FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS: O POLIAMOR NO SISTEMA JURÍDICO
BRASILEIRO
GIANCARLOS BUCHE. Advogado. Pós graduando em Direito Civil e Processo Civil pela
Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE.
e-mail: [email protected]
O amor paira acima das convenções sociais.
Eça de Queiros
RESUMO
A sociedade e o Direito são elementos dinâmicos e complexos, cercados por
transformações, mudanças e adequações a cada tempo e novos acontecimentos. Também o
Direito de Família vem se modificando, sobretudo sob os novos contornos do Direito
Privado, trazidos pela Constituição de 1988. A idéia tradicional de família, para o Direito
brasileiro, era aquela que se constituía pelos pais e filhos unidos por um casamento
regulado pelo Estado. A Constituição Federal de 1988 ampliou esse conceito, reconhecendo
outras entidades familiares. O Direito passou a proteger todas as formas de família, não
apenas aquelas constituídas pelo casamento, o que significou uma grande evolução na
ordem jurídica brasileira, impulsionada pela própria realidade. A mesma realidade impõe,
hoje, a discussão a respeito das "Famílias Simultâneas", em que a pessoa mantém relações
afetivas com duas ou mais pessoas ao mesmo tempo. O assunto não é pacífico nem na
doutrina e nem na jurisprudência, mas é hoje uma realidade que não pode ficar excluída do
manto do Direito e da justiça. Neste contexto, este artigo apresenta como objetivo geral
fazer uma reflexão em torno da função protetiva do Estado Social Constitucional diante da
realidade que é hoje a família simultânea. Como principais resultados tem-se que as
famílias simultâneas são rechaçadas, na maioria das vezes, tanto pelo sistema jurídico como
pela sociedade. A moral se sobrepõe à ética e os dogmas culturais e religiosos se
sobrepõem à justiça.
Palavras-chave:
Direito de Família; Casamento; Constituição; União Estável;
Simultaneidade Familiar.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – 1. TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA NA ORDEM JURÍDICA
BRASILEIRA - 1.1 O Código Civil de 1916 - 1.2 OS AVANÇOS DO DIREITO DE
FAMÍLIA NA ERA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO - 1.3 A SIMULTANEIDADE
FAMILIAR - 1.3.1 A Monogamia - 1.4 ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS AO
RECONHECIMENTO DA SIMULTANEIDADE FAMILIAR - 1.5 ENTENDIMENTOS
CONTRÁRIOS AO RECONHECIMENTO DA SIMULTANEIDADE FAMILIAR - 1.6 O
ENTENDIMENTO DO STJ – CONSIDERAÇÕES FINAIS – REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto de estudo um dos assuntos mais controversos do
Direito Civil, a constituição de famílias simultâneas, assim como o reconhecimento dessa
relação como união estável putativa, com as devidas repercussões jurídicas.
O artigo enfoca, de forma breve, a trajetória da família na ordem jurídica pátria,
desde o modelo patriarcal do Brasil Colônia, até a constitucionalização da família na
Constituição Federal de 1988, onde o sistema constitucional poroso e aberto, possibilita (ou
deveria possibilitar) a viabilização do pluralismo familiar.
O estudo aborda ainda os avanços do direito de família na era da
constitucionalização, para então adentrar no assunto, cerne desta pesquisa, que é a
simultaneidade familiar, enfocando-se a monogamia como princípio basilar da entidade
familiar e a justiça como princípio maior da Dignidade da Pessoa Humana.
Expõe-se ainda os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema,
esclarecendo-se quais são os argumentos que fundamenta cada posicionamento.
O artigo tem base em pesquisa bibliográfica e documental, em livros, artigos da
internet e legislações, com enfoque exploratório e análise qualitativa.
1 TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA
O Direito de Família vem evoluindo à medida que a sociedade também muda,
inova, se transforma e se molda frente aos novos tempos. A história atesta que o casamento
e a família, em todos os tempos, jamais foi uma instituição estática. É dinâmica e, por isso
mesmo, veio passando por um sem número de mudanças tanto estruturais quanto
funcionais.
No Brasil, importante destacar a evolução da família desde a Colônia até a
Constituição Federal de 1988. O trajeto partirá de breves considerações sobre a família
patriarcal, pois este modelo representa o modelo adotado pelo Código Civil de 19161.
O direito de família brasileiro tem sua origem principalmente do direito canônico e
no direito português. No período do Brasil Colônia, prevalecia em Portugal o modelo de
casamento religioso, ou seja, aquele celebrado sob os moldes da religião católica, sendo o
1
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.55.
matrimônio, regulado pelo Direito Canônico2. Segundo Azevedo, “o Bispado da Bahia,
criado em 28 de janeiro de 1550, adotou esse posicionamento português”.
Segundo Fachin apud Ferrarini:
O padrão familiar tradicional era fundado no matrimônio, sendo o
vínculo do casamento a única forma legítima de constituição da família.
O caráter instrumental que lhe era conferido estava condicionado a
interesses extrínsecos, sobretudo do Estado. A família não estava voltada
à realização de cada indivíduo dentro do próprio grupo, mas, ao
contrário, cada membro era visto como promotor dos interesses dessa
instituição. O bom funcionamento da família, a sua prosperidade, era de
fundamental importância para o desenvolvimento do Estado3.
Então, na família patriarcal do Brasil Colônia, a única forma familiar era o
matrimônio. Isto em virtude da tradição católica que reinava no Brasil e da importância do
instituto familiar como elemento essencial para o desenvolvimento econômico do Estado. A
família era, antes de tudo, uma unidade econômica.
A família patriarcal, advinda com o Brasil Colônia, perdurou no Brasil desde o
século XVI até o século XX e representou um papel fundamental na sociedade colonial.
Neste período, aos integrantes da família não eram permitidas as vontades
individuais, mas sim os interesses predominantes eram o da família e do próprio Estado.
Segundo Perrot, sobre a família patriarcal:
Essa família celebrada, santificada, fortalecida era também uma família
patriarcal, dominada pela figura do pai. Da família, ele era a honra,
dando-lhe seu nome, o chefe, o gerente. Encarnava e representava o
grupo familiar, cujos interesses sempre prevaleciam sobre as aspirações
dos membros que a compunham. Mulher e filhos eram rigorosamente
subordinados. A esposa estava destinada ao lar, aos muros de sua casa, à
fidelidade absoluta. Os filhos deviam submeter suas escolhas,
profissionais e amorosas, às necessidades familiares. As uniões
privilegiavam a aliança em vez do amor, a paixão sendo considerada
fugaz e destruidora. Para as moças, vigiadas de perto, não havia outro
caminho senão o casamento e a vida caseira. (...) A casa, protegida pelo
muro espesso da vida privada que ninguém poderia violar (...)4.
Percebe-se que o homem, no Brasil Colônia, é o chefe todo poderoso da sociedade
conjugal, cuja esposa e filhos lhe deviam obediência e subordinação. Além disso, apenas o
2
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o novo código civil, p.122.
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.56.
4
PERROT, Michelle. O nó e o ninho, Veja 25 anos: Reflexões para o futuro, p.77-78.
3
homem da família possuía diretos e cidadania plena. A mulher e os filhos eram tratados
como seres frágeis, dependentes e submissos, sendo considerados inferiores, e, como
conseqüência, tendo sua dignidade reduzida.
Conforme Ferrarini, “em virtude da extensão do poder do patriarca, que não se
limitava à mulher e aos filhos, dirigindo-se também à senzala, não era conferida ao Estado
a possibilidade de intervenção no espaço privado da instituição familiar, o que tornava os
abusos aos mais fracos uma realidade incontestável”5.
Neste contexto, a família patriarcal, dominante até o século XX, estendeu-se por
toda a sociedade brasileira, sendo que o Estado somente passou a intervir nas relações
privadas da família quando assumiu suas funções.
1.1 O Código Civil de 1916
O modelo patriarcal influenciou efetivamente o Código Civil de 1916, mesmo por
que esse modelo dominou a sociedade brasileira durante todo o período anterior a tal
codificação.
O CC de 1916 surgiu para substituir a legislação esparsa portuguesa que dominava o
Brasil desde o descobrimento. Mesmo assim, continuou, assim como a legislação já
existente, a se moldar aos interesses e costumes do modelo de família patriarcal6.
Na visão de Ramos apud Ferrarini, o CC de 1916 baseava-se na autonomia da
vontade e na iniciativa privada, mas foi marcado por um paradoxo, reflexo do modelo
liberal-burguês7 adotado: a predominância dos valores relativos à apropriação de bens sobre
o ser. O Ter predominava o Ser. Isto impedia a efetiva valorização da dignidade humana e o
alcance de valores como a justiça distributiva e a igualdade material8.
Ramos, no entanto, chama a atenção para o fato de que o CC de 1916, que
prestigiava o individualismo e o liberalismo jurídico, reconheceu, ao menos, a necessidade
de intervenção do Estado na regulamentação das relações sociais e econômicas. A edição
de estatutos especiais, direcionados a matérias específicas, representou o início da
5
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.56.
RUZIK. Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade
constitucional, p.114.
7
Imperava nessa época o liberalismo patrimonialista, fruto da Revolução Francesa, direcionado ao homem
privado, sujeito de direito tipicamente patrimonial. Todos os outros institutos acabavam analisados a partir
dos mesmos valores (In: FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.62).
8
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.63.
6
superação do modelo baseado no individualismo capitalista. “estes estatutos, designados
num primeiro momento como leis extravagantes, foram editados em razão de pressões
sociais, para atendimento das mais diversas necessidades, em particular a proteção da parte
economicamente mais fraca”9.
A partir de então, diante de tal evolução, os estatutos passaram a revogar ou
modificar o que normatizava o CC de 1916. O grande número de leis especiais resultou em
uma verdadeira descentralização do direito privado. Uma grande gama de microssistemas
jurídicos foram estabelecidos. Segundo Ferrarini, nesse contexto, “uma importante
legislação especial florescia na penumbra da codificação”10.
A normatização civil vai sofrendo modificações neste ínterim, em função,
sobretudo, da interferência pública no campo privado. Simultaneamente, o Estado passa por
transformações, passando do Estado liberal para o Estado Social11.
1.2 OS AVANÇOS DO
CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DIREITO
DE
FAMÍLIA
NA
ERA
DA
Com o final da Segunda Guerra Mundial, o mundo se redemocratizou, sobretudo em
função da vitória da Organização das Nações Unidas e da elaboração da Declaração dos
Direito do Homem12. A partir de então, o ser humano passa a ser o elemento mais
importante do Direito, com base nos ideais de igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Nasce o Estado Contemporâneo, diante de uma evidente incompatibidade do CC vigente na
época com os ideais constitucionais.
Segundo Barroso, ao dissertar sobre a incompatibilidade da Carta Magna de 88 com
o CC de 1916, assim expõe:
(...) a incompatibilidade do Código Civil com a ideologia
constitucionalmente estabelecida não sustenta sua continuidade. A
complexidade da vida contemporânea, por outro lado, não condiz com a
rigidez de suas regras, sendo exigente de minicodificações
multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não
conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do direito civil13.
9
RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras.
In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo, p.7.
10
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.64.
11
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.64.
12
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.64.
13
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalidade e constitucionalização do direito, p.15.
Isto permite concluir que, o CC de 1916, elaborado com a finalidade de reger as
relações de natureza privada, estava dissonante com a Constituição Federal de 88, que,
aliada à doutrina e a jurisprudência, teve “o mérito elevado de romper com a posição mais
retrógrada”.
Nas palavras de Ferrarini, a Carta Magna de 88 ‘arquivou’ o Estado Liberal e
“incorporou o Estado Social (Welfare State)”, onde todos os temas sociais juridicamente
relevantes foram constitucionalizados14.
Na esteira da Carta Política de 1988, o Código Civil de 2002 apresentou-se mais
avançado do que o anterior, ainda que se possa dizer que estes avanços não são
homogêneos. No entanto, não há como negar que a atualização foi produtiva, mesmo diante
de algumas falhas15.
Para Costa, diante do fenômeno da constitucionalização, na qual o ordenamento
civil está subordinado, a interpretação de novas situações, oriundas da complexidade social,
será sempre submetida à luz das diretrizes da Constituição, mesmo que inexistam regras
legislativas16.
Para Ferrarini, o mais importa é que nada mais será como antes. O Direito Civil, que
em outros tempos refletia a “efervescência da Revolução Francesa, cujos valores eram a
liberdade e a individualidade, hoje, na concepção social, a partir da releitura de todo o
sistema, tem perfil maleável, com necessidade clara de diálogo com a Constituição e
abandono dos dogmas de completude”17.
Neste contexto, a família, que anteriormente, tinha como três pilares o Direito
patrimonial, Direito parental e Direito assistencial, agora, com o advento da
constitucionalização, começam a dominar as relações de afeto, baseadas na solidariedade e
cooperação. Segundo Lôbo, “não é mais o indivíduo que existe para a família e para o
casamento, mas a família e o casamento existem para o desenvolvimento pessoal, em busca
de sua aspiração à felicidade”18.
No mesmo diapasão, Ferrarini explica que a “família se afasta de uma perspectiva
institucional para centralizar-se na realização pessoal de seus membros, (...) revalorizando a
14
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.69.
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.70.
16
COSTA, Judith Hofmeister. O direito como um sistema em construção e as cláusulas gerais no projeto do
Código Civil Brasileiro, p.51.
17
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.73.
18
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família, p.155.
15
dignidade da pessoa humana e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes
obscurecida pela supremacia dos interesses patrimoniais(...)”19.
Na atualidade, os laços de afeto e confiança ganham cada vez mais espaços nas
instituições familiares. O cuidado não pode ser esquecido e, conforme expõe Lôbo, “há de
haver a minimização do patrimônio e a maximização da afetividade”20.
Neste contexto, cabe aos operadores do direito tomar todo o cuidado, preocupação e
atenção que a situação requer no momento de tratar as questões do Direito de Família.
Na atualidade, a família não é mais aquele instituto fechado de outrora. O esquema
familiar composto um pai autoritário, uma mãe e os filhos, sofreu importantes
modificações. O instituto da família não permaneceu estático, mas sim foi assolado por
grandes transformações jurídicas e sociais.
Hoje, segundo Ferrarini:
A família, fundada no casamento, não é mais a única consagrada pelo
Direito Constitucional Brasileiro. A Constituição Federal de 1988
harmonizou as normas com os “fatos da vida”, definindo como entidade
familiar também a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes (família monoparental). Da mesma forma, o constituinte
reconheceu a união estável como entidade familiar21.
A Constituição Federal de 1998 realizou enorme avanço na conceituação da família,
não eliminou o casamento como forma ideal de regulamentação, bem como, não
marginalizou a família natural como realidade social digna de tutela jurídica. Desta forma,
a família célula base da sociedade e que, por isso, tem especial proteção do Estado, é tanto
aquela que provém do casamento, como aquela que resulta da união estável entre homem e
mulher, assim como a que constituída entre qualquer dos pais e seus descendentes, pouco
importando a existência, ou não, de casamento entre os genitores22.
O art. 226, caput, da Constituição Federal de 88, prevê que: “a família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado”23. A função social da família, segundo
Ferrarini, “está diretamente ligada à efetiva proteção que ela recebe do Estado, ao menos no
sentido de ser ela a instituição de maior relevância na formação de cada cidadão”24.
19
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.74.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família, p.152.
21
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.78.
22
GOMES, Orlando. Direito de família, p.34.
23
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
24
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.78.
20
1.3 A SIMULTANEIDADE FAMILIAR
As relações sociais, conforme já visto, são complexas, com avanços galopantes
dessa complexidade. Com a evolução do conceito de família, surgem no mundo real novas
situações antes não abarcadas pelo Direito, como, por exemplo, as famílias simultâneas.
Mesmo que isso possa parecer antipático diante dos olhos da maioria das pessoas, devido à
tradição cultural e religiosa, o fato é que essa realidade existe e precisa ser protegida pelo
sistema jurídico brasileiro.
As famílias simultâneas são resultado desse caminho aberto e pluralizado, trilhado
com base no respeito à diversidade e que ainda carecem da devida proteção do Estado25.
Segundo Ruzyk, o fenômeno da simultaneidade familiar é resultado desse sistema
jurídico poroso que hoje se encontra em vigor e desafia os operadores do direito a encontrar
soluções para estas novas demandas26.
No âmbito do Estado Social Democrático de Direito, que privilegia a cláusula da
dignidade da pessoa humana, reconhece-se a concepção do pluralismo familiar,
recepcionado pela ordem constitucional pátria27.
Ruzyk lembra ainda que a presença de outros tipos de convivência familiar sempre
existiu na sociedade brasileira, mesmo na época dos patriarcas coloniais. A diferença para a
época atual fica por conta da mudança do status social que essas formações familiares
adquiriram no século XX. Tornaram-se comuns as famílias informais, fundadas em uniões
não matrimonializadas, fato social que trouxe novas demandas ao sistema jurídico28.
Apesar de existirem hoje outras formas de famílias, este estudo tem como foco a
simultaneidade familiar a partir do casamento e da união estável.
Casamento: Previsto no § 1.º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988, o casamento é,
nas palavras de Rodrigues "(...) o contrato de direito de família que tem por fim promover a
união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações
sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência"29.
25
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.84.
RUZIK. Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade
constitucional, p.167.
27
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.86.
28
RUZIK. Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade
constitucional, p.131.
29
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família, p.19.
26
União estável. Conforme traçado no Código Civil de 2002, em incremento a Constituição
Federal de 1988, "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família" (art. 1.723)30.
A simultaneidade ocorre quando o cônjuge (no casamento) ou companheiro (na
união estável) mantém, paralelamente à sua família constituída dentro da lei, uma outra
família. Segundo Ferrarini, “a ideia presente ainda hoje é no sentido de conceber essas
relações como estritamente adulterinas”31, moralmente reprováveis, sendo ainda
generalizadas, ignoradas nas suas peculiaridades.
No imaginário social, as relações familiares paralelas ao casamento ou a união
estável são caracterizadas por um triângulo amoroso, onde o marido ou companheiro é
“vitimizado”, a esposa ou companheira é “santificada” e a “outra” é “satanizada”32.
O casamento e a união estável, equiparados em direito e deveres pelo Código Civil
de 2002, tem como característica histórico-sociológica reconhecida a monogamia.
1.3.1 A Monogamia33
O princípio da monogamia é “o organizador das relações conjugais, funciona como
um interdito proibitório, se não fosse um princípio jurídico, teríamos o aval do Estado para
estabelecermos várias famílias paralelas ao casamento ou à união estável”34.
Para Dias, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até
porque a constituição não o contempla, de forma que, elevar a monogamia ao status de
princípio constitucional é obter resultados desastrosos, uma vez que, diante da
simultaneidade simplesmente deixar de prestar tutela jurisdicional para uma das relações,
sob o fundamento de que foi ferido o princípio da monogamia, acaba permitindo o
enriquecimento ilícito do parceiro infiel e desrespeitando o princípio da dignidade da
pessoa humana35.
30
BRASIL. Lei nº 10406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.89.
32
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.89.
33
Sistema no qual o homem não pode ser, simultaneamente, esposo de mais de uma mulher, e a mulher
esposa de mais de um homem.
34
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uma principiologia para o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da
Cunha (Coord.). Família e dignidade humana: anais do V congresso brasileiro de direito de família, p.848849.
35
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, p.58-59.
31
Neste sentido Pianovski (2006, p. 198-199) ensina que:
(..) além da multiplicidade de relações matrimonializadas, a monogamia
somente é relevante para o direito de família quando seu avesso violar a
dignidade da pessoa humana. Se assim não for, não cabe ao estado ser o
tutor da construção afetiva coexistencial, assumir o lugar do ´não`. A
negação ao desejo mútuo, correspectivo, neste caso, já se apresenta por
meio do juízo de reprovação social movido por uma moral ética. A
coerção estatal encontra, aqui, o espaço em que legitimamente possa ser
exercida36.
Sendo assim, tem-se que o princípio da monogamia que rege o direito de família,
tem a finalidade de proibir a existência de relações paralelas àquela já existente, seja
matrimonial ou união estável, contudo, ensinam os autores acima que antes deve-se aplicar
o princípio da dignidade da pessoa humana, pois ele está acima de todos os demais
princípios que regem o direito de família.
Não se está aqui a negar a opção da ordem jurídica pátria no sentido de ser a
monogamia o eixo estrutural da organização jurídica sobre a família, até porque, com tal
raciocínio, se estaria a negar a indiscutível influência da religião e da moral ocidental
também no Direito”37.
No entanto, diante da vida como ela é, e com os contornos que vem se delineando
diante do mundo globalizado, dinâmico e cada vez mais complexo, não cabe ao poder
estatal repudiar ilícitas formas de convivência resultantes de escolhas de coexistência
materialmente livres. Negar proteção estatal a estas relações familiares simultâneas poderá,
conforme o caso concreto, afetar a dignidade da pessoa humana.
Segundo Pereira, a dignidade da pessoa humana funciona como um macroprincípio
ou superprincípio que dá base e sustentação dos ordenamentos jurídicos brasileiro, e,
portanto, foi ele quem permitiu a inclusão das outras categorias de filhos e famílias38.
O Direito não pode excluir do seu campo a simultaneidade familiar, pois, segundo
Pereira, “a história já demonstrou que estes critérios de exclusão não pode mais ser
36
PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Famílias Simultâneas e monogamia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha
(Coord.). Família e dignidade humana: anais do V congresso brasileiro de direito de família, p. 198-199.
37
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.95.
38
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uma principiologia para o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da
Cunha (Coord.). Família e dignidade humana: anais do V congresso brasileiro de direito de família, p.848849.
desconsiderado pelo Direito, sob pena de se continuar repetindo injustiças e muito
sofrimento”39.
Na escolha entre o princípio da monogamia, em nome da moral, e justiça, Pereira
fica com a segunda opção, conforme pode-se verificar na citação a seguir:
Não há dúvida de que o concubinato (adulterino) fere o princípio da
monogamia, bem como a lógica do ordenamento jurídico ocidental e em
particular o brasileiro. O mais simples e elementar raciocínio nos faz
concluir isto. Aliás, é somente por causa desse princípio que foi possível
à doutrina e jurisprudência construírem um pensamento para o
concubinato não-adulterino e traze-lo para o campo do Direito de
Família. Até que isto ficasse definitivamente esclarecido (Lei 8.971/94),
fomos obrigados a conviver com os ridículos pedidos de indenização por
serviços prestados, que era uma fórmula camuflada de se conceder
alimentos, já que a união estável/concubinato não estava no elenco das
fontes da obrigação alimentar e uma base principiológica para o Direito
de Família não estava suficientemente assentada e forte como está hoje e
a cada dia mais. Mas, se o fato de ferir este princípio significar fazer
injustiça, devemos recorrer a um valor maior que é o da prevalência da
ética sobre a moral para que possamos aproximar do ideal de justiça [...].
Ademais, se considerarmos a interferência da subjetividade na
objetividade dos atos e fatos jurídicos, concluiremos que o imperativo
ético passa a ser a consideração do sujeito na relação e não mais o objeto
da relação. Isto significa colocar em prática o que disse antes, ou seja,
que o Direito deve proteger a essência e não a forma, ainda que isto custe
"arranhar" o princípio jurídico da monogamia40.
Então, se para não “arranhar” o princípio da monogamia, o Direito se utilizar do seu
poder de exclusão nas questões de simultaneidades familiares, então a injustiça estará sendo
feita e a ética do Direito estará seriamente comprometida. A ética deve sempre se sobrepor
a moral excludente.
Segundo Pereira "o moralista prefere sempre a formalidade e a lei em sua
literalidade, enquanto o ético, a essência do Direito, e, por isso, buscará sempre nos
princípios a fundamentação para mais justa adequação"41.
39
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito, amor e sexualidade. In: Direito de família: a travessia do novo
milênio. Congresso de direito de família, p.57.
40
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da
família, p.88.
41
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da
família, p.88.
1.4
ENTENDIMENTOS
FAVORÁVEIS
AO
RECONHECIMENTO
DA
SIMULTANEIDADE FAMILIAR
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível n.º
70010787398, reconheceu a existência de duplas células familiares, no caso em análise,
ficou evidenciado que “[...] o cidadão mantinha dois vínculos afetivos com duas mulheres
simultaneamente, e isso não pode vir em benefício dele próprio ou de uma das
conviventes”.
Ainda acerca desta decisão, destaca a relatora Desembargadora Maria Berenice Dias
que: “(...) O poder judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto,
inobstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja
“digna” de reconhecimento judicial. Dessa forma, havendo duplicidade de uniões estáveis,
cabível a partição do patrimônio amealhado na concomitância das duas relações.(...)”42.
Outra decisão do presente Tribunal, a Apelação Cível n.º 70011258605 não só
reconheceu a união dúplice, como determinou a triação dos bens existentes entre o de cujus
e as companheiras.
Para o relator do acórdão Desembargador Alfredo Guilherme Englert não restou
dúvidas de que a relação mantida pelo de cujus com H. não era a que melhor se ajustava à
união estável, porquanto foi com E. que o de cujus teve uma filha, moraram juntos e quem
o cuidou até os últimos dias de vida, dessa forma evidente que o de cujus tinha um convívio
familiar bem mais consistente com E. do que com H.
Não obstante, foi designado para o presente acórdão redator o Desembargador Rui
Portanova, que ressalta estarmos diante de duas uniões estáveis e não um casamento civil e
uma união estável. Ainda, não se pode perder de vista que tanto a sentença como o voto do
eminente relator confirmam a existência de uniões estáveis dúplices que também podem ser
chamadas de paralelas ou concomitantes.
Parece também muito mais próximo da realidade o precedente do TJRS, assim
ementado:
Embargos infringentes - União estável - Relações simultâneas. De regra,
não é viável o reconhecimento de duas entidades familiares simultâneas,
dado que em sistema jurídico é regido pelo princípio da monogamia. No
entanto, em Direito de Família não se deve permanecer no apego rígido à
42
RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível n.º 70010787398.
dogmática, o que tornaria o julgador cego à riqueza com que a vida real
se apresenta. No caso, está escancarado que o "de cujus" tinha a notável
capacidade de conviver simultaneamente com duas mulheres, com elas
estabelecendo relacionamento com todas as características de entidades
familiares. Por isso, fazendo ceder a dogmática à realidade, impera
reconhecer como co-existentes duas entidades familiares simultâneas.
Desacolheram os embargos, por maioria. (TJRS, 4º Grupo Cível,
Embargos Infringentes n.º 70013876867, rel. Des. Luiz Ari Azambuja
Ramos, j. 10.3.2006; por maioria).
O fato é que essa realidade existe, e deve-se pensar no caso concreto, nas
peculiaridades de cada caso, analisando-se os diversos elementos de cada uma destas
relações familiares simultâneas. Farias e Rosenvald entendem que quando existe a boa fé
por parte da “outra” mulher, ou seja, ela é induzida ao erro, pode-se requerer ao juiz o
reconhecimento da putatividade, obtendo-se os efeitos concretos do casamento ou união
estável43.
Segundo os mesmo autores, “entendemos que, presente a boa-fé, é possível
emprestar efeitos de Direito de Família às uniões extramatrimoniais” 44.
Sobre o tema, afirmam Tartuce e Simão: "(...) essa parece ser a posição mais justa
dentro dos limites do princípio da eticidade, com vistas a proteger aquele que, dotado de
boa-fé subjetiva, ignorava um vício a acometer a união”45.
Então, segundo parte da doutrina, sempre que uma das pessoas da relação não
souber que o outro possui impedimentos matrimoniais, ou sabe, e está sendo induzida a
erros, enganada, ou seja, estiver sob a boa-fé subjetiva, os efeitos jurídicos familiares
decorrem para o companheiro inocente, efeitos estes reconhecidos sempre por meio de ato
judicial.
Da mesma forma, Oliveira entende que é admissível uma “segunda união estável
(de natureza putativa), tal qual no casamento, quando presente a boa fé por parte de um ou
de ambos os conviventes”46.
43
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias, p.456.
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias, p.456.
45
TARTUCE, Flávio, e SIMÃO, José Fernando. Direito Civil - Direito de Família, p.254.
46
OLIVEIRA, Euclides. União Estável: do concubinato ao casamento, p.139-140.
44
1.5 ENTENDIMENTOS CONTRÁRIOS
SIMULTANEIDADE FAMILIAR
AO
RECONHECIMENTO
DA
Na visão de Gomes, é inaceitável a proteção estatal na simultaneidade familiar.
Segundo Gomes, apud Fontanella, a monogamia é um dos princípios que regem o
casamento (e aqui, por equiparação, também a união estável). Para este autor: “O princípio
da monogamia está consagrado em nossa legislação, a teor do disposto no art.1521, VI, do
CC, que prevê que não podem casar as pessoas casadas, bem como se depreende do
art.1548, II, que estabelece a nulidade do casamento contraído com infração aos
impedimentos matrimoniais”47.
Também o ex Ministro do STJ Carlos Alberto Menezes Direito, assim dispôs em
sentido contrário ao reconhecimento da simultaneidade familiares.
Ora, com o maior respeito à interpretação acolhida no acórdão, não
enxergo possível admitir a prova de múltipla convivência com a mesma
natureza de união estável, isto é, "convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". O
objetivo do reconhecimento da união estável e o reconhecimento de que
essa união é entidade familiar, na minha concepção, não autoriza que se
identifiquem várias uniões estáveis sob a capa de que haveria também
uma união estável putativa. Seria, na verdade, reconhecer o impossível,
ou seja, a existência de várias convivências com o objetivo de constituir
família. Isso levaria, necessariamente, à possibilidade absurda de se
reconhecer entidades familiares múltiplas e concomitantes48.
Esta decisão do Min. do STJ Carlos Alberto Menezes Direito revela o entendimento
de alguns operadores do direito pátrio, que é a completa exclusão do sistema jurídico das
questões relativas às famílias simultâneas.
Nesta linha também está a jurisprudência do TJMG, como se vê adiante em dois
precedentes:
União estável. Caracterização. A união estável caracteriza-se pela
convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher,
estabelecida com objetivo de constituição de família. O reconhecimento
de união estável em relação a uma mulher impede o reconhecimento de
tal relação em face de outra com quem, a despeito da existência de
relacionamento amoroso, não se caracterizou a constituição de entidade
47
FONTANELLA, Patrícia. Famílias simultâneas e união estável putativa: possibilidade de seu
reconhecimento. In LEITE, Eduardo de Oliveira.Grandes temas da atualidade. União Estável. Aspectos
polêmicos e controvertidos. p. 337
48
Cf. STJ, 3ª Turma, REsp n.º 789.293/RJ, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 16/2/2006.
familiar, por exclusão lógica. Apelo improvido. (TJMG, 5ª Câmara
Cível, Apelação Cível 1.0111.04.000875-2/002, rel. Des. Cláudio Costa,
j. 17.5.2007).
Direito de Família. Apelação. Ação de Reconhecimento de União
Estável. CONCUBINATO DESLEAL. Pedido improcedente. Recurso
provido. O concubinato desleal não encontra respaldo no ordenamento
jurídico brasileiro, pois a manutenção de duas uniões de fato,
concomitantes, choca-se com o requisito de respeito e consideração
mútuos, impedindo o reconhecimento desses relacionamentos como
entidade familiar, uma vez caracterizada a inexistência de objetivo de
constituir família, e de estabilidade na relação. (TJMG, 4ª Câmara Cível,
Apelação Cível n.º 1.0384.05.039349-3/002, rel. Des. Moreira Diniz, j.
21.02.2008).
Percebe-se, por meio do exposto, que ainda é grande a resistência no mundo jurídico
em se admitir que as famílias simultâneas sejam protegidas pelo Direito, mesmo diante da
exclusão da sociedade moralizada.
1.6 O ENTENDIMENTO DO STJ
O Recurso Especial 1157273/RN, julgado pelo STJ em maio de 2010, demonstrou o
posicionamento desta Corte referente às famílias concomitantes ou simultâneas.
Segundo a Desembargadora Nancy Andrigui, a questão não é pacífica no âmbito
desta Corte, merecendo aprofundada análise. O STJ (REsp 1.157.273-RN) decidiu que, em
razão do dever de lealdade e de adotarmos um padrão familiar monogâmico, não se é
permitido reconhecer a existência de famílias simultâneas. A "segunda família" é apenas
uma sociedade de fato.
In casu, o de cujus foi casado com a recorrida e, ao separar-se
consensualmente dela, iniciou um relacionamento afetivo com a
recorrente, o qual durou de 1994 até o óbito dele em 2003. Sucede que,
com a decretação do divórcio em 1999, a recorrida e o falecido voltaram
a se relacionar, e esse novo relacionamento também durou até sua morte.
Diante disso, as duas buscaram, mediante ação judicial, o
reconhecimento de união estável, consequentemente, o direito à pensão
do falecido. O juiz de primeiro grau, entendendo haver elementos
inconfundíveis caracterizadores de união estável existente entre o de
cujus e as demandantes, julgou ambos os pedidos procedentes,
reconhecendo as uniões estáveis simultâneas e, por conseguinte,
determinou o pagamento da pensão em favor de ambas, na proporção de
50% para cada uma. Na apelação interposta pela ora recorrente, a
sentença foi mantida49.
A questão, levada até o STJ, está em saber se na perspectiva do Direito de Família,
existe a viabilidade jurídica do reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Nesta
instância especial, ao apreciar o REsp:
Inicialmente se observou que a análise dos requisitos ínsitos à união
estável deve centrar-se na conjunção de fatores presentes em cada
hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a
posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre
outros. Desse modo, entendeu-se que, no caso, a despeito do
reconhecimento, na dicção do acórdão recorrido, da união estável entre o
falecido e sua ex-mulher em concomitância com união estável
preexistente por ele mantida com a recorrente, é certo que o casamento
válido entre os ex-cônjuges já fora dissolvido pelo divórcio nos termos
do art. 1.571, § 1º, do CC/2002, rompendo-se, definitivamente, os laços
matrimoniais outrora existentes. Destarte, a continuidade da relação
sob a roupagem de união estável não se enquadra nos moldes da
norma civil vigente (art. 1.724 do CC/2002), porquanto esse
relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de
lealdade a ser observado entre os companheiros50 (GRIFO NOSSO).
A respectiva decisão foi fundamentada ainda com o seguinte argumento:
•
Ressaltou-se que uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a
monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade, que integra o conceito de
lealdade, para o fim de inserir, no âmbito do Direito de Família, relações afetivas
paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar do fato de que o núcleo
familiar contemporâneo tem como escopo a realização de seus integrantes, vale
dizer, a busca da felicidade.
•
Assinalou-se que, na espécie, a relação mantida entre o falecido e a recorrida (exesposa), despida dos requisitos caracterizadores da união estável, poderá ser
reconhecida como sociedade de fato, caso deduzido pedido em processo diverso,
para que o Poder Judiciário não deite em solo infértil relacionamentos que
efetivamente existem no cenário dinâmico e fluido dessa nossa atual sociedade
volátil.
49
BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572
73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011.
50
BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572
73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011.
•
Assentou-se, também, que ignorar os desdobramentos familiares em suas infinitas
incursões, em que núcleos afetivos justapõem-se, em relações paralelas,
concomitantes e simultâneas, seria o mesmo que deixar de julgar com base na
ausência de lei específica. Dessa forma, na hipótese de eventual interesse na partilha
de bens deixados pelo falecido, deverá a recorrida fazer prova, em processo diverso,
repita-se, de eventual esforço comum51.
Com essas considerações, entre outras, a Turma deu provimento ao recurso, para
declarar o reconhecimento da união estável mantida entre o falecido e a recorrente e
determinar, por conseguinte, o pagamento da pensão por morte em favor unicamente
dela, companheira do falecido. REsp 1.157.273-RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado
em 18/5/201052.
Segundo a referida decisão, “as uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e
paralelas têm ornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados
arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais
outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em
seus interesses”53.
O que se percebe, é que o STJ apresenta-se totalmente resistente à ideia de que as
famílias simultâneas devem ser protegidas pelo Direito, mantendo-se fiel ao dever de
lealdade, fidelidade e monogamia na formação da família.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, o que se percebe é o que entendimento ainda é incipiente e nada
pacífico, tanto na doutrina como nos tribunais, sobre a viabilidade da existência de famílias
simultâneas.
51 51
BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572
73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011.
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BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572
73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011.
53
BRASIL. REsp 1.157.273-RN.STJ. Jurisprudências. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572
73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011.
Estaremos ainda amadurecendo a ideia de que ao Direito cabe o ‘dever’ de iluminar
as instituições familiares, mesmo sendo alguns modelos considerados ilícitos? Estaríamos
nós, sociedade e operadores do Direito, correndo o risco de novamente atentarmos contra
dignidade da pessoa humana, da mesma forma que fizemos quando, conforme exemplo
citado por Rodrigo da Cunha Pereira, eram comuns na justiça os pedidos (humilhantes,
diga-se de passagem) de indenização por serviços prestados (que era a fórmula camuflada
de requerer alimentos), quando a união estável era chamada de concubinato e este modelo
de família era excluído da lei?
O que se conclui é que a sociedade evoluiu desde os modelos retrógrados de família
patriarcal, mas ainda somos banhados pelo ranço da moralidade, da cultura e da religião,
mesmo que isso resulte em injustiças e possa afetar a dignidade da pessoa humana, na pele
da mulher que agiu de boa fé, mas, ao final, ficou desprotegida pelo Estado e rechaçada
pela sociedade.
Deixamos claro, ao final, que o princípio da monogamia, da fidelidade, do respeito e
do afeto devem ser basilares nas relações familiares. Essa deve ser a regra. No entanto,
quando ocorrem situações adversas daquelas previstas e aceitas pela lei, não pode o Direito
se eximir de resolver tais demandas, correndo o risco de ser omisso e falhar na sua maior
finalidade que é a Justiça.
Alinhamo-nos, neste estudo, ao entendimento da professora Patrícia Fontanella, que
admite a “possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas, quando presente
a boa fé subjetiva, bem como quando a duplicidade de famílias for ostensiva perante os
envolvidos”54. Da mesma forma, acreditamos que os efeitos jurídicos de uma família
simultânea, a partir do caso concreto, deve abarcar a possível concessão de alimentos,
direito sucessório e previdenciário, dependendo da análise pelo magistrado de cada caso.
Conforme Roudinesco apud Fontanella, “a família do futuro deve ser mais uma vez
reinventada”.55
54
FONTANELLA, Patrícia. Famílias
reconhecimento. In LEITE, Eduardo de
polêmicos e controvertidos. p. 347
55
FONTANELLA, Patrícia. Famílias
reconhecimento. In LEITE, Eduardo de
polêmicos e controvertidos. p. 347
simultâneas e união estável putativa: possibilidade de seu
Oliveira.Grandes temas da atualidade. União Estável. Aspectos
simultâneas e união estável putativa: possibilidade de seu
Oliveira.Grandes temas da atualidade. União Estável. Aspectos
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BRASIL.
REsp
1.157.273-RN.STJ.
Jurisprudências.
Disponível
em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas)+
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