Anais do Encontro Nacional de Recreação e Lazer A ociosidade e o vadiismo na província mineira no século XIX: implicações judiciárias e religiosas na constituição histórica do tempo livre Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir como o tempo considerado não produtivo, denominado aqui de tempo livre, era pensado na província mineira na primeira metade do século XIX, atentando-se a alguns dos dispositivos judiciários e dos discursos religiosos que se fizeram presentes naquele momento. Considerando a valorização de uma ideologia do trabalho, em uma época em que a vadiagem e a ociosidade eram fortemente condenadas, intenciona-se compreender como o tempo livre e algumas de suas possibilidades de fruição entraram na pauta dos projetos de reordenamento social, de estruturação dos espaços públicos, e, consequentemente, de educação da população para uma nova sensibilidade. O trabalho possibilita a compreensão de ações regulamentadoras referentes aos perigos do caráter “não produtivo” do tempo livre. Da mesma forma, possibilita pensar a autorização ou desautorização de determinadas práticas como importantes elementos para problematizar um processo de seleção e transmissão de saberes, bem como os limites do próprio termo “tempo livre” quando tomado como conceito, quando testado em um contexto histórico concreto, situado em meio às relações complexas da sociedade brasileira, em que a própria noção de trabalho precisa ser tensionada. Palavras-chave: Tempo livre. Legislação. Religião. Sesc | Serviço Social do Comércio Anais do Encontro Nacional de Recreação e Lazer Introdução Este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir como o tempo considerado não produtivo, denominado aqui de tempo livre, era pensado na província mineira na primeira metade do século 19, atentando-se a alguns dos dispositivos judiciários e dos discursos religiosos que se fizeram presentes naquele momento. Como tempo não produtivo, entendemos aquele tempo desvinculado das obrigações consideradas “formais”, como o trabalho, a escola e outras propostas institucionalizadas. Um tempo que comporta diversas possibilidades de experiências de acordo com os princípios que regem a vida de cada sociedade, em cada tempo histórico. Princípios pautados por um vasto conjunto de normas, regulamentações e mecanismos de controle do espaço público, dos quais destacaremos a legislação e a religião. Assim, objetivamos compreender como o tempo livre, considerado improdutivo e perigoso, fazia parte das preocupações de estadistas e religiosos na primeira metade dos Oitocentos, em Minas Gerais. O caráter inútil e pernicioso deste “tempo” traduzia-se, comumente, nas expressões “horas vagas”, “ociosidade” e “vadiismo”. Para tanto, pesquisamos parte das legislações vigentes no período, como a Constituição do Império, escrita em 1824, e o Código Criminal do ano 1830, bem como reportagens do periódico O Universal, publicado em Ouro Preto, capital da província mineira, entre os anos de 1825 e 1842. Breves considerações sobre o contexto brasileiro e mineiro na primeira metade do século XIX: a busca pela civilidade europeia Se, de fato, a preocupação com o tempo vivenciado para além das finalidades produtivas não é criação do período estudado, é possível inferir que o século 19 viveu particularidades importantes. Foi portador de um notório desenvolvimento científico e tecnológico, aliado, ainda, à comunicação comercial crescente entre os países. Nos dizeres de Peter Gay (1989, p. 43) “as mudanças tornaram-se muito mais rápidas e irresistíveis do que havia sido no passado”, e é possível dizer que os ideais de progresso e de ideologia do trabalho1 chegariam a um Brasil ainda agrário e escravocrata, somados à necessidade de civilização de um contingente populacional diverso que estava distante das aspirações dos intelectuais e estadistas. O anseio de rompimento do vínculo político com Portugal, expresso principalmente por uma elite desejosa de se beneficiar dos ideais capitalistas em voga no continente europeu e de livrar-se da dominação absolutista do Reino, propiciou um novo momento para a história brasileira. No entanto, o recém-Estado precisava ser (re) configurado e a entrada do Brasil em uma “modernidade desejada” esbarrava em um tipo de “atraso” da maioria de sua população. O Brasil entrara no século 19 com uma grande contingente de analfabetos, entre escravos, mestiços, índios e homens pobres livres, características que comprometiam as “iniciativas em prol de um desenvolvimento social maior e melhorado” (MIZUTA; FARIA FILHO; PERIOTTO, 2010, p.10). Além disso, este contingente era pouco apto para o trabalho regular e disciplinado, como relata Kowarick (1994). Segundo o autor, no final do século 18, quase metade da população brasileira era formada por indivíduos de várias origens sociais, por desenraizados “cujo traço comum residia na sua desclassificação em relação às necessidades da grande propriedade agroexportadora” e à ordem escravocrata, que concentrava e monopolizava os recursos econômicos (KOWARICK, 1994, p. 27). Kowarick ressalta a existência de “indivíduos que viviam da mão para a boca, sem local fixo de moradia [...]”(KOWARICK, 1994, p. 27). Neste sentido, a ideia de atraso refere-se à pouca aproximação da maior parte da população aos costumes que se relacionavam a uma representação da civilidade europeia. Assim, percebe-se por meio da produção acadêmica que se ocupa da primeira metade dos Oitocentos, certo consenso acerca da necessidade por parte das classes dirigentes de se criar um Estado que fosse capaz de romper com os laços coloniais e se inserir nos padrões de civilidade do velho continente. Para isso, era preciso educar a população para novos costumes e novas orientações morais. Mesmo compreendendo que épocas anteriores também comportaram ações ordenadoras da vida social de acordo com suas demandas específicas, a urgência em torno da transformação de velhos hábitos da antiga colônia de exploração2 em formas mais aceitáveis e apuradas que fizessem jus a certa ideia de nação demarca um momento singular e importante na história brasileira. De acordo Sesc | Serviço Social do Comércio Anais do Encontro Nacional de Recreação e Lazer com Silveira (1997, p. 53), embora já houvesse um apelo ao refinamento dos costumes em períodos anteriores, “a estrutura do Império assistia à proliferação de práticas e ideias aparentemente pouco civilizadas”. Diante deste contexto, as elites procuravam transformar a selvageria colonial, tornando generalizado “o apreço pela civilização e pelo controle dos impulsos mais espontâneos, distintivos do homem polido” (SILVEIRA, 1997, p. 17). Sobre a realidade mineira, Souza (2004, p. 80) também relata um grande contingente de homens pobres livres, “afeitos ao trabalho assistemático e esporádico, sempre prestes a se tornarem desocupados”. Atribuindo à ideologia da vadiagem “o olhar raivoso e desqualificador que as elites lançaram sobre o mundo do não trabalho”, a autora denomina “desclassificado social” aqueles indivíduos pobres, frequentemente miseráveis e sem uma ocupação (SOUZA, 2004). A moral do trabalho e a “barbárie” dos divertimentos citadinos: a normatização do tempo livre via legislação Importante considerar que se em períodos anteriores já havia a preocupação com a vadiagem e a ociosidade – potenciais inimigas do ideal de trabalho e de progresso – foi após a independência que esta passa a ser citada na legislação brasileira, na composição do Código Criminal do Império. Este, publicado em 1830, possuía um capítulo destinado exclusivamente para o enquadramento da população desocupada nas leis recém-criadas. O capítulo IV discorria sobre “Vadios e mendigos”. No artigo 295 lia-se como crime: “Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta, e útil, de que possa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz [...]” (BRASIL, 1830). Antes mesmo da publicação do Código Criminal de 1830, Silva (2005) relata que havia a pretensão de se criar no município de Ouro Preto, capital da província mineira, uma “casa de correção para vadios e ociosos”, mencionada em uma das atas do Conselho Geral da Província, no ano de 1828. Segundo a autora, havia o intuito de separar os indivíduos probos dos vadios, criminosos e desordeiros. Em uma das edições do jornal O Universal, do ano de 1829, foi apresentada a proposta de criação de “Cazas de Correcção e trabalho”. Haveria uma casa para cada uma das cinco Comarcas da Província e os presos seriam distribuídos em diversas classes, “segundo a idade, o grao do crime, e a perversidade que mostrarem, e à vista da aplicação, e dos signaes de arrependimento que derem” (O UNIVERSAL, 1829, p. 1-2). Também, segundo a publicação, os presos deveriam trabalhar nas casas, não sendo permitido o jogo e o fumo, e seriam obrigados a ouvir a missa e rezar o terço nos domingos e dias santos. Outros exemplos podem oferecer pistas sobre tentativas legais de normatização do tempo livre. Um deles é o “Regulamento de Providencias Policiais a Respeito de Escravos e Taverneiros”, elaborado pelo Conselho Geral da Província de Minas Gerais em 1825. Composto por oito artigos, o Regulamento visava estabelecer normas de funcionamento das tavernas e coibir a presença de escravos nas mesmas. Só era possível abrir tavernas com a licença da Câmara, que cobrava um valor determinado. Os comandantes deveriam informar aos capitães-mores o número de estabelecimentos de seus respectivos distritos e se estavam competentemente licenciados. O artigo 7º regulamentava o funcionamento dos mesmos: “Em lugares remotos serão fechadas todas as tavernas ao anoitecer, e abertas ao amanhecer; nas Vilas e Cidades, depois da corrida do sino, como está em costumes” (MINAS GERAIS, 1825). Em relação à presença de escravos nas tavernas, tanto os mesmos quanto os taverneiros poderiam sofrer punições nas seguintes circunstâncias: o escravo que fosse achado em jogos, durante o dia ou à noite, seria preso e castigado com 25 açoites. Já o dono da taverna onde fosse encontrado o jogo de escravos seria multado nas três primeiras vezes e na quarta teria “cassada a licença para nunca mais vender naquelle districto” (MINAS GERAIS, 1825). Os donos também eram multados caso fosse encontrado algum escravo “completamente embriagado” em seus estabelecimentos (MINAS GERAIS, 1825). A preocupação específica do Regulamento com os jogos e a embriaguez fornece margem para questionar a existência de outros tipos de regulamentação que não se direcionassem apenas aos escravos. Da mesma forma, é possível interrogar os motivos da preocupação com os jogos e o consumo de bebidas e qual seria a sua repercussão para a população em geral, assim como, quais outros costumes e outras experiências no tempo livre enfrentavam intervenções neste período. Sobre a prática do jogo, o capítulo que dispunha sobre “Offensas da religião, da moral e dos bons costumes” do Código Criminal de 1830 estabelecia a seguinte Sesc | Serviço Social do Comércio Anais do Encontro Nacional de Recreação e Lazer infração: “ter casa publica de tabolagem para jogos, que forem proihibidos pelas posturas das Camaras Municipaes” (BRASIL, 1830). Ao estudar a capital do Império, Silva (2005, p.155) chama a atenção para a proibição dos jogos em que se apostavam dinheiro, pois esta prática de divertimento poderia levar os indivíduos à “degradação física, financeira e familiar, em decorrência das paixões e comoções que provocava ou por conta do vício que incitava”. O jogo de azar contrariava, segundo a autora, a moral e os bons costumes pretendidos pela “boa sociedade”. Em se tratando das crescentes inquietações que se gestavam em torno do espaço público, vale ressaltar a Lei de 1º de outubro de 1828, que conferia nova forma às Câmaras Municipais. As posturas dos municípios passaram por processos de reformulação, tendo a seu cargo tudo o que dizia respeito à polícia e economia das povoações (BRASIL, 1828). De acordo com Araújo (2008, p. 72) “a reorganização das ações que competem às câmaras e suas funções marcam decisivamente um momento sintomático de transformações do espaço público das cidades e de sua população”, onde “a preocupação com o controle das relações sociais no espaço urbano era claramente perceptível” (ARAÚJO, 2008, p. 74). Outros costumes do divertimento citadino, como o jogo de entrudo, já eram alvos de condenações antes mesmo da publicação da nova legislação e, ao que indicam as fontes, podem ter sido um dos grandes motivadores das alterações nas leis vigentes. Este festejo, realizado nos dias precedentes à Quaresma, foi duramente criticado pelo redator do jornal investigado: requerente, “de nada valem os meios brandos e as carícias para extirpar costumes que há longos séculos estão em uso [...]”(O UNIVERSAL, 1826, p. 342). Logo após as solicitações do redator, publicou-se algumas determinações do Conselho Geral da Província acerca do “pernicioso abuso e inveterado costume de hum divertimento que se denomina ‘O Entrudo’ para o bem dos povos dessa província” (O UNIVERSAL, 1826, p. 342). Em uma delas, estabelecia-se a punição para aqueles que continuassem com o costume: Art. 1º - Toda pessoa, de qualquer estado, sexo, ou condição que seja, que se encontrar pelas ruas a jogar o entrudo, será immediatamente recolhido à cadêa, onde ficará até que se findem os 3 dias de entrudo: isto se estende aos que forem maiores de 12 annos, porque os meninos até essa idade serão punidos com 10 chibatadas pela primeira vez, 15 pela segunda, e se forem pertinazes que ainda se encontrem terceira vez levarão 20, e serão recolhidos à cadêa pelo mesmo espaço de tempo (O UNIVERSAL, 1826, p. 343). Por meio das normativas e da grande preocupação do redator do jornal O Universal com a forma de divertimento que o entrudo representava, é possível pensar relações com os ideais de civilidade que se almejam na construção de uma província mais afeita às “luzes do século” (O UNIVERSAL, 1830, p. 3). Em um dos artigos do jornal, que visava elucidar alguns pontos da Lei de 1º de outubro, julgava-se que a nova lei havia aperfeiçoado o antigo regime das câmaras locais, de acordo com as “idéas das Nações cultas” (O UNIVERSAL, 1829, p. 2). Para além do controle do comportamento no espaço público, uma das expectativas era não deixar “aumentar entre nós a vadiação, o roubo e todos os mais crimes da ociosidade” (O UNIVERSAL, 1829, p. 3). Vão se aproximando os dias em que o povo desenfreado, iludido por um divertimento bárbaro e que tantas desordens tem causado, e há de causar ao público, se ajunta às chusmas pelos chafarizes a atirar água a quantos passão; e outros com artífices laranjas cheias de águas cheirosas, insultam a toda qualidade de pessoas nas ruas [...] (O UNIVERSAL, 1826, p. 342). A moral religiosa: “comerás o pão com o suor do teu rosto” Diante de tais reclamações, o redator do jornal solicitou ao Conselho Geral da Província soluções para remediar “hum mal tão pernicioso à sociedade” (O UNIVERSAL, 1826, p. 342), para o bem geral dos cidadãos. Considerava o entrudo um vício arraigado e ao reconhecer a dificuldade de “arrancá-lo” do povo, solicitava penas civis, “capaz de contê-lo na sua desenvoltura e fazê-lo seguir uma marcha regular pelo caminho direito” (O UNIVERSAL, 1826, p. 342). Segundo o Uma seleção de crônicas escritas pelo padre Lopes Gama no jornal pernambucano O Carapuceiro, publicadas na primeira metade do século 19, oferece importantes compreensões sobre a preocupação com a ociosidade no período. Em um texto dedicado exclusivamente para tratar do “vadiismo”, Lopes Gama (1996, p. 199) faz a seguinte consideração: “O vadiismo, pois, é o maior flagelo do nosso Brasil, cuja fertilidade concorre para a ociosidade. [...]. Se não nos 3 Sesc | Serviço Social do Comércio Anais do Encontro Nacional de Recreação e Lazer ocuparmos o pensamento em coisas úteis, ele vagueará em objetos fúteis e dará alimento às paixões criminosas”. O padre conclui a sua crônica apostando no potencial de uma educação bem dirigida como forma de “infundir em nossa mocidade o amor ao trabalho”. Segundo ele, “se boas leis policiais espancassem o vadiismo, então e só então poderá o nosso Brasil contar-se por bem morigerado e próspero” (GAMA, 1996, p. 200). Em outras palavras): “Comerás o teu pão com suor do teu rosto [...]. O trabalho é preceito divino. Mas o vadiismo diz o contrário: Comerás e passarás regaladamente a custo do suor alheio [...]”(GAMA, 1996, p. 191-192). Lopes Gama foi citado algumas vezes nas páginas do jornal O Universal (1825, p. 2), que também se preocupava bastante com uma educação “conveniente” capaz de fornecer à pátria “cidadãos laboriosos e probos”. O ensino das primeiras letras, segundo o jornal, teria grandes vantagens em todas as ocupações da vida, ao produzir “hum cidadão util, obediente e morigerado”. No entanto, o incentivo a “huma boa educação elementar” não deveria tirar das classes trabalhadoras o tempo “que he necessário que empreguem nos diferentes ramos de suas respectivas occupações”. O povo, de acordo com a publicação em questão, teria o direito de “reclamar aquella parte de instrução que he compativel com o resto de suas occupações” (O UNIVERSAL, 1825a, p. 3-4). Assim, é possível inferir que a vulgarização da instrução pública não pressupunha uma igualdade nas relações e muito menos acesso pleno à compreensão dos princípios difundidos, o que evidenciava, fortemente, o caráter utilitário da instrução para as camadas mais pobres. Outra edição do jornal, ao defender o modelo de ensino inglês como melhor opção para o Brasil, expunha as preocupações vivenciadas naquele país, solucionadas pela criação de escolas para os distritos menores. Estas, “occupando utilmente o tempo destes meninos pobres, não somente lhes dá a instrucção em ler, escrever e contar [...]; mas impede que elles se habituem à ociosidade” (O UNIVERSAL, 1825b, p. 12). Em outro trecho, defendia-se que o sistema de escolas “para os pobres” poderia salvar do “contágio dos vícios e dos perigos da ociosidade” (O UNIVERSAL, 1825b, p. 12). Citam-se as “horas vagas” como aquelas que restam da escola, momento em que os pais já teriam voltado de seus empregos e poderiam “ter seus filhos debaixo de seus olhos”. Fora da escola, teriam a perigosa “opportunidade de associar pelas ruas, com quem lhes depravasse os costumes [...]”(O UNIVERSAL, 1825b, p. 12). Em outra crônica, o padre Lopes da Gama (1996, p. 414) defendeu que a educação capaz de “fazer homens de bem” seria aquela que, entre outras intenções, fosse capaz de afastar as pessoas “do ócio das praças e da corrupção das tavernas”. Em outra publicação, Lopes Gama (1996, p. 136) se encarregou de condenar a paixão pelo jogo. Segundo ele, “o homem que se entrega ao hábito do jogo é um inútil para o Estado, para seus semelhantes e para si próprio [...]” (GAMA, 1996, p. 136). Percebemos, assim, pensamentos e formas de intervenção que se dirigiam ao tempo livre, fomentadas, especialmente pela religião e pela legislação, aliados à condenação e/ou regulamentação de alguns costumes. A grande preocupação com o tempo não produtivo e com a necessidade de enquadrar os vadios e os ociosos no ideal de trabalho oferece possibilidades para pensar como o tempo vivenciado fora dos limites da produção era compreendido. Em um contexto em que a desocupação se mostrou um grave problema, tornase relevante pensar possíveis associações entre o tempo livre e os perigos do mundo do não trabalho e de outras obrigações, como a escola e outras propostas institucionalizadas. Da mesma forma, implica pensar como foram construídos pensamentos e gestadas intervenções que delegaram a alguns costumes o peso do imoral, do incivilizado e do perturbador, em uma sociedade na qual “o império da ordem e da disciplina social seriam questões caras ao seu desenvolvimento” (MIZUTA; FARIA FILHO; PERIOTTO, 2010, p.11). Assim, as intensas transformações na organização social, ocorridas na temporalidade desta pesquisa e marcadas, principalmente, pela necessidade de construção de uma nação, pelo ideário de progresso, pela crença no valor do trabalho e da escola e pela civilidade, são condições de suma importância para compreender o lugar ocupado pelo tempo livre. Considerações finais Ainda em andamento, esta pesquisa tem possibilitado a compreensão de ações regulamentadoras referentes aos perigos do caráter “não produtivo” do tempo livre. Da mesma forma, tem possibilitado pensar a autorização ou desautorização de determinadas práticas como importantes elementos para problematizar um processo de seleção e transmissão de saberes. Sesc | Serviço Social do Comércio Anais do Encontro Nacional de Recreação e Lazer Novas compreensões acerca dos processos educativos colocados em prática no século XIX, sobretudo no contexto pós-independência e de afirmação da nação, podem, assim, ser oferecidas. Compreendendo o tempo livre com uma das formas de transmissão da cultura e constatando a pouca abordagem de suas possibilidades formativas, corrobora-se com Pallares-Burke (1998, p. 145), para quem outras modalidades, além das consideradas formais, podem dizer muito sobre “o modo complexo pelo qual as culturas são produzidas, mantidas e transformadas”. Ainda, novos parâmetros podem ser pensados para a compreensão da constituição histórica do tempo livre na sociedade brasileira, possibilitando o questionamento de como este tempo e as intervenções nele operadas se transformaram ao longo dos anos. Neste caso, ressalta-se que ainda são poucos os estudos históricos sobre o tempo livre no Brasil e em Minas Gerais, principalmente no período proposto por esta pesquisa. Vislumbra-se, ainda, a possibilidade de tensionamento dos limites deste termo quando tomado como conceito; quando testado em um contexto histórico concreto, situado em meio às relações complexas da sociedade brasileira, em que a própria noção de trabalho precisa ser tensionada. Notas 1 Segundo Corbin (2001), o ideal do trabalho pode ser considerado uma das principais marcas do século XIX. 2 Importante ressaltar que a Independência não suprimiu por completo as relações coloniais e a exploração, permanecendo intactas algumas características principais, como a produção agrária, a monocultura, a exportação e o trabalho escravo. 3 (GAMA, 1996, p. 191-192). Referências ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Folganças populares, festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Anablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG: FAPEMIG: FCC, 2008. BRASIL. Código criminal. Rio de Janeiro: Livraria Popular, 1830. Artigo 295, Quarta parte: Dos crimes policiaes, Capitulo IV: Vadios e mendigos. BRASIL. Código criminal. Rio de Janeiro: Livraria Popular, 1830. Artigo 281, Quarta parte: Dos crimes policiaes, Capitulo I: Offensas da religião, da moral e dos bons costumes. BRASIL. Lei de 1º de outubro de 1828. Coleção de leis do Brasil. Rio de Janeiro, 1828. 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