CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens
MARLON NUNES SILVA
O CORPO HIPER-REAL EM CRASH: ESTRANHOS PRAZERES, DE DAVID
CRONENBERG
Belo Horizonte
2014
2
MARLON NUNES SILVA
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens
O CORPO HIPER-REAL EM CRASH: ESTRANHOS PRAZERES, DE DAVID
CRONENBERG
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação Stricto Sensu
–
–
–
Estudos de Linguagens.
Área de Concentração: Processos Discursivos e
Tecnologias
Orientadora: Profa. Dra. Olga Valeska Soares
Coelho
Coorientador: Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de
Sousa Boaventura
Belo Horizonte
2014
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Ser maior que, em um sopro, me fez espírito e matéria e às energias
cosmológicas que contribuíram para a empreitada.
À minha mãe, Zulmira Paiva Nunes, em especial, pela presença constante e
demasiada amizade.
Ao meu pai, Carlos Nílton Ferreira da Silva, que mesmo espacialmente distante,
se faz presente.
À minha irmã Carla Nunes da Silva Andrade e sua família que, com amizade,
ajudam em vários momentos.
À companheira Profa. Mestre Ana Carolina Teixeira Santos, que, com sabedoria
e paciência colaborou consideravelmente para a realização deste trabalho.
À minha Orientadora, Profa. Dra. Olga Valeska Soares Coelho, pela concedida
liberdade de pesquisa.
À Profa. Dra. Ângela Vieira Campos por compor a banca.
Ao meu Coorientador, Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Sousa Boaventura, pelas
contribuições finais.
Ao Prof. Dr. João Batista Santiago Sobrinho, pelos livros emprestados, diálogos
trocados, o parecer favorável do projeto, e por aceitar o convite para integrar a banca
examinadora.
Ao Prof. Dr. Paulo César Ventura pelas ideias, convites e estágio. Além disso,
pelo reconhecimento da minha tentativa poético-musical.
Ao Prof. Dr. Verlaine Freitas pelo parecer favorável, pelos comentários, pelo
parecer favorável do projeto e por aceitar o convite para integrar a banca examinadora.
Aos professores e funcionários do POSLING, em especial, à Sandra, sempre
muito receptiva.
Aos colegas do mestrado por compartilharem experiências únicas.
Aos colegas dos grupos de pesquisa: Tecnopoéticas e Literatécnica pelos textos
e práticas compartilhadas.
Aos amigos do projeto Pão & Poesia pelos trabalhos desenvolvidos.
Aos amigos da Academia Contagense de Letras.
Ao amigo Prof. Mestre Jean Américo Cardoso, pelos diálogos.
Aos amigos, Eduardo Dias e Davidson Carvalho, companheiros de composições
da Metamorfone, nossa banda, por proporcionarem momentos tão prazerosos nos
estúdios e palcos.
Aos meus familiares.
4
RESUMO
SILVA, Marlon Nunes. O corpo hiper-real em Crash: Estranhos prazeres, de David
Cronenberg. 117 p. 2014. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Estudos de Linguagens, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2014.
O objetivo da pesquisa é demonstrar o processo de reversibilidade do corpo, de
orgânico para inorgânico, passando pelas metáforas de máquina, a ele atribuídas, até o
seu desaparecimento nas biotecnologias, tomando como justificativa e elemento
elucidativo o filme Crash, estranhos prazeres, de David Cronenberg. O automóvel
demonstra o meio como fim e o corpo refém da técnica vai de orgânico para inorgânico
numa relação fáustica, sem limites e aparentemente irreversível que se aprofunda a cada
instante de desenvolvimento da linearidade da razão. Este trabalho partiu de uma
abordagem teórico-analítica fenomenológica e comparativa para examinar a
representação do desastre automobilístico, elemento fundamental de Crash. Com esse
objetivo, investigou-se como esse tipo de acidente juntamente com os elementos a ele
associados são retratados no filme. Para tanto, foram essenciais as concepções de Jean
Baudrillard acerca do conceito de hiper-realidade, por meio das quais, buscou-se
responder alguns question
no espetáculo da destruição e a
estética proporcionada pela mistura entre corpo e tecnologia? O corpo, de metáfora
maquínica, vai em direção à transcendência funcional? A produção contínua de modelos
de simulação coloca os corpos diante de imagens que afunilam as subjetividades na
sociedade globalizada e a ficção possui papel fundamental para a continuidade desse
processo.
Palavras-chave: acidente; simulacros; hiper-realidade; sexualidade.
5
ABSTRACT
SILVA, Marlon Nunes. The hyper-real body in Crash, by David Cronenberg. 117 p.
2014. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de
Linguagens, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2014.
The objective of the research is to demonstrate the process of reversibility of the body,
from organic to inorganic, passing by the metaphors of machine, to it attributed, until its
demise in biotechnologies, using as justification and explanatory element the movie
Crash of David Cronenberg. The automobile presents the means as end and the body as
hostage of the technique goes from organic to inorganic in a Faustian relationship,
boundless and seemingly irreversible, deepen itself at every moment of the linearity of
reason development. This work started from a theoretical analytical phenomenological
and comparative approach to examine the representation of automobilistic disaster, a
fundamental element of Crash. With this purpose, we investigate how this type of
accident, together with the elements associated to it, are portrayed on the movie. For
this analysis, were essential the conceptions of Jean Baudrillard about the concept of
hiperreality, by which, it was looked to answer some questions: what is so fascinating
about the spectacle of destruction and the aesthetics caused by the blending of bodies
and technology? The body, of machinic metaphor, goes toward the functional
transcendence? The continuous production of simulation models puts the bodies in
front of images that tape the subjectivities in a globalized society and the fiction has a
key role to the continuity of this process.
Keywords: accident; simulacra; hyperreality; sexuality.
6
LISTA DE FIGURAS1
Figura 1 – Cena do filme Crash.
Figura 2 – Cena do filme Crash.
Figura 3 – Cenas do filme Crash.
Figura 4 – Cena do filme Crash.
Figura 5 – Cenas do filme Crash.
Figura 6 – Cenas do filme Crash.
Figura 7 – Cenas do filme Crash.
Figura 8 – Cena do filme Crash.
Figura 9 – Cena do filme Crash.
Figura 10 – Cena do filme Crash.
Figura 11 – Cena do filme Crash.
Figura 12 – Cena do filme Crash.
Figura 13 – Cenas do filme Crash.
Figura 14 – Cena do filme Crash.
Figura 15 – Cena do filme Crash.
Figura 16 – Cena do filme Crash.
Figura 17- Cenas do filme Crash.
Figura 18 – Cenas do filme Crash.
1
52
55
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61
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75
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94
104
JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. Trad. Magda Lopes. São Paulo:
Editora Senac, 2009. Os termos, técnico- cinematográficos foram retirados da obra de Jullier e Marie.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 9
PARTE I: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS ....................................................................... 26
1.1 DA REVERSIBILIDADE ....................................................................................................................... 26
1.1.1. O deslizar da simulação: um breve histórico do corpo na técnica ........................................... 26
1.2 MATERIALIZAÇÃO PARA ALÉM DO CORPO, A DO ESPÍRITO................................................................. 33
1.3 AMPLEXOS DA SIMULAÇÃO: A FERTILIDADE DA REPRODUÇÃO DOS CORPOS SIMULACROS ................ 40
1.4 O CORPO E A BENDITA VELOCIDADE DA LUZ ESPETACULAR .............................................................. 45
PARTE II: CRASH: ESTRANHOS PRAZERES ................................................................................. 50
2.1 O CORPO HÍBRIDO EM CRASH: CORPO E TECNOLOGIA ....................................................................... 50
2.2 A CONTÍNUA RENTABILIDADE ESPETACULAR DO CORPO ................................................................... 64
2.3 CAVANDO A PRÓPRIA COVA: O CÉLEBRE NO LUGAR DOS DEUSES ...................................................... 68
2.4 TÉCNICA, SEDUÇÃO E O TERROR: A DERROCADA CORPORAL-AUTOMOBILÍSTICA NAS CIDADES ........ 71
2.5 O PROJETO DE VAUGHAN: UM FAUSTO EM CRASH ........................................................................... 74
PARTE III: CRASH: A MÁGICA REVERSÃO E O APROFUNDAMENTO IRREVERSÍVEL .. 83
3.1 O GOZO MAIS QUE PATOLÓGICO: AS RUÍNAS PROTÉTICAS DA CONFUSÃO CONTEMPORÂNEA ............. 83
3.1.1 Do masoquismo à funcionalidade total – o corpo sistema ........................................................ 91
3.2 O MEIO É O FIM DA PASSAGEM DRIVE-THRU ..................................................................................... 94
3.2.1 Enfim, a morte da ficção científica ........................................................................................... 98
3.2.2 O presságio do virtual em Crash ............................................................................................. 101
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................ 105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. 112
8
Quando o último litro de energia tiver sido
consumido (pelo último ecologista), quando o
último indígena tiver sido analisado (pelo
último etnólogo), quando a última mercadoria
tiver sido produzida pela última força de
trabalho que reste, quando a última fantasia
tiver sido elucidada pelo último analista,
quando tudo tiver sido libertado e consumido
com a última energia, então dar-nos-emos
conta de que esta gigantesca espiral da energia
e da produção, do recalcamento e do
inconsciente, graças ao qual se conseguiu
encerrar tudo numa equação entrópica e
catastrófica, que tudo isto é, com efeito, apenas
uma metafísica do resto, e esta será resolvida
de repente em todos os seus efeitos
Jean Baudrillard (1991, pp.
180-181)
9
INTRODUÇÃO
O homem é um animal que mede
Nietzsche
O objeto e as metodologias
Nietzsche se interessa pouco sobre o que se
passa depois de Platão, estimando que é
necessariamente a sequência de uma longa
decadência
Deleuze
A comparação
É preciso informar antes de tudo que esta é uma análise sócio-filosófica dos
fatos representados em Crash e que podem como veremos mais à frente, ser
comparados com a suposta realidade na qual vivemos. É preciso enfatizar que o objetivo
da pesquisa não foi analisar o trânsito intersemiótico entre as mídias, mas sim, estudar
algumas das condições que fazem do corpo um ambiente tecnologizado. Mesmo que a
pesquisa também não realize diretamente uma comparação entre as mídias, ou seja:
livro e cinema; preferiríamos assim, se fosse o caso, a visão comparativista de Tânia
Franco Carvalhal (2006). Pois em alguns momentos serão utilizadas passagens do livro
Crash ou opiniões do seu autor, James Graham Ballard2, assim como a análise feita por
Baudrillard sobre o livro Crash.
A comparação realizada na pesquisa é mais questão de comprovar que o
conteúdo do filme contribui para as análises de Baudrillard sobre a hiper-realidade tanto
quanto do cotidiano vivido nas autoestradas. É mais a comparação da vida com a ficção,
que propriamente a passagem de um suporte para outro, mesmo porque é possível
considerar que nos sentidos, filosófico e semiótico, o filme de David Cronenberg
cumpre com a mensagem do livro de J.G. Ballard. “Comparar [...] faz parte da estrutura
de pensamento do homem e da organização da cultura. [...] valer-se da comparação é
2
O personagem principal de Crash recebe o nome do autor do livro. Portanto, para os direcionamentos
feitos ao personagem durante a pesquisa será utilizado o sobrenome do autor, ou seja: Ballard. Quando
for utilizado o nome do autor do livro Crash seu nome virá da seguinte forma: J.G. Ballard.
10
hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano e mesmo na linguagem”
(CARVALHAL, 2006, p. 06). Ainda para Carvalhal (2006, p. 06), a comparação não é
um método específico, mas um procedimento que favorece a generalização ou a
diferenciação. É um ato do pensar diferencial paralelo a uma atitude totalizadora. O que
fizemos então foi uma análise que se baseia nas três visões: a do filme, a do livro e a de
Baudrillard, além dos fatos do cotidiano. Não pretendemos ficar apontando o que uma
ou outra têm ou não têm, mas identificar que o aspecto totalizador da mistura entre
corpo e tecnologia pode ser observado semelhantemente nas três visões.
Crash e Baudrillard
Lançado em 1996, Crash3, é um filme de origem britânico-canadense dirigido
por David Cronenberg. Desde sua primeira exibição no Festival de Cannes em 1996,
Crash, estranhos prazeres,4 gerou certo desconforto tanto para o público quanto para os
críticos. Em alguns causou espanto, em outros, distanciamento, e, ainda, alguma
magnificência. Rosângela Fachel de Medeiros (2013, pp. 57-58) em sua dissertação de
mestrado intitulada CRASH, romance e filme, expressão máxima da representação do
desastre automobilístico em manifestações artísticas, cita o trecho de uma matéria do
jornalista e crítico de cinema Luiz Carlos Merten de 03 de agosto de 1997:
Qualquer que seja a escolha do júri para o melhor filme (...), uma
ticos, Crash
49º Festival
de Cannes. Recebeu uma vaia fenomenal (...). Isso não impediu que a
coletiva (...) fosse concorridíssima. Jornalistas de todo o mundo
lotaram a sala, levando organizadores a transferir a entrevista para um
local maior. Havia perto de 800 pessoas. Todas queriam ouvir a
explicaçã
. Quase
convence o espectador de que assistiu a uma verdadeira obra de arte.
(...) Se o seu filme for um vitorioso (...) será uma grande surpresa.
(MERTEN apud MEDEIROS, 2013).
Segundo o catálogo da mostra de cinema, Cinema em Carne Viva, David
Cronenberg5 (2013) após ganhar prêmios com outros filmes com temas próximos a
3
No livro a história acontece em Londres e no filme a história se passa em Toronto, Canadá.
Durante o decorrer da pesquisa o nome do filme será escrito apenas como Crash, que em inglês significa
colisão, choque.
5
CINEMA em carne viva: David Cronenberg. São Paulo. [2011]. Disponível em:
<http://www.carneviva.com/>. Acesso em: 28 de setembro de 2013.
4
11
Crash, a saber: eXistenZ, A Mosca, Videodrome, Gêmeos: mórbida semelhança, etc., o
cineasta se debruçou sobre Crash. Com Holly Hunter, James Spader, Elias Koteas,
Deborah Unger e Rosanna Arquette no elenco, o filme gerou polêmica em escala
internacional. Ganhou o prêmio do júri do Festival de Cannes de 1996 por sua audácia e
inovação, e cinco Genies para o melhor diretor, roteiro adaptado, direção de imagem,
edição e edição de som. Além desses, ganhou o prêmio Golden Reel concebido para os
filmes canadenses de maior bilheteria.
O conteúdo de Crash é interessante para se pensar as condições de existência
contemporâneas e suas relações com o desenvolvimento tecnológico, mais
especificamente, os aspectos relativos ao trânsito e os elementos que fazem parte do
universo automobilístico e suas tecnologias; e do potencial de sedução exercido pela
tecnologia em forma de simulacros sobre a subjetividade do corpo. Para acompanhar
esses movimentos, é preciso, de acordo com Agamben (2009, p. 62), ser
contemporâneo6.
A análise de Crash possibilitou a reflexão sobre o conceito de corpo tendo em
vista sua relação com a tecnologia na sociedade de produção/consumo/informação: “[ ]
seja em que cultura for o modo de organização da relação ao corpo reflecte o modo de
z
õ
” (BAU R
AR
1995
136). As análises radicais de Baudrillard demonstram que a suposta realidade na
sociedade informacional é pré-determinada, em sua maioria, por modelos midiáticos
construídos pela publicidade de acordo com objetivos mercadológicos dentro do
contexto de expansão da Nova Ordem Mundial.
Entendemos a radicalidade de Baudrillard, tanto quanto o filme de Cronenberg,
como formas de denúncia do sistema tecnocrático e ao mesmo tempo afirmação da vida,
pois ao apontarem um problema na relação homem-tecnologia, suscitam no mínimo,
reflexões sobre as condições de existência. Baudrillard (1991, p. 199) afirma que já se
encontram vestígios desta radicalidade no modo de desaparecimento da escola de
Frankfurt em obras como: Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos de
Adorno e Horkheimer e A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica de
Walter Benjamin (BAUDRILLARD, 1991, p. 199). Baudrillard chega a comparar seus
6
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros escritos. Trad. Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó: Argos, 2009. “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele
perceber não as luzes, mas as sombras. É contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século e
consegue misturar nessas, a sombra” (AGAMBEN, 2009, p. 62).
12
escritos com o terrorismo e denomina-se, ironicamente, um terrorista que utiliza as
palavras como instrumento para ferir teoricamente o sistema assim como aqueles
homens que explodem seus corpos na tentativa de ferir fisicamente o sistema, sendo
essa, uma tentativa sua de abalar o sistema que também se utiliza do terror, mas, como
forma de controle. O sistema beneficia-se de fatos ruins para exibir o máximo de
violência na tentativa de amedrontar e assim controlar a população, mas no fim o que
resta mesmo é o vazio, o caos e, paradoxalmente, o descontrole social.
Contra esta hegemonia do sistema podem exaltar-se as astúcias do
desejo, fazer a micrologia revolucionária do quotidiano, exaltar a
deriva molecular ou mesmo fazer a apologia da culinária. Isto não
resolve a imperiosa necessidade de fazer fracassar o sistema na
claridade plena. Isso, só o terrorismo o faz. Ele é o vestígio de
reversão que apaga o resto [...]. [...] eu sou terrorista [...] em teoria,
como os outros o são pelas armas. (BAUDRILLARD, 1991, p. 200)
O interesse por Crash surgiu devido à leitura da análise do filósofo, sociólogo e
poeta Jean Baudrillard, referência central desta pesquisa, no livro Simulacros e
simulação, sobre o livro homônimo de James Graham Ballard. A leitura da análise de
Baudrillard foi realizada durante alguns questionamentos relativos ao hibridismo
corpo/tecnologia e levantamentos sobre o aprofundamento de condições que dizem
respeito à técnica (que na época, vinham sendo suscitados pela leitura de textos do
filósofo alemão, Martin Heidegger). Dessa forma, foram identificadas congruências
entre alguns conceitos importantes sobre a relação corpo/tecnologia, a saber: corpo,
consumo, hiper-realidade, sedução e prótese. Conceitos que fazem parte do universo
desta pesquisa, assim como outros não menos importantes que contribuíram para a
argumentação.
Partindo desses pressupostos, pretendeu-se o exame das análises de Baudrillard
tomando como objeto de análise o filme Crash, enfatizando os seguintes aspectos: a
tecnologia representada pelo carro e o desencantamento do mundo, elementos
fundamentais do filme. Também se fez necessária a discussão de alguns valores que
fundamentam as relações científicas durante a história, valores que dão caráter de
verdade à visão científica baseada em preceitos metafísicos. Além disso, investigou-se o
papel da sedução exercida pelos simulacros na constituição dos processos de formação
de corpos e linguagens que reduzidos a códigos (DNA), podem não passar de
13
informação estocada, reproduzida e consumida. Para tal empreitada foi utilizada a
fenomenologia do consumo realizada por Baudrillard:
Na fenomenologia do consumo, a climatização geral da vida, dos
bens, dos objectos, dos serviços, das condutas e das relações sociais
representa o estádio completo e consumado na evolução que vai da
abundância pura e simples, através dos feixes articulados de objectos,
até o condicionamento total dos actos e do tempo, até à rede de
ambiência sistemática inscrita nas cidades futuras que são os
drugstores, [...] ou os aeroportos modernos. (BAUDRILLARD, 1995,
p. 19)
Verifica-se com essa citação que, para Baudrillard, o consumo passou da
acumulação pura e necessária para a condição supérflua, desde os objetos em si até os
comportamentos, Baudrillard os denomina climatizados em referência aos aparelhos de
ar condicionado. O filósofo utiliza-se dessa metáfora para explicar a artificialização da
vida contemporânea, que se estende pelas redes de comunicação, sejam na forma de
estradas ou de fios. Climatização que, como outros fatores tecnológicos, integra os
aspectos da vida orgânica, confundindo-se com a própria organicidade.
Daí partirmos para Crash, pois o projeto nele inscrito é o de um corpo já não
mais tão orgânico. O corpo misturado à técnica representada pelos automóveis
confunde-se ao emaranhado de sistemas menores que fazem do modo de produção
capitalista, um sistema maior integrado em todas as suas instâncias. Partindo da ideia de
que em Crash o acidente automobilístico e o sexo constituem determinadas fontes de
gozo, Baudrillard (1992, p. 46) afirma que seria necessária uma genealogia da razão
sexual tal como fez Nietzsche com a moral judaico-cristã “
x
não é parte da realística ocidental, da obsessão própria da nossa cultura de estabelecer
instânci
z
?” (BAU R
AR
1992
46)
Estaríamos materializando o sexo, o espírito... É a observação sobre essa materialização
da vida que dá margem para os advindos questionamentos.
Sendo assim, recorremos também à genealogia: para Jean Lefranc (2010, p.
135), a origem aqui é fundamento, como são as genealogias divinas. A genealogia
conduziria a reencontrar a origem, fazer aparecer significações e novas semelhanças,
assim a genealogia diria mais que a história. Francisco Menezes Martins (2012) afirma
no artigo Fragmentos de inspiração cool memories: Baudrillard e o devir pósnietzscheano produzido para a revista eletrônica Razón y Palabra que muitas ideias
14
formuladas por Nietzsche poderiam ter sido pronunciadas por Baudrillard e o inverso
também. Porém, é no estilo e acidez extemporâneos que ambos se encontram para
conjugar a crítica do homem e seus valores.
A partir dessa conceituação foi colocada em questão, na análise de Crash, o
“
cálculo da vida, dos bens e objetos, assim
” (BAU R
design
ARD, 1991, p. 82). O
cálculo proporcionado pelo discurso do progresso científico sem limites, fáustico em
relação à organicidade, logo, a transcendência (não no sentido religioso, mas no sentido
de mutação: de orgânico para inorgânico) do corpo humano em algo que ainda não
sabemos o que será. Paula Sibilia (2002, p. 13), seguindo as reflexões de Hermínio
Martins, esclarece a transição da visão prometéica7 para a fáustica: esse projeto fáustico
“
â
” ( B
A 2002
14) A primeira utiliza-se da tecnologia como
extensão gradativa das capacidades do corpo, guardando assim determinado respeito ao
que é humano e divino. Já a corrente fáustica enxerga a tecnociência como forma de
transcendência da condição orgânica em níveis espaciais e temporais.
Marshall Berman (1986, p. 39) descreve que nos quatro séculos que nos separam
do Faustbuch de Johann Spiess, de 1587, e da História Trágica do Doutor Fausto, de
Christopher Marlowe, de 1588, a história tem sido contada inúmeras vezes, em várias
línguas em todos os meios conhecidos. A história de Fausto provou ser irresistível para
muitos artistas. “Em todas as versões [...] Fausto perde o controle sobre suas energias
mentais, que a partir daí adquirem vida própria, dinâmica e altamente explosiva”
(BERMAN, 1986, p. 39).
Em estudos sobre as categorias dos simulacros Baudrillard (1991, p. 151)
também enuncia, à sua maneira, a passagem da visão prometéica para a fáustica: a
primeira categoria de simulacros corresponderia ao imaginário da utopia; a segunda, de
objetivo prometéico, corresponderia à ficção científica; e sobre a terceira ele questiona
ironicamente se haveria imaginário que a respondesse. Ou seja, a falta de respostas é
7
JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ª ed. Jorge Zahar Editor. Rio de
Janeiro. 2001. Prometéico - Adjetivo derivado de Prometeu, personagem da mitologia grega que, tendo
roubado o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens, foi acorrentado como castigo no monte Cáucaso.
Diz-se, em geral, das pretensões humanas que, de alguma forma, buscam superar os limites da condição
humana e igualar-se aos deuses; e também, das tentativas do homem de superar a si mesmo através da
ciência e da técnica para dominar a natureza.
15
condição análoga à falta de limites, implicando também os questionamentos de
Baudrillard sobre as condições fáusticas das tecnociências.
Tempo, espaço e corpo refletindo agora o fáustico, seriam reduzidos à
artificialização que ocorre no interior dos shoppings e drugstores. Fenômeno que
representaria
“
z
ções, a homogeneização social e a sexualidade no
” (BAUDRILLARD, 1991, p. 82). Espaços híbridos
ambiente hermafrodita
tanto quanto os modelos de corpo que os refletem fazendo desaparecer gradualmente a
esfera do natural tanto quanto a função simbólica, restando a combinação e a
substituição de objetos por mais objetos numa continuidade ilimitada, representada em
Crash pelo processo destrutivo dos corpos e dos automóveis. Baudrillard (1995)
justifica seu interesse pelas condições do consumo do corpo em seu texto O mais belo
objecto de consumo: o corpo, que integra a sua obra A sociedade de consumo:
O que pretendemos mostrar é que as estruturas actuais da
produção/consumo induzem no sujeito uma dupla prática, conexa com
a representação desunida (mas profundamente solidária) do seu
próprio corpo: o corpo como CAPITAL e como FEITIÇO (ou objecto
de consumo). Em ambos os casos, é necessário que o corpo, longe de
ser negado ou omitido, se invista (tanto no sentido econômico como
na acepção psíquica do tempo) com toda a determinação.
(BAUDRILLARD, 1995, p. 137)
Esse trecho demonstra o corpo metaforizado como matéria, tempo e valor-signo.
O corpo antes de ser negado deve ser integrado e investido no sentido de que precisa ser
construído de acordo com as necessidades dos sistemas tecnológicos. O corpo
metaforizado como fonte de energia, como produto, faz com que Baudrillard utilize,
ironicamente, a expressão “
-
” (BAU RILLARD, 1991, p. 83) para
explicar a relação entre signo e objeto (corpo) como um tipo de simultaneidade e
reversibilidade fatais de um no outro de maneira que não se pode mais distinguir cada
qual diante dos simulacros; o mundo projetado pela reprodução técnica em larga escala
reprodutiva, mais real que o real.
O movimento de reversibilidade existente nos simulacros é um dos aspectos
fundamentais no discurso de Baudrillard, sendo a sedução fator preponderante para que
a reversibilidade ocorra em várias camadas sociais, refletindo diretamente na
imaginação do corpo social. Os simulacros então seriam modelos de imagens que
confundem o imaginário entre o verdadeiro e o não verdadeiro gerando um tipo de
confusão entre os modelos e o real. “É um hiper-real, produto de síntese irradiando
16
” (BAU R
AR
1991
08). Assim, para Baudrillard o real é constituído por células de modelos de comando,
reproduzidos indefinidamente, e agora, mais que nunca, miniaturizados.
O corpo tornou-se submetido às vontades da técnica, tratado como informação,
como qualquer outro objeto, para a continuidade do desenvolvimento científico
tradicional e, agora, no limiar do desaparecimento, substituído por próteses congêneres
ao desenvolvimento infinitesimal da técnica. Nessas alturas o corpo já poderia ser
classificado no que Baudrillard (1991) chama de: “
na informação, no modelo, no jogo cibernético – operacionalidade total, hiper-realidade,
” (BAUDRILLARD, 1991, p. 151). Produtos os quais os
seres possam se identificar e reproduzir a ideologia predominante, a do consumo desses
próprios modelos...
No artigo denominado Corpo e técnica, produzido para a Revista Socitec,
Daniela Rodrigues (2012) afirma que influenciado pela tradição mecanicista cartesiana,
o binômio corpo/alma foi, ao longo do pensamento ocidental, empregado para situar o
corpo de acordo com os ritmos e fluxos socioeconômicos de cada época. Entendido
como pura materialidade ou como invólucro e perecível, do qual temos que nos livrar
para libertar nosso espírito, o corpo foi compartimentalizado, manipulado e a qualquer
momento é capaz de desaparecer. Sua funcionalização modificou o seu exterior e
povoou artificialmente o seu interior, construindo-o, consumindo-o e destruindo-o por
todos os lados, formando uma espécie de paradoxo.
Juremir Machado da Silva (2013), no artigo O Paroxista diferente, afirma que
Baudrillard “está obrigado a recorrer ao paroxismo, à caricatura e à reversão do sentido
aparente para tentar se aproximar do mistério do objeto, conceito próprio à sociedade
” (SILVA, 2013, p. 09). Lidar com a hermenêutica secularizada que culminou
em toda a hýbris8 tecnológica (a hýbris é considerada por Brandão (1987) uma
desmedida) e partir dela descobrir nos acidentes uma saída poética, uma nova
estetização para o desencantado cotidiano daqueles personagens? Medidas extremas
como os acidentes resolveriam o extremo universo tecnológico sentido por eles? Estaria
implícito no comportamento dos personagens de Crash algum tipo de tentativa de
reversão?
8
“
o que dos homens, o herói está sempre numa situação limite, e
a areté, a sua superioridade e excelência, leva-o facilmente a transgredir os limites impostos pelo métron,
suscitandoê
ý ” (B
1987
67)
17
Até mesmo a psicologia militar recua diante das clarezas cartesianas e
hesita em fazer a distinção do falso e do verdadeiro, do sintoma
produzido e do sintoma autêntico. Se ele imita tão bem um louco é
porque o é. E não deixa de ter razão: neste sentido todos os loucos
simulam e esta distinção é a pior das subversões. É contra ela que a
razão clássica se armou com todas as suas categorias. Mas é ela hoje
em dia que de novo as ultrapassa e submerge o princípio de verdade.
(BAUDRILLARD, 1991, p. 11)
Diante dessas clarezas, Dunley (2005) afirma que o surgimento da metafísica
substituíra o conhecimento mítico fazendo com que o ocidente iniciasse o seu processo
de afastamento do divino recusando o extraordinário natural (mitológico) que lá se
constituiu, uma espécie de abandono de Deus em favor dos homens, que através da
técnica aprofundam a sua condição protética artificial. Na visão de Nietzsche (2001, pp.
147-148) através da secularização da ciência haveria por parte dos homens a troca de
Deus pela ciência, fazendo esse autor anunciar a partir das observações de Hegel9 a
morte de Deus. Hoje, ciência e tecnologia complementam-se, juntando forças, fazem
parte de um mesmo sistema.
Saído de sua condição, tirado da sua significação, Deus passa do seu significado
medicalizante para o materializante, as bênçãos agora são cedidas em sinal de
consternação material. Esquecimento da vida, niilismo ativo, fazendo acreditar em Deus
como revoluções científicas que não passam de redução generalizada da vida em
matéria (objetos), incluindo agora, mais que nunca, o corpo humano. O bem, a verdade,
o sentido do potlatch “
z
‘
’ ‘consumir’” ( AU
2003,
p. 191) ocupando o sentido reverso, ou seja, que vai da distribuição ritualística para a
acumulação-destruição sem ritual.
O potlatch para Mauss, mais que nutrir e consumir revela as condições de
existência relativas ao consumo e ao acúmulo das sociedades arcaicas. Os laços dessas
sociedades se dariam também na forma de trocas: “A obrigação de retribuir é todo o
Plotlacht” (MAUSS, 2003, 249). O casamento e o nascimento de um herdeiro, por
exemplo, desenvolveriam laços que não deixariam nem o homem nem a mulher mais
ricos, mas concretizariam ritualisticamente o convívio de duas famílias.
9
Ver Svendsen (2006, p. 87).
18
Para esses povos as próprias coisas eram dotadas de espírito, portanto ao receber
um presente era preciso dar outro em troca. As transações envolveriam não só objetos,
mas também serviços e favores não desvinculando os objetos da natureza e nem da
sociedade (cultura), mas integrando-os. Já nas sociedades tecnológicas, os objetos
esvaziam-se de sentido e tomam aspecto fundamental, como que em substituição aos
próprios rituais de trocas, logo, hoje as relações sociais balizam-se pelos objetos. Daí a
reversibilidade: as coisas reservam caráter de sujeito enquanto os sujeitos subjugam-se
ao processo de reificação.
Nesse sentido, aquilo que representava a vida, por exemplo, para os Kwakiutl ou
para os Chinook (tribos norte-americanas citadas por Mauss), no sentido de
emancipação social, para a sociedade de consumo, é mantido, mas sem um objetivo
ritualístico torna-se um processo vazio. Baudrillard chega a denominar esse processo de
“leque simbólico [...] obssessional” (BAUDRILLARD, 2001, p. 10). Não à toa
detectamos em Crash uma espécie de culto ao acidente que direciona seus personagens
para um tipo de festa na qual eles descarregam o que acumulam. Entretanto, como há a
falta de retribuição ritualística, a tecnologia torna-se por si só, funcional. Portanto os
personagens veem-se desamparados na festa tecnológica.
A“
”( U
EY, 2005, p. 19), o processo de consumo e uma
cultura dos Mass media centralizam e simulam essas relações “A
õ
” (BAUDRILLARD,
massa
1995, p. 24). As próteses informacionais, trazidas à existência no auge do processo de
desenvolvimento do progresso técnico, parecem recolocar os homens diante de forças
que consecutivamente os ameaçam. Haveria no contemporâneo um sentimento de
malevolência abafado pela simulada ilusão do domínio pleno sobre todas as camadas da
vida nos ecrãs da tecnologia. Exemplo disso são as câmeras que passam a impressão de
segurança, mas não impedem que um assalto seja realizado.
Por esses motivos o filme Crash apresentou-se como um convite à denúncia dos
tecnocráticos sistemas de simulação. Apresenta pressupostos do perspectivismo irônico
baudrillardiano, fato revelador que demonstra a relação do texto fictício de Ballard com
“
” e a representação da escrita nas telas através do filme. Como veremos mais
à frente, o próprio Ballard, assim como Baudrillard, afirma Crash como sendo uma
comparação com os fatos que ocorrem cotidianamente nos grandes centros urbanos. A
19
construção e desconstrução de imaginários e de corpos que sofrem influência dos
simulacros.
A questão da construção/desconstrução de sentido no imaginário fez parte das
análises de Baudrillard, e para uma melhor compreensão de suas prerrogativas sobre o
imaginário o autor participou de um grupo que propunha um novo ramo de
conhecimento que ironicamente fora denominada a ciência das soluções imaginárias: a
Patafísica. Segundo Chris Horrocks (2008, p. 5 e 78) o termo Patafísica se refere à
“ ê
õ
” e foi cunhado por Alfred Jarry.
Sendo a Patafísica considerada como a ciência das soluções imaginárias, permite
dizer que Baudrillard, tanto quanto Ballard, fizeram questão de manter certo mistério
em seus escritos, um suspense que revela e não revela ao mesmo tempo, considerando
com esse tipo de escrita a magia da vida sob um Deus transformado em mercadoria e fé
convertida em negócio. Mistério verificado em Crash devido à sua condensada
ambiência que cria expectativas ao insinuar construções para os acidentes. A espera
pelas colisões pode ser percebida no olhar dos personagens que passam a ideia de
resignação. Ou seja, a falta de qualquer outro sentido possível os levará a qualquer
momento à entrega total para a hibridização de seus corpos com a tecnologia, até o seu
total desaparecimento.
A relação maquínica contida em Crash entre corpo e tecnologia faz parte do
espectro da sedução e é um processo reversível e mortal. Baudrillard (1992, p. 56),
afirma que a sedução não é da ordem do real, e por isso é que abarca todo o processo de
poder, assim como todas as ordens reais da produção, consumo, reversibilidade e
desacumulação ininterruptos sem as quais não haverá poder. Como Baudrillard é um
dissidente da verdade, justamente por isso, não acreditava na ideia de um discurso
único, de uma realidade única e inquestionável. Desenvolveu uma teoria irônica que têm
por fim formular hipóteses, ajudando segundo ele, a revelar aspectos impensáveis.
Procurou refletir por caminhos oblíquos lançando mão de fragmentos, tornando a
análise dos paradoxos mais importante que o discurso linear.
As questões levantadas nesta pesquisa referem-se à condição de exagero
depositada na técnica baseada em cálculos, representadas em Crash pelo discurso de
Vaughan, hýbris tecnológica tautologicamente enunciada durante os últimos séculos:
“[ ]
ê
enções sutilíssimas, que podem muito servir tanto para
alegrar os curiosos quanto para facilitar todas as artes e diminuir o trabalho dos homens
20
[ ]” (
AR
2008
17)
z
incluindo o corpo, tornou-se verdade instituída pela perspectiva racionalista que
predomina nas ciências, na economia e várias instâncias sociais. Em Crash, a hýbris
pode ser percebida no comportamento desmedido dos personagens que veem a técnica
como uma espécie de Deus. A técnica exerce função de duplo que influencia
diretamente os seus comportamentos, mesmo que não percebam e substitui a imagem
dos Deuses. Principalmente para Vaughan, que através de suas desmedidas simula os
acidentes.
O caráter de verdade da técnica é visto como um bem único progressivo e
constante. Assim, esquece-se do mal que este mesmo é capaz de provocar, logo, o mal
revela sua força mais voraz dominando por si todos os ramos da vida ocidental. Juremir
Machado (2013) afirma que mergulhados nas suas ilusões positivas, os homens não
percebem as armadilhas da domesticação. Nesse sentido, esta pesquisa não caminha em
direção à verdade científica instituída durante séculos, pois: “
psicofuncionalidade [...] assume todo o seu sentido econômico e ideológico. O corpo
A
z
”
(BAUDRILLARD, 1995, p. 143). Enfim, o mercado exige através de convenções
psicológicas que a subjetividade dos corpos seja submetida à funcionalidade da técnica.
A linguagem corporal em Crash poderia ser então, além de funcional, alguma
outra coisa? No prefácio do livro Senhas, Baudrillard (2001) afirma que a própria
linguagem gera ou regenera as ideias, faz o trabalho de encaixes que entrelaçam as
ideias, mistura-se ao nível da palavra, que serve de operadora, em uma catálise que a
própria linguagem10 está em jogo; para ele, isso faz dela um investimento tão
importante quanto às ideias, um tipo de Genealogia. Para além da tradicional imagem de
máquina, os modelos binários tecnológicos exercem função transcendente (no sentido
de
extinção)
sobre
o
corpo
e
fausticamente
aprofundam
o
ciclo
de
construção/desconstrução tratado em Crash. Segundo Melo (1988, p. 196), a luta de
Baudrillard ainda é contra uma antropologização do mundo que também não deixa de
10
As linguagens são absorvidas, a exemplo do acontecido com o movimento Hip-Hop que de
reivindicativo e revolucionário nas décadas de 80 e 90 do século XX, passou para diamantes nos dentes,
colares e cifrões de ouro no pescoço no século XXI. Como exemplo também da absorção dos atores que
saem das suas supostas realidades e passam a servir o sistema binário com suas máscaras, escondem-se
não somente do público, mas deles próprios. O corpo dos atores torna-se também binariedade, códigos
reduplicados de um modelo de sistema infinitesimal.
21
ser científica (positivista) e porque o nível do simbólico não pode dar-se, como
pretendia Lévi-Strauss, numa função mediadora entre real e ideal.
A invenção da verdade como na versão predominante sobre fenômenos que
escapam aos sentidos, alia o imaginário tanto à moral do homem idealmente melhorado,
como à moral do homem tecnicamente educado (na última parte da pesquisa veremos a
contribuição do cinema para a educação dos imaginários) para transcender a sua
orgânica condição. É nesse sentido que Crash coloca em questão a relação entre corpo,
tecnologia e transgressões. “
” afirma Ballard citado por
Lars Svendsen (2006, p. 88):
O que as pessoas mais desejaram que é a sociedade de consumo,
aconteceu. E como em todos os sonhos que se realizam há uma
aflitiva sensação de vazio. Assim elas esperam por qualquer coisa,
acreditam em qualquer extremo. Qualquer absurdo extremista é
melhor que nada... Penso que estamos na pista de toda espécie de
loucura. Penso que não há limite para todo tipo de absurdos que vão
aparecer. O futuro será entediante. (BALLARD apud SVENDSEN,
2006, p. 88)11
Ballard afirma que a sociedade de consumo está aí, e ainda desenvolvendo-se.
No contexto trabalhado nesta pesquisa, leva-se em consideração que todas as etapas
desse desenvolvimento complementam-se. Em nossos dias, além da sociedade de
produção/consumo descrita na citação anterior, temos outro patamar, o informacional, a
sociedade da informação; ou seja, tudo se aproxima da condição de informação. Subtil a
essas determinações, o corpo não sonha com a sua condição natural, pois os artifícios
desenvolvidos técnica e luminosamente, como nos faróis contrários de Crash, cegam a
humanidade tanto quanto os personagens em direção aos calculados acidentes. Ballard
(2007)
“[...] é cada vez menos necessário ao escritor inventar o conteúdo
ficcional [...]. A ficção12
A
”
(BALLARD, 2007, p. 08). Para o autor, essa entediante confusão paradoxal é uma
11
Importante salientar a ligação entre as ideias, ou o texto de Ballard, o filme de Cronenberg e as
concepções sócio-filosóficas de Baudrillard: os três passam por temas análogos como o consumo, o
extremo, o paradoxo, o vazio e o tédio. Baudrillard não faz sua leitura sobre Crash descaracterizando-o,
ou seja, os questionamentos de Baudrillard e o filme de Cronenberg demonstram-se como partes
integrantes, complementares dos questionamentos de J.G. Ballard e todos eles afirmam a ligação do
conteúdo ficcional de Crash com a sociedade.
12
Discutiremos o conceito de ficção de acordo com Baudrillard no subtópico 3.3 Enfim, a morte da ficção
científica.
22
espécie de loucura que se aprofunda no vazio e parece estar desamparada de qualquer
tratamento.
Dos capítulos
A primeira parte deste trabalho, denominada Considerações Teóricas Iniciais,
faz um apanhado histórico-social dos conceitos de técnica e corpo. Na seção O deslizar
da simulação: um breve histórico do corpo na técnica há uma reflexão sobre algumas
condições sociais que determinam como o corpo é visto ou utilizado, comparando, por
exemplo,
as
sociedades
tradicionais
(pré-industriais)
com
a
sociedade
de
consumo/informação. Nessa parte discute-se também a questão das subjetividades frente
ao desenfreado desenvolvimento científico tecnológico. Essa parte ainda trabalha o
conceito de duplo, indicando a multiplicação dos modelos hiper-reais que promovem
uma verdadeira festa tecnológica de caráter fáustico. Ao final desse subtópico, já se
encontra acrescentada uma análise inicial de alguns aspectos do filme Crash,
demonstrando como a estética da destruição faz parte do projeto de Vaughan, o
herói/vilão da trama.
Na seção Materialização para além do corpo, a do espírito foi trabalhada a
questão da acumulação, da reversibilidade e da materialização do espírito em forma de
valor-signo. Nesse trecho da dissertação é discutida a questão das próteses, inclusive as
mentais que fazem papel de dispositivos que contribuem para suportar a vida
tecnológica. Nessa parte é salientada a questão dos rituais que tem perdido força na
sociedade informacional provocando uma consequente falta de sentido. A ideia de
Dádiva é realizada nas trocas em inúmeras características da sociedade, pois seguindo o
modelo economicista o corpo torna-se estoque informacional. A materialização do
duplo, da imagem, do espírito compara-se à morte, afunilação cultural sem igual através
da globalização tecnológica que se torna insuportável para os personagens de Crash.
Na seção Amplexos da simulação: a fertilidade da reprodução dos corpos
simulacros foi levantada a questão da não compreensão da hiper-realidade devido ao
fato de estarmos inseridos nela e influenciados diretamente pelos modelos da indústria
cultural; as telas tornam-se espelhos e exibem espetáculos assim como o teatro montado
por Vaughan e Seagrave, para reviverem os acidentes das celebridades. Discute-se a
perda da subjetividade diante da absorção dos corpos pelo trabalho das telas.
23
Finalizando as Considerações Teóricas Iniciais, a seção O corpo e a bendita
velocidade da luz espetacular, relata que a importância crescente depositada na
tecnologia produz um conjunto de perdas não só ao nível da memória humana, mas
também relativamente às possibilidades de ação dos indivíduos, pois, quanto mais
cresce a rapidez tecnológica, mais decresce a liberdade. Nessa parte da pesquisa,
discute-se a falseabilidade e a indiferença do sistema por isso o ato extremista dos
personagens de Crash, provocar destruição, colisões para chegar mais perto da
realidade.
Na parte II, denominada Crash: estranhos prazeres, continuamos de forma mais
aprofundada a análise do filme. O corpo em Crash é associado para se realizar
plenamente na excitação provocada pelas transgressões através dos acidentes que
resultam em atos sexuais e na morte, por isso, tantas polêmicas em torno do filme13.
Discute-se nessa parte o corpo como estoque, transformado em matéria-prima e
reservatório de energia, sendo considerado como um objeto qualquer. Essa relação é
revelada quando passa a dialogar com a simulação dos acidentes das celebridades
realizada pelos personagens. Os diálogos das personagens são enfatizados nessa parte e
faz-se uso de imagens, recortes de cenas do filme, que são trabalhadas ao longo das
discussões.
Além disso, foram feitas considerações sobre a metaforização do corpo ou da
natureza como máquina e da naturalização do artificial. Na seção Cavando a própria
cova: o célebre no lugar dos deuses são salientadas as escavações feitas pelo ser
humano em prol de um determinado descobrimento sobre suas origens. O homem que
cava e vive esfomeado procurando suas origens, mas quanto mais cava mais aumenta
sua fome. Em Crash a narrativa da morte é reproduzida como tentativa de rito, por
exemplo, na ressurreição do acidente de James Dean. Reversibilidade da narrativa de
vida para a de morte, é preciso ressuscitar os corpos e as imagens. Discute-se assim, o
peso do corpo e a reversibilidade da narrativa de vida em narrativa de morte.
13
A partir dessas reflexões relaciona-se a obra ficcional de Cronenberg com as análises de Baudrillard e
em alguns momentos com a realidade social. Por este motivo, o filme demonstra aspectos que corroboram
fenômenos sociais. Como veremos a diante, os próprios autores, Ballard e Baudrillard, afirmam que
Crash é uma representação social.
24
Iniciamos a seção Técnica, sedução e violência: A derrocada corporalautomobilística nas cidades, citando uma matéria jornalística que informa o vertiginoso
crescimento dos automóveis. Logo após, fez-se um recorte de Crash, demonstrando um
dos ambientes mais característicos dos grandes centros urbanos: as autoestradas. Nessa
mesma seção, para ilustrar a perda da referência original, passa-se rapidamente pelo
conceito de terrorismo discutido por Baudrillard comparando-o com o terrorismo das
rodovias: espalhamento do modelo de metrópoles modernas transformando-as em
desastres automobilísticos.
Na seção O Projeto de Vaughan: um Fausto em Crash é discutido o projeto
futurístico de Vaughan. Ele assinala que os acidentes são formas de semear em vez de
um evento destrutivo considerando-o uma forma de explosão de energia sexual
mediando aqueles que já morreram. Nesse item é discutida a questão da transgressão
exposta por Svendsen. Traçamos também, a partir da afirmação de Vaughan, um
paralelo do desenvolvimento tecnológico com as aeronaves e ainda recorremos a Lacan
para justificar que a ciência se reduz para a maioria nos objetos que produz.
Na parte III: CRASH: A reversa mágica das telas e o aprofundamento
irreversível, na seção denominada O gozo patológico: as ruínas protéticas da confusão
contemporânea, demos continuidade à questão da publicidade como materialização e
valor-signo, além da ênfase no acidente como forma de transgressão e afirmação da
vida. Nessa parte ainda foi discutida a simulação como sedução a partir do exemplo da
contemplação em testes de acidentes assistidos pelos personagens na casa de Vaughan.
Na seção Do masoquismo à funcionalidade, a partir da leitura de SacherMasoch, de Deleuze e da visão de Baudrillard sobre o masoquismo em Crash,
discutimos se há masoquismo no filme. Na seção, O meio e a mensagem da passagem
Drive-thru, salientamos que o cinema vem exercendo função pedagógico-educacional,
ou seja, as tecnologias reproduzem o imaginário técnico e muitas vezes o conteúdo é
direcionado para planos posteriores, estado que Baudrillard denomina “
”
Além disso, nessa parte, discute-se a Pop Arte e sua influência sobre as subjetividades.
Na seção Enfim, a morte da ficção discutimos, os caminhos que a ficção científica vem
tomando na contemporaneidade. Por fim, na seção O presságio do artificial em Crash,
discutimos como Crash, em comparação com a maioria dos filmes, consegue exibir a
naturalização do artificial.
25
26
PARTE I: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS
O verdadeiro fim do mundo é a destruição do
espírito, o outro é condicionado pela
experiência que consiste em saber se o mundo
subsistirá depois da destruição do espírito
Karl Kraus
1.1 Da reversibilidade
O real nunca mais terá oportunidade de se
reproduzir – tal é a função vital do modelo num
sistema de morte, ou antes de ressurreição
antecipada que não deixa já qualquer hipótese
ao próprio acontecimento da morte
Baudrillard
1.1.1. O deslizar da simulação: um breve histórico do corpo na técnica
Sem autenticidade, sem educação, sem
liberdade no seu significado mais amplo - na
relação consigo mesmo, com as próprias ideias
pré-concebidas, até mesmo com o próprio povo
e com a própria história - não se pode imaginar
um artista verdadeiro; sem este ar não é
possível respirar
Turgueniev
Em artigo denominado De Heidegger a Baudrillard: os paradoxos da técnica,
Juremir Machado da Silva (2012) intensifica a necessidade de compreensão dos efeitos
da técnica e explica que ela tem sido vista como vontade de poder, ou seja, o
conhecimento técnico é o que mais importa na sociedade de consumo/informação. Tal
conhecimento seria mais valorizado atingindo todas as esferas sociais e intelectuais,
absorvendo o conhecimento de outros campos e os revertendo em novas possibilidades
técnicas. É nesse sentido também que Baudrillard (1995, p. 40) afirma a luta pela
existência como a luta pelo poder, ambição de ter mais e melhor com ávida rapidez e
muito mais vezes no sentido técnico.
27
Por isso Galimberti (2006, p. 08) nos adverte que antes de tudo é preciso acabar
com as falsas inocências, com a ideia de neutralidade da técnica, que só exerce a função
de meio para que depois o homem a utilize para o bem ou para o mal. Ainda enfatiza
que “a técnica não atende a um objetivo, não promove um sentido, não salva e não
descobre a verdade, ela funciona” (GALIMBERTI, 2006, p. 08). Segundo esse autor, a
técnica não é neutra porque cria características de mundo com as quais não podemos
deixar de conviver e que consecutivamente transformam os corpos e os ambientes.
Todos os aspectos da vida estão cercados pela técnica.
Logo, o que está em discussão nesse jogo de forças universais é o arrefecimento
das subjetividades ou ainda a mudança das subjetividades orgânicas para inorgânicas.
“A simulação já não é a de um território, de um ser referencial, de uma substância, mas
a geração ou reprodução de modelos pelos modelos, coordenados por um real sem
origem, nem realidade, hiper-
” (BAU R
AR
1991, p. 08). Fenômeno que
afunila as relações sociais em direção a um único pensamento, mais que isso, a
simulação de um pensamento científico-publicitário unidimensional que não deixa de
enfatizar o seu potencial de desenvolvimento tecnológico, relegando ao segundo plano
os outros imaginários.
Em meio ao universo tecnológico está lançado à sua sorte, o corpo.
Historicamente, várias maneiras de utilização dos objetos adaptaram-se ao corpo: os
talheres, a roupa, os óculos... Maneiras concebidas numa dinâmica coletiva, dispositivos
que supostamente deslocam os limiares do público e do privado, recriando o
socialmente distintivo e civilizado. Frente às correções físicas da modernidade que
paradoxais podiam soar como libertação ou coação, por exemplo, Rousseau era contra o
uso do espartilho por parte das crianças e das mulheres, uma espécie de prótese
(
)
“
”
(VIGARELLO, 2008, p. 11 e 12).
Os pensadores conhecidos como pré-socráticos, representaram uma fase da
filosofia marcada pela predominância de cosmologias que explicavam a natureza como
um corpo único, composto de uma mesma substância, onde o homem aparecia como
parte integrante. Seu corpo fazia parte de um cosmos maior, integrado à natureza como
linguagem complementar e não divisória. Ao dialogar com Nietzsche, Deleuze
questiona a linearidade da razão:
28
Os pré-socráticos instalaram o pensamento nas cavernas, a vida na
profundidade. Eles sondaram a água e o fogo. Eles fizeram filosofia a
golpes de martelo, como Empédocles quebrando as estátuas, o martelo
do geólogo, do espeleólogo. Em um dilúvio de água e de fogo, o
vulcão cospe de volta em Empédocles uma só coisa, sua sandália de
chumbo. Às asas da alma platônica opõe-se a sandália de Empédocles,
que prova que ele era da terra, sob a terra e autóctone. Ao golpe de
asas platônico, o golpe de martelo pré-socrático. A conversão
platônica, a subversão pré-socrática. As profundidades encaixadas
parecem a Nietzsche a verdadeira orientação da filosofia, a descoberta
pré- socrática a retomar em uma filosofia do futuro, com todas as
forças de uma vida que e também um pensamento ou de uma
linguagem que é também um corpo (DELEUZE, 1974, p. 132).
Pensando o aspecto contemporâneo, o retorno à perspectiva da filosofia présocrática em que enxergava o homem circundando no cosmo podemos fazer um
paralelo e uma crítica à projeção do desejo do homem contemporâneo demarcado pela
influência da tecnologia, há uma afastamento da natureza real. Os pré-socráticos
fizeram a filosofia a golpes de martelo, com Empédocles quebrando estátuas, não os
distanciando daquilo que fazem parte. O homem contemporâneo vê na natureza somente
um universo a ser explorado e transformado em objetos utilizáveis. O prelúdio que vê
nos pré-socráticos uma filosofia é perceber a potência do corpo, acenando o seu aspecto
trágico, sem se ater na transformação da natureza como fontes de próteses que
complementem as limitações humanas.
No prefácio da obra A História do corpo os autores (CORBIN, COURTINE &
VIGARELLO, 2008) salientam que o corpo existe tanto em seu invólucro imediato
quanto nas imagens feitas dele. As subjetividades também seriam variáveis com a
cultura dos grupos, do espaço e do tempo. Entretanto, na sociedade da hiper-realidade,
essas subjetividades, na maioria das vezes, tornam-se espelhos dos simulacros. Na
sociedade atual passamos da lentidão à velocidade, da pintura à fotografia, da fotografia
ao cinema, das sombras às luzes, da sexualidade moralizada à psicologizada, das
próteses à clonagem.
O corpo ocidental diferentemente das culturas chamadas tradicionais (culturas
não industrializadas), não é visto como parte integrante da natureza. Sobre essa questão,
z
Paulo Roberto Ceccarelli (2013) afirma que o corpo natural n
desvalorizado, era um corpo concebido como parte integrante do universo. Ainda
(1988)
segundo Ceccarelli (2013),
B
A
z õ
,
29
”
z
“
“
?”
“[ ]
sses autores a
[ ]
”(
AR
2013). O universo mágico do corpo e das relações sociais não era revelado, respeitava a
relação homem/natureza não dividindo e não colocando o corpo do homem em posição
de destaque em relação à natureza.
Na cultura da abundância tecnológica e a partir dela, o corpo transformado em
informação codificada, aprofunda as comparações com as máquinas feitas na transição
“
z
omem que vivia na Raridade.
Depois de muitas aventuras e de longa viagem através da Ciência [...], encontrou a
” (WHIFHEAD
Sociedade da Abundância. Casaramapud BAUDRILLARD, 1995, p. 68).
O corpo visto como instrumento participa do contexto em que o indivíduo passa
a enxergar apenas o universo mecânico objetivo, fazendo do corpo, parte do ramo
informacional com as mesmas pretensões de ser desvendado em fórmulas e
transformado em estoque. Este corpo instrumentalizado e desvendado é reproduzido
para tentativas de aperfeiçoamento, mas, de maneira paradoxal, frustra mais uma vez a
magia da vida através das simulações.
Segundo Baudrillard (1995, p. 23), somos os herdeiros legais do direito à
abundância por uma instância mitológica: a técnica, o progresso e o crescimento.
Entretanto, no contexto mitológico o meio celebrava a vida, era troca entre dádivas, já
na sociedade pós-industrial, o status do meio foi transformado em fim e a condição de
emancipação desse desejo ou o respeito da ligação homem/natureza desvaneceu frente à
dependência da coisa, assim como os personagens de Crash dependem dos carros.
A sociedade tanto de produção quanto de consumo manifesta-se na manipulação
dos signos e pode ser comparada com a do pensamento mágico com a diferença de que
esse realizava desperdícios ritualísticos que justificavam sua posição no mundo em
relação a seus deuses ou a própria natureza numa perspectiva de emancipação social.
“
ico, porque ambos
” (BAU R
AR
1995
23) Adorno e
Horkheimer (1985, p. 20) afirmam que pela mediação da sociedade que globaliza todas
as relações e emoções os homens se reconvertem em meros seres genéricos, iguais uns
aos outros, mas isolados na coletividade. Nesse caso, os próprios objetos tornam-se
30
deuses; a naturalização da artificialidade passa a ser a Lei na globalização tecnológica.
Baudrillard (2001, p. 10) afirma que para ele os objetos pareciam dotados de paixão, de
vida própria e por isso saiam de sua passividade de uso e ganharam um tipo de
autonomia sendo capaz até de se vingar dos sujeitos seguros, de dominá-los.
Como é possível observar em Crash, os personagens encenam um determinado
tipo de ritual,
sociedade pós-
“A
” (BAU R
õ
AR
1995
43) A
sumo
precisa dos seus objetos para existir e sente, sobretudo, necessidade de destruí-los, como
ocorre no filme, para que continuem existindo. O valor criado reveste-se de maior
intensidade no desperdício. Nesse processo, o valor e o desperdício recriam-se
indefinidamente. Por tal motivo, segundo esse autor, a destruição permanece como a
alternativa fundamental do modo de produção capitalista, porque é no consumo que
existe a tendência profunda para se ultrapassar, para se transfigurar a destruição.
Portanto, o stock, segundo Baudrillard (1995, p. 38), é a redundância da privação e sinal
de angústia, por isso, é na destruição que os objetos existem.
Mauss (2003), também em relação às culturas primitivas,
seu duplo, isto é, não é uma porção anônima de sua pessoa, mas sua p
“
”
(MAUSS, 2003, p. 71). Estudando o poder da magia, inclusive o de cura, Mauss afirma
que os assistentes viam o corpo do mágico presente, mas ao mesmo tempo ele estava
ausente espiritual e corporalmente, pois, seu duplo não é um puro espírito, ou seja, o
“
dote são
imediatamente definidos pela religião, a imagem do mágico se produz fora da magia.
Ela se constit
‘ z
[ ]’”. (MAUSS, 2003, p. 70). Portanto,
Claude Lévi-Strauss (2013, p. 14), no texto Introdução ao pensamento de Mauss,
explica que o conhecimento da utilização do corpo humano é necessário numa época em
que o desenvolvimento dos meios mecânicos à disposição do homem o desvia do
exercício e da aplicação dos meios corporais.
Portanto, na visão de Baudrillard, o corpo é visto não somente como máquina,
mas também como estoque reduzido à informação. Fenômeno que caracteriza, além de
uma redução generalizada do corpo apenas como código, um exagero tecnológico de
tendência fáustica no qual o duplo já não mais possui referência nas duplicações
genéticas, pois o corpo mais que metáfora da máquina passa a ser clonado. Leitor de
Mauss, Baudrillard (1991) salienta:
31
De todas as próteses que marcam a história do corpo, o duplo é sem
dúvida a mais antiga. Mas o duplo não é justamente uma prótese: é
uma figura imaginária, que como a alma, a sombra, a imagem no
espelho persegue o sujeito como o seu outro, que faz que seja ele
próprio e nunca se pareça consigo, que o persegue como uma morte
subtil e sempre conjurada. Contudo, nem sempre é assim, quando o
duplo se materializa, quando se torna visível, significa uma morte
iminente. (BAUDRILLARD, 1991, p. 123)
Com essas frases do texto Clony story Baudrillard demonstra a importância
detida na riqueza imaginária do duplo que está diretamente ligada ao sonho, à fantasia, e
quando materializada perde o mistério. Mistério que não faz parte da vida dos
personagens de Crash, pois, estão entregues à vontade da técnica e seus corpos, próteses
em potencial. Além disso, ocorre por parte dos personagens uma identificação com as
celebridades no momento dos acidentes, no instante de suas mortes. A materialização do
duplo assinala a morte em Crash.
Galimberti (2006, p. 116-159) em sua obra Pische e Techne: o homem na idade
da técnica sobre as condições genealógicas e epistemológicas faz um estudo da
incompletude humana que teria sido balizada pela razão metodologicamente
matematizada durante séculos. Ele explica que a visão metafísica de divisão do corpo e
da alma feita por Platão sempre nos condicionou a achar que o corpo deve ser
submetido à alma (mente), sendo um expediente metodológico para instituir uma
linguagem universal que não dependesse das variações de sentido da linguagem
corpórea. Galimberti explica que para Platão, extinguir a loucura seria o mesmo que
dominar as paixões do corpo. Afirma ainda que para Platão a alma raciocinaria melhor
se nenhum dos sentidos a perturbasse. Após isso, analisa que a perspectiva de
Descartes, Locke, Hume, Kant, Hegel cada uma com suas peculiaridades seriam
variações e aprofundamentos do método platônico de racionalização. Mesmo a visão
biológica de Aristóteles que considera a alma idêntica à vida não marcou uma evolução
do pensamento ocidental
prosseguir ao long
“
A
”( A
B R
150):
A absorção da antropologia bíblica pelo modelo conceitual platônico
consolidará a divisão entre alma e corpo sobre a qual Descartes não
terá nenhuma dúvida, quando, introduzindo a conhecida distinção [...]
retirará a alma de qualquer influência corpórea para resolvê-la no puro
intelecto, no ego cogito que, com seus raciocínios rigorosamente
controlados, expressará todo o possível sentido do mundo, lido pelo
32
homem de modo determinista e mecanicista. (GALIMBERTI, 2006, p.
150)
Contudo, em Crash, o projeto de Vaughan aparenta ser mais uma tentativa de
substituição do corpo por outro menos orgânico, por outro corpo suprido de próteses e
até instinto “[ ]
co corruptível
[ ]” (
AR
“
2008
31)
[...]
” (DESCARTES, 2008,
p. 51). O corpo é tornado híbrido não à toa, mas graças a essa razão. Partindo dessa
perspectiva e abrindo campo para a crítica à biotecnologia, Baudrillard (1991, p. 124126) afirma que hoje cada célula é considerada um organismo individualizado, a matriz
ou modelo de um único genitor, a réplica perfeita, o duplo materializado sem o outro,
ou seja, do mesmo para o mesmo de forma assexuada (in vitro). [...] nem sequer se trata
de gemeralidade, o dois nunca foi um, enquanto a clonagem é a reiteração do mesmo:
1+1+1+1... (Veremos na segunda parte da pesquisa a representação da materialização
do duplo quando Ballard compra outro veículo após o acidente).
A visão cibernética desvia nossos olhares do prometeísmo para a visão fáustica,
pois o corpo além de mecanizado passa a ser clonado, reproduzido funcionalmente
como qualquer artefato industrial com cada uma de suas células tornando-se, a exemplo
â
“
órgão deficiente, ou o prolongamento instrumental de um corpo, então a molécula
ADN, que encerra toda a inform
x
ê
”
(BAUDRILLARD, p. 127). O estágio do espelho está sendo extinto na clonagem. Nem
mesmo a reflexão sustenta tamanha força da tecnologia ao duplicar materialmente a
unicidade mágica (natural) do corpo, não respeitando aquela necessidade do sonhar com
o outro, matando o outro existente naturalmente em cada ser e interpondo virtuais
condições.
33
1.2 Materialização para além do corpo, a do espírito
O objeto tem um papel dramático; é um ator
com papel principal [...]
Baudrillard
A equivalência geral para Baudrillard (1996) passa ser a morte. Para ele, saímos
da morte partilhada, como ocorria nas comunidades tradicionais, para a morte
individualizada. Para esse autor, a obsessão de adiamento da morte ou de sua abolição é
que a torna o motor das racionalidades econômica e sexual contemporâneas. Daí cria-se
um paradoxo, pois, ao tentarmos abolir a morte pela acumulação, é a acumulação que
nos leva para a própria morte. Logo, os acidentes em Crash são uma maneira de
descarregar as frustrações desse acúmulo que vêm em forma de cobranças econômicas e
sexuais, pois o corpo por si só não mais se sustenta, é preciso torná-lo híbrido da
tecnologia:
Toda a nossa cultura não passa de um imenso esforço para dissociar a
ê
x
A
, que se ramifica
em todas as direções: a da sobrevivência e da eternidade para as
religiões, da verdade para a ciência, da produtividade e da acumulação
para a economia. (BAUDRILLARD, 1996, p. 198)
Deus está no limiar da transformação da matéria, consecutivamente, resta-nos o
império dos objetos e o consumo sem limites, uma generalizad
”( U
Y 2005
“
19)
sentido que procura aliviar suas dores, muitas vezes, em próteses psíquicas.
Medicalização técnica diante de uma cultura doente e uma sociedade hipocondríaca que
se afunda no consumo de antidepressivos ao passo que a indústria farmacêutica,
sustentada pelos laboratórios internacionais, aproveita para lucrar mais (Vontade de
Poder) à custa de reservas naturais. Segundo Dunley (2005, p. 23), a humanidade foi
desamparada pelos deuses, tornando-se ambiguamente algoz e vítima de seu próprio
projet
“
” (DUNLEY,
2005, p. 23). Desamparados, os homens famintos clamam pela presença dos Deuses,
34
mas agora, eles é que parecem estar ironicamente com os ouvidos tapados diante do
exagero tecnológico.
Sistematizando uma teoria geral da circulação da energia sobre a Terra, sempre
numa espiral ascendente que daria o caráter de nossa sociedade, Bataille (1975),
baseando-se em Mauss, revela a influência da ideia de dádiva. Para ele, existem outros
princípios de troca fundadores da sociedade onde impera a qualidade, como o sacrifício
ritual que nos vincula ao que es
, ou seja, para ele mais valem os ritos
que o próprio sistema produtivo. Para Bataille, um desses princípios seria o erotismo;
dádiva-chave para desvendar aspectos fundamentais da natureza humana, ponto limite
entre o natural e o social, o humano e o inumano. Ele vê o erotismo como a experiência
que permite ir para além de si mesmo, superar a espiral ascendente do domínio
produtivo do material que condena o ser humano à mesma condição de objeto.
Inspirado pelas colocações de Bataille, Baudrillard substitui o erotismo pela sua ideia de
sedução para justificar a exacerbação do consumo exercido hoje e o acúmulo da
produção.
Hygina Bruzzi de Melo (1988) afirma, nesse sentido, que para Baudrillard
existem não só uma troca material, mas também uma troca e uma comunicação
cosmológica, energias que perpassam os patamares da vida cotidianamente
materializada. Portanto, para essa autora, ontologicamente, toda troca pressupõe certa
alienabilidade variando em maiores ou menores escalas. O simbólico realiza o ciclo das
trocas, dar e restituir, ordem que nasce e funda a reversibilidade. Definição que é
inspirada no pensamento de Mauss no texto
.
Segundo Melo, após isso, Baudrillard prende-se mais à questão do simulacro ou
ainda do duplo como simulacro,
espírito em forma de valor-
x
B
“
z
” (MELO, 1988. p. 59). Forma que não é: nem ser, nem
aparência, nem ausência, nem presença; é uma coisa que flutua entre essas perspectivas.
“
ê
” (A
apud Melo, 1988, pp. 58-59).
Além disso, Baudrillard imbrica os pensamentos de Mauss e Freud ao
estabelecer o primado da troc
. O fato de um membro de
uma comunidade primitiva cultuar o canibalismo significa sua homenagem para evitar o
esquecimento dos mortos. A Eucaristia,
o corpo de Cristo, é um tipo de reminiscência do canibalismo simbólico. Mantém uma
estrutura de vínculos sociais e rituais, mas esse comer o corpo de Cristo passa a ser
35
virtual14, um signo substitui o corpo. Na verdade católico-cristã institucionalizada há a
prerrogativa de sustentabilidade da vida fora da natureza, não é um pensamento mágico,
mas dogmático, torna-se racionalmente a simulação do canibalismo, já não mantendo
vínculos diretos com os rituais primitivos antropofágicos.
[...] que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, que
um signo possa trocar-se por sentido e que alguma coisa sirva de
caução a esta troca – Deus, certamente. Mas e se o próprio Deus pode
ser simulado, isto é, reduzir-se aos signos que o provam? Então todo o
sistema perde a força da gravidade, ele próprio não é mais que um
gigantesco simulacro – não irreal, mas simulacro, isto é, nunca mais
passível de ser trocado por real, mas trocando-se em si mesmo, num
circuito ininterrupto cujas, referência e circunferência se encontram
em lado nenhum. (BAUDRILLARD, 1991, p. 13)
Baudrillard (1995, pp. 21-22) salienta que é o pensamento mágico que
administra o consumo e que os benefícios do consumo não são vividos apenas como
frutos do trabalho ou de processos de produção, mas como milagre, com a diferença de
que, para nós, a técnica tornou-se mágica ao transformar a natureza em objetos, a
técnica é absorvida como realidade civilizada, artifício para burlar a natureza. Para o
indígena ou o camponês, o consumo ritualístico aparece como mágica, mas não se
materializa, não sai assim do âmbito do pensamento, do imaginário, existindo para esses
últimos uma ligação direta com a natureza. Freud (1997. p. 38), em O mal-estar na
civilização, afirma que o que chamamos de civilização é, em grande parte, responsável
pelas nossas intempéries e que seríamos mais felizes se a abandonássemos e
voltássemos às condições primitivas, pois, o permitido consumo da produção é visto
diretamente pelos primitivos como graça da natureza e não cultura.
Declamava Nietzsche em O Nascimento da Tragédia “[…] sob essa realidade,
na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra […]” (
Z
1992
28). Essa condição paradoxal do mundo e os aspectos sofridos pelo corpo dentro da
hiper-realidade através de modelos pré-concebidos, formatados com o objetivo de
condicionar a sociedade ao consumo, o que leva consequentemente à perda da
individuação e/ou subjetividade, proporcionando uma afunilação cultural sem igual
através da globalização tecnológica entre várias camadas da sociedade, distanciando-nos
14
“
z
z -lo, e o real jamais
foi outra coisa senão uma forma de simulação. Podemos, certamente, pretender um efeito de real, um
efeito de verdade [...], mas o real, em si, não existe. O virtual [...] não é mais que uma hipérbole dessa
tendência a passar do simbólico para o real [...]. Neste sentido, o virtual coincide com a noção de hiper”. (BAUDRILLARD, 2001, p. 41)
36
do contato com a natureza, através da virtualização. Crash trata justamente disso:
produção, consumo, destruição dos automóveis e do corpo, além da simulação de
eventos nas grandes cidades como artifícios para enfrentar ou fugir justamente da
progressiva artificialização da vida.
Reprodução da cultura, a indústria cultural como enunciado por Adorno e
Horkheimer (1985) na Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, já era uma
visão que apontava para onde chegaríamos com relação ao progresso técnico. Os
humanos não se deixam mais seduzir pelo natural, mas pelo artificial, furtando a
natureza da luta contra a vida, glorificada na exacerbação da razão que transforma tudo
em cálculos. Ulisses, desviando-se do natural através de técnicas, sôfrego no artificial,
hostiliza a morte em troca de sua racionalidade.
O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si
mesmo e a outra vida, o temor da morte e da destruição, está irmanado
a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a
civilização. [...] O pensamento de Ulisses, igualmente hostil à sua
própria morte e à sua própria felicidade, sabe disso. Ele conhece
apenas duas possibilidades de escapar. Uma é a que ele prescreve aos
companheiros. Ele tapa seus ouvidos com cera e obriga-os a remar
com todas as forças de seus músculos. Quem quiser vencer a provação
não deve prestar ouvidos ao chamado sedutor do irrecuperável e só o
conseguirá se conseguir não ouvi-lo. Disso a civilização sempre
cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm que olhar para
frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à
distração, eles têm que se encarniçar em sublimá-la num esforço
suplementar. É assim que se tornam práticos. (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 39)
Ulisses (Odisseu) ao burlar a natureza representada pelo canto das sereias,
tapando os ouvidos de seus companheiros não os deixando seduzir pelo natural, esforçase assim para aproximar-
(Í
)
“
”
que
acontece é o seu distanciamento de Ítaca e de sua família, reforçando ainda mais a sua
individualidade. Não diferentemente, o destino da sociedade pós-industrial, a cada
momento de intensificação dessa razão tecnologizante afasta o corpo da sua
organicidade; não mais sagrado, mas estoque de informação e elemento na posse de
agentes econômico-sexuais. Contrariamente ao esforço de construção do Eu homérico,
agora há o seu esfacelamento, perdendo-se ainda mais de Ítaca nas racionalizadas
próteses por não escutarmos a natureza. Esse próprio esfacelamento do Eu caracteriza
que a técnica sobrepõe-se às subjetividades, à sua revelia.
37
Reforçando
a
razão
homérica
e
o
platonismo,
dos
livros
VI
e
VII (2004, pp. 191-196) de A República, a verdade cartesiana predominante em nossa
sociedade e o papel do ideal, ou seja, a ideia de aperfeiçoamento da sociedade e dos
corpos através da visão científica tradicional (metafísica) transforma as matérias através
de cálculos para a sustentação deste modus operandi. Consequentemente, o imaginário
da crença na técnica salvadora e de seus resultados tecnológicos tem feito do corpo
apenas mais um obstáculo para essa mesma visão, e para vencer o corpo, as próteses são
colocadas à prova. Para Baudrillard (1990, p. 49) as ciências já entraram em situação de
pânico e parecem estar sob a influência dos atratores estranhos assim como a economia,
tanto porque as descobertas científicas são financiadas pelo mercado cultural
proporcionando uma órbita de cenários efêmeros.
Frente ao ideal, Nietzsche (1992, pp. 30-31) busca respaldo em Schopenhauer
utilizando a metáfora do pescador que em meio ao mar desmesurado de dores não se
abate e permanece sereno no princípio da individuação. Assim a natureza, alienada,
inimiga, ou subjugada, celebraria a sua reconciliação com o homem; diante da beleza e
da aparência de Apolo, muitos se entregam ao desdém e à piedade aos maltrapilhos e
enfermos, e quando menos esperam, sopram-lhes os ventos dionisíacos, lembrando-lhes
o quanto são apenas humanos. Essa reconciliação proposta por Nietzsche, a cada
instante de progresso, parece-nos mais distante. Crash, em meio a todo o universo
ficcional bestializante, demonstra-se uma tentativa de reconciliação, mas, devidamente
frustrada como tantas outras. O momento do acidente em Crash pode ser comparado às
desmesuras heróicas das narrativas dos tragediógrafos, mas ao contrário das tragédias
gregas os acidentes não causam a emancipação, pois os personagens continuam
entregues à funcionalidade narcísica dos automóveis que lhe servem de complementos
às suas faltas.
Diante disso, outras verdades até aparentam ser possíveis, mas, quando
descobertas, quando não absorvidas pelo conjunto de fatores que fazem parte dos
sistemas da Nova Ordem Mundial, são feitas como pústulas sociais. Tentativas
diferenciadas de estetização ou política na contemporaneidade existem, mas é muito
provável, que como já acontecido com outras várias, sejam convertidas, seduzidas e
incluídas no modo de produção/consumo capitalista informacional, revertendo o objeto
em sujeito e o sujeito em objeto (de consumo). Baudrillard (1990, p. 19) afirmou no fim
da década de 90 do século XX que a imagem do homem sentado, contemplando, num
38
dia de greve, sua tela de televisão vazia, constituiria no futuro uma das mais belas
imagens da antropologia. Fato que já acontece, e mesmo que manifestantes saiam à rua,
os efeitos de mudança são irrisórios diante do poder de dominação dos imaginários
exercido pela técnica.
Segundo Bruzzi de Melo (1988, p. 68), o capital detém uma lógica interna que o
torna indiferente de qualquer compromisso social, e toda a crítica, que não leve em
consideração essa sua característica, pode ser devolvida como corpo estranho.
Consequentemente, o capital expande-se ocupando todos os espaços e preocupando-se
apenas consigo mesmo, abarcando, de acordo com as suas necessidades, algumas das
novas possibilidades, invadindo as fronteiras do corpo para sujeitá-lo aos seus
desmandos analogamente às cicatrizes das máquinas exibidas em Crash.
É nesse ambiente ambíguo transposto em Crash, a questionar a materialização
do espírito-corpo em valor-signo, que Baudrillard (1991) afirma a hiper-realidade como
a mistura, a confusão entre máquina e corpo, e não a separação ou o combate entre
corpo e máquinas como feito pelos irmãos Wachowski em Matrix15. Por mais que
Matrix trabalhe muitos aspectos, nele, os humanos lutam contra as máquinas assim
como as máquinas (mecânicas ou virtuais) querem o controle dos humanos. Todavia por
mais que na vida “real” alguns lutem contra as máquinas, para Baudrillard é impossível
outro patamar de simulacros que não seja o da hiper-realidade, ou seja, não é uma luta,
mas a confusão entre o que seriam homens e o que seriam máquinas. Além disso,
Matrix apresenta o fascínio pelas tecnologias digitais, característica com a qual
Baudrillard se defronta.
Paula Sibilia (2002, pp. 51-52) também faz comentários sobre a reversibilidade
em seu texto: Imortalidade: para além do tempo humano, no qual afirma que as
tecnologias da imortalidade estão na mira de várias pesquisas, da inteligência artificial à
engenharia genética, da criogenia à farmacopeia antioxidante. Todo o arsenal de
próteses neurais e outras tecnologias da imortalidade são capazes de reverter o processo
que anteriormente era entendido fatalmente como morte. Estratégias dos sistemas
cibernéticos para seduzir e absorver os supostos controles antropocêntricos.
15
FERREIRA, Wilson R. V. “M t x”
t
: p qu J
B u ll
ã g t u
f lm ?.
[2012]. Disponível em: <http://cinegnose.blogspot.com.br/2012/08/matrix-revisitado-por-que-jean.html>.
Acesso em: 03 de julho de 2013.
39
O que Baudrillard (1996) denomina estratégias fatais é o fato da realidade ser
irônica e desafiar todos os propósitos humanos de controle, assepsia e transparência,
acrescentando, cada vez mais, seus temperos; sendo assim, a ironia e a indiferença dos
sistemas geram a reversibilidade frustrando as tentativas de reconciliação entre homem
e natureza. Os personagens de Crash refletem claramente o tédio e a confusão dos
sentidos em um mundo cada vez mais efêmero e tecnologizado permeado segundo
Baudrillard de gadgets.
Nas palavras de Baudrillard (1995, p. 117), os gadgets seriam engenhocas,
objetos de consumo que possuem “inutilidade funcional” (1995, p. 117), ou seja, em
torno de um objeto principal estão vários outros que são anunciados como
características desse principal; eles são elementos os quais as empresas utilizam
publicitariamente para seduzir os consumidores, podem aparentar inutilidade, mas no
mundo do entretenimento são fundamentais para a funcionalidade do sistema, pois, de
quando em quando os novos modelos de objetos cercados de gadgets substituem os
antigos potencializando o processo de produção. Basta-se observar que em um prazo
muito curto de tempo são lançadas novas versões de automóveis que substituem as
antigas (que se aproximam muito das novas).
Ao ser funcional para o sistema o gadget não o é para os indivíduos que ficam a
par da efemeridade dessa substituição de objetos. Aspecto que afeta diretamente os
imaginários, pois não se é possível pensar em outras oportunidades quando não se têm o
direcionamento para isso. O direcionamento caminha a passos largos em direção à
substituição contínua dos objetos refletindo diretamente nos corpos e comportamentos.
O modo de pensar é dominado pelo modo de ser dos objetos: quem não possui os novos
modelos está ultrapassado e não pode estar incluído no clã do consumo. É aí que a
reversibilidade se dá mais uma vez, as subjetividades são transformadas em
objetividades.
B
(1995) “[ ]
x
z
do sonho, o trabalho poético, o trabalho do sentido [...] as grandes figuras da metáfora
[ ] R
ê
” (BAUDRILLARD,
1995, p. 21). Sendo assim, a linguagem poética amenizaria os efeitos da violência
contemporânea, faria frente ao deslizamento metonímico do consumo à consumição (no
sentido de consumir-se, consumir o corpo como qualquer outro objeto até a sua
mortificação, como ocorrido com os personagens de Crash), mas ela mesma pode sofrer
com a reversão e tornar-se simulacro. Baudrillard (1991, p. 95), referindo-se às redes
40
constituídas pelos sistemas informatizados, sistemas publicitários e os simulacros e as
simulações, afirma que essa violência é ininteligível porque o nosso imaginário está
cercado pela lógica dos sistemas que se expandem em todas as direções.
A desconexão das energias de irradiação das intensidades e da molecularização
do desejo vão no sentido de uma saturação até ao intersticial e ao infinito das redes
desses mesmos sistemas de objetos, sendo criados, recriados e consumidos numa
velocidade cada vez mais alucinante, causando uma falta de memória nunca vista antes,
e que agora é depositada em bits. Além disso, trata-se de um modo de existência que
permite manter sua forma ou seu curso por muito tempo, pois os recursos materiais se
repercutem mutuamente, entretanto, rapidamente as capacidades transformam-se em
incapacidade e as formas de ação tornam-se obsoletas antes mesmo que haja tempo para
os corpos aprenderem mais sobre elas.
A sociedade da informação globalizada assemelhasse a uma espécie de Torre de
16
Babel , onde várias línguas se misturam, mas confundidas em prol de um único
objetivo: ligar o corpo aos céus através da reprodução dos modelos de simulação,
partindo da reversão e da absorção de tudo que aparenta o mínimo de realidade, assim
como a imponência vertical dos arranha-céus contemporâneos que sustentam a
verticalidade do imaginário técnico através das engenharias que calculam e
transformam. Consequentemente, as diferenças culturais não têm demonstrado força
suficiente para enfrentar a rápida metonimização do modelo de linguagem produtivistafuncionalista-consumista, todas as partes tem ido pelo todo, fortalecendo a reprodução
dos objetos. A destruição dos carros em Crash é uma maneira de demonstrar essa
reprodutibilidade constantemente enunciada pelos meios de produção midiáticos.
1.3 Amplexos da simulação: a fertilidade da reprodução dos corpos simulacros
O combate que travam em cada indivíduo o
fanático e o impostor faz com que não
saibamos nunca a quem nos dirigir
Emil Cioran
16
Gn, 11. 1-9
41
O maior problema em entender a hiper-realidade é justamente o fato de não
conseguir sair dela, do fato de estar incluído nela. Parece que é sempre dia e a claridade
“
”, a sombra nunca esmorece e
como espelho objeta uma perpétua reflexividade obcecada pelas imagens. É um
processo que vem de todos os lados e ao mesmo tempo de nenhum em concretude, no
rizoma ainda tem-se um centro, mas subterrâneo esconde-se com a máscara da
superficialidade. Sua elasticidade parece ilimitada e seus processos, como que em
osmose absorvem-nos os solutos por entre a semipermeável membrana das telas
recheadas de falsos heróis e simulados espetáculos17, assim como ocorre em Crash nos
espetáculos montados por Vaughan e Seagrave para a reprodução dos acidentes de
pessoas famosas (celebridades). Anacronicamente, todas as telas se tornam espelhos e
“
”
são constante de ondas e dados:
A simulação descreve a recente revolução moderna nas comunicações,
na cibernética e na teoria de sistemas que gera sistemas de signos
organizados não somente para ocultar a realidade, mas também para
produzi-la a partir de modelos ou códigos dos meios de comunicação
de massa, dos processos políticos, da genética e da tecnologia digital.
(HORROCKS, 2008, p. 06).
A própria contextualização feita por Baudrillard em sua trajetória sobre os
signos, a simulação e a hiper-realidade pode não passar de mais um tentáculo para o
aprofundamento das necessidades dos sistemas binários, podendo ser absorvida a
qualquer momento. Criticaram o capital e ele se consolidou, racionalizaram a
sexualidade e ela se fortaleceu, contextualizaram a linguística e a lógica cientificista se
enrijeceu. Logo, corre-se o perigo de expor ainda mais os sistemas de signos e suas
nuances e esses ganhem ainda mais força de valor-signo.
Devido a esse provável movimento, Melo (1988, p. 247) salienta que Baudrillard
propõe uma teoria mais bem-humorada e desenvolta, uma teoria que seja ela própria
sedutora, capaz de lidar com o gênio maligno do social. Um modo mais alegre de ver as
coisas (mesmo que com certa dureza) que substitua a teoria crítica por uma teoria
irônica, patafísica, relativa à indiferença do próprio sistema. Uma tentativa de aliviar a
negação da vida, aliviar o niilismo ativo dos sistemas binários digitalizados nos quais a
17
“
speculum. [ ]
”(
UA
2001
1226).
42
subjetividade transforma-se em máquina18, tentativa de aliviar a proposta de transcender
a condição humana e transformá-la, de vez, em códigos:
Fazer da própria lógica do sistema a arma absoluta. Contra um sistema
hiper-realista, a única estratégia é patafísica, de certo modo uma
“ ê
õ
”
-científica do
retorno do sistema contra si mesmo – no limite extremo da simulação,
de uma simulação reversível numa hiperlógica da destruição.
(BAUDRILLARD apud MELO, 1988, p. 192).
Levantar hipóteses de aprofundamento sobre esse domínio é essencial para a
compreensão dos fenômenos implícitos na hiper-realidade. Para Baudrillard, é passado
o tempo da representação, estamos na simulação, por isso, no texto A precessão dos
simulacros (1991, p. 08), citando o conto Do rigor na ciência de Jorge Luís Borges, ele
afirma que agora o mapa é que precede o território, demonstrando, com esse exemplo, o
movimento de reversibilidade existente nos sistemas de simulacros. O real já não
precisa ser racional, ideal ou negativo, apenas operacional, não pertence mais ao
imaginário.
Sentados em frente aos computadores a qualquer momento tentáculos podem
saltar dos braços como que em extensão de nossos corpos e unir-se às teclas ligando os
tecidos aos circuitos binários informacionais; fios condutores de informações podem
sair dos ouvidos fazendo com que os corpos apareçam em outros locais, sejam reais ou
não, assim hologramas. “[ ]
der de passar pelas paredes, pelos
” (BAU R
AR
1991
133). A qualquer momento, além das câmeras espalhadas pelas esquinas (denominadas
metaforicamente de “ lh
19
”), todos esses sistemas rizomáticos constituídos de
objetos nanotecnológicos, um dia invadirão os sonhos e filmando-os, produzirão reality
shows que tornar-se-ão mais um aprofundamento da revolução tecnológica, além mais
os adventos 3D, 4D e os hologramas discutidos por Baudrillard.
18
SOUZA, Edney. A versão 1.0 do teleporte já chegou. Revista Galileu versão online [2013]. Disponível
em:<http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI333078-17770,00A+VERSAO+DO+TELEPORTE+JA+CHEGOU.html>. Acesso em: 12 de março de 2013.
19
O sistema olho vivo é adotado pelas prefeituras como forma de monitoramento da população,
gerenciando as infrações cometidas no trânsito e outras quaisquer. A câmera, metaforicamente, é
comparada aos olhos orgânicos (realidade virtual/virtual realidade), justificando o conceito de hiperrealidade.
43
Ganha-se a liberdade nas telas e nelas que se prende, agora, para além delas:
“
” (BAU R
AR
1991
135)
Caminhar e levar os smartphones, ipads, ipods, iphones..., destarte, atropelados pelos
pixels. Desligados os computadores e ligados os portáteis em substituição aos animais
domesticados da sensação de que o celular tocou no bolso, assim virtuais sensações
iludem nossos sentidos.
Os corpos também domesticados em seus diversos patamares caminham na
limpeza impecável e nas espetaculares superfícies dos shoppings centers com os seus
vários espelhos propagados para refletir em suas planas superfícies os narcisos
consumistas que caminham pelos corredores sedentos pelas “novíssimas novidades”
expostas nas vitrinas, que, de novo mesmo, não têm nada. A velocidade do
desenvolvimento tecnológico é tão acelerada que provavelmente o corpo virará luz ou
no mínimo terá seus membros substituídos por próteses tornando-o híbrido da
tecnologia.
As viagens em disparada para outros locais do globo em sintonia com a angústia
“
do não
z
”
x
z
por Deleuze e Guattari (1995), reflete nos indivíduos pertencentes a esse sistema de
redes desconexas e ao mesmo tempo conectadas. Tendem a tornar-se também
desterritorializados e com sua subjetividade subjugada a condicionamentos dos modelos
de produção e consumo “A
gica e social da mobilidade, do estatuto, da
concorrência em todos os níveis (rendimento, prestígio, cultura, etc.) torna-se cada vez
mais pesada para nós.” (BAU R
AR
1995
35)
até os
métodos mais interessantes, indiferente, absorve tudo para o lado que lhe interessa.
Assim, até o método rizomático torna-se apenas uma informação a mais para os
benefícios do sistema que espacialmente vai abarcando tudo que esteja à sua frente.
Quando não fisicamente, entra em jogo a geografia virtual, aumentando os
territórios da hiper-realidade e o domínio psicológico dos corpos através dos escritórios
multinacionais que se espalham mundo afora. Dessa maneira, as necessidades do
homem na sociedade informacional aumentam constrangedoramente, pois: a todo o
momento, é necessário mostrar-se, exibir-se, exaltar seus dotes intelectuais,
econômicos, tecnológicos, informacionais, sexuais, etc., em forma de competição.
Mostrar as próteses e aparelhos que lhe fazem feliz.
O rigor da ciência em construir um mapa do tamanho de sua província como no
conto de Borges parece ainda mais eficiente na virtualidade dos modelos televisivos e
44
cinematográficos digitais. Se as próprias fronteiras geográficas, dos Estados Nacionais,
por exemplo, já seriam possíveis modelos de simulação, a desterritorialização de acordo
com Deleuze e Guattari (1995): como linha de fuga a cada momento, mais diminuta,
mas como satisfação do sistema maximizada. Sendo assim, para Baudrillard existe um
movimento mais profundo e efêmero, a satelização: “
z ;
-se dizer que
até nosso cérebro já não está em nós, mas flutua em torno de nós nas inúmeras
õ
z
” (BAU R
AR
1990
39) e
dos corpos. Resta flutuar em meio às falsas fronteiras, perder-se na falta de identidade,
angustiar-se no consumo dos corpos funcionalmente mapeados para circular nas voláteis
simulações e tornarmo-nos relativistas.
Corpos globais na linearidade temporal despojada no decorrer dos anos que se
seguem um a um: Carnaval (o maior espetáculo-simulacro da Terra), Páscoa (as
fantásticas fábricas de chocolate), Festas Juninas (no estilo country de cowboys from
hell20), Natal (nas cores de refrigerante Cola) e todas as outras datas codificadas,
consumidas e consumadas; Galimberti (2006, p. 732) afirma que vivemos na
codificação constante das informações, logo, o que informaria é codificado pelos pontos
de vista envoltos em determinados interesses, levando-nos a uma espécie de modelagem
“
z
“
”
”
z
omo os próprios modelos: literal ocidentalização
dos olhos em todos os sentidos, físicos ou mentais (exemplo desse fenômeno é a
operação realizada em modelos orientais para aumentar o diâmetro dos olhos para
concorreram às vagas das passarelas). A globalização acontece então com a
ocidentalização dos corpos e das almas em forma de técnica. Continuariam os olhos
sendo as Janelas da alma21?
Os paradoxos do homem contemporâneo, aceleração do desenvolvimento
tecnológico, quantas vezes maior que o desenvolvimento biológico, em meio à
reprodutibilidade contínua de signos virtuais que permeiam todas as escalas da vida da
economia ao amor. Slavoj Zizek (2013) no vídeo A Realidade do Virtual22 explicando a
tríade lacaniana: imaginário, simbólico e real afirma que quando lidamos com outra
20
Cowboys from Hell é o nome de um álbum da banda estadunidense de Thrash Metal Pantera, originária
do estado do Texas.
21
A JANELA DA ALMA. João Jardim; Walter Carvalho. [2001]. Disponível
<http://www.youtube.com/watch?v=56Lsyci_gwg>. Acesso em: 30 de junho de 2013.
em:
22
em:
SLAVOJ
Zizek:
A
realidade
do
Virtual.
[2003]
Disponível
<http://www.youtube.com/watch?v=1xR_g4G5RsU>. Acesso em: 30 de junho de 2013.
45
pessoa lidamos com a sua imagem virtual, um tipo de idealização na qual camadas
humanas são descartadas e ou apagadas: o mau cheiro, todos os sons, os excrementos,
etc., nesse sentido, quanto maior a virtualidade, maior o esquecimento das condições
humanas, menor a nossa memória diante os fenômenos históricos e psicológicos.
Quando essas imagens são quebradas resta, muitas vezes, a frustração.
1.4 O corpo e a bendita velocidade da luz espetacular
Eis a consequência de tua dedicação pelos
humanos; como deus que tu és, fizeste aos
mortais uma dádiva tal, que ultrapassou
todas as prerrogativas possíveis. Como
castigo por essa temeridade ficarás sobre
essa rocha terrífica, em pé, sem sono e sem
repouso; debalde farás ouvir suspiros e
clamores dolorosos [...]
Vulcano (Ésquilo)
Da revolução à psicanálise, do amor à religião, das previdências de Prometeu até
o conto de Arthur Clarke (1984, p. 13) Os nove trilhões de nomes de Deus, o que
demoraria quinze mil anos, a técnica faz em cem dias, tudo está sendo contado e
calculado muito rapidamente e nossos corpos perdem as referências buscando em
qualquer lugar um descanso, daí o aumento do consumo de medicamentos calmantes e
excitantes. Menezes (2013), referenciando Virilio (1997) no artigo Velocidade, acidente
e memória, sinaliza que a importância crescente da máquina produz um conjunto de
“
“
”
”
z
decresce a liberdade. Referindo-se em específico às capacidades de percepção, muita
velocidade igual muita luz, demasiada luz igual cegueira.
Ofuscamento causado, por exemplo, pelos Programas de Aceleração do
Crescimento e da invasão da ética (ideologia) protestante promovida pela ingerência
estadunidense na produção de seitas pela América Latina, tema discutido por Décio
Monteiro de Lima (1987) na obra Os demônios descem do norte, confirmando o que
Max Weber (2004) havia proclamado em A ética protestante e o espírito do
capitalismo, de que trabalhar a serviço de uma organização racional para suprir a
46
humanidade de bens materiais representa para o espírito capitalista um dos mais
importantes propósitos da vida.
Do aumento do consumo de estimulantes musculares, de pílulas sexuais, de
drogas lícitas para a concentração cerebral e calmantes para aliviar o hodierno tédio.
Indústria medicinal, fármacos recolhidos da fauna e da flora, hipocondria social. Dos
embriagados punidos por leis secas através de secas leis, mas que paradoxalmente são
bombardeados por propagandas de bebidas alcoólicas recheadas de mulheres com
corpos produzidos pela indústria do Photoshop e pelos comerciais de carros possantes
incompatíveis com o nível estrutural das estradas23.
Se, nos termos de Kant (2005), o Esclarecimento (Aufklärung) significaria a
saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável, e a minoridade
é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro.
Aparentemente na era da simulação seria quase impossível passar à maioridade, pois as
janelas que exibiam paisagens naturais se transmutaram em telas que exibem imagens
virtuais. Segundo Baudrillard (1999), no texto Tela Total (2005), a tela chama bastante
atenção, fala dela mesma, nos fala do mundo e apaga-se diante dos acontecimentos
como um meio que se respeite, mas, depois de um tempo, ela não se respeita mais ou
toma-se pelo acontecimento por detrás da virtualidade instantânea de suas imagens,
inseridas nos imaginários. Sendo a
B
“
infantil onde qualquer demanda, qualquer possibilidade, seja de estilos de vida, viagens
x
” (BA
AR
2007, p. 07)24. Essas demandas são influenciadas por essas mesmas telas que satisfazem
as necessidades, falseando as suas próprias propagandas tautológicas de incentivo ao
consumo.
Seguindo o raciocínio de Ballard, Baudrillard (1991, pp. 21-22) salienta que o
imaginário da Disneylândia é um aparelho de dissuasão colocado como imaginário,
enquanto o que está à sua volta já não é do domínio do real, mas do hiper-real e da
simulação, principalmente Los Angeles e a América. Por isso a debilidade e a
degenerescência desse imaginário que se faz infantil para fazer crer que os adultos estão
23
O álcool é milenarmente usado em vários rituais, assim como o chá de ayahuasca e outras substâncias
naturais. A falta do ritual e o uso indiscriminado, sem sentido, é que talvez sejam os fatores mais
prejudiciais, o maior problema não seria o álcool em si, mas o conjunto das técnicas envoltas nos
ambientes sociais (automobilística, publicitária, etc.) que nos seduzem em uma só direção. Condicionam,
direcionam e até mesmo determinam comportamentos, que na falta de rituais tornam-se abjetos.
24
A fala é de J.G Ballard, o autor do livro Crash, o qual o personagem principal recebe o seu nome. O
filme manteve esse aspecto.
47
no mundo real, e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda a parte e é a
dos próprios adultos que fingem serem crianças para iludir a sua real infantilidade. A
Disneylândia exerce essa nova função imaginária e da mesma maneira são todos os
instintos, de reciclagem sexual, psíquica e somática.
O não olhar o outro, mas o ver nas redes sociais e teleconferências, o não tocar,
mas a contatoterapia, o não andar, mas fazer cooper sem tempo para refletir sobre os
aspectos da vida durante o caminhar, a não ser se adequar aos modelos exibidos pelos
simulacros. Baudrillard (1991, p. 22) denomina esses mecanismos como um
comportamento de penúria dos signos e dos simulacros nos confins da economia de
mercado. Imaginário que nega a condição da vida para simular e reproduzir outro real
além mais, hiper-real, niilista25. O sistema torna-se para Baudrillard (1991, p. 201)
niilista por negar a vida mais próxima e gerar sempre uma outra. Sua solução então é
mesmo tornar-se não niilista, mas indiferente, assim como o sistema:
Se ser niilista é levar, até ao limite insuportável dos sistemas
hegemônicos, este vestígio de irrisão e de violência, este desafio ao
qual o sistema é intimado a responder pela sua própria morte, então eu
sou terrorista e niilista em teoria, como os outros o são pelas armas. A
violência teórica, não a verdade, é o único recurso que nos resta.
(BAUDRILLARD, 1991, p. 200).
Baudrillard se aporta do que Juremir Machado da Silva (2005), na introdução do
livro Tela Total, convém chamar de niilismo irônico, pois existe aí ainda uma utopia,
“
z
”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 200). Para ele, tornar-se niilista também não faria diferença
diante de um sistema que reverte tudo inclusivamente na indiferença. Baudrillard então
z
morreu, tornou-se hiper-
” (BAU R
AR
1991
“
195)
Parecia Baudrillard, já naquele momento, impelido de questões maiores que
estavam por vir. Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, na
conferência A violência do mundial, realizada pelo Instituto do Mundo Árabe, onde
estava presente também Edgar Morin, Baudrillard pronuncia que o Ocidente, na posição
25
TURGUENIEV, Ivan. Pais e Filhos. São Paulo: Editora Cosac & Nayf, 2011.
48
de Deus, torna-se suicida e declara guerra a si mesmo (2007, p. 16). Maati Kabal (2007,
p. 15), organizador dessa conferência, afirma que as palestras de Baudrillard e Morin
distanciam-se dos sentimentos de ódio e contraódio, colocam-se para além do bem e do
mal para compreender a lógica e a estética do mortal jogo de espelhos entre o eu e o
outro, e para expressar a globalidade da violência equivalente ao mundo em depressão
econômica e todas as outras sequenciais. Não à toa as depressões, tanto econômica
quanto psicológica, ganham papel preponderante nas sociedades globalizadas; e a
psicológica sendo considerada o mal do Século XXI.
Para Baudrillard (2002), esse é o ponto crucial da incompreensão por parte da
filosofia ocidental, do Iluminismo sobre a relação entre Bem e Mal por acreditar que o
progresso do Bem, o seu avanço em todos os campos (ciências, tecnologia, democracia,
direitos humanos), equivale à derrota do Mal. Ao contrário, para ele o Bem e o Mal de
uma maneira ou de outra estão ligados, são partes de um mesmo movimento.
Metafisicamente, essa Doxa de que o Mal é um contratempo, é ilusória.
O excesso de luz fere as vistas desprotegidas como numa enorme geleira. Da
exigência da liberdade sexual à exigência do moralismo religioso, das academias
narcísicas aos corpos estilhaçados dos terroristas (inclusive os do trânsito como em
Crash), tudo é paradoxo. A liberdade torna-se prisão a partir do fomento radical da
exigência. As mulheres libertaram-se, e a exemplo dos negros, foram incluídas,
passaram a integrar o mercado (produzem, consomem, objetam), são independentes e
agora, não ficam presas dentro de suas casas cuidando de suas famílias, entretanto,
muitas delas são assassinadas. Assim como acontece também com os homossexuais, o
imperativo para serem incluídos, gera uma força contrária que, em várias oportunidades,
torna-se intolerante na artificialidade dos discursos.
Onde a vida era natural, a técnica reverte em artificial. Disjunção entre vida e
morte. Em vez de disjunção, junção. Vida e morte ligadas. Não a fórmula vida-vida,
mas vida-morte. A melhor das mortes para seguir os astros e seguirmos como pássaros,
assim como para os Astecas no seu dia mais feliz, o dia dos mortos. Morte, parte
maldita, afora o val
“[...] a positividade hiperbólica gera a
catástrofe, por incapacidade de destilar a crise e a crítica em doses homeopáticas. [...]
Todo aquele que expurga sua parte maldita assina a própria sentença de mort ”
(BAUDRILLARD, 1990, p. 113) 26.
26
Preparemo-nos então para sofrermos mutações até virarmos Replicantes como em Blade Runner ou
quem sabe concretamente robóticos como Transformers e virtuais Avatares.
49
A parte maldita não significa pensamentos negativos e nem fatos desgraçados,
isso, os telejornais dramalhões já o fazem muito bem, pois são também simulacros dos
sistemas que fazem prevalecer o ideal do espetáculo. A parte maldita é o contrário disso,
“
é justamente criar condições sob
” (BAU R
AR
1990
114)
B
(1990, p. 115), o mundo está repleto de sentimentos positivos, sentimentalidade
ingênua, vaidade canônica e bajulação, sendo assim a ironia, o ridículo, a energia
subjetiva sempre são os mais fracos. Sendo assim, as pretensões do bem científico
pretendem transcender a condição corporal, no sentido de extinção.
50
PARTE II: CRASH: ESTRANHOS PRAZERES
Bravíssimo! Portanto essas constâncias
sem limite, esse afeto incontrastável...
Mefistófeles (Goethe)
2.1 O Corpo híbrido em Crash: corpo e tecnologia
O mundo inteiro é forçado a passar pelo
filtro da indústria cultural
Adorno e Horkheimer
O filme inicia-se com uma ambientação preenchida com letras nas cores preta e
prata, revestidas por um fundo que intercala azul e preto. Outras letras em cores
metálicas dialogam com a temática central do filme: a relação do homem com a
máquina, o metal, o carro. Sua trilha musical criada pelo compositor canadense Howard
Shore possui elementos minimalistas, eruditos e eletrônicos que nos remetem a
sensações de mistério e suspense. Ao longo do filme, os próprios movimentos e planos
das câmeras desenham espaços labirínticos que transmitem a sensação de que não há
mais saída para aqueles personagens assolados pela vida urbana tecnologizada. Para eles
então restaria se entregar às excitações provocadas pela sedutora imagem dos acidentes.
Ballard e sua esposa Catherine, o casal protagonista de Crash, mantêm
compulsivamente relações sexuais entre eles mesmos e terceiros e, após as relações com
outras pessoas, compartilham suas experiências através de diálogos. Ballard é um
diretor de cinema e Catherine é empregada numa empresa de táxi-aéreo. Após Ballard
sofrer um acidente o qual envolveu outro casal, a Doutora Helen Remington e seu
marido (personagem que não recebe nome no filme), Ballard se envolve com essa
51
doutora. Ballard e Remington vão para o hospital do aeroporto enquanto o marido de
Remington morre.
Através dela, ainda no hospital, Ballard toma contato com Vaughan um excientista obcecado por acidentes de automóvel e pelas transformações que os corpos
sofrem ao serem afetados pelos ferros retorcidos. Vaughan é uma espécie de líder de um
grupo de que reinventa os acidentes de carro das celebridades que morreram. Vários
elementos redesenham corpos dos acidentados: cicatrizes, escarificações, fissuras e
mutilações, conduzindo-os para novas arquiteturas físicas e abrindo seus corpos para
explorações sexuais mediadas por próteses.
O filme coloca em cena as típicas acelerações dos automóveis nas rodovias e
inclui uma série de outras acelerações que repercutem o fluxo do enredo e
descongestionam os corpos dos desconsolados personagens que planejam, de uma
maneira ou de outra, além das diversas posições sexuais, a morte no tráfego. Assim se
vê reforçada a célebre atmosfera de hibridismo, homem tecnologia, desse insólito filme.
O cruzamento dos personagens nas vias à procura de estranhos prazeres conforma-se
nas dores e nos deleites que os automóveis infringem ao corpo humano através da
desconstrução desses dois nos acidentes. Procurar estranhos prazeres é o objetivo dos
personagens; prazeres conformados pelas dores e pelos deleites que a tecnologia impõe
ao humano ao colocar frente a frente o corpo e a tecnologia.
As sequências expostas no filme demonstram um corpo biológico insuficiente,
necessitado da mediação da técnica, representada nesse caso pelos automóveis. “[...] em
termos de funcionalidade e eficiência [...] a técnica nasceu, não como expressão do
espírito humano, mas como remédio à sua insuficiência biológica” (GALIMBERTI,
2006, p. 09). O corpo em Crash é associado para se realizar plenamente na excitação
provocada pelas transgressões através dos acidentes que resultam em atos sexuais e na
morte. Desta junção nasce uma sexualidade peculiar apoiada no desejo despertado pelas
potencialidades das máquinas como centros propagadores especulares, monólitos de
energia que imprimem condições aos modos de vida, característica comum às
sociedades tecnológicas.
O projeto de que participam os personagens atualiza, numa narrativa de morte, o
duplo através da imagem dos mortos, o que seria um tipo de simulacro. Esses projetos
elaborados pelo personagem Vaughan reproduzem os acidentes de maneira calculada,
existindo por parte dele uma exaltação pelo seu ideal. Nesse processo ocorre a inversão
52
do acidente em modelo calculado a partir de sua racionalização em desenhos e
planilhas. Na cena abaixo é possível verificar a fala de Vaughan sobre o projeto. Ele
chama Ballard e diz que precisa de sua ajuda, os dois vão até uma sala onde se encontra
uma prancheta e fotos dos acidentes das celebridades. Essa sala constitui um ambiente
propício para as idealizações de Vaughan, em analogia aos laboratórios científicos,
mecânicos e arquiteturais. Vaughan chama esse ambiente de ateliê. Nessa passagem,
Crash expõe o extremo da visão calculada do mundo tecnológico. Vaughan no papel de
um engenheiro calcula os projetos técnicos que servirão para tirar o que vieram salvar.
Figura 1 – Cena do filme Crash.
No nível do plano, a pouca profundidade mostra Vaughan focado analisando o seu projeto e
Ballard desfocado ao observar as várias fotos penduradas nas paredes. Logo depois, na
sequência, Ballard é focado, um tipo de zoom que provoca o deslocamento da atenção.
Em Crash há uma ligação com o projeto de cálculo cartesiano: Descartes
z
“[ ]
x
em tantas
[ ]” (DESCARTES, 2008, p. 25). Transformação
da matéria a partir de cálculos; a efetivação dessa visão de mundo contribui
historicamente para que o corpo também seja englobado nessa metodologia que se
espalha por todos os cantos da vida. O corpo em Crash é projetado para a sua mutilação
nas estradas como um novo modelo de estética, da destruição e das cicatrizes, assim
como as rasgadas latarias dos automóveis. Continua Descartes:
[...] dentre todos os que até hoje buscaram a verdade nas ciências, só
os matemáticos conseguiram encontrar algumas demonstrações, isto é,
algumas razões certas e evidentes. [...] que acostumariam meu espírito
a se nutrir de verdades e a não se contentar com falsas razões. [...] o
espírito humano [...] confere certeza às regras da aritmética.
(DESCARTES, 2008, pp. 26-27).
53
A relação exibida na película demonstra como o corpo humano torna-se inaudito
perto das possibilidades abertas pelas próteses e pelos poderes incomensuráveis dos
gestos interpolados com e pela máquina, expansão e explosão da suprema violência
sexual-tecnológica. Nem Vaughan, nem Ballard são heróis ou vilões, em Crash, os
veículos, o sexo e as transgressões, mesclados em sinergia é que desempenham essa
“
função. Observa-
”
“
”
objeto. Baudrillard (1995, p. 136) nos diz que o corpo seria o mais importante, belo, e
“
próprio auto
õ
” (BAUDRILLARD, 1995, p. 136). Nesse sentido, Crash propõe a
discussão entre a relação carne humana e tecnologia; a modificação do corpo aparece
como um dos fetiches da seita. Por meio das próteses, dos pinos, das incisões e até de
tatuagens é que os personagens parecem encontrar o prazer, transcendendo assim a
condição física.
Para Baudrillard (1991, pp. 139-140), o livro de J.G. Ballard antecipa uma
relação inversa à visão apenas funcionalista do relacionamento entre o corpo e as
máquinas, na qual as últimas são extensão e ampliação dos limites biológicos, pois essas
seriam vistas como complemento ou aperfeiçoamento orgânico ainda no modelo
prometéico. Segundo Baudrillard, em Crash, a técnica passa a ser desconstrução mortal
do corpo, não meio funcional apenas, mas extensão da morte de um corpo confundido
com a tecnologia na sua dimensão de violenta violação “
inteiramente submetido à marca, ao corte, à cicatr z
z
” (BAU R
AR
1991
p. 140), perversão do modelo, já fáustico, hiper-real e sem limites.
Crash como livro e depois filme, cada um em seu turno, discute novas formas de
mediação entre corpo e tecnologia, essas mediações são compostas por um corpo não
apenas tornado máquina, mas tornado informação. Nesse contexto, ele é dissolvido e ao
mesmo tempo concretizado como código. Em Crash, a sexualidade é binariamente sem
referencial e sem limites, composição, armação (Gestell27) que não se completa sem a
síntese dessa junção com o acidente automobilístico: o corpo somado ao automóvel e à
publicidade significa uma sexualidade sem limites e por fim, assinala sua desconstrução
mortal. O corpo de um lado, o automóvel do outro e o acidente ao meio se completam
27
Heidegger define Gestell (composição) como a força de reunião daquele pôr que impõe ao homem
descobrir o real como disponibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 27).
54
culminando no ato sexual caracterizado pela violência mortal dos signos vazios de
sentido e dos corpos punidos pelo tédio:
O estorvo causado pelo automóvel origina um déficit técnico,
psicológico, e humano de dimensões colossais: que importa, uma vez
que o super equipamento infra-estrutural necessário, as despesas
suplementares em gasolina, as verbas para o cuidado das vítimas de
acidentes, etc., tudo acabará por ser contabilizado como consumo, ou
seja, tornar-se-á, debaixo da capa do produto nacional bruto e das
estatísticas, expoente de crescimento e de riqueza! (BAUDRILLARD,
1995, p. 34).
Não importa se os acidentes geram algum tipo de insatisfação, pois tanto os
automóveis quanto os corpos não passam de estoque
“
”
Heidegger (2008, p. 22) que, sabendo ou não, está à disposição da indústria madeireira
que resulta em celulose e depois em papel para às manipulações da imprensa. O corpo
hoje, também, sabendo ou não, é decodificado na binariedade dos sistemas de dados e
da biogenética que propõem sua duplicidade, reduzidamente como código. Tudo se
resume em números necessários ao niilismo do sistema econômico-informacional, em
prol da maior circulação e concentração de capital possível.
Em Crash encontramos o que podemos denominar de encanto magnético,
fetichista, causado pelos caminhos urbanos, capaz de transformar os instantes de um
“
”
(BAUDRILLARD, 1990, p. 183) é explorado de modo a explicitar o prazer voyeurístico
frente à violência. Ao mostrar a obsessão do personagem Vaughan em recriar os
acidentes fatais de James Dean em seu Porsche apelidado de “L ttl B t
”, Crash
mostra também o prazer patológico de observar o instante fatal da colisão e sua
explosão de violência e sexualidade, um tipo de prazer prometido pela sociedade da
informação através dos Mass media. Lars Svendsen (2006, p. 90), no texto Sobre tédio,
corpo, tecnologia e transgressão: Crash, afirma que as psicopatologias em Crash são as
nossas quando vemos uma corrida de Fórmula 1 esperando ver um desastre, e ao
passarmos ao lado de um acidente esperarmos ver carros destruídos e pessoas feridas ou
mortas. Abaixo, a imagem de Seagrave e Vaughan dentro de uma réplica do Porsche de
James Dean após a simulação do acidente do ator.
55
Figura 2 – Cena do filme
Nesta cena ocorre a centralidade para mostrar ao máximo os estragos
Crash.
causados ao veículo e os personagens que se encontram atordoados com o
choque. A centralização desse momento demonstra o egocentrismo de
Vaughan e Seagrave que se sentem orgulhosos por terem batido o Little
Bastard. Ao fundo, ainda podemos ver, devido à profundidade do plano, a
arquibancada de onde espectadores assistem as simulações dos acidentes.
O carro, o corpo e o acidente podem ser considerados os elementos centrais do
filme. O carro é o palco de vários atos sexuais entre os personagens, como é também
aquilo que impulsiona a sexualidade, pois contém em si, o potencial constante do
acidente e carrega uma pulsão sexual que vai explodir no violento momento da colisão.
“
x
z
”
(BAUDRILLARD, 1990, p. 184). Assim, em Crash, o objeto destaca-se mais que o
indivíduo que o conduz, o que está sendo consumido então é o próprio corpo em
conjunto com o seu mais nobre coadjuvante, o carro. O objeto é referenciado como
duplo e o corpo preparado pelo projeto de Vaughan para chegar até o que conhecemos
hoje como clonagem:
A clonagem é, pois, o último estádio da história da modelização do
corpo, o estádio em que, reduzido à sua fórmula abstracta e genética, o
indivíduo está votado à desmultiplicação serial. Seria necessário
retomar aqui o que Walter Benjamin dizia sobre a obra de arte na era
da sua reprodutibilidade técnica. O que se perde na obra serialmente
56
reproduzida é a sua aura, essa qualidade singular do aqui e agora, a
sua forma estética (ela já perdeu anteriormente, na sua qualidade
estética, a sua forma ritual). (BAUDRILLARD, 1991, p. 128)
O duplo materializado pode ser visto quando após o seu primeiro acidente,
Ballard compra outro automóvel do mesmo modelo, marca e cor do anterior, resumindo,
do mesmo design, significando que o olhar de Ballard já estava projetado para as
idealizações do sistema, pois é no nível das aparências, da superfície que atua o design.
Essa cena deflagra sensivelmente a obsessão material da reprodução de um sistema
extremamente tecnológico cercado pelas características de um suposto modo de vida
infinitesimal. A cena retrata a multiplicidade reificada do sistema dos objetos.
.
Figura 3 – Cenas do filme
No
nível da sequência, o filme exibe em planos diferentes, a frente do automóvel colidido
Crash.
e após o diálogo entre Ballard e Remington, o automóvel novo, para demonstrar a
obsessão de Ballard pelo seu objeto que é da mesma marca, modelo e cor
A obsessão do personagem Ballard por seu automóvel reflete a sua
personificação na matéria, como se o carro fosse uma espécie de tecido epitelial ou um
membro de seu o seu corpo. As sensações do corpo de Ballard são complementadas pela
máquina e o seu duplo materializado depois cortado nos acidentes, é possível afirmar
“
dade
chamada
corpo”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 127). Crash trabalha essa questão colocando o automóvel
como prótese que mistura sexo e tecnologia, levando seus personagens à morte. O
acidente é colocado como algo irradiador de energia, monólito, mas o seu duplo
materializado é sinônimo de reificação. A imagem da duplicação do carro de Ballard
pode ser reiterada à imagem da figura do corpo, pois, tanto carro quanto corpo estão
sendo transformados em duplicatas do sistema. Segundo Baudrillard: “A metástase
57
começada com os objectos industriais acaba na organização celular” (BAUDRILLARD,
1991, p. 130).
No filme, o acidente deixa de ser um acontecimento do acaso, ao contrário,
passa a ser buscado, consumido e encenado, um tipo de psicodrama para as
psicopatologias obsessivas desenvolvidas em contato com as tecnologias. Mas um tipo
de terapia levada tão a sério pelos personagens, que eles buscam mesmo a maior
proximidade da morte, representando as celebridades no momento de sua passagem. A
vida confunde-se tanto com a ficção que os personagens de Crash representam a morte
das celebridades. O acidente ronda todo o espectro obsessivo de Crash, é ele que, de
acordo com Baudrillard (1991, p. 141), dá forma à vida, é ele que é o sexo da vida. Em
Crash o carro, com seus elementos intercambiáveis torna-se o elemento metonímico28
que condiciona uma série de outros objetos. Ele pode ser pensado como presunção das
moléstias futurísticas, abrindo novas cicatrizes no universo do desvelamento contínuo
da vida. Logo, o acidente ocorreria muito provavelmente como efeito retroativo.
A violência em Crash é altamente sexualizada e transgressora, torna-se o
caminho para uma experiência transcendental que não obedece às barreiras naturais e as
“
personagens de Crash provocam as colisões [...] para chegar mais perto da realidade e
”( V
2006
90)
personagens encontram-se secretamente em um tipo de seita realizando encontros na
calada da noite para reproduzir os acidentes das estrelas cinematográficas:
O limite final, que não pode ser transgredido é Deus ou o Absoluto.
Em Crash a morte e o orgasmo têm o status do Absoluto que não pode
ser transgredido. A interface é o corpo. Não há mais procura do
infinito, mas sim do finito, e a morte ou o orgasmo tornam-se
imanentemente sagrados, uma transcendência absoluta é conferida à
história (SVENDSEN, 2006, p. 100).
Já não há mais saída para aqueles personagens. Essa encenação dos acidentes
recria a tentativa de vivência de uma tragédia anunciada pelo próprio sistema,
premeditada, é uma tentativa de sair do caos urbano onde a carnificina naturalizou-se,
ainda uma tentativa de metáfora extrema da condição humana diante da metaforização
28
Lacan (1992) situa a metonímia como suporte do sintoma obsessivo por excelência, graças ao fato de
que, na metonímia, o deslizamento processa-se associando um significante a uma série de outros
significantes, tornando-se uma cadeia infinita.
58
do corpo como máquina, da condição do corpo como reserva de informação a ser
decodificada e mercantilizada, reduzida para a solução de supostos problemas,
inventados pelo próprio imaginário da continuidade técnica sem limites. Ao reviverem
as estrelas de Hollywood, os personagens de Crash são ao mesmo tempo carne e tela,
com a possibilidade do acidente libertá-los das amarras do determinismo
mercadológico, tentam viver a reversão do processo que já os seduziu e os reverteu
também em objeto de consumo a partir das simuladas imagens.
Para Bauman (2001, p. 46), o interesse público é reduzido à curiosidade sobre a
vida privada de figuras públicas e a vida pública é reduzida à exposição e confissões de
questões privadas. A indiferença entre as esferas pública e privada é mais um sintoma
do esfacelamento dos limites entre individual e social, sendo o social constantemente
privatizado de forma a funcionar de acordo com as leis do mercado. Exemplo desse
fenômeno descrito por Bauman é a infinidade de programas televisivos nos quais o
conteúdo são as fofocas que expõem a vida dos famosos e o contrário também,
programas com nomes bem sugestivos que levam pessoas comuns a exibirem suas
vidas: A Tarde é Sua, Você na TV, etc. Como colocado por Bauman, o objetivo desses
programas é aproximar as pessoas do contexto publicitário informacional, seduzindo-as
e revertendo-as em objeto. Sobre essa questão, Baudrillard (1991) afirma que o desvelar
apaga até mesmo as fronteiras entre real e ficcional. Esse universo comum a todos já
incorporou totalmente a simulação e por isso o próprio sexo torna-se uma experiência
antinatural.
Segundo Melo (1988, pp. 62-63), a abolição dos mitos de Origem fez com que o
sistema assimilasse seus antagonismos, desmitologizando as origens e engendrando o
mito da operacionalidade através do código. A metafísica do código é a objetivação do
discurso a partir da simulada hipótese do código como critério de verdade, logo, o
simulacro da objetividade seria mais uma forma de legitimação da ciência.
Baudrillard salienta que em Crash (1991, p. 141), o imbricamento entre corpo e
técnica chega ao extremo e só pode resultar em um não sentido que explode em uma
desregrada sexualidade, uma espécie de vertigem potencial ligada à inscrição pura de
signos
“
nulos
do
corpo,
um
tipo
de
contra-hermenêutica
representativa,
arrepresentação, onde a ordem do sentido como exaltação cósmica da aceleração
[...] é abandonada em favor de um encanto poético do ralenti29, que destrói o sentido
29
Ralenti é uma palavra de origem francesa que significa mais lento.
59
”(
1988
235) Os personagens perdidos no universo, segundo
Svendsen (2006, p. 91), tentam se reencontrar na sexualidade, principalmente porque,
segundo esse autor, teriam sido doutrinados pela psicanálise a achar que a sexualidade é
a chave da existência. A sexualidade não se presta, unicamente, a dar sentido à vida,
pois, corre-se o risco dela também se reverter em código vazio.
É perceptível no olhar dos personagens de Crash sempre uma profunda solidão,
expressão do tédio que só pode ser superado pela implosão dos sentidos nos simulados
acidentes em meio ao labirinto da existência. Segundo Debord (2003, p. 18), o
isolamento fundamenta a técnica e em consequência disso o processo técnico isola os
homens entre si. O automóvel, a televisão, todos os bens produzidos pelo sistema do
espetáculo são também as suas armas para o reforço constante das condições de
isolamento das multidões solitárias que são tratadas como partes integrantes de
macrossistemas autômatos. Svendsen (2006, p. 91) afirma que as cenas sexuais em
Crash são frias e técnicas assim como o movimento de vaivém dos pistões de um motor
automobilístico, revelando a falta de afetividade entre os personagens.
No texto Transestético, capítulo do livro A transparência do mal, Baudrillard
(1990, p. 23) afirma que até o mais obsceno e banal estetiza-se e que tudo toma força ou
modo de signo, logo, para ele, o sistema funciona não só pela mais-valia da mercadoria,
mas também pela mais-valia do signo. Crash mostra a estetização do acidente, mas não
se atém ao bem ou ao mal, os personagens apenas agem, o sistema apenas funciona.
Baudrillard (1991, p. 26) ainda afirma que o mercado é mobilidade, liquidez total, a arte
estaria para ele, além do belo e do feio, assim como o mercado está para além do bem e
do mal. Por todos esses aspectos Baudrillard considera Crash um retrato do mundo
“
”
Crash é o nosso mundo, nada aí é inventado: tudo é aí hiperfuncional,
a circulação e o acidente, a técnica e a morte, o sexo e a objectiva
fotográfica, tudo aí é como uma grande máquina síncrona, simulada,
isto é, aceleração dos nossos próprios modelos, de todos os modelos
que nos rodeiam, misturados e hiperoperacionalizados no vazio. O que
distingue Crash de quase toda a ficção científica, que na maior parte
das vezes ainda gira à volta do velho par (mecânico e mecanicista)
função/disfunção, é que projecta no futuro segundo as mesmas linhas
de força e as mesmas finalidades que são as do universo normal.
(BAUDRILLARD, 1991, p. 156)
60
Desta forma, Baudrillard considera que Crash não é apenas uma narrativa
ficcional, mas exibe o que acontece no universo externo ao filme, que ele prefere
“
”
“
”
Crash representa justamente a relação
hiper-real por caracterizar os processos de hibridização do corpo com as tecnologias no
sentido fáustico, sem limites, deixando novas cicatrizes. Essas cicatrizes exercem a
função de novos orifícios, novos órgãos sexuais diretamente abertos e penetrados pela
“
[ ]
x
” (BAU R LLARD, 1991, p. 140). A fusão entre corpo e máquina geram
outro tipo de organismo, não menos biológico, mas mortificado pela potencialidade
técnica. O organismo é desconstruído, desvelado, visto como obstáculo para o
desenvolvimento do código e para a concretização do projeto asséptico. Movimento
observado em Crash nas cenas em que a doutora Remington aparece vestida com suas
luvas e o jaleco, sempre a proteger o seu corpo das impurezas da condição humana, mas
ao mesmo tempo insuficiente para protegê-la da sedução presente na relação entre sexo,
máquina e acidente.
Figura 4 – Cena do filme Crash.
A sequência esboça uma cenografia, ou seja, a colocação dos autores e da
câmera do tipo tribunal. Tanto Ballard quanto Remington possuem razões para
estarem ali. A câmera e o diálogo insinuam o provável desenrolar de uma
relação. O plano ainda sugere o ar (gíria de operador de câmera que denomina
algum tipo de espaço) em cima ou embaixo com os pés cortados, sugerindo
maiores aspirações.
Além das características assépticas, na mesma cena, as palavras da doutora
Remington referem-se à aumentada vontade de andar de carro após o choque contra o
veículo de James Ballard que levara seu marido a falecer, demonstrando a necessidade
61
do corpo orgânico de completar-se com a artificialidade. Para Baudrillard (1990, p. 27),
o corpo está entregue ao destino artificial, assim, Crash exibe o ato sexual fora do reino
“
” (BAU R
AR
1991
141)
funcionais. Tanto o livro quanto o filme, colocam-nos diante da violência tecnológica e
do sexo que se complementam e demonstram a necessidade do orgânico relacionar-se
com o artificial. A pornografia, como exibição total, leva ao extremo a natureza do
corpo e do ser, mostrado como dados, em zoom High Definition, analogias da ciência
desveladora e especular.
Os espelhos são próteses do olho humano que podem aumentar a função do
olhar. No caso dos retrovisores automotivos, as pessoas adquirem visões diferenciadas
do alcance normal de seus globos oculares. Os espelhos desenvolvem também fator
fundamental para refletir os objetos dentro dos shoppings centers, potencializando o
consumo, inclusive através da transparência das vitrinas. Em Crash, o espelho exerce
função proporcional ao potencial dos atos sexuais, pois em algumas cenas é utilizado
como elemento direcionador do olhar voyerístico. Na cena abaixo, Ballard presencia as
relações sexuais de Vaughan com uma prostituta pelo retrovisor.
Figura 5 – Cenas do filme
Na
cena acima temos o movimento da câmera numa mistura de panorâmica com
Crash.
travelling. A imagem da câmera sai três vezes do seu ponto de vista inicial, o volante,
faz uma panorâmica na cabeça de Ballard e vai em direção ao banco traseiro do veículo,
sugerindo que o espectador é participante da história. O movimento se repete três vezes
da esquerda para a direita, intercalado por três raccords (2009, pp. 47-48).
O espelho pode também exercer algum tipo de natureza mágica. Se pegarmos
uma pessoa que nunca se viu e colocarmos um espelho à sua frente, é muito provável
que ela se surpreenda de alguma maneira, podendo assim, em relação ao imaginário, o
62
espelho configurar-se como prótese do duplo. Em Crash, é possível perceber como
Ballard aos poucos vai se entregando à maneira de ser de Vaughan, consecutivamente, a
personalidade de Vaughan faz papel de espelho (duplo) para Ballard que começa a agir
de acordo com os reflexos emanados por ele, despertando, consequentemente, o seu
duplo.
Além dos retrovisores, em Crash observa-se a mediação da visão por algum
outro tipo de prótese, a máquina fotográfica por exemplo. Vaughan carrega consigo em
vários momentos uma câmera para registrar as feridas e os acidentes, para ele os
desastres são espetáculos, assim como os encontros sexuais. Registrando essas imagens
ele constrói sua narrativa estética. Logo abaixo observamos Vaughan fotografando a
cena de um acidente que envolveu vários veículos numa autoestrada. Dentre eles o de
Seagrave que morreu na reconstituição do acidente de Jayne Mansfield.
Com isso Seagrave conseguiu apagar o limiar entre ficção e realidade, pois o que
era para ser apenas representação o levou à morte. Ao se aproximar do carro de
Seagrave, Vaughan reconhece o corpo do amigo e lamenta, mas não a perda do amigo, e
sim o fato dele ter caminhado sozinho para a reconstituição do acidente, então faz um
comentário parecendo não acreditar na ousadia de Seagrave: - Não podia esperar por
mim? Fez o acidente de Jayne Mansfield sem mim?
Figura 6 – Cenas do filme Crash.
No plano da sequência, temos o raccord de olhar, que consiste do ponto de vista
do espectador. É como se entrássemos na câmera de Vaughan para observar
Seagrave. Um ponto A estar a ver um ponto B.
Com esses exemplos que ocorrem em Crash, visualiza-se que os seres vívidos de
aparências naturalizam a necessidade da autoexposição pretendendo serem vistos em
63
máxima definição. Narciso foi seduzido pela própria imagem refletida na lâmina
’
Crash são seduzidos pelas imagens das telas e dos signos.
Logo, a visão dos acidentes expostos nas telas confunde os personagens com as
matrizes, semelhantemente à confusão narcótica presente no mito de Narciso. Assim
como os telespectadores dos noticiários assistem desastres de todos os tipos durante as
programações das redes televisivas.
Aspecto fundamental da fotografia em Crash
z
memória
função enquanto prótese da
através dos álbuns montados por Vaughan que Ballard
confronta sua memória, já
sexuais dentro do automóvel. Da mesma forma, as fotografias de Gabrielle, de seu
acidente e de sua recuperação, consolidam uma espécie de lembrança através da qual a
história
. Para Baudrillard (1991, p. 141) o acidente tornou-se
irreversível, já não está à margem, mas no coração.
A ciência já nos fez habituar a essa microscopia, a esse excesso de real
em seu detalhe microscópico. A esse voyeurismo da exatidão, do
grande plano sobre as estruturas invisíveis das células, a essa noção de
uma verdade inexorável não mais mensurável pelo jogo das
aparências e que apenas a sofisticação de um aparelho técnico pode
revelar, Fim do segredo. (BAUDRILLARD, 1992, p. 39)
“ x
Na citação Baudrillard refere“
y u
x
”
x
”
nos faz revelar além mais e
de maneira desproporcional o corpo e o ato sexual. A vulgarização do sexo e da
violência verificada em Crash propõe o questionamento a partir da representação desses
aspectos como verdade inexorável. Verdade imposta aos sentidos dos personagens em
contraponto ao jogo das aparências que, muitas vezes, já não possui forças para lidar
com a reprodutibilidade técnica.
O exemplo de Crash demonstra a sexualidade realizada na morte, como
sinônimo de existência, como se só a morte, ironicamente pudesse dar sentido à vida.
Svendsen, citando Karl Kraus (1968),
x
“
” (KRAUS apud
SVENDSEN, 2006, p. 96). Os personagens ao depositarem suas esperanças na
tecnologia automotiva tornam suas vidas, proporcionalmente, ainda mais entediantes.
64
Segundo Svendsen (2006, p. 96), Cronenberg disse que a sexualidade tem origem
biológica, mas que a esquecemos. Digamos então que há em Crash, uma fecundação do
patamar tecnológico dos corpos misturados às máquinas.
2.2 A contínua rentabilidade espetacular do corpo
O espetáculo é, materialmente, a expressão
da separação e do afastamento entre
homem e o homem
Debord
“
s finalidades autônomas do sujeito, mas de
acordo com o princípio normativo do prazer e da rendibilidade (rentabilidade)
” (BAU R
AR
1995
139) Bataille (2012, p. 41) afirma que se vemos
nos interditos a recusa que opõe o ser à natureza encarada como um excesso de energia
viva e como uma orgia da destruição, não podemos mais diferenciar a morte da
sexualidade. Logo, a sexualidade e a morte em Crash são apenas os momentos intensos
z “
”
tra tendo o sentido do
desperdício ilimitado. Exigido pela perfeição, o corpo já não é mais vontade, mas
vontade de uma estética da destruição que se torna bela e natural ao olhar funcional da
sociedade “[ ]
” (BAU R
z
AR
1995
do imperativo
141)
-se
espetaculares e as cicatrizes são exibidas como troféus. No artigo Depois do espetáculo,
Juremir Machado da Silva (2007, pp. 31-42), em referência aos escritos de Guy Debord,
salienta que passamos da cultura
“
”
O espetáculo era um dispositivo de controle por meio da sedução. No
hiperespetáculo, quando tudo se torna tela, cristal líquido e captação
de imagem, todo controle é remoto. Passamos da manipulação, estágio
“
”
degrau superior da manipulação, à imersão total. Evoluímos da
65
participação, que pressupunha um sujeito e uma ideia de política, para
a interatividade, que reclama um jogador desinteressado (SILVA,
2007, p. 32).
“
-sentido, a selvageria desta mistura do corpo e da técnica está imanente, é
x
”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 141). Baudrillard (1995, p. 142) ainda escreve que somos
todos manequins, manipulados pelos desejos da máquina publicitária. A beleza de
Crash reside no vazio, na ausência e transparências absortas, sendo o corpo tratado
como niilista, pois ritualizar os acidentes e procurar a morte é negar a vida. No filme, é
o próprio sentido do corpo que acaba no próprio processo hipnótico da tecnologia.
Em Crash, acontece com o corpo o mesmo que com o trabalho. Ele é explorado
pela indústria com a mesma lógica da mais-valia, absoluta e ou relativa, pois é objeto
hiperfuncional, sem diferenciação de horas de trabalho ou horas de descanso. Sobre ele
estão inseridos todos os signos da produtividade e, a todo o momento, o corpo é
consumido como objeto nas estradas ou em atos sexuais. Baudrillard (1995, p. 143)
explica que o importante é que o corpo seja libertado e emancipado para ser
racionalmente explorado em todas as suas nuances. Svendsen (2006, p. 30) ainda coloca
z
“
”
e menos
z
Crash uma deficiência de
“[ ] para além do
” (BA A
2012, p. 41).
Crash ultrapassa a dicotomia corpo/alma da tradição cristã e levanta a
descoberta do corpo como sacralização instrumental. Os personagens enredam o
paradoxo secularização/sacralização, aparentam estarem presos no cientificismo e
entediados, por isso tentam sacralizar seus corpos nos rituais de simulação. Sendo
assim, para eles o corpo preenche e decepciona ao mesmo tempo, aspecto que os leva a
um não entendimento do seu próprio fazer, por eles mesmos, são forçados a gozar
tecnicamente através dos automóveis. Os automóveis de Crash tornaram-se pílulas em
academias de Educação Física; construímos corpos de acordo com os outros expostos
nos displays, matrizes, para logo em seguida cair em deleite funcio
“a questão é o
corpo, [...] orgânico e erógeno, o corpo funcional do qual, mesmo nessa forma
z
(BAUDRILLARD, 1992, p 14).
”
66
Para Baudrillard, “a maquilagem não é outra coisa senão paródia triunfante,
resolução pelo excesso, por hipersimulação, própria lei da castração” (BAUDRILLAR,
1992, p. 20). O corpo passa a copiar os vários outros existentes, realizando uma
constante modificação técnica. Infinita insatisfação, resultando na sua banalização. O
corpo não perde a sua importância, mas adquire tão somente a condição imediata e
funcionalista. “
z
x
”
(BAUDRILLARD, 1992, p. 23). Baudrillard (1992, p. 25) salienta que então é chegada
a era da pílula e da determinação ao gozo. A adoção racional das próteses.
O tempo e o espaço, geográficos ou corporais, ocupados pelas transformações
científicas, tornam-se hiper-reais, digitais, virtuais, não os enxergamos, apenas sentimos
suas ondas. McLuhan (1969, p. 22) afirma que tanto a luz como a energia elétrica
eliminam os fatores de tempo e espaço da associação humana, exatamente como o
fazem o rádio, o telégrafo, o telefone e a televisão. Estes geram a participação em
profundidade, constituindo a época de uma referência só: a dos signos condicionando
nossos imaginários: telas em High-Definition, câmeras espalhadas pelas esquinas, ou
seja, vigilância total. Para Debord (2003, p. 113) a organização técnica do consumo e
sua dissolução geral conduziram a cidade a consumir-se a si própria. Nesse sentido, a
dissolução funciona como elemento impulsionador da visão consumista que não se
desvincula da necessária destruição dos produtos para que surjam novos.
Em seu livro A sociedade do espetáculo, Debord (2003) explicava que o
momento era de autofagismo do meio urbano: ditadura do automóvel, que seria o
produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil. Posteriormente com a
prevalescência da autoestrada, os antigos centros deslocam-se e ocorre uma dispersão
cada vez maior do espaço urbano. As panorâmicas do filme revelam a dimensão
labiríntica desse espaço que confunde mais que orienta. A cidade em Crash é sentida
então como um labirinto sem saída, o qual em alguns momentos você pode esquecer,
mas que em pouco tempo se vê ligado novamente. Os centros urbanos são esse
emaranhado de redes infinitas de asfalto que nos liga na contínua reprodução dos
sistemas, hiperlinks rodoviários.
Octavio Paz (1990) reforça a condição funcional determinada pela técnica e que
encontra no mundo uma forma de resistência a ser dilacerada. A exemplo de
Baudrillard, nesse trecho Paz salienta a desconstrução de referenciais despojados pelo
67
aprofundamento tecnológico ao não mais representar ou reproduzir a realidade, mas
evidenciando a confusão sensorial provocada pelo potencial tecnológico:
A técnica não é nem uma imagem nem uma visão do mundo; não é
uma imagem porque não tem por objeto representar ou reproduzir a
realidade; não é uma visão porque não conhece o mundo como figura,
e sim como algo mais ou menos maleável para a vontade humana.
Para a técnica o mundo apresenta-se como resistência [...]. (PAZ,
1990, p. 103)
Nietzsche (1992, p. 135) já considerava o homem abstrato, privado da luz do
mito, a educação abstrata, a moral abstrata, o direito abstrato, o Estado abstrato. Para
ele, esse estado de coisas corresponderia à degenerescência do caráter ocidental. A arte
e o povo, o mito e os costumes, a tragédia e o Estado estariam necessariamente ligados e
estreitamente misturados nos seus fundamentos. A morte da tragédia (como gênero) foi
também o fim do mito original. Já uma privação da imagem e a reversibilidade do
sujeito diante do objeto, ou seja, a morte dos imaginários em troca do controle
imagético do mundo. Nietzsche (1992) diz isso no sentido de que o abandono dessa
tensão natural proporcionou um mal ainda maior, logo, um cientificismo visto em fins
de verdade única. Assim, o corpo é sujeitado à mente e não reflete um enunciado da
natureza, é segregado dela, menor que a razão e reduzido à mera cópia do modelo passa
a ser também reificado.
68
2.3 Cavando a própria cova: o célebre no lugar dos deuses
Todo mundo é um cientista maluco e a vida é o
laboratório.
A
gente
está
sempre
experimentando, tentando achar um jeito de
viver, de resolver os problemas, de se livrar da
loucura e do caos
Cronenberg
Há uma remanescência do tratamento do corpo, mas que não mais o vê como
organicidade, e sim como objeto a ser explorado, assim como os outros entes
integrantes da natureza “E agora o homem sem mito encontra-se eternamente famélico,
sob todos os passados e, cavoucando e revolvendo, procura raízes, ainda que precise
escavá-las nas mais remotas Antiguidades.” (
Z
1992, p. 135).
Deslumbrado, o homem se cega pelo fazer da técnica museológica (antropológica), e
como técnico possui o poder de arrancar da natureza os vestígios deixados pelos seus
ancestrais, desvelando-a... Mas continuamente esfomeado segue o homem, procurando e
cavando sem sucesso, frustra-se. Baudrillard (1991), a exemplo de Nietzsche, em seu
texto Ramsés ou a ressurreição cor-de-rosa, afirma que: “
acumulativa [...] se desmorona se não pudermos armazenar o passado à luz do dia. Para
z
ú
ê
”
(BAUDRILLARD, 1990, p. 17 e 18); a exemplo disso citamos a exumação do corpo de
Dom Pedro I30. Esse é o espírito da técnica, velar historicamente o sentido mítico, a
relação do corpo com a natureza e dispor o artificial no lugar dessa relação. No filme
Crash o célebre substitui os deuses, o sentido falha, e o ritual se repete infinitamente
replicado pelas imagens das arquibancadas, das telas e o reflexo dos simulacros. A
narrativa da morte é reproduzida como rito, por exemplo, na ressurreição do acidente de
James Dean. Reversibilidade da narrativa de vida para a de morte, do natural para o
virtual.
É mister para os sistemas, manter suas características reprodutivas e
acumulativas, assim podem fazer da história também um mercado lucrativo que não
30
REVISTA GALILEU. Entenda o que significa a exumação do corpo de Dom Pedro I e suas mulheres
[s/d]. Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI331308-17770,00ENTENDA+O+QUE+SIGNIFICA+A+EXUMACAO+DO+CORPO+DE+DOM+PEDRO+I+E+SUAS+
MULHERES.html>. Acesso em: 12 de março de 2013.
69
preza pela memória, mas pelos objetos que expõem o espírito técnico. O espírito
científico mata em nome do progresso e depois ressuscita o que matou em nome da
ciência histórica, novamente em nome do progresso, da civilização. Daí a mitologização
dos objetos e a reificação dos cadáveres, modelos de simulação que foram vida outrora.
Na sociedade o corpo invadido pelas câmeras e telas é destruído/construído em
prol da técnica. Construído e aperfeiçoado para sustentar a funcionalidade do sistema e
depois destruído nos acidentes: os personagens transportam as máquinas e vice-versa
até se destruírem em uma das projetadas curvas, essa é a liberdade do consumo. Ao
reproduzirem os acidentes, os personagens projetam simulando (experimentando) no
tempo e no espaço as condições para o desaparecimento ou a mutação do corpo. A
técnica destrói o que veio completar. As marcas deixadas no corpo em Crash são
consideradas “invaginação artificial, [...]. Os poucos orifícios naturais que se tem o
costume de ligar o sexo [...] não são nada ao lado de todas as feridas possíveis, de todos
os orifícios artificiais” (BAUDRILLARD, 1991, p. 143). Na figura 7, a personagem
Gabrielle, exibe suas próteses adquiridas após um acidente juntamente com sua cicatriz
que se assemelha a uma vagina assim como uma a lataria rasgada faz analogia a uma
vagina. Esfrega-se no carro excitando-se e com o seu híbrido olhar seduz o vendedor
que trabalha na concessionária.
Figura 7 – Cenas do filme Crash.
Aqui, em dois momentos distintos e em close-ups, temos o que Jullier e Marie (2009,
p. 56) chamam de metáforas visuais. Nessas cenas, as metáforas visuais, por analogia,
representam vaginas, tanto na pele de Gabrielle quanto na lataria retorcida do veículo
de Catherine. E os trajes reveladores insinuam as cenas de sedução e sexo que
seguem.
As mutilações e cicatrizes deixadas no corpo em Crash concretizam o sonho de
um monstro montado com membros de outros corpos, Frankenstein, mas que agora é
70
montado com próteses de plástico e metal. O corpo em Crash sempre está pronto para
morrer nas autoestradas, Vaughan salienta que o seu projeto é uma nova estetização do
corpo junto à máquina. Pode-se então, comparar Vaughan com os doutores:
Frankenstein e Fausto.
Baudrillard afirma que “
contemporânea, porque é a própria forma da virulência do código: redundância
x
” (BAU R
AR
1991
130) O próprio Vaughan
reconhece a condição patológica da tecnologia que comanda o fazer humano, fato que
será demonstrado na seção seguinte. Em Crash há uma justaposição irônica entre
doença e assepsia, pois, o peso do corpo é insuportável, então, os personagens entregam
seus corpos em deleite híbrido, tentando ou satisfazendo o seu desejo de
desaparecimento.
71
2.4 Técnica, sedução e o terror: A derrocada corporal-automobilística nas cidades
[...] usei o carro não apenas como uma imagem
sexual, mas como uma metáfora total da vida
do homem na sociedade de hoje
J.G. Ballard
Observamos, hodiernamente, notícias sobre o trânsito: segundo o Portal Brasil31,
aproximadamente 42 mil pessoas morrem em acidentes de trânsito por ano no Brasil e
mais de meio milhão ficam feridas, muito mais que em algumas guerras. De fato, talvez
seja natural esse aumento nos acidentes, pois o número de veículos também tem
aumentado consideravelmente, um tipo de progressão geométrica (neomalthusianismo
da máquina) deixando o trânsito insuportável, transformando-o em condição extrema;
motivo pelo qual, métodos interativos são utilizados para informar a situação do
trânsito, através de ligações telefônicas ou mensagens enviadas via Twitter para as
emissoras de rádio.
Esse espectro é absorvido, modelado e exibido através dos Mass media como um
gigantesco espetáculo. Relativamente ao vertiginoso crescimento da quantidade de
veículos que ocupam as ruas, quanto mais Velozes e furiosos32, maior a hibridização da
carne humana com as ferragens retorcidas nas beiras das estradas e nos abismos da vida.
De acordo McLuhan (1974, p. 250), o carro produziu o nivelamento e criou autoestradas
urbanamente semelhantes. Em Crash várias cenas expõem os ambientes de um grande
centro urbano, dentre elas, a que segue na figura 8. Da sacada do apartamento onde
residem, em frente às autoestradas, Catherine, esposa de Ballard observa a
movimentação, o tráfego rápido com muitos veículos deslizando pelas vias expressas.
31
PORTAL BRASIL. País promove Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2013/11/acoes-promovem-o-dia-mundial-em-memoria-dasvitimas-de-transito>. Acesso em: 16 de novembro de 2013.
32
Velozes e furiosos é um filme americano de ação e corrida de rua de 2001, dirigido por Rob Cohen
seguido de mais cinco sequências. O filme conta a história de Brian, um policial novato que se infiltra no
mundo das corridas ilegais de
“
” nas ruas de Los Angeles para capturar o responsável por
diversos roubos a caminhões nas estradas próximas à cidade. Coincidente ou ironicamente durante a
realização desta pesquisa, a estrela Hollywoodiana de Velozes e Furiosos, Paul Walker faleceu em um
acidente automobilístico no estado da Califórnia, EUA; O destino de Walker foi o mesmo de James Dean.
72
Figura 8 – Cena do filme Crash.
Nessa cena, enquanto Ballard e Catherine dialogam e transam a câmera se aproxima
em zoom da autoestrada.
Desde o advento do Fordismo já produzidos em série, duplicatas do sistema de
produção, signos de status social, os automóveis modificam e aceleram a vida nas
grandes cidades. Modos de vida fabris instituíram-se e com o auxílio do Taylorismo a
administração tomou mais força, mais luz vinha a campo através da racionalização do
trabalho nas linhas de montagem, causando uma estranheza no modo de sentir o mundo
frente à contínua reprodução. Gatti (2013), no artigo O ideal de Baudelaire por Walter
Benjamim, afirma que Baudelaire deu forma à angústia de uma existência ameaçada
pela estranheza do mundo e pela temporalidade que a cada segundo corroia a vida. Pois
Baudelaire referia-se às transformações causadas em alta escala pelas novas técnicas
que borbulhavam já em sua época.
Quanto à reprodução das duplicatas do sistema, mais tarde, nos textos Réquiem
para as Twin Towers33 e Hipóteses sobre o terrorismo, Baudrillard (2003, p. 12),
explanando seu ponto de vista sobre os atentados de 11 de setembro de 2001, afirma
que o fato de que eram duas torres demonstra a perda da referência original, se fosse
apenas uma, o monopólio dos simulacros não estaria caracterizado. Ponto chave que
verifica a violência dos códigos multiplicados e que geram o que a imprensa ocidental
convém denominar de terrorismo. Assim o terrorismo viria de que lado? A figura do
33
Brasília, planejada por Oscar Niemayer também possui duas torres, não com as dimensões das Twin
Towers, mas que fazem parte do “cérebro” do avião e do governo brasileiro. Abaixo das duplicadas
torres, dois semicírculos, um côncavo e outro convexo, juntos, simulam o poder fálico tanto quanto a
Torre Eiffel e as Torres Gêmeas. O ideal do voo tecnológico, do progresso técnico jorra sêmen
contaminado pelo vírus ideológico do voto, sustentado muito apropriadamente por propagandas
publicitárias no horário nobre. Desde sua arquitetura até as falácias tautológicas dos seus simulados
discursos essa cidade é a simulação de uma nação em eterno desenvolvimento positivista simulado, na
ordem e no progresso.
73
terrorista torna-se fascinante para além do bem e do mal justamente por ter sido criada
pela imposição violenta da ordem global, essa imposição simulada caracteriza uma
espécie de Arquitetura da destruição34, através de um Bem, impõe-se sobre os outros
como caráter de verdade.
Não se compreenda disso um elogio ao terrorismo por parte de Baudrillard
õ
(Baudrillard, 2003, p. 31), relativas a esse fenômeno, demonstram que o
terrorismo tem sido triunfal no sentido de analisá-lo, questioná-lo diante das imposições
mercadológicas da Nova Ordem Mundial. Portanto, como forma de apontamento,
preciso analisar o terror e o mal como aquilo qu
x
z
scínio que provoca a presença dos
dois no corpo social, pois, eles substituem a guerra convencional e a exacerbação do
jogo e do código político pela violência e pela morte.
Para Baudrillard (2007)
acontecimento supracondutor e viral,
expressão do mal em estado puro, multiplicado pelos meios de comunicação através da
virulência das imagens e do discurso de Democracia do Bem, que é distribuída ao
restante do mundo
com bombardeios de caças supersônicos,
porta-aviões,
metralhadoras, mísseis de última geração e a panóplia de segurança midiática35 “A
simulação é como o grau zero dos signos: ela é o termo não-marcado que se opõe ao
ê
livre-
” (
“
1988
z
”
59)
o
B
simulação em nome de um valor-signo, para além do material-imagético em nome de
interesses, sejam eles quais forem. Geralmente o livre-arbítrio é o do Mass Media.
Considerar o terrorismo como acontecimento supracondutor do mal significa que
s
advém de uma ação contra o Estado
que o define. Significa considerar que ele irradia-se pela sociedade porque evoca o que
e
escondido: o inumano, a barbárie. Aqui se faz a comparação do terrorismo
(atentado) às Torres Gêmeas com o terrorismo vivido no trânsito, logo, nas imagens de
34
ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO. Documentário. Dir. Peter Cohen. [1989] Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=n9s00HRB_rc>. Acesso em: janeiro de 2013.
35
TERRA. Novas informações de Snowden sobre espionagem podem prejudicar EUA mais ainda. [2013]
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/novas-informacoes-de-snowden-sobre-espionagem-podemprejudicar-eua-mais-ainda,4bf6fb8609ecf310VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html>. Acesso em: 14 de
julho de 2013.
74
Crash. O terrorismo está tanto para o Bem quanto para o Mal, reflexo de imposições
globais. Uma medida extrema para uma época extrema.
2.5 O Projeto de Vaughan: um Fausto em Crash
Tornai-me a aparecer, entes imaginários, que
me enchíeis outrora os olhos visionários!
Poder-vos-ei fixar?... Tenho inda coração
capaz de se render à vossa sedução?
Goethe
McLuhan (1974, p. 86) indicava que o impacto dos veículos, causaria o
espalhamento do modelo de metrópole moderna transformando-as em desastres
automobilísticos. Esse autor salientava ainda que o carro tornara-se uma espécie de
extensão dos nossos corpos, construídos para amenizar nosso estresse físico, mas
produzindo um estresse psíquico mais prejudicial que libera uma furiosa descarga de
energia. Após essas afirmativas, basta observar o tráfego nos horários de pico para se
convencer das posições de McLuhan.
Como grandes serpentes de aço que fumam por entre as vias congestionadas,
seguem os automóveis pelas camadas impermeáveis de piche e de cimento. A centopeia
aqui não é somente humana, como no filme do diretor holandês Tom Six, é uma
centopeia com próteses motorizadas que descarta seus excrementos em quem vem logo
atrás. Dentro de cada automóvel as células neurais dos homens desfalecem em pequenez
diante da simulada grandiosidade do automóvel e das congestionadas cidades.
O automóvel assemelha-se àqueles robôs da ficção científica os quais são
controlados por corpos humanos e que, em sentido baudrillardiano, passam a ser hiperreais ao confundir-se com a tecnologia. Em diálogo, os personagens Ballard e Vaughan
descrevem o que sentem ao juntar o sentir-se vivo no acidente com o prazer sexual:
- É muito prazeroso. Não sei se entendi bem (Ballard). - É o futuro
Ballard... E você já faz parte dele. Você está vendo isso pela primeira
vez... Há uma psicopatologia benevolente que sinaliza em nossa
direção. Por exemplo, acidente de carro é uma forma de semear em
vez de um evento destrutivo... A explosão de energia sexual mediando
aqueles que já morreram com uma intensidade que é impossível ser
75
mensurada de outra forma. Experimentar isso, viver isso, isto é o meu
projeto (Vaughan).
Figura 9 – Cena do filme Crash.
Enquanto Vaughan e Ballard conversam sobre o projeto a câmera foca hora
num, hora noutro em close-ups intercalados por raccords. Ainda nessa
sequência, temos o posicionamento em câmera alta total focando as fotos dos
acidentes das celebridades.
Vaughan é um entusiasta dos acidentes e do sexo. Para ele os mortos seriam
mediados através dos acidentes. Pode-se afirmar que ele coloca a energia do seu órgão
genital no volante, projetando uma cena estética futura, levando Ballard a ficar confuso,
mas se sentindo extremamente atraído pelo universo do conjunto destrutivo que envolve
sexo e tecnologia, exposto por Vaughan. Paula Sibilia (2002, pp. 16-19) explica que as
tendências fáusticas de fabricação de seres humanos que pertenciam ao universo
ficcional, passam a serem discutidas em várias escalas da vida. Sendo assim, ela explica
que as várias metáforas do homem-máquina utilizadas no decorrer dos séculos podem
estar se concretizando, pois agora a humanidade possui ferramentas para se
automodificar, edificando corpos e mundos de acordo com o instrumental da
tecnociência.
“
Etimologicame
”(
UA
2001
”
palavra latina projectus “
2308). Em formato de balas bélicas e flechas,
o design dos carros vem se aperfeiçoando a cada dia para o aumento da velocidade,
desviando-se da natureza dos ventos. Lançando os corpos, como proposto por Vaughan,
num futuro sem limites tecnológicos, semeando a explosão de energia sexual e
provando o duplo a partir da imagem dos que já morreram. Assim como Fausto perde o
controle de sua mente diante do diabo, Vaughan perde o controle diante da tecnologia.
76
Seu ilimitado fascínio pelas transformações do corpo em contato com as tecnologias
pode ser visto quando ele tatua no peito um mecanismo que lembra engrenagens. O que
dizer sobre as tatuagens biomecânicas que hoje as pessoas exibem orgulhosas em suas
peles?
Figura 10 – Cena do filme Crash.
A tatuagem biomecânica de Vaughan é filmada em close-up.
Os automóveis contribuem significativamente para o desastre urbano, a
violência é colocada à prova em todos os momentos nas retas, curvas e encruzilhadas. O
“
”
espetacular repercussão na mídia: o rádio, a televisão, o cinema, etc., que passaram a
exibir os desastres, a destruição dos automóveis e dos corpos, formatando esse processo
em um hiperespetáculo, naturalizando-o (Deep Web36 total). Esse caráter de
desaparecimento do sujeito é exibido em centenas de cenas do cinema pop:
perseguições, bombas, velocidade e destruição generalizada, esse é o cardápio
protagonizado pela indústria cultural que faz sucesso, a banalização generalizada da
violência:
O que as pessoas ma
aconteceu. E como em todos os sonhos que se re
aflitiva sensaçã
z A
36
,
z
Bergman cita um artigo de janeiro de 1996 produzido por Frank Garcia, no qual ele afirma que Deep
Web
“[…]
-lo em
nenhum mecanismo de busca. Então, ninguém pode encontrá-los! Estão escondidos. Eu os chamo de Web
Invisível” R
a Deep Web é o lado escuro da Internet onde se encontram todos os tipos de
bizarrices.
77
x
x
melhor que nada... Penso que estamos na pista de toda espécie de
loucura. Penso que nã
ra todo tipo de absurdos que vão
aparecer. O futuro será entediante (BALLARD apud SVENDSEN,
2006, p. 88).
Supermáquinas com seus gadgets projetam um futuro que absorve e toma o
lugar do presente, semiurgia dos efeitos especiais, ciência da manipulação, força
ideológica dos discursos: social, político, sexual, etc., ao complementar uns aos outros.
Segundo Svendsen, como o sonho da sociedade de consumo se realizou, agora sobra o
vazio. Resta então acreditar em qualquer coisa, como o universo tecnológico é o
predominante, acredita-se em suas promessas de melhoramento da existência no mundo.
Apesar de o objeto carro ser um dos destaques na narrativa de Crash, na cena
inicial as aeronaves ganham seu espaço, representando o contínuo desenrolar dos
veículos na tecnicidade. Um hangar adentra a tela onde aparecem alguns aviões de
pequeno porte. Ao fim do plano, duas aeronaves, entre elas, no quadrante, uma mulher
loira se despe vagarosamente mostrando o seu sutiã branco enquanto a câmera foca o
seu tórax. Seus olhos inicialmente fechados abrem-se e parecem olhar em direção ao
nada, o brinco prata e o pescoço à mostra; a câmera abaixa-se um pouco fitando os seus
seios. Verticalmente vai descendo até os seus pés: uma longa saia preta e sapatos
sociais, de repente dois calçados masculinos aproximam-se por trás da senhorita,
sorrateiramente ela levanta um dos pés em sinal de prazer. A câmera volta e mostra o
seu seio sendo esfregado à aeronave.
A partir dessa cena inicial já é possível detectar que sexo e tecnologia são o
centro do universo de Crash, sendo a subjetividade do corpo relegada ao segundo plano
em favor da hiper-realização. O corpo então pode ser enxergado como vítima da
imposição do gozo tecnológico mediado pelas próteses, representadas, naquele
momento de Crash, pelas aeronaves.
78
Figura 11 – Cena do filme Crash.
Cena inicial com um tipo de louma em travelling por entre e sobre as aeronaves até que se
descubra Catherine. Logo após o travelling, um corte repentino para a personagem que se
despe vagarosamente.
Os personagens de Crash, vítimas do histórico paroxismo, recorrem ao acidente
como meio de transgressão, liberação de energia sexual, pulsão de morte (ou vida?) em
meio ao brainstorm mercadológico das concessionárias, funcionam como um choque de
verdade; é isso que Crash propõe: sentir o corpo realmente, mesmo que mutilado ou
morto no momento do desastre, momento de reflexão extremamente individual sem a
interferência da publicidade. No momento do acidente, o corpo não é absorvido pelas
páginas das revistas, pelo teatro dos jornais sensacionalistas e pela reflexiva sedução das
telas. O projeto da dualidade cartesiana entre material e ideal e os discursos da
tecnociência, enfatizados por Paula Sibilia (2002, p. 95) no texto O espírito na carne: a
teimosia da organicidade, estão esboçados em Crash, sendo os seus personagens,
vítimas dessa dualidade.
As quatro causas aristotélicas37 parecem nunca ter chegado a possuir tanta força
antes da sociedade globalizada e assim o círculo vicioso da tecnologia continua, um
vaivém pornográfico desmesurado, hiper-real. Automação e cibernação operada com
todas as unidades componentes do processo científico-mercadológico, da inter-relação
que se observa na indústria e no mundo do entretenimento e do resultado da velocidade
elétrica instantânea, produzindo a extensão desse processamento mediante os sistemas
nervosos centrais aprofundando a era mecânica de Gutemberg.
37
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Abril Cultural, 1984. HEIDEGGER, Martin. In:
Ensaios e conferências. A questão da técnica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá
Cavalcante Schuback. 5ª ed. Petrópolis : Vozes; Bragança Paulista : Editora Universitária São Francisco,
2008.
79
A automação cibernética traz uma produção em massa não em termos de
tamanho, mas de abrangência inclusiva, instantânea e interativa (1974, pp. 390-391).
Basta enviar um SMS (Short Message Service) e a mágica está feita; empunhar sua
câmera, filmar e enviar o vídeo para uma emissora de televisão, pronto, o fetiche está
realizado, interagimos, fomos seduzidos; ou ainda twitarmos nas hashtags (#) das
homepages e das timelines. Sedução que está implícita no modelo social
contemporâneo, em seus objetos e elementos, os corpos em algum momento,
transformam-se em códigos. Importante salientar que essa magia tecnológica,
diferentemente da descrita por Mauss sobre as sociedades primitivas, não tem caráter
natural, mas material, no sentido de que vai de objeto para objeto constituindo uma
reprodução infinitesimal.
Os automóveis por estarem imersos no universo da técnica tornam-se
materialmente mágicos como tantos outros objetos da comunidade globalizada, meio de
status social, meio de destaque conquistando os imaginários com a sua imponência. As
pessoas que possuem os mais novos lançamentos tecnológicos são consideradas
atualizadas e, ao entrarem em contato com objetos, cada vez mais velozes e renovados,
sentem-se mais introduzidos na velocidade da sociedade de consumo, upgrade total, das
máquinas e dos corpos. O corpo desloca-se com maior rapidez e fluidez, falsa
idealização perante a intensificação do tráfego e dos constantes congestionamentos
veiculares nos grandes centros urbanos e nos bugs do milênio, quando resta uma
esperança: os veículos estão saindo das fábricas equipados com computadores de bordo.
Além desses aspectos o carro transformou-se em símbolo referencial de
sexualidade, são depositados nele os desejos mais obscurecidos. Para Svendsen (2006),
no mundo tecnologicamente entediado o corpo biológico já não mais satisfaz nossas
fantasias, sendo o automóvel, muitas vezes, utilizado como aparato protético de
satisfação sexual. Pois, para o corpo bastar-se, é preciso transgredir a sua ordem
biológica. Em Crash os automóveis funcionam como próteses sexuais, assim como os
computadores de hoje. Os acidentes e o sexo em Crash significam uma tentativa de
libertação ou alívio do imperativo tecnológico.
Diante da insurgência tecnológica, o corpo analisado e violentado por intermédio
ê
destruição equipara-se à vida, enquanto o tédio equipara2006
89)
x
“
“A
” ( V
abeça
80
”
preciso sempre procurar, correr atrás do fim como instância reguladora da vida. Nessa
perspectiva é preciso colocar a vida em risco seguindo o exemplo dos personagens de
Crash, o contrário disso é lamúria. Svendsen (2006) define Crash assim:
Crash é [...] entediante sobre pessoas entediadas. Um mundo que se
tornou totalmente objetivado e desprovido de todas as qualidades não
pode ser senão entediante. Fugindo deste tédio, o homem se lança a
transgressões cada vez mais extremas [...] (SVENDSEN, 2006, p. 89).
No artigo Jacques Lacan e a clínica do consumo, Márcia Rosa (2010, p. 158),
utilizando palavras do psicanalista, afirma que para a maioria das pessoas a ciência se
z
z
“
”
de vista de Lacan e Svendsen, considera-se que a exposição generalizada torna-se
entediante. Onde tudo é pornográfico, onde há exibição completa em zoom e slow
motion, rapidamente, extingue-se o mistério, consequentemente o desencantamento da
própria existência (não à toa, a depressão ser considerada o mal do século XXI); através
das descobertas da ciência tudo deve servir para algo em profundidade. Irônico, quanto
mais a ciência tenta descobrir as minúcias do universo, menos chega à alguma resposta
satisfatória, esse paradoxo contribui ainda mais para o aprofundamento do tédio exposto
por Svendsen (2006) na obra a Filosofia do Tédio.
A crítica de Baudrillard à psicanálise decorre basicamente desse movimento
desvelador: “[...]
õ
”
(BAUDRILLARD, 1984, p. 19), tudo é político, tudo é sexualidade no instante que a
política está em ruínas e o sexo involui diante do hiper-real da sexualidade liberada.
Baudrillard (1984, p. 24) na obra Esquecer Foucault, afirma que nunca houve repressão
do sexo, mas a imposição de sua produção e exposição. A partir daí, pode-se afirmar
que uma sexualidade patológica é posta em Crash. Vaughan, herói/vilão da trama,
“
”
afirmação que reflete o estado febril da sociedade globalizada. As caóticas relações
entre sexo e tecnologia dramatizadas em Crash são sinonímia viral que se multiplica
incessantemente atacando por todos os lados os sistemas neurais, causando uma
81
metástase que se espalha por todo o restante do corpo social e que em particular atinge
uma das suas mais importantes características, o imaginário.
Bataille (2012, p. 27) considera o erotismo como um desequilíbrio em que o
próprio ser se põe conscientemente em questão, quer dizer com isso que, por mais
comedidos que sejamos algum ato violento pode manifestar-se há qualquer momento.
Há na natureza e subsiste no homem um movimento que sempre excede os limites e que
reduzido parcialmente por outras atividades, por exemplo, o trabalho e a festa. Por esse
exceder-se, em geral, não podemos responder de forma racional. Bataille (2012, p. 45)
explica ainda que do ponto de vista econômico, a festa consome em sua prodigalidade
sem medida os recursos acumulados no tempo do trabalho.
A transgressão não é mais que o interdito, mas a decomposição que
complementa essa festa do consumo. A festa é o ponto culminante, por exemplo, da
atividade religiosa, acumular e gastar são as duas fases que compõem essa atividade.
Por isso a transgressão pode ser vista como o valor adicional do interdito. A festa
tecnológica continua no eterno carnaval do exagero. Com a imposição do erótico sobre
a sociedade, mesmo com o necessário desperdício de objetos e da energia sexual nas
orgiásticas festas contemporâneas, o tédio social provocado por esses excessos descritos
por Svendsen e Bataille não conseguem amenizar a afunilação do imaginário, portanto,
os atos violentos tendem a continuar.
Enfim, para Bataille o universo onde vivemos não responde a nenhum fim que a
razão possa limitar totalmente. A posição de Bataille justifica o comportamento dos
personagens em Crash: criam um tipo de culto religioso festivo, no qual se encontram
para celebrar seus desejos mais sombrios, violentos e sarcásticos, consumindo objetos e
seus próprios corpos na tentativa de satisfazer a sua vontade, dessa maneira, eles tentam
libertar-se do universo tedioso da hýbris tecnológica. Portanto, para Bataille (2012), a
morte e a violência excedem a vida calculada, não podem deter-se na lei socialmente
ordenada da vida humana. A morte, no acidente de Crash, derruba a ordem legal das
coisas numa violência sagrada, eleva a vítima do mundo vulgarizado tecnologicamente,
onde os homens vivem sua armada vida, para o acontecimento fora o ambiente técnicocientífico-informacional.
A partir das perspectivas de Bataille, todos em algum momento podem
violentar-se em prol da satisfação dos desejos mais reprimidos. Como zumbis, os
personagens de Crash caminham à espera do momento sagrado do extermínio ou do
82
autoextermínio mediado pela tecnologia. A patologia do trânsito automotivo aparenta
uma guerra, não com os mesmos mecanismos literalmente, mas de qualquer maneira
com a presença simulada da virulenta destruição, auxiliada pela publicidade sobre os
auspícios da técnica.
83
PARTE III: CRASH: A MÁGICA REVERSÃO E O APROFUNDAMENTO
IRREVERSÍVEL
Mas, no crime perfeito, é a perfeição que é
criminosa. Tornar o mundo perfeito é dar-lhe
acabamento, completá-lo – e, por conseguinte,
encontrar para ele uma solução final
Baudrillard
3.1 O gozo mais que patológico: as ruínas protéticas da confusão contemporânea
A ditadura perfeita terá as aparências da
democracia, uma prisão sem muros na qual os
prisioneiros não sonharão sequer com a fuga.
Um sistema de escravatura onde, graças ao
consumo e ao divertimento, os escravos terão
amor à sua escravidão
Huxley
A humanidade continua sendo salva pelas bênçãos de Deus cedidas por
intermédio do Papa aos automóveis Ferrari38, abaixo de sua fenestra na Praça São
Pedro, no Vaticano. Quantas vezes é possível observar, atualmente nas ruas adesivos
“
nos pára-brisas
“
”
” “
”
Essa visão de desenvolvimento está implícita nas várias
camadas da sociedade, a lei do progresso é gerar frutos materiais; para Baudrillard
(2006)
“
ê
” A
imagens de Deus nos antigos altares e oratórios, cedendo espaço aos designs das telas
sobrepostas nas estantes: Deus tornou-se mesmo hiper-real nas ambiências dos designs
interiores, das casas ou dos corpos, tornando o privado em coletivo e o coletivo em
privado. Seria esse fenômeno a privatização da coletividade priorizando a globalização
da técnica em contraposição ao universal:
“
”
“
” x
enganadora. A universalidade diz respeito aos direitos do homem, às
liberdades, à cultura, à democracia. A globalização refere-se à
38
TERRA. Papa abençoa Ferraris na Praça São Pedro. Notícias Terra. 2005. Disponível em:
<http://noticias.terra.com.br/mundo/novopapa/interna/0,,OI558865-EI4832,00Papa+abencoa+Ferraris+na+Praca+Sao+Pedro.html>. Acesso em: 09 de jul. de 2013.
84
tecnologia, ao mercado, ao turismo, à informação. A globalização
parece irreversível enquanto o universal estaria mais para a via de
desaparecimento (BAUDRILLARD, 2003, pp. 51-52).
Baudrillard (2003, p. 53) explica que o processo de globalização mercadológica
diminui consubstancialmente a universalização dos valores e que o pensamento único
tem triunfado sobre o universal. Todo esse universo gira em torno do espectro da
“
”
(BAUDRILLARD, 1992, p. 13). A fala do personagem Ballard ilustra a condição social
em direção a um pensamento único “A
sido bombardeado sem parar por
propaganda de segurança no trânsito, estou quase aliviado por ter-
”
Figura 12 – Cena do filme Crash.
O nível do plano que incide sobre Ballard é o vertical. O ponto de vista é denominado
câmera alta. Esse ângulo passa a sensação de que Ballard está incumbido de uma tarefa
maior, se o acidente real já foi um alívio, isso leva a crer que ele participará de mais
desastres.
A simulação da técnica volatizando todos os valores relega ao poder a condição
de mero aparelho reprodutor no qual todas as ideologias, crenças e doutrinas gravitam
na satelização em torno dessa necessidade imperiosa de reprodução econômica dos
objetos. Para os sistemas de signos sobreviverem, os capitais tem que se mover em
todas as direções com as respectivas características de cada época e espacialidade.
Projetos de inclusão ou algo que se aproxime disso (Bolsa Família, Bolsa Escola, Bolsa
Prostituta...) não passam de necessidade do próprio sistema pela normalização e
enquadramento das funções de reprodução, consumo e simulação em funcionalidade
total, política e independentemente de direita ou de esquerda.
85
A publicidade trabalha no intuito de absorver as mentes, para que assim,
continue passivo o poder de compra dos corpos que ao mesmo tempo também são
seduzidos e consumidos pelos signos, tanto aqueles das propagandas quanto os que
estão fora delas. Diante disso, Baudrillard (1992, p. 13) explica ainda que ingênuo é,
qualquer movimento que acredite subverter ou transformar os sistemas por sua
infraestrutura, pois a sedução está no avesso de qualquer pretensa imersão no real:
psicologia, anatomia, verdade, poder, revolução... O momento do acidente foi quando
Ballard se sentiu mais vivo, pois durante sua vida já tinha sido revertido em marca
mercadológica.
Provavelmente isso ocorra com os artistas cênicos bem como os participantes
dos reality shows que se submetem à hiperexposição: saem das suas vidas supostamente
“
“
”
ada serve jogar ser contra ser, verdade contra verdade, eis aí a armadilha de uma
ê
”
(BAUDRILLARD, 1992, p. 13). Baudrillard (1992, p. 13) afirma que nada pertence à
sedução, apenas as aparências, o que lhe é suficiente para reverter através de domínios e
estratégias essas mesmas aparências39.
As leis contra a bebida alcoólica antes da pilotagem são criadas e reformuladas
no intuito punitivo, mas a exposição da publicidade exerce função conotativa contrária
às leis, pois o que é mencionado constantemente é a velocidade infligida pelos
automóveis, a hibridização do corpo com a máquina40 e o incentivo ao consumo de
bebidas alcoólicas. No caso das propagandas de educação no trânsito, exibem acidentes
como tentativas de regulação negativa, mas o efeito aparente é o contrário, ou seja, as
imagens da destruição seduzem com maneiras mais ou menos eficazes, porque não
deixamos de ver desastres automobilísticos nas estradas, e em parte deles com
motoristas alcoolizados.
Em Crash ocorre a contemplação das colisões por parte dos personagens quando
se sentam na sala de Vaughan para assistirem às cenas de testes de segurança dos
automóveis e ao mesmo tempo, masturbam-se uns aos outros. Nessa passagem a
39
A questão da pedofilia, por exemplo, tem engendrado incessante discussão em vários âmbitos judiciais
enquanto garotas de menoridade perante a Lei, são exibidas constantemente como troféus pelos meios de
comunicação, incitando o consumo da imagem da ninfeta. Logo, o que vem primeiro é a sedução do
simulacro, ficando a Lei ou o poder judiciário em plano posterior, na reversão e no paradoxo.
40
FORD. A máquina perfeita. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=F176wikLULQ>.
Acesso em: 04 de outubro de 2013.
86
Doutora Remington excitando-se pede para rever os vídeos em slow motion: “Vamos
ver de novo em câmera lenta de perto... - Quero dizer, em detalhes” (Remington).
Enquanto Vaughan afirma que os vídeos levados por ela são muito bons, pois trabalham
a “tolerância da face humana em acidentes” (Vaughan).
Figura 13 – Cenas do filme Crash.
Essa sequência é preenchida de raccords que se intercalam entre os personagens. Depois
quando a Dr. Remington se levanta um travelling vertical e por fim um travelling em zoom
fitando as mãos das personagens.
O personagem Seagrave veste um espartilho (espécie de dispositivo sexual e
regulador do corpo, prótese: lembremos o caso de Rousseau) que é costurado por sua
esposa, mas ao contrário da opinião de Rousseau que era contrário ao uso do espartilho,
Seagrave sente prazer ao colocá-lo: ele se massageia como se tivesse seios já
imaginando a simulação do acidente de Jayne Mansfield. Enquanto isso, todos assistem
aos acidentes colecionados por Vaughan. O espartilho aqui funcionaria como mais um
signo de indefinição sexual e hibridismo das próteses com o corpo.
Nesses momentos do filme, a exemplo do que é discutido por Baudrillard (1992)
no decorrer da obra Da Sedução, os posicionamentos entre feminino e masculino são
colocados em cheque, pois diante dos modelos exibidos nas telas, as diferenças ou
indiferenças entre eles podem não passar de jogos de simulação impostos pela histórica
violência do sexo hibridamente neutralizado.
87
Figura 14 – Cena do filme Crash.
Enquanto a esposa de Seagrave é focada ajeitando o espartilho, costurando-o
junto ao corpo do esposo para que fique com as suas medidas; Vaughan
aparece num plano posterior sentado numa poltrona. Gabrielle, um pouco
desfocada, aparece sentada mais ao fundo à direita. A câmera em travelling,
da esquerda para a direita, revela aos poucos que a Dra. Remington e Ballard
também estão no ambiente.
Em momento mais exasperado há também a cena em que Ballard e Vaughan se
beijam e transam atrás do banco de um automóvel, em sinal extremo e desesperado pela
busca de sentido para seus atos. No fundo, aquele comportamento não passa de
banalidade funcional, estão apaixonados não por eles, mas pelo jogo de signos
(Vaughan inicia o ato beijando a tatuagem que Ballard acabara de fazer) como exposto
por Baudrillard (1992, p. 17) no capítulo a Eterna ironia da comunidade: com o
exemplo dos travestis, Baudrillard afirma que é o jogo e a sedução dos signos que os
apaixona: maquiagem, teatro, sedução: “
aródia
”
triunfante, resolução pelo excesso, por hiper
(BAUDRILLARD, 1992, p. 20). Seria esse fenômeno para ele mais um reflexo da
sociedade hiperespetacular que faz da exaltação do sexo, jogo total.
O imaginário passa a copiar os modelos existentes, realizando uma constante
modificação técnica e constituindo infinita insatisfação, resultando na banalização e
artificialização do corpo. Logo, o corpo não perde a sua importância, mas adquire tão
somente uma função prazerosa imediata e funcionalista. “
das Luzes, que visa a liberar o sexo servil, as raças servis, as classes servis nos próprios
” (BAU R
AR
1992
23) B
(1992
25)
salienta ainda que chegamos à era da pílula, da determinação do gozo e da racionalidade
da pílula.
88
A transubstanciação do sexo, seduzido pelas imagens e pela máquina, é mais
uma característica psicologicamente violenta esboçada em Crash “A
do sexo nos signos, que é o s
” (BAU R
AR
1992
18)
Em Crash, esse fenômeno anula tanto o masculino quanto o feminino, o que sobra são
os signos e as novas feridas abertas na pele. Seagrave é a própria representação da
paródia super-simulada e Vaughan a ironia hiper-sexualizada em meio à falta de sentido
promovida pelos infinitos signos de gozo, assim como os órgãos sexuais artificiais
(próteses) vendidos nas lojas sex shop. Pois tentaram libertar o sexo servil, mas o
prendeu na objetivação dos signos.
O gozo assumiu a investidura de uma exigência e de um direito fundamental,
mas a imposição de um direito torna-se dever. Gozo sem estratégia, apenas energia em
busca de seu fim, é a própria comiseração (piedade) das diferenças sexistas impostas à
humanidade e aos seus gêneros em prol de uma cultura que produz tudo, que faz tudo
falar, tudo gozar, tudo discorrer à imposição do direito, da superexposição do sexo e do
estatuto do gozo como prova multiplicada da liberdade sexual (doxa da libertação
sexual de um lado e doxa da depressão do outro, aja dor de cabeça)
Tudo em exagero, essa é a regra dos sistemas sígnicos, esses sistemas sempre
querem dar mais. Aumentar os abismos cavados com os falos da destruição e depois
com a reversão dos mesmos, em deliberado discurso feminista. Quem o diga da Torre
Eiffel, modelo fálico, metal iluminista (assim como os automóveis) hoje enferrujado,
dissimuladamente enterrado na também simulada crise financeira do sistema capitalista
internacional globalizado.
Para Baudrillard (1992), a hiper-realidade já não é da ordem do imaginário, é da
ordem da mais-referência, da mais-verdade, da mais-exatidão ao passar tudo para a
evidência absoluta, uma visão que persegue a sedução à força de visibilidade. Segundo
Baudrillard (1992, p. 38), repressão absoluta que dando um pouco demais corta tudo.
“
” (BAU R
AR
1992, p. 38). A hiper-realidade sempre aparenta ser esse ente paradoxal, dá com uma
mão e tira com a outra, restando a objetividade vazia dos signos:
[...] a perfeição técnica, a alta fidelidade, tão obsessiva e puritana...
nem mesmo sabemos a que objeto ela é fiel, pois ninguém sabe onde
começa e onde acaba o real, nem portanto a vertigem de perfeição que
se obstina em reproduzi-la. [...] o real torna-se um vertiginoso
89
fantasma de exatidão que se perde no infinitesimal (BAUDRILLARD,
1992, pp. 38-39).
A limpeza do corpo, assepsia total. No texto Porno-estéreo, Baudrillard salienta
“
z
cular
” (BAUDRILLARD, 1992, pp.
42-43), criando uma cultura da dessublimação das aparências, na qual tudo se
materializa nas espécies mais objetivas, até a própria aparência, materializa à força o
“
que pertence ao segredo e à sedução. Ironicamente, Baud
cultura da ejaculação precoce, sendo a própria sedução seduzida e revertida em
” (BAUDRILLARD, 1992, p. 47). Cada vez mais qualquer processo de
sedução apaga-se devido ao imperativo do entretenimento da pornografia, deslocando o
centro de gravidade para a economia libidinal de funcionamento mecânico, sobretudo ao
imaginário do recalque e da liberação, como se um fosse o bem e o outro o mal.
B
“
z
x
acelerada do psíquico, do sexual e dos corpos é a réplica exata que rege o valor
” (BAUDRILLARD, 1992, pp. 47-49), assim como Zygmunt Bauman (2001)
na obra Modernidade Líquida, utiliza-se da metáfora da liquefação demonstrando que a
solidez das instituições da sociedade global se desfaz, empreendendo com que os laços
afetivos e sociais não tenham mais apenas uma forma, assim como os líquidos que se
adaptam aos recipientes ou se espalham em todas as direções quando não há paredes
que os retenham. Essa liquefação (ou liquidação) das sólidas instituições do passado
explicita um tempo de desapego e provisoriedade, uma suposta (simulada) sensação de
liberdade traz em seu avesso a evidência do desamparo social em que se encontram os
indivíduos. O ato de dirigir evidenciado em Crash representa essa simulada liberdade.
Quantas vezes não vemos por aí, indivíduos que colocam seus órgãos sexuais nos
volantes?
Os relacionamentos em suas várias instâncias transformam-se em micaretas.
Voláteis e fluídos remetem a uma falsa sensação de leveza e descompromisso que é
muitas vezes associada à liberdade sexual, simulada e divulgada diariamente pelos
meios de comunicação, aspectos esses que sustentam a sociedade de consumo. Vê-se
em Crash que os casais não se submetem a uma relação duradoura, desencantados
“
B
“
x ”
B
”
90
O corpo não tem outra realidade que não a do modelo sexual e mecânico
influenciado constantemente por um mercado consumidor, produtivo e funcionalista.
Em Crash, a sexualidade é transtornada em modo de produção e circulação dos objetos,
gerando outros modelos de repressão e o próprio corpo tornado anticorpo. Baudrillard
(1992, p. 50) afirma que a sexualidade como é ensinada e afirmada, é sem dúvida, como
a economia política, uma montagem, simulacro que as práticas sempre frustraram como
qualquer outro sistema. Sendo assim, a transparência sexual-tecnológica de Crash
nunca foi maior que a da era econômica, na hiper-realidade as duas caminham a passos
largos e em conjunto, direcionando os corpos para a funcionalidade total, pois:
O real nunca interessou a ninguém. Ele é o lugar do desencantamento,
o lugar de um simulacro de acumulação contra a morte. O que o torna
fascinante é a catástrofe imaginária por trás. Acreditamos que o poder,
a economia, o sexo, todos os grandes truques reais tenham um único
instante sem o fascínio que os sustenta, o do espelho invertido onde se
refletem, de sua contínua reversão, do gozo sensível e iminente de sua
castração? (BAUDRILLARD, 1992, p. 57)
O suposto conforto gerado pelo acúmulo da sociedade capitalista (consumista)
deixaria os organismos mais distantes das doenças e da própria morte, quanto mais
objetos adquiridos, mais próxima estaria a salvação, ao mesmo tempo essa condição
castra novas possibilidades para a vida. Em Crash, açular cicatrizes é uma maneira de
;
ê
“
autovirulência
febril que os leva a explodir além de seus próprios limites, [...] não na pura tautologia
[ ]
z
”
(BAUDRILLARD, 1990, p. 11). Vivez
z
“ soberania do objeto e a desumanização
” (PAZ, 1990, pp. 97-101). Os meios se
transformam em fins e, como os acidentes em Crash são o objetivo, pode-se afirmar que
há o triunfo do signo sobre o significado e da coisa sobre a imaginação.
Os novos atores sociais se defrontam com a perda da imagem do mundo e o
aparecimento de um vocabulário universal, a exemplo do monólogo coletivo descrito
por Galimberti (2006, p. 722) que composto de signos ativos fortalece a técnica, e
ainda, a crise dos significados. Enfim, o sujeito então se reverte definitivamente em
objeto, seduzido pelos novos modelos de espelhos: as telas, que refletem e objetam
“
”
91
(BAUDRILLARD, 1990, p. 10). As telas absorvem o ser, transportam-no para o virtual,
para a luz e o seu excesso ofusca a visão.
Essa “sedução é aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua
” (BAU R
AR
1992
61)
enxergar mais o mundo, mas o mundo exibido nas telas, e a partir disso, segundo
Baudrillard (1990, pp. 13-14), a possibilidade da metáfora diminui consideravelmente
em todos os domínios: na dor, no prazer, na felicidade ou infelicidade.
3.1.1 Do masoquismo à funcionalidade total – o corpo sistema
Em qualquer lugar fora deste mundo
Baudrillard
“
Por fim, os personagens de Crash veemz
”
no extremo deslocar-se pelo emaranhado das redes, sem saber aonde chegar
o mais importante é continuar a aprofundar e a abrir novas cicatrizes. Talvez a
melancolia dos personagens de Crash
“
” (BAU R
AR
1990
14). Para esses personagens, a metáfora das imagens anula-se na desilusão da
metonímia técnica. A única hipótese que lhes resta é seguir Vaughan e também,
transferindo suas energias, colocarem as suas genitálias nos volantes dos carros.
Os personagens de Crash sentem literalmente na pele e em outros órgãos todo o
universo cortante da sociedade tecnológica e, por isso, desenvolvem uma espécie de
patologia, uma doença provocada pelo exagero técnico. Baudrillard (1991, p. 141)
considera que os personagens de Crash não podem nem se dar ao luxo de serem
chamados masoquistas, pois não existe um contrato entre os personagens e a tecnologia
assim como ocorre nos atos masoquistas entre duas ou mais pessoas. Não há afeto, nem
psicologia, nem desejo. Todo o movimento de Crash está preso ao universo da
exploração da violência sem limites e o corpo não satisfaz alguma subjetividade, é
apenas mais um elemento de funcionamento do sistema, mais uma peça da engrenagem.
No texto Sacher-Masoch: o frio e o cruel, Deleuze afirma que no masoquismo
“[...] é a vítima que fala através do carrasco, sem comedimento” (DELEUZE, 2009, p.
92
25). No masoquismo ou ainda no reducionismo psiquiátrico: o sadomasoquismo, existe
o olhar, a dor e o prazer. No masoquismo de Sacher-Masoch existem trocas simbólicas
e até afeto. As práticas sexuais são regulamentadas, formalizadas, ditas e prometidas. Já
em Crash, não existem vítimas ou olhares dialéticos, as pessoas ali são apenas
funcionais, só isso, mal direcionam seus olhares umas às outras. Em Crash não há
prazer, somente o resto: “[...] quem, do real ou da imagem, é o reflexo do outro?”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 176). Em Crash, quem reflete quem, o carro ou o corpo?
Mesmo na cena em que Ballard e Catherine, simultaneamente transam e
conversam sobre o desejo de Catherine de ficar com Vaughan, o que é demonstrado é o
interesse pelas modificações técnicas, o que importa são os signos, porquanto ela
questiona se Vaughan estaria circuncidado:
- Deve ter ficado com muitas mulheres naquele carro enorme.
É como uma cama sobre rodas. Deve cheirar a Sêmen (Catherine); Sim, cheira (Ballard); - Acha-o atraente (Catherine); - É muito pálido.
Coberto de cicatrizes (Ballard), - Gostaria de transar com ele naquele
carro? (Catherine); - Não. Mas quando ele está naquele carro...
(Ballard); - Já viu o pênis dele? (Catherine); - Acho que está cheio de
cicatrizes de um acidente de moto. (Ballard); - Será que está
circuncisado? Pode imaginar como é que o ânus dele é? Descreva-me.
Gostaria de sodomizá-lo? Gostaria de pôr o seu pênis dentro do ânus
dele? Enfiá-lo bem no ânus dele? Diga-me. [...]. Descreva como o
seduziria. Abrir o zíper do jeans engordurado. Tirar o pênis para fora.
Beijaria e chuparia logo em seguida? (Catherine).
Figura 15 – Cena do filme
Durante
Crash. essa cena o movimento de travelling se faz presente novamente.
A câmera adentra o quarto do casal da esquerda para a direita, passando
pela transparência dos vidros, dando a impressão de que o telespectador é
quem entra no quarto. Logo após, um corte em close-up para o rosto de
Catherine que possui expressões sutis durante o ato sexual
93
Por mais que tenha algum tipo de masoquismo nesse diálogo, o falar e o sentir
algum tipo de afeto, o enredo culmina na técnica. O destino final do desejo de Catherine
é o projeto de Vaughan, e esse projeto não é masoquista, mas técnico. O sexo
representaria assim mais um elemento da reprodutibilidade técnica, ou seja, o desejo
não é mais da parte da organicidade, mas da máquina e dos signos que as circundam. O
excesso e a violência em Crash ultrapassam o masoquismo fantasioso, pois a violência
feita ao corpo é uma violência de destruição total sem oportunidades para algum tipo de
reversão, o processo é de aprofundamento e irreversível. Vaughan salienta em uma de
suas falas: “- É algo... No qual estamos todos intimamente ligados. A reformulação do
corpo humano através da tecnologia moderna” (V
).
Figura 16 – Cena do filme Crash.
Close-up no rosto de Vaughan para valorizar a sua fala com a imagem. O corte e
suas cicatrizes em seu rosto evidenciam as modificações no corpo.
Numa outra cena, logo após a morte de Seagrave e ao observarem as imagens de
um acidente que envolveu vários veículos, eles partem para lavar o carro de Vaughan
num lava-rápido. A retrátil capota do conversível de Vaughan se fecha juntamente com
os vidros, e finalmente, sobre os rolos de lavagem, Catherine e Vaughan transam. As
borrachas longilíneas pingam, espuma como se fossem falos ejaculando. Os vidros
transparentes são preenchidos pela espuma e dentro do automóvel os três parecem estar
num invólucro de esperma. Catherine e Vaughan despem-se e como numa grande
máquina síncrona o carro penetra o lava-rápido assim como Vaughan penetra Catherine
e solicitamente a espanca. Enquanto isso Ballard utiliza-se novamente do retrovisor para
acompanhar todos os movimentos.
94
Figura 17- Cenas do filme Crash.
Nesta sequência, Ballard, Catherine e Vaughan estão dentro do carro prestes a entrar no
lava-rápido. À esquerda, a câmera é olhar com, o espectador é convidado a sentar no banco
do passageiro e entrar no lava-rápido junto com os personagens. À direita, no desenrolar da
sequência, mais um travelling: o automóvel entra no lava-rápido, mais alguns raccords e o
ruído dos limpadores, em meio aos gemidos dos personagens.
Pode-se compreender que os personagens apresentam algumas características
masoquistas, mas essas se perdem diante do imperialismo dos signos. Por mais que aja
dor, submissão ou prazer, os personagens não estão ali em prol de afeto, fantasias ou
trocas simbólicas, mas sim, do comprometimento com os dispositivos técnicos
representados pelo carro, logo, tudo se anula. Anulando o corpo como mais um signo,
há, no fundo de todos os movimentos apáticos dos personagens, uma tenra decepção
com a organicidade e a possibilidade de transformá-la. Decepção que leva Vaughan a
procurar a “reformulação do corpo humano através das tecnologias”. Enfim, não a
fantasia masoquista, mas, no sentido fáustico, a transcendência funcional da
organicidade.
3.2 O meio é o fim da passagem Drive-thru
O imaginário da Disneylândia não é nem
verdadeiro nem falso
Baudrillard
95
Gerry Coulter (2013), no artigo Jean Baudrillard and Cinema: The Problems of
Technology, Realismand History escrito para o Journal Film-Philosophy, cita uma
entrevista cedida por Baudrillard publicada no livro Baudrillard Live: Selected
Interviews pela editora Routledge, na qual ele afirma que ainda era apaixonado por
cinema, que dentre todos os espetáculos era ainda o único que ele gostava, mas que o
cinema chegou a um estado desesperador. Gerry demonstra que as posições de
Baudrillard são de que os filmes estão se tornando cada vez mais tecnologizados e
seguem em direção a uma indefinível perfeição.
Ao contrário, Crash é um filme que não sofre com os deleites do exagero
tecnológico e da hiper-realidade, claro que recorre a efeitos e técnicas, mas não se deixa
levar totalmente por elas. Crash é um filme que não se entrega totalmente à
materialização e a sedução dos signos e que ainda tem espaço para a representação e do
olhar compromissado com a estética da sétima arte. O filme possui aspectos que podem
gerar algum tipo de subjetividade (mesmo que renunciada por alguns justamente por se
tratar de fenômenos recorrentes ao cotidiano) e, por isso, contradiz em certa medida as
mesmices às quais os imaginários, corriqueiramente são acostumados a aceitar. Com
relação às mesmices da produção cultural e à padronização das subjetividades Guattari
explica:
A subjetividade padronizou-se através de uma comunicação que
elimina, ao máximo, as composições enunciativas trans-semióticas
(desaparecimento progressivo da polissemia, da prosódia, do gesto, da
mímica, da postura, em proveito de uma língua rigorosamente
assujeitada às máquinas escriturais, e a seus avatares mass-midiáticos.
Em suas formas contemporâneas extremas, tal subjetividade tende a se
reduzir a uma torça de fichas informacionais, calculáveis por
quantidade de bits e reprodutíveis por computador. (GUATTARI,
1992, pp. 133-134)
Para Guattari, esses modelos devem ser considerados, a título de produção de
subjetividades, inseparáveis dos dispositivos técnicos e institucionais que os promovem
e de seu impacto sobre a psiquiatria, o ensino universitário, os Mass media e todo o
universo que preenche a Pop Arte. Há de se lembrar que duas características contribuem
fundamentalmente para o sucesso do Cinema Pop: seu próprio conteúdo de
entretenimento que alivia e domina ao mesmo tempo; e o capital dispensado em
96
propaganda de divulgação de seus conteúdos. Rosangela Fachel de Medeiros (2013, p.
225), em estudos sobre Roy Lichtenstein, afirma que:
A
A
,
mas sim como uma denominação que busca re-agrupar fenômenos
artísticos intimamente ligados
[ ]
A
programa comum. Manifestação essencialmente ocidental, nascida no
contexto de uma sociedade industrial, capitalista e tecnológica.
(MEDEIROS, 2013, p. 225)
Antes mesmo da sua exibição, a Pop Arte é divulgada incessantemente nas
propagandas durante os intervalos das programações refletindo o espírito de reprodução
dos signos no capitalismo informacional. Os filmes pertencentes a esse gênero estão
“
condicionados a serem exibidos em shoppings centers,
“
centralizar e dinamizar o consumo de produtos
” A
”
chama
“
intercepte, modele, controle e assegure os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos
” (AGAMBEN, 2009, p. 40), assim como os automóveis desenvolvem
em Crash a função de dispositivos que seduzem os personagens. Todas as
características dispensadas por Agamben, com relação aos dispositivos, engendram
melancolicamente a vida dos personagens de Crash que tendem ao escapismo do
acidente.
J.G. Ballard (2007) afirma que a relação entre realidade e ficção está sendo
“
regido por ficções de todos os tipos - o
consumo de massa, a propaganda, a política conduzida como um ramo da propaganda, o
pré-
z
[ ]” (BA
AR
2007
08)
com esse autor, os meios não são meros canais de passagem dos conteúdos, veículos de
transmissão das mensagens, mas influenciam diretamente no comportamento dos
indivíduos e até em seus utensílios (quantas vezes se vê pelas ruas modelos de
acessórios, vestimentas ou quaisquer outros objetos utilizados pelos atores
celebridades) “
ú cio como nunca se
sonhara antes. O banheiro, a cozinha, o carro e tudo o mais que aparecia tinha que ser
como nas cenas de um filme” (MCLUHAN, 1974, p. 260). Esse autor salienta ainda que
quando o cinema surgiu, todo o padrão da vida americana foi para as telas como se
fosse um anúncio sem pausas.
97
Angela Dilmann Nunes Bicca (2013), em sua tese de doutorado intitulada: Os
filmes de ficção científica nos ensinando a viver em uma civilização cibernética, afirma
que o cinema funciona como uma importante Pedagogia Cultural. Segundo essa autora,
o cinema educa ao exibir a ligação entre as tecnologias comunicacionais e
informacionais dentro do contexto da Nova Ordem Mundial. Dessa maneira, o cinema
estaria propiciando transformações nos modos de viver e habitar o mundo engendrando
novos imbricamentos entre corpos orgânicos e tecnologias. Bicca (2013) ainda afirma
que os filmes de ficção científica têm operado na configuração, altamente tecnológica
do mundo e dos sujeitos que nele viverão e que a partir de representações que
exacerbam tendências sarcásticas, estruturam as sociedades contemporâneas.
Nesse jogo cibernético não há real nem imaginário, mas funcionalidade e
controle totais. Apenas contínuo e aprofundado distanciamento entre real e imaginário,
reprodução dos modelos dos modelos, em direção a uma hiper-realidade ainda mais
z
“
” (BAU R
manipulação em todos os se
AR
1991
152)
Em Crash, os automóveis tanto quanto o corpo se comparam com os autômatos
cibernéticos, sendo assim, os corpos e os carros hibridizados concorrem para o status de
“
”
ransmitem a ideia de celebridade:
Quando aparece um novo meio ou ocorre uma nova extensão humana,
este meio cria um novo mito por si mesmo, em geral associado a
alguma personalidade histórica: Aretino, o Flagelo dos Príncipes e o
Boneco da Imprensa; Napoleão e o trauma da revolução industrial;
Chaplin, a consciência pública do cinema; Hitler, o totem tribal do
rádio; e Florence Nightingale, a primeira cantora da miséria humana
pelo fio telegráfico. (MCLUHAN, 1974, p. 282)
“
A ú
A
”(
U A
1974
282) Os meios
tornam-se os fins e os significados menos importantes, os suportes criam as
celebridades e os personagens de Crash tentam reviver a aventura dessas celebridades.
No prefácio da obra Os meios de comunicação como extensões do homem, McLuhan
(1969, p. 18) afirma que
“
A
ú
”
que obriga ao compromisso e à participação, independentemente de qualquer ponto de
vista. Não entender os acontecimentos, mas passar por eles, apenas viver no invólucro
das simulações dos modelos de celebridades. Ao contrário da extinção dos mitos,
98
estariam eles ressuscitados na forma de telas: o consumo aperfeiçoado, as artes postiças,
a vida efêmera, tornando os homens ainda mais esfomeados. Difusão das narrativas que
vão dos questionamentos para a aceitação e a educação como num ritual de passagem
refletindo a cultura na espacialidade drive-thru.
Sexo, automóvel e cinema são enfatizados nesse tipo de arquitetura da
passagem, drive-in ou drive-thru que se globaliza, assim como os shopping-centers.
Nesse tipo de instalação, os clientes são servidos sem precisar sair do carro. Serve-se de
tudo, desde medicamentos, passando pelos alimentos, chegando até o ato sexual. O
documentário, América41, de João
x
1992
x
“TV
” (que inclusive cita Baudrillard), discute a cultura drive-in e reflete o
universo fast-food da alma e do corpo. O documentário demonstra que não é preciso
entrar nas instituições financeiras norte-americanas, pois é possível passar por elas,
aspecto que reflete a necessidade de girar rapidamente os capitais, assim como é preciso
comer rapidamente para não gastar o tempo, pois a produção está à espera.
Em suas igrejas Drive-in, os motoristas estadunidenses escutam através das
ondas radiofônicas suas liturgias e ao final do culto, não se faz sinal da cruz ou algum
“ z
de Moreira Salles, narrada na voz de José Wilker, a América apresenta”
- ”. Na visão
“
“
”
Dessa maneira os americanos celebram a conquista do seu ideal protestante e a
materialização de seus espíritos.
3.2.1 Enfim, a morte da ficção científica
41
AMÉRICA. Documentário. [1992]. Dir. João Moreira Salles. Disponível
<http://www.youtube.com/watch?v=6-2k7JDZi_s>. Acesso em: 15 de junho de 2013.
em:
99
Abandonemos a ficção científica
Baudrillard
No livro O que é ficção, a professora Ivete Walty (1989, pp. 09-12) questiona: Aí
não tem ficção? Com o exemplo da criança que não entende o termo ficção e o
relaciona com os discos voadores das histórias contadas pelos adultos, a autora justifica
o interesse e a necessidade de se refletir a relação entre realidade e ficção; e a função da
ficção em nossa sociedade. A partir desse exemplo, a autora conceitua ficção científica
como narrativas verbais ou fílmicas às quais os enredos se baseiam no desenvolvimento
científico e suas consequências no tempo e no espaço.
Para Deleuze e Guattari “o simulacro, a simulação de um pacote de macarrão
tornou-se o verdadeiro conceito, e o apresentador-expositor do produto, mercadoria ou
obra de arte, tornou-se o filósofo, o personagem conceitual ou o artista” (GUATARRI,
2010, p. 19). De acordo com Walty, Deleuze (1989, pp. 27) tenta a reversão quando
salienta que a função do simulacro é subverter a ordem hierárquica do modelo, da cópia
ou do próprio simulacro revelando que tudo é simulacro, tudo são sombras. Para Walty
(1989), o fato de existir o simulacro permite a discussão da legitimidade tanto do
original quanto da cópia. Nesse sentido Deleuze questiona o nível de vergonha social
quando da apropriação dos conceitos por parte das disciplinas da comunicação:
[...] o fundo do poço da vergonha foi atingido quando a informática, o
marketing, o design, a publicidade, todas as disciplinas da
comunicação apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é
nosso negócio, somos nós os criativos, nós somos os conceituadores.
Somos nós os amigos do conceito, nós os colocamos em
computadores. (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 19)
Detectando isso, Deleuze pensa a Filosofia como uma força capaz de reverter o
próprio conceito de simulacro. Mas os risos de Deleuze ao tentar reverter os conceitos
em funções, para Baudrillard soam idealistas, pois para esse último “o imaginário era o
álibi do real, num mundo dominado pelo princípio de realidade. Hoje em dia é o real
que se torna álibi do modelo, num universo regido pelo princípio de simulação”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 153). E não é por causa do mapa já está maior que o
território que a ficção científica não tenha ainda funcionalidade, ou seja, a conquista do
100
espaço proporcionou a reversão deste em pixels, uma desrealização do espaço real e a
expansão do espaço virtual.
Mesmo que o virtual faça parte da vida, ele ultrapassa os limites dos póssupostos, pois se instala nos cérebros ao ponto de desvirtuá-los. Em que sentido é
possível afirmar isto? No sentido de que: 1+1 = 1. “[...] é o simulacro que está primeiro,
com fins dissuasivos, os de curto-circuitar antecipadamente toda a possibilidade de
comunicação (precessão do modelo que põe fim ao real)” (BAUDRILLARD, 1991, p.
105). Ainda segundo Baudrillard (2001, p. 44), existe hoje uma fascinação pelo virtual e
o conjunto de tecnologias que o formam (gadgets) e se ele é um modo de desaparecer,
esta seria uma opção da própria espécie (obscura, mas deliberada), a escolha de clonar o
corpo e outros bens em outro universo. De humanos para uma espécie artificial.
A ficção científica não teria mais o seu caráter, digamos ingênuo, de brincar com
a exploração e com a descoberta, mas seria hoje o contrário e, através de uma pedagogia
ou psicologia, impõe suas normas, suas regras. “A Disneylândia é colocada como
imaginário a fim de fazer crer que o resto é real, quando toda Los Angeles e a América
que a rodeia não são reais, mas do domínio do hiper-real e da simulação”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 21). Assim, entende-se que para Baudrillard não haveria
novas maneiras de fazer ou de pensar, a espacialidade cede lugar ao plano ficcional e o
tempo deixa de ser alçado pelo mero movimento natural. Hoje a ficção mata aquilo que
deveria ser a sua essência, a magia, a poesia, a criação, e instaura o senso comum, ou o
bom senso. Os sistemas utilizam-se da necessidade de prazer, de fantasia e transformam
essa dependência em repressão, em verdade oficializada. Segundo Baudrillard (1991, p.
156), Crash é sem dúvida o modelo atual desse tipo de ficção. O que faria diferença em
Crash seria justamente o seu potencial de comparação com a realidade.
A ficção científica já não está em lado algum, mas está em todas as partes na
flutuação dos modelos axiomáticos de simulação. A ficção que antes inventava o irreal
agora é que determina o real. A projeção é hoje antes o contrário, vem do cinema, das
telas para o social, para o espaço e para o tempo. Os corpos são restos das cibernéticas
telas e se encontram em estado de mutação, pois, as propagandas dos modelos
enunciadas através da ficção, decretam também a extinção do corpo como parte
orgânica do cosmos. Paula Sibilia (2002) cita o exemplo da Miss Brasil de 2001, “cujo
título foi questionado quando veio a público que seu corpo fora submetido a uma longa
”( B
A 2002
64)
-se
101
então como uma obra da tecnociência construída por bisturis e elementos químicos
como as próteses de silicone42.
Sibilia (2002, p. 78) ainda salienta que a técnica não saiu dos laboratórios, mas
os laboratórios tecnocientíficos passaram a ajustar-se às dimensões do mundo: saíram
da escala local para a global (inclusive em modelo de ficção científica). Virtualmente a
ficção exerce papel preponderante de propagação e propaganda para a continuidade
dessa funcionalidade “
z
ê
– [...] é o fim
” (BAU R LARD, 1991, p. 154). A flutuação
dos modelos que paira sobre os cérebros põe fim à ficção científica, estaria aberto então
o campo de forças das simulações cibernéticas. Ficção, genética e informática chegam
na forma de uma avassaladora legião da boa vontade, dirigindo o seu potencial aos
consumidores do mercado global. A ficção está morta porque ficou para trás, o mercado
a ultrapassou.
3.2.2 O presságio do virtual43 em Crash
A vida não deve mais, tendencialmente,
deixar-se distinguir do filme sonoro
Adorno e Horkheimer
Contínua é a caminhada sob as Luzes ou Esclarecimento (Aufklärung):
“[ ] a autonomia prometida pelas Luzes teve por consequência última uma
alienação total do mundo humano, submetido ao peso terrível destes dois
flagelos da moderni
”
(LIPOVETSKY, 2004, p. 16).
O cinema, tanto quanto outro meio de comunicação, é um método de
aperfeiçoamento dos modos de vida envoltos na técnica e no liberalismo comercial
42
ORLAN. Successfull Operation. Paris. [1991]. Disponível em: <http://www.orlan.eu/works/photo-2/>.
Acesso em: 05 de dezembro de 2013.
43
Para a melhor compreensão do termo virtual consultar as obras: ZOURABICHVILI. François. O
vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. LÉVY, Pierre. O
Que é Virtual?.Trad. Paulo Neves. Rio: Editora 34, 1996.
102
descrito por Lipovetsky. Os filmes apresentam maneiras de violência, construção e
destruição de imaginários que são absorvidos como modos de uma suposta verdade.
Eles geram um tipo de gozo, fuga ou prazer na construção/destruição ao liquidar novas
perspectivas estéticas ao passo que seus tautológicos conteúdos são reproduzidos numa
velocidade quase que ininterrupta. Bauman (2001), no que denomina modernidade
líquida, afirma que as condições sob as quais vivem os membros das sociedades
contemporâneas mudam num tempo mais curto do que o necessário para a consolidação
dos hábitos e rotinas e das suas formas de agir. Portanto não há tempo suficiente para
emancipar-se diante da alienação dos modelos e da acelerada velocidade de mudança:
[...] toda essa comunicação é no fundo apenas um enredo forçado, uma ficção
ininterrupta que nos supre o vazio, o da tela tanto quanto o da nossa tela
mental, do qual espreitamos as imagens com igual fascinação. A imagem do
homem sentado, contemplando num dia de greve sua tela de televisão vazia,
constituirá no futuro uma das mais belas imagens da antropologia do nosso
século (BAUDRILLARD, 1990, p. 19).
Num primeiro momento imaginava-se que os filmes de ficção criariam um tipo
de crítica social frente à tecnologia, pois trabalham filosoficamente temas relativos ao
desenvolvimento do processo tecnológico e do comportamento do homem frente às
inovações, mas o que vem acontecendo é justamente o contrário, uma pedagogização
tecnológica e a reversibilidade dos imaginários que se materializam a todo novo
lançamento cinematográfico; o que mais chama a atenção dos espectadores são os
suportes e os efeitos especiais.
Prometheus44 e a nova versão de Star Trek45 são filmes que exemplificam essa
questão. Esses filmes demonstram as mudanças e o aprofundamento na área da genética
e das mutações dos corpos. Em Star Trek - Além da Escuridão o capitão James Tiberius
Kirk é trazido à vida novamente pelo sangue modificado de um de seus inimigos, John
Harrison, que foi criogenizado (assim como o corpo de Walt Disney) há
aproximadamente 300 anos por se tornar superior ao restante dos seres humanos através
da modificação de seus genes, motivo considerado ameaçador para o resto dos mortais.
Já em Prometheus, um robô que apresenta inteligência artificial propicia situações para
a reprodução dos extraterrestres nos organismos humanos. Ele burla os sistemas de
44
PROMETHEUS. Diretor Ridley Scott. EUA: Fox Filmes. Ficção científica. 2012. 150 min.
ALÉM DA ESCURIDAO: Star Trek. Diretor J.J. Abrams. EUA: Paramount Pictures. Ficção científica.
2013. 130 min.
45
103
segurança para descobrir novas possibilidades tecnológicas e genéticas colocando em
situações de risco todo o restante da tripulação. As discussões levantadas por esses
modelos de filme sofrem uma reversão, e já aparentam uma, para além de real, versão.
O caráter de verdade é mais uma vez depositado nos aspectos tecnológicos, daí a
educação ou modelação dos espectadores.
O que era trabalhado por Vaughan como projeto, está se consolidando. A junção
entre tecnologia e corpo apresenta-se nesses dois últimos filmes não só como um
modelo estético, mas a realização de uma ciência que não se limita apenas em descobrir,
â
” ( R U
tornou-
“
1997
44)
correspondem ao contínuo aprofundamento da imagética virulência tecnológica, pois,
acostuma-se a elas e adere-se à naturalização do artificial como normalidade.
Contudo, as imagens de violência e destruição dos corpos orgânicos são
diretamente relacionáveis
o explorada por Crash: o que as palavras de J.G.
Ballard e as imagens de Cronenberg pretendiam era lidar com os aspectos psicológicos
envolvidos na apreciação da violência e sua relação com a sexualidade proteticamente
tecnologizada. Portanto, Crash não pode ser considerado uma obra violenta, mas uma
obra sobre a violência que se enraíza ao cotidiano das sociedades globalizadas. Em
entrevista cedida para a Folha de São Paulo em 31 de janeiro de 199746,
B
o imaginário constituído nessa psicologia do automóvel
ê
misturado ao corpo. A
sexualidade que pode haver nos desastres e suas consequências.
Essa união atinge seu auge quando da morte de Vaughan. No livro o seu corpo
preso à
B
d e Catherine, que percebem além do sangue a
presença de secreções, sêmen no painel do carro, indicando que ele se masturbava
enquanto os perseguia. No caso do filme, ele persegue o carro de Chaterine que é
dirigido por Ballard, inclinando sua cabeça para trás em sinal de prazer e batendo em
sua traseira, até que ele solta um grito e comete suicídio jogando o seu carro de um
viaduto. Logo após, sabendo do acidente, a Dr. Remington e Gabrielle vão até o
deposito de veículos e transam no restou do carro de Vaughan. Tanto no livro quanto no
46
Entrevista cedida para a Folha de São Paulo em 31 de janeiro de 1997 Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq310126.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2013.
104
filme, essas sequências celebram de maneira inseparável a destruição e o prazer no
momento do acidente e da morte.
Na última cena, Catherine sofre um acidente provocado pelo próprio Ballard que
enfeitiçado ao dirigir o carro de Vaughan a persegue como se fosse o próprio. Catherine
perde o controle e desce um barranco capotando o veículo. Ballard desce do carro e a
observa, vai ao encontro de seu corpo que está estendido no gramado. Sussurrando em
seus ouvidos a desperta. Sequencialmente à penetra, promovendo a última cena do
filme.
A mistura de dor e prazer de Catherine fecha as cenas de Cronenberg e Ballard
ironicamente repete a frase que ela havia lhe dito no iníc
x
“
z
z ” Como num ciclo que ainda não se fechou, a frase instiga o momento
final e sublime para os personagens, a morte, que no caso de Ballard e Catherine, ainda
está por vir. Gozo e morte decretam a intenção de Crash para uma fuga do mundo
extremamente tecnologizado e representam o extremo colocado como forma de
transgressão frente à hýbris tecnológica.
Figura 18 – Cenas do filme Crash.
Na sequência final, devido à inclinação do local do acidente, o ponto de vista encontra-se em
desenquadramento. Primeiro, o desenquadramento do casal em close-up e depois de um raccord
a câmera vai se afastando em zoom, aumentando consecutivamente a distância focal e a
profundidade do campo, exibindo o casal junto ao carro.
105
CONCLUSÃO
A regra quer a morte da exceção
Godard
Crash, antes de tudo, é uma obra de arte. Diante de tanta reprodutibilidade de
imagens e discursos tautológicos, o filme se destaca pelo seu discurso sincero, no
melhor dos bons sentidos: curto e grosso. Crash é literalmente uma navalha na carne e
por isso é tão polêmico que ainda consegue surpreender quem o vê pela primeira vez ou
quem já o viu várias vezes. Ouve-se por aí, até que algumas pessoas sentem náuseas ao
assisti-lo.
Sempre se acha algo de surpreendente em Crash. Sua luz, seus diálogos, suas
cores... Todos os elementos apresentam-se intensos e com uma densidade muito
peculiar. Ao mesmo tempo assombroso e belo, o filme consegue revelar a natureza
mortal da combinação corpo e técnica. Demonstra ainda o potencial mortífero da
velocidade e do desenvolvimento industrial, representados pela imagem do automóvel.
Mantendo alguns diálogos com palavras retiradas do livro, Cronenberg
conseguiu manter a integridade da obra literária e mesmo quando não há diálogo, as
imagens representam com fidelidade o objetivo de J.G. Ballard. Ballard por sua vez, ao
nomear o seu principal personagem com o seu próprio nome, alcança o patamar do
conceito de hiper-realidade cunhado por Baudrillard, pois, assim coloca o seu ser entre a
ficção e a realidade; fato este que Cronenberg mantém no filme. Ballard e Cronenberg
sofrem algum tipo de incômodo relativo ao cotidiano dos grandes centros, desta forma,
colocam-se no papel de protagonistas para chamar a atenção da sociedade.
Através da alegoria do trânsito, Crash exibe a relação do homem com a
tecnologia. Mais que isso, através do projeto de Vaughan, Crash alerta para o futuro da
humanidade. Questiona até onde pode chegar o potencial de transformação mortífero da
técnica. Assim Crash consegue direcionar o nosso olhar para a perspectiva fáustica, sem
limites, na qual o corpo já não é apenas médio funcional, mas direcionado para outro
tipo de existência que ainda não podemos definir.
106
A radicalidade de Baudrillard e o extremo mostrado em Crash confluem em
direção à reversibilidade dos meios, da ficção e do próprio corpo. A partir daí o mundo
demonstra-se irreversível, pois caminha em uma única direção, a ciência e a técnica
aprofundam o desvelar ao infinitesimal e a ficção faz seu papel publicitário-educacional,
divulgando-as. O corpo é calculado e como qualquer outro objeto é explorado e
armazenado para pesquisas que tendem à sua extinção.
O patamar do espelho é apagado diante do voyeurismo da exatidão, o zoom em
máxima definição faz mostrar o segredo da obscenidade da vida. Crash a partir da
imagem do carro e do sexo expõe essa relação dual como uma só, ou seja, o corpo é
parte da mecanização da vida. Tudo é uma grande máquina síncrona que,
mercadologicamente, produz e reproduz.
Os carros que se chocam em Crash podem ser comparados com os carros que
se chocam em nossas autoestradas. O acidente pode ser visto como um fato de
moralidade ambígua, para além do Bem e do Mal, aparência pura: momento efêmero
que não pode ser interpretado ou assumido por algum sentido ou valor, mas que para os
personagens de Crash, simultaneamente, é a aproximação da morte e da vida. Como
fato midiático, os acidentes demonstram a própria reversibilidade dos sistemas.
Os carros chocam-se não para a História, mas para as ondas concêntricas da
mídia. As câmeras nada mais conseguem mostrar do que a opacidade de um fato que
apenas aconteceu por que as mídias estavam presentes, tornam-se a partir de então em
não acontecimentos. Numa estratégia de simulação, a mídia procura racionalizar, traz
esses episódios para o seu horizonte de sentido para nos aproximar do ideal de controle
e através da catástrofe aterrorizar a população. Todas as alternativas de explicação dos
porquês dos acidentes se anulam e se equivalem numa espiral interpretativa sem fim e
num terrorismo incomensurável.
Crash é a representação de um sistema extremo, que reveste a vida com corpos
cicatrizados, nas catástrofes das estradas; e metáfora das circuncisões realizadas em
hospitais ou clínicas de estética. É revelação do desencobrimento técnico que
transforma os minerais em objetos e em ferragens retorcidas nas redes da destruição de
produtos e lixões espalhados pelo globo, pois, se a economia se globaliza, o resto dela
também. A hibridização do corpo com a máquina em Crash é a demonstração de como
a tecnologia influencia o comportamento de tal forma que sugere a mutação desse
107
mesmo corpo. O corpo seria o próprio objeto final de um processo molecular que entre
imagem e técnica passa a ser o fim em si mesmo, até que a biotecnologia e a cibernética
o transformem em cyborg.
Crash ainda demonstra a duplicação material dos corpos e dos espíritos, o
universo do valor-signo e o tédio proporcionado por essa condição protética
tecnocientífica, fenômeno que é, no contexto do filme, considerado um tipo de patologia
benevolente que se espalha em metástase promovida pela velocidade de transformação
dos processos tecnológicos e pela falsa sensação de liberdade. Crash é radical e
paradoxal, faz da vida de seus personagens uma confusão gerada pelo exagero
tecnológico, resume o descarrego das energias sociais em relações mediadas pela
tecnologia, e mostra que o corpo biológico, nas sociedades tecnológicas, já não é mais
suficiente na obtenção do prazer.
Em Crash está descrita a reversibilidade do sujeito em objeto, o corpo funcional
que reflete os seres tecnologicamente híbridos. É um tipo de presságio, é a metodologia
de projeto do futuro; é a liberação de energia em acidente. As cicatrizes aparecem como
metáfora de novos orifícios mucosos a serem penetrados pelo metal, em analogia às
próteses fáusticas numa relação que excita a hiper-realidade contextualizada por
Baudrillard e Cronenberg.
Paranóicos, os personagens depositam suas esperanças nos projetados acidentes,
não dão conta do peso da sociedade iluminada, hipocondríaca, que a cada dia precisa ser
mais medicalizada pelas próteses psíquicas para suportar a falta de memória da cultura
ocidental. Tudo em Crash está industrialmente determinado, o olhar dos personagens,
os automóveis e os corpos que procuram algum sentido em atos extremos. Aqueles
acidentes podem ser vistos hoje, não somente nas estradas, mas nas mesas de cirurgia
plástica, afinal, os Faustos continuam espalhados pelo mundo como robôs que
funcionam em prol do sistema.
Em Crash, tudo está materializado, inclusive os espíritos e o ato sexual que
reflete o movimento dos pistões dos motores automotivos. Também “[ ] usufruto
industrial dos corpos, oposto a qualquer sedução; [...] produto tecnológico de uma
maquinaria de corpos, de uma logística de prazeres que vai diretamente ao fim [...]”
(BAUDRILLARD, 1992, p. 27). Forma de violência, coletiva assim como o acidente, o
gozo torna-se lei, verdade científica.
108
Tecnologicamente interditados os personagens procuram as transgressões e a
neutralização violenta do sexo. Os automóveis tornam-se deuses e as autoestradas o
caminho para o sagrado, os personagens fascinados pelos sentimentos de terror e prazer
apaixonam-se (pathos) pelo potencial de imbricamento do corpo com a máquina. Há a
divinização do acidente, o seu terror e o seu prazer em rituais, considerados por
Vaughan uma nova forma de arte. Transfiguram os corpos e delineiam novas linhas
(cicatrizes) e matizes, misturadas à tinta e à lataria dos veículos. Transcendência
funcional.
Passa-se assim do desejo para a exigência sexual na festa tecnológica
institucionalizada. Então, de todos os pontos de vista, a festa consome em sua
prolificidade desmesurada os recursos acumulados. A transgressão não é mais que o
interdito, mas a dissipação dos dois que em conjunto fundam a festa tecnológica de
Crash. Acumular e gastar são as duas fases que compõem o ritual religioso. Portanto,
existe em Crash um culto religioso à tecnologia com os personagens depositando sua
energia na simulação dos acidentes das celebridades cinematográficas.
Deletar todas as prováveis doenças que os genes deixariam de herança para seus
filhos. Assepsia total, excluída está a parte maldita. O corpo é entregue à simbologia da
técnica: incisões, excisões, escarificações passam como caracteres do corpo. Paradoxal,
Crash apresenta o corpo sem órgãos nem gozo de órgão, mas submetido às cicatrizes
técnicas, ao corte tecnológico analogamente às cirurgias.
Diante disso, o pensar radical irrompe o funcionamento radical das coisas. Os
personagens de Crash precisam das imagens embora disfarçadamente iconoclastas.
Projetam a destruição das imagens, fabricam a profusão delas e as destroem nas
simulações dos desastres automobilísticos. Não estão nem no belo nem no feio, mas no
funcional. Estão condenados à indiferença.
Baudrillard (1991, p. 148) afirma que em Crash tudo é hiperfuncional, é o
mesmo universo do hipermercado. Mas ao mesmo tempo o funcionalismo de Crash
devora sua própria racionalidade atingindo os limites paradoxais. Nem bom nem mal,
em Crash já não existe ficção nem realidade, é a hiper-realidade que abole as duas. Um
tipo de vertigem de signos nulos envoltos nos corpos.
Como a tecnologia substitui o papel de Deus e as transformações realizadas
calculam a natureza para finalizá-la no artifício de infinitos objetos, os personagens de
109
Crash, buscam livrar-se do lugar tedioso em que se encontram sacralizando o orgasmo e
o acidente, acreditando que esses dois os levarão ou ao prazer desregrado ou a extinção
da própria vida, numa nova possibilidade estética, que não deixa de ser cientificista, na
qual aquelas referenciadas feridas serviriam até como novas vulvas ou ânus. O corpo é
levado ao limite ao se definhar com a máquina e gerar uma nova arte da não
representação, da exterminação da sua condição orgânica para aos poucos ir se
transformando em máquina. As cicatrizes seriam como as tatuagens que marcam e
definem o agir de uma pessoa. Expressam alguma referência comportamental e modos
de ver o mundo.
Crash é em última instância, a representação dos rituais de passagem do corpo
orgânico para o corpo inorgânico que não deixa de ser explorado pela produção
mercadológica e pelo consumismo. O corpo é construído por uma educação
influenciada pelas mídias, sendo que, o cinema exerce papel fundamental na reversão de
uma concepção que deveria ser imaginariamente ficcional, criativa e poética, mas,
lembrando as palavras de Ballard e Baudrillard, a ficção é o mundo e não sabemos
muito bem diferenciar o que é real e irreal. Nessa perspectiva é que os personagens de
Crash se misturam à potencialidade da técnica, resultando na hiper-realidade.
Dessa maneira, os personagens se confundem com os automóveis, são o
complemento de ditos e interditos tecnológicos que geram em suas vidas a tediosa
mesmice. Então, dispõem sua energia para os acidentes e para a morte. Sentem a vida
no momento do acidente, livram-se das amarras publicitárias com os choques. Tentam
instantes de ritual em vão, pois os duplos já estão materializados, por esse motivo
frustram-se. E é aqui que mais uma vez a frase de Ballard e Catherine faz sentido: talvez
da próxima...
Essa frase é emblemática por caracterizar a fina linha que liga a vida e a morte
nas sociedades tecnológicas. A qualquer momento podemos sofrer algum tipo de
moléstia que pode estar diretamente ligada à tecnologia. O próprio acidente serve de
exemplo para ilustrar esse mal-estar. No início do filme Catherine enuncia essa frase
quando Ballard diz que seu gozo foi interrompido. Ao final do filme, Ballard retribui a
mesma fala para Catherine, o que ele propõe é que em próximas oportunidades eles
encontrem a morte.
A vida está diretamente ligada à morte. A cada instante de aprofundamento das
tecnologias que supostamente estão aí para nos livrar da morte é o contrário que
110
acontece. A indústria automobilística comprova isso da seguinte maneira; depositamos
esperanças nos gadgets dos automóveis e devido a isso nossa confiança diante da
probabilidade de que aconteça um acidente também aumenta. Pode-se considerar então
que esse fenômeno incita uma ilusão. Sentimo-nos protegidos pelos airbags, pelos
freios ABS (Anti-lock Braking System) e todos os outros dispositivos que circundam o
universo automobilístico, assim aceleramos mais. Ilusão porque ao contrário de seguros,
estamos mais suscetíveis aos acidentes e as mortes aceleram as estatísticas das estradas.
Os personagens já não se importam de se entregar fatalmente para a tecnologia.
Sacrificam-se em prol da tecnologia, renunciando assim a sua própria existência. Em
Crash, não existe autoconservação, mas autodestruição. Já não mais há subjetividade,
mas maquinaria. O prazer é desprezado em favor de uma totalidade técnica. Os
personagens são seduzidos pelo mal totalizador tecnológico. Vaughan e seus
companheiros representam uma humanidade que, mais que nunca, continua a olhar para
frente em sinal de contínuo progresso e de sua retroalimentação. Já não há mais, nem
masoquismo, apenas funcionalidade. O corpo máquina, artificial, virtual... Confusão em
espiral!
Os veículos com sua falsa sensação de segurança, as estradas mal estruturadas
ou como corredores de velocidade, mais as propagandas extinguem ou diminuem as
relações sociais, redimindo tudo à escala da produção e do consumo. Inclusive é
possível considerar que a destruição dos corpos e dos carros é também mais um meio
produtivo e de consumo. Todo esse jogo faz parte das estratégias dos sistemas. Tudo é
projetado para a destruição porque só com ela é possível produzir mais objetos para o
progresso do consumo. Percebendo ou não esse fenômeno, daí o desencanto dos
personagens de Crash.
O corpo metaforizado não só como máquina, mas como mercadoria (signo)
processa o golpe de misericórdia da técnica ao reduzi-lo em códigos. O corpo
metaforizado acredita participar de um sistema maior, está iludido no discurso
metonímico do consumo que é propagandeado incessantemente. O próprio terrorismo é
anunciado para ser consumido, ao passo que a banalidade sustenta a falsa felicidade,
risos perversos de desespero soam no crepúsculo de uma banalizante comédia
bestializante, uma zorra total do supérfluo.
Os personagens de Crash não querem saber nem do início nem do fim. Já
passaram desse limiar. O interminável processo de busca das origens e do fim os
111
desiludiu, pois, nenhuma visão antropológica resolverá a nossa falta de finalidade. As
coisas estão vazias e por isso mesmo já não tem mais sentido ou fim, resta-nos a
reprodutibilidade dos simulacros. O fim, como extermínio é creditado como valor ainda
na programação para que a catástrofe, ela sim, faça sentido, pois ainda gera
rendimentos. Os personagens já estão mortos, antes mesmo de morrerem nos acidentes.
Já saíram da sua condição orgânica para integrar uma armação muito maior, que
provocou a artificialização de seus imaginários, de suas vidas.
112
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