisão (sobretudo a TV a cabo), as redes de informatização, a
partilha simultânea das informações trazem até ela” (RESENDE, 1995:
119).
SABORES DAS CULTURAS PÓS-MODERNAS
Sobre os empreendimentos críticos realizados em torno do
pós-modernismo Luiz Carlos Simon adverte que “entre a recusa do
termo, ou a participação no debate sobre ele, e a adoção cega de
uma visão unilateral, há muitos caminhos que podem ser
percorridos. Um deles, possivelmente o mais produtivo, é o que
parte em busca de uma análise das reações apresentadas diante
da relação pós-modernismo/modernismo ou pós-modernidade/
modernidade” (SIMON, 1998: 10). Essas relações são de fundamental
importância devido ao caráter de “endividamento” das narrativas
pós-modernas com relação ao modernismo, principalmente no que
se refere às especificidades do movimento no Brasil: a inscrição de
elementos da cultura popular em suas atividades literárias e a
83
ensaios sobre a arte da palavra
vinculação entre o estético e o político pela utilização da comicidade
crítica. Tais aspectos indicam que as ligações com o modernismo
ainda estão presentes, mesmo que seja na atitude de digestão e/
ou superação da tradição instaurada pela arte moderna.
A reformulação da linguagem e a renovação do sistema de
convenções literárias, vigentes até o modernismo, será um marco
na produção literária brasileira que propiciará novas perspectivas
estético-literárias e a busca de novas formas de expressão para,
praticamente, todos os literatos brasileiros. Opostamente à
convenção, o modernismo se caracterizou por priorizar a inovação
através do questionamento das possibilidades da linguagem e da
instituição de uma maior gratuidade do ato criador.
Pode-se constatar, porém, que as técnicas e as formas
modernistas diluíram-se com a exposição constante em diversos
autores posteriores, fato que contraria seus próprios fundamentos,
principalmente aqueles ligados à não-institucionalização das
formas artísticas propostas pelo movimento. Mesmo depreciada
pelo uso constante de suas artimanhas, a escola modernista
aparece como fator decisivo na conquista de um maior
distanciamento dos escritores brasileiros em relação às
“influências estrangeiras”. Dessa forma, passa a ocorrer uma maior
predominância do material artístico produzido no país como fonte
para a escrita da literatura, resultado de uma maior afirmação
das letras brasileiras e, sob vários aspectos, também latinoamericanas.
Tal processo de afirmação possui implicações com o
modernismo na medida em que se passou a realizar atividades
literárias que privilegiassem a incorporação crítica das idéias
oriundas dos países estrangeiros: o que os modernistas
ressaltaram foi a necessidade, não da negação dessas idéias, mas
de sua reelaboração, com base no contexto sociocultural brasileiro.
Para os modernistas, portanto, não cabia apenas a atitude
simplória de afastar as idéias das vanguardas estrangeiras, mas
buscar compreender o que acontece com essas idéias quando
inseridas em solo brasileiro, procurando sinalizar para as
conseqüências desastrosas de um transplante puro e simples.
Como resultado dessa reelaboração, o movimento
modernista alcança um prestígio expressivo junto aos escritores
84
sobre o pós-modernismo
da segunda metade do século XX, quando serve de referencial para
a elaboração de muitas das obras fundamentais desse período:
O modernismo representa a instalação de um tipo de discurso
batizado por Auerbach de “mescla estilística”, isto é, de estilo impuro,
porque, contrariamente aos preceitos da poética do classicismo,
aspira à apresentação de acontecimentos ou de situações sérias,
trágicas ou problemáticas mediante o emprego de uma linguagem
prosaica ou “vulgar” por oposição à terminologia aristocrática a que
a norma clássica, através da observância da regra de separação
hierárquica dos estilos (nobre, médio, vulgar), reserva em
exclusividade ao domínio da tragédia, da épica e da lírica (MERQUIOR,
1977: 123).
A miscigenação de diferentes registros socioculturais pode
ser identificada já no modernismo, marcado, principalmente no
Brasil, pela reação estético-literária ao conservadorismo e à
estagnação que perduravam na grande maioria das obras literárias,
desde o final do século XIX, sacralizando o culto da forma e os
purismos lingüísticos. Em muitos dos escritos modernistas, pelo
emprego de recursos corrosivos como a paródia e a ironia, o ataque
era dirigido à noção de linguagem que, tanto na prosa como na
poesia, era a do intelectual para o intelectual, desprezando muitas
vezes a fala popular, o folclore ou qualquer outra forma de
manifestação cultural menos erudita.
Em processos como esse se evidenciava o preconceito com
relação à cultura popular. De acordo com Carlo Ginsburg, tal fato
se deve, em grande parte, à persistência de uma concepção
aristocrática de cultura, já que idéias ou crenças originais são
“consideradas, por definição, produto das classes superiores, e
sua difusão entre as classes subalternas um fato mecânico de
escasso ou mesmo de nenhum interesse; como se não bastasse,
enfatiza-se presunçosamente a ‘deterioração’, a ‘deformação’, que
tais idéias ou crenças sofreram durante o processo de transmissão”
(1996: 17).
Nesse cenário, apesar da complexidade das produções pósmodernas, é instigante correr o risco de eleger alguns problemas
postos em circulação por estas produções: entre as características
fundamentais da literatura pós-moderna pode ser citado o
procedimento que procura visualizar a coexistência de gêneros
heterogêneos numa mesma narrativa. Apresenta-se assim uma
85
ensaios sobre a arte da palavra
complexa combinação de registros de discurso diversos: fábulas,
contos de fadas, piadas, casos, contos, parábolas, reportagens
jornalísticas, diálogos teatrais, poesia, memórias, entre outras
estruturas narrativas, tornam-se ingredientes que se alternam em
diversas produções. Isto mostra que os gêneros estão cada vez
mais fluidos, contrariando de forma decisiva a teoria clássica,
normativa e prescritiva por acreditar não só que cada gênero difere
dos outros quanto à natureza e quanto ao prestígio, mas também
que devam ser compartimentados e mantidos separados, evitando
assim a miscigenação advinda do intercâmbio entre as diferentes
modalidades de criação artística.
A ênfase na mescla estilística presente nas produções
brasileiras pós-modernas pode ser então relacionada ao
modernismo. O que muda no quadro do final do século XX parece
ser a presença cada vez maior da cultura de massa como fator de
interpenetração entre as diversas manifestações culturais.
Muitos dos ataques direcionados à cultura de massa, ao
longo da segunda metade do século XX, parecem encontrar
argumento ainda na “deformação” de idéias consideradas originais
e sugeridas como produto exclusivo da cultura erudita. Contudo,
esta posição revela o descaso com categorias específicas desse
fenômeno, pois entender a cultura de massa como simples
deformação da cultura erudita é uma atitude que impossibilita
avaliar, com relativa isenção, os procedimentos colocados em
prática por manifestações ligadas à cultura de massa.
O que o pós-modernismo procura questionar acima de tudo
são os limites estabelecidos comumente entre as esferas culturais.
Isto ocorre porque as culturas pós-modernas, em muitas de suas
manifestações, “operam num campo de tensão entre tradição e
inovação, conservação e renovação, cultura de massas e grande
arte, em que os segundos termos já não são automaticamente
privilegiados em relação aos primeiros” (HUYSSEN, 1991: 74). Ao negar
a oposição pura e simples entre categorias dicotômicas, tais como
direita versus esquerda, presente versus passado, modernismo
versus realismo, vanguarda versus kitsch, o pós-modernismo quer
alertar para a existência de realidades complexas que não mais
podem ser explicadas por meio destas oposições reducionistas.
Em outros termos, pode-se cogitar o papel desempenhado pela
86
sobre o pós-modernismo
cultura de massa na divulgação não apenas da cultura erudita,
mas sim na fusão entre os diferentes níveis de cultura presentes
na sociedade, fazendo com que não se encontrem mais as culturas
nos respectivos lugares onde comumente costumavam estar
localizadas.
Dissabores
O que talvez seja passível de questionamento é a banalização
a que tais fusões são submetidas tendo em vista o aspecto
mercantilista presente em muitas dessas produções. Este processo
decorre de uma realidade social calcada sobretudo no consumismo
– entendido como satisfação individual dos desejos – podendo este
fenômeno ser relacionado à queda dos projetos coletivos
vislumbrados pelo Iluminismo. Tal queda parece ter suporte em
grande parte na dimensão mercantilista assumida pelos meios
de comunicação de massa :
Tudo parece tornar-se acessível e consumível: as coisas, os serviços,
os símbolos, o tempo (sob a aparência de lazer), o espaço (graças
aos novos meios de mobilidade) e até mesmo a vida (pelo recuo
das fronteiras da morte e, de uma certa maneira, a escamoteação
desta última). O consumidor apaga o cidadão; o que produz, segundo
as interpretações que somente são contraditórias nas aparências,
uma despolitização progressiva ou uma politização do cotidiano,
portanto, generalizada (BALANDIER, 1982: 66).3
Tais circunstâncias apontam para um quadro no qual as
informações sobre acontecimentos diversos se tornam facilmente
acessíveis; entretanto, o desenvolvimento progressivo das técnicas
audiovisuais responsáveis pela disponibilidade das informações
esbarra num obstáculo paradoxal: a capacidade cada vez maior
de divulgação das informações é enfraquecida por seu próprio uso.
Isto quer dizer, em muitos casos, que elas se tornam banais
e se desgastam, o que exige renovações freqüentes ou a criação
de aparências de novidade. O grande palco desse jogo é o cenário
urbano que aparece então como locus da novidade, do progresso e
da eficiência — simbolizando o próprio e “inevitável” avanço social,
alicerçado na inventividade e na operosidade da indústria urbana
87
ensaios sobre a arte da palavra
— elementos contrapostos ao tradicional, ao marasmo e ao
retrógrado, relacionados, muitas vezes, ao espaço rural.
O culto às cidades, no entanto, alimenta-se de sentimentos
contraditórios, tais como o fascínio e a repulsa: por um lado, o
ambiente urbano oferece diversificadas opções de lazer, cultura e
entretenimento; por outro, intensificam-se problemas sociais como
a poluição (ambiental, sonora, visual etc.), a violência, o stress, o
consumo de drogas, os contrastes entre miserabilidade e
abundância etc. A vitrine privilegiada para a exposição dessas
cenas é a televisão.
Já no final do século XIX, no conto “Teoria do Medalhão”,
Machado de Assis procurava mostrar como se manter em evidência
numa sociedade capitalista. Usando como recurso o diálogo entre
um pai e seu filho, a narrativa aparece como aula detalhada sobre
os mecanismos a serem utilizados para a projeção pública da
imagem.
Pode-se argumentar que muitas das estratégias usadas
atualmente encontram-se esboçadas nessa narrativa machadiana:
a atualidade de Machado, guardadas as proporções, reside no fato
de antecipar algumas características e estratégias adotadas pelos
“astros e estrelas” da pós-modernidade (ligados à televisão, ao
cinema, aos esportes etc.). Como figuras de expressivo destaque,
elas necessitam da cobertura constante da mídia para manterem
sua imagem em evidência, que, por sua vez, será utilizada pela
publicidade televisual.
Um exemplo: muitas dessas “personalidades” fazem doações
em dinheiro para instituições filantrópicas, mas, para tanto,
“exigem” a presença da imprensa para cobrir os momentos de
caridade. No entanto, elas recebem quantias estratosféricas, que
superam em muito o valor das doações, o que demonstra a
insignificância de tais atos se comparados aos milhões que giram
em torno de sua imagem pública, que passa a ser valorizada ainda
mais. Assim, a montagem de tais situações coloca esses
personagens “diante dos olhos do mundo” e, dessa forma, procurase obter os benefícios daí advindos.
No conto-novela “O alienista”, Machado de Assis descreve
cenas em que a publicidade assume o papel de elemento
instaurador de reputações. Exemplo disso pode ser encontrado na
88
sobre o pós-modernismo
descrição do uso da matraca, meio através do qual eram divulgadas
notícias e informações relevantes para as comunidades da época:
De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele [o
operador da matraca] anunciava o que lhe incumbiam (...). O sistema
tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela
grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos
vereadores (...) desfrutava a reputação de perfeito educador de
cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos;
mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses.
E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto
cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente
falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema (ASSIS, 1994:
18).
A televisão, nesse contexto, pode ser compreendida como a
“matraca do século XX”, pois serve como instrumento para o
sucesso ou obscuridade de determinadas situações ou pessoas,
de tal maneira que parece que a realidade só se efetiva quando
transportada para a tela, pois o que não é mostrado na televisão
parece não ter existência de fato. Além disso, grande parte dos
programas televisivos refaz o percurso do medalhão machadiano
ao oferecerem aos telespectadores a mesmice, desencadeada pelo
controle exercido pela “mentalidade-índice-de-audiência”
dominante atualmente e que privilegia a difusão do óbvio, do “já
visto”.
Um estudo interessante sobre a televisão pode ser encontrado
nas Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura
na Argentina, “mostradas” pela pesquisadora Beatriz Sarlo.
Destacam-se aqui as análises sobre as alterações provocadas na
produção televisiva com o advento do zapping: acionamento
constante do controle remoto por parte dos telespectadores —
recurso originalmente utilizado pelos estúdios de televisão (várias
tomadas de uma cena a partir de várias câmeras) que passou para
o ambiente doméstico. A autora assinala que o zapping — por
provocar uma relativa perda de intensidade por parte da imagem
devido à descontinuidade das cenas — fez com que o discurso
televisivo procurasse se proteger da mudança de canal através da
ênfase na velocidade e na obscenidade e da eliminação do silêncio,
do “branco” e da permanência de uma mesma imagem. Com isso,
“espera-se que o alto impacto e a velocidade compensem a ausência
89
ensaios sobre a arte da palavra
de brancos e silêncios, que devem ser evitados porque abrem as
fendas pelas quais passa o zapping” (1997: 61).
Além de mostrar de que formas o controle remoto altera as
relações entre telespectador-televisão e como o discurso televisivo
se adapta a estas alterações, a autora apresenta ainda comentários
relacionados à institucionalização televisiva, na medida em que a
televisão passa a ter credibilidade maior do que algumas
instituições tradicionais. Esta credibilidade está alicerçada,
segundo a autora, em estratégias como a “gravação ao vivo
transmitida ao vivo” que causa nos telespectadores a impressão
de estarem diante da vida “tal como ela é”, sem as manipulações
que poderiam ocorrer com a montagem das cenas realizada em
programas gravados:
Diante da gravação ao vivo pode-se pensar que a única autoridade
é o olho da câmera: como desconfiar de algo tão socialmente neutro
como uma lente? Neste ponto, a gravação ao vivo parece anular o
antigo debate sobre a relação entre mundo e representação (...).
[Assim] diante da opacidade crescente de outras instituições, diante
da complexidade infernal dos problemas públicos, a televisão
apresenta o que acontece tal como está acontecendo e, em seu cenário,
as coisas parecem sempre mais verdadeiras e mais simples.
Investida da autoridade que as igrejas, os partidos e as escolas
perderam, a televisão faz soar a voz de uma verdade que todo mundo
pode compreender rapidamente. A epistemologia televisiva é, neste
sentido, tão realista quanto populista, e submeteu a uma demolidora
crítica prática todos os paradigmas de transmissão do saber
conhecidos pela cultura letrada (1997: 73-76, grifos da autora).
Saberes
Apesar desse quadro, a cultura de massa pode ser
considerada como uma das conseqüências do progresso
intensificado pelos avanços da ciência e da tecnologia que, de
diversos modos, influem na melhoria do nível de vida de
considerável parcela da comunidade humana. A consolidação dos
meios de comunicação de massa é uma das conseqüências desse
processo, com os defeitos e as qualidades que lhe são inerentes.
Numa sociedade marcada por tais caracteres a
comercialização da arte é inevitável e, mais que isso, é o caminho
que ela tem para satisfazer as novas necessidades emocionais e
90
sobre o pós-modernismo
espirituais do homem. Se a cultura de massa pode ser condenada
por se fundar muitas vezes em formas estereotipadas, devido à
sua eficiência comprovada, por outro lado, deve-se fazê-lo “(...) sem
perder a noção real do problema da arte contemporânea e sem
perder de vista as circunstâncias em que os artistas do passado
realizaram suas obras (...) [já que] há uma tendência a idealizar as
condições de trabalho destes, que só prejudica a avaliação do
problema na atualidade” (GULLAR, 1978: 137).
Como alerta Umberto Eco, toda modificação dos instrumentos
culturais, na história da humanidade, se apresenta como uma
profunda colocação em crise do ‘modelo cultural’ precedente. Tais
crises podem ser localizadas, segundo o autor, na invenção da
escrita na Antigüidade, da imprensa no Renascimento e, mais
recentemente, dos novos instrumentos audiovisuais (Cf. ECO, 1979:
34). A partir das duas últimas décadas do século XX, pode ser
acrescentada a esse processo a invenção da internet como fator
decisivo para a mudança dos modelos culturais existentes até
então. Muitas das discussões sobre tal fenômeno ainda estão por
serem feitas, mas já aparecem alguns aspectos significativos para
designar a comunicação realizada via computadores como elemento
fundamental na redefinição do acesso ao conhecimento por parte
dos grupos sociais.
A internet pode ser definida, a rigor, como mecanismo através
do qual ocorre a fusão entre alguns elementos cruciais dos meios
de comunicação anteriores: a escrita, o som e a imagem aparecem
combinados no hipertexto de tal forma que as possibilidades de
acesso à informação são mais diversificadas. Muitos dos limites
de produção e divulgação, presentes, por exemplo, na televisão e
na imprensa periódica, são redimensionados na medida em que
qualquer pessoa, dentro de certas condições, pode divulgar suas
páginas na rede de computadores, disponibilizando seu acesso
aos inúmeros usuários do sistema. Além disso, o número de
“canais” de acesso à informação é ilimitado, fazendo com que a
escolha do que se quer ver, ler ou ouvir torne-se mais ampla.
Uma das dificuldades encontradas na utilização da internet
está relacionada, em muitos casos, aos altos custos dos
equipamentos. A história da difusão da televisão como meio de
comunicação de massa pode ser usada como índice para sinalizar
91
ensaios sobre a arte da palavra
que as possibilidades de acesso à “rede mundial de computadores”
serão facilitadas no futuro. A televisão, em seu início, era um
equipamento usado por uma minoria; no entanto, sustentada por
constantes transformações, passou a ser um objeto de uso
disseminado por toda a sociedade.
Este parece ser o caminho da internet, tendo em vista sua
utilização cada vez maior por parte de instituições públicas e
empresas dos mais diversos setores ou até mesmo com a ampliação
do uso doméstico dos chamados computadores pessoais.
Portanto, um aspecto a ser destacado com relação ao
desenvolvimento gradativo dos meios de comunicação de massa é
que tal fenômeno redimensiona a difusão de normas, valores, gostos
e padrões de comportamento, antes sob a tutela quase exclusiva
de instituições tradicionais, tais como a igreja, a família, a escola
etc. Aquela rede de privilégios gerava, por motivos diversos, uma
maior limitação do acesso ao conhecimento.
Como leitores, ouvintes e telespectadores, as pessoas passam
a obter informações sobre o mundo por meios que podem ser
definidos, em certo sentido, como alternativos, por apresentarem
maiores possibilidades de aproximação das pessoas com realidades
outrora distantes, debilitando a eficácia de instituições tradicionais
e locais. Surgidos num primeiro momento na Europa e nos Estados
Unidos, os impulsos contraculturais da década de 1960 parecem
ser um dos exemplos fundadores desse tipo de manifestação: as
revoltas estudantis, os concertos musicais promovidos pelo
movimento hippie, além de outras práticas ligadas à contracultura,
foram divulgados em praticamente todo o mundo. É claro que a
divulgação desse fenômeno teve reações as mais diversas possíveis.
No Brasil, por exemplo, marcado pela repressão exercida pelo
regime militar instaurado a partir de 1964, tais imagens e idéias
interferiram consideravelmente na estruturação de grupos
contrários ao regime. O que prevalece, no entanto, é a amplitude
planetária assumida pela divulgação dessas imagens e idéias.
O emprego dos meios de comunicação de massa não pode
ser entendido apenas como “ferramenta alienante” nas mãos de
produtores mal-intencionados ou com interesses duvidosos, já que
muitas de suas realizações apresentam caracteres que incorporam
abordagens críticas das relações sociais. Além disso, deve-se
92
sobre o pós-modernismo
atentar para a impossibilidade de identificar de forma igualitária
a recepção de produções ligadas à cultura de massa, já que a
complexidade das formações sociais enfraquece tal suposição,
devido principalmente à diversidade de atitudes receptivas
possíveis frente à divulgação de formas e temas ligados à cultura
de massa. Em suma, a multiplicação e a difusão dos mass media
marcaram profundamente as relações socioculturais, com mais
ênfase nas décadas que delimitam a segunda metade do século
XX.
Como observa Umberto Eco, graças aos meios audiovisuais
e à consolidação da imprensa escrita, o acesso ao conhecimento
adquire dimensões que não se encontram em nenhuma das
sociedades do passado :
Quando imaginamos o cidadão de um país moderno lendo numa
revista ilustrada notícias sobre a estrela de cinema e informações
sobre Miguel Angelo, não devemos compará-lo ao humanista antigo,
movendo-se com límpida autonomia pelos vários campos do
cognoscível, mas ao trabalhador braçal, ou ao pequeno artesão de
alguns séculos atrás, excluído da fruição dos bens culturais (1979:
45).
A cultura de massa, portanto, precisa ser inserida num
contexto que, principalmente a partir da década de 1960, passou a
imprimir traços de uma crescente revolução nas noções de espaço,
poder, linguagem e identidade correntes em diversos grupos
sociais. Tais traços podem ser detectados em alguns fatores que
colaboraram decisivamente para compor o cenário da segunda
metade do século XX. Entre eles, destacam-se:
O colapso dos grandes impérios europeus, sua substituição pela
hegemonia econômica mundial dos Estados Unidos, a erosão do
Estado-nação e das fronteiras geopolíticas tradicionais, juntamente
com as migrações globais em grande escala e a criação das
chamadas sociedades multiculturais, a crescente exploração de
grupos étnicos no Ocidente e nas sociedades periféricas em outras
partes do mundo, o imenso poder das novas corporações
transnacionais (EAGLETON, 1997: 322).
Merecem destaque, neste processo, as relações estabelecidas
entre o contexto histórico, político e sociocultural e as obras
definidas como pós-modernas: aspecto marcante em muitas obras
pós-modernas, como negar a interação entre cultura de massa e
93
ensaios sobre a arte da palavra
literatura nos tempos atuais? Como querer definir obras anteriores
com base nesta característica quando a interferência da cultura
de massa na sociedade era ainda incipiente, pois restrita aos jornais
das primeiras décadas do século XX?
Tais circunstâncias são visíveis a partir da inserção cada vez
maior dos meios de comunicação de massa nas relações sociais,
por meio de veículos diversos, sejam eles consagrados como o
próprio jornal, sejam eles novas invenções humanas como o
cinema, a televisão ou ainda a internet. Além disso, outro fator
importante nesse cenário pós-moderno está relacionado à expansão
da publicidade nesses meios como forma de divulgação de produtos
e serviços. Incluso nesse processo está o próprio mercado editorial,
que passa a se configurar como espaço para a ampliação do
consumo de livros.
Notas
1. Expressão sugerida por Italo Calvino ao analisar a “inflação” da imagem,
através do cinema, da televisão, da publicidade, das histórias em quadrinhos,
entre outros meios, que ocorre de maneira mais significativa a partir da segunda
metade do século XX. In: CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio.
São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 108.
2. Ainda com relação a esse debate, algumas considerações significativas
sobre as relações entre modernidade e pós-modernidade podem ser
encontradas nas páginas escritas por Néstor García-Canclini, a partir das quais
o autor desenvolve um estudo pertinente sobre as especificidades que
configuram o cenário de países latino-americanos (Culturas híbridas: estratégias
para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997).
3. Para o contexto brasileiro – assim como para muitos dos chamados países
“periféricos” – a frase de Georges Balandier (“o consumidor apaga o cidadão”)
necessita de alguns reparos, já que nesses países, para um número
considerável da população, pode-se sugerir que o desejo de se tornar consumidor
obscurece o desejo de se tornar cidadão.
*
*
*
94
CAPÍTULO IV
CENAS E LEITURAS DE UM MESTRE DA PALAVRA
•♦•
Geralmente quando o texto está saindo fácil, a gente vai ver é
porque está escrevendo obviedades ou repetindo fórmulas. Faz
parte da preguiça mental, da minha pelo menos, a rendição ao
lugar-comum. É preciso resistir. Mas também é preciso resistir à
preocupação de ser original demais. Isto é, de escrever tão
“diferente”, que dificulta a leitura. Acho que o importante é ser
claro. Em segundo lugar, se possível, original.
Luis Fernando Verissimo
Este pode ser considerado um estudo ligado às produções
culturais pós-modernas na medida em que se encarrega de levar a
efeito a apresentação de um entre os vários relatos que caracterizam
esse momento: o da literatura brasileira contemporânea. No interior
desses limites, optou-se por um escritor pouco prestigiado pelos
estudos literários: Luis Fernando Verissimo. Apenas algumas
crônicas do autor foram selecionadas, já que a análise de toda a
sua produção será uma tarefa prazerosa, mas no horizonte de um
futuro próximo. Entende-se que tal tarefa seja possível como
releitura, tanto de sua obra quanto de suas avaliações críticas.
Filho do também escritor Érico Verissimo, Luis Fernando
Verissimo nasceu em Porto Alegre, no dia 26 de setembro de 1936.
Sua formação intelectual tem como referências o Instituto Porto
Alegre e o Theodore Roosevelt High School, em Washington, apesar
de se considerar um autodidata. Seu percurso literário inicia-se
no Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, a partir de 1967, quando
desempenhou as funções de copidesque, redator, editor de
variedades e editor internacional. Mas, foi como cronista que se
firmou na carreira literária. Em 1970, passa a colaborar com o jornal
Folha da Manhã. A partir de 1973 publicou seus primeiros livros,
projetando-se nacionalmente. Trata-se da coletânea de crônicas
intitulada O popular, seguida, em 1975, por A grande mulher nua.
95
ensaios sobre a arte da palavra
Nessa época, ingressa no Jornal do Brasil e, no início da década
de 1980, passa a integrar a equipe da revista Veja. Esses serão os
espaços editoriais em que suas crônicas alcançariam destaque cada
vez maior. Atualmente, além de reunir parte considerável de suas
crônicas em livros, continua a colaborar com importantes jornais,
revistas e emissoras de televisão. Nestas, desempenhou várias
funções, destacando-se sua participação na adaptação de textos de
Monteiro Lobato para a série O Sítio do Pica-pau Amarelo. Ademais,
merece ser mencionada a transposição de suas Comédias da Vida
Privada para o programa televisivo homônimo devido ao sucesso
editorial alcançado pelos textos que integram a obra.
A comicidade está entre as características constantes em
suas narrativas — nas mais inusitadas formas. A descontração
em falar de qualquer tema, e uma visão sólida sobre os fatos,
revelam análises inteligentes e precisas da vida cotidiana: a arte
de Luis Fernando Verissimo reside, fundamentalmente, na
capacidade de captar cenas, muitas vezes insignificantes à primeira
vista, e torná-las visíveis e risíveis, pelo emprego de recursos
diversificados.
A perspicácia em analisar a alma humana e suas (i)limitações,
revelando-as ao leitor de forma transparente, torna suas obras
referências para o estudo de algumas questões ligadas ao contexto
brasileiro das duas últimas décadas do século XX. Além disso, seus
textos possuem traços que vinculam sua obra ao pós-modernismo,
criando assim uma fórmula crítica aliada ao prazer da leitura
proporcionado pela sua comicidade.
Desse modo, como forma de mostrar aspectos da ficção
brasileira contemporânea, nas páginas que seguem são
apresentadas reflexões sobre narrativas de um dos escritores mais
significativos da cena literária na atualidade. A arte da palavra
desenvolvida por Luis Fernando Veríssimo incorpora elementos
apresentados nos capítulos anteriores e serve como exercício de
análise desses elementos. O texto investe nas formas que o autor
utiliza para conquistar a adesão de seus leitores a partir do uso da
comicidade, sendo esta comicidade instaurada em suas narrativas
por meio de recursos diversificados como a paródia, a ironia, o
sarcasmo, a alegoria, o nonsense, a inversão de papéis, a
transposição de situações, et caetera.
96
cenas e leituras de um mestre da palavra
Lançando mão desses recursos, o autor realiza um processo
de desautomatização de estereótipos, desmistificando
comportamentos alienados, compreendidos em sentido amplo. Além
disso, pretende-se discutir as relações existentes entre esses
artefatos literários e outros textos a partir do conjunto de elementos
presentes nas crônicas que apontam o modo como é construída a
representação do cotidiano. Suas narrativas possuem uma
composição que articula de forma constante vários planos — tais
como o do conteúdo histórico e o da matéria ficcional — a partir
dos quais se pode inventariar, problematizar e discutir questões
relativas às fronteiras do texto literário com outras produções
artísticas.
Devido às especificidades do gênero praticado, serão
analisadas também as leituras de fatos históricos realizadas pelo
autor. Trabalhando com essa problemática e inscrevendo-se de
forma singular na tradição da narrativa literária brasileira, as
crônicas de Luis Fernando Verissimo apresentam uma variedade
de temas e formas que buscam incentivar a participação ativa do
leitor.
Essa participação é incentivada e, até certo ponto, exigida
através da desarticulação do “real”, a partir da qual os limites da
criação e da imaginação são mais amplos, possibilitando, assim, o
estabelecimento de uma reflexão sobre as possibilidades de
problematização da história pela representação literária, próximo
daquilo que é identificado na ficção pós-moderna e na ficção latinoamericana contemporânea. Suas crônicas configuram assim uma
dialogia, território compartilhado pela linguagem e pelo discurso,
onde se cria o espaço para a manifestação ideológica, através da
percepção cômica de um intervalo entre as convenções e a realidade.
Nas palavras de Luis Filipe Ribeiro:
Não há que pensar em dialogismo apenas na forma evidente do
diálogo, seja nas obras de ficção, seja no cotidiano da vida. O
dialogismo está presente onde houver discurso. E, por isso mesmo,
o enunciado será sempre entendido como a expressão material de
uma passagem: por ele trafegarão as versões de mundo, as
indagações, as perplexidades dos atores desse drama curioso. Em
uma palavra, os valores (1998: 13).
97
ensaios sobre a arte da palavra
Revela-se, portanto, extremamente relevante, para a análise
das crônicas de Luis Fernando Verissimo, estabelecer as relações
de debate, de polêmica, de paródia etc., entre os enunciados, assim
como as pausas, a atitude implícita e outras particularidades que
caracterizam suas narrativas. De acordo com Mikhail Bakhtin, “cada
enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados,
com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação
verbal (...). Cada enunciado refuta, confirma, complementa e
depende dos outros; pressupõe que já são conhecidos, e de alguma
forma os leva em conta” (BAKHTIN apud STAM, 1992: 73).
Essa interdependência dos enunciados emerge como matéria
para o cronista ao utilizar-se do que se pode denominar de “lógica
do avesso”, ou, em outras palavras, de um processo de inversão de
significados e valores, revelando uma atitude de desprezo em relação
às convenções sociais, na qual aparecem os diálogos com outros
enunciados. Suas fontes são os contos de fadas, as fábulas, os
provérbios, as “versões oficiais” sobre fatos históricos, o cinema, a
música, a fala coloquial, entre outras.
A análise intenta esboçar as possibilidades de leitura das
crônicas de Luis Fernando Verissimo. Para tanto, explora as
implicações de categorias analíticas específicas, tais como aquelas
derivadas dos empreendimentos críticos ligados ao pós-modernismo
e à comicidade, com o intuito de contribuir para o estudo das
relações entre linguagem e poder, já que “cada palavra se apresenta
como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os
valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se (...)
como o produto da interação viva das forças sociais” (BAKHTIN apud
STAM, 1992: 73). As crônicas de Luis Fernando Verissimo apresentam
várias instâncias características das concepções acima referidas,
resultando na subversão das certezas e no questionamento da
hierarquização social presente nas relações do cotidiano.
Além das concepções apontadas, o presente texto intenta
ainda identificar as propriedades da comicidade dos textos no que
se refere aos seus aspectos de crítica e contestação sociais,
ampliando o espaço do riso como forma de mudança e transição,
pois “o riso nasce da observação de alguns defeitos no mundo em
que o homem vive e atua” (PROPP, 1992: 174). As relações entre
98
cenas e leituras de um mestre da palavra
literatura e história para essa análise são fundamentais, pois é
através dessa relação que se pode averiguar a existência de um
modelo de subversão na escrita de Luis Fernando Verissimo.
O texto divide-se em dois momentos: no primeiro são
realizadas análises que visam estabelecer comentários gerais sobre
a obra do autor; no segundo, são realizadas análises pormenorizadas
de algumas narrativas. Em relação a esse aspecto, faz-se uma
ressalva: apesar da citação direta de trechos durante a análise, as
narrativas utilizadas na segunda parte do texto serão apresentadas
na íntegra, buscando manter a sua configuração original para que
o leitor possa ter acesso à leitura dos textos antes de serem
efetuadas suas análises. Tal proposta é justificável, pois, como
narrativas curtas, as crônicas prestam-se com mais desenvoltura
a esse tipo de exercício: deixar que o autor fale através da inserção
de seus textos no corpo do trabalho.
COMENTÁRIOS PANORÂMICOS
Entre as obras de Luis Fernando Verissimo, destacam-se as
Comédias da vida privada, uma síntese de situações cotidianas da
classe média — personagem predileta do autor — e seus encontros
e desencontros sociais. O livro é uma análise da natureza humana
em geral, composto de crônicas sobre relacionamentos conjugais,
extraconjugais, familiares, amizades, a tecnologia moderna,
costumes, comunicação, cultura e intelectualidade, amor, política,
entre outros. Em todos esses temas o que predomina é o sentido
de oportunidade da percepção crítica para destacar facetas curiosas
do comportamento humano e criar inversões insólitas em suas
relações com o mundo.
Maria Heloísa Martins, em sua resenha da coletânea de
crônicas intitulada O suicida e o computador, ressalta que “em L. F.
Verissimo a originalidade se expressa no caráter transgressor da
linguagem, utilizada de modo a provocar efeitos de estranhamento
(há muito defendidos pelo Formalismo russo) graças às curiosas
soluções formais” (MARTINS, 1994: 262).
Além dessas, suas Comédias da vida pública são uma
referência importante sobre fatos recentes da história do Brasil.
99
ensaios sobre a arte da palavra
São mais de duzentas crônicas, que, segundo o autor, “valem como
anotações na margem desse tempo estranho que vivemos, tentando
conciliar duas exigências conflitantes: ser brasileiro e manter um
mínimo de compostura. Todos os tempos são estranhos, os nossos
são mais porque acontecem com a nossa presença, a nossa
consciência e – quando temos este privilégio – o nosso testemunho”
(1996: 08). Tal testemunho encontra substância, em muitas de suas
crônicas, na criação de alguns personagens-tipo, que aparecem
com maior freqüência.
O primeiro desses personagens a ser apresentado aqui é Ed
Mort, uma versão tupiniquim “subdesenvolvida” como contraponto
tanto ao investigador Sherlock Holmes de Conan Doyle quanto ao
espião cinematográfico James Bond. Assim, “Mort, Ed Mort” é um
detetive brasileiro em carne e osso, muito mais osso do que carne,
já que seus casos nunca lhe dão dinheiro e ele vive tendo que
penhorar seus pertences: uma mesa e uma Bic. Trabalha em um
“escri” (já que escritório é uma palavra grande demais para descrever
o local), que compartilha geralmente com algumas baratas e um
ratão albino chamado Voltaire. Seus casos são os mais estranhos e
as aventuras hilárias, principalmente porque procuram mostrar
como um detetive pobre, sem os recursos sofisticados da Scotland
Yard ou do cinema, tenta solucionar os enigmas apresentados pelos
seus clientes. O autor reelabora elementos peculiares aos contos
policiais, tais como a carga de mistério e suspense presente em
tais produções.
No que se refere mais especificamente ao contexto brasileiro,
o autor procura incorporar algumas questões relacionadas ao
espaço da malandragem: o personagem, em muitas situações,
precisa recorrer ao “jeitinho” para dar conta das dificuldades
surgidas em seu cotidiano. Contudo, Ed Mort é, ao mesmo tempo,
“malandro e otário”. É nessa reelaboração que se sustenta a
comicidade, pois o personagem aparece como figura ridícula que
leva o leitor ao riso, devido à extrema confiança depositada em si
mesmo, a qual não se efetiva nas tentativas de resolução de seus
casos.
Outra personagem recorrente nas histórias de Luis Fernando
Verissimo é A Velhinha de Taubaté: trata-se de uma senhora de
idade que, obviamente, mora em Taubaté, e, por acreditar em tudo,
100
cenas e leituras de um mestre da palavra
é, portanto, a última pessoa que acredita no governo. Em sua casa,
com seu gato, assiste pela televisão as justificativas do governo
para todo tipo de problema e acredita em tudo, sendo por este motivo
paparicada pelos políticos. Ela é a última pilastra que impede o Brasil
de desabar no caos, pois quando ela deixar de acreditar no governo,
é porque ninguém mais acredita. Em suas histórias, Luis Fernando
Verissimo utiliza a personagem para ironizar atos e fatos políticos,
principalmente aqueles ligados à fase de transição entre ditadura
militar e a redemocratização. Seu ataque está direcionado
primordialmente àquelas pessoas ligadas ao movimento TFP –
Tradição, Família e Propriedade – famoso nas últimas décadas da
história brasileira pela visão reacionária assumida diante da nova
realidade vivida pelo mundo atual e , em particular, pela sociedade
brasileira contemporânea.
O personagem mais famoso, no entanto, é O Analista de Bagé:
descrição da rotina de um “bajeense típico” e seus encontros com
pacientes em seu consultório. Ele é um herói anônimo, identificado
tão-somente pela profissão – a de analista – e uma procedência – a
cidade de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul. Esta e mais a
descrição de sua indumentária, hábitos cotidianos, vocabulário e
estilo configuram o caráter regional do protagonista, aparecendo
então como gaúcho autêntico. Note-se, porém, que sua
autenticidade (associada à vida no campo) contrasta com a
profissão: um gaúcho típico não pode, à primeira vista, atuar como
analista, profissão geralmente ligada ao ambiente urbano. É nesse
jogo de contrastes que o personagem encarna situações que levam
ao riso.
“Freudiano de carteirinha”, trata seus pacientes, com sucesso,
pelo emprego de técnicas desenvolvidas na prática diária da
profissão: “o joelhaço”; “o tapa”, “o cabeçaço”, “o cotovelaço”, entre
outras. Durante as sessões, o Analista enfrenta megalômanos,
paranóicos, problemas sexuais, crises de identidade e todo tipo de
“loucura”. Com esse personagem, o autor trata dos problemas
comuns que afligem a classe média e que muitas vezes, segundo o
próprio Analista, são meramente “frescuras”. O personagem foi
criado inicialmente para um programa de Jô Soares, e era um
garçom gaúcho em um restaurante francês; como não foi muito
utilizado pelo humorista televisivo, Luis Fernando Verissimo
101
ensaios sobre a arte da palavra
reutilizou o mesmo em suas crônicas, mudando a profissão, mas
mantendo a estrutura cômica: o contraste criado entre o
personagem e o ambiente. Em outras palavras, as do próprio autor,
o personagem é usado para “explorar a incongruência (...). A velha
história do touro na loja de cristais” (TORNQUIST, 1984: 05).
De acordo com Regina Zilberman, no que diz respeito ao
analista, Luis Fernando Verissimo, “ao compor o protagonista de
modo contraditório, em que elementos antagônicos convivem sem
se harmonizar, questiona a natureza do tipo regional e seu
anacronismo numa sociedade moderna e cultivada”. Além disso, o
autor seria responsável pelo desmascaramento do “artificialismo
daquele processo de modernização urbana, no qual se associam,
também de modo contraditório, o arcaísmo originário do meio rural
conservador e a aspiração à novidade, configurada na adoção de
padrões de comportamento ditos progressistas” (1985: 105). Vejase um exemplo:
O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:
- Agora, qual é o causo?
- É depressão, doutor.
O analista de Bagé retira uma palha de trás da orelha e começa
a enrolar o cigarro.
- Tô te ouvindo – diz.
- É uma coisa existencial, entende?
- Continua, no más.
------------------------------------------------------------------------ Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na
garganta...
- Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
- Me alimento.
- Tem casa de galpão?
- Bem... Apartamento.
- Não é veado?
- Não.
- Tá com os carnê em dia?
- Estou.
- Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga
o infinito.
- O Freud não me diria isso.
- O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe
alemão?
- Não.
- Então te fecha. E olha os pés no meu pelego (1981: 24).
102
cenas e leituras de um mestre da palavra
Se a profissão pode ser considerada como índice anacrônico
do tipo regional, ele, por sua vez, desnuda a inautenticidade das
doenças de seus pacientes, cuja superficialidade é revelada tão
logo o médico emprega as técnicas originais que desenvolveu.
Como ponto comum na construção desses diferentes
personagens, emerge a posição irônica assumida pelo narrador, já
que este apresenta as histórias sem aderir ao que está sendo
relatado, mantendo assim um certo distanciamento em relação aos
“casos” contados.1 Esses personagens-tipo podem ser inseridos
naquela categoria de literatura produzida pelo autor que se
caracteriza pelo deboche descompromissado, que não causa grande
repercussão no que se refere ao questionamento de padrões
socioculturais vigentes na sociedade. Isto se explica pela utilização,
em muitos casos, do humor sem derrisão — compreendido como
aquele que desperta o riso benevolente — como forma de construir
tais narrativas.
Nesse aspecto, em Luis Fernando Verissimo, um dos recursos
recorrentes para instaurar a comicidade nas narrativas é o
paradoxo, a partir do qual o autor reúne, apesar de sua
incompatibilidade, conceitos que se excluem mutuamente.
Exemplo: “Cheio de dedos” (1983: 124-127) é uma crônica que fala
da importância das mãos para a história da humanidade: “a
civilização começou com o dedão opositor. A evolução mais
importante de toda a história da espécie, batendo longe a invenção
da roda, do transistor e da azeitona sem caroço, foi o
desenvolvimento da junta giratória que permite ao dedão – o Pai de
Todos – se opor aos outros dedos” (1983: 125). Ao falar da evolução
da espécie, o narrador enfatiza invenções humanas como a roda e
o transistor, comumente aceitas como verdadeiros avanços, no que
se refere ao domínio da natureza pelo ser humano. Incluir aí a
articulação entre o polegar e os outros dedos das mãos (apesar de
não ser uma invenção), tudo bem. Mas, quanto é que a “invenção”
da “azeitona sem caroço” contribuiu para a evolução da espécie?
Provavelmente, bem pouco.
Ao reunir informações como essas, Luis Fernando Verissimo
desperta o riso no leitor com a utilização do paradoxo. Na mesma
narrativa, pode ser destacada outra construção paradoxal.
Continuando a exposição da evolução humana, o narrador enfatiza
103
ensaios sobre a arte da palavra
que “no momento em que pôde juntar as pontas do dedão e do
indicador com delicada precisão, para segurar uma borboleta ou
esmagar um piolho, o homem passou a integrar uma ordem mais
alta de mamíferos” (1983: 125). Sendo assim, através do diálogo
com o leitor, o narrador encerra dizendo que o que “distingue o
homem dos primatas não é, como você [leitor] sempre pensou, a
alma (...). É o dedão. Sem o dedão o homem não teria uma história.
Jamais teria desenvolvido qualquer técnica mais avançada do que
o bolinho de barro. Ainda andaria de quatro sem desfrutar das
maravilhas do mundo moderno, como a poluição, a bomba de
nêutron e o baixo fender” (1983: 126). A inclusão do “baixo fender”,
instrumento musical famoso pela sua qualidade sonora, como uma
das maravilhas do mundo moderno é até aceitável. Mas “a poluição
e a bomba de nêutron” são maravilhas a serem desfrutadas?
Ao utilizar-se dos paradoxos, o escritor procura chamar a
atenção para a necessidade de estar atento à leitura, tanto dos
textos quanto do mundo, pois muitas vezes os “leitores” não
percebem as contradições presentes nas interações sociais. A
inclusão proposital de construções paradoxais desperta o leitor
para essas contradições: o que ocorre é um processo no qual os
leitores precisam estar em vigília permanente e refazer a leitura
para que obtenham a confirmação da leitura anterior; é aí que o
texto adquire a capacidade de provocar o riso, devido ao
agrupamento de informações incompatíveis. A reelaboração dos
acontecimentos leva à reflexão, revelando sua força persuasiva no
riso ambíguo despertado nos leitores.
Apesar de essas narrativas poderem ser classificadas como
instrumentos relevantes para despertar o interesse pela leitura,
papel primordial desempenhado pela “literatura de entretenimento”
(PAES, 1990: 25), o que interessa para o presente estudo, no entanto,
são aquelas narrativas do autor que empreendem um percurso de
contestação, representado pelos recursos estilísticos que primam
pela incorporação da crítica à institucionalização de determinados
comportamentos sociais. Nesse tipo de narrativas, destacam-se as
formas capazes de despertar no leitor a condenação de
determinadas atitudes feita com base no riso reflexivo, suscitado
por recursos como a paródia e a ironia, que procuram relativizar
determinados consensos existentes na sociedade.
104
cenas e leituras de um mestre da palavra
Nesse sentido, muitas das crônicas de Luis Fernando
Verissimo podem ser caracterizadas como narrativas “excêntricas”2, por enfatizarem que o centro passa para a periferia,
mas sem instituir novos centros: todos passam para a periferia.
Com tal estratégia, o que se procura contestar são os discursos
vinculados ao humanismo liberal que sugerem a liberdade, a
autodeterminação e a racionalidade para todos, mas que se
concentram nas palavras do “homem branco de classe-média/alta,
heterossexual e ocidental” (HUTCHEON, 1991: 29). Seus textos se
caracterizam, em muitos aspectos, como instrumentos para
exteriorizar os conflitos políticos e ideológicos presentes no
cotidiano das relações humanas, já que a atitude subversiva se
mostra alicerçada na revelação da fragilidade dos pressupostos
consensuais presentes nas estruturas socioculturais.
A valiosa associação entre questões de classe, de etnia, de
sexo e de raça, pode ser compreendida como contribuição das
discussões empreendidas pelos chamados discursos “minoritários”
– que de minoria possuem muito pouco – de mulheres, negros,
homossexuais, “terceiro-mundistas”, entre outros, que passam a
se manifestar de maneira mais organizada a partir das décadas de
1960 e 1970, quando
começa a se evidenciar o debate, hoje irreversível nos meios políticos
e acadêmicos, em torno da questão da “alteridade”. No plano político
e social, esse debate ganha terreno a partir dos movimentos
anticoloniais, étnicos, raciais, de mulheres, de homossexuais e
ecológicos que se consolidam como novas forças políticas
emergentes. No plano acadêmico, filósofos franceses pósestruturalistas como Foucault, Barthes, Kristeva, Derrida e Ricoeur
intensificam a discussão sobre a crise e o descentramento da noção
de sujeito, introduzindo, como temas centrais do debate acadêmico,
as idéias de marginalidade, alteridade e diferença (HOLLANDA, 1994:
09).
Contudo, um perigo enfrentado pelo pós-modernismo reside
no fato de poder vir a “essencializar sua ex-centricidade ou se tornar
cúmplice das noções do humanismo liberal sobre universalidade
(falar em nome de todos os ex-cêntricos) e eternidade (para sempre)”
(HUTCHEON, 1991: 98). Daí a recorrência constante a artifícios como a
paródia e a ironia como forma de relativizar as afirmações que
possam ser apresentadas por essas manifestações artísticas.
105
ensaios sobre a arte da palavra
Uma das principais estruturas narrativas das crônicas de Luis
Fernando Verissimo se acha corporificada no diálogo, geralmente
através da alternância entre pergunta e resposta. Essa estrutura
adquire propriedade ao colocar em evidência os confrontos entre
diferentes concepções sobre fatos, crenças, convicções, enfim, sobre
complexos discursivos convencionalizados na/pela/para a
sociedade.
Este recurso, aliado à paródia e à ironia, possibilita ao autor
conquistar um distanciamento que reivindique a problematização
das contradições presentes nos relacionamentos humanos, sejam
eles políticos, de classe, familiares, profissionais etc. Em outras
palavras, o diálogo entre as personagens adquire força expressiva
como processo de comunicação por meio do qual são confrontadas
as diversas posições presentes nas relações sociais.
A conciliação desses recursos revela-se como estratégia
poderosa para problematizar questões diversas. Um dos recursos
a ser destacado é a paródia. Nesse sentido, pode-se argumentar
que a paródia não é um procedimento artístico inventado pelo
modernismo. Contudo, no caso brasileiro, é a partir desse
movimento estético-literário que a paródia passa a ser enfatizada
como arma a ser utilizada para a problematização das convenções.
Isto ocorre porque o uso da paródia demonstra a consciência crítica
pela atribuição de novos sentidos a velhos esquemas de
pensamento, embora muitas vezes o faça com ironia, o que
evidencia, em certa medida, uma posição cautelosa no que se refere
à instituição de novos paradigmas.
A eficácia do procedimento paródico reside na interação entre
texto e leitor, pois a leitura do texto, atravessada e entrecortada
por outro(s) texto(s), está em relação direta com a formação cultural
de quem se dispõe a ler determinada obra: por exemplo, como
compreender a reelaboração que Oswald de Andrade faz da Carta
de Pero Vaz de Caminha sem ter conhecimento desse texto?
Nas interpretações paródicas de Luis Fernando Verissimo,
os mesmos elementos são muitas vezes preservados, mas agora
são executados em novos meios de expressão, alertando para os
diferentes pontos de vista inclusos em uma mesma situação. O
leitor da narrativa é colocado numa espécie de contra-expectativa,
que o instiga a ser espectador ativo e não passivo, em relação às
106
cenas e leituras de um mestre da palavra
cenas que está presenciando. Exemplo disso pode ser encontrado
na crônica intitulada “Frases” (1980: 87-90), por meio da qual Luis
Fernando Verissimo procura problematizar algumas convenções
relacionadas às ditas “frases feitas”.
No texto, o narrador começa a pensar que tem problemas no
dia em que, conversando com os amigos, refere-se a alguém
possuidor de uma paciência de “Lot”. Eles lhe objetam que se diz
paciência de “Jó”, mas ele insiste, e sua insistência com os amigos
o faz duvidar como “Macbeth”. Decide consultar um colega que
ainda não se manifestara, esperando que ele desse o voto de
“Mecenas”, pois o considerava justo como “Moisés”.
Consolado pelos amigos, elabora uma pequena teoria segundo
a qual “havia um jeito certo de dizer as coisas e um jeito errado.
Milhares de anos de civilização tinham nos legado exemplos e frases
para todas as situações. Esquecê-las seria trair a nossa herança. A
cultura helênica, a romana, nossas tradições judaico-cristãs, os
clássicos, o próprio dom da comunicação entre os povos” (1980:
88). Trair tal herança seria como voltar à torre de “Babilônia”.
O homem vai para casa derrotado, como Napoleão depois de
“Watergate”. À noite, desesperado, sente que falta pouco para tomar
cicuta, como “Aristóteles”. Sozinho, fica pensando em como as frases
erradas o tornariam vulnerável, seriam seu calcanhar de “Ulisses”.
De Ulisses não, de “Átila”. No dia seguinte, decide recomeçar. Afinal,
“Esparta” não fora feita num só dia. Decide ir ao médico, que fez
ouvidos de “marceneiro” em relação às suas queixas, embora fosse
insuspeito, como a mulher de “Nero”. Quando o médico lhe diz que
está tudo bem, o personagem afirma que é esclerose precoce. O
médico responde:
- Imaginação sua.
- Sonho de uma tarde de outono – disse eu, amargamente.
- Ou de uma noite de verão.
- Por que você disse isso? – perguntei desconfiado.
- O quê?
- Noite de verão em vez de tarde de outono?
- Por nada. Tanto faz.
- Tanto faz, não. Qual é o certo?
- Não existe certo ou errado. Cada um diz como quer...
- Você não sabe o que está dizendo! Há só uma maneira de dizer
as coisas. A maneira certa. Obrigatória!
- Escute...
- Você não vai me receitar nada?
107
ensaios sobre a arte da palavra
- Nada.
- Estou com uma saúde de... de...
- De ferro.
- Quer dizer que você lava as mãos?
- Como Pilatos.
- Como Herodes.
- Pilatos.
- HERODES!
Ele me receitou um calmante.
Não saio mais de casa. Não me comunico com ninguém. Não
abro mais a boca com medo de me trair e trair a minha formação. O
silêncio é de prata (1980: 89-90).
O que suscita o riso nessa narrativa é a paródia aliada ao
exagero cômico em uma de suas gradações intermediárias: a
hipérbole. Esta figura de linguagem pode ser posicionada entre a
caricatura e o grotesco, pois enquanto a caricatura exagera apenas
um pormenor, “no grotesco o exagero atinge tais dimensões que
aquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso. Ele
extrapola os limites da realidade e penetra no domínio do fantástico.
Por isso o grotesco delimita-se com o terrível” (PROPP, 1992: 91). Assim,
nesse texto pode ser indicada uma forma de hiperbolização na
medida em que o exagero não se restringe a um pormenor, mas
também não atinge os limites do fantástico. O que se exagera é o
todo, mas com certas reservas: o exagero está direcionado à
preocupação por parte do personagem em utilizar-se de frases
consideradas sintomáticas de uma ampla formação erudita.
Outro elemento significativo da narrativa reside no fato de
que, concomitantemente à invenção, ocorre a padronização, ou seja,
quando o narrador altera as frases, essas procuram manter uma
proximidade com as frases “certas”. Este processo está sustentado
pela alteração nas mesmas categorias: Lot e Jó são personagens
bíblicos; Macbeth e Hamlet são personagens de Shakespeare; Roma
e Esparta são cidades (antigas); tarde e noite são períodos de tempo;
outono e verão são estações do ano; prata e ouro são metais,
marceneiro e mercador são profissões, Watergate e Waterloo são
derrotas de políticos famosos etc.
Com tal procedimento, o autor cita (aludindo) as fórmulas
“corretas” que se ouvem por detrás das que aparecem no texto.
Esse processo mostra que a narrativa “demanda um leitor que
reconheça as fórmulas aludidas, pois sem isso o texto não funciona
108
cenas e leituras de um mestre da palavra
– se onde uns riem outros ficam constrangidos, tudo bem, mas se
ninguém ri, o texto fracassa” (POSSENTI, 1998: 10).
Como toda paródia, a literatura pós-moderna poderia ser
considerada elitista, na medida em que os códigos necessários à
sua compreensão não pertencerem tanto ao autor quanto ao
destinatário. Para contornar esse perigo, o autor utiliza indícios
explícitos como forma de aproximar o leitor e assim evitar a
tendência do procedimento paródico, em muitos casos, de privatizar
o sentido. Por isso, a invenção procura estar atrelada a um esquema
de realização que não perca de vista as frases anteriores, já que
para sua compreensão é necessário que se faça uma leitura que
leve em conta duas referências: uma presente (frases alteradas) e
outra ausente (frases originais).
O texto ressalta a importância da interação entre as várias
instâncias envolvidas na leitura: o autor que inventa, o texto que
quebra a expectativa e o leitor que precisa se posicionar criticamente
para compreender as alusões paródicas. É nessa interação que a
narrativa adquire eficácia, ao problematizar o uso convencionalizado
que se faz da linguagem cotidiana.
O papel desempenhado pelas campanhas publicitárias na
definição de compra por parte do consumidor é outro assunto
abordado pelo autor que procura mostrar como esse tipo de
atividade tem implicações cada vez maiores na indicação de
comportamentos. Numa sociedade de consumo, a construção da
imagem das empresas deve ser cuidadosamente planejada, visando
causar o impacto necessário para acelerar essa definição. Para tanto,
as empresas buscam catalisar essa reação dos consumidores
através da produção de materiais publicitários, veiculados tanto
por meios de comunicação quanto por recursos “menos” sofisticados
como slogans estampados em camisetas, bonés, placas de anúncio
etc.
Entre as estratégias adotadas pelas empresas para convencer
o consumidor na hora da compra está a integração entre o produto
e a forma discursiva adequada como requisito primordial para a
aquisição de determinada marca. A importância crescente assumida
pela publicidade nas últimas décadas parece estar atrelada ao fato
de que, cada vez mais, o que move as pessoas são as possibilidades
de acúmulo de riquezas.
109
ensaios sobre a arte da palavra
Como protagonista desse processo, a publicidade televisiva,
em muitos casos, reduz seus telespectadores a potenciais
consumidores, o que leva à valorização cada vez maior da
propriedade: as pessoas desejam ser proprietárias dos produtos
expostos na vitrine da televisão e este desejo é um dos combustíveis
fundamentais que alicerçam as ações humanas; as pessoas passam
a ser valorizadas, em grande parte, pelas posses materializadas
por carros, casas, móveis, eletrodomésticos, roupas etc. Em suma,
o valor humano é exteriorizado numa amplitude assustadora: o
importante não é o que se pensa, o que se fala e o que se faz, mas
sim o que se pensa, se fala e se faz através dos objetos adquiridos.3
Como visto, está claro que numa sociedade de consumo a
ênfase estará direcionada, obviamente, ao consumismo. Dessa
maneira, os consumidores são alvos a serem atingidos e as formas
utilizadas para conquistar o maior número de pessoas devem ser
cuidadosamente articuladas para atingir os objetivos propostos.
É nesse quadro que a publicidade assume um papel
privilegiado na configuração de comportamentos e o comercial de
televisão é um dos instrumentos mais poderosos para acelerar a
definição de compra por parte dos consumidores. Em “O estranho
procedimento de Dona Dolores” (1983: 63-65), Luis Fernando
Verissimo retrata o ambiente doméstico de uma família de classe
média na qual a mãe, de tanto assistir aos comerciais de televisão,
pensa ser uma “garota-propaganda” em tempo integral:
Começou na mesa do almoço. A família estava comendo – pai,
mãe, filho e filha – e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e
disse:
— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo
arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso (1983: 63).
A partir daí, Dona Dolores só conversa com os outros membros
da família por meio de frases de efeito, como as que são usadas em
campanhas publicitárias. O pai e os filhos acham que Dona Dolores
está louca, mas resolvem dar um tempo para ela se recuperar: “É
uma fase. Passa logo” (1983: 65).
A mãe continua a desempenhar seu papel, dirigindo-se a uma
câmera que só ela vê e a um público imaginário que a família não
consegue identificar. O pai e os filhos terminam o almoço e ela
anuncia o que tem de sobremesa: “Gelatina Quero Mais, uma festa
110
cenas e leituras de um mestre da palavra
em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga”.
Mais tarde, o marido entra na cozinha e encontra a mulher
segurando uma lata de óleo à altura do rosto: “A saúde da minha
família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo
Paladar”. O marido abre a geladeira para pegar uma cerveja e a
mulher fala para a parede: “Todos encontram tudo o que querem
na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras
superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito
mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo” (1983: 64-65).
A narrativa segue com a descrição da rotina diária da família
e termina no quarto do casal, onde Dona Dolores, sentada em frente
ao espelho, passa um creme no rosto: “Marcel de Paris não é apenas
um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o tempo
levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido
com Marcel de Paris” (1983: 66).
O marido assiste a cena deitado na cama. Como se estivesse
num comercial, Dona Dolores caminha, “languidamente”, deixando
cair seu robe de chambre no caminho. Enfia-se entre os lençóis e
beija o marido na boca: “Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigese outra vez para a câmera. – Ele não sabe, mas estes lençóis são
da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus
pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...”
(1983: 65).
A crônica encerra quando o marido resolve aproveitar o clima
de sedução instaurado pela mulher: “Fazia tanto tempo. Apagou a
luz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhuma
câmera por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas” (1983:
65).
A partir dessa narrativa, os meios de comunicação de massa
podem ser caracterizados como mecanismos eficazes no que se
refere à sugestão de comportamentos: roupas a vestir, cortes de
cabelo, postura física, música para ouvir, prática de exercícios para
manter a saúde, candidatos a cargos políticos, receitas culinárias,
indicação de medicamentos, entre outros. Estes são exemplos da
institucionalização de modelos a serem seguidos pelo público. É
claro que o texto exagera esse processo e é sustentada pelo exagero
que a narrativa leva ao riso.
111
ensaios sobre a arte da palavra
Contudo, apesar de parecer uma simples piada, ela faz o
registro da presença e interferência crescentes desses veículos
na sugestão de produtos a comprar e atitudes a serem adotadas
como exemplares, devido à força, cada vez maior, assumida pelos
meios de comunicação no cotidiano das pessoas.
Outro aspecto recorrente nas narrativas de Luis Fernando
Verissimo pode ser identificado na condenação, feita a partir do
riso reflexivo, de determinados valores que se presumem universais
(para todos), o que revela a preocupação em diagnosticar de que
maneiras se dão as relações estabelecidas pelas pessoas com a
alteridade, ou seja, as narrativas procuram mostrar de que forma
as pessoas encaram a diferença. Como pode ser visto, o ambiente
familiar é um espaço privilegiado para retratar as relações com a
alteridade. Muitas das crônicas de Luis Fernando Verissimo
abordam relações familiares, sendo que o convívio entre jovens e
idosos, adultos e crianças, pais e filhos (os famosos “conflitos de
gerações”), maridos e esposas aparece como um dos temas
privilegiados nesse tipo de narrativas. Nelas, a comicidade
direcionada à institucionalização de determinadas posições sociais
pode ser entendida como forma de ridicularizar situações nas quais
as pessoas privilegiam determinadas idéias.
Dessas possibilidades de relacionamento, a relação homemmulher aparece em situações diferenciadas. Na análise anterior,
evidencia-se uma estrutura familiar patriarcal em que os espaços
destinados ao homem e à mulher aparecem demarcados de forma
tradicional: a mulher aparece transitando pela casa, ocupada com
o bem estar da família e os afazeres domésticos. Mas essa visão
tradicional, muitas vezes, é questionada por Luis Fernando
Verissimo.
Em crônica intitulada “Homens” (1994b: 98-100), o autor
reorienta a visão tradicional da superioridade masculina por meio
da paródia de um dos textos, em certa medida, fundadores de uma
estrutura patriarcal de sociedade: no Gênesis, primeiro “capítulo”
da Bíblia Sagrada, a mulher é descrita como criação divina oriunda
de uma costela do homem. O autor refaz os passos divinos da criação
do universo, com alguns detalhes inusitados:
Deus, que não tinha problemas de verba, nem uma oposição para
ficar dizendo “Projetos faraônicos! Projetos faraônicos!”, resolveu,
112
cenas e leituras de um mestre da palavra
numa semana em que não tinha mais nada para fazer, criar o mundo.
E criou o céu e a terra e as estrelas, e viu que eram razoáveis. Mas
achou que faltava vida na sua criação e – sem uma idéia muito
firme do que queria – começou a experimentar com formas vivas.
Fez amebas, insetos, répteis. As baratas, as formigas etc. Mas,
apesar de algumas coisas bem resolvidas – a borboleta, por exemplo
–, nada realmente o agradou. Decidiu que estava se reprimindo e
partiu para grandes projetos: o mamute, o dinossauro e, numa
fase especialmente megalomaníaca, a baleia. Mas ainda não era
bem aquilo. Não chegou a renegar nada do que fez – a não ser o
rinoceronte, que até hoje Ele diz que não foi Ele – e tem explicações
até para a girafa, citando Lê Corbusier (“A forma segue a função”).
Mas queria outra coisa. E então bolou um bípede. Uma variação do
macaco, sem tanto cabelo. Era quase o que ele queria. Mas ainda
não era bem aquilo (1994b: 98).
Até aqui, a descrição parece se orientar para um desfecho
previsível: Deus cria o homem. No entanto, a narrativa encaminha
outra possibilidade:
Entusiasmado, Deus trancou-se na sua oficina e pôs-se a trabalhar.
E moldou sua criatura, e abrandou suas afeições, e arredondou
suas formas, e tirou um pouquinho daqui e acrescentou um
pouquinho ali. E criou a Mulher, e viu que era boa. E determinou
que ela reinaria sobre a sua criação, pois era a sua obra mais bemacabada. Infelizmente, o Diabo andou mexendo na lata de lixo de
Deus e, com o que sobrou da Mulher, criou o Homem (1994b: 9899).
A crônica encerra com a descrição de uma situação, agora
nos dias atuais, que comprova o corporativismo masculino: numa
conversa em um bar, a personagem Lalinha descobre que Teixeira,
seu namorado atual, havia pedido informações a Vinicius, seu
namorado anterior, sobre suas preferências, a fim de conquistá-la:
“Mas eu sou uma imbecil! (...) O primeiro disco que você me dá é
justamente um disco do Ivan Lins. Meu Deus, até o beijo atrás da
orelha!” (1994b: 99).
Tanto a inversão brincalhona do texto bíblico quanto o diálogo
entre os sexos opostos, sinaliza para uma superioridade de caráter
presente no universo feminino. Contudo, esta superioridade nem
sempre prevalece em todas as situações descritas por Luis Fernando
Verissimo.
Por exemplo, em “O Maridinho e a Mulherzinha” (1980: 3942), o autor procura realizar um exercício de desmascaramento
113
ensaios sobre a arte da palavra
das relações desiguais estabelecidas entre homens e mulheres.
São duas pequenas histórias: a primeira tem como tema a
submissão masculina e a segunda a submissão feminina.
Dessa maneira, a primeira história tem como fio condutor
um encontro de amigos no qual o “maridinho” se apresenta a um
novo membro do grupo dizendo, “faceiro”, que sua mulher o adora:
“Agora mesmo ela me vestiu, me penteou e me deixou sair para
dar uma volta”. O estranho no grupo pergunta: “É a sua mulher
que veste você?” ao que o “maridinho” responde: “É. Depois de me
dar banho”. O homem é descrito com características que lembram
o tratamento dispensado às crianças: necessita de cuidados
especiais e vigilância ostensiva, para “evitar que se machuque”.
Dando continuidade ao diálogo, o novato do grupo pergunta
se o “maridinho” pode ficar na rua o tempo que quiser, ao que ele
responde que sim, “o tempo que quiser. Até escurecer, é claro”,
pois sua mulher havia lhe dito que havia uma carrocinha que pegava
“maridinho” que ficava solto na rua, depois que escurece, para fazer
sabão.
O outro pergunta se ele não gostaria de ficar tomando uns
chopes e o “maridinho” adverte que não pode nem dizer esta palavra
porque “senão eu chego em casa, minha mulher cheira o meu hálito
e diz: ‘Você andou dizendo chope’”. Quando isto ocorre, ele é
castigado, ficando sem comida. Seu interlocutor pergunta:
- E você aceita isso?
- Claro que não! Está pensando o quê? Mulher nenhuma vai me
dominar. Depois que ela dorme eu vou na cozinha e como uma
bolacha. Comigo é assim.
- Dureza...
- Dureza. Levantou a voz comigo, já sabe.
- O que é que acontece?
- Eu choro (1980: 40-41).
O “maridinho” encarna atitudes, em certa medida, infantis, o
que revela sua dependência em relação à mulher. Esta descrição
ridiculariza a submissão masculina, principalmente quando o
homem, guardadas as proporções, procura idealizar, não uma
esposa, mas sim “uma mãe que faça sexo com ele”.
A segunda história descreve um marido que costumava
referir-se à sua esposa, de forma “carinhosa”, como “minha
114
cenas e leituras de um mestre da palavra
mulherzinha”. O marido olhava para a esposa “como se olha para
um cachorrinho (...). A mulherzinha vivia na sombra do marido.
Quando tentava dar a sua opinião sobre algum assunto mais sério,
ele piscava o olho, afagava sua cabeça e dizia: ‘ – Não preocupa
essa cabecinha linda com essas coisas. Vai fazer um cafezinho pra
gente, vai’” (1980: 41). A mulher é descrita como animalzinho de
estimação que, no entanto, não deve deixar de satisfazer as
exigências do marido no que se refere às tarefas domésticas.
Apresentadas as formas em que se dão as relações entre
marido e esposa, a narrativa extrapola os limites da realidade e
envereda no domínio do fantástico, ao descrever a gradativa
diminuição do tamanho da esposa. A cada dia que passava a mulher
encolhia mais e mais. O marido leva a (cada vez mais) “mulherzinha”
ao médico, que não sabe explicar o fenômeno: “A mulher permanecia
perfeitamente proporcionada, só menor” (1980: 41 ). O marido
preocupa-se com o encolhimento da esposa. Sua preocupação, no
entanto, não reside apenas no fato de não ter mais uma mulher
para abraçar, mas, principalmente, nas dificuldades que ela teria
para realizar as tarefas domésticas já que, reduzida de tamanho,
ela “levava três dias para cerzir uma meia. Tinha que trazer o
cafezinho xícara por xícara (...). Não podia mais cozinhar sob risco
de cair numa panela” (1980: 41-42).
O tamanho da mulher reduz-se de tal maneira que “um dia,
aconteceu (...). Tinha desaparecido. Estava, provavelmente, do
tamanho de um cisco. E até hoje o marido anda pela casa na ponta
dos pés, cuidando onde pisa, para não pisar na sua mulherzinha.
Desconsolado” (1980: 42). A narrativa problematiza a tradicional
divisão do trabalho: o homem trabalha fora e a mulher deve ater-se
aos afazeres da casa. Isto revela afinidades com o discurso feminista
das últimas décadas, principalmente em questões relacionadas à
crítica de determinadas situações: “Se alguém deve realizar as
tarefas da casa, por que, necessariamente, este alguém deve ser
do sexo feminino? Quem foi que disse que este é papel apenas da
mulher?”.
Em “O maridinho e a mulherzinha”, portanto, Luis Fernando
Verissimo descreve duas pequenas histórias que apresentam cenas
em que a submissão é condenada a partir da comicidade presente
na narrativa. Mas, repare-se que tanto a submissão feminina quanto
115
ensaios sobre a arte da palavra
a masculina são condenadas pelo uso do diminutivo para referirse aos personagens: “maridinho e mulherzinha”, o que sugere, ao
invés de uma posição sobreposta a outra, a busca da “igualdade” na
distribuição do poder estabelecida nas relações de gênero. Se a
submissão é condenada pelo riso, o que resulta como dado a ser
elogiado é a instauração do questionamento das posições
tradicionais ocupadas por homens e mulheres na sociedade.
Essas considerações demonstram a preocupação crítica do
autor ao explorar em seus textos a suposta superioridade
masculina, mas sem instituir a posição feminina como
necessariamente superior. Tal característica pode ser avaliada como
um procedimento inerente ao pós-modernismo, pois muitos dos
discursos pós-modernos, ao questionar o que é qualificado como o
“centro” na sociedade, procuram questionar também a instituição
de um novo centro, ou, em outros termos, procuram evitar, com o
elogio acrítico dos “marginais”, a instituição de novos centros a
partir destes. O melhor é que não haja centro, ou seja, que todos
sejam o centro e que, ao mesmo tempo, nenhum seja o centro,
como forma de driblar os abusos advindos de atitudes absolutistas.
A APROXIMAÇÃO DO OLHAR: NARRATIVAS EM FOCO
“Criaturas”
– Ora – disse Martins, com desdém – ele pensa que está sendo
original. Mas este truque é tão antigo quanto Pirandello.
– Mais antigo até – disse Romualdo, sacudindo o gelo no seu
copo. – Se não me engano, Flaubert já tinha escrito alguma coisa
sobre o Autor como um Deus pairando sobre o próprio texto, invisível
e onipresente ao mesmo tempo, guiando os destinos de seus
personagens indefesos.
– Criaturas se rebelando contra o Criador – continuou Martins.
– Francamente. Não duvido nem que Ele use a palavra
“metalinguagem”. Olha aí, já usou.
Aristides olhou em volta, confuso. Não havia mais ninguém na
sala, toda decorada em estilo Luiz XV, além dos três.
– De quem é que vocês estão falando? – perguntou.
– Dele – disse Romualdo, fazendo um gesto vago com seu copo.
– Ele quem?
– O Autor deste texto.
Aristides sorriu, condescendente.
– Não vão me dizer que vocês acreditam que existe um Autor
que nos criou e que guia nossos passos. Logo vocês, pessoas
sofisticadas, esclarecidas...
116
cenas e leituras de um mestre da palavra
– Você não acredita? – perguntou Martins.
– Num Autor onipotente que rege as nossas vidas? Não.
– Você não acredita que existe um Autor que nos criou, nos
colocou nesta página, numa sala decorada em estilo Luiz XV e nos
deu estes diálogos para dizer?
– Não.
Martins e Romualdo trocaram um sorriso de cumplicidade.
Romualdo aproximou seu rosto de Aristides.
– Então me diga: como é que você está aqui? Você de repente se
materializou no meio de um texto, com um copo de uísque na mão?
Sem mais nem menos?
– Meu caro – disse Aristides –, eu não pretendo ter uma explicação
para todos os mistérios da existência humana. Só sei que a idéia de
que eu sou um produto da imaginação de Alguém que na sua infinita
bondade me botou nesta página é absurda.
– Ninguém falou em infinita bondade – interrompeu Martins. –
Existe um Autor que nos criou e que nos tem em suas mãos, mas o
seu caráter é discutível.
– Se o Autor realmente é bom – disse Romualdo – que Ele faça
abrir aquela porta e por ela entrar... a Bruna Lombardi!
Nisto, a porta se abriu. Os três levantaram-se, cheios de
expectativa. Pela porta entrou... o Fantoni!4
– O que é que eu estou fazendo aqui? – perguntou o técnico.
– Nada, nada. Você deve ter entrado pela porta errada – disse
Romualdo.
Fantoni retirou-se e fechou a porta.
– Viu só? – disse Martins. – Existe um Autor que determina o
nosso destino. Mas Ele zomba de nós. Assim como nos colocou
numa sala Luiz XV, poderia ter-nos botado numa mina de sal, ou
sentados em cadeiras duras ouvindo o Bolero de Ravel. Nada o
impede de me matar agora mesmo. Ou de me transformar num
sapo.
Romualdo afastou sua cadeira ligeiramente, com medo que
Martins caísse fulminado aos seus pés. Aristides protestou:
– Ridículo! Eu comando o meu próprio destino. Se eu quiser,
posso me levantar e sair por aquela porta agora mesmo. Nós todos
podemos nos levantar, ir embora e acabar esta crônica na metade.
– Então levanta e sai – desafiou Romualdo.
Aristides continuou sentado.
– Se você é livre para fazer o que bem entender, então abra a
porta e saia desta página – insistiu Romualdo.
Aristides não se moveu.
– Outra coisa – continuou Romualdo. – Se você, como
personagem, fosse dono do seu próprio destino, você escolheria
estar logo aqui, num texto d’Ele? Eu preferia estar num texto de
Drummond!
– Eu sou livre – disse, calmamente, Asdrúbal.
Martins sorriu, tristemente.
– Não sei se você notou. Mas Ele mudou o seu nome. Agora, em
vez de Aristides, você é Asdrúbal. E não pode fazer nada a respeito...
– Mas eu não aceito isto – disse Asdrúbal.
– E vocês notaram? Ele só se refere a Ele mesmo com maiúscula.
117
ensaios sobre a arte da palavra
– É um tirano. Um megalomaníaco. Tem o poder absoluto. Enche
uma página inteira com as palavras que Ele quer, com os
personagens que Ele inventa. Dispõe de nossas vidas como se...
– Mas nós temos que nos rebelar! – gritou Asdrúbal. – Temos
que impor nossa liberdade! Nem que seja...
– O quê? – disse Martins, desconfiado.
Asdrúbal baixou a voz. Tinha tomado uma decisão.
– Nem que seja pelo suicídio – disse. – Ele nos criou, e isso o
torna superior. Mas nós, como Ele, podemos nos matar, e isto nos
torna iguais.
– Mas aqui não tem arma nenhuma – disse Martins, escondendo
o seu copo.
Um revólver materializou-se sobre uma mesinha laqueada.
Asdrúbal o pegou.
– Não! – disse Martins. – Você não vê? Ele está usando você. Ele
precisa de uma cena forte para o clímax da crônica e está forçando
você a estourar seus miolos.
Os olhos de Asdrúbal brilharam.
– E se eu matar um de vocês? Ou os dois? Assim eu me igualo a
Ele. Eu também tenho a vida de vocês em minhas mãos.
Os três agora estavam de pé. Romualdo recuou alguns passos.
Martins ficou onde estava. Martins falou:
– Isto é o que Ele quer, também. Criar suspense. À nossa custa.
Asdrúbal continuou apontando sua arma para Martins.
Romualdo começou a andar de lado, lentamente. Talvez pudesse se
aproximar de Asdrúbal por trás e roubar a arma.
– O que é que Ele quer de nós, afinal? – perguntou Asdrúbal,
sem baixar a arma.
– O que Ele queria, já conseguiu.
– E o que era?
– Encher esta página até aqui.
Romualdo estava quase às costas de Asdrúbal. Preparava-se
para atirar-se sobre ele.
– Onde é que isto vai acabar? – perguntou Asdrúbal.
– Aqui – disse Martins.
(In: VERISSIMO, L. F. Sexo na cabeça. Porto Alegre: L&PM, 1980, pp. 71-74).
A narrativa acima transcrita apresenta elementos que
procuram instaurar considerações relevantes sobre o processo de
criação literária, apresentando-se como crítica de si mesma ao
colocar em questão o seu próprio fazer, o seu próprio inventar,
fazendo com que passe a ser criadora e, concomitantemente,
inquiridora de seus valores. O autor incorpora discussões teóricas
sobre a construção da crônica, numa clara referência
metalingüística, que se distingue pelo fato de ser apresentada por
meio dos diálogos entre os personagens da narrativa, revelando
fatores tanto intertextuais (nas alusões a escritores como Luigi
118
cenas e leituras de um mestre da palavra
Pirandello, Gustave Flaubert e Carlos Drummond de Andrade)
quanto intratextuais (quando o texto retoma expressões do próprio
texto).
Este procedimento pode ser identificado na fala do
personagem Martins, quando de sua revolta contra a onipresença
do autor: “Criaturas se rebelando contra o Criador (...).
Francamente. Não duvido nem que Ele use a palavra
‘metalinguagem’. Olha aí, já usou”. Além disso, em tom
“autodifamatório”, o narrador apresenta as preferências de seus
personagens, inscrevendo a comicidade no texto, pois “se você,
como personagem, fosse dono do seu próprio destino, você
escolheria estar logo aqui, num texto d’Ele? Eu preferia estar num
texto de Drummond!”. A comicidade encontra-se ainda no uso pelo
autor da letra maiúscula para referir-se a si próprio: “E vocês
notaram? Ele só se refere a Ele mesmo com maiúscula”. Como se
pode notar, os personagens, após a ação, lêem a crônica da qual
participam.
No que se refere aos elementos intertextuais presentes na
narrativa, destaca-se a referência a Luigi Pirandello. O intertexto,
nesse caso, está relacionado à peça Seis personagens à procura de
um autor, marco fundamental da obra dramática do escritor italiano.
Nessa peça, o autor mostra um grupo de atores em ensaio, sob a
supervisão de um diretor; o trabalho é interrompido pela chegada
de seis pessoas que se apresentam como personagens – nascidas
da imaginação de um autor que depois se recusou a escrever sua
história – e que pedem aos atores que representem as cenas do
drama inscrito nelas e “vivido” por elas. A peça prossegue pela luta
das personagens com o diretor, transformado em autor; e da luta
entre as várias personagens em desacordo constante sobre o
significado ou mesmo sobre os fatos da história que cada uma viveu
a seu modo.
O diálogo entre o Diretor (personagem “real”) e o Pai
(personagem “fictício”) revela a independência assumida pelas
personagens quando do processo de sua criação pelo autor:
O DIRETOR (de repente, pondo-se diante do Pai, com uma idéia que
lhe surgiu):
Eu queria saber, porém, quando é que se viu um personagem sair
do seu papel e pôr-se a perorar assim, como o senhor está fazendo,
e a propô-lo, a explicá-lo. Pode dizer-me? Eu jamais o vi!
119
ensaios sobre a arte da palavra
O PAI:
Jamais o viu, senhor, porque os autores costumam esconder os
tormentos de sua criação. Quando os personagens são vivos,
realmente vivos, diante de seu autor, este não faz outra coisa senão
segui-los, nas palavras, nos gestos que, precisamente, eles lhe
propõem. E é preciso que ele os queira como eles querem ser; e ai
dele se não fizer isso! Quando uma personagem nasce, adquire logo
tal independência, mesmo em relação ao seu autor, que pode ser
imaginado por todos, em outras várias situações, nas quais o autor
nem pensou colocá-lo, e adquirir também, às vezes, um significado
que o autor nunca sonhou dar-lhe! (PIRANDELLO, 1981: 447).
O que o texto de Pirandello procura enfatizar é que os
personagens produzidos pelos escritores adquirem vida própria e
são transpostos para a realidade de formas diversas. A partir da
narrativa, Luis Fernando Verissimo retoma a idéia de Pirandello
sem, no entanto, “seguir seus personagens”, pois opera com certas
restrições quanto à independência das criaturas em relação ao seu
criador. O autor brasileiro, além de enfatizar o papel desempenhado
pela subjetividade quando da seleção dos eventos a serem narrados,
aborda ainda aspectos relacionados à estrutura narrativa, tais como
a necessidade de prender a atenção do leitor por meio da
instauração do “clímax”:
– É um tirano. Um megalomaníaco. Tem o poder absoluto. Enche
uma página inteira com as palavras que Ele quer, com os
personagens que Ele inventa. Dispõe de nossas vidas como se...
– Mas nós temos que nos rebelar! – gritou Asdrúbal. – Temos
que impor nossa liberdade! Nem que seja...
– O quê? – disse Martins, desconfiado.
Asdrúbal baixou a voz. Tinha tomado uma decisão.
– Nem que seja pelo suicídio – disse. – Ele nos criou, e isso o
torna superior. Mas nós, como Ele, podemos nos matar, e isto nos
torna iguais.
– Mas aqui não tem arma nenhuma – disse Martins, escondendo
o seu copo.
Um revólver materializou-se sobre uma mesinha laqueada.
Asdrúbal o pegou.
– Não! – disse Martins. – Você não vê? Ele está usando você. Ele
precisa de uma cena forte para o clímax da crônica e está forçando
você a estourar seus miolos (1980: 73-74).
Compreendendo o clímax de uma narrativa como “o ponto
alto da complicação, aquele em que ela se encontra com a solução
120
cenas e leituras de um mestre da palavra
(...). Momento que pede a solução, aponta para ela, onde o conflito
entre protagonista e antagonista atinge o máximo de violência”
(COUTINHO, 1978a: 40), o narrador enfatiza que esta é uma crônica
que fala sobre as características dos artefatos narrativos e, dessa
forma, falar sobre clímax é o próprio clímax da crônica, ou seja, a
tentativa de suicídio por parte de um dos personagens.
Tal processo se repete em relação ao suspense instaurado
no final do texto, quando “os olhos de Asdrúbal brilharam. – E se
eu matar um de vocês? Ou os dois? Assim eu me igualo a Ele. Eu
também tenho a vida de vocês em minhas mãos. Os três agora
estavam de pé. Romualdo recuou alguns passos. Martins ficou onde
estava. Martins falou: – Isto é o que Ele quer, também. Criar
suspense. À nossa custa”.
Para criar o suspense, o autor sabe que precisa dispor o seu
material de tal forma que desperte e mantenha o interesse do leitor,
pois a narrativa não causa o efeito de modo instantâneo, mas por
uma progressiva revelação de suas partes. A impressão e o interesse
são obtidos e mantidos pelo suspense, isto é, o estado emocional
criado no leitor pela incerteza do que vai ocorrer depois, e de como
será o desenlace da estória (Cf. COUTINHO, 1978a: 44).
O autor fala sobre a necessidade do suspense na crônica e
logo após cria esse suspense: “Asdrúbal continuou apontando sua
arma para Martins. Romualdo começou a andar de lado, lentamente.
Talvez pudesse se aproximar de Asdrúbal por trás e roubar a arma”.
Este procedimento evidencia que “o efeito de intensidade se
relaciona com momentos de complicação na trama” (CUNHA, 1994:
39). Expressões como “Os olhos de Asdrúbal brilharam”; “Romualdo
recuou alguns passos. Martins ficou onde estava”; “Romualdo
começou a andar de lado, lentamente”; entre outras, são artifícios
usados para criar a expectativa no que se refere ao desfecho da
narrativa, despertando o interesse do leitor.
Metalinguagem, intertextualidade, subjetividade, clímax e
suspense são teorizações sobre a criação literária. Assim, a narrativa
pode ser inscrita nas características pós-modernas da literatura,
pois discute a si própria como construção discursiva, numa
tentativa de conciliar teoria e prática: falar sobre a criação literária
a partir de uma criação literária, característica que pode ser definida
como auto-reflexiva, e, por conta disso, fundamentalmente pós-
121
ensaios sobre a arte da palavra
moderna (HUTCHEON, 1991: 33). O ensaísmo que perpassa essa crônica
de Luis Fernando Verissimo aparece como um exercício
metalingüístico, a partir do qual o autor examina os elementos do
texto em elaboração.
“Nova carta de intenções”
Parece que ficou assim a nova carta de intenções do Brasil ao
FMI:
“Querido Efe:
Não é preciso dizer que estamos envergonhadíssimos porque
não cumprimos nenhuma das promessas da nossa última carta.
Sei que você ficou aborrecido conosco e com razão. A Ana Maria
(que moça simpática!) esteve aqui e nos passou um pito merecido.
Mas depois aceitou nossa explicação técnica para o ocorrido – “o
Brasil é assim mesmo” – e na hora de ela embarcar já éramos amigos
de novo. Por sinal, você recebeu a goiabada? Bom proveito.
Corre uma história por aqui que achamos que você gostaria de
saber. Só como amostra do espírito irreverente do brasileiro. Como
você sabe, muita gente aqui diz que a receita do FMI para pôr ordem
na economia brasileira é muito ortodoxa e não leva em conta fatores
locais. E estão lembrando, como comparação, a história da ajuda
soviética aos egípcios, na guerra deles contra Israel. É assim. Você
vai dar boas risadas. Israel estava invadindo o Egito e os egípcios
não sabiam como se defender. Pensaram, pensaram e decidiram
pedir conselhos à Rússia. Afinal, quem entendia mais de expulsar
invasores do que a Rússia? Napoleão tinha invadido a Rússia e sido
derrotado. Hitler tinha invadido a Rússia e sido derrotado. Pediram
ajuda aos russos. Da mesma maneira que o Brasil pediu ajuda ao
FMI, certo? Você vai adorar. Não havia tempo para chegar um
conselheiro militar russo ao Egito. As consultas tinham que ser
feitas por telegrama. E a primeira mensagem dos egípcios foi
transmitida:
- Tropas israelenses avançam nosso território. O que fazer?
Os russos responderam:
- Deixa eles virem.
Mas como? Nenhuma resistência? Nada? Mas os russos
entendiam do assunto e os egípcios deixaram os israelenses virem.
Seguiu a segunda mensagem dos egípcios:
- Tropas israelenses continuam avançando nosso território. O
que fazer?
- Deixa eles virem.
Os egípcios estranharam, mas aceitaram o conselho. Os russos
entendiam do assunto. Mas chegou a um ponto em que os egípcios
entraram em pânico. Era preciso fazer alguma coisa. Os israelenses
não paravam de avançar. Logo estariam no Cairo. Nova mensagem:
- Israelenses a poucos quilômetros capital. O que fazer?
- Deixa eles virem.
122
cenas e leituras de um mestre da palavra
Os egípcios não se contiveram e mandaram outro telegrama em
seguida, pedindo explicações sobre a estratégia russa. E os russos
responderam:
- Inverno chegando. Breve neve imobilizará inimigo.
Não é boa? Eu sabia que você ia gostar. Claro que não reflete,
em absoluto, o nosso pensamento. Se bem que estranhamos quando
a Ana Maria desceu do avião de casaco de pele...Não, não. É
brincadeira. Pelo amor de Deus. Você ficou sentido? Foi só uma
piada. Sabe como é o pessoal. Brasileiro gosta tanto de piadas que
duas, hoje, são presidenciáveis. Mas, falando sério.
Estas são nossas intenções. Desta vez para valer. Mesmo. Por
tudo que é mais sagrado. Que caiam o Delfim e o bustier da Xuxa,
se estivermos mentindo. Desta vez a inflação abaixa ou não nos
chamamos Bolívia. Nosso plano é o seguinte: ninguém mais come.
É um antigo hábito brasileiro que precisa acabar. Assim, não só cai
a pressão inflacionária do item alimentação como diminuem os casos
de intoxicação alimentar e os conseqüentes gastos com a saúde.
Diminuirão também, obviamente, os investimentos em esgotos,
obras de saneamento, etc. Todo o alimento produzido no país poderá
ser exportado para criar divisas. Claro que haverá protestos. Mas
donos de restaurantes e clínicas de emagrecimento podem passar
para o rendoso negócio das funerárias. Hein? Hein? Você ainda se
orgulhará de nós, Efe!
Um abraço do Brasil”.
(In: VERISSIMO, L. F. A mulher do Silva. Porto Alegre: L&PM, 1984, pp. 106-108).
Nesta narrativa, destaca-se o uso da comicidade crítica, pois
Luis Fernando Verissimo, por meio da voz emprestada aos
representantes do governo brasileiro, cria um narrador que se
proclama como porta-voz da nação e suas palavras levam à
denúncia, séria, da dependência tanto econômica quanto cultural.
Tal atitude literária aparece disfarçada pela instauração de uma
voz, que se quer imparcial, a introduzir o assunto da crônica: “Parece
que ficou assim a nova carta de intenções do Brasil ao FMI”. A
expressão “parece que ficou assim” cria a ilusão de falta de endereço
quanto à origem das informações. No entanto, sabe-se que as
relações internacionais são feitas por pessoas ligadas ao poder
público. Dessa forma, pode-se evidenciar a crítica à política de
relações exteriores empreendida pelas autoridades brasileiras.
Como visto, na linha inicial que separa as vozes que dialogam
na crônica, quem fala é uma voz que se quer imparcial, servindo
para indicar o assunto de que trata a narrativa: uma carta de
intenções escrita pelo governo brasileiro expondo um relatório sobre
a situação atual do país. Logo após, o autor insere o que seria este
123
ensaios sobre a arte da palavra
relatório, caracterizado por ser redigido numa linguagem coloquial,
adotada por amigos íntimos (como se vê no uso do apelido “Querido
Efe” e de estratégias para acalmar o F.M.I. – Fundo Monetário
Internacional –, tais como a bajulação inscrita na oferta da
goiabada). Com relação a este aspecto, pode-se evidenciar que o
riso é deflagrado pela transposição da linguagem solene deste tipo
de documento para a linguagem trivial, acarretando, com isso, a
mudança de tonalidade da “carta” e emprestando ao texto uma de
suas qualidades risíveis fundamentais.
O teor da carta posiciona o governo na condição de
subordinado a grupos financeiros de capital estrangeiro: “Não é
preciso dizer que estamos envergonhadíssimos porque não
cumprimos nenhuma das promessas da nossa última carta”. Nesse
trecho, o narrador faz referência ao não-cumprimento das metas
anteriores e, pedindo desculpas (pois “o Brasil é assim mesmo”),
tenta subornar o FMI com um “presentinho”. Em outras palavras,
a descrição possibilita caracterizar o autor do relatório como
subserviente e corrupto: “Querido Efe: Sei que você ficou aborrecido
conosco e com razão. A Ana Maria (que moça simpática!) esteve
aqui e nos passou um pito merecido. Mas depois aceitou nossa
explicação técnica para o ocorrido (...) e na hora de ela embarcar já
éramos amigos de novo. Por sinal, você recebeu a goiabada? Bom
proveito”.
A narrativa leva ao riso, mas este riso encobre críticas às
instituições governamentais devido ao uso do fenômeno irônico
que, ao estabelecer relações com dado público, procura modificar
seu posicionamento frente a determinadas questões, o que aponta
para a seriedade presente em muitas manifestações cômicas,
contrariando o ditado popular: “muito riso, pouco siso”.
Após a exposição temática, o narrador apresenta as medidas
impostas pelo Fundo Monetário Internacional: elas são
descontextualizadas, por não levarem em conta fatores locais. O
narrador instaura a comicidade fazendo uso da ilustração: cita o
exemplo do pedido de ajuda que teria sido feito pelos egípcios aos
russos por ocasião da Guerra dos Seis Dias, ocorrida entre Israel e
os países árabes, que culminaria com a vitória dos judeus. Após o
relato da fracassada solicitação aos russos, o narrador enfatiza que
ela “não reflete, em absoluto, o nosso pensamento. [No entanto]
124
cenas e leituras de um mestre da palavra
estranhamos quando a Ana Maria desceu do avião de casaco de
pele... Não, não. É brincadeira. Pelo amor de Deus. Você ficou
sentido?”. Se não reflete o pensamento brasileiro, por que então
fazer uso da ilustração?
Pode-se cogitar que o respeito excessivo, a reverência diante
do objeto impede que se tenha em relação a ele uma atitude crítica,
que se possa vê-lo nos aspectos também negativos: é preciso que
se crie a perspectiva de destemor no trato com o mundo para que
se tenha frente a ele uma atitude efetivamente crítica. Este pode
ser entendido como um dos papéis do riso irônico despertado pelo
texto. Assim, o riso nivela ao desierarquizar a autoridade das vozes
presentes no texto, processo engendrado por uma certa
carnavalização instaurada pelo autor.
Dando continuidade à narrativa, as autoridades brasileiras
informam suas intenções, de forma “séria”, pois “desta vez para
valer. Mesmo. Por tudo que é mais sagrado. Que caiam o Delfim e
o bustier da Xuxa, se estivermos mentindo. Desta vez a inflação
abaixa ou não nos chamamos Bolívia”. Com este recurso, o narrador
afirma algo para que se infira o contrário.
No final do texto, é apontada a solução para o Brasil: eliminar
o hábito de comer já que este “é um antigo hábito brasileiro que
precisa acabar”. As conseqüências de tal medida trariam resultados
imediatos: “não só cai a pressão inflacionária do item alimentação
como diminuem os casos de intoxicação alimentar e os
conseqüentes gastos com a saúde. Diminuirão também,
obviamente, os investimentos em esgotos, obras de saneamento,
etc. Todo o alimento produzido no país poderá ser exportado para
criar divisas”.
No entanto, as autoridades brasileiras previnem quanto aos
protestos que tal medida possa gerar. Este protesto não virá da
população de baixa renda, mas sim dos “donos de restaurantes e
clínicas de emagrecimento [que] podem passar para o rendoso
negócio das funerárias. Hein? Hein?” e a crônica termina com a
promessa de que “Você ainda se orgulhará de nós, Efe! Um abraço
do Brasil”. Como se percebe, o absurdo da proposta é ridicularizado
pelo autor na medida em que esta é apresentada pelo governo
brasileiro, caracterizado agora como impopular por implantar
soluções antidemocráticas: sem peso para a resolução dos
125
ensaios sobre a arte da palavra
problemas surgidos na área social.
Portanto, a narrativa pode ser caracterizada por duas
qualidades fundamentais: a comicidade crítica (ao ridicularizar o
governo, realiza um processo de desierarquização, pois o riso
despertado por esta ridicularização nivela as pessoas, destituindolhes a aura de autoridade); e a incorporação de elementos ligados
à linguagem oral inscrita no estilo informal da narrativa,
característico das cartas enviadas a amigos íntimos. A linguagem
coloquial é empregada principalmente no que se refere à intimidade
das formas de tratamento, tais como o apelido “Querido Efe”, por
meio do qual o autor refere-se à instituição internacional; e através
do uso de frases como “corre uma história por aqui que achamos
que você gostaria de saber”.
Esse último aspecto pode ser descrito como sintoma de um
processo de busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do
artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de
ser do nosso tempo, o que reafirma o fato de que “num país como o
Brasil, onde se costumava identificar superioridade intelectual e
literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônica
operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o
ponto máximo nos nossos dias” (CANDIDO, 1992: 16).
De acordo com Linda Hutcheon, a cultura pós-moderna, por
ser deliberadamente contraditória, usa e abusa das convenções do
discurso: “Ela sabe que não pode escapar ao envolvimento com as
tendências econômicas (capitalismo recente) e ideológicas
(humanismo liberal) de seu tempo. Não há saída. Tudo o que ela
pode fazer é questionar a partir de dentro” (1991: 16). Na crônica
analisada, destaca-se o fato de que não é alguém que fala sobre o
governo brasileiro: é o próprio governo que faz o uso da palavra na
narrativa. Ocorre assim a inserção das palavras do poder público
para que estas sejam ridicularizadas por meio do riso irônico
sugerido pelo texto, o que mostra a preocupação em criticar as
instituições, a partir do que seria seu próprio discurso.
Revela-se assim a utilização da comicidade por parte do autor
com o objetivo de desafiar a autoridade a partir de seu próprio
interior, empregando a ironia para comprometer e também para
criticar determinadas atitudes. Tal posição assume tons cômicos
quando o autor transforma a “carta de intenções” — documento
126
cenas e leituras de um mestre da palavra
oficial produzido pelos dirigentes públicos dos países “pobres”, com
o objetivo de apresentar uma espécie de prestação de contas e
apontar as metas futuras a serem alcançadas — em simples “carta”,
forma de comunicação mais informal.
“Racismo”
Escuta aqui, ó criolo...
— O que foi?
— Você andou dizendo por aí que no Brasil existe racismo.
— E não existe?
— Isso é negrice sua. E eu que sempre te considerei um negro
de alma branca... É, não adianta. Negro quando não faz na entrada...
— Mas aqui existe racismo.
— Existe nada. Vocês têm toda a liberdade, têm tudo o que
gostam. Têm carnaval, têm futebol, têm melancia... E emprego é o
que não falta. Lá em casa por exemplo, estão precisando de
empregada. Pra ser lixeiro, pra abrir buraco, ninguém se habilita.
Agora pra uma cachacinha e um baile estão sempre prontos. Raça
de safados. E ainda se queixam!
— Eu insisto, aqui tem racismo.
— Então prova, Beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara?
Naquela vez que te encontrei conversando com a minha irmã, não
te pedi com toda a educação que não aparecesse mais na nossa
rua? Hein, Tição? Quem apanhou de toda a família foi minha irmã.
Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinha
confundido a menina com alguma empregadoza de cabelo ruim,
não, que foi só um engano porque negro é burro mesmo. Fui teu
amigão. Isso é racismo?
— Eu sei, mas...
— Onde é que está o racismo então? Fala, Macaco.
— É que outro dia eu quis entrar de sócio num clube e não me
deixaram.
— Bom, mas pera um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês
não têm clubes de vocês? Vão querer entrar nos nossos também?
Pera um pouquinho.
— Mas isso é racismo.
— Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente faz
diferença entre as pessoas por causa da cor da pele, como nos
Estados Unidos. É uma coisa completamente diferente. Nós estamos
falando do crioléu começar a freqüentar clube de branco, assim
sem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo.
— Sim, mas...
— Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar nos clubes de vocês?
Deus me livre!
— Pois é, mas...
— Não, tem paciência. Eu não faço diferença entre negro e branco,
pra mim é tudo igual. Agora, eles lá e eu aqui. Quer dizer, há um
limite.
127
ensaios sobre a arte da palavra
— Pois então. O...
— Você precisa aprender qual é o seu lugar, só isso.
— Mas...
— E digo mais. É por isso que não existe racismo no Brasil.
Porque aqui o negro conhece o lugar dele.
— É, mas...
— E enquanto o negro conhecer o lugar dele, nunca vai haver
racismo no Brasil. Está entendendo? Nunca. Aqui existe diálogo.
— Sim, mas...
— E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba
aí que é isso que tu faz bem.
(VERISSIMO, L. F. Comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1996, pp. 59-60).
Engraçado, não? Seguem abaixo considerações, nada
engraçadas, sobre alguns artifícios usados no texto para ironizar o
preconceito para com os negros na sociedade brasileira. A narrativa
é um bom exemplo para verificar a eficácia do procedimento irônico,
haja vista ser ele explicitamente irônico. Pode-se constatar que a
ironia aparece no texto acima como um dos instrumentos que
marcam sua heterogeneidade. Trabalhando sob duas perspectivas
— colocando-se na voz do branco e, ao mesmo tempo, chamando a
atenção sobre o negro —, o texto faz o jogo do interesse estratégico
da ironia: “o autor de uma enunciação irônica produz um enunciado
que possui, a um só tempo, dois valores contraditórios, sem, no
entanto, ser submetido às sanções que isso deveria acarretar”
(MAINGUENEAU, 1997: 100).
Fica evidente que a narrativa tem por objetivo criticar e
chamar a atenção da opinião pública para o racismo no Brasil.
Mas, chamar a atenção para esse fato, no texto, não partiu de um
extenso levantamento histórico e de índices para expor a situação
atual do negro. Estrategicamente, o autor partiu de um mesmo
enunciado para dois destinatários: dirige-se ao branco,
desqualificando-o por meio de sua descrição como personagem
arrogante; e ao negro defensivamente, revelando a sua situação de
vítima da crueldade do branco. Em outras palavras: no texto, anulase, paradoxalmente, o que se enuncia no próprio ato de enunciar.
Para transcrever a ironia, o enunciador confiou no contexto e nele
recuperou elementos contraditórios: a situação do negro brasileiro
e a atitude, historicamente marcada, do branco frente aos negros.
A ironia aparece, assim, como uma espécie de armadilha que
permite frustrar “o assujeitamento dos enunciadores às regras da
128
cenas e leituras de um mestre da palavra
racionalidade e da conveniência públicas” (MAINGUENEAU, 1997: 100). O
texto evidencia, portanto, o caráter ambíguo da ironia e o valor
contraditório encontrado em alguns enunciados. Além disso, revela
a diversificação de meios a serem utilizados para sua transcrição:
caráter hiperbólico, aspas, pontos de exclamação etc. Com tais
estratégias, o enunciador pode assumir as palavras, mas não o
ponto de vista que elas representam.
Muitas das narrativas de Luis Fernando Veríssimo, com certa
freqüência, buscam realçar o perigo da universalização dos valores,
relacionando-a ao risco que se corre ao pretender tornar familiar o
que é estranho através do uso de valores pré-determinados. O
ataque, nesse caso, está direcionado a todas as formas de
preconceitos, no sentido que a palavra adquire quando é separada
pelo hífen: pré-conceitos, ou seja, conceitos definidos antes de um
efetivo contato ou compreensão daquilo ou daqueles que
apresentam valores diferentes. Como amostra desse tipo de
procedimento, destaca-se aqui o texto acima transcrito, por meio
do qual o autor procura ridicularizar aquelas idéias que fazem do
cenário brasileiro um espaço onde conviveriam democraticamente
todas as raças. Trata-se de uma crônica – intitulada “Racismo”,
publicada em jornal no dia 14/05/1975 e depois reunida em livro
(Comédias da vida pública, 1996) – que apresenta como estrutura
narrativa o diálogo entre um branco e um negro.
Ao invés de realizar um estudo sobre a situação marginalizada
dos negros no Brasil, o autor dá voz ao branco para que este então
se denuncie. Tal característica é reforçada pela linguagem adotada
para se referir ao negro: “Criolo”, “negrice”, “negro de alma branca”,
“negro quando não faz na entrada...”, são expressões comumente
relacionadas a atitudes preconceituosas em relação aos negros.
Com isso, o autor procura mostrar que o preconceito está
presente no cotidiano brasileiro em expressões muitas vezes
consideradas inocentes. Além disso, seu discurso está carregado
de imagens que relegam ao negro profissões e valores considerados
inferiores. Um dos trechos mais corrosivos do texto está relacionado
à delimitação de espaços e situações comumente relacionadas aos
negros:
— Eu insisto, aqui tem racismo.
— Então prova, Beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara?
129
ensaios sobre a arte da palavra
Naquela vez que te encontrei conversando com a minha irmã, não
te pedi com toda a educação que não aparecesse mais na nossa
rua? Hein, Tição? Quem apanhou de toda a família foi minha irmã.
Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinha
confundido a menina com alguma empregadoza de cabelo ruim,
não, que foi só um engano porque negro é burro mesmo. Fui teu
amigão. Isso é racismo?
— Eu sei, mas...
— Onde é que está o racismo então? Fala, Macaco.
— É que outro dia eu quis entrar de sócio num clube e não me
deixaram.
— Bom, mas pera um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês
não têm clubes de vocês? Vão querer entrar nos nossos também?
Pera um pouquinho.
— Mas isso é racismo.
O branco, a partir de resposta marcadamente contraditória,
explica o que entende por racismo, usando como exemplo o contexto
norte-americano:
— Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente faz
diferença entre as pessoas por causa da cor da pele, como nos
Estados Unidos. É uma coisa completamente diferente. Nós estamos
falando do crioléu começar a freqüentar clube de branco, assim
sem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo.
— Sim, mas...
— Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar nos clubes de vocês?
Deus me livre! (1996: 60).
Ao final da narrativa, o branco explica que no Brasil não existe
racismo porque, “aqui”, o negro conhece o seu lugar:
— É, mas...
— E enquanto o negro conhecer o lugar dele, nunca vai haver
racismo no Brasil. Está entendendo? Nunca. Aqui existe diálogo.
— Sim, mas...
— E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba
aí que é isso que tu faz bem (1996: 60).
Nesse último trecho, aparecem dois elementos fundamentais
relacionados ao preconceito racial ainda hoje disseminado no
contexto brasileiro. O branco diz que no Brasil “existe diálogo”,
mas a própria narrativa enfatiza o privilégio do qual o branco se
investe, já que o negro não consegue expor sua opinião sobre o
tema, o que fica evidente no uso de expressões como “É, mas...”;
130
cenas e leituras de um mestre da palavra
“Sim, mas...”; “Eu sei, mas...”. A reincidência na utilização da
conjunção adversativa “mas”, bem como as reticências presentes
nas frases proferidas pelo negro, procuram realçar o fato de que o
negro possui opiniões que divergem das do branco; contudo, suas
falas são interrompidas constantemente pelo branco. Assim, o que
era diálogo, acaba tornando-se um monólogo, no qual o branco
ocupa a maior parte das cenas.
Quando quer continuar a expor suas opiniões, o negro é
acusado de impertinente. E aí aparece novamente a demarcação
(apartheid?) de espaços destinados ao negro: bater samba seria
função exclusiva do negro, única coisa que ele sabe fazer bem.
Recurso constante na produção de Luis Fernando Verissimo, a arma
utilizada para ridicularizar a atitude preconceituosa do branco com
relação ao negro é a ironia. O autor faz com que o branco exponha
opiniões que revelam posições contraditórias. O texto indica
questões pertinentes: se a democracia racial no Brasil não funciona
nem no discurso, imagine-se então na prática? Ou ainda que uma
coisa pode ser compreendida como decorrente da outra: por não
haver respeito no discurso, também não há na prática?
O texto de Luis Fernando Verissimo é ainda um exemplo
significativo de como a comicidade pode servir para fins opostos:
ao incorporar em seu texto algumas das expressões ligadas às
piadas preconceituosas contadas sobre os negros, o autor inverte
o ataque, fazendo do riso uma arma para condenar o preconceito,
ao invés de realçá-lo, o que ocorre constantemente em muitas
dessas piadas.
A narrativa aponta, portanto, para o fato de que sustentar a
idéia de democracia racial brasileira é uma atitude equivocada sob
vários aspectos, já que serve primordialmente para frear as
reivindicações dos negros, no que se refere à conquista de maior
espaço na sociedade. Como manifestação que pode ser relacionada
ao pós-modernismo, essas reivindicações procuram sustentar-se,
por sua vez, no direito à existência de coletividades culturais
étnicas, religiosas, morais, diversas umas das outras (Cf. PELOSO, 1991:
169). Contudo, na identificação dessas diferenças aparece, como
aspecto significativo, o fato de que as atenções podem ser
direcionadas também às possibilidades de articulação de interesses
comuns – presentes em reivindicações como as dos “periféricos”,
131
ensaios sobre a arte da palavra
das mulheres, entre outros –, para evitar, sobretudo, uma fixação
estreita na diferença (Cf. EAGLETON, 1997: 324).
“A praga”
Ninguém sabe como se entenderam, mas se entenderam. E a
primeira coisa que o índio deu a Colombo foi — um tomate. Era o
primeiro encontro na primeira ilha no primeiro dia, e o próprio sol
parecia ter chegado mais perto para não perder a cena. Fazia calor,
e o tomate brilhava ao sol como uma maçã dourada.
— Um pomo d’oro! – exclamou Colombo.
— Um tomate – explicou o índio. — Para a salada. Para o molho.
— Finalmente, algo para pôr fim à brancura do espaguete! –
disse Colombo, emocionado. — Marco Polo só descobriu a massa.
Eu descobri a macarronada.
E Colombo aceitou o tomate e deu em troca uma miçanga.
O índio deu uma batata a Colombo, que o olhou com desprezo.
Mas o índio descreveu (com mímica, com a linguagem mágica dos
encontros míticos) sua importância para a história ocidental, desde
a alimentação das massas camponesas da Europa até sua versão
noisette, ou fritas com um Big Mac. E Colombo a aceitou e deu em
troca um espelhinho.
E o índio deu a Colombo o fruto do cacaueiro e falou no que o
chocolate significaria para o mundo, em especial para a Bahia e a
Suíça, e nas delícias do bombom por vir. E Colombo guardou o
cacau na algibeira e deu em troca um vintém.
E o índio deu a Colombo uma folha de tabaco, e falou nos prazeres
do fumo, e de como ele afetaria os hábitos civilizados. E se quisessem
algo mais forte, tinham uma planta que dava coca, e um barato
ainda maior. E tudo isto Colombo aceitou em troca de contas. E
mais uma espiga de milho. E mais um papagaio. Até que, com a
algibeira cheia, Colombo disse:
— Chega de miudezas. Agora eu quero o ouro.
— O quê?
— Ouro. Isso que você tem no nariz.
— E o que você dá em troca? – perguntou o índio, antevendo
algo espetacular, como uma luneta. Mas Colombo apontou sua
pistola para a cabeça do índio e disse “Isto”, e disparou. Depois
mandou seus homens recolherem todo o ouro da ilha, nem que
precisassem arrancar narizes.
No chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo e
praguejou. Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolate
enchesse suas artérias de colesterol, que o fumo desse câncer, a
cocaína o corrompesse e o ouro destruísse sua alma. E que o tomate
— desejou o índio com seu último suspiro — se transformasse em
ketchup.
E assim aconteceu.
(In: VERISSIMO, L. F. Comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1995, pp. 54-55).
132
cenas e leituras de um mestre da palavra
Destaca-se nessa crônica o papel representado pela ironia
na construção paradoxal do texto, já que a ironia pode ser definida
como uma das “marcas deixadas pela enunciação no enunciado,
elementos do discurso que remetem ao eu que o organiza” (FIORIN,
1994: 55). Este fenômeno faz parte de um processo comunicativo
no qual um locutor procura transmitir sua opinião sobre alguma
coisa ou sobre alguém a um interlocutor utilizando-se do disfarce,
espécie de contra-verdade interna, pois o que o sujeito falante deseja
transmitir não pode ou não deve ser dito de maneira explícita.
No discurso irônico, o autor instaura intencionalmente a
contradição em seu texto, deixando pistas para que o leitor perceba
que o que está sendo dito deve ser lido de outra forma. Desse modo,
a ironia é usada como uma poderosa arma para levar adiante o
jogo da argumentação e para realçar o ridículo das opiniões que se
quer combater. Trata-se, nesse caso, da argumentação pelo ridículo,
na qual certas atitudes ou palavras, difíceis de se suportarem,
devem ser sancionadas pelo riso: não o riso despretensioso e
ingênuo provocado pela comicidade benevolente, aquela que
perdoa, mas sim o riso que integra elementos de sarcasmo e de
prazer maldoso existentes no riso de zombaria, que condena
determinadas situações e atitudes.
Para Vladimir Propp, a definição da ironia não apresenta
grandes dificuldades: “diz-se algo positivo, pretendendo, ao
contrário, expressar algo negativo, oposto ao que foi dito” (1992:
125). De acordo com Propp, a ironia constitui um dos aspectos da
zombaria e nisto está sua comicidade: “o fato de o defeito vir a ser
definido por meio da qualidade que se lhe opõe, coloca em evidência
e realça o próprio defeito. A ironia é particularmente expressiva na
linguagem falada, quando faz uso de uma particular entonação
escarnecedora” (1992: 125).
Como não dispõe do apoio da gesticulação, própria da
linguagem oral, o sujeito enunciador precisa articular de forma
criteriosa as estratégias ligadas à palavra escrita, tais como os
elementos figurativos – metáforas, hipérboles etc. – ou palavras
que toma emprestado de outras vozes, de outros discursos e de
outras situações de comunicação. Essas estratégias são utilizadas
tendo como meta subverter o significado primeiro das palavras dos
“outros”.
133
ensaios sobre a arte da palavra
Com relação à crônica de Luis Fernando Verissimo, o autor,
sem abandonar as figuras, privilegia a segunda estratégia, pois
subverte o discurso do “bom branco europeu” ao descrever
situações nas quais o mesmo aparece como bárbaro, caracterizandoo a partir de enunciados como “o índio deu uma batata a Colombo,
que o olhou com desprezo”; “chega de miudezas. Agora eu quero o
ouro”; ou ainda “Colombo apontou sua pistola para a cabeça do
índio (...) e disparou”.
O discurso irônico, dentro dessa perspectiva, faz parte de
processos nos quais um mesmo texto aparece em formações
discursivas diferentes, acarretando com isso variações de sentido,
o que “pode servir para a idéia de que um determinado texto,
dependendo de seu espaço de realização, atualizará elementos que
autorizam diferentes significações, ou mesmo significações
contraditórias” (BRAIT, 1996: 36). É o que ocorre no texto do cronista
ao expor conceitos e idéias ligadas à “descoberta” da América, em
que transparece a relação conflituosa estabelecida entre Velho e
Novo Mundos, encontro compreendido por alguns como benéfico
aos americanos, mas que para outros marca o extermínio de
culturas inteiras, simbolizado na morte do índio, devido à
intolerância por parte do europeu ganancioso.
Num estudo sobre as relações estabelecidas em torno da
alteridade, Tzvetan Todorov descreve as justificativas dos espanhóis
para “civilizar os bárbaros da América”. O trecho a seguir, extraído
da obra de Todorov, foi elaborado em 1550 pelo filósofo espanhol
Gines de Sepúlveda e serve para ilustrar as concepções do mundo
europeu em relação aos nativos americanos:
Em prudência como em habilidade, e em virtude como em
humanidade, esses bárbaros são tão inferiores aos espanhóis quanto
as crianças aos adultos e as mulheres aos homens; entre eles e os
espanhóis, há tanta diferença quanto entre gente feroz e cruel e
gente de uma extrema clemência, entre gente prodigiosamente
intemperante e seres temperantes e comedidos e, ousaria dizer,
tanta diferença quanto entre os macacos e os homens (TODOROV,
1996: 150).
Como se pode notar, o que Luis Fernando Verissimo procura
ridicularizar em seu texto é a noção eurocêntrica tradicionalmente
veiculada pelos conquistadores de que o “descobrimento da
América” empreendido pelos europeus foi uma ação civilizadora e,
134
cenas e leituras de um mestre da palavra
portanto, uma contribuição ao desenvolvimento dos povos que
habitavam este continente. A narrativa busca expor, a partir da
inversão de características comumente veiculadas, o choque
ocorrido entre culturas diferentes, no qual o europeu, por se
considerar culturalmente superior, incumbe-se da tarefa de
“civilizar” os índios americanos em troca do enriquecimento advindo
das riquezas da nova terra. O autor ironiza este encontro ao
descrever os efeitos destruidores ocasionados pelo uso desmedido
dos produtos americanos que, por serem obtidos de forma injusta,
trouxeram prejuízos aos “filhos de Colombo”. Tal ironização aparece
com maior ênfase na caracterização depreciativa do personagem
Colombo, apresentado como alguém pouco “civilizado”, incapaz de
reconhecer as riquezas do Novo Mundo: os alimentos e as palavras
proféticas do índio.
Utilizando estas estratégias, o que a narrativa permite
enfatizar é a continuidade do passado no presente: a inserção de
anacronismos propositais — expressos na alternância entre
informações ligadas à época do “descobrimento” e outras ligadas
ao momento atual (“ketchup” e “Big Mac”) — sugere que os valores
eurocêntricos, em voga no passado, são os antecedentes dos valores
norte-americanos vigentes na atualidade pela afirmação constante
do “american way of life”, compreendido como estilo de vida
exportado com razoável sucesso para o mundo inteiro.
Entendido como atividade cultural que pode ser detectada
na maioria das formas de arte e em muitas correntes de pensamento
atuais, o pós-modernismo é considerado “fundamentalmente
contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político.
[Contudo] não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação crítica,
um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade” (HUTCHEON,
1991: 20). Nesse sentido, o papel preponderante da ironia no pósmodernismo pode ser detectado na reelaboração crítica dos vários
discursos, sem ser necessariamente um “retorno nostálgico”, já
que sua forma é irônica, sobretudo, por desconfiar de verdades e
certezas estabelecidas (Cf. EAGLETON, 1997: 318).
O texto oferece informações que podem ser consideradas
“sérias”, tais como o mau caráter dos chamados “descobridores” e
a disposição de ânimo (bom humor), a generosidade e a perspicácia
dos chamados “selvagens”. Essas informações aparecem na
135
ensaios sobre a arte da palavra
descrição das atitudes de Colombo: “E Colombo aceitou o tomate e
deu em troca uma miçanga”; “E Colombo aceitou [a batata] e deu
em troca um espelhinho”; “E Colombo guardou o cacau na algibeira
e deu em troca um vintém”. Tais atitudes contrastam com as do
índio: “E o índio deu a Colombo uma folha de tabaco, e falou nos
prazeres do fumo, e de como ele afetaria os hábitos civilizados. E
se quisessem algo mais forte, tinham uma planta que dava coca, e
um barato ainda maior. (...) E [deu] mais uma espiga de milho. E
[deu] mais um papagaio”.
Além das informações sérias, a crônica apresenta uma
argumentação pelo absurdo, enfatizando o ridículo como estratégia
crítica do texto, ou seja, a “descoberta” da América é contraposta à
modernidade do índio, mostrada em suas palavras e em sua
maldição:
No chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo e praguejou.
Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolate enchesse
suas artérias de colesterol, que o fumo lhe desse câncer, a cocaína
o corrompesse e o ouro destruísse sua alma. E que o tomate – desejou
o índio com seu último suspiro – se transformasse em ketchup. E
assim aconteceu (1995: 55).
Dessa forma, servindo-se da ironia como procedimento
argumentativo, reunindo informações “sérias” e informações “nãosérias”, o autor expõe uma idéia tomando elementos do mundo
passíveis de receber um significado irônico. A leitura desse texto
certamente provocará o riso, no entanto, o riso da ironia é ambíguo
“sacudindo o leitor e despertando o mesmo para outra ‘realidade’”
(BERGSON, 1987: 128).
Portanto, como meio de expressão, o texto irônico pode ser
definido como paradoxal ao veicular contradições presentes na
sociedade, pois leva o leitor a realizar um esforço intelectual para
com ele dialogar, transformando-se, enfim, em seu interlocutor.
Ressalte-se, assim, o fato de que muitas das narrativas de Luis
Fernando Verissimo — corroborando a idéia de que o aprendizado
também está embutido no lúdico divertimento —, reafirmam o
objetivo de fazer o leitor, enquanto se diverte, despertar para a
interpretação crítica de sua realidade sociocultural. Os traços
constitutivos da crônica (simplicidade, brevidade e graça) são um
veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa
136
cenas e leituras de um mestre da palavra
que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das
coisas (Cf. CANDIDO, 1992: 19).
“O ator”
O homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher
e os dois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta
o que há para jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar um
banho, trocar de roupa e preparar-se para algumas horas de sossego
na frente da televisão antes de dormir. Quando está abrindo a porta
do seu quarto ouve uma voz que grita:
— Corta!
O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é
uma casa, é um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta das
suas mãos. Uma mulher vem ver se a sua maquilagem está bem e
põe um pouco de pó no seu nariz. Aproxima-se um homem com um
script na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de beijar
as crianças.
— O que é isso? - pergunta o homem. - Quem são vocês? O que
estão fazendo dentro da minha casa? Que luzes são essas?
— O que, enlouqueceu? - pergunta o diretor.
— Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que você está cansado,
mas...
— Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar
meu pijama. Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, mas
saiam todos! Saiam!
O diretor fica parado de boca aberta. Toda a equipe fica em
silêncio, olhando para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão e
diz:
— Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um
pouquinho e...
— Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha...
A minha família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os
meus filhos!
O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura da
família. O diretor e um assistente tentam agarrá-lo. E então ouvese uma voz que grita:
— Corta!
Aproxima-se outro homem com um script na mão. O homem
descobre que o cenário, na verdade, é um cenário. O homem com
um script na mão diz:
— Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.
— Que-quem é você?
— Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta
cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem.
Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é um
cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada.
— Eu não entendo...
— Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.
— Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde
137
ensaios sobre a arte da palavra
está minha mulher? Os meus filhos? A minha casa?
— Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar.
Volte para a sua marca. Atenção, luzes...
— Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou
eu! Ninguém me dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendo
as minhas próprias falas...
— Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está
bom.
— Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto
não é um filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Isto
é simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, que
tudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores...
Porcaria!
— Boa, boa. Está convincente. Mas espere até começar a filmar.
Atenção...
O homem agarra o diretor pela frente da camisa.
— Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha
casa.
O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se
uma voz que grita:
— Corta!
(In: VERISSIMO, L. F. O suicida e o computador. Porto Alegre: L&PM, 1992, pp. 84-86).
O show de Truman (1998), filme dirigido por Peter Weir e
protagonizado por Jim Carrey e Ed Harris, retrata o que se pode
denominar de “publicização” da intimidade pessoal, ou seja, a
história acompanha, a partir da captura das imagens, o cotidiano
de uma pessoa, desde o seu nascimento até quando ela descobre
que sua vida é, na realidade, um programa, fenômeno de enorme
audiência, exibido pela televisão. O ingênuo Truman Burbank é a
estrela do show... mas não sabe disso. O personagem nem imagina
que sua antiquada cidade é um estúdio gigantesco, dirigido por
um visionário produtor/diretor/criador, nem que as pessoas que
vivem e trabalham lá são atores, e que até sua esposa é uma atriz
contratada.
O filme é ambientado num estúdio de tevê, explorando
recursos metalingüísticos, ou seja, o filme é um filme dentro de
outro filme. Além disso, a audiência é duplamente testada tanto
pelo público interno (no próprio filme) como pelos espectadores
externos (aqueles que conhecem a história através das salas de
cinema, do videocassete, da televisão etc.).
Apesar de oferecer opções alternativas ao público externo, o
público interno é apresentado como telespectador, entendido como
o indivíduo que assiste à televisão e um dos aspectos marcantes
138
cenas e leituras de um mestre da palavra
do filme está relacionado à presença onipresente da publicidade
na configuração do programa: em meio às cenas domésticas, são
exibidos produtos que financiam a execução do programa. Sendo
assim, o filme sugere que as possibilidades alcançadas pelos meios
de comunicação de massa, no que se refere à interferência decisiva
nas ações humanas, são um dos elementos que levam ao privilégio
da imagem nas últimas décadas.
Mas o que isso tem a ver com literatura pós-moderna? Esse
processo de publicização da vida privada é um dos temas
recorrentes nas crônicas de Luis Fernando Verissimo, sendo, por
esse motivo, interessante para uma análise comparativa entre
transmissão televisual e literatura.
Assim como no filme, o autor aborda em algumas de suas
crônicas a importância assumida pela televisão, pelo cinema, enfim,
pelo script como forma de indicar os passos dos indivíduos, ou
seja, um processo que desperta nas pessoas a sensação de ter sua
vida filmada ou de já ter visto algo parecido em alguma cena
cinematográfica ou televisiva. Antes era a vida que inspirava a tela;
agora cada vez mais é a tela que sugere comportamentos a serem
encenados na vida diária.
Dessa maneira, a narrativa acima transcrita sugere a
necessidade de adoção de diferentes papéis para diferentes
contextos: o social, o profissional, o intelectual, o doméstico; tantos
quantos exigir a variedade dos interlocutores. A narrativa sinaliza
para o fato de que a formação de uma personalidade autoconsciente
está intimamente ligada aos relacionamentos estabelecidos através
do convívio social. Para que este convívio se efetive, existem
determinados “scripts” a serem seguidos. Ir para casa descansar
depois do trabalho é a representação de um desses papéis: “o
homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os
dois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o
que há para jantar e dirige-se para o seu quarto”.
A repetição das cenas sugere ainda o filme dentro do filme
dentro do filme..., o que enfatiza a importância da metalinguagem
nas produções culturais pós-modernas. Com relação à literatura,
esse processo revela que a “diferença que separa uma obra literária
de um trabalho de crítica literária (...) tem-se neutralizado
freqüentemente na literatura contemporânea, devido à tendência
139
ensaios sobre a arte da palavra
de se produzir uma narrativa que seja ao mesmo tempo uma criação
fictícia e uma teorização sobre esta ficção” (E. F. COUTINHO, 1985:
37). Para Terry Eagleton, a arte pós-moderna, por saber que suas
próprias ficções são infundadas e gratuitas, “pode atingir uma
espécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica
consciência desse fato (...), chamando a atenção para seu próprio
status de artifício construído” (1997: 318). Aspecto interessante da
metalinguagem está relacionado então à aplicação da autocrítica
no texto, ou seja, quando o “ator” faz perguntas sobre o que está
acontecendo, a explicação do diretor revela a análise das cenas
anteriores como forma metalingüística interna ao texto. Em outros
termos, o texto explica as cenas anteriores e, com isso, revela
aspectos metalingüísticos importantes para a compreensão do
enredo do filme-crônica que está sendo produzido:
— Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.
— Que-quem é você?
— Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta
cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem.
Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é um
cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada.
-------------------------------------------------------------------------— Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto
não é um filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Isto
é simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, que
tudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores...
Porcaria!
Além disso, a circularidade sugerida pelos vários cortes
internos da narrativa, que são novamente retomados a posteriori,
revela implicações com categorias oníricas relacionadas ao devaneio
e à fantasia. Como num labirinto, no qual, quando não é encontrada
a saída, volta-se sempre a lugares já percorridos, o texto enfatiza
as seqüências aleatórias, a presença do acaso nas relações
humanas.
Com relação à representação das ações humanas, o texto
aparece como narrativa literária que incorpora elementos próprios
de uma produção cinematográfica, entrevistos no acompanhamento
das cenas pelo olhar de uma câmera que “captura” a movimentação
dos personagens no ambiente; no corte abrupto das cenas; na
montagem da narrativa em feixes de ações sobrepostas etc. A
crônica revela, portanto, aspectos relacionados ao reconhecimento
140
cenas e leituras de um mestre da palavra
da fragmentação do indivíduo frente à sociedade, a partir das
imagens forjadas nos relacionamentos humanos, e que prescrevem
certas atitudes a serem adotadas em diferentes situações. A unidade
do sujeito é questionada pela sugestão da diversidade de atuações
perante a sociedade: o sujeito julga ser “um para todos”, quando,
na realidade, as distintas possibilidades de relacionamento revelam
vários papéis possíveis a serem desempenhados; um com esta
pessoa, outro com aquela. O personagem, incapaz de vislumbrar
unidade em termos de consciência, não consegue compreender as
personalidades que a sociedade construíra para fixá-lo em uma
forma estável, resultado sugerido pelo final do texto, que indica a
continuidade da encenação, mesmo sob os protestos do “ator”.
“A verdade”
Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho,
deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito
brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas
águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que
fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel
de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro
de margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante
e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas
não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:
— Agora me lembro, não era um homem, eram dois.
E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem,
e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E
a donzela disse:
— Então está com o terceiro!
Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os
irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o
encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos
de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram, e
encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para
espanto dela.
— Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo,
e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões. – Matem-no!
— Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a
corda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que
me deu!
E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando,
quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o
beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse,
pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem
141
ensaios sobre a arte da palavra
honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência,
pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a
donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o
seduzem, este anel comprará seu amor”. E ele sucumbira, pois era
pobre, e a necessidade é o algoz da honra.
Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura!
Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou
a forca para o seu pescoço.
Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:
— A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela
minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?
O pescador deu de ombros e disse:
— A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas
quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias
de pescador.
(In: VERISSIMO, L. F. Comédias da vida privada. Porto Alegre: 1994b, pp. 358-59).
A análise dessa narrativa partirá das discussões
empreendidas pelo escritor e crítico literário Silviano Santiago que,
desenvolvendo o percurso histórico do narrador traçado por Walter
Benjamin, se empenha em demonstrar de que forma alguns traços
da pós-modernidade interferem na configuração do narrador pósmoderno. Segundo o autor, agora mais do que nunca, o narrador
pós-moderno “sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de
linguagem” (1989: 40). Em “A verdade”, Luis Fernando Verissimo
mostra aspectos que estão relacionados a esta visão das realidades
sociais.
Nessa crônica, como visto através de sua leitura anterior, o
autor conta a história, aparentemente banal, de uma moça que
perde um anel de diamante à beira de um riacho. Como explicação
ao pai severo, a moça “inventa” o relato de um assalto. O pai e os
irmãos saem em busca do criminoso e encontram um homem
dormindo no bosque e o matam. No entanto, não encontram o anel.
A donzela alega haver um segundo assaltante e novamente ocorre
o processo de busca e morte de outro inocente.
Dessa forma, através da mentira (também compreendida como
construção de linguagem), a donzela consegue persuadir o pai e os
irmãos, alegando agora a existência de um terceiro assaltante e
novamente eles saem à procura do malfeitor. Nessa terceira
tentativa – estrutura típica encontrada em alguns contos
maravilhosos –, o pai e os irmãos da donzela, “fartos de sangue”,
após levá-lo à aldeia, resolvem revistar o suposto assaltante (na
142
cenas e leituras de um mestre da palavra
realidade, um pescador) e, para a surpresa da própria donzela,
encontram o diamante.
A partir daí, o autor revela as possibilidades persuasivas da
linguagem na medida em que apresenta “‘a verdade’ como
construção de linguagem”: a defesa do pescador mostra que as
habilidades no uso das palavras auxiliam na exposição das idéias
e dos fatos como sendo verdadeiros. Como exemplo dessas
habilidades podem ser citados o conhecimento, por parte do
pescador, do consenso comunitário de que histórias de pescador
são mentirosas; o apelo aos valores prestigiados pela comunidade
(honra, casamento, família, dignidade etc.) através da inclusão de
cenas de violência (suborno feito por parte da donzela) e sexo (a
perda da virgindade):
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando,
quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o
beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse,
pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem
honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência,
pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a
donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não
o seduzem, este anel comprará seu amor”. E ele sucumbira, pois
era pobre, e a necessidade é o algoz [carrasco] da honra (1994b:
359, grifos nossos).
Portanto, a verdade aparece na narrativa como uma mentira
que foi bem contada. Sendo assim, ela é uma ação construída pelo
discurso. Além disso, a verdade está ancorada em valores
consensuais prestigiados pelos “aldeões” e conhecidos pelo
pescador, pois, mesmo sabendo da “verdade verdadeira”, este não
pode fazer sua exposição sob pena de ser desacreditado pelo grupo
social no qual está inserido. O pescador sabe que a verdade não é
o que parece, mas é essa que o liberta. Então faz uso da que lhe
convém. Portanto, o texto apresenta diferentes versões sobre o
mesmo fato: a versão “válida” é aquela que integra a construção
discursiva mais elaborada.
Pode-se questionar como é que as outras pessoas não ouvem
o que o pescador diz à donzela no final do texto? É nesse detalhe
que reside a comicidade da narrativa: o leitor sabe que tanto a
donzela quanto o pescador estão mentindo e o narrador, usando
como recurso a ocultação de alguns fatos, faz com que o pescador
143
ensaios sobre a arte da palavra
não seja desmascarado aos olhos dos personagens que tomam parte
na ação, com exceção da donzela: o narrador desmascara os
mentirosos diante do leitor, o que leva ao riso.
Desse modo, no que se refere às possíveis atitudes do leitor
diante do texto, pode ser destacado um fato curioso. Nas linhas
finais do texto, falando para o pescador, a donzela afirma: “A sua
mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira
e vão matar pela sua”. Tanto a donzela quanto o pescador utilizamse da mentira para convencer as pessoas; sendo assim, ambos são
criminosos. Por que então a condenação da donzela pode ser aceita
como sendo “mais” justa?
Pode ser visualizada como uma das respostas para esta
imparcialidade o fato de que a história do pescador, apesar de ser
uma mentira também, “vinga” a morte anterior de dois inocentes.
Nesse aspecto, relacionam-se no texto diferentes noções de justiça:
a donzela deve ser castigada já que foi a autora das mentiras que
geraram todo o conflito – levando seu pai e seus irmãos a cometerem
dois assassinatos; ao ser identificado no texto como vítima, o
pescador revela perspicácia ao relatar sua história com maior ênfase,
e, como tal, sua libertação pode ser encarada de forma menos
problemática.
Em certo sentido, estas considerações contribuem para
revelar algumas propriedades do riso, pois quando o texto faz rir,
este riso condena certas atitudes que contradizem noções do que
seja “certo” e “justo”. No caso, é justo e é certo que o pescador seja
inocentado, mesmo que seja através da mentira, recurso utilizado
também pela donzela. A mentira é condenável, mas a reparação de
uma injustiça anterior pode ser classificada como mérito do
pescador por estar amparada em uma defesa consistente. A mentira
adquire assim um valor positivo ao ser utilizada como arma para
reparar uma injustiça.
Nesse aspecto, sendo os contos maravilhosos e os contos de
fadas, por definição, histórias de índole maniqueísta — isto é,
focalizam geralmente o eterno conflito entre o bem e o mal, entre
heróis e bandidos —, sua alusão suscita no leitor, como que por
um mecanismo de reflexos condicionados, uma expectativa
eticamente orientada, uma vontade de tomar partido.
144
cenas e leituras de um mestre da palavra
Contudo, a narrativa subverte o maniqueísmo elegendo a
mentira como forma de salvação, tanto da donzela, num primeiro
momento, quanto do pescador ao final do texto. Assim, a escolha do
cenário para ambientar a história (aldeia) e personagens
estereotípicos (donzela) ligam-se aos contos maravilhosos e contos
de fadas; entretanto, a subversão do maniqueísmo atua como fator
diferencial, já que a mentira nessas histórias geralmente está
associada a atitudes malignas.
Com relação ao final irônico do texto, a ironia pode ser
enquadrada entre as estratégias colocadas em prática na língua e
nos diferentes discursos, visando passar idéias, estabelecer relações
com dado público e, se possível, modificar seu posicionamento
frente a determinadas questões. Assim, nessa narrativa, Luis
Fernando Verissimo encerra através da expressão “O pessoal quer
violência e sexo, não histórias de pescador” numa referência ao
privilégio dado atualmente – através da cultura de massa, desde a
televisão e o cinema até os jornais, as revistas etc. –, à obscenidade
com que são expostas determinadas imagens. Tal processo sugere
então que “já não há mais a obscenidade tradicional entendida
como algo escondido, reprimido, proibido ou obscuro; pelo contrário,
é a obscenidade do visível, do tudo-muito-visível, do mais-visívelque-o-visível. É a obscenidade do que já não tem nenhum segredo,
do que se dissolve completamente em informação e comunicação”.5
Outro ponto importante da narrativa está direcionado às
relações estabelecidas entre cultura popular, cultura erudita e
cultura de massa expressas na utilização pelo autor da estrutura
típica dos contos maravilhosos, compreendidos enquanto narrativas
populares que sofreram um processo de canonização que resultou,
por sua vez, na “padronização” desses contos tal como se
apresentam atualmente. Esse aspecto é reforçado em certa medida
através da ambientação medieval da narrativa evidenciada na
descrição de situações típicas de uma aldeia desse período — entre
eles, a condenação sumária dos criminosos, o que evidencia a
ausência de todo um aparato jurídico e legal — e no uso de termos
que se enquadram nos moldes dos contos maravilhosos, tais como
“donzela” e “canteiro de margarida” que aparecem de forma
“caracterizante” no início da narrativa.
145
ensaios sobre a arte da palavra
Apesar dessa caracterização, o texto revela implicações com
a relativa homogeneização discursiva realizada pelos meios de
comunicação no que se refere à sedimentação do imaginário
sociocultural ocorrida nos “tempos pós-modernos” e incentivada pela
cultura de massa. Isto transparece principalmente no que se refere
ao fato de a originalidade da representação ter sua importância
reduzida, já que a fim de satisfazer ao maior número possível de
seus consumidores, “as obras dessa cultura se abstêm de usar
recursos de expressão que, por demasiado originais ou pessoais,
se afastem do gosto médio, frustrando-se as expectativas. Daí que
ela se limite, na maioria dos casos, ao uso de recursos de efeito já
consagrados, mesmo arriscando a banalizá-los pela repetição” (PAES,
1990: 26). Dessa maneira, a narrativa mostra ainda que a reiteração
de esquemas formais consolidados junto aos destinatários é de
fundamental importância: cenas de violência e sexo seriam então
os ingredientes básicos das estratégias usadas para convencer o
público.
A referência às histórias de pescador aponta para a utilização
de aspectos relacionados a este tipo de estrutura narrativa na
medida em que ressalta o inusitado das interpretações dadas aos
fatos através do encadeamento narrativo logicamente previsível,
caminhando para um desfecho de forte impacto, sendo esta
estrutura a responsável pela surpresa e pelo riso.
Esses aspectos podem ser relacionados à combinação de
diferentes registros de discurso adotada para a exposição da
história: o autor “chama” de crônica o que apresenta elementos
presentes nos contos maravilhosos e nas piadas, entre outras
formas de “contar histórias”. Assim, a narrativa incorpora todas
essas estruturas e nenhuma delas, pois os elementos de ambas
são utilizados para criar a forma nova, inscrevendo-se no debate,
tanto moderno quanto pós-moderno, sobre as fronteiras e os limites
entre os vários gêneros.
Jane Flax, elencando as crenças postas em dúvida pelas
teorias desconstrutivistas, enfatiza que uma delas está relacionada
à noção de que “a linguagem é de certo modo transparente”. Com
isso, essas teorias procurariam questionar a idéia de que “assim
como o uso correto da razão pode resultar no conhecimento que
representa o real, também a linguagem é meramente o meio no
146
cenas e leituras de um mestre da palavra
qual e através do qual tal representação ocorre”. Assim, de acordo
com a autora, este redirecionamento colocaria em dúvida a idéia
de que “os objetos não são lingüisticamente (ou socialmente)
construídos, [pois, se afirmava até então que] eles são meramente
trazidos à consciência pela nomeação e pelo uso correto da
linguagem” (1991: 222-3). Sendo assim, o uso racional da ciência
passa a ser discutido pelo pós-modernismo através do
questionamento das “narrativas-mestras” que sustentavam os
diversos discursos, pois já “não existem hierarquias naturais, só
existem aquelas que construímos” (HUTCHEON, 1991: 30-31).
Como visto, o narrador de “A verdade” sugere que aquilo que
é compreendido como verdadeiro pode ser exposto como estando
vinculado à competência discursiva do falante. O discurso aparece,
dessa forma, não como entidade estável e contínua que possa ser
discutida como um texto formal fixo: “por ser o local da associação
entre o poder e o conhecimento, o discurso vai alterar sua forma e
sua relevância dependendo de quem está falando, da posição de
poder dessa pessoa e do contexto institucional em que o falante
esteja situado” (FOUCAULT, 1997: 96).
A narrativa estabelece considerações sobre questões ligadas
à autoridade e à legitimação do poder a partir da palavra. De acordo
com Luis Fernando Verissimo, “o perigo da palavra lhe confere sua
grandeza (...). A origem da palavra não é garantia de autenticidade.
Seu valor depende menos de quem diz do que quando e como diz
[pois] com a palavra se mobiliza qualquer um, e se explica qualquer
coisa” (1994a: 7-8). A narrativa apresenta importantes características
auto-reflexivas, principalmente ao mostrar de quem é a noção de
verdade que passa a ter poder e autoridade sobre as outras e depois
evidenciar o processo através do qual isto ocorre.
Portanto, a análise da narrativa, quando aliada à
problematização das relações entre discurso e poder, sinaliza para
o fato de que este se caracteriza substancialmente por estar
constantemente sendo produzido, ou seja, o poder não é uma
estrutura nem instituição: é um processo, e não um produto. O
poder da palavra está intimamente ligado então ao contexto em
que é utilizada, o que sugere a eficácia da “polivalência tática dos
discursos” (FOUCAULT, 1997: 95). É assim que as palavras do pescador,
sustentadas pelos valores prestigiados pelo grupo no qual está
147
ensaios sobre a arte da palavra
inserido, adquirem poder e autoridade, fazendo com que os aldeões
aceitem sua defesa como sendo passível de crédito e condenando
a donzela à morte.
O estudo aqui empreendido apresenta-se como esboço das
possibilidades de análise das narrativas de Luis Fernando
Verissimo. Como maneira de condensar essas possibilidades podese indicar que elas apresentam algumas peculiaridades
relacionadas ao momento pós-moderno vivenciado nas produções
culturais das últimas décadas: inter-relações entre cultura popular,
cultura de massa e cultura erudita; utilização da comicidade para
surpreender seus leitores, principalmente pelo emprego da ironia
e da paródia; incorporação de teorizações acadêmicas; implicações
formais e estéticas com o modernismo, entre outras abordadas no
decorrer da exposição realizada.
Mais especificamente em relação à cultura de massa merece
destaque o fato de Luis Fernando Verissimo poder ser considerado
um autor de destaque significativo no mercado editorial brasileiro.
Apesar desse destaque — pode-se sugerir que, em grande parte,
por conta dele —, o autor consegue questionar os limites e as
tendências das manifestações que se apresentam na atualidade
como veículos do “êxtase da comunicação”.
Ademais, muitas das crônicas do autor redimensionam
algumas peculiaridades características do gênero. Como exemplo,
pode ser citada a utilização de artifícios de distanciamento narrativo.
O gênero costuma ser definido muitas vezes pelo uso do narrador
em primeira pessoa, ou seja, quem fala na crônica é o próprio
cronista. De acordo com o modo como o autor se dirige ao leitor,
para transmitir-lhe a sua interpretação artística da realidade, os
gêneros literários são classificados da seguinte forma:
Fazendo-o diretamente, em seu próprio nome, explanando seus
pontos de vista, temos os gêneros ensaísticos: ensaio, crônica,
discurso, máximas, carta; se, ao contrário, o faz indiretamente, isto
é, usando artifícios que veiculam a sua interpretação, resultam três
variedades conforme o artifício é: a) uma estória que encorpa a
interpretação - gêneros de literatura narrativa (epopéia, ficção, etc.);
b) uma representação mimética da realidade - gêneros de literatura
dramática (tragédia, comédia, etc.); c) símbolos, imagens, música,
ritmo, - gêneros de literatura lírica ou lirismo (COUTINHO, 1978a: 13).
148
cenas e leituras de um mestre da palavra
Evidenciando a fusão entre elementos dessa classificação
tradicional dos gêneros, em várias de suas narrativas Luis
Fernando Verissimo utiliza-se de diálogos entre personagens como
procedimento para encarnar os comentários a respeito de temas
diversos. Esse aspecto pode ser definido como contra-corrente na
crônica. Isto não é novidade no gênero, mas um recurso freqüente
na obra deste autor. Além disso, o trabalho de concisão, de síntese
narrativa, peculiar ao conto, aparece em suas crônicas como
elemento fundamental para sustentar a agilidade desses diálogos.
Na combinação que realiza em sua prosa de formas e temas ligados
aos meios de comunicação de massa, procura se apropriar de
imagens e idéias ligadas ao cotidiano, com o intuito de fazer o
registro de mudanças significativas ocorridas nas últimas décadas
em algumas esferas socioculturais.
Alguns mecanismos usados em campanhas publicitárias
exibidas na televisão podem ilustrar o modo como a literatura vem
incorporando elementos ligados à cultura de massa. O olhar filtrado
pela câmera parece ser um dos recursos mais expressivos nas
produções culturais contemporâneas. Mas existem outros.
Em muitas campanhas publicitárias, uma das maneiras de
atingir o maior número de consumidores reside na utilização da
comicidade. Os produtores de comerciais para a televisão sabem
que o tempo de tele-transmissão é limitado e não pode ser gasto
com mensagens simplórias. Sendo assim, a repetição constante
desses comerciais encontra um obstáculo: o efeito cômico está
relacionado com a surpresa, com o inesperado. Este obstáculo pode
ser definido pela seguinte questão: quem ri de uma piada quando
já sabe do seu final?
Para driblar este obstáculo os produtores desses comerciais
lançam mão de um recurso engenhoso: o comercial não necessita,
e nem deve, provocar o riso no telespectador apenas pelo seu final
inusitado; ao invés disso, ele deve conter vários momentos risíveis
para que o telespectador, quando estiver assistindo novamente ao
mesmo comercial, possa ater-se a detalhes que antes não foram
percebidos. Isto requer um trabalho meticuloso devido ao intervalo
de tempo reduzido da maioria dos comerciais.
Esta estratégia passa a ser utilizada como artifício para
veicular mensagens que atraiam o consumidor para a frente da
149
ensaios sobre a arte da palavra
televisão, pois, rindo das cenas cômicas de um comercial, o
telespectador estará fazendo a associação desse momento prazeroso
– já que “rir é o melhor remédio” – com o produto exibido na tela.
Mas quais são as implicações entre comerciais televisivos e
as crônicas de Luis Fernando Verissimo? Pois bem. À semelhança
dos comerciais de televisão – no que se refere às estratégias para
provocar o riso e não aos objetivos desse riso – a escrita de Luis
Fernando Verissimo procura desenvolver uma comicidade
caracterizada pela sutileza. Por este motivo, o autor consegue atrair
o leitor ao provocar, em muitos casos, uma manifestação de riso de
certa forma contida. Este recurso, apesar de não provocar a
gargalhada, mostra o conhecimento por parte do autor das
artimanhas para pontuar seus textos de pequenos episódios risíveis.
Esta sutileza no emprego da comicidade parece possuir
paralelos na publicidade televisiva: um comercial de televisão deve
entreter os telespectadores de tal forma que, a cada aparição, estes
percebam um detalhe antes não percebido. De forma semelhante,
as narrativas de Luis Fernando Verissimo procuram amenizar os
efeitos do riso, ou, em outros termos, o riso provocado não deve
ser muito prolongado e não deve ser limitado apenas ao final da
narrativa. Por este motivo, o uso de recursos diversos para provocar
o riso no leitor, em diferentes momentos de seus textos, parece ser
uma das estratégias mais eficazes adotadas pelo autor. Essa
estratégia está relacionada ao fato de que os fenômenos risíveis
tornam-se enfadonhos quando ouvidos ou lidos novamente devido
à “perda da graça”, pois já não causam mais surpresa, quando
sustentados apenas pelo final inesperado.
Em síntese, de que maneiras a escrita de Luis Fernando
Verissimo faz uma releitura dos problemas da sociedade brasileira?
A resposta parece estar nos recursos discursivos utilizados pelo
autor como a paródia, a ironia, a réplica sarcástica, a biografia
autocrítica, entre outros. Estes recursos relativizam os significados,
ao citar e aludir a outros discursos, servindo a um amplo leque de
atitudes por parte do autor, desde a homenagem até a brincadeira
ou a transgressão. O que fica evidenciado é que o autor articula
uma espécie de crítica pautada no riso, sustentada pela recusa
subversiva das definições pré-fabricadas e pela insinuação de
novas definições, mesmo que sejam provisórias. Essa crítica
150
cenas e leituras de um mestre da palavra
adquire força na instabilidade gerada pela contestação dos padrões
estabelecidos no convívio social: “o mirante escolhido pelo escritor
apresenta um mundo engraçado, mas trágico. Faz-nos rir, mas
faz-nos ver também que fala de coisas sérias” (SILVA, 1984: 19).
Portanto, Luis Fernando Verissimo pode ser inscrito no
quadro daqueles escritores que apostam na certeza da dúvida e
revelam um expressivo desencanto em relação à ditadura do
consenso, atitudes constantes em sua arte, ao alertar sobre o perigo
dos clichês e dos lugares-comuns produzidos pela sedimentação
da linguagem. O autor investe, assim, no potencial subversivo da
comicidade que atua decisivamente contra as pretensões
universalizantes, baseadas na sua grande maioria nos discursos
considerados “sérios”. Na análise aqui efetuada, os pontos altos da
prosa de Luis Fernando Verissimo identificam-se com a inserção
de caracteres ligados ao pós-modernismo e com a manipulação
artística de elementos cômicos em suas narrativas, legando à
crônica a força e a vivacidade necessárias à sua permanência.
Notas
1. Além dos personagens-tipo citados, Luis Fernando Verissimo criou ainda
outros que, no entanto, não (re)aparecem com tanta freqüência. Entre estes,
destaca-se o “Doutor Pundonor de Azevedo”, defensor da moral e dos bons
costumes da família brasileira (O popular, 1973); e “Dora Avante”, uma “socialite”
em decadência (A mulher do Silva, 1984; Orgias, 1989).
2. Expressão criada por Linda Hutcheon para designar aquelas manifestações
que procuram se contrapor às narrativas-mestras, principalmente aquelas
formuladas com base nas idéias do humanismo liberal.
3. Numa sociedade sustentada pela possibilidade de acúmulo de riquezas,
não é de surpreender que os velhos preconceitos ligados à raça, à nacionalidade,
ao sexo etc. sejam redimensionados, muitas vezes, em termos financeiros,
passando a predominar o preconceito econômico: o tratamento dispensado a
ricos e pobres é então diferenciado cada vez com mais ênfase.
4. Referência a Orlando Fantoni, técnico de futebol “linha-dura”, famoso nas
décadas de 1970 e 1980. O técnico aparece como ícone oposto à leveza de
Bruna Lombardi.
5. “It is no longer the traditional obscenity of what is hidden, repressed, forbidden
or obscure; on the contrary, it is the obscenity of the visible, of the all-toovisible, of the more-visible-than-the-visible. It is the obscenity of what no
longer has any secret, of what dissolves completely in information and
communication.” (B AUDRILLARD , Jean. “The ecstasy of communication”. Transl.
John Johnston. In: FOSTER, Hal [Ed.]. The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern
Culture. Port Tousend, Washington: Bay Press, 1983, p. 131).
*
*
*
151
ensaios sobre a arte da palavra
152
CONSIDERAÇÕES FINAIS
•♦•
Ao longo deste livro foram apresentadas questões sobre
temáticas consideradas importantes para a análise da literatura
produzida nas últimas décadas do século XX. Como forma de indicar
as possibilidades de pesquisa na área são arrolados a seguir
elementos que podem sinalizar alguns caminhos para a crítica
literária no próximo século.
As narrativas e as imagens veiculadas pelos mass media
difundem os símbolos, os mitos e os recursos que informam, em
muitas regiões do mundo, a constituição de uma cultura comum
para a maioria dos indivíduos. A cultura veiculada nesses meios
faz circular as informações que sedimentam as identidades por
meio das quais os indivíduos se inserem nas sociedades
tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de
cultura global.
A formulação de teorias sobre o intercâmbio entre mídia e
cultura, um dos caminhos da crítica literária na atualidade, requer
estudos específicos relacionados às ocorrências da história efetiva.
Isto porque estes estudos precisam ser inseridos na realidade de
sua própria história. Para interrogar de modo crítico a literatura
contemporânea é preciso realizar estudos sobre o modo como os
escritores criam produções que dialogam com os discursos
socioculturais encravados nos conflitos e nos fundamentos de sua
época.
Embora uma parte das teorias pós-modernas elucide certas
características novas e mais evidentes de nossa cultura e de nossa
sociedade, a afirmação de que há uma nova ruptura pós-moderna
na sociedade e na história é exagerada. No contexto brasileiro, as
últimas décadas do século XX apresentam-se como uma era de
transição entre o moderno e o pós-moderno, o que exige a análise
153
ensaios sobre a arte da palavra
tanto das estratégias e teorias modernas quanto das pós-modernas.
Esta posição assinala a resistência à tentação de denunciar a
necessidade de uma teoria e de estudos pós-modernos inteiramente
novos.
O estudo de obras literárias precisa atentar para fatores
ligados à comercialização da arte, já que este é o caminho inevitável
da literatura, numa época de predomínio da publicidade, pilar de
uma sociedade organizada a partir do consumismo. Nesse cenário,
o livro passa a ser cada vez mais objeto de fetiche e admiração. Isto
porque as belas palavras inscritas na contracapa ou em resenhas
encomiásticas e sob encomenda — para o bem ou para o mal —
publicadas em revistas e jornais são veículos eficazes para a
divulgação das obras. Além disso, o apuro do projeto gráfico, o
esmero com o tipo de papel ou a fonte escolhidos para impressão,
entre outros fatores técnicos, interferem decisivamente para a
aquisição de determinada obra.
Contudo, as novas tecnologias da mídia e da informática
apresentam resultados ambíguos. De um lado, tem-se uma maior
diversidade de escolha, o que amplia as chances de autonomia
cultural, tendo em vista a abertura para as intervenções de outras
culturas e idéias. De outro, elas possibilitam novas formas de
exposição e vigilância, por meio do que os olhos e sistemas
eletrônicos instalados em locais de trabalho e residências
funcionam como elementos que confirmam as previsões mais
pessimistas (orwellianas) acerca de um sistema panóptico de
controle dos indivíduos. Além disso, estas novas tecnologias são
definidas por muitos estudiosos como novas formas de controle
social alicerçadas em técnicas de doutrinação e manipulação mais
sutis e, por tal motivo, mais eficientes. Isto porque sua presença
constante faz com que as pessoas se recolham ao espaço doméstico,
o que as distancia das multidões e dos locais públicos de ação
política.
A presença da televisão como forma de entretenimento
doméstico é relativamente recente, considerando o período de sua
disseminação até alcançar o lugar central no sistema de cultura e
comunicação em muitas regiões do mundo. A indústria cultural,
tal como definida pela Escola de Frankfurt, tomou corpo somente
a partir do pós-guerra, transformando-se em elemento dominante
154
considerações finais
na cultura e na política. Além da TV a cabo e por satélite, outras
tecnologias acrescentaram particularidades expressivas ao
fenômeno da indústria cultural, tal como o videocassete e o
computador pessoal, o que acelera o predomínio da imagem nos
dias atuais.
É preciso utilizar modelos diversificados de abordagem para
interpretar as formas visuais e verbais veiculadas pelos mass media,
numa sociedade em que a cultura do livro foi suplantada pelos
novos suportes culturais. A importância do estudo da cultura de
massa reside, portanto, no fato de que a televisão tornou-se o
principal elemento de socialização, alterando formas de interação
social, ao substituir a família, a igreja e a escola como juízes a
determinar valores, gostos e idéias. Com suas celebridades e
imagens atraentes, a televisão interfere poderosamente na
constituição de novos modelos de estilo, moda e comportamento
(identidades) a serem adotados pelas pessoas. A produção de novas
formas de cultura e a profusão de novas realidades culturais alteram
as percepções do tempo e do espaço, o que dificulta a distinção
entre as experiências virtuais e a vida real. Estas alterações
vinculam-se à substituição do Estado-nação pelas empresas
transnacionais, principalmente no que se refere aos fatores que
regulam a produção e a circulação de produtos, apagando fronteiras
anteriores da geografia convencional.
Em síntese, modos de produção cultural e formas de vida
social e política são atingidas pelas alterações ocorridas em diversos
setores da sociedade. Há que se considerar neste processo a posição
ocupada pelas empresas de comunicação. Elas veiculam uma forma
comercial de cultura que visa a lucratividade. Este tipo de produção
cultural gera conseqüências significativas. A indústria dos mass
media procura produzir coisas que vendam ou que atraiam a
audiência. Em grande parte dos casos, isto significa apresentar
narrativas e imagens que seduzam as pessoas e atraiam o maior
número de consumidores. Por outro lado, isto obriga as produções
culturais a incorporarem em seus temas e motivos a vivência social,
tendo em vista a necessidade da oferta de produtos atraentes. Para
tanto, é preciso que elas traduzam tramas envolventes, transgridam
convenções ou expressem idéias correntes, possivelmente
originadas por acontecimentos recentes.
155
ensaios sobre a arte da palavra
Como resultado, é preciso destacar as intervenções de
movimentos progressistas que requisitam maior espaço na
estruturação dos grupos sociais. A teoria feminista, as práticas
anti-racistas, a defesa do meio-ambiente, o pós-colonialismo, entre
outros, aparecem como discursos que ampliam o alcance das
análises tradicionais, em detrimento das questões ligadas
exclusivamente à posição social. Portanto, o diálogo entre as
diversas teorias, que procuram explicar aspectos relevantes da
sociedade contemporânea, parece ser um dos meios a partir do
qual se pode refletir sobre a criação literária na atualidade.
*
*
*
156
REFERÊNCIAS
•♦•
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João Moura Jr. In: Novos Estudos CEBRAP ; n. 22, 1988, pp. 157-181.
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A Coleção Thésis é financiada pela Fundação Araucária de Apoio
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