1 O JORNAL O UNIVERSAL E A EDUCAÇÃO DO TEMPO LIVRE NA PROVÍNCIA DE MINAS GERAIS (1825-1842) Sarah Teixeira Soutto Mayor Universidade Federal de Minas Gerais E-mail: [email protected] Palavras-chave: O Universal; Educação; Tempo livre. Introdução O anseio de rompimento do vínculo político com Portugal, expresso principalmente por uma elite desejosa de se beneficiar dos ideais capitalistas em voga no continente europeu e de livrar-se da dominação absolutista do Reino, propiciou um novo momento para a história brasileira. No entanto, o recém-Estado precisava ser (re) configurado e a entrada do Brasil em uma “modernidade desejada” esbarrava em um tipo de atraso cultural da maioria de sua população, referente a pouca aproximação aos costumes que se relacionavam a uma representação de civilidade europeia. O Brasil entrara no século XIX com uma grande contingente de analfabetos, entre escravos, mestiços, índios e homens pobres livres, características que comprometiam as “iniciativas em prol de um desenvolvimento social maior e melhorado” (MIZUTA; FARIA FILHO; PERIOTTO, 2010, p.10). Além disso, eram pouco aptos para o trabalho regular e disciplinado, como relata Kowarick (1994). De acordo com Silveira (1997, p.53), embora já houvesse um apelo ao refinamento dos costumes em períodos anteriores, “a estrutura do Império assistia à proliferação de práticas e ideias aparentemente pouco civilizadas”. As elites procuravam transformar a selvageria colonial, tornando generalizado “o apreço pela civilização e pelo controle dos impulsos mais espontâneos, distintivos do homem polido” (p.17). Neste contexto, percebe-se por meio da produção acadêmica que se ocupa da primeira metade dos oitocentos, certo consenso acerca da necessidade por parte das classes dirigentes de se criar um Estado que fosse capaz de romper com os laços coloniais e se inserir nos padrões de civilidade do velho continente. Para isso, era preciso educar a população para novos costumes e novas orientações morais. Mesmo compreendendo que épocas anteriores 2 também comportaram ações ordenadoras da vida social de acordo com suas demandas específicas, a urgência em torno da transformação de velhos hábitos da antiga colônia de exploração em formas mais aceitáveis e apuradas que fizessem jus a certa ideia de nação, demarca um momento singular e importante na história brasileira. Em meio ao reconhecimento das “deficiências” do Império, a instrução pública e a imprensa surgiram como importantes instâncias educativas. Como observam Faria Filho e Sales (2009, p.22), “foi no período pós-independência que o processo de escolarização foi grandemente impulsionado”. Os autores apontam a emergência de discursos proferidos pelos bacharéis, a fim de fundar “uma nova tradição, no momento mesmo em que pretendem fundar o Brasil e propor o caminho único para ordem, o progresso e a civilização: a educação do povo” (idem, p.26). Porém, como aponta Mizuta (2010), os estabelecimentos de ensino não foram criados em profusão na primeira metade dos oitocentos e o próprio reconhecimento da defasagem da proposta de escolarização, ainda pouco fundamentada e de insuficiente abrangência, depositou na imprensa uma grande possibilidade de educação do povo. Tratava-se, assim, de um momento histórico em que tanto escola quanto imprensa buscavam legitimidade como instâncias educativas (INÁCIO; SANTOS; JINZENGI, 2010). Segundo Lustosa (2000, p.29), os jornais não apenas noticiavam, mas “produziam acontecimentos”. Para Pallares-Burke (1998, p.147) o jornalismo foi um importante elemento para “transformar mentalidades arcaicas em ilustradas” e foi constantemente referido “como meio mais eficiente e poderoso de influenciar os costumes e a moral pública, discutindo questões sociais e políticas” (idem). Produzido em Ouro Preto, entre os anos de 1825 e 1842, o jornal O Universal foi escolhido para esta pesquisa por ser considerado um dos principais periódicos em circulação na província mineira na primeira metade do século XIX. Logo em sua primeira edição faziase presente a sua finalidade instrutiva e o seu propósito confesso de difundir leis e decretos aos leitores mineiros: porque meu fim he a illustração publica [...]. Preferirei sempre a publicação das Leis, Decretos, e Portarias, pois apezar de que estes objetos não agradem tanto, como devem, sua vulgarisação he da primeira necessidade, e todos os cidadãos devem procurar tão importante conhecimento1. Em outra publicação, defendia-se o jornal como meio de se “chegar ao conhecimento de grande número de factos e doutrinas, mais ou menos uteis e interessantes [...], e de contribuir de um modo muito notável para a educação do Povo” 2. Importante 3 ressaltar que o período de publicação do jornal O Universal coincide com algumas particularidades importantes para a investigação proposta, tais como a criação da Constituição do Império, em 1824, do Conselho Geral da Província 3, em 1825, e do Código Criminal, em 1830. Em meio às publicações referentes aos assuntos legislativos, este jornal também se pronunciava, com bastante afinco, acerca das formas “corretas” de se viver naquela sociedade, onde o cuidado com a instrução da população passava pela necessidade urgente de formação de indivíduos para o trabalho e para o progresso. Face à grande preocupação com a educação para a formação de cidadãos mais afeitos ao desenvolvimento econômico e à ideia de prosperidade que se almejava para a província mineira, esta pesquisa objetiva compreender como o tempo que se configurava fora dos processos considerados produtivos era abordado pelo jornal O Universal, ou seja, como o tempo livre se inseria no conjunto de preocupações com a educação no país, sem desconsiderar suas intrínsecas relações com a escolarização e o trabalho. Torna-se importante ressaltar a complexidade que envolve a utilização deste termo no contexto desta pesquisa. Torna-se imprescindível ressaltar certa imprecisão que um conceito gestado a partir da liberação do tempo de trabalho ou de outras obrigações formais pode incorrer. Neste caso, a situação vivenciada pelos escravos e por um grande contingente de libertos pobres (que também carregavam a condição de negros) chama a atenção para a complexidade do uso da expressão “tempo livre” em um Estado construído sobre a bandeira do liberalismo, mas que privava a maior parte de sua população de um dos pressupostos básicos do pensamento liberal: a possibilidade de ação individual (PRADO, 2001). Para além desta problemática, ainda é preciso considerar a insuficiência de definições sobre direitos trabalhistas, assim como falta de reconhecimento do tempo livre como um direito e uma necessidade. Por esse motivo, é importante ressaltar que o entendimento deste tempo não faz sentido se não estiver inserido em um momento histórico específico e, nesse caso, qualquer tentativa de enquadramento em conceitos pré-estabelecidos, pode ocultar as especificidades de cada período e forjar uma história, afeita a conceitos, mas pouco comprometida com as fontes. Consciente destes limites, o termo “tempo livre” será utilizado para denominar aquele tempo de alguma forma vivenciado para além das relações produtivas consideradas formais, a exemplo do trabalho e da escola. Um tempo que pode ser consentido e liberado das obrigações, mas também confrontado e disputado pelos indivíduos nos conflitos cotidianos entre domínio senhorial ou do empregador, leis e costumes, estabelecendo uma relação de oposição com as formas produtivas, sem, no entanto, desconsiderar o elo relacional entre elas. 4 O jornal O Universal e os perigos da liberdade do tempo Se, de fato, a preocupação com o tempo vivenciado para além das finalidades produtivas não é criação do período estudado, é possível inferir que o século XIX viveu particularidades importantes. Foi portador de um notório desenvolvimento científico e tecnológico, aliado, ainda, à comunicação comercial crescente entre os países. Nos dizeres de Peter Gay (1989, p.43) “as mudanças tornaram-se muito mais rápidas e irresistíveis do que havia sido no passado”, e é possível dizer que os ideais de progresso e de ideologia do trabalho chegariam a um Brasil ainda agrário e escravocrata, somados à necessidade de civilização de um contingente populacional diverso que estava distante da “modernidade” que urgia no pensamento e na ação de intelectuais e estadistas. Segundo Kowarick (1994, p.27), no final do século XVIII, quase metade da população brasileira era formada por indivíduos de várias origens sociais, por desenraizados “cujo traço comum residia na sua desclassificação em relação às necessidades da grande propriedade agroexportadora” e à ordem escravocrata, que concentrava e monopolizava os recursos econômicos. O autor ressalta que esta era situação comum entre os negros libertos, brancos pobres e índios, bem como dos grupos formados pela miscigenação dos mesmos, e aponta a existência de “indivíduos que viviam da mão para a boca, sem local fixo de moradia [...]” (p.27). Sobre a realidade mineira, Souza (2004, p.80) também relata um grande contingente de homens pobres livres, “afeitos ao trabalho assistemático e esporádico, sempre prestes a se tornarem desocupados”, em fins do século XVIII e início do século XIX. Atribuindo à ideologia da vadiagem “o olhar raivoso e desqualificador que as elites lançaram sobre o mundo do não-trabalho”, a autora (2004) denomina “desclassificado social” aqueles indivíduos pobres, frequentemente miseráveis e sem uma ocupação. Uma seleção de crônicas escritas pelo padre Lopes Gama no jornal pernambucano “O Carapuceiro”, publicadas na primeira metade do século XIX, oferece importantes compreensões sobre a preocupação com a ociosidade no período. Em um texto dedicado exclusivamente para tratar do “vadiismo”, Lopes Gama (1996, p.199), faz a seguinte consideração: “O vadiismo, pois, é o maior flagelo do nosso Brasil, cuja fertilidade concorre para a ociosidade. [...]. Se não nos ocuparmos o pensamento em coisas úteis, ela vagueará em objetos fúteis e dará alimento às paixões criminosas”. O padre conclui a sua crônica apostando no potencial de uma educação bem dirigida como forma de “infundir em nossa 5 mocidade o amor ao trabalho. Se boas leis policiais espancarem o vadiismo, então e só então poderá o nosso Brasil contar-se por bem morigerado e próspero” (p.200). Lopes Gama foi citado algumas vezes nas páginas do jornal O Universal, que também se preocupava bastante com uma educação “conveniente” capaz de fornecer à pátria “cidadãos laboriosos e probos” 4. O ensino das primeiras letras, segundo o jornal, teria grandes vantagens em todas as ocupações da vida, ao produzir “hum cidadão util, obediente e morigerado” 5. No entanto, o incentivo a “huma boa educação elementar” não deveria tirar das classes trabalhadoras o tempo “que he necessário que empreguem nos diferentes ramos de suas respectivas occupações” 6. O povo, de acordo com a publicação em questão, teria o direito de “reclamar aquella parte de instrução que he compativel com o resto de suas occupações” 7. Em outra edição do jornal, ao se defender o modelo de ensino inglês como melhor opção para o Brasil, expunha-se as preocupações vivenciadas naquele país, solucionadas pela criação de escolas para os distritos menores. Estas,“occupando utilmente o tempo destes meninos pobres, não somente lhes dá a instrucção em ler, escrever e contar [...]; mas impede que elles se habituem à ociosidade”8. Em outro trecho, defendia-se que o sistema de escolas “para os pobres” poderia salvar do “contágio dos vícios e dos perigos da ociosidade” 9. A recorrência aos malefícios do ócio e à ampla necessidade de ocupar os indivíduos desde a infância com atividades consideradas úteis, demonstra a grande preocupação com o tempo livre naquele período. Em relação às crianças, citam-se as “horas vagas” como aquelas que restam da escola, momento em que os pais já teriam voltado de seus empregos e poderiam “ter seus filhos debaixo de seus olhos”. Fora da escola, teriam a perigosa “opportunidade de associar pelas ruas, com quem lhes deprave os costumes [...]” 10. Neste caso, a escola para as crianças e o trabalho para os adultos compunham as atividades úteis, enquanto o tempo livre das ocupações representava a inutilidade e o perigo, determinando direcionamentos morais e ordenações legais, a fim de se reduzir e se disciplinar esse momento. Um importante exemplo é o “Regulamento de Providencias Policiais a respeito de escravos e taverneiros”, elaborado pelo Conselho Geral da Província de Minas Gerais em 1825 e publicado no jornal O Universal11. Composto por oito artigos, o Regulamento visava estabelecer normas de funcionamento das tavernas e coibir a presença de escravos nas mesmas. Só era possível abrir tavernas com a licença da Câmara, que cobrava um valor determinado. Os comandantes deveriam informar aos capitães mores o número de estabelecimentos de seus respectivos distritos e se estavam competentemente licenciados. O 6 artigo 7º regulamentava o funcionamento dos mesmos: “Em lugares remotos serão fechadas todas as tavernas ao anoitecer, e abertas ao amanhecer; nas Vilas e Cidades, depois da corrida do sino, como está em costumes” 12. Em relação à presença de escravos nas tavernas, tanto os mesmos quanto os taverneiros poderiam sofrer punições nas seguintes circunstâncias: o escravo que fosse achado em jogos, durante o dia ou à noite, seria preso e castigado com vinte e cinco açoites. Já o dono da taverna onde fosse encontrado o jogo de escravos seria multado nas três primeiras vezes e na quarta teria “cassada a licença para nunca mais vender naquelle districto”. Os donos também seriam multados caso fosse encontrado algum escravo “completamente embriagado” em seus estabelecimentos13. A preocupação específica do Regulamento com os jogos e a embriaguez fornece margem para questionar a existência de outros tipos de regulamentação que não se direcionassem apenas aos escravos, já que essas prerrogativas não compunham apenas um conjunto de ordenamentos legais, mas os alicerces da construção moral de uma sociedade. Em outra crônica, o padre Lopes da Gama (1996, p.414) defendia que a educação capaz de “fazer homens de bem” seria aquela que, dentre outras intenções, fosse capaz de afastar as pessoas “do ócio das praças e da corrupção das tavernas”. Importante destacar que dois anos depois, o redator do jornal O Universal denunciou que as leis do Regulamento não estavam sendo executadas, acusando a embriaguez e a desordem causada nas ruas 14 , o que evidenciava os incômodos ocasionados e as tensões estabelecidas entre as normativas e a vida cotidiana. Outra situação em que a desordem pública foi motivo de preocupação pela vivência de costumes ligados ao tempo considerado não-produtivo foi a publicação da proibição do entrudo. Este jogo ou festejo realizado nos dias precedentes à Quaresma foi duramente criticado pelo redator do jornal O Universal Vão se aproximando os dias em que o povo desenfreado, iludido por um divertimento bárbaro e que tantas desordens tem causado, e há de causar ao público, se ajunta às chusmas pelos chafarizes a atirar água a quantos passão; e outros com artífices laranjas cheias de águas cheirosas, insultam a toda qualidade de pessoas nas ruas [...]15 Diante de tais reclamações, o redator do jornal solicitou ao Conselho Geral da Província soluções para remediar “hum mal tão pernicioso à sociedade” 16, para o bem geral dos cidadãos. Considerava o entrudo um vício arraigado e ao reconhecer a dificuldade de “arrancá-lo” do povo, solicitava penas civis, “capaz de contê-lo na sua desenvoltura e fazê-lo seguir uma marcha regular pelo caminho direito” 17. Segundo o requerente, “de nada valem os 7 meios brandos e as carícias para extirpar costumes que há longos séculos estão em uso [...] 18 ”. Logo após as solicitações do redator, publicou-se algumas determinações do Conselho Geral da Província acerca do “pernicioso abuso e inveterado costume de hum divertimento que se denomina ‘O Entrudo’ para o bem dos povos dessa província” 19 . Em uma delas, estabelecia-se a punição para aqueles que continuassem com o costume: Art. 1º - Toda pessoa, de qualquer estado, sexo, ou condição que seja, que se encontrar pelas ruas a jogar o entrudo, será immediatamente recolhido à cadêa, onde ficará até que se findem os 3 dias de entrudo: isto se estende aos que forem maiores de 12 annos, porque os meninos até essa idade serão punidos com 10 chibatadas pela primeira vez, 15 pela segunda, e se forem pertinazes que ainda se encontrem terceira vez levarão 20, e serão recolhidos à cadêa pelo mesmo espaço de tempo20. Por meio das normativas e da grande preocupação do redator do jornal O Universal com a forma de divertimento que o entrudo representava, é possível pensar relações entre os ideais de civilidade que se almejam na construção de uma província mais afeita às “luzes do século” 21 . Os costumes do tempo livre significavam, facilmente, o tempo da desordem, sobretudo, os vivenciados pelas camadas mais pobres no espaço público. Sobre as crescentes inquietações que se gestavam em torno desse espaço, vale ressaltar a Lei de 1º de Outubro de 1828, que conferia nova forma às Câmaras Municipais. As posturas dos municípios passaram por processos de reformulação, tendo a seu cargo tudo o que dizia respeito à polícia e economia das povoações22. De acordo com Araújo (2008, p.72) “a reorganização das ações que competem às câmaras e suas funções marcam decisivamente um momento sintomático de transformações do espaço público das cidades e de sua população”, onde “a preocupação com o controle das relações sociais no espaço urbano era claramente perceptível” (p.74). Por exemplo, em se tratando das normatizações empregadas no tempo livre, as câmaras poderiam autorizar “espectaculos publicos nas ruas, praças e arraiaes, uma vez que não offendam a moral publica, mediante alguma gratificação para as rendas do Conselho, que fixarão por suas posturas” 23. Em um dos artigos do jornal O Universal, que visava elucidar alguns pontos da Lei de 1º de Outubro, julgava-se que a nova lei havia aperfeiçoado o antigo regime das Câmaras Locais, de acordo com as “idéas das Nações cultas 24”. Uma das expectativas era não deixar “aumentar entre nós a vadiação, o roubo e todos os mais crimes da ociosidade” 25. 8 Silva (2005) relata que havia a pretensão de se criar no município de Ouro Preto, capital da província mineira, uma “casa de correção para vadios e ociosos”, mencionada em uma das atas do Conselho Geral da Província, no ano de 1828. Segundo a autora, havia o intuito de separar os indivíduos probos dos vadios, criminosos e desordeiros. Em uma das edições do jornal O Universal, do ano de 1829, foi apresentada a proposta de criação de “Cazas de Correcção e trabalho” 26. Haveria uma casa para cada uma das cinco Comarcas da Província e os presos seriam distribuídos em diversas classes, “segundo a idade, o grao do crime, e a perversidade que mostrarem, e à vista da aplicação, e dos signaes de arrependimento que derem” 27. Também, segundo a publicação, os presos deveriam trabalhar nas casas, não sendo permitido o jogo e o fumo, e seriam obrigados a ouvir a missa e rezar o terço nos domingos e dias santos 28. Embora muito se escrevesse sobre a preocupação com a vadiagem e o ócio – potenciais inimigas do ideal de trabalho e de progresso – somente em 1830 esta passa a ser citada na legislação brasileira, na composição do Código Criminal do Império. Este possuía um capítulo destinado exclusivamente para o enquadramento da população desocupada nas leis recém-criadas. O capítulo IV discorria sobre “Vadios e mendigos”. No artigo 295 lia-se como crime: “Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e util, de que possa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz [...]” 29. Sobre a prática do jogo, o capítulo que dispunha sobre “Offensas da religião, da moral e dos bons costumes” estabelecia a seguinte infração: “ter casa publica de tabolagem para jogos, que forem proihibidos pelas posturas das Camaras Municipaes” 30 . Ao estudar a capital do Império, Souza (2010, p.155) chama atenção para a proibição dos jogos em que se apostavam dinheiro, pois esta prática de divertimento poderia levar os indivíduos à “degradação física, financeira e familiar, em decorrência das paixões e comoções que provocava ou por conta do vício que incitava”. O jogo de azar contrariava, segundo a autora, a moral e os bons costumes pretendidos pela “boa sociedade”. Também o padre Lopes Gama (1996, p.136) se encarregou de condenar a paixão pelo jogo. Segundo ele, “o homem que se entrega ao hábito do jogo é um inútil para o Estado, para seus semelhantes e para si próprio [...]”. Diante das questões apresentadas, foi possível perceber pensamentos e formas de intervenção que se dirigiam ao tempo livre, aliados à condenação e/ou regulamentação de alguns costumes, como os jogos, o entrudo, a presença nas tavernas, o consumo exagerado de bebida alcóolica e a realização de espetáculos. A grande preocupação com o tempo nãoprodutivo e com a necessidade de enquadrar os vadios e os ociosos no ideal de trabalho 9 oferece possibilidades para pensar como o tempo vivenciado fora dos limites da produção era compreendido. Em um contexto em que a desocupação se mostrou um grave problema, torna-se relevante pensar possíveis associações entre o tempo livre e os perigos do mundo do nãotrabalho e de outras obrigações, como a escola e outras propostas institucionalizadas. Da mesma forma, implica pensar como foram construídos pensamentos e gestadas intervenções que delegaram a alguns costumes o peso do imoral, do incivilizado e do perturbador, em uma sociedade na qual “o império da ordem e da disciplina social seriam questões caras ao seu desenvolvimento” (MIZUTA; FARIA FILHO; PERIOTTO, 2010, p.11). Assim, as intensas transformações na organização social, ocorridas na temporalidade desta pesquisa e marcadas, principalmente, pela necessidade de construção de uma nação, pelo ideário de progresso, pela crença no valor do trabalho e da escola e pela civilidade, são condições de suma importância para compreender o lugar ocupado pelo tempo livre, considerando o contexto brasileiro de condenação à desocupação, bem representado nas páginas do jornal O Universal. Considerações finais Ainda em andamento, esta pesquisa tem possibilitado a compreensão de ações regulamentadoras referentes aos perigos do caráter “não-produtivo” do tempo livre. Da mesma forma, tem possibilitado pensar a autorização ou desautorização de determinadas práticas como importantes elementos para problematizar um processo de seleção e transmissão de saberes. Novas compreensões acerca dos processos educativos colocados em prática no século XIX, sobretudo no contexto pós-independência e de afirmação da nação, podem, assim, ser oferecidas. Compreendendo o tempo livre com uma das formas de transmissão da cultura e constatando a pouca abordagem de suas possibilidades formativas na História da Educação, corrobora-se com Pallares-Burke (1998, p.145), para quem outras modalidades, além das consideradas formais, podem dizer muito sobre “o modo complexo pelo qual as culturas são produzidas, mantidas e transformadas”. A autora, referindo-se ao século XIX, relata a existência de outros agentes em plena atividade que “competiam pela transmissão dos valores culturais em circulação e que devem ser considerados atentamente se se quiser recuperar, com maior fidelidade, a história da educação brasileira [...]” (idem, p.158). 10 Ainda, novos parâmetros podem ser pensados para a compreensão da constituição histórica do tempo livre na sociedade brasileira, possibilitando o questionamento de como este tempo e as intervenções nele operadas se transformaram ao longo dos anos. Neste caso, ressalta-se que ainda são poucos os estudos históricos sobre o tempo livre no Brasil e em Minas Gerais, principalmente no período proposto por esta pesquisa. Vislumbra-se, ainda, a possibilidade de tensionamento dos limites deste termo quando tomado como conceito; quando testado em um contexto histórico concreto, situado em meio às relações complexas da sociedade brasileira, escravocrata, patriarcal e extremamente excludente, em que a própria noção de trabalho precisa ser tensionada. Referências ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Folganças populares, festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Anablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG; FAPEMIG; FCC, 2008. FARIA FILHO; Luciano Mendes; SALES, Zeli Efigênia Santos de. Escolarização da infância brasileira: A contribuição do bacharel Bernardo Pereira de Vasconcellos. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de; INÁCIO, Marcilaine Soares (orgs.). Políticos, literatos, professoras, intelectuais: O debate público sobre educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009. GAMA, Lopes. O carapuceiro: crônicas de costume. São Paulo: Companhia das letras, 1996. GAY, Peter. 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Nº 1, 18 de julho de 1825, p.4. 8 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 3, 22 de julho de 1825, p.12. 9 Idem. 10 Idem. 11 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 13, 15 de agosto de 1825, p.1. 12 Idem. 13 Idem. 14 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 236, 22 de janeiro de1827. 15 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 86, 01 de fevereiro de 1826, p.342. 16 Idem. 17 Idem. 18 Idem. 19 Idem. 20 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 86, 01 de fevereiro de 1826, p.343. 21 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 531, 13 de dezembro de 1830, p.3. 22 BRASIL, Presidência da República. Lei de 1º de Outubro de 1828. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LIM/LIM-1-10-1828.htm. Acesso em: 10/04/2012. 23 BRASIL, Presidência da República. Lei de 1º de Outubro de 1828. Parágrafo 12, título III, Posturas Policiaes. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LIM/LIM-1-10-1828.htm. Acesso em: 10/04/2012 24 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 243, 30 de janeiro de 1829, p.2. 25 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 243, 30 de janeiro de 1829, p.3. 26 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 250, 16 de fevereiro de 1829, pp. 1. 27 O UNIVERSAL, Ouro Preto. Nº 250, 16 de fevereiro de 1829, pp. 1-2. 28 Idem. 2 12 29 BRASIL, Código Criminal. Artigo 295. Quarta parte. Dos crimes policiaes. Capitulo IV – Vadios e mendigos, 1830. 30 BRASIL, Código Criminal. Artigo 281. Quarta parte. Dos crimes policiaes. Capitulo I - Offensas da religião, da moral e dos bons costumes, 1830.