FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS: O POLIAMOR NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO GIANCARLOS BUCHE. Advogado. Pós graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE. e-mail: [email protected] O amor paira acima das convenções sociais. Eça de Queiros RESUMO A sociedade e o Direito são elementos dinâmicos e complexos, cercados por transformações, mudanças e adequações a cada tempo e novos acontecimentos. Também o Direito de Família vem se modificando, sobretudo sob os novos contornos do Direito Privado, trazidos pela Constituição de 1988. A idéia tradicional de família, para o Direito brasileiro, era aquela que se constituía pelos pais e filhos unidos por um casamento regulado pelo Estado. A Constituição Federal de 1988 ampliou esse conceito, reconhecendo outras entidades familiares. O Direito passou a proteger todas as formas de família, não apenas aquelas constituídas pelo casamento, o que significou uma grande evolução na ordem jurídica brasileira, impulsionada pela própria realidade. A mesma realidade impõe, hoje, a discussão a respeito das "Famílias Simultâneas", em que a pessoa mantém relações afetivas com duas ou mais pessoas ao mesmo tempo. O assunto não é pacífico nem na doutrina e nem na jurisprudência, mas é hoje uma realidade que não pode ficar excluída do manto do Direito e da justiça. Neste contexto, este artigo apresenta como objetivo geral fazer uma reflexão em torno da função protetiva do Estado Social Constitucional diante da realidade que é hoje a família simultânea. Como principais resultados tem-se que as famílias simultâneas são rechaçadas, na maioria das vezes, tanto pelo sistema jurídico como pela sociedade. A moral se sobrepõe à ética e os dogmas culturais e religiosos se sobrepõem à justiça. Palavras-chave: Direito de Família; Casamento; Constituição; União Estável; Simultaneidade Familiar. SUMÁRIO INTRODUÇÃO – 1. TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA - 1.1 O Código Civil de 1916 - 1.2 OS AVANÇOS DO DIREITO DE FAMÍLIA NA ERA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO - 1.3 A SIMULTANEIDADE FAMILIAR - 1.3.1 A Monogamia - 1.4 ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS AO RECONHECIMENTO DA SIMULTANEIDADE FAMILIAR - 1.5 ENTENDIMENTOS CONTRÁRIOS AO RECONHECIMENTO DA SIMULTANEIDADE FAMILIAR - 1.6 O ENTENDIMENTO DO STJ – CONSIDERAÇÕES FINAIS – REFERÊNCIAS. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objeto de estudo um dos assuntos mais controversos do Direito Civil, a constituição de famílias simultâneas, assim como o reconhecimento dessa relação como união estável putativa, com as devidas repercussões jurídicas. O artigo enfoca, de forma breve, a trajetória da família na ordem jurídica pátria, desde o modelo patriarcal do Brasil Colônia, até a constitucionalização da família na Constituição Federal de 1988, onde o sistema constitucional poroso e aberto, possibilita (ou deveria possibilitar) a viabilização do pluralismo familiar. O estudo aborda ainda os avanços do direito de família na era da constitucionalização, para então adentrar no assunto, cerne desta pesquisa, que é a simultaneidade familiar, enfocando-se a monogamia como princípio basilar da entidade familiar e a justiça como princípio maior da Dignidade da Pessoa Humana. Expõe-se ainda os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema, esclarecendo-se quais são os argumentos que fundamenta cada posicionamento. O artigo tem base em pesquisa bibliográfica e documental, em livros, artigos da internet e legislações, com enfoque exploratório e análise qualitativa. 1 TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA O Direito de Família vem evoluindo à medida que a sociedade também muda, inova, se transforma e se molda frente aos novos tempos. A história atesta que o casamento e a família, em todos os tempos, jamais foi uma instituição estática. É dinâmica e, por isso mesmo, veio passando por um sem número de mudanças tanto estruturais quanto funcionais. No Brasil, importante destacar a evolução da família desde a Colônia até a Constituição Federal de 1988. O trajeto partirá de breves considerações sobre a família patriarcal, pois este modelo representa o modelo adotado pelo Código Civil de 19161. O direito de família brasileiro tem sua origem principalmente do direito canônico e no direito português. No período do Brasil Colônia, prevalecia em Portugal o modelo de casamento religioso, ou seja, aquele celebrado sob os moldes da religião católica, sendo o 1 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.55. matrimônio, regulado pelo Direito Canônico2. Segundo Azevedo, “o Bispado da Bahia, criado em 28 de janeiro de 1550, adotou esse posicionamento português”. Segundo Fachin apud Ferrarini: O padrão familiar tradicional era fundado no matrimônio, sendo o vínculo do casamento a única forma legítima de constituição da família. O caráter instrumental que lhe era conferido estava condicionado a interesses extrínsecos, sobretudo do Estado. A família não estava voltada à realização de cada indivíduo dentro do próprio grupo, mas, ao contrário, cada membro era visto como promotor dos interesses dessa instituição. O bom funcionamento da família, a sua prosperidade, era de fundamental importância para o desenvolvimento do Estado3. Então, na família patriarcal do Brasil Colônia, a única forma familiar era o matrimônio. Isto em virtude da tradição católica que reinava no Brasil e da importância do instituto familiar como elemento essencial para o desenvolvimento econômico do Estado. A família era, antes de tudo, uma unidade econômica. A família patriarcal, advinda com o Brasil Colônia, perdurou no Brasil desde o século XVI até o século XX e representou um papel fundamental na sociedade colonial. Neste período, aos integrantes da família não eram permitidas as vontades individuais, mas sim os interesses predominantes eram o da família e do próprio Estado. Segundo Perrot, sobre a família patriarcal: Essa família celebrada, santificada, fortalecida era também uma família patriarcal, dominada pela figura do pai. Da família, ele era a honra, dando-lhe seu nome, o chefe, o gerente. Encarnava e representava o grupo familiar, cujos interesses sempre prevaleciam sobre as aspirações dos membros que a compunham. Mulher e filhos eram rigorosamente subordinados. A esposa estava destinada ao lar, aos muros de sua casa, à fidelidade absoluta. Os filhos deviam submeter suas escolhas, profissionais e amorosas, às necessidades familiares. As uniões privilegiavam a aliança em vez do amor, a paixão sendo considerada fugaz e destruidora. Para as moças, vigiadas de perto, não havia outro caminho senão o casamento e a vida caseira. (...) A casa, protegida pelo muro espesso da vida privada que ninguém poderia violar (...)4. Percebe-se que o homem, no Brasil Colônia, é o chefe todo poderoso da sociedade conjugal, cuja esposa e filhos lhe deviam obediência e subordinação. Além disso, apenas o 2 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o novo código civil, p.122. FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.56. 4 PERROT, Michelle. O nó e o ninho, Veja 25 anos: Reflexões para o futuro, p.77-78. 3 homem da família possuía diretos e cidadania plena. A mulher e os filhos eram tratados como seres frágeis, dependentes e submissos, sendo considerados inferiores, e, como conseqüência, tendo sua dignidade reduzida. Conforme Ferrarini, “em virtude da extensão do poder do patriarca, que não se limitava à mulher e aos filhos, dirigindo-se também à senzala, não era conferida ao Estado a possibilidade de intervenção no espaço privado da instituição familiar, o que tornava os abusos aos mais fracos uma realidade incontestável”5. Neste contexto, a família patriarcal, dominante até o século XX, estendeu-se por toda a sociedade brasileira, sendo que o Estado somente passou a intervir nas relações privadas da família quando assumiu suas funções. 1.1 O Código Civil de 1916 O modelo patriarcal influenciou efetivamente o Código Civil de 1916, mesmo por que esse modelo dominou a sociedade brasileira durante todo o período anterior a tal codificação. O CC de 1916 surgiu para substituir a legislação esparsa portuguesa que dominava o Brasil desde o descobrimento. Mesmo assim, continuou, assim como a legislação já existente, a se moldar aos interesses e costumes do modelo de família patriarcal6. Na visão de Ramos apud Ferrarini, o CC de 1916 baseava-se na autonomia da vontade e na iniciativa privada, mas foi marcado por um paradoxo, reflexo do modelo liberal-burguês7 adotado: a predominância dos valores relativos à apropriação de bens sobre o ser. O Ter predominava o Ser. Isto impedia a efetiva valorização da dignidade humana e o alcance de valores como a justiça distributiva e a igualdade material8. Ramos, no entanto, chama a atenção para o fato de que o CC de 1916, que prestigiava o individualismo e o liberalismo jurídico, reconheceu, ao menos, a necessidade de intervenção do Estado na regulamentação das relações sociais e econômicas. A edição de estatutos especiais, direcionados a matérias específicas, representou o início da 5 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.56. RUZIK. Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional, p.114. 7 Imperava nessa época o liberalismo patrimonialista, fruto da Revolução Francesa, direcionado ao homem privado, sujeito de direito tipicamente patrimonial. Todos os outros institutos acabavam analisados a partir dos mesmos valores (In: FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.62). 8 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.63. 6 superação do modelo baseado no individualismo capitalista. “estes estatutos, designados num primeiro momento como leis extravagantes, foram editados em razão de pressões sociais, para atendimento das mais diversas necessidades, em particular a proteção da parte economicamente mais fraca”9. A partir de então, diante de tal evolução, os estatutos passaram a revogar ou modificar o que normatizava o CC de 1916. O grande número de leis especiais resultou em uma verdadeira descentralização do direito privado. Uma grande gama de microssistemas jurídicos foram estabelecidos. Segundo Ferrarini, nesse contexto, “uma importante legislação especial florescia na penumbra da codificação”10. A normatização civil vai sofrendo modificações neste ínterim, em função, sobretudo, da interferência pública no campo privado. Simultaneamente, o Estado passa por transformações, passando do Estado liberal para o Estado Social11. 1.2 OS AVANÇOS DO CONSTITUCIONALIZAÇÃO DIREITO DE FAMÍLIA NA ERA DA Com o final da Segunda Guerra Mundial, o mundo se redemocratizou, sobretudo em função da vitória da Organização das Nações Unidas e da elaboração da Declaração dos Direito do Homem12. A partir de então, o ser humano passa a ser o elemento mais importante do Direito, com base nos ideais de igualdade e da dignidade da pessoa humana. Nasce o Estado Contemporâneo, diante de uma evidente incompatibidade do CC vigente na época com os ideais constitucionais. Segundo Barroso, ao dissertar sobre a incompatibilidade da Carta Magna de 88 com o CC de 1916, assim expõe: (...) a incompatibilidade do Código Civil com a ideologia constitucionalmente estabelecida não sustenta sua continuidade. A complexidade da vida contemporânea, por outro lado, não condiz com a rigidez de suas regras, sendo exigente de minicodificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do direito civil13. 9 RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo, p.7. 10 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.64. 11 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.64. 12 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.64. 13 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalidade e constitucionalização do direito, p.15. Isto permite concluir que, o CC de 1916, elaborado com a finalidade de reger as relações de natureza privada, estava dissonante com a Constituição Federal de 88, que, aliada à doutrina e a jurisprudência, teve “o mérito elevado de romper com a posição mais retrógrada”. Nas palavras de Ferrarini, a Carta Magna de 88 ‘arquivou’ o Estado Liberal e “incorporou o Estado Social (Welfare State)”, onde todos os temas sociais juridicamente relevantes foram constitucionalizados14. Na esteira da Carta Política de 1988, o Código Civil de 2002 apresentou-se mais avançado do que o anterior, ainda que se possa dizer que estes avanços não são homogêneos. No entanto, não há como negar que a atualização foi produtiva, mesmo diante de algumas falhas15. Para Costa, diante do fenômeno da constitucionalização, na qual o ordenamento civil está subordinado, a interpretação de novas situações, oriundas da complexidade social, será sempre submetida à luz das diretrizes da Constituição, mesmo que inexistam regras legislativas16. Para Ferrarini, o mais importa é que nada mais será como antes. O Direito Civil, que em outros tempos refletia a “efervescência da Revolução Francesa, cujos valores eram a liberdade e a individualidade, hoje, na concepção social, a partir da releitura de todo o sistema, tem perfil maleável, com necessidade clara de diálogo com a Constituição e abandono dos dogmas de completude”17. Neste contexto, a família, que anteriormente, tinha como três pilares o Direito patrimonial, Direito parental e Direito assistencial, agora, com o advento da constitucionalização, começam a dominar as relações de afeto, baseadas na solidariedade e cooperação. Segundo Lôbo, “não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade”18. No mesmo diapasão, Ferrarini explica que a “família se afasta de uma perspectiva institucional para centralizar-se na realização pessoal de seus membros, (...) revalorizando a 14 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.69. FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.70. 16 COSTA, Judith Hofmeister. O direito como um sistema em construção e as cláusulas gerais no projeto do Código Civil Brasileiro, p.51. 17 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.73. 18 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família, p.155. 15 dignidade da pessoa humana e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes obscurecida pela supremacia dos interesses patrimoniais(...)”19. Na atualidade, os laços de afeto e confiança ganham cada vez mais espaços nas instituições familiares. O cuidado não pode ser esquecido e, conforme expõe Lôbo, “há de haver a minimização do patrimônio e a maximização da afetividade”20. Neste contexto, cabe aos operadores do direito tomar todo o cuidado, preocupação e atenção que a situação requer no momento de tratar as questões do Direito de Família. Na atualidade, a família não é mais aquele instituto fechado de outrora. O esquema familiar composto um pai autoritário, uma mãe e os filhos, sofreu importantes modificações. O instituto da família não permaneceu estático, mas sim foi assolado por grandes transformações jurídicas e sociais. Hoje, segundo Ferrarini: A família, fundada no casamento, não é mais a única consagrada pelo Direito Constitucional Brasileiro. A Constituição Federal de 1988 harmonizou as normas com os “fatos da vida”, definindo como entidade familiar também a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental). Da mesma forma, o constituinte reconheceu a união estável como entidade familiar21. A Constituição Federal de 1998 realizou enorme avanço na conceituação da família, não eliminou o casamento como forma ideal de regulamentação, bem como, não marginalizou a família natural como realidade social digna de tutela jurídica. Desta forma, a família célula base da sociedade e que, por isso, tem especial proteção do Estado, é tanto aquela que provém do casamento, como aquela que resulta da união estável entre homem e mulher, assim como a que constituída entre qualquer dos pais e seus descendentes, pouco importando a existência, ou não, de casamento entre os genitores22. O art. 226, caput, da Constituição Federal de 88, prevê que: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”23. A função social da família, segundo Ferrarini, “está diretamente ligada à efetiva proteção que ela recebe do Estado, ao menos no sentido de ser ela a instituição de maior relevância na formação de cada cidadão”24. 19 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.74. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família, p.152. 21 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.78. 22 GOMES, Orlando. Direito de família, p.34. 23 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). 24 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.78. 20 1.3 A SIMULTANEIDADE FAMILIAR As relações sociais, conforme já visto, são complexas, com avanços galopantes dessa complexidade. Com a evolução do conceito de família, surgem no mundo real novas situações antes não abarcadas pelo Direito, como, por exemplo, as famílias simultâneas. Mesmo que isso possa parecer antipático diante dos olhos da maioria das pessoas, devido à tradição cultural e religiosa, o fato é que essa realidade existe e precisa ser protegida pelo sistema jurídico brasileiro. As famílias simultâneas são resultado desse caminho aberto e pluralizado, trilhado com base no respeito à diversidade e que ainda carecem da devida proteção do Estado25. Segundo Ruzyk, o fenômeno da simultaneidade familiar é resultado desse sistema jurídico poroso que hoje se encontra em vigor e desafia os operadores do direito a encontrar soluções para estas novas demandas26. No âmbito do Estado Social Democrático de Direito, que privilegia a cláusula da dignidade da pessoa humana, reconhece-se a concepção do pluralismo familiar, recepcionado pela ordem constitucional pátria27. Ruzyk lembra ainda que a presença de outros tipos de convivência familiar sempre existiu na sociedade brasileira, mesmo na época dos patriarcas coloniais. A diferença para a época atual fica por conta da mudança do status social que essas formações familiares adquiriram no século XX. Tornaram-se comuns as famílias informais, fundadas em uniões não matrimonializadas, fato social que trouxe novas demandas ao sistema jurídico28. Apesar de existirem hoje outras formas de famílias, este estudo tem como foco a simultaneidade familiar a partir do casamento e da união estável. Casamento: Previsto no § 1.º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988, o casamento é, nas palavras de Rodrigues "(...) o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência"29. 25 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.84. RUZIK. Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional, p.167. 27 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.86. 28 RUZIK. Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional, p.131. 29 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família, p.19. 26 União estável. Conforme traçado no Código Civil de 2002, em incremento a Constituição Federal de 1988, "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família" (art. 1.723)30. A simultaneidade ocorre quando o cônjuge (no casamento) ou companheiro (na união estável) mantém, paralelamente à sua família constituída dentro da lei, uma outra família. Segundo Ferrarini, “a ideia presente ainda hoje é no sentido de conceber essas relações como estritamente adulterinas”31, moralmente reprováveis, sendo ainda generalizadas, ignoradas nas suas peculiaridades. No imaginário social, as relações familiares paralelas ao casamento ou a união estável são caracterizadas por um triângulo amoroso, onde o marido ou companheiro é “vitimizado”, a esposa ou companheira é “santificada” e a “outra” é “satanizada”32. O casamento e a união estável, equiparados em direito e deveres pelo Código Civil de 2002, tem como característica histórico-sociológica reconhecida a monogamia. 1.3.1 A Monogamia33 O princípio da monogamia é “o organizador das relações conjugais, funciona como um interdito proibitório, se não fosse um princípio jurídico, teríamos o aval do Estado para estabelecermos várias famílias paralelas ao casamento ou à união estável”34. Para Dias, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a constituição não o contempla, de forma que, elevar a monogamia ao status de princípio constitucional é obter resultados desastrosos, uma vez que, diante da simultaneidade simplesmente deixar de prestar tutela jurisdicional para uma das relações, sob o fundamento de que foi ferido o princípio da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito do parceiro infiel e desrespeitando o princípio da dignidade da pessoa humana35. 30 BRASIL. Lei nº 10406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.89. 32 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.89. 33 Sistema no qual o homem não pode ser, simultaneamente, esposo de mais de uma mulher, e a mulher esposa de mais de um homem. 34 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uma principiologia para o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e dignidade humana: anais do V congresso brasileiro de direito de família, p.848849. 35 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, p.58-59. 31 Neste sentido Pianovski (2006, p. 198-199) ensina que: (..) além da multiplicidade de relações matrimonializadas, a monogamia somente é relevante para o direito de família quando seu avesso violar a dignidade da pessoa humana. Se assim não for, não cabe ao estado ser o tutor da construção afetiva coexistencial, assumir o lugar do ´não`. A negação ao desejo mútuo, correspectivo, neste caso, já se apresenta por meio do juízo de reprovação social movido por uma moral ética. A coerção estatal encontra, aqui, o espaço em que legitimamente possa ser exercida36. Sendo assim, tem-se que o princípio da monogamia que rege o direito de família, tem a finalidade de proibir a existência de relações paralelas àquela já existente, seja matrimonial ou união estável, contudo, ensinam os autores acima que antes deve-se aplicar o princípio da dignidade da pessoa humana, pois ele está acima de todos os demais princípios que regem o direito de família. Não se está aqui a negar a opção da ordem jurídica pátria no sentido de ser a monogamia o eixo estrutural da organização jurídica sobre a família, até porque, com tal raciocínio, se estaria a negar a indiscutível influência da religião e da moral ocidental também no Direito”37. No entanto, diante da vida como ela é, e com os contornos que vem se delineando diante do mundo globalizado, dinâmico e cada vez mais complexo, não cabe ao poder estatal repudiar ilícitas formas de convivência resultantes de escolhas de coexistência materialmente livres. Negar proteção estatal a estas relações familiares simultâneas poderá, conforme o caso concreto, afetar a dignidade da pessoa humana. Segundo Pereira, a dignidade da pessoa humana funciona como um macroprincípio ou superprincípio que dá base e sustentação dos ordenamentos jurídicos brasileiro, e, portanto, foi ele quem permitiu a inclusão das outras categorias de filhos e famílias38. O Direito não pode excluir do seu campo a simultaneidade familiar, pois, segundo Pereira, “a história já demonstrou que estes critérios de exclusão não pode mais ser 36 PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Famílias Simultâneas e monogamia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e dignidade humana: anais do V congresso brasileiro de direito de família, p. 198-199. 37 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos, p.95. 38 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uma principiologia para o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e dignidade humana: anais do V congresso brasileiro de direito de família, p.848849. desconsiderado pelo Direito, sob pena de se continuar repetindo injustiças e muito sofrimento”39. Na escolha entre o princípio da monogamia, em nome da moral, e justiça, Pereira fica com a segunda opção, conforme pode-se verificar na citação a seguir: Não há dúvida de que o concubinato (adulterino) fere o princípio da monogamia, bem como a lógica do ordenamento jurídico ocidental e em particular o brasileiro. O mais simples e elementar raciocínio nos faz concluir isto. Aliás, é somente por causa desse princípio que foi possível à doutrina e jurisprudência construírem um pensamento para o concubinato não-adulterino e traze-lo para o campo do Direito de Família. Até que isto ficasse definitivamente esclarecido (Lei 8.971/94), fomos obrigados a conviver com os ridículos pedidos de indenização por serviços prestados, que era uma fórmula camuflada de se conceder alimentos, já que a união estável/concubinato não estava no elenco das fontes da obrigação alimentar e uma base principiológica para o Direito de Família não estava suficientemente assentada e forte como está hoje e a cada dia mais. Mas, se o fato de ferir este princípio significar fazer injustiça, devemos recorrer a um valor maior que é o da prevalência da ética sobre a moral para que possamos aproximar do ideal de justiça [...]. Ademais, se considerarmos a interferência da subjetividade na objetividade dos atos e fatos jurídicos, concluiremos que o imperativo ético passa a ser a consideração do sujeito na relação e não mais o objeto da relação. Isto significa colocar em prática o que disse antes, ou seja, que o Direito deve proteger a essência e não a forma, ainda que isto custe "arranhar" o princípio jurídico da monogamia40. Então, se para não “arranhar” o princípio da monogamia, o Direito se utilizar do seu poder de exclusão nas questões de simultaneidades familiares, então a injustiça estará sendo feita e a ética do Direito estará seriamente comprometida. A ética deve sempre se sobrepor a moral excludente. Segundo Pereira "o moralista prefere sempre a formalidade e a lei em sua literalidade, enquanto o ético, a essência do Direito, e, por isso, buscará sempre nos princípios a fundamentação para mais justa adequação"41. 39 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito, amor e sexualidade. In: Direito de família: a travessia do novo milênio. Congresso de direito de família, p.57. 40 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família, p.88. 41 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família, p.88. 1.4 ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS AO RECONHECIMENTO DA SIMULTANEIDADE FAMILIAR O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível n.º 70010787398, reconheceu a existência de duplas células familiares, no caso em análise, ficou evidenciado que “[...] o cidadão mantinha dois vínculos afetivos com duas mulheres simultaneamente, e isso não pode vir em benefício dele próprio ou de uma das conviventes”. Ainda acerca desta decisão, destaca a relatora Desembargadora Maria Berenice Dias que: “(...) O poder judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, inobstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja “digna” de reconhecimento judicial. Dessa forma, havendo duplicidade de uniões estáveis, cabível a partição do patrimônio amealhado na concomitância das duas relações.(...)”42. Outra decisão do presente Tribunal, a Apelação Cível n.º 70011258605 não só reconheceu a união dúplice, como determinou a triação dos bens existentes entre o de cujus e as companheiras. Para o relator do acórdão Desembargador Alfredo Guilherme Englert não restou dúvidas de que a relação mantida pelo de cujus com H. não era a que melhor se ajustava à união estável, porquanto foi com E. que o de cujus teve uma filha, moraram juntos e quem o cuidou até os últimos dias de vida, dessa forma evidente que o de cujus tinha um convívio familiar bem mais consistente com E. do que com H. Não obstante, foi designado para o presente acórdão redator o Desembargador Rui Portanova, que ressalta estarmos diante de duas uniões estáveis e não um casamento civil e uma união estável. Ainda, não se pode perder de vista que tanto a sentença como o voto do eminente relator confirmam a existência de uniões estáveis dúplices que também podem ser chamadas de paralelas ou concomitantes. Parece também muito mais próximo da realidade o precedente do TJRS, assim ementado: Embargos infringentes - União estável - Relações simultâneas. De regra, não é viável o reconhecimento de duas entidades familiares simultâneas, dado que em sistema jurídico é regido pelo princípio da monogamia. No entanto, em Direito de Família não se deve permanecer no apego rígido à 42 RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível n.º 70010787398. dogmática, o que tornaria o julgador cego à riqueza com que a vida real se apresenta. No caso, está escancarado que o "de cujus" tinha a notável capacidade de conviver simultaneamente com duas mulheres, com elas estabelecendo relacionamento com todas as características de entidades familiares. Por isso, fazendo ceder a dogmática à realidade, impera reconhecer como co-existentes duas entidades familiares simultâneas. Desacolheram os embargos, por maioria. (TJRS, 4º Grupo Cível, Embargos Infringentes n.º 70013876867, rel. Des. Luiz Ari Azambuja Ramos, j. 10.3.2006; por maioria). O fato é que essa realidade existe, e deve-se pensar no caso concreto, nas peculiaridades de cada caso, analisando-se os diversos elementos de cada uma destas relações familiares simultâneas. Farias e Rosenvald entendem que quando existe a boa fé por parte da “outra” mulher, ou seja, ela é induzida ao erro, pode-se requerer ao juiz o reconhecimento da putatividade, obtendo-se os efeitos concretos do casamento ou união estável43. Segundo os mesmo autores, “entendemos que, presente a boa-fé, é possível emprestar efeitos de Direito de Família às uniões extramatrimoniais” 44. Sobre o tema, afirmam Tartuce e Simão: "(...) essa parece ser a posição mais justa dentro dos limites do princípio da eticidade, com vistas a proteger aquele que, dotado de boa-fé subjetiva, ignorava um vício a acometer a união”45. Então, segundo parte da doutrina, sempre que uma das pessoas da relação não souber que o outro possui impedimentos matrimoniais, ou sabe, e está sendo induzida a erros, enganada, ou seja, estiver sob a boa-fé subjetiva, os efeitos jurídicos familiares decorrem para o companheiro inocente, efeitos estes reconhecidos sempre por meio de ato judicial. Da mesma forma, Oliveira entende que é admissível uma “segunda união estável (de natureza putativa), tal qual no casamento, quando presente a boa fé por parte de um ou de ambos os conviventes”46. 43 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias, p.456. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias, p.456. 45 TARTUCE, Flávio, e SIMÃO, José Fernando. Direito Civil - Direito de Família, p.254. 46 OLIVEIRA, Euclides. União Estável: do concubinato ao casamento, p.139-140. 44 1.5 ENTENDIMENTOS CONTRÁRIOS SIMULTANEIDADE FAMILIAR AO RECONHECIMENTO DA Na visão de Gomes, é inaceitável a proteção estatal na simultaneidade familiar. Segundo Gomes, apud Fontanella, a monogamia é um dos princípios que regem o casamento (e aqui, por equiparação, também a união estável). Para este autor: “O princípio da monogamia está consagrado em nossa legislação, a teor do disposto no art.1521, VI, do CC, que prevê que não podem casar as pessoas casadas, bem como se depreende do art.1548, II, que estabelece a nulidade do casamento contraído com infração aos impedimentos matrimoniais”47. Também o ex Ministro do STJ Carlos Alberto Menezes Direito, assim dispôs em sentido contrário ao reconhecimento da simultaneidade familiares. Ora, com o maior respeito à interpretação acolhida no acórdão, não enxergo possível admitir a prova de múltipla convivência com a mesma natureza de união estável, isto é, "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". O objetivo do reconhecimento da união estável e o reconhecimento de que essa união é entidade familiar, na minha concepção, não autoriza que se identifiquem várias uniões estáveis sob a capa de que haveria também uma união estável putativa. Seria, na verdade, reconhecer o impossível, ou seja, a existência de várias convivências com o objetivo de constituir família. Isso levaria, necessariamente, à possibilidade absurda de se reconhecer entidades familiares múltiplas e concomitantes48. Esta decisão do Min. do STJ Carlos Alberto Menezes Direito revela o entendimento de alguns operadores do direito pátrio, que é a completa exclusão do sistema jurídico das questões relativas às famílias simultâneas. Nesta linha também está a jurisprudência do TJMG, como se vê adiante em dois precedentes: União estável. Caracterização. A união estável caracteriza-se pela convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família. O reconhecimento de união estável em relação a uma mulher impede o reconhecimento de tal relação em face de outra com quem, a despeito da existência de relacionamento amoroso, não se caracterizou a constituição de entidade 47 FONTANELLA, Patrícia. Famílias simultâneas e união estável putativa: possibilidade de seu reconhecimento. In LEITE, Eduardo de Oliveira.Grandes temas da atualidade. União Estável. Aspectos polêmicos e controvertidos. p. 337 48 Cf. STJ, 3ª Turma, REsp n.º 789.293/RJ, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 16/2/2006. familiar, por exclusão lógica. Apelo improvido. (TJMG, 5ª Câmara Cível, Apelação Cível 1.0111.04.000875-2/002, rel. Des. Cláudio Costa, j. 17.5.2007). Direito de Família. Apelação. Ação de Reconhecimento de União Estável. CONCUBINATO DESLEAL. Pedido improcedente. Recurso provido. O concubinato desleal não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, pois a manutenção de duas uniões de fato, concomitantes, choca-se com o requisito de respeito e consideração mútuos, impedindo o reconhecimento desses relacionamentos como entidade familiar, uma vez caracterizada a inexistência de objetivo de constituir família, e de estabilidade na relação. (TJMG, 4ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 1.0384.05.039349-3/002, rel. Des. Moreira Diniz, j. 21.02.2008). Percebe-se, por meio do exposto, que ainda é grande a resistência no mundo jurídico em se admitir que as famílias simultâneas sejam protegidas pelo Direito, mesmo diante da exclusão da sociedade moralizada. 1.6 O ENTENDIMENTO DO STJ O Recurso Especial 1157273/RN, julgado pelo STJ em maio de 2010, demonstrou o posicionamento desta Corte referente às famílias concomitantes ou simultâneas. Segundo a Desembargadora Nancy Andrigui, a questão não é pacífica no âmbito desta Corte, merecendo aprofundada análise. O STJ (REsp 1.157.273-RN) decidiu que, em razão do dever de lealdade e de adotarmos um padrão familiar monogâmico, não se é permitido reconhecer a existência de famílias simultâneas. A "segunda família" é apenas uma sociedade de fato. In casu, o de cujus foi casado com a recorrida e, ao separar-se consensualmente dela, iniciou um relacionamento afetivo com a recorrente, o qual durou de 1994 até o óbito dele em 2003. Sucede que, com a decretação do divórcio em 1999, a recorrida e o falecido voltaram a se relacionar, e esse novo relacionamento também durou até sua morte. Diante disso, as duas buscaram, mediante ação judicial, o reconhecimento de união estável, consequentemente, o direito à pensão do falecido. O juiz de primeiro grau, entendendo haver elementos inconfundíveis caracterizadores de união estável existente entre o de cujus e as demandantes, julgou ambos os pedidos procedentes, reconhecendo as uniões estáveis simultâneas e, por conseguinte, determinou o pagamento da pensão em favor de ambas, na proporção de 50% para cada uma. Na apelação interposta pela ora recorrente, a sentença foi mantida49. A questão, levada até o STJ, está em saber se na perspectiva do Direito de Família, existe a viabilidade jurídica do reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Nesta instância especial, ao apreciar o REsp: Inicialmente se observou que a análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presentes em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros. Desse modo, entendeu-se que, no caso, a despeito do reconhecimento, na dicção do acórdão recorrido, da união estável entre o falecido e sua ex-mulher em concomitância com união estável preexistente por ele mantida com a recorrente, é certo que o casamento válido entre os ex-cônjuges já fora dissolvido pelo divórcio nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/2002, rompendo-se, definitivamente, os laços matrimoniais outrora existentes. Destarte, a continuidade da relação sob a roupagem de união estável não se enquadra nos moldes da norma civil vigente (art. 1.724 do CC/2002), porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros50 (GRIFO NOSSO). A respectiva decisão foi fundamentada ainda com o seguinte argumento: • Ressaltou-se que uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade, que integra o conceito de lealdade, para o fim de inserir, no âmbito do Direito de Família, relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar do fato de que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. • Assinalou-se que, na espécie, a relação mantida entre o falecido e a recorrida (exesposa), despida dos requisitos caracterizadores da união estável, poderá ser reconhecida como sociedade de fato, caso deduzido pedido em processo diverso, para que o Poder Judiciário não deite em solo infértil relacionamentos que efetivamente existem no cenário dinâmico e fluido dessa nossa atual sociedade volátil. 49 BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572 73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011. 50 BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572 73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011. • Assentou-se, também, que ignorar os desdobramentos familiares em suas infinitas incursões, em que núcleos afetivos justapõem-se, em relações paralelas, concomitantes e simultâneas, seria o mesmo que deixar de julgar com base na ausência de lei específica. Dessa forma, na hipótese de eventual interesse na partilha de bens deixados pelo falecido, deverá a recorrida fazer prova, em processo diverso, repita-se, de eventual esforço comum51. Com essas considerações, entre outras, a Turma deu provimento ao recurso, para declarar o reconhecimento da união estável mantida entre o falecido e a recorrente e determinar, por conseguinte, o pagamento da pensão por morte em favor unicamente dela, companheira do falecido. REsp 1.157.273-RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/5/201052. Segundo a referida decisão, “as uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e paralelas têm ornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses”53. O que se percebe, é que o STJ apresenta-se totalmente resistente à ideia de que as famílias simultâneas devem ser protegidas pelo Direito, mantendo-se fiel ao dever de lealdade, fidelidade e monogamia na formação da família. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, o que se percebe é o que entendimento ainda é incipiente e nada pacífico, tanto na doutrina como nos tribunais, sobre a viabilidade da existência de famílias simultâneas. 51 51 BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572 73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011. 52 52 BRASIL. REsp 1.157.273-RN. STJ. Jurisprudências. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572 73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011. 53 BRASIL. REsp 1.157.273-RN.STJ. Jurisprudências. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='11572 73')+ou+('RESP'+adj+'1157273'.suce.)> Acesso em: 15 fev.2011. Estaremos ainda amadurecendo a ideia de que ao Direito cabe o ‘dever’ de iluminar as instituições familiares, mesmo sendo alguns modelos considerados ilícitos? Estaríamos nós, sociedade e operadores do Direito, correndo o risco de novamente atentarmos contra dignidade da pessoa humana, da mesma forma que fizemos quando, conforme exemplo citado por Rodrigo da Cunha Pereira, eram comuns na justiça os pedidos (humilhantes, diga-se de passagem) de indenização por serviços prestados (que era a fórmula camuflada de requerer alimentos), quando a união estável era chamada de concubinato e este modelo de família era excluído da lei? O que se conclui é que a sociedade evoluiu desde os modelos retrógrados de família patriarcal, mas ainda somos banhados pelo ranço da moralidade, da cultura e da religião, mesmo que isso resulte em injustiças e possa afetar a dignidade da pessoa humana, na pele da mulher que agiu de boa fé, mas, ao final, ficou desprotegida pelo Estado e rechaçada pela sociedade. Deixamos claro, ao final, que o princípio da monogamia, da fidelidade, do respeito e do afeto devem ser basilares nas relações familiares. Essa deve ser a regra. No entanto, quando ocorrem situações adversas daquelas previstas e aceitas pela lei, não pode o Direito se eximir de resolver tais demandas, correndo o risco de ser omisso e falhar na sua maior finalidade que é a Justiça. Alinhamo-nos, neste estudo, ao entendimento da professora Patrícia Fontanella, que admite a “possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas, quando presente a boa fé subjetiva, bem como quando a duplicidade de famílias for ostensiva perante os envolvidos”54. Da mesma forma, acreditamos que os efeitos jurídicos de uma família simultânea, a partir do caso concreto, deve abarcar a possível concessão de alimentos, direito sucessório e previdenciário, dependendo da análise pelo magistrado de cada caso. Conforme Roudinesco apud Fontanella, “a família do futuro deve ser mais uma vez reinventada”.55 54 FONTANELLA, Patrícia. Famílias reconhecimento. In LEITE, Eduardo de polêmicos e controvertidos. p. 347 55 FONTANELLA, Patrícia. Famílias reconhecimento. In LEITE, Eduardo de polêmicos e controvertidos. p. 347 simultâneas e união estável putativa: possibilidade de seu Oliveira.Grandes temas da atualidade. União Estável. Aspectos simultâneas e união estável putativa: possibilidade de seu Oliveira.Grandes temas da atualidade. União Estável. Aspectos REFERÊNCIAS AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o novo código civil, lei n° 10.406 de 10-01-2002. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2002. 661 p. BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalidade e constitucionalização do direito. Interesse Público, n.33, p.15, set./out.2005. BRASIL. REsp 1.157.273-RN.STJ. Jurisprudências. 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