CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens MARLON NUNES SILVA O CORPO HIPER-REAL EM CRASH: ESTRANHOS PRAZERES, DE DAVID CRONENBERG Belo Horizonte 2014 2 MARLON NUNES SILVA CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens O CORPO HIPER-REAL EM CRASH: ESTRANHOS PRAZERES, DE DAVID CRONENBERG Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação Stricto Sensu – – – Estudos de Linguagens. Área de Concentração: Processos Discursivos e Tecnologias Orientadora: Profa. Dra. Olga Valeska Soares Coelho Coorientador: Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Sousa Boaventura Belo Horizonte 2014 3 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Ser maior que, em um sopro, me fez espírito e matéria e às energias cosmológicas que contribuíram para a empreitada. À minha mãe, Zulmira Paiva Nunes, em especial, pela presença constante e demasiada amizade. Ao meu pai, Carlos Nílton Ferreira da Silva, que mesmo espacialmente distante, se faz presente. À minha irmã Carla Nunes da Silva Andrade e sua família que, com amizade, ajudam em vários momentos. À companheira Profa. Mestre Ana Carolina Teixeira Santos, que, com sabedoria e paciência colaborou consideravelmente para a realização deste trabalho. À minha Orientadora, Profa. Dra. Olga Valeska Soares Coelho, pela concedida liberdade de pesquisa. À Profa. Dra. Ângela Vieira Campos por compor a banca. Ao meu Coorientador, Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Sousa Boaventura, pelas contribuições finais. Ao Prof. Dr. João Batista Santiago Sobrinho, pelos livros emprestados, diálogos trocados, o parecer favorável do projeto, e por aceitar o convite para integrar a banca examinadora. Ao Prof. Dr. Paulo César Ventura pelas ideias, convites e estágio. Além disso, pelo reconhecimento da minha tentativa poético-musical. Ao Prof. Dr. Verlaine Freitas pelo parecer favorável, pelos comentários, pelo parecer favorável do projeto e por aceitar o convite para integrar a banca examinadora. Aos professores e funcionários do POSLING, em especial, à Sandra, sempre muito receptiva. Aos colegas do mestrado por compartilharem experiências únicas. Aos colegas dos grupos de pesquisa: Tecnopoéticas e Literatécnica pelos textos e práticas compartilhadas. Aos amigos do projeto Pão & Poesia pelos trabalhos desenvolvidos. Aos amigos da Academia Contagense de Letras. Ao amigo Prof. Mestre Jean Américo Cardoso, pelos diálogos. Aos amigos, Eduardo Dias e Davidson Carvalho, companheiros de composições da Metamorfone, nossa banda, por proporcionarem momentos tão prazerosos nos estúdios e palcos. Aos meus familiares. 4 RESUMO SILVA, Marlon Nunes. O corpo hiper-real em Crash: Estranhos prazeres, de David Cronenberg. 117 p. 2014. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. O objetivo da pesquisa é demonstrar o processo de reversibilidade do corpo, de orgânico para inorgânico, passando pelas metáforas de máquina, a ele atribuídas, até o seu desaparecimento nas biotecnologias, tomando como justificativa e elemento elucidativo o filme Crash, estranhos prazeres, de David Cronenberg. O automóvel demonstra o meio como fim e o corpo refém da técnica vai de orgânico para inorgânico numa relação fáustica, sem limites e aparentemente irreversível que se aprofunda a cada instante de desenvolvimento da linearidade da razão. Este trabalho partiu de uma abordagem teórico-analítica fenomenológica e comparativa para examinar a representação do desastre automobilístico, elemento fundamental de Crash. Com esse objetivo, investigou-se como esse tipo de acidente juntamente com os elementos a ele associados são retratados no filme. Para tanto, foram essenciais as concepções de Jean Baudrillard acerca do conceito de hiper-realidade, por meio das quais, buscou-se responder alguns question no espetáculo da destruição e a estética proporcionada pela mistura entre corpo e tecnologia? O corpo, de metáfora maquínica, vai em direção à transcendência funcional? A produção contínua de modelos de simulação coloca os corpos diante de imagens que afunilam as subjetividades na sociedade globalizada e a ficção possui papel fundamental para a continuidade desse processo. Palavras-chave: acidente; simulacros; hiper-realidade; sexualidade. 5 ABSTRACT SILVA, Marlon Nunes. The hyper-real body in Crash, by David Cronenberg. 117 p. 2014. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. The objective of the research is to demonstrate the process of reversibility of the body, from organic to inorganic, passing by the metaphors of machine, to it attributed, until its demise in biotechnologies, using as justification and explanatory element the movie Crash of David Cronenberg. The automobile presents the means as end and the body as hostage of the technique goes from organic to inorganic in a Faustian relationship, boundless and seemingly irreversible, deepen itself at every moment of the linearity of reason development. This work started from a theoretical analytical phenomenological and comparative approach to examine the representation of automobilistic disaster, a fundamental element of Crash. With this purpose, we investigate how this type of accident, together with the elements associated to it, are portrayed on the movie. For this analysis, were essential the conceptions of Jean Baudrillard about the concept of hiperreality, by which, it was looked to answer some questions: what is so fascinating about the spectacle of destruction and the aesthetics caused by the blending of bodies and technology? The body, of machinic metaphor, goes toward the functional transcendence? The continuous production of simulation models puts the bodies in front of images that tape the subjectivities in a globalized society and the fiction has a key role to the continuity of this process. Keywords: accident; simulacra; hyperreality; sexuality. 6 LISTA DE FIGURAS1 Figura 1 – Cena do filme Crash. Figura 2 – Cena do filme Crash. Figura 3 – Cenas do filme Crash. Figura 4 – Cena do filme Crash. Figura 5 – Cenas do filme Crash. Figura 6 – Cenas do filme Crash. Figura 7 – Cenas do filme Crash. Figura 8 – Cena do filme Crash. Figura 9 – Cena do filme Crash. Figura 10 – Cena do filme Crash. Figura 11 – Cena do filme Crash. Figura 12 – Cena do filme Crash. Figura 13 – Cenas do filme Crash. Figura 14 – Cena do filme Crash. Figura 15 – Cena do filme Crash. Figura 16 – Cena do filme Crash. Figura 17- Cenas do filme Crash. Figura 18 – Cenas do filme Crash. 1 52 55 56 60 61 62 69 72 75 76 78 84 86 87 92 93 94 104 JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora Senac, 2009. Os termos, técnico- cinematográficos foram retirados da obra de Jullier e Marie. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 9 PARTE I: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS ....................................................................... 26 1.1 DA REVERSIBILIDADE ....................................................................................................................... 26 1.1.1. O deslizar da simulação: um breve histórico do corpo na técnica ........................................... 26 1.2 MATERIALIZAÇÃO PARA ALÉM DO CORPO, A DO ESPÍRITO................................................................. 33 1.3 AMPLEXOS DA SIMULAÇÃO: A FERTILIDADE DA REPRODUÇÃO DOS CORPOS SIMULACROS ................ 40 1.4 O CORPO E A BENDITA VELOCIDADE DA LUZ ESPETACULAR .............................................................. 45 PARTE II: CRASH: ESTRANHOS PRAZERES ................................................................................. 50 2.1 O CORPO HÍBRIDO EM CRASH: CORPO E TECNOLOGIA ....................................................................... 50 2.2 A CONTÍNUA RENTABILIDADE ESPETACULAR DO CORPO ................................................................... 64 2.3 CAVANDO A PRÓPRIA COVA: O CÉLEBRE NO LUGAR DOS DEUSES ...................................................... 68 2.4 TÉCNICA, SEDUÇÃO E O TERROR: A DERROCADA CORPORAL-AUTOMOBILÍSTICA NAS CIDADES ........ 71 2.5 O PROJETO DE VAUGHAN: UM FAUSTO EM CRASH ........................................................................... 74 PARTE III: CRASH: A MÁGICA REVERSÃO E O APROFUNDAMENTO IRREVERSÍVEL .. 83 3.1 O GOZO MAIS QUE PATOLÓGICO: AS RUÍNAS PROTÉTICAS DA CONFUSÃO CONTEMPORÂNEA ............. 83 3.1.1 Do masoquismo à funcionalidade total – o corpo sistema ........................................................ 91 3.2 O MEIO É O FIM DA PASSAGEM DRIVE-THRU ..................................................................................... 94 3.2.1 Enfim, a morte da ficção científica ........................................................................................... 98 3.2.2 O presságio do virtual em Crash ............................................................................................. 101 CONCLUSÃO ........................................................................................................................................ 105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. 112 8 Quando o último litro de energia tiver sido consumido (pelo último ecologista), quando o último indígena tiver sido analisado (pelo último etnólogo), quando a última mercadoria tiver sido produzida pela última força de trabalho que reste, quando a última fantasia tiver sido elucidada pelo último analista, quando tudo tiver sido libertado e consumido com a última energia, então dar-nos-emos conta de que esta gigantesca espiral da energia e da produção, do recalcamento e do inconsciente, graças ao qual se conseguiu encerrar tudo numa equação entrópica e catastrófica, que tudo isto é, com efeito, apenas uma metafísica do resto, e esta será resolvida de repente em todos os seus efeitos Jean Baudrillard (1991, pp. 180-181) 9 INTRODUÇÃO O homem é um animal que mede Nietzsche O objeto e as metodologias Nietzsche se interessa pouco sobre o que se passa depois de Platão, estimando que é necessariamente a sequência de uma longa decadência Deleuze A comparação É preciso informar antes de tudo que esta é uma análise sócio-filosófica dos fatos representados em Crash e que podem como veremos mais à frente, ser comparados com a suposta realidade na qual vivemos. É preciso enfatizar que o objetivo da pesquisa não foi analisar o trânsito intersemiótico entre as mídias, mas sim, estudar algumas das condições que fazem do corpo um ambiente tecnologizado. Mesmo que a pesquisa também não realize diretamente uma comparação entre as mídias, ou seja: livro e cinema; preferiríamos assim, se fosse o caso, a visão comparativista de Tânia Franco Carvalhal (2006). Pois em alguns momentos serão utilizadas passagens do livro Crash ou opiniões do seu autor, James Graham Ballard2, assim como a análise feita por Baudrillard sobre o livro Crash. A comparação realizada na pesquisa é mais questão de comprovar que o conteúdo do filme contribui para as análises de Baudrillard sobre a hiper-realidade tanto quanto do cotidiano vivido nas autoestradas. É mais a comparação da vida com a ficção, que propriamente a passagem de um suporte para outro, mesmo porque é possível considerar que nos sentidos, filosófico e semiótico, o filme de David Cronenberg cumpre com a mensagem do livro de J.G. Ballard. “Comparar [...] faz parte da estrutura de pensamento do homem e da organização da cultura. [...] valer-se da comparação é 2 O personagem principal de Crash recebe o nome do autor do livro. Portanto, para os direcionamentos feitos ao personagem durante a pesquisa será utilizado o sobrenome do autor, ou seja: Ballard. Quando for utilizado o nome do autor do livro Crash seu nome virá da seguinte forma: J.G. Ballard. 10 hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano e mesmo na linguagem” (CARVALHAL, 2006, p. 06). Ainda para Carvalhal (2006, p. 06), a comparação não é um método específico, mas um procedimento que favorece a generalização ou a diferenciação. É um ato do pensar diferencial paralelo a uma atitude totalizadora. O que fizemos então foi uma análise que se baseia nas três visões: a do filme, a do livro e a de Baudrillard, além dos fatos do cotidiano. Não pretendemos ficar apontando o que uma ou outra têm ou não têm, mas identificar que o aspecto totalizador da mistura entre corpo e tecnologia pode ser observado semelhantemente nas três visões. Crash e Baudrillard Lançado em 1996, Crash3, é um filme de origem britânico-canadense dirigido por David Cronenberg. Desde sua primeira exibição no Festival de Cannes em 1996, Crash, estranhos prazeres,4 gerou certo desconforto tanto para o público quanto para os críticos. Em alguns causou espanto, em outros, distanciamento, e, ainda, alguma magnificência. Rosângela Fachel de Medeiros (2013, pp. 57-58) em sua dissertação de mestrado intitulada CRASH, romance e filme, expressão máxima da representação do desastre automobilístico em manifestações artísticas, cita o trecho de uma matéria do jornalista e crítico de cinema Luiz Carlos Merten de 03 de agosto de 1997: Qualquer que seja a escolha do júri para o melhor filme (...), uma ticos, Crash 49º Festival de Cannes. Recebeu uma vaia fenomenal (...). Isso não impediu que a coletiva (...) fosse concorridíssima. Jornalistas de todo o mundo lotaram a sala, levando organizadores a transferir a entrevista para um local maior. Havia perto de 800 pessoas. Todas queriam ouvir a explicaçã . Quase convence o espectador de que assistiu a uma verdadeira obra de arte. (...) Se o seu filme for um vitorioso (...) será uma grande surpresa. (MERTEN apud MEDEIROS, 2013). Segundo o catálogo da mostra de cinema, Cinema em Carne Viva, David Cronenberg5 (2013) após ganhar prêmios com outros filmes com temas próximos a 3 No livro a história acontece em Londres e no filme a história se passa em Toronto, Canadá. Durante o decorrer da pesquisa o nome do filme será escrito apenas como Crash, que em inglês significa colisão, choque. 5 CINEMA em carne viva: David Cronenberg. São Paulo. [2011]. Disponível em: <http://www.carneviva.com/>. Acesso em: 28 de setembro de 2013. 4 11 Crash, a saber: eXistenZ, A Mosca, Videodrome, Gêmeos: mórbida semelhança, etc., o cineasta se debruçou sobre Crash. Com Holly Hunter, James Spader, Elias Koteas, Deborah Unger e Rosanna Arquette no elenco, o filme gerou polêmica em escala internacional. Ganhou o prêmio do júri do Festival de Cannes de 1996 por sua audácia e inovação, e cinco Genies para o melhor diretor, roteiro adaptado, direção de imagem, edição e edição de som. Além desses, ganhou o prêmio Golden Reel concebido para os filmes canadenses de maior bilheteria. O conteúdo de Crash é interessante para se pensar as condições de existência contemporâneas e suas relações com o desenvolvimento tecnológico, mais especificamente, os aspectos relativos ao trânsito e os elementos que fazem parte do universo automobilístico e suas tecnologias; e do potencial de sedução exercido pela tecnologia em forma de simulacros sobre a subjetividade do corpo. Para acompanhar esses movimentos, é preciso, de acordo com Agamben (2009, p. 62), ser contemporâneo6. A análise de Crash possibilitou a reflexão sobre o conceito de corpo tendo em vista sua relação com a tecnologia na sociedade de produção/consumo/informação: “[ ] seja em que cultura for o modo de organização da relação ao corpo reflecte o modo de z õ ” (BAU R AR 1995 136). As análises radicais de Baudrillard demonstram que a suposta realidade na sociedade informacional é pré-determinada, em sua maioria, por modelos midiáticos construídos pela publicidade de acordo com objetivos mercadológicos dentro do contexto de expansão da Nova Ordem Mundial. Entendemos a radicalidade de Baudrillard, tanto quanto o filme de Cronenberg, como formas de denúncia do sistema tecnocrático e ao mesmo tempo afirmação da vida, pois ao apontarem um problema na relação homem-tecnologia, suscitam no mínimo, reflexões sobre as condições de existência. Baudrillard (1991, p. 199) afirma que já se encontram vestígios desta radicalidade no modo de desaparecimento da escola de Frankfurt em obras como: Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos de Adorno e Horkheimer e A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin (BAUDRILLARD, 1991, p. 199). Baudrillard chega a comparar seus 6 AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros escritos. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas as sombras. É contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue misturar nessas, a sombra” (AGAMBEN, 2009, p. 62). 12 escritos com o terrorismo e denomina-se, ironicamente, um terrorista que utiliza as palavras como instrumento para ferir teoricamente o sistema assim como aqueles homens que explodem seus corpos na tentativa de ferir fisicamente o sistema, sendo essa, uma tentativa sua de abalar o sistema que também se utiliza do terror, mas, como forma de controle. O sistema beneficia-se de fatos ruins para exibir o máximo de violência na tentativa de amedrontar e assim controlar a população, mas no fim o que resta mesmo é o vazio, o caos e, paradoxalmente, o descontrole social. Contra esta hegemonia do sistema podem exaltar-se as astúcias do desejo, fazer a micrologia revolucionária do quotidiano, exaltar a deriva molecular ou mesmo fazer a apologia da culinária. Isto não resolve a imperiosa necessidade de fazer fracassar o sistema na claridade plena. Isso, só o terrorismo o faz. Ele é o vestígio de reversão que apaga o resto [...]. [...] eu sou terrorista [...] em teoria, como os outros o são pelas armas. (BAUDRILLARD, 1991, p. 200) O interesse por Crash surgiu devido à leitura da análise do filósofo, sociólogo e poeta Jean Baudrillard, referência central desta pesquisa, no livro Simulacros e simulação, sobre o livro homônimo de James Graham Ballard. A leitura da análise de Baudrillard foi realizada durante alguns questionamentos relativos ao hibridismo corpo/tecnologia e levantamentos sobre o aprofundamento de condições que dizem respeito à técnica (que na época, vinham sendo suscitados pela leitura de textos do filósofo alemão, Martin Heidegger). Dessa forma, foram identificadas congruências entre alguns conceitos importantes sobre a relação corpo/tecnologia, a saber: corpo, consumo, hiper-realidade, sedução e prótese. Conceitos que fazem parte do universo desta pesquisa, assim como outros não menos importantes que contribuíram para a argumentação. Partindo desses pressupostos, pretendeu-se o exame das análises de Baudrillard tomando como objeto de análise o filme Crash, enfatizando os seguintes aspectos: a tecnologia representada pelo carro e o desencantamento do mundo, elementos fundamentais do filme. Também se fez necessária a discussão de alguns valores que fundamentam as relações científicas durante a história, valores que dão caráter de verdade à visão científica baseada em preceitos metafísicos. Além disso, investigou-se o papel da sedução exercida pelos simulacros na constituição dos processos de formação de corpos e linguagens que reduzidos a códigos (DNA), podem não passar de 13 informação estocada, reproduzida e consumida. Para tal empreitada foi utilizada a fenomenologia do consumo realizada por Baudrillard: Na fenomenologia do consumo, a climatização geral da vida, dos bens, dos objectos, dos serviços, das condutas e das relações sociais representa o estádio completo e consumado na evolução que vai da abundância pura e simples, através dos feixes articulados de objectos, até o condicionamento total dos actos e do tempo, até à rede de ambiência sistemática inscrita nas cidades futuras que são os drugstores, [...] ou os aeroportos modernos. (BAUDRILLARD, 1995, p. 19) Verifica-se com essa citação que, para Baudrillard, o consumo passou da acumulação pura e necessária para a condição supérflua, desde os objetos em si até os comportamentos, Baudrillard os denomina climatizados em referência aos aparelhos de ar condicionado. O filósofo utiliza-se dessa metáfora para explicar a artificialização da vida contemporânea, que se estende pelas redes de comunicação, sejam na forma de estradas ou de fios. Climatização que, como outros fatores tecnológicos, integra os aspectos da vida orgânica, confundindo-se com a própria organicidade. Daí partirmos para Crash, pois o projeto nele inscrito é o de um corpo já não mais tão orgânico. O corpo misturado à técnica representada pelos automóveis confunde-se ao emaranhado de sistemas menores que fazem do modo de produção capitalista, um sistema maior integrado em todas as suas instâncias. Partindo da ideia de que em Crash o acidente automobilístico e o sexo constituem determinadas fontes de gozo, Baudrillard (1992, p. 46) afirma que seria necessária uma genealogia da razão sexual tal como fez Nietzsche com a moral judaico-cristã “ x não é parte da realística ocidental, da obsessão própria da nossa cultura de estabelecer instânci z ?” (BAU R AR 1992 46) Estaríamos materializando o sexo, o espírito... É a observação sobre essa materialização da vida que dá margem para os advindos questionamentos. Sendo assim, recorremos também à genealogia: para Jean Lefranc (2010, p. 135), a origem aqui é fundamento, como são as genealogias divinas. A genealogia conduziria a reencontrar a origem, fazer aparecer significações e novas semelhanças, assim a genealogia diria mais que a história. Francisco Menezes Martins (2012) afirma no artigo Fragmentos de inspiração cool memories: Baudrillard e o devir pósnietzscheano produzido para a revista eletrônica Razón y Palabra que muitas ideias 14 formuladas por Nietzsche poderiam ter sido pronunciadas por Baudrillard e o inverso também. Porém, é no estilo e acidez extemporâneos que ambos se encontram para conjugar a crítica do homem e seus valores. A partir dessa conceituação foi colocada em questão, na análise de Crash, o “ cálculo da vida, dos bens e objetos, assim ” (BAU R design ARD, 1991, p. 82). O cálculo proporcionado pelo discurso do progresso científico sem limites, fáustico em relação à organicidade, logo, a transcendência (não no sentido religioso, mas no sentido de mutação: de orgânico para inorgânico) do corpo humano em algo que ainda não sabemos o que será. Paula Sibilia (2002, p. 13), seguindo as reflexões de Hermínio Martins, esclarece a transição da visão prometéica7 para a fáustica: esse projeto fáustico “ â ” ( B A 2002 14) A primeira utiliza-se da tecnologia como extensão gradativa das capacidades do corpo, guardando assim determinado respeito ao que é humano e divino. Já a corrente fáustica enxerga a tecnociência como forma de transcendência da condição orgânica em níveis espaciais e temporais. Marshall Berman (1986, p. 39) descreve que nos quatro séculos que nos separam do Faustbuch de Johann Spiess, de 1587, e da História Trágica do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, de 1588, a história tem sido contada inúmeras vezes, em várias línguas em todos os meios conhecidos. A história de Fausto provou ser irresistível para muitos artistas. “Em todas as versões [...] Fausto perde o controle sobre suas energias mentais, que a partir daí adquirem vida própria, dinâmica e altamente explosiva” (BERMAN, 1986, p. 39). Em estudos sobre as categorias dos simulacros Baudrillard (1991, p. 151) também enuncia, à sua maneira, a passagem da visão prometéica para a fáustica: a primeira categoria de simulacros corresponderia ao imaginário da utopia; a segunda, de objetivo prometéico, corresponderia à ficção científica; e sobre a terceira ele questiona ironicamente se haveria imaginário que a respondesse. Ou seja, a falta de respostas é 7 JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ª ed. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 2001. Prometéico - Adjetivo derivado de Prometeu, personagem da mitologia grega que, tendo roubado o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens, foi acorrentado como castigo no monte Cáucaso. Diz-se, em geral, das pretensões humanas que, de alguma forma, buscam superar os limites da condição humana e igualar-se aos deuses; e também, das tentativas do homem de superar a si mesmo através da ciência e da técnica para dominar a natureza. 15 condição análoga à falta de limites, implicando também os questionamentos de Baudrillard sobre as condições fáusticas das tecnociências. Tempo, espaço e corpo refletindo agora o fáustico, seriam reduzidos à artificialização que ocorre no interior dos shoppings e drugstores. Fenômeno que representaria “ z ções, a homogeneização social e a sexualidade no ” (BAUDRILLARD, 1991, p. 82). Espaços híbridos ambiente hermafrodita tanto quanto os modelos de corpo que os refletem fazendo desaparecer gradualmente a esfera do natural tanto quanto a função simbólica, restando a combinação e a substituição de objetos por mais objetos numa continuidade ilimitada, representada em Crash pelo processo destrutivo dos corpos e dos automóveis. Baudrillard (1995) justifica seu interesse pelas condições do consumo do corpo em seu texto O mais belo objecto de consumo: o corpo, que integra a sua obra A sociedade de consumo: O que pretendemos mostrar é que as estruturas actuais da produção/consumo induzem no sujeito uma dupla prática, conexa com a representação desunida (mas profundamente solidária) do seu próprio corpo: o corpo como CAPITAL e como FEITIÇO (ou objecto de consumo). Em ambos os casos, é necessário que o corpo, longe de ser negado ou omitido, se invista (tanto no sentido econômico como na acepção psíquica do tempo) com toda a determinação. (BAUDRILLARD, 1995, p. 137) Esse trecho demonstra o corpo metaforizado como matéria, tempo e valor-signo. O corpo antes de ser negado deve ser integrado e investido no sentido de que precisa ser construído de acordo com as necessidades dos sistemas tecnológicos. O corpo metaforizado como fonte de energia, como produto, faz com que Baudrillard utilize, ironicamente, a expressão “ - ” (BAU RILLARD, 1991, p. 83) para explicar a relação entre signo e objeto (corpo) como um tipo de simultaneidade e reversibilidade fatais de um no outro de maneira que não se pode mais distinguir cada qual diante dos simulacros; o mundo projetado pela reprodução técnica em larga escala reprodutiva, mais real que o real. O movimento de reversibilidade existente nos simulacros é um dos aspectos fundamentais no discurso de Baudrillard, sendo a sedução fator preponderante para que a reversibilidade ocorra em várias camadas sociais, refletindo diretamente na imaginação do corpo social. Os simulacros então seriam modelos de imagens que confundem o imaginário entre o verdadeiro e o não verdadeiro gerando um tipo de confusão entre os modelos e o real. “É um hiper-real, produto de síntese irradiando 16 ” (BAU R AR 1991 08). Assim, para Baudrillard o real é constituído por células de modelos de comando, reproduzidos indefinidamente, e agora, mais que nunca, miniaturizados. O corpo tornou-se submetido às vontades da técnica, tratado como informação, como qualquer outro objeto, para a continuidade do desenvolvimento científico tradicional e, agora, no limiar do desaparecimento, substituído por próteses congêneres ao desenvolvimento infinitesimal da técnica. Nessas alturas o corpo já poderia ser classificado no que Baudrillard (1991) chama de: “ na informação, no modelo, no jogo cibernético – operacionalidade total, hiper-realidade, ” (BAUDRILLARD, 1991, p. 151). Produtos os quais os seres possam se identificar e reproduzir a ideologia predominante, a do consumo desses próprios modelos... No artigo denominado Corpo e técnica, produzido para a Revista Socitec, Daniela Rodrigues (2012) afirma que influenciado pela tradição mecanicista cartesiana, o binômio corpo/alma foi, ao longo do pensamento ocidental, empregado para situar o corpo de acordo com os ritmos e fluxos socioeconômicos de cada época. Entendido como pura materialidade ou como invólucro e perecível, do qual temos que nos livrar para libertar nosso espírito, o corpo foi compartimentalizado, manipulado e a qualquer momento é capaz de desaparecer. Sua funcionalização modificou o seu exterior e povoou artificialmente o seu interior, construindo-o, consumindo-o e destruindo-o por todos os lados, formando uma espécie de paradoxo. Juremir Machado da Silva (2013), no artigo O Paroxista diferente, afirma que Baudrillard “está obrigado a recorrer ao paroxismo, à caricatura e à reversão do sentido aparente para tentar se aproximar do mistério do objeto, conceito próprio à sociedade ” (SILVA, 2013, p. 09). Lidar com a hermenêutica secularizada que culminou em toda a hýbris8 tecnológica (a hýbris é considerada por Brandão (1987) uma desmedida) e partir dela descobrir nos acidentes uma saída poética, uma nova estetização para o desencantado cotidiano daqueles personagens? Medidas extremas como os acidentes resolveriam o extremo universo tecnológico sentido por eles? Estaria implícito no comportamento dos personagens de Crash algum tipo de tentativa de reversão? 8 “ o que dos homens, o herói está sempre numa situação limite, e a areté, a sua superioridade e excelência, leva-o facilmente a transgredir os limites impostos pelo métron, suscitandoê ý ” (B 1987 67) 17 Até mesmo a psicologia militar recua diante das clarezas cartesianas e hesita em fazer a distinção do falso e do verdadeiro, do sintoma produzido e do sintoma autêntico. Se ele imita tão bem um louco é porque o é. E não deixa de ter razão: neste sentido todos os loucos simulam e esta distinção é a pior das subversões. É contra ela que a razão clássica se armou com todas as suas categorias. Mas é ela hoje em dia que de novo as ultrapassa e submerge o princípio de verdade. (BAUDRILLARD, 1991, p. 11) Diante dessas clarezas, Dunley (2005) afirma que o surgimento da metafísica substituíra o conhecimento mítico fazendo com que o ocidente iniciasse o seu processo de afastamento do divino recusando o extraordinário natural (mitológico) que lá se constituiu, uma espécie de abandono de Deus em favor dos homens, que através da técnica aprofundam a sua condição protética artificial. Na visão de Nietzsche (2001, pp. 147-148) através da secularização da ciência haveria por parte dos homens a troca de Deus pela ciência, fazendo esse autor anunciar a partir das observações de Hegel9 a morte de Deus. Hoje, ciência e tecnologia complementam-se, juntando forças, fazem parte de um mesmo sistema. Saído de sua condição, tirado da sua significação, Deus passa do seu significado medicalizante para o materializante, as bênçãos agora são cedidas em sinal de consternação material. Esquecimento da vida, niilismo ativo, fazendo acreditar em Deus como revoluções científicas que não passam de redução generalizada da vida em matéria (objetos), incluindo agora, mais que nunca, o corpo humano. O bem, a verdade, o sentido do potlatch “ z ‘ ’ ‘consumir’” ( AU 2003, p. 191) ocupando o sentido reverso, ou seja, que vai da distribuição ritualística para a acumulação-destruição sem ritual. O potlatch para Mauss, mais que nutrir e consumir revela as condições de existência relativas ao consumo e ao acúmulo das sociedades arcaicas. Os laços dessas sociedades se dariam também na forma de trocas: “A obrigação de retribuir é todo o Plotlacht” (MAUSS, 2003, 249). O casamento e o nascimento de um herdeiro, por exemplo, desenvolveriam laços que não deixariam nem o homem nem a mulher mais ricos, mas concretizariam ritualisticamente o convívio de duas famílias. 9 Ver Svendsen (2006, p. 87). 18 Para esses povos as próprias coisas eram dotadas de espírito, portanto ao receber um presente era preciso dar outro em troca. As transações envolveriam não só objetos, mas também serviços e favores não desvinculando os objetos da natureza e nem da sociedade (cultura), mas integrando-os. Já nas sociedades tecnológicas, os objetos esvaziam-se de sentido e tomam aspecto fundamental, como que em substituição aos próprios rituais de trocas, logo, hoje as relações sociais balizam-se pelos objetos. Daí a reversibilidade: as coisas reservam caráter de sujeito enquanto os sujeitos subjugam-se ao processo de reificação. Nesse sentido, aquilo que representava a vida, por exemplo, para os Kwakiutl ou para os Chinook (tribos norte-americanas citadas por Mauss), no sentido de emancipação social, para a sociedade de consumo, é mantido, mas sem um objetivo ritualístico torna-se um processo vazio. Baudrillard chega a denominar esse processo de “leque simbólico [...] obssessional” (BAUDRILLARD, 2001, p. 10). Não à toa detectamos em Crash uma espécie de culto ao acidente que direciona seus personagens para um tipo de festa na qual eles descarregam o que acumulam. Entretanto, como há a falta de retribuição ritualística, a tecnologia torna-se por si só, funcional. Portanto os personagens veem-se desamparados na festa tecnológica. A“ ”( U EY, 2005, p. 19), o processo de consumo e uma cultura dos Mass media centralizam e simulam essas relações “A õ ” (BAUDRILLARD, massa 1995, p. 24). As próteses informacionais, trazidas à existência no auge do processo de desenvolvimento do progresso técnico, parecem recolocar os homens diante de forças que consecutivamente os ameaçam. Haveria no contemporâneo um sentimento de malevolência abafado pela simulada ilusão do domínio pleno sobre todas as camadas da vida nos ecrãs da tecnologia. Exemplo disso são as câmeras que passam a impressão de segurança, mas não impedem que um assalto seja realizado. Por esses motivos o filme Crash apresentou-se como um convite à denúncia dos tecnocráticos sistemas de simulação. Apresenta pressupostos do perspectivismo irônico baudrillardiano, fato revelador que demonstra a relação do texto fictício de Ballard com “ ” e a representação da escrita nas telas através do filme. Como veremos mais à frente, o próprio Ballard, assim como Baudrillard, afirma Crash como sendo uma comparação com os fatos que ocorrem cotidianamente nos grandes centros urbanos. A 19 construção e desconstrução de imaginários e de corpos que sofrem influência dos simulacros. A questão da construção/desconstrução de sentido no imaginário fez parte das análises de Baudrillard, e para uma melhor compreensão de suas prerrogativas sobre o imaginário o autor participou de um grupo que propunha um novo ramo de conhecimento que ironicamente fora denominada a ciência das soluções imaginárias: a Patafísica. Segundo Chris Horrocks (2008, p. 5 e 78) o termo Patafísica se refere à “ ê õ ” e foi cunhado por Alfred Jarry. Sendo a Patafísica considerada como a ciência das soluções imaginárias, permite dizer que Baudrillard, tanto quanto Ballard, fizeram questão de manter certo mistério em seus escritos, um suspense que revela e não revela ao mesmo tempo, considerando com esse tipo de escrita a magia da vida sob um Deus transformado em mercadoria e fé convertida em negócio. Mistério verificado em Crash devido à sua condensada ambiência que cria expectativas ao insinuar construções para os acidentes. A espera pelas colisões pode ser percebida no olhar dos personagens que passam a ideia de resignação. Ou seja, a falta de qualquer outro sentido possível os levará a qualquer momento à entrega total para a hibridização de seus corpos com a tecnologia, até o seu total desaparecimento. A relação maquínica contida em Crash entre corpo e tecnologia faz parte do espectro da sedução e é um processo reversível e mortal. Baudrillard (1992, p. 56), afirma que a sedução não é da ordem do real, e por isso é que abarca todo o processo de poder, assim como todas as ordens reais da produção, consumo, reversibilidade e desacumulação ininterruptos sem as quais não haverá poder. Como Baudrillard é um dissidente da verdade, justamente por isso, não acreditava na ideia de um discurso único, de uma realidade única e inquestionável. Desenvolveu uma teoria irônica que têm por fim formular hipóteses, ajudando segundo ele, a revelar aspectos impensáveis. Procurou refletir por caminhos oblíquos lançando mão de fragmentos, tornando a análise dos paradoxos mais importante que o discurso linear. As questões levantadas nesta pesquisa referem-se à condição de exagero depositada na técnica baseada em cálculos, representadas em Crash pelo discurso de Vaughan, hýbris tecnológica tautologicamente enunciada durante os últimos séculos: “[ ] ê enções sutilíssimas, que podem muito servir tanto para alegrar os curiosos quanto para facilitar todas as artes e diminuir o trabalho dos homens 20 [ ]” ( AR 2008 17) z incluindo o corpo, tornou-se verdade instituída pela perspectiva racionalista que predomina nas ciências, na economia e várias instâncias sociais. Em Crash, a hýbris pode ser percebida no comportamento desmedido dos personagens que veem a técnica como uma espécie de Deus. A técnica exerce função de duplo que influencia diretamente os seus comportamentos, mesmo que não percebam e substitui a imagem dos Deuses. Principalmente para Vaughan, que através de suas desmedidas simula os acidentes. O caráter de verdade da técnica é visto como um bem único progressivo e constante. Assim, esquece-se do mal que este mesmo é capaz de provocar, logo, o mal revela sua força mais voraz dominando por si todos os ramos da vida ocidental. Juremir Machado (2013) afirma que mergulhados nas suas ilusões positivas, os homens não percebem as armadilhas da domesticação. Nesse sentido, esta pesquisa não caminha em direção à verdade científica instituída durante séculos, pois: “ psicofuncionalidade [...] assume todo o seu sentido econômico e ideológico. O corpo A z ” (BAUDRILLARD, 1995, p. 143). Enfim, o mercado exige através de convenções psicológicas que a subjetividade dos corpos seja submetida à funcionalidade da técnica. A linguagem corporal em Crash poderia ser então, além de funcional, alguma outra coisa? No prefácio do livro Senhas, Baudrillard (2001) afirma que a própria linguagem gera ou regenera as ideias, faz o trabalho de encaixes que entrelaçam as ideias, mistura-se ao nível da palavra, que serve de operadora, em uma catálise que a própria linguagem10 está em jogo; para ele, isso faz dela um investimento tão importante quanto às ideias, um tipo de Genealogia. Para além da tradicional imagem de máquina, os modelos binários tecnológicos exercem função transcendente (no sentido de extinção) sobre o corpo e fausticamente aprofundam o ciclo de construção/desconstrução tratado em Crash. Segundo Melo (1988, p. 196), a luta de Baudrillard ainda é contra uma antropologização do mundo que também não deixa de 10 As linguagens são absorvidas, a exemplo do acontecido com o movimento Hip-Hop que de reivindicativo e revolucionário nas décadas de 80 e 90 do século XX, passou para diamantes nos dentes, colares e cifrões de ouro no pescoço no século XXI. Como exemplo também da absorção dos atores que saem das suas supostas realidades e passam a servir o sistema binário com suas máscaras, escondem-se não somente do público, mas deles próprios. O corpo dos atores torna-se também binariedade, códigos reduplicados de um modelo de sistema infinitesimal. 21 ser científica (positivista) e porque o nível do simbólico não pode dar-se, como pretendia Lévi-Strauss, numa função mediadora entre real e ideal. A invenção da verdade como na versão predominante sobre fenômenos que escapam aos sentidos, alia o imaginário tanto à moral do homem idealmente melhorado, como à moral do homem tecnicamente educado (na última parte da pesquisa veremos a contribuição do cinema para a educação dos imaginários) para transcender a sua orgânica condição. É nesse sentido que Crash coloca em questão a relação entre corpo, tecnologia e transgressões. “ ” afirma Ballard citado por Lars Svendsen (2006, p. 88): O que as pessoas mais desejaram que é a sociedade de consumo, aconteceu. E como em todos os sonhos que se realizam há uma aflitiva sensação de vazio. Assim elas esperam por qualquer coisa, acreditam em qualquer extremo. Qualquer absurdo extremista é melhor que nada... Penso que estamos na pista de toda espécie de loucura. Penso que não há limite para todo tipo de absurdos que vão aparecer. O futuro será entediante. (BALLARD apud SVENDSEN, 2006, p. 88)11 Ballard afirma que a sociedade de consumo está aí, e ainda desenvolvendo-se. No contexto trabalhado nesta pesquisa, leva-se em consideração que todas as etapas desse desenvolvimento complementam-se. Em nossos dias, além da sociedade de produção/consumo descrita na citação anterior, temos outro patamar, o informacional, a sociedade da informação; ou seja, tudo se aproxima da condição de informação. Subtil a essas determinações, o corpo não sonha com a sua condição natural, pois os artifícios desenvolvidos técnica e luminosamente, como nos faróis contrários de Crash, cegam a humanidade tanto quanto os personagens em direção aos calculados acidentes. Ballard (2007) “[...] é cada vez menos necessário ao escritor inventar o conteúdo ficcional [...]. A ficção12 A ” (BALLARD, 2007, p. 08). Para o autor, essa entediante confusão paradoxal é uma 11 Importante salientar a ligação entre as ideias, ou o texto de Ballard, o filme de Cronenberg e as concepções sócio-filosóficas de Baudrillard: os três passam por temas análogos como o consumo, o extremo, o paradoxo, o vazio e o tédio. Baudrillard não faz sua leitura sobre Crash descaracterizando-o, ou seja, os questionamentos de Baudrillard e o filme de Cronenberg demonstram-se como partes integrantes, complementares dos questionamentos de J.G. Ballard e todos eles afirmam a ligação do conteúdo ficcional de Crash com a sociedade. 12 Discutiremos o conceito de ficção de acordo com Baudrillard no subtópico 3.3 Enfim, a morte da ficção científica. 22 espécie de loucura que se aprofunda no vazio e parece estar desamparada de qualquer tratamento. Dos capítulos A primeira parte deste trabalho, denominada Considerações Teóricas Iniciais, faz um apanhado histórico-social dos conceitos de técnica e corpo. Na seção O deslizar da simulação: um breve histórico do corpo na técnica há uma reflexão sobre algumas condições sociais que determinam como o corpo é visto ou utilizado, comparando, por exemplo, as sociedades tradicionais (pré-industriais) com a sociedade de consumo/informação. Nessa parte discute-se também a questão das subjetividades frente ao desenfreado desenvolvimento científico tecnológico. Essa parte ainda trabalha o conceito de duplo, indicando a multiplicação dos modelos hiper-reais que promovem uma verdadeira festa tecnológica de caráter fáustico. Ao final desse subtópico, já se encontra acrescentada uma análise inicial de alguns aspectos do filme Crash, demonstrando como a estética da destruição faz parte do projeto de Vaughan, o herói/vilão da trama. Na seção Materialização para além do corpo, a do espírito foi trabalhada a questão da acumulação, da reversibilidade e da materialização do espírito em forma de valor-signo. Nesse trecho da dissertação é discutida a questão das próteses, inclusive as mentais que fazem papel de dispositivos que contribuem para suportar a vida tecnológica. Nessa parte é salientada a questão dos rituais que tem perdido força na sociedade informacional provocando uma consequente falta de sentido. A ideia de Dádiva é realizada nas trocas em inúmeras características da sociedade, pois seguindo o modelo economicista o corpo torna-se estoque informacional. A materialização do duplo, da imagem, do espírito compara-se à morte, afunilação cultural sem igual através da globalização tecnológica que se torna insuportável para os personagens de Crash. Na seção Amplexos da simulação: a fertilidade da reprodução dos corpos simulacros foi levantada a questão da não compreensão da hiper-realidade devido ao fato de estarmos inseridos nela e influenciados diretamente pelos modelos da indústria cultural; as telas tornam-se espelhos e exibem espetáculos assim como o teatro montado por Vaughan e Seagrave, para reviverem os acidentes das celebridades. Discute-se a perda da subjetividade diante da absorção dos corpos pelo trabalho das telas. 23 Finalizando as Considerações Teóricas Iniciais, a seção O corpo e a bendita velocidade da luz espetacular, relata que a importância crescente depositada na tecnologia produz um conjunto de perdas não só ao nível da memória humana, mas também relativamente às possibilidades de ação dos indivíduos, pois, quanto mais cresce a rapidez tecnológica, mais decresce a liberdade. Nessa parte da pesquisa, discute-se a falseabilidade e a indiferença do sistema por isso o ato extremista dos personagens de Crash, provocar destruição, colisões para chegar mais perto da realidade. Na parte II, denominada Crash: estranhos prazeres, continuamos de forma mais aprofundada a análise do filme. O corpo em Crash é associado para se realizar plenamente na excitação provocada pelas transgressões através dos acidentes que resultam em atos sexuais e na morte, por isso, tantas polêmicas em torno do filme13. Discute-se nessa parte o corpo como estoque, transformado em matéria-prima e reservatório de energia, sendo considerado como um objeto qualquer. Essa relação é revelada quando passa a dialogar com a simulação dos acidentes das celebridades realizada pelos personagens. Os diálogos das personagens são enfatizados nessa parte e faz-se uso de imagens, recortes de cenas do filme, que são trabalhadas ao longo das discussões. Além disso, foram feitas considerações sobre a metaforização do corpo ou da natureza como máquina e da naturalização do artificial. Na seção Cavando a própria cova: o célebre no lugar dos deuses são salientadas as escavações feitas pelo ser humano em prol de um determinado descobrimento sobre suas origens. O homem que cava e vive esfomeado procurando suas origens, mas quanto mais cava mais aumenta sua fome. Em Crash a narrativa da morte é reproduzida como tentativa de rito, por exemplo, na ressurreição do acidente de James Dean. Reversibilidade da narrativa de vida para a de morte, é preciso ressuscitar os corpos e as imagens. Discute-se assim, o peso do corpo e a reversibilidade da narrativa de vida em narrativa de morte. 13 A partir dessas reflexões relaciona-se a obra ficcional de Cronenberg com as análises de Baudrillard e em alguns momentos com a realidade social. Por este motivo, o filme demonstra aspectos que corroboram fenômenos sociais. Como veremos a diante, os próprios autores, Ballard e Baudrillard, afirmam que Crash é uma representação social. 24 Iniciamos a seção Técnica, sedução e violência: A derrocada corporalautomobilística nas cidades, citando uma matéria jornalística que informa o vertiginoso crescimento dos automóveis. Logo após, fez-se um recorte de Crash, demonstrando um dos ambientes mais característicos dos grandes centros urbanos: as autoestradas. Nessa mesma seção, para ilustrar a perda da referência original, passa-se rapidamente pelo conceito de terrorismo discutido por Baudrillard comparando-o com o terrorismo das rodovias: espalhamento do modelo de metrópoles modernas transformando-as em desastres automobilísticos. Na seção O Projeto de Vaughan: um Fausto em Crash é discutido o projeto futurístico de Vaughan. Ele assinala que os acidentes são formas de semear em vez de um evento destrutivo considerando-o uma forma de explosão de energia sexual mediando aqueles que já morreram. Nesse item é discutida a questão da transgressão exposta por Svendsen. Traçamos também, a partir da afirmação de Vaughan, um paralelo do desenvolvimento tecnológico com as aeronaves e ainda recorremos a Lacan para justificar que a ciência se reduz para a maioria nos objetos que produz. Na parte III: CRASH: A reversa mágica das telas e o aprofundamento irreversível, na seção denominada O gozo patológico: as ruínas protéticas da confusão contemporânea, demos continuidade à questão da publicidade como materialização e valor-signo, além da ênfase no acidente como forma de transgressão e afirmação da vida. Nessa parte ainda foi discutida a simulação como sedução a partir do exemplo da contemplação em testes de acidentes assistidos pelos personagens na casa de Vaughan. Na seção Do masoquismo à funcionalidade, a partir da leitura de SacherMasoch, de Deleuze e da visão de Baudrillard sobre o masoquismo em Crash, discutimos se há masoquismo no filme. Na seção, O meio e a mensagem da passagem Drive-thru, salientamos que o cinema vem exercendo função pedagógico-educacional, ou seja, as tecnologias reproduzem o imaginário técnico e muitas vezes o conteúdo é direcionado para planos posteriores, estado que Baudrillard denomina “ ” Além disso, nessa parte, discute-se a Pop Arte e sua influência sobre as subjetividades. Na seção Enfim, a morte da ficção discutimos, os caminhos que a ficção científica vem tomando na contemporaneidade. Por fim, na seção O presságio do artificial em Crash, discutimos como Crash, em comparação com a maioria dos filmes, consegue exibir a naturalização do artificial. 25 26 PARTE I: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS O verdadeiro fim do mundo é a destruição do espírito, o outro é condicionado pela experiência que consiste em saber se o mundo subsistirá depois da destruição do espírito Karl Kraus 1.1 Da reversibilidade O real nunca mais terá oportunidade de se reproduzir – tal é a função vital do modelo num sistema de morte, ou antes de ressurreição antecipada que não deixa já qualquer hipótese ao próprio acontecimento da morte Baudrillard 1.1.1. O deslizar da simulação: um breve histórico do corpo na técnica Sem autenticidade, sem educação, sem liberdade no seu significado mais amplo - na relação consigo mesmo, com as próprias ideias pré-concebidas, até mesmo com o próprio povo e com a própria história - não se pode imaginar um artista verdadeiro; sem este ar não é possível respirar Turgueniev Em artigo denominado De Heidegger a Baudrillard: os paradoxos da técnica, Juremir Machado da Silva (2012) intensifica a necessidade de compreensão dos efeitos da técnica e explica que ela tem sido vista como vontade de poder, ou seja, o conhecimento técnico é o que mais importa na sociedade de consumo/informação. Tal conhecimento seria mais valorizado atingindo todas as esferas sociais e intelectuais, absorvendo o conhecimento de outros campos e os revertendo em novas possibilidades técnicas. É nesse sentido também que Baudrillard (1995, p. 40) afirma a luta pela existência como a luta pelo poder, ambição de ter mais e melhor com ávida rapidez e muito mais vezes no sentido técnico. 27 Por isso Galimberti (2006, p. 08) nos adverte que antes de tudo é preciso acabar com as falsas inocências, com a ideia de neutralidade da técnica, que só exerce a função de meio para que depois o homem a utilize para o bem ou para o mal. Ainda enfatiza que “a técnica não atende a um objetivo, não promove um sentido, não salva e não descobre a verdade, ela funciona” (GALIMBERTI, 2006, p. 08). Segundo esse autor, a técnica não é neutra porque cria características de mundo com as quais não podemos deixar de conviver e que consecutivamente transformam os corpos e os ambientes. Todos os aspectos da vida estão cercados pela técnica. Logo, o que está em discussão nesse jogo de forças universais é o arrefecimento das subjetividades ou ainda a mudança das subjetividades orgânicas para inorgânicas. “A simulação já não é a de um território, de um ser referencial, de uma substância, mas a geração ou reprodução de modelos pelos modelos, coordenados por um real sem origem, nem realidade, hiper- ” (BAU R AR 1991, p. 08). Fenômeno que afunila as relações sociais em direção a um único pensamento, mais que isso, a simulação de um pensamento científico-publicitário unidimensional que não deixa de enfatizar o seu potencial de desenvolvimento tecnológico, relegando ao segundo plano os outros imaginários. Em meio ao universo tecnológico está lançado à sua sorte, o corpo. Historicamente, várias maneiras de utilização dos objetos adaptaram-se ao corpo: os talheres, a roupa, os óculos... Maneiras concebidas numa dinâmica coletiva, dispositivos que supostamente deslocam os limiares do público e do privado, recriando o socialmente distintivo e civilizado. Frente às correções físicas da modernidade que paradoxais podiam soar como libertação ou coação, por exemplo, Rousseau era contra o uso do espartilho por parte das crianças e das mulheres, uma espécie de prótese ( ) “ ” (VIGARELLO, 2008, p. 11 e 12). Os pensadores conhecidos como pré-socráticos, representaram uma fase da filosofia marcada pela predominância de cosmologias que explicavam a natureza como um corpo único, composto de uma mesma substância, onde o homem aparecia como parte integrante. Seu corpo fazia parte de um cosmos maior, integrado à natureza como linguagem complementar e não divisória. Ao dialogar com Nietzsche, Deleuze questiona a linearidade da razão: 28 Os pré-socráticos instalaram o pensamento nas cavernas, a vida na profundidade. Eles sondaram a água e o fogo. Eles fizeram filosofia a golpes de martelo, como Empédocles quebrando as estátuas, o martelo do geólogo, do espeleólogo. Em um dilúvio de água e de fogo, o vulcão cospe de volta em Empédocles uma só coisa, sua sandália de chumbo. Às asas da alma platônica opõe-se a sandália de Empédocles, que prova que ele era da terra, sob a terra e autóctone. Ao golpe de asas platônico, o golpe de martelo pré-socrático. A conversão platônica, a subversão pré-socrática. As profundidades encaixadas parecem a Nietzsche a verdadeira orientação da filosofia, a descoberta pré- socrática a retomar em uma filosofia do futuro, com todas as forças de uma vida que e também um pensamento ou de uma linguagem que é também um corpo (DELEUZE, 1974, p. 132). Pensando o aspecto contemporâneo, o retorno à perspectiva da filosofia présocrática em que enxergava o homem circundando no cosmo podemos fazer um paralelo e uma crítica à projeção do desejo do homem contemporâneo demarcado pela influência da tecnologia, há uma afastamento da natureza real. Os pré-socráticos fizeram a filosofia a golpes de martelo, com Empédocles quebrando estátuas, não os distanciando daquilo que fazem parte. O homem contemporâneo vê na natureza somente um universo a ser explorado e transformado em objetos utilizáveis. O prelúdio que vê nos pré-socráticos uma filosofia é perceber a potência do corpo, acenando o seu aspecto trágico, sem se ater na transformação da natureza como fontes de próteses que complementem as limitações humanas. No prefácio da obra A História do corpo os autores (CORBIN, COURTINE & VIGARELLO, 2008) salientam que o corpo existe tanto em seu invólucro imediato quanto nas imagens feitas dele. As subjetividades também seriam variáveis com a cultura dos grupos, do espaço e do tempo. Entretanto, na sociedade da hiper-realidade, essas subjetividades, na maioria das vezes, tornam-se espelhos dos simulacros. Na sociedade atual passamos da lentidão à velocidade, da pintura à fotografia, da fotografia ao cinema, das sombras às luzes, da sexualidade moralizada à psicologizada, das próteses à clonagem. O corpo ocidental diferentemente das culturas chamadas tradicionais (culturas não industrializadas), não é visto como parte integrante da natureza. Sobre essa questão, z Paulo Roberto Ceccarelli (2013) afirma que o corpo natural n desvalorizado, era um corpo concebido como parte integrante do universo. Ainda (1988) segundo Ceccarelli (2013), B A z õ , 29 ” z “ “ ?” “[ ] sses autores a [ ] ”( AR 2013). O universo mágico do corpo e das relações sociais não era revelado, respeitava a relação homem/natureza não dividindo e não colocando o corpo do homem em posição de destaque em relação à natureza. Na cultura da abundância tecnológica e a partir dela, o corpo transformado em informação codificada, aprofunda as comparações com as máquinas feitas na transição “ z omem que vivia na Raridade. Depois de muitas aventuras e de longa viagem através da Ciência [...], encontrou a ” (WHIFHEAD Sociedade da Abundância. Casaramapud BAUDRILLARD, 1995, p. 68). O corpo visto como instrumento participa do contexto em que o indivíduo passa a enxergar apenas o universo mecânico objetivo, fazendo do corpo, parte do ramo informacional com as mesmas pretensões de ser desvendado em fórmulas e transformado em estoque. Este corpo instrumentalizado e desvendado é reproduzido para tentativas de aperfeiçoamento, mas, de maneira paradoxal, frustra mais uma vez a magia da vida através das simulações. Segundo Baudrillard (1995, p. 23), somos os herdeiros legais do direito à abundância por uma instância mitológica: a técnica, o progresso e o crescimento. Entretanto, no contexto mitológico o meio celebrava a vida, era troca entre dádivas, já na sociedade pós-industrial, o status do meio foi transformado em fim e a condição de emancipação desse desejo ou o respeito da ligação homem/natureza desvaneceu frente à dependência da coisa, assim como os personagens de Crash dependem dos carros. A sociedade tanto de produção quanto de consumo manifesta-se na manipulação dos signos e pode ser comparada com a do pensamento mágico com a diferença de que esse realizava desperdícios ritualísticos que justificavam sua posição no mundo em relação a seus deuses ou a própria natureza numa perspectiva de emancipação social. “ ico, porque ambos ” (BAU R AR 1995 23) Adorno e Horkheimer (1985, p. 20) afirmam que pela mediação da sociedade que globaliza todas as relações e emoções os homens se reconvertem em meros seres genéricos, iguais uns aos outros, mas isolados na coletividade. Nesse caso, os próprios objetos tornam-se 30 deuses; a naturalização da artificialidade passa a ser a Lei na globalização tecnológica. Baudrillard (2001, p. 10) afirma que para ele os objetos pareciam dotados de paixão, de vida própria e por isso saiam de sua passividade de uso e ganharam um tipo de autonomia sendo capaz até de se vingar dos sujeitos seguros, de dominá-los. Como é possível observar em Crash, os personagens encenam um determinado tipo de ritual, sociedade pós- “A ” (BAU R õ AR 1995 43) A sumo precisa dos seus objetos para existir e sente, sobretudo, necessidade de destruí-los, como ocorre no filme, para que continuem existindo. O valor criado reveste-se de maior intensidade no desperdício. Nesse processo, o valor e o desperdício recriam-se indefinidamente. Por tal motivo, segundo esse autor, a destruição permanece como a alternativa fundamental do modo de produção capitalista, porque é no consumo que existe a tendência profunda para se ultrapassar, para se transfigurar a destruição. Portanto, o stock, segundo Baudrillard (1995, p. 38), é a redundância da privação e sinal de angústia, por isso, é na destruição que os objetos existem. Mauss (2003), também em relação às culturas primitivas, seu duplo, isto é, não é uma porção anônima de sua pessoa, mas sua p “ ” (MAUSS, 2003, p. 71). Estudando o poder da magia, inclusive o de cura, Mauss afirma que os assistentes viam o corpo do mágico presente, mas ao mesmo tempo ele estava ausente espiritual e corporalmente, pois, seu duplo não é um puro espírito, ou seja, o “ dote são imediatamente definidos pela religião, a imagem do mágico se produz fora da magia. Ela se constit ‘ z [ ]’”. (MAUSS, 2003, p. 70). Portanto, Claude Lévi-Strauss (2013, p. 14), no texto Introdução ao pensamento de Mauss, explica que o conhecimento da utilização do corpo humano é necessário numa época em que o desenvolvimento dos meios mecânicos à disposição do homem o desvia do exercício e da aplicação dos meios corporais. Portanto, na visão de Baudrillard, o corpo é visto não somente como máquina, mas também como estoque reduzido à informação. Fenômeno que caracteriza, além de uma redução generalizada do corpo apenas como código, um exagero tecnológico de tendência fáustica no qual o duplo já não mais possui referência nas duplicações genéticas, pois o corpo mais que metáfora da máquina passa a ser clonado. Leitor de Mauss, Baudrillard (1991) salienta: 31 De todas as próteses que marcam a história do corpo, o duplo é sem dúvida a mais antiga. Mas o duplo não é justamente uma prótese: é uma figura imaginária, que como a alma, a sombra, a imagem no espelho persegue o sujeito como o seu outro, que faz que seja ele próprio e nunca se pareça consigo, que o persegue como uma morte subtil e sempre conjurada. Contudo, nem sempre é assim, quando o duplo se materializa, quando se torna visível, significa uma morte iminente. (BAUDRILLARD, 1991, p. 123) Com essas frases do texto Clony story Baudrillard demonstra a importância detida na riqueza imaginária do duplo que está diretamente ligada ao sonho, à fantasia, e quando materializada perde o mistério. Mistério que não faz parte da vida dos personagens de Crash, pois, estão entregues à vontade da técnica e seus corpos, próteses em potencial. Além disso, ocorre por parte dos personagens uma identificação com as celebridades no momento dos acidentes, no instante de suas mortes. A materialização do duplo assinala a morte em Crash. Galimberti (2006, p. 116-159) em sua obra Pische e Techne: o homem na idade da técnica sobre as condições genealógicas e epistemológicas faz um estudo da incompletude humana que teria sido balizada pela razão metodologicamente matematizada durante séculos. Ele explica que a visão metafísica de divisão do corpo e da alma feita por Platão sempre nos condicionou a achar que o corpo deve ser submetido à alma (mente), sendo um expediente metodológico para instituir uma linguagem universal que não dependesse das variações de sentido da linguagem corpórea. Galimberti explica que para Platão, extinguir a loucura seria o mesmo que dominar as paixões do corpo. Afirma ainda que para Platão a alma raciocinaria melhor se nenhum dos sentidos a perturbasse. Após isso, analisa que a perspectiva de Descartes, Locke, Hume, Kant, Hegel cada uma com suas peculiaridades seriam variações e aprofundamentos do método platônico de racionalização. Mesmo a visão biológica de Aristóteles que considera a alma idêntica à vida não marcou uma evolução do pensamento ocidental prosseguir ao long “ A ”( A B R 150): A absorção da antropologia bíblica pelo modelo conceitual platônico consolidará a divisão entre alma e corpo sobre a qual Descartes não terá nenhuma dúvida, quando, introduzindo a conhecida distinção [...] retirará a alma de qualquer influência corpórea para resolvê-la no puro intelecto, no ego cogito que, com seus raciocínios rigorosamente controlados, expressará todo o possível sentido do mundo, lido pelo 32 homem de modo determinista e mecanicista. (GALIMBERTI, 2006, p. 150) Contudo, em Crash, o projeto de Vaughan aparenta ser mais uma tentativa de substituição do corpo por outro menos orgânico, por outro corpo suprido de próteses e até instinto “[ ] co corruptível [ ]” ( AR “ 2008 31) [...] ” (DESCARTES, 2008, p. 51). O corpo é tornado híbrido não à toa, mas graças a essa razão. Partindo dessa perspectiva e abrindo campo para a crítica à biotecnologia, Baudrillard (1991, p. 124126) afirma que hoje cada célula é considerada um organismo individualizado, a matriz ou modelo de um único genitor, a réplica perfeita, o duplo materializado sem o outro, ou seja, do mesmo para o mesmo de forma assexuada (in vitro). [...] nem sequer se trata de gemeralidade, o dois nunca foi um, enquanto a clonagem é a reiteração do mesmo: 1+1+1+1... (Veremos na segunda parte da pesquisa a representação da materialização do duplo quando Ballard compra outro veículo após o acidente). A visão cibernética desvia nossos olhares do prometeísmo para a visão fáustica, pois o corpo além de mecanizado passa a ser clonado, reproduzido funcionalmente como qualquer artefato industrial com cada uma de suas células tornando-se, a exemplo â “ órgão deficiente, ou o prolongamento instrumental de um corpo, então a molécula ADN, que encerra toda a inform x ê ” (BAUDRILLARD, p. 127). O estágio do espelho está sendo extinto na clonagem. Nem mesmo a reflexão sustenta tamanha força da tecnologia ao duplicar materialmente a unicidade mágica (natural) do corpo, não respeitando aquela necessidade do sonhar com o outro, matando o outro existente naturalmente em cada ser e interpondo virtuais condições. 33 1.2 Materialização para além do corpo, a do espírito O objeto tem um papel dramático; é um ator com papel principal [...] Baudrillard A equivalência geral para Baudrillard (1996) passa ser a morte. Para ele, saímos da morte partilhada, como ocorria nas comunidades tradicionais, para a morte individualizada. Para esse autor, a obsessão de adiamento da morte ou de sua abolição é que a torna o motor das racionalidades econômica e sexual contemporâneas. Daí cria-se um paradoxo, pois, ao tentarmos abolir a morte pela acumulação, é a acumulação que nos leva para a própria morte. Logo, os acidentes em Crash são uma maneira de descarregar as frustrações desse acúmulo que vêm em forma de cobranças econômicas e sexuais, pois o corpo por si só não mais se sustenta, é preciso torná-lo híbrido da tecnologia: Toda a nossa cultura não passa de um imenso esforço para dissociar a ê x A , que se ramifica em todas as direções: a da sobrevivência e da eternidade para as religiões, da verdade para a ciência, da produtividade e da acumulação para a economia. (BAUDRILLARD, 1996, p. 198) Deus está no limiar da transformação da matéria, consecutivamente, resta-nos o império dos objetos e o consumo sem limites, uma generalizad ”( U Y 2005 “ 19) sentido que procura aliviar suas dores, muitas vezes, em próteses psíquicas. Medicalização técnica diante de uma cultura doente e uma sociedade hipocondríaca que se afunda no consumo de antidepressivos ao passo que a indústria farmacêutica, sustentada pelos laboratórios internacionais, aproveita para lucrar mais (Vontade de Poder) à custa de reservas naturais. Segundo Dunley (2005, p. 23), a humanidade foi desamparada pelos deuses, tornando-se ambiguamente algoz e vítima de seu próprio projet “ ” (DUNLEY, 2005, p. 23). Desamparados, os homens famintos clamam pela presença dos Deuses, 34 mas agora, eles é que parecem estar ironicamente com os ouvidos tapados diante do exagero tecnológico. Sistematizando uma teoria geral da circulação da energia sobre a Terra, sempre numa espiral ascendente que daria o caráter de nossa sociedade, Bataille (1975), baseando-se em Mauss, revela a influência da ideia de dádiva. Para ele, existem outros princípios de troca fundadores da sociedade onde impera a qualidade, como o sacrifício ritual que nos vincula ao que es , ou seja, para ele mais valem os ritos que o próprio sistema produtivo. Para Bataille, um desses princípios seria o erotismo; dádiva-chave para desvendar aspectos fundamentais da natureza humana, ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Ele vê o erotismo como a experiência que permite ir para além de si mesmo, superar a espiral ascendente do domínio produtivo do material que condena o ser humano à mesma condição de objeto. Inspirado pelas colocações de Bataille, Baudrillard substitui o erotismo pela sua ideia de sedução para justificar a exacerbação do consumo exercido hoje e o acúmulo da produção. Hygina Bruzzi de Melo (1988) afirma, nesse sentido, que para Baudrillard existem não só uma troca material, mas também uma troca e uma comunicação cosmológica, energias que perpassam os patamares da vida cotidianamente materializada. Portanto, para essa autora, ontologicamente, toda troca pressupõe certa alienabilidade variando em maiores ou menores escalas. O simbólico realiza o ciclo das trocas, dar e restituir, ordem que nasce e funda a reversibilidade. Definição que é inspirada no pensamento de Mauss no texto . Segundo Melo, após isso, Baudrillard prende-se mais à questão do simulacro ou ainda do duplo como simulacro, espírito em forma de valor- x B “ z ” (MELO, 1988. p. 59). Forma que não é: nem ser, nem aparência, nem ausência, nem presença; é uma coisa que flutua entre essas perspectivas. “ ê ” (A apud Melo, 1988, pp. 58-59). Além disso, Baudrillard imbrica os pensamentos de Mauss e Freud ao estabelecer o primado da troc . O fato de um membro de uma comunidade primitiva cultuar o canibalismo significa sua homenagem para evitar o esquecimento dos mortos. A Eucaristia, o corpo de Cristo, é um tipo de reminiscência do canibalismo simbólico. Mantém uma estrutura de vínculos sociais e rituais, mas esse comer o corpo de Cristo passa a ser 35 virtual14, um signo substitui o corpo. Na verdade católico-cristã institucionalizada há a prerrogativa de sustentabilidade da vida fora da natureza, não é um pensamento mágico, mas dogmático, torna-se racionalmente a simulação do canibalismo, já não mantendo vínculos diretos com os rituais primitivos antropofágicos. [...] que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, que um signo possa trocar-se por sentido e que alguma coisa sirva de caução a esta troca – Deus, certamente. Mas e se o próprio Deus pode ser simulado, isto é, reduzir-se aos signos que o provam? Então todo o sistema perde a força da gravidade, ele próprio não é mais que um gigantesco simulacro – não irreal, mas simulacro, isto é, nunca mais passível de ser trocado por real, mas trocando-se em si mesmo, num circuito ininterrupto cujas, referência e circunferência se encontram em lado nenhum. (BAUDRILLARD, 1991, p. 13) Baudrillard (1995, pp. 21-22) salienta que é o pensamento mágico que administra o consumo e que os benefícios do consumo não são vividos apenas como frutos do trabalho ou de processos de produção, mas como milagre, com a diferença de que, para nós, a técnica tornou-se mágica ao transformar a natureza em objetos, a técnica é absorvida como realidade civilizada, artifício para burlar a natureza. Para o indígena ou o camponês, o consumo ritualístico aparece como mágica, mas não se materializa, não sai assim do âmbito do pensamento, do imaginário, existindo para esses últimos uma ligação direta com a natureza. Freud (1997. p. 38), em O mal-estar na civilização, afirma que o que chamamos de civilização é, em grande parte, responsável pelas nossas intempéries e que seríamos mais felizes se a abandonássemos e voltássemos às condições primitivas, pois, o permitido consumo da produção é visto diretamente pelos primitivos como graça da natureza e não cultura. Declamava Nietzsche em O Nascimento da Tragédia “[…] sob essa realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra […]” ( Z 1992 28). Essa condição paradoxal do mundo e os aspectos sofridos pelo corpo dentro da hiper-realidade através de modelos pré-concebidos, formatados com o objetivo de condicionar a sociedade ao consumo, o que leva consequentemente à perda da individuação e/ou subjetividade, proporcionando uma afunilação cultural sem igual através da globalização tecnológica entre várias camadas da sociedade, distanciando-nos 14 “ z z -lo, e o real jamais foi outra coisa senão uma forma de simulação. Podemos, certamente, pretender um efeito de real, um efeito de verdade [...], mas o real, em si, não existe. O virtual [...] não é mais que uma hipérbole dessa tendência a passar do simbólico para o real [...]. Neste sentido, o virtual coincide com a noção de hiper”. (BAUDRILLARD, 2001, p. 41) 36 do contato com a natureza, através da virtualização. Crash trata justamente disso: produção, consumo, destruição dos automóveis e do corpo, além da simulação de eventos nas grandes cidades como artifícios para enfrentar ou fugir justamente da progressiva artificialização da vida. Reprodução da cultura, a indústria cultural como enunciado por Adorno e Horkheimer (1985) na Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, já era uma visão que apontava para onde chegaríamos com relação ao progresso técnico. Os humanos não se deixam mais seduzir pelo natural, mas pelo artificial, furtando a natureza da luta contra a vida, glorificada na exacerbação da razão que transforma tudo em cálculos. Ulisses, desviando-se do natural através de técnicas, sôfrego no artificial, hostiliza a morte em troca de sua racionalidade. O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida, o temor da morte e da destruição, está irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a civilização. [...] O pensamento de Ulisses, igualmente hostil à sua própria morte e à sua própria felicidade, sabe disso. Ele conhece apenas duas possibilidades de escapar. Uma é a que ele prescreve aos companheiros. Ele tapa seus ouvidos com cera e obriga-os a remar com todas as forças de seus músculos. Quem quiser vencer a provação não deve prestar ouvidos ao chamado sedutor do irrecuperável e só o conseguirá se conseguir não ouvi-lo. Disso a civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à distração, eles têm que se encarniçar em sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos. (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 39) Ulisses (Odisseu) ao burlar a natureza representada pelo canto das sereias, tapando os ouvidos de seus companheiros não os deixando seduzir pelo natural, esforçase assim para aproximar- (Í ) “ ” que acontece é o seu distanciamento de Ítaca e de sua família, reforçando ainda mais a sua individualidade. Não diferentemente, o destino da sociedade pós-industrial, a cada momento de intensificação dessa razão tecnologizante afasta o corpo da sua organicidade; não mais sagrado, mas estoque de informação e elemento na posse de agentes econômico-sexuais. Contrariamente ao esforço de construção do Eu homérico, agora há o seu esfacelamento, perdendo-se ainda mais de Ítaca nas racionalizadas próteses por não escutarmos a natureza. Esse próprio esfacelamento do Eu caracteriza que a técnica sobrepõe-se às subjetividades, à sua revelia. 37 Reforçando a razão homérica e o platonismo, dos livros VI e VII (2004, pp. 191-196) de A República, a verdade cartesiana predominante em nossa sociedade e o papel do ideal, ou seja, a ideia de aperfeiçoamento da sociedade e dos corpos através da visão científica tradicional (metafísica) transforma as matérias através de cálculos para a sustentação deste modus operandi. Consequentemente, o imaginário da crença na técnica salvadora e de seus resultados tecnológicos tem feito do corpo apenas mais um obstáculo para essa mesma visão, e para vencer o corpo, as próteses são colocadas à prova. Para Baudrillard (1990, p. 49) as ciências já entraram em situação de pânico e parecem estar sob a influência dos atratores estranhos assim como a economia, tanto porque as descobertas científicas são financiadas pelo mercado cultural proporcionando uma órbita de cenários efêmeros. Frente ao ideal, Nietzsche (1992, pp. 30-31) busca respaldo em Schopenhauer utilizando a metáfora do pescador que em meio ao mar desmesurado de dores não se abate e permanece sereno no princípio da individuação. Assim a natureza, alienada, inimiga, ou subjugada, celebraria a sua reconciliação com o homem; diante da beleza e da aparência de Apolo, muitos se entregam ao desdém e à piedade aos maltrapilhos e enfermos, e quando menos esperam, sopram-lhes os ventos dionisíacos, lembrando-lhes o quanto são apenas humanos. Essa reconciliação proposta por Nietzsche, a cada instante de progresso, parece-nos mais distante. Crash, em meio a todo o universo ficcional bestializante, demonstra-se uma tentativa de reconciliação, mas, devidamente frustrada como tantas outras. O momento do acidente em Crash pode ser comparado às desmesuras heróicas das narrativas dos tragediógrafos, mas ao contrário das tragédias gregas os acidentes não causam a emancipação, pois os personagens continuam entregues à funcionalidade narcísica dos automóveis que lhe servem de complementos às suas faltas. Diante disso, outras verdades até aparentam ser possíveis, mas, quando descobertas, quando não absorvidas pelo conjunto de fatores que fazem parte dos sistemas da Nova Ordem Mundial, são feitas como pústulas sociais. Tentativas diferenciadas de estetização ou política na contemporaneidade existem, mas é muito provável, que como já acontecido com outras várias, sejam convertidas, seduzidas e incluídas no modo de produção/consumo capitalista informacional, revertendo o objeto em sujeito e o sujeito em objeto (de consumo). Baudrillard (1990, p. 19) afirmou no fim da década de 90 do século XX que a imagem do homem sentado, contemplando, num 38 dia de greve, sua tela de televisão vazia, constituiria no futuro uma das mais belas imagens da antropologia. Fato que já acontece, e mesmo que manifestantes saiam à rua, os efeitos de mudança são irrisórios diante do poder de dominação dos imaginários exercido pela técnica. Segundo Bruzzi de Melo (1988, p. 68), o capital detém uma lógica interna que o torna indiferente de qualquer compromisso social, e toda a crítica, que não leve em consideração essa sua característica, pode ser devolvida como corpo estranho. Consequentemente, o capital expande-se ocupando todos os espaços e preocupando-se apenas consigo mesmo, abarcando, de acordo com as suas necessidades, algumas das novas possibilidades, invadindo as fronteiras do corpo para sujeitá-lo aos seus desmandos analogamente às cicatrizes das máquinas exibidas em Crash. É nesse ambiente ambíguo transposto em Crash, a questionar a materialização do espírito-corpo em valor-signo, que Baudrillard (1991) afirma a hiper-realidade como a mistura, a confusão entre máquina e corpo, e não a separação ou o combate entre corpo e máquinas como feito pelos irmãos Wachowski em Matrix15. Por mais que Matrix trabalhe muitos aspectos, nele, os humanos lutam contra as máquinas assim como as máquinas (mecânicas ou virtuais) querem o controle dos humanos. Todavia por mais que na vida “real” alguns lutem contra as máquinas, para Baudrillard é impossível outro patamar de simulacros que não seja o da hiper-realidade, ou seja, não é uma luta, mas a confusão entre o que seriam homens e o que seriam máquinas. Além disso, Matrix apresenta o fascínio pelas tecnologias digitais, característica com a qual Baudrillard se defronta. Paula Sibilia (2002, pp. 51-52) também faz comentários sobre a reversibilidade em seu texto: Imortalidade: para além do tempo humano, no qual afirma que as tecnologias da imortalidade estão na mira de várias pesquisas, da inteligência artificial à engenharia genética, da criogenia à farmacopeia antioxidante. Todo o arsenal de próteses neurais e outras tecnologias da imortalidade são capazes de reverter o processo que anteriormente era entendido fatalmente como morte. Estratégias dos sistemas cibernéticos para seduzir e absorver os supostos controles antropocêntricos. 15 FERREIRA, Wilson R. V. “M t x” t : p qu J B u ll ã g t u f lm ?. [2012]. Disponível em: <http://cinegnose.blogspot.com.br/2012/08/matrix-revisitado-por-que-jean.html>. Acesso em: 03 de julho de 2013. 39 O que Baudrillard (1996) denomina estratégias fatais é o fato da realidade ser irônica e desafiar todos os propósitos humanos de controle, assepsia e transparência, acrescentando, cada vez mais, seus temperos; sendo assim, a ironia e a indiferença dos sistemas geram a reversibilidade frustrando as tentativas de reconciliação entre homem e natureza. Os personagens de Crash refletem claramente o tédio e a confusão dos sentidos em um mundo cada vez mais efêmero e tecnologizado permeado segundo Baudrillard de gadgets. Nas palavras de Baudrillard (1995, p. 117), os gadgets seriam engenhocas, objetos de consumo que possuem “inutilidade funcional” (1995, p. 117), ou seja, em torno de um objeto principal estão vários outros que são anunciados como características desse principal; eles são elementos os quais as empresas utilizam publicitariamente para seduzir os consumidores, podem aparentar inutilidade, mas no mundo do entretenimento são fundamentais para a funcionalidade do sistema, pois, de quando em quando os novos modelos de objetos cercados de gadgets substituem os antigos potencializando o processo de produção. Basta-se observar que em um prazo muito curto de tempo são lançadas novas versões de automóveis que substituem as antigas (que se aproximam muito das novas). Ao ser funcional para o sistema o gadget não o é para os indivíduos que ficam a par da efemeridade dessa substituição de objetos. Aspecto que afeta diretamente os imaginários, pois não se é possível pensar em outras oportunidades quando não se têm o direcionamento para isso. O direcionamento caminha a passos largos em direção à substituição contínua dos objetos refletindo diretamente nos corpos e comportamentos. O modo de pensar é dominado pelo modo de ser dos objetos: quem não possui os novos modelos está ultrapassado e não pode estar incluído no clã do consumo. É aí que a reversibilidade se dá mais uma vez, as subjetividades são transformadas em objetividades. B (1995) “[ ] x z do sonho, o trabalho poético, o trabalho do sentido [...] as grandes figuras da metáfora [ ] R ê ” (BAUDRILLARD, 1995, p. 21). Sendo assim, a linguagem poética amenizaria os efeitos da violência contemporânea, faria frente ao deslizamento metonímico do consumo à consumição (no sentido de consumir-se, consumir o corpo como qualquer outro objeto até a sua mortificação, como ocorrido com os personagens de Crash), mas ela mesma pode sofrer com a reversão e tornar-se simulacro. Baudrillard (1991, p. 95), referindo-se às redes 40 constituídas pelos sistemas informatizados, sistemas publicitários e os simulacros e as simulações, afirma que essa violência é ininteligível porque o nosso imaginário está cercado pela lógica dos sistemas que se expandem em todas as direções. A desconexão das energias de irradiação das intensidades e da molecularização do desejo vão no sentido de uma saturação até ao intersticial e ao infinito das redes desses mesmos sistemas de objetos, sendo criados, recriados e consumidos numa velocidade cada vez mais alucinante, causando uma falta de memória nunca vista antes, e que agora é depositada em bits. Além disso, trata-se de um modo de existência que permite manter sua forma ou seu curso por muito tempo, pois os recursos materiais se repercutem mutuamente, entretanto, rapidamente as capacidades transformam-se em incapacidade e as formas de ação tornam-se obsoletas antes mesmo que haja tempo para os corpos aprenderem mais sobre elas. A sociedade da informação globalizada assemelhasse a uma espécie de Torre de 16 Babel , onde várias línguas se misturam, mas confundidas em prol de um único objetivo: ligar o corpo aos céus através da reprodução dos modelos de simulação, partindo da reversão e da absorção de tudo que aparenta o mínimo de realidade, assim como a imponência vertical dos arranha-céus contemporâneos que sustentam a verticalidade do imaginário técnico através das engenharias que calculam e transformam. Consequentemente, as diferenças culturais não têm demonstrado força suficiente para enfrentar a rápida metonimização do modelo de linguagem produtivistafuncionalista-consumista, todas as partes tem ido pelo todo, fortalecendo a reprodução dos objetos. A destruição dos carros em Crash é uma maneira de demonstrar essa reprodutibilidade constantemente enunciada pelos meios de produção midiáticos. 1.3 Amplexos da simulação: a fertilidade da reprodução dos corpos simulacros O combate que travam em cada indivíduo o fanático e o impostor faz com que não saibamos nunca a quem nos dirigir Emil Cioran 16 Gn, 11. 1-9 41 O maior problema em entender a hiper-realidade é justamente o fato de não conseguir sair dela, do fato de estar incluído nela. Parece que é sempre dia e a claridade “ ”, a sombra nunca esmorece e como espelho objeta uma perpétua reflexividade obcecada pelas imagens. É um processo que vem de todos os lados e ao mesmo tempo de nenhum em concretude, no rizoma ainda tem-se um centro, mas subterrâneo esconde-se com a máscara da superficialidade. Sua elasticidade parece ilimitada e seus processos, como que em osmose absorvem-nos os solutos por entre a semipermeável membrana das telas recheadas de falsos heróis e simulados espetáculos17, assim como ocorre em Crash nos espetáculos montados por Vaughan e Seagrave para a reprodução dos acidentes de pessoas famosas (celebridades). Anacronicamente, todas as telas se tornam espelhos e “ ” são constante de ondas e dados: A simulação descreve a recente revolução moderna nas comunicações, na cibernética e na teoria de sistemas que gera sistemas de signos organizados não somente para ocultar a realidade, mas também para produzi-la a partir de modelos ou códigos dos meios de comunicação de massa, dos processos políticos, da genética e da tecnologia digital. (HORROCKS, 2008, p. 06). A própria contextualização feita por Baudrillard em sua trajetória sobre os signos, a simulação e a hiper-realidade pode não passar de mais um tentáculo para o aprofundamento das necessidades dos sistemas binários, podendo ser absorvida a qualquer momento. Criticaram o capital e ele se consolidou, racionalizaram a sexualidade e ela se fortaleceu, contextualizaram a linguística e a lógica cientificista se enrijeceu. Logo, corre-se o perigo de expor ainda mais os sistemas de signos e suas nuances e esses ganhem ainda mais força de valor-signo. Devido a esse provável movimento, Melo (1988, p. 247) salienta que Baudrillard propõe uma teoria mais bem-humorada e desenvolta, uma teoria que seja ela própria sedutora, capaz de lidar com o gênio maligno do social. Um modo mais alegre de ver as coisas (mesmo que com certa dureza) que substitua a teoria crítica por uma teoria irônica, patafísica, relativa à indiferença do próprio sistema. Uma tentativa de aliviar a negação da vida, aliviar o niilismo ativo dos sistemas binários digitalizados nos quais a 17 “ speculum. [ ] ”( UA 2001 1226). 42 subjetividade transforma-se em máquina18, tentativa de aliviar a proposta de transcender a condição humana e transformá-la, de vez, em códigos: Fazer da própria lógica do sistema a arma absoluta. Contra um sistema hiper-realista, a única estratégia é patafísica, de certo modo uma “ ê õ ” -científica do retorno do sistema contra si mesmo – no limite extremo da simulação, de uma simulação reversível numa hiperlógica da destruição. (BAUDRILLARD apud MELO, 1988, p. 192). Levantar hipóteses de aprofundamento sobre esse domínio é essencial para a compreensão dos fenômenos implícitos na hiper-realidade. Para Baudrillard, é passado o tempo da representação, estamos na simulação, por isso, no texto A precessão dos simulacros (1991, p. 08), citando o conto Do rigor na ciência de Jorge Luís Borges, ele afirma que agora o mapa é que precede o território, demonstrando, com esse exemplo, o movimento de reversibilidade existente nos sistemas de simulacros. O real já não precisa ser racional, ideal ou negativo, apenas operacional, não pertence mais ao imaginário. Sentados em frente aos computadores a qualquer momento tentáculos podem saltar dos braços como que em extensão de nossos corpos e unir-se às teclas ligando os tecidos aos circuitos binários informacionais; fios condutores de informações podem sair dos ouvidos fazendo com que os corpos apareçam em outros locais, sejam reais ou não, assim hologramas. “[ ] der de passar pelas paredes, pelos ” (BAU R AR 1991 133). A qualquer momento, além das câmeras espalhadas pelas esquinas (denominadas metaforicamente de “ lh 19 ”), todos esses sistemas rizomáticos constituídos de objetos nanotecnológicos, um dia invadirão os sonhos e filmando-os, produzirão reality shows que tornar-se-ão mais um aprofundamento da revolução tecnológica, além mais os adventos 3D, 4D e os hologramas discutidos por Baudrillard. 18 SOUZA, Edney. A versão 1.0 do teleporte já chegou. Revista Galileu versão online [2013]. Disponível em:<http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI333078-17770,00A+VERSAO+DO+TELEPORTE+JA+CHEGOU.html>. Acesso em: 12 de março de 2013. 19 O sistema olho vivo é adotado pelas prefeituras como forma de monitoramento da população, gerenciando as infrações cometidas no trânsito e outras quaisquer. A câmera, metaforicamente, é comparada aos olhos orgânicos (realidade virtual/virtual realidade), justificando o conceito de hiperrealidade. 43 Ganha-se a liberdade nas telas e nelas que se prende, agora, para além delas: “ ” (BAU R AR 1991 135) Caminhar e levar os smartphones, ipads, ipods, iphones..., destarte, atropelados pelos pixels. Desligados os computadores e ligados os portáteis em substituição aos animais domesticados da sensação de que o celular tocou no bolso, assim virtuais sensações iludem nossos sentidos. Os corpos também domesticados em seus diversos patamares caminham na limpeza impecável e nas espetaculares superfícies dos shoppings centers com os seus vários espelhos propagados para refletir em suas planas superfícies os narcisos consumistas que caminham pelos corredores sedentos pelas “novíssimas novidades” expostas nas vitrinas, que, de novo mesmo, não têm nada. A velocidade do desenvolvimento tecnológico é tão acelerada que provavelmente o corpo virará luz ou no mínimo terá seus membros substituídos por próteses tornando-o híbrido da tecnologia. As viagens em disparada para outros locais do globo em sintonia com a angústia “ do não z ” x z por Deleuze e Guattari (1995), reflete nos indivíduos pertencentes a esse sistema de redes desconexas e ao mesmo tempo conectadas. Tendem a tornar-se também desterritorializados e com sua subjetividade subjugada a condicionamentos dos modelos de produção e consumo “A gica e social da mobilidade, do estatuto, da concorrência em todos os níveis (rendimento, prestígio, cultura, etc.) torna-se cada vez mais pesada para nós.” (BAU R AR 1995 35) até os métodos mais interessantes, indiferente, absorve tudo para o lado que lhe interessa. Assim, até o método rizomático torna-se apenas uma informação a mais para os benefícios do sistema que espacialmente vai abarcando tudo que esteja à sua frente. Quando não fisicamente, entra em jogo a geografia virtual, aumentando os territórios da hiper-realidade e o domínio psicológico dos corpos através dos escritórios multinacionais que se espalham mundo afora. Dessa maneira, as necessidades do homem na sociedade informacional aumentam constrangedoramente, pois: a todo o momento, é necessário mostrar-se, exibir-se, exaltar seus dotes intelectuais, econômicos, tecnológicos, informacionais, sexuais, etc., em forma de competição. Mostrar as próteses e aparelhos que lhe fazem feliz. O rigor da ciência em construir um mapa do tamanho de sua província como no conto de Borges parece ainda mais eficiente na virtualidade dos modelos televisivos e 44 cinematográficos digitais. Se as próprias fronteiras geográficas, dos Estados Nacionais, por exemplo, já seriam possíveis modelos de simulação, a desterritorialização de acordo com Deleuze e Guattari (1995): como linha de fuga a cada momento, mais diminuta, mas como satisfação do sistema maximizada. Sendo assim, para Baudrillard existe um movimento mais profundo e efêmero, a satelização: “ z ; -se dizer que até nosso cérebro já não está em nós, mas flutua em torno de nós nas inúmeras õ z ” (BAU R AR 1990 39) e dos corpos. Resta flutuar em meio às falsas fronteiras, perder-se na falta de identidade, angustiar-se no consumo dos corpos funcionalmente mapeados para circular nas voláteis simulações e tornarmo-nos relativistas. Corpos globais na linearidade temporal despojada no decorrer dos anos que se seguem um a um: Carnaval (o maior espetáculo-simulacro da Terra), Páscoa (as fantásticas fábricas de chocolate), Festas Juninas (no estilo country de cowboys from hell20), Natal (nas cores de refrigerante Cola) e todas as outras datas codificadas, consumidas e consumadas; Galimberti (2006, p. 732) afirma que vivemos na codificação constante das informações, logo, o que informaria é codificado pelos pontos de vista envoltos em determinados interesses, levando-nos a uma espécie de modelagem “ z “ ” ” z omo os próprios modelos: literal ocidentalização dos olhos em todos os sentidos, físicos ou mentais (exemplo desse fenômeno é a operação realizada em modelos orientais para aumentar o diâmetro dos olhos para concorreram às vagas das passarelas). A globalização acontece então com a ocidentalização dos corpos e das almas em forma de técnica. Continuariam os olhos sendo as Janelas da alma21? Os paradoxos do homem contemporâneo, aceleração do desenvolvimento tecnológico, quantas vezes maior que o desenvolvimento biológico, em meio à reprodutibilidade contínua de signos virtuais que permeiam todas as escalas da vida da economia ao amor. Slavoj Zizek (2013) no vídeo A Realidade do Virtual22 explicando a tríade lacaniana: imaginário, simbólico e real afirma que quando lidamos com outra 20 Cowboys from Hell é o nome de um álbum da banda estadunidense de Thrash Metal Pantera, originária do estado do Texas. 21 A JANELA DA ALMA. João Jardim; Walter Carvalho. [2001]. Disponível <http://www.youtube.com/watch?v=56Lsyci_gwg>. Acesso em: 30 de junho de 2013. em: 22 em: SLAVOJ Zizek: A realidade do Virtual. [2003] Disponível <http://www.youtube.com/watch?v=1xR_g4G5RsU>. Acesso em: 30 de junho de 2013. 45 pessoa lidamos com a sua imagem virtual, um tipo de idealização na qual camadas humanas são descartadas e ou apagadas: o mau cheiro, todos os sons, os excrementos, etc., nesse sentido, quanto maior a virtualidade, maior o esquecimento das condições humanas, menor a nossa memória diante os fenômenos históricos e psicológicos. Quando essas imagens são quebradas resta, muitas vezes, a frustração. 1.4 O corpo e a bendita velocidade da luz espetacular Eis a consequência de tua dedicação pelos humanos; como deus que tu és, fizeste aos mortais uma dádiva tal, que ultrapassou todas as prerrogativas possíveis. Como castigo por essa temeridade ficarás sobre essa rocha terrífica, em pé, sem sono e sem repouso; debalde farás ouvir suspiros e clamores dolorosos [...] Vulcano (Ésquilo) Da revolução à psicanálise, do amor à religião, das previdências de Prometeu até o conto de Arthur Clarke (1984, p. 13) Os nove trilhões de nomes de Deus, o que demoraria quinze mil anos, a técnica faz em cem dias, tudo está sendo contado e calculado muito rapidamente e nossos corpos perdem as referências buscando em qualquer lugar um descanso, daí o aumento do consumo de medicamentos calmantes e excitantes. Menezes (2013), referenciando Virilio (1997) no artigo Velocidade, acidente e memória, sinaliza que a importância crescente da máquina produz um conjunto de “ “ ” ” z decresce a liberdade. Referindo-se em específico às capacidades de percepção, muita velocidade igual muita luz, demasiada luz igual cegueira. Ofuscamento causado, por exemplo, pelos Programas de Aceleração do Crescimento e da invasão da ética (ideologia) protestante promovida pela ingerência estadunidense na produção de seitas pela América Latina, tema discutido por Décio Monteiro de Lima (1987) na obra Os demônios descem do norte, confirmando o que Max Weber (2004) havia proclamado em A ética protestante e o espírito do capitalismo, de que trabalhar a serviço de uma organização racional para suprir a 46 humanidade de bens materiais representa para o espírito capitalista um dos mais importantes propósitos da vida. Do aumento do consumo de estimulantes musculares, de pílulas sexuais, de drogas lícitas para a concentração cerebral e calmantes para aliviar o hodierno tédio. Indústria medicinal, fármacos recolhidos da fauna e da flora, hipocondria social. Dos embriagados punidos por leis secas através de secas leis, mas que paradoxalmente são bombardeados por propagandas de bebidas alcoólicas recheadas de mulheres com corpos produzidos pela indústria do Photoshop e pelos comerciais de carros possantes incompatíveis com o nível estrutural das estradas23. Se, nos termos de Kant (2005), o Esclarecimento (Aufklärung) significaria a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável, e a minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. Aparentemente na era da simulação seria quase impossível passar à maioridade, pois as janelas que exibiam paisagens naturais se transmutaram em telas que exibem imagens virtuais. Segundo Baudrillard (1999), no texto Tela Total (2005), a tela chama bastante atenção, fala dela mesma, nos fala do mundo e apaga-se diante dos acontecimentos como um meio que se respeite, mas, depois de um tempo, ela não se respeita mais ou toma-se pelo acontecimento por detrás da virtualidade instantânea de suas imagens, inseridas nos imaginários. Sendo a B “ infantil onde qualquer demanda, qualquer possibilidade, seja de estilos de vida, viagens x ” (BA AR 2007, p. 07)24. Essas demandas são influenciadas por essas mesmas telas que satisfazem as necessidades, falseando as suas próprias propagandas tautológicas de incentivo ao consumo. Seguindo o raciocínio de Ballard, Baudrillard (1991, pp. 21-22) salienta que o imaginário da Disneylândia é um aparelho de dissuasão colocado como imaginário, enquanto o que está à sua volta já não é do domínio do real, mas do hiper-real e da simulação, principalmente Los Angeles e a América. Por isso a debilidade e a degenerescência desse imaginário que se faz infantil para fazer crer que os adultos estão 23 O álcool é milenarmente usado em vários rituais, assim como o chá de ayahuasca e outras substâncias naturais. A falta do ritual e o uso indiscriminado, sem sentido, é que talvez sejam os fatores mais prejudiciais, o maior problema não seria o álcool em si, mas o conjunto das técnicas envoltas nos ambientes sociais (automobilística, publicitária, etc.) que nos seduzem em uma só direção. Condicionam, direcionam e até mesmo determinam comportamentos, que na falta de rituais tornam-se abjetos. 24 A fala é de J.G Ballard, o autor do livro Crash, o qual o personagem principal recebe o seu nome. O filme manteve esse aspecto. 47 no mundo real, e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda a parte e é a dos próprios adultos que fingem serem crianças para iludir a sua real infantilidade. A Disneylândia exerce essa nova função imaginária e da mesma maneira são todos os instintos, de reciclagem sexual, psíquica e somática. O não olhar o outro, mas o ver nas redes sociais e teleconferências, o não tocar, mas a contatoterapia, o não andar, mas fazer cooper sem tempo para refletir sobre os aspectos da vida durante o caminhar, a não ser se adequar aos modelos exibidos pelos simulacros. Baudrillard (1991, p. 22) denomina esses mecanismos como um comportamento de penúria dos signos e dos simulacros nos confins da economia de mercado. Imaginário que nega a condição da vida para simular e reproduzir outro real além mais, hiper-real, niilista25. O sistema torna-se para Baudrillard (1991, p. 201) niilista por negar a vida mais próxima e gerar sempre uma outra. Sua solução então é mesmo tornar-se não niilista, mas indiferente, assim como o sistema: Se ser niilista é levar, até ao limite insuportável dos sistemas hegemônicos, este vestígio de irrisão e de violência, este desafio ao qual o sistema é intimado a responder pela sua própria morte, então eu sou terrorista e niilista em teoria, como os outros o são pelas armas. A violência teórica, não a verdade, é o único recurso que nos resta. (BAUDRILLARD, 1991, p. 200). Baudrillard se aporta do que Juremir Machado da Silva (2005), na introdução do livro Tela Total, convém chamar de niilismo irônico, pois existe aí ainda uma utopia, “ z ” (BAUDRILLARD, 1991, p. 200). Para ele, tornar-se niilista também não faria diferença diante de um sistema que reverte tudo inclusivamente na indiferença. Baudrillard então z morreu, tornou-se hiper- ” (BAU R AR 1991 “ 195) Parecia Baudrillard, já naquele momento, impelido de questões maiores que estavam por vir. Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, na conferência A violência do mundial, realizada pelo Instituto do Mundo Árabe, onde estava presente também Edgar Morin, Baudrillard pronuncia que o Ocidente, na posição 25 TURGUENIEV, Ivan. Pais e Filhos. São Paulo: Editora Cosac & Nayf, 2011. 48 de Deus, torna-se suicida e declara guerra a si mesmo (2007, p. 16). Maati Kabal (2007, p. 15), organizador dessa conferência, afirma que as palestras de Baudrillard e Morin distanciam-se dos sentimentos de ódio e contraódio, colocam-se para além do bem e do mal para compreender a lógica e a estética do mortal jogo de espelhos entre o eu e o outro, e para expressar a globalidade da violência equivalente ao mundo em depressão econômica e todas as outras sequenciais. Não à toa as depressões, tanto econômica quanto psicológica, ganham papel preponderante nas sociedades globalizadas; e a psicológica sendo considerada o mal do Século XXI. Para Baudrillard (2002), esse é o ponto crucial da incompreensão por parte da filosofia ocidental, do Iluminismo sobre a relação entre Bem e Mal por acreditar que o progresso do Bem, o seu avanço em todos os campos (ciências, tecnologia, democracia, direitos humanos), equivale à derrota do Mal. Ao contrário, para ele o Bem e o Mal de uma maneira ou de outra estão ligados, são partes de um mesmo movimento. Metafisicamente, essa Doxa de que o Mal é um contratempo, é ilusória. O excesso de luz fere as vistas desprotegidas como numa enorme geleira. Da exigência da liberdade sexual à exigência do moralismo religioso, das academias narcísicas aos corpos estilhaçados dos terroristas (inclusive os do trânsito como em Crash), tudo é paradoxo. A liberdade torna-se prisão a partir do fomento radical da exigência. As mulheres libertaram-se, e a exemplo dos negros, foram incluídas, passaram a integrar o mercado (produzem, consomem, objetam), são independentes e agora, não ficam presas dentro de suas casas cuidando de suas famílias, entretanto, muitas delas são assassinadas. Assim como acontece também com os homossexuais, o imperativo para serem incluídos, gera uma força contrária que, em várias oportunidades, torna-se intolerante na artificialidade dos discursos. Onde a vida era natural, a técnica reverte em artificial. Disjunção entre vida e morte. Em vez de disjunção, junção. Vida e morte ligadas. Não a fórmula vida-vida, mas vida-morte. A melhor das mortes para seguir os astros e seguirmos como pássaros, assim como para os Astecas no seu dia mais feliz, o dia dos mortos. Morte, parte maldita, afora o val “[...] a positividade hiperbólica gera a catástrofe, por incapacidade de destilar a crise e a crítica em doses homeopáticas. [...] Todo aquele que expurga sua parte maldita assina a própria sentença de mort ” (BAUDRILLARD, 1990, p. 113) 26. 26 Preparemo-nos então para sofrermos mutações até virarmos Replicantes como em Blade Runner ou quem sabe concretamente robóticos como Transformers e virtuais Avatares. 49 A parte maldita não significa pensamentos negativos e nem fatos desgraçados, isso, os telejornais dramalhões já o fazem muito bem, pois são também simulacros dos sistemas que fazem prevalecer o ideal do espetáculo. A parte maldita é o contrário disso, “ é justamente criar condições sob ” (BAU R AR 1990 114) B (1990, p. 115), o mundo está repleto de sentimentos positivos, sentimentalidade ingênua, vaidade canônica e bajulação, sendo assim a ironia, o ridículo, a energia subjetiva sempre são os mais fracos. Sendo assim, as pretensões do bem científico pretendem transcender a condição corporal, no sentido de extinção. 50 PARTE II: CRASH: ESTRANHOS PRAZERES Bravíssimo! Portanto essas constâncias sem limite, esse afeto incontrastável... Mefistófeles (Goethe) 2.1 O Corpo híbrido em Crash: corpo e tecnologia O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural Adorno e Horkheimer O filme inicia-se com uma ambientação preenchida com letras nas cores preta e prata, revestidas por um fundo que intercala azul e preto. Outras letras em cores metálicas dialogam com a temática central do filme: a relação do homem com a máquina, o metal, o carro. Sua trilha musical criada pelo compositor canadense Howard Shore possui elementos minimalistas, eruditos e eletrônicos que nos remetem a sensações de mistério e suspense. Ao longo do filme, os próprios movimentos e planos das câmeras desenham espaços labirínticos que transmitem a sensação de que não há mais saída para aqueles personagens assolados pela vida urbana tecnologizada. Para eles então restaria se entregar às excitações provocadas pela sedutora imagem dos acidentes. Ballard e sua esposa Catherine, o casal protagonista de Crash, mantêm compulsivamente relações sexuais entre eles mesmos e terceiros e, após as relações com outras pessoas, compartilham suas experiências através de diálogos. Ballard é um diretor de cinema e Catherine é empregada numa empresa de táxi-aéreo. Após Ballard sofrer um acidente o qual envolveu outro casal, a Doutora Helen Remington e seu marido (personagem que não recebe nome no filme), Ballard se envolve com essa 51 doutora. Ballard e Remington vão para o hospital do aeroporto enquanto o marido de Remington morre. Através dela, ainda no hospital, Ballard toma contato com Vaughan um excientista obcecado por acidentes de automóvel e pelas transformações que os corpos sofrem ao serem afetados pelos ferros retorcidos. Vaughan é uma espécie de líder de um grupo de que reinventa os acidentes de carro das celebridades que morreram. Vários elementos redesenham corpos dos acidentados: cicatrizes, escarificações, fissuras e mutilações, conduzindo-os para novas arquiteturas físicas e abrindo seus corpos para explorações sexuais mediadas por próteses. O filme coloca em cena as típicas acelerações dos automóveis nas rodovias e inclui uma série de outras acelerações que repercutem o fluxo do enredo e descongestionam os corpos dos desconsolados personagens que planejam, de uma maneira ou de outra, além das diversas posições sexuais, a morte no tráfego. Assim se vê reforçada a célebre atmosfera de hibridismo, homem tecnologia, desse insólito filme. O cruzamento dos personagens nas vias à procura de estranhos prazeres conforma-se nas dores e nos deleites que os automóveis infringem ao corpo humano através da desconstrução desses dois nos acidentes. Procurar estranhos prazeres é o objetivo dos personagens; prazeres conformados pelas dores e pelos deleites que a tecnologia impõe ao humano ao colocar frente a frente o corpo e a tecnologia. As sequências expostas no filme demonstram um corpo biológico insuficiente, necessitado da mediação da técnica, representada nesse caso pelos automóveis. “[...] em termos de funcionalidade e eficiência [...] a técnica nasceu, não como expressão do espírito humano, mas como remédio à sua insuficiência biológica” (GALIMBERTI, 2006, p. 09). O corpo em Crash é associado para se realizar plenamente na excitação provocada pelas transgressões através dos acidentes que resultam em atos sexuais e na morte. Desta junção nasce uma sexualidade peculiar apoiada no desejo despertado pelas potencialidades das máquinas como centros propagadores especulares, monólitos de energia que imprimem condições aos modos de vida, característica comum às sociedades tecnológicas. O projeto de que participam os personagens atualiza, numa narrativa de morte, o duplo através da imagem dos mortos, o que seria um tipo de simulacro. Esses projetos elaborados pelo personagem Vaughan reproduzem os acidentes de maneira calculada, existindo por parte dele uma exaltação pelo seu ideal. Nesse processo ocorre a inversão 52 do acidente em modelo calculado a partir de sua racionalização em desenhos e planilhas. Na cena abaixo é possível verificar a fala de Vaughan sobre o projeto. Ele chama Ballard e diz que precisa de sua ajuda, os dois vão até uma sala onde se encontra uma prancheta e fotos dos acidentes das celebridades. Essa sala constitui um ambiente propício para as idealizações de Vaughan, em analogia aos laboratórios científicos, mecânicos e arquiteturais. Vaughan chama esse ambiente de ateliê. Nessa passagem, Crash expõe o extremo da visão calculada do mundo tecnológico. Vaughan no papel de um engenheiro calcula os projetos técnicos que servirão para tirar o que vieram salvar. Figura 1 – Cena do filme Crash. No nível do plano, a pouca profundidade mostra Vaughan focado analisando o seu projeto e Ballard desfocado ao observar as várias fotos penduradas nas paredes. Logo depois, na sequência, Ballard é focado, um tipo de zoom que provoca o deslocamento da atenção. Em Crash há uma ligação com o projeto de cálculo cartesiano: Descartes z “[ ] x em tantas [ ]” (DESCARTES, 2008, p. 25). Transformação da matéria a partir de cálculos; a efetivação dessa visão de mundo contribui historicamente para que o corpo também seja englobado nessa metodologia que se espalha por todos os cantos da vida. O corpo em Crash é projetado para a sua mutilação nas estradas como um novo modelo de estética, da destruição e das cicatrizes, assim como as rasgadas latarias dos automóveis. Continua Descartes: [...] dentre todos os que até hoje buscaram a verdade nas ciências, só os matemáticos conseguiram encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes. [...] que acostumariam meu espírito a se nutrir de verdades e a não se contentar com falsas razões. [...] o espírito humano [...] confere certeza às regras da aritmética. (DESCARTES, 2008, pp. 26-27). 53 A relação exibida na película demonstra como o corpo humano torna-se inaudito perto das possibilidades abertas pelas próteses e pelos poderes incomensuráveis dos gestos interpolados com e pela máquina, expansão e explosão da suprema violência sexual-tecnológica. Nem Vaughan, nem Ballard são heróis ou vilões, em Crash, os veículos, o sexo e as transgressões, mesclados em sinergia é que desempenham essa “ função. Observa- ” “ ” objeto. Baudrillard (1995, p. 136) nos diz que o corpo seria o mais importante, belo, e “ próprio auto õ ” (BAUDRILLARD, 1995, p. 136). Nesse sentido, Crash propõe a discussão entre a relação carne humana e tecnologia; a modificação do corpo aparece como um dos fetiches da seita. Por meio das próteses, dos pinos, das incisões e até de tatuagens é que os personagens parecem encontrar o prazer, transcendendo assim a condição física. Para Baudrillard (1991, pp. 139-140), o livro de J.G. Ballard antecipa uma relação inversa à visão apenas funcionalista do relacionamento entre o corpo e as máquinas, na qual as últimas são extensão e ampliação dos limites biológicos, pois essas seriam vistas como complemento ou aperfeiçoamento orgânico ainda no modelo prometéico. Segundo Baudrillard, em Crash, a técnica passa a ser desconstrução mortal do corpo, não meio funcional apenas, mas extensão da morte de um corpo confundido com a tecnologia na sua dimensão de violenta violação “ inteiramente submetido à marca, ao corte, à cicatr z z ” (BAU R AR 1991 p. 140), perversão do modelo, já fáustico, hiper-real e sem limites. Crash como livro e depois filme, cada um em seu turno, discute novas formas de mediação entre corpo e tecnologia, essas mediações são compostas por um corpo não apenas tornado máquina, mas tornado informação. Nesse contexto, ele é dissolvido e ao mesmo tempo concretizado como código. Em Crash, a sexualidade é binariamente sem referencial e sem limites, composição, armação (Gestell27) que não se completa sem a síntese dessa junção com o acidente automobilístico: o corpo somado ao automóvel e à publicidade significa uma sexualidade sem limites e por fim, assinala sua desconstrução mortal. O corpo de um lado, o automóvel do outro e o acidente ao meio se completam 27 Heidegger define Gestell (composição) como a força de reunião daquele pôr que impõe ao homem descobrir o real como disponibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 27). 54 culminando no ato sexual caracterizado pela violência mortal dos signos vazios de sentido e dos corpos punidos pelo tédio: O estorvo causado pelo automóvel origina um déficit técnico, psicológico, e humano de dimensões colossais: que importa, uma vez que o super equipamento infra-estrutural necessário, as despesas suplementares em gasolina, as verbas para o cuidado das vítimas de acidentes, etc., tudo acabará por ser contabilizado como consumo, ou seja, tornar-se-á, debaixo da capa do produto nacional bruto e das estatísticas, expoente de crescimento e de riqueza! (BAUDRILLARD, 1995, p. 34). Não importa se os acidentes geram algum tipo de insatisfação, pois tanto os automóveis quanto os corpos não passam de estoque “ ” Heidegger (2008, p. 22) que, sabendo ou não, está à disposição da indústria madeireira que resulta em celulose e depois em papel para às manipulações da imprensa. O corpo hoje, também, sabendo ou não, é decodificado na binariedade dos sistemas de dados e da biogenética que propõem sua duplicidade, reduzidamente como código. Tudo se resume em números necessários ao niilismo do sistema econômico-informacional, em prol da maior circulação e concentração de capital possível. Em Crash encontramos o que podemos denominar de encanto magnético, fetichista, causado pelos caminhos urbanos, capaz de transformar os instantes de um “ ” (BAUDRILLARD, 1990, p. 183) é explorado de modo a explicitar o prazer voyeurístico frente à violência. Ao mostrar a obsessão do personagem Vaughan em recriar os acidentes fatais de James Dean em seu Porsche apelidado de “L ttl B t ”, Crash mostra também o prazer patológico de observar o instante fatal da colisão e sua explosão de violência e sexualidade, um tipo de prazer prometido pela sociedade da informação através dos Mass media. Lars Svendsen (2006, p. 90), no texto Sobre tédio, corpo, tecnologia e transgressão: Crash, afirma que as psicopatologias em Crash são as nossas quando vemos uma corrida de Fórmula 1 esperando ver um desastre, e ao passarmos ao lado de um acidente esperarmos ver carros destruídos e pessoas feridas ou mortas. Abaixo, a imagem de Seagrave e Vaughan dentro de uma réplica do Porsche de James Dean após a simulação do acidente do ator. 55 Figura 2 – Cena do filme Nesta cena ocorre a centralidade para mostrar ao máximo os estragos Crash. causados ao veículo e os personagens que se encontram atordoados com o choque. A centralização desse momento demonstra o egocentrismo de Vaughan e Seagrave que se sentem orgulhosos por terem batido o Little Bastard. Ao fundo, ainda podemos ver, devido à profundidade do plano, a arquibancada de onde espectadores assistem as simulações dos acidentes. O carro, o corpo e o acidente podem ser considerados os elementos centrais do filme. O carro é o palco de vários atos sexuais entre os personagens, como é também aquilo que impulsiona a sexualidade, pois contém em si, o potencial constante do acidente e carrega uma pulsão sexual que vai explodir no violento momento da colisão. “ x z ” (BAUDRILLARD, 1990, p. 184). Assim, em Crash, o objeto destaca-se mais que o indivíduo que o conduz, o que está sendo consumido então é o próprio corpo em conjunto com o seu mais nobre coadjuvante, o carro. O objeto é referenciado como duplo e o corpo preparado pelo projeto de Vaughan para chegar até o que conhecemos hoje como clonagem: A clonagem é, pois, o último estádio da história da modelização do corpo, o estádio em que, reduzido à sua fórmula abstracta e genética, o indivíduo está votado à desmultiplicação serial. Seria necessário retomar aqui o que Walter Benjamin dizia sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. O que se perde na obra serialmente 56 reproduzida é a sua aura, essa qualidade singular do aqui e agora, a sua forma estética (ela já perdeu anteriormente, na sua qualidade estética, a sua forma ritual). (BAUDRILLARD, 1991, p. 128) O duplo materializado pode ser visto quando após o seu primeiro acidente, Ballard compra outro automóvel do mesmo modelo, marca e cor do anterior, resumindo, do mesmo design, significando que o olhar de Ballard já estava projetado para as idealizações do sistema, pois é no nível das aparências, da superfície que atua o design. Essa cena deflagra sensivelmente a obsessão material da reprodução de um sistema extremamente tecnológico cercado pelas características de um suposto modo de vida infinitesimal. A cena retrata a multiplicidade reificada do sistema dos objetos. . Figura 3 – Cenas do filme No nível da sequência, o filme exibe em planos diferentes, a frente do automóvel colidido Crash. e após o diálogo entre Ballard e Remington, o automóvel novo, para demonstrar a obsessão de Ballard pelo seu objeto que é da mesma marca, modelo e cor A obsessão do personagem Ballard por seu automóvel reflete a sua personificação na matéria, como se o carro fosse uma espécie de tecido epitelial ou um membro de seu o seu corpo. As sensações do corpo de Ballard são complementadas pela máquina e o seu duplo materializado depois cortado nos acidentes, é possível afirmar “ dade chamada corpo” (BAUDRILLARD, 1991, p. 127). Crash trabalha essa questão colocando o automóvel como prótese que mistura sexo e tecnologia, levando seus personagens à morte. O acidente é colocado como algo irradiador de energia, monólito, mas o seu duplo materializado é sinônimo de reificação. A imagem da duplicação do carro de Ballard pode ser reiterada à imagem da figura do corpo, pois, tanto carro quanto corpo estão sendo transformados em duplicatas do sistema. Segundo Baudrillard: “A metástase 57 começada com os objectos industriais acaba na organização celular” (BAUDRILLARD, 1991, p. 130). No filme, o acidente deixa de ser um acontecimento do acaso, ao contrário, passa a ser buscado, consumido e encenado, um tipo de psicodrama para as psicopatologias obsessivas desenvolvidas em contato com as tecnologias. Mas um tipo de terapia levada tão a sério pelos personagens, que eles buscam mesmo a maior proximidade da morte, representando as celebridades no momento de sua passagem. A vida confunde-se tanto com a ficção que os personagens de Crash representam a morte das celebridades. O acidente ronda todo o espectro obsessivo de Crash, é ele que, de acordo com Baudrillard (1991, p. 141), dá forma à vida, é ele que é o sexo da vida. Em Crash o carro, com seus elementos intercambiáveis torna-se o elemento metonímico28 que condiciona uma série de outros objetos. Ele pode ser pensado como presunção das moléstias futurísticas, abrindo novas cicatrizes no universo do desvelamento contínuo da vida. Logo, o acidente ocorreria muito provavelmente como efeito retroativo. A violência em Crash é altamente sexualizada e transgressora, torna-se o caminho para uma experiência transcendental que não obedece às barreiras naturais e as “ personagens de Crash provocam as colisões [...] para chegar mais perto da realidade e ”( V 2006 90) personagens encontram-se secretamente em um tipo de seita realizando encontros na calada da noite para reproduzir os acidentes das estrelas cinematográficas: O limite final, que não pode ser transgredido é Deus ou o Absoluto. Em Crash a morte e o orgasmo têm o status do Absoluto que não pode ser transgredido. A interface é o corpo. Não há mais procura do infinito, mas sim do finito, e a morte ou o orgasmo tornam-se imanentemente sagrados, uma transcendência absoluta é conferida à história (SVENDSEN, 2006, p. 100). Já não há mais saída para aqueles personagens. Essa encenação dos acidentes recria a tentativa de vivência de uma tragédia anunciada pelo próprio sistema, premeditada, é uma tentativa de sair do caos urbano onde a carnificina naturalizou-se, ainda uma tentativa de metáfora extrema da condição humana diante da metaforização 28 Lacan (1992) situa a metonímia como suporte do sintoma obsessivo por excelência, graças ao fato de que, na metonímia, o deslizamento processa-se associando um significante a uma série de outros significantes, tornando-se uma cadeia infinita. 58 do corpo como máquina, da condição do corpo como reserva de informação a ser decodificada e mercantilizada, reduzida para a solução de supostos problemas, inventados pelo próprio imaginário da continuidade técnica sem limites. Ao reviverem as estrelas de Hollywood, os personagens de Crash são ao mesmo tempo carne e tela, com a possibilidade do acidente libertá-los das amarras do determinismo mercadológico, tentam viver a reversão do processo que já os seduziu e os reverteu também em objeto de consumo a partir das simuladas imagens. Para Bauman (2001, p. 46), o interesse público é reduzido à curiosidade sobre a vida privada de figuras públicas e a vida pública é reduzida à exposição e confissões de questões privadas. A indiferença entre as esferas pública e privada é mais um sintoma do esfacelamento dos limites entre individual e social, sendo o social constantemente privatizado de forma a funcionar de acordo com as leis do mercado. Exemplo desse fenômeno descrito por Bauman é a infinidade de programas televisivos nos quais o conteúdo são as fofocas que expõem a vida dos famosos e o contrário também, programas com nomes bem sugestivos que levam pessoas comuns a exibirem suas vidas: A Tarde é Sua, Você na TV, etc. Como colocado por Bauman, o objetivo desses programas é aproximar as pessoas do contexto publicitário informacional, seduzindo-as e revertendo-as em objeto. Sobre essa questão, Baudrillard (1991) afirma que o desvelar apaga até mesmo as fronteiras entre real e ficcional. Esse universo comum a todos já incorporou totalmente a simulação e por isso o próprio sexo torna-se uma experiência antinatural. Segundo Melo (1988, pp. 62-63), a abolição dos mitos de Origem fez com que o sistema assimilasse seus antagonismos, desmitologizando as origens e engendrando o mito da operacionalidade através do código. A metafísica do código é a objetivação do discurso a partir da simulada hipótese do código como critério de verdade, logo, o simulacro da objetividade seria mais uma forma de legitimação da ciência. Baudrillard salienta que em Crash (1991, p. 141), o imbricamento entre corpo e técnica chega ao extremo e só pode resultar em um não sentido que explode em uma desregrada sexualidade, uma espécie de vertigem potencial ligada à inscrição pura de signos “ nulos do corpo, um tipo de contra-hermenêutica representativa, arrepresentação, onde a ordem do sentido como exaltação cósmica da aceleração [...] é abandonada em favor de um encanto poético do ralenti29, que destrói o sentido 29 Ralenti é uma palavra de origem francesa que significa mais lento. 59 ”( 1988 235) Os personagens perdidos no universo, segundo Svendsen (2006, p. 91), tentam se reencontrar na sexualidade, principalmente porque, segundo esse autor, teriam sido doutrinados pela psicanálise a achar que a sexualidade é a chave da existência. A sexualidade não se presta, unicamente, a dar sentido à vida, pois, corre-se o risco dela também se reverter em código vazio. É perceptível no olhar dos personagens de Crash sempre uma profunda solidão, expressão do tédio que só pode ser superado pela implosão dos sentidos nos simulados acidentes em meio ao labirinto da existência. Segundo Debord (2003, p. 18), o isolamento fundamenta a técnica e em consequência disso o processo técnico isola os homens entre si. O automóvel, a televisão, todos os bens produzidos pelo sistema do espetáculo são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das multidões solitárias que são tratadas como partes integrantes de macrossistemas autômatos. Svendsen (2006, p. 91) afirma que as cenas sexuais em Crash são frias e técnicas assim como o movimento de vaivém dos pistões de um motor automobilístico, revelando a falta de afetividade entre os personagens. No texto Transestético, capítulo do livro A transparência do mal, Baudrillard (1990, p. 23) afirma que até o mais obsceno e banal estetiza-se e que tudo toma força ou modo de signo, logo, para ele, o sistema funciona não só pela mais-valia da mercadoria, mas também pela mais-valia do signo. Crash mostra a estetização do acidente, mas não se atém ao bem ou ao mal, os personagens apenas agem, o sistema apenas funciona. Baudrillard (1991, p. 26) ainda afirma que o mercado é mobilidade, liquidez total, a arte estaria para ele, além do belo e do feio, assim como o mercado está para além do bem e do mal. Por todos esses aspectos Baudrillard considera Crash um retrato do mundo “ ” Crash é o nosso mundo, nada aí é inventado: tudo é aí hiperfuncional, a circulação e o acidente, a técnica e a morte, o sexo e a objectiva fotográfica, tudo aí é como uma grande máquina síncrona, simulada, isto é, aceleração dos nossos próprios modelos, de todos os modelos que nos rodeiam, misturados e hiperoperacionalizados no vazio. O que distingue Crash de quase toda a ficção científica, que na maior parte das vezes ainda gira à volta do velho par (mecânico e mecanicista) função/disfunção, é que projecta no futuro segundo as mesmas linhas de força e as mesmas finalidades que são as do universo normal. (BAUDRILLARD, 1991, p. 156) 60 Desta forma, Baudrillard considera que Crash não é apenas uma narrativa ficcional, mas exibe o que acontece no universo externo ao filme, que ele prefere “ ” “ ” Crash representa justamente a relação hiper-real por caracterizar os processos de hibridização do corpo com as tecnologias no sentido fáustico, sem limites, deixando novas cicatrizes. Essas cicatrizes exercem a função de novos orifícios, novos órgãos sexuais diretamente abertos e penetrados pela “ [ ] x ” (BAU R LLARD, 1991, p. 140). A fusão entre corpo e máquina geram outro tipo de organismo, não menos biológico, mas mortificado pela potencialidade técnica. O organismo é desconstruído, desvelado, visto como obstáculo para o desenvolvimento do código e para a concretização do projeto asséptico. Movimento observado em Crash nas cenas em que a doutora Remington aparece vestida com suas luvas e o jaleco, sempre a proteger o seu corpo das impurezas da condição humana, mas ao mesmo tempo insuficiente para protegê-la da sedução presente na relação entre sexo, máquina e acidente. Figura 4 – Cena do filme Crash. A sequência esboça uma cenografia, ou seja, a colocação dos autores e da câmera do tipo tribunal. Tanto Ballard quanto Remington possuem razões para estarem ali. A câmera e o diálogo insinuam o provável desenrolar de uma relação. O plano ainda sugere o ar (gíria de operador de câmera que denomina algum tipo de espaço) em cima ou embaixo com os pés cortados, sugerindo maiores aspirações. Além das características assépticas, na mesma cena, as palavras da doutora Remington referem-se à aumentada vontade de andar de carro após o choque contra o veículo de James Ballard que levara seu marido a falecer, demonstrando a necessidade 61 do corpo orgânico de completar-se com a artificialidade. Para Baudrillard (1990, p. 27), o corpo está entregue ao destino artificial, assim, Crash exibe o ato sexual fora do reino “ ” (BAU R AR 1991 141) funcionais. Tanto o livro quanto o filme, colocam-nos diante da violência tecnológica e do sexo que se complementam e demonstram a necessidade do orgânico relacionar-se com o artificial. A pornografia, como exibição total, leva ao extremo a natureza do corpo e do ser, mostrado como dados, em zoom High Definition, analogias da ciência desveladora e especular. Os espelhos são próteses do olho humano que podem aumentar a função do olhar. No caso dos retrovisores automotivos, as pessoas adquirem visões diferenciadas do alcance normal de seus globos oculares. Os espelhos desenvolvem também fator fundamental para refletir os objetos dentro dos shoppings centers, potencializando o consumo, inclusive através da transparência das vitrinas. Em Crash, o espelho exerce função proporcional ao potencial dos atos sexuais, pois em algumas cenas é utilizado como elemento direcionador do olhar voyerístico. Na cena abaixo, Ballard presencia as relações sexuais de Vaughan com uma prostituta pelo retrovisor. Figura 5 – Cenas do filme Na cena acima temos o movimento da câmera numa mistura de panorâmica com Crash. travelling. A imagem da câmera sai três vezes do seu ponto de vista inicial, o volante, faz uma panorâmica na cabeça de Ballard e vai em direção ao banco traseiro do veículo, sugerindo que o espectador é participante da história. O movimento se repete três vezes da esquerda para a direita, intercalado por três raccords (2009, pp. 47-48). O espelho pode também exercer algum tipo de natureza mágica. Se pegarmos uma pessoa que nunca se viu e colocarmos um espelho à sua frente, é muito provável que ela se surpreenda de alguma maneira, podendo assim, em relação ao imaginário, o 62 espelho configurar-se como prótese do duplo. Em Crash, é possível perceber como Ballard aos poucos vai se entregando à maneira de ser de Vaughan, consecutivamente, a personalidade de Vaughan faz papel de espelho (duplo) para Ballard que começa a agir de acordo com os reflexos emanados por ele, despertando, consequentemente, o seu duplo. Além dos retrovisores, em Crash observa-se a mediação da visão por algum outro tipo de prótese, a máquina fotográfica por exemplo. Vaughan carrega consigo em vários momentos uma câmera para registrar as feridas e os acidentes, para ele os desastres são espetáculos, assim como os encontros sexuais. Registrando essas imagens ele constrói sua narrativa estética. Logo abaixo observamos Vaughan fotografando a cena de um acidente que envolveu vários veículos numa autoestrada. Dentre eles o de Seagrave que morreu na reconstituição do acidente de Jayne Mansfield. Com isso Seagrave conseguiu apagar o limiar entre ficção e realidade, pois o que era para ser apenas representação o levou à morte. Ao se aproximar do carro de Seagrave, Vaughan reconhece o corpo do amigo e lamenta, mas não a perda do amigo, e sim o fato dele ter caminhado sozinho para a reconstituição do acidente, então faz um comentário parecendo não acreditar na ousadia de Seagrave: - Não podia esperar por mim? Fez o acidente de Jayne Mansfield sem mim? Figura 6 – Cenas do filme Crash. No plano da sequência, temos o raccord de olhar, que consiste do ponto de vista do espectador. É como se entrássemos na câmera de Vaughan para observar Seagrave. Um ponto A estar a ver um ponto B. Com esses exemplos que ocorrem em Crash, visualiza-se que os seres vívidos de aparências naturalizam a necessidade da autoexposição pretendendo serem vistos em 63 máxima definição. Narciso foi seduzido pela própria imagem refletida na lâmina ’ Crash são seduzidos pelas imagens das telas e dos signos. Logo, a visão dos acidentes expostos nas telas confunde os personagens com as matrizes, semelhantemente à confusão narcótica presente no mito de Narciso. Assim como os telespectadores dos noticiários assistem desastres de todos os tipos durante as programações das redes televisivas. Aspecto fundamental da fotografia em Crash z memória função enquanto prótese da através dos álbuns montados por Vaughan que Ballard confronta sua memória, já sexuais dentro do automóvel. Da mesma forma, as fotografias de Gabrielle, de seu acidente e de sua recuperação, consolidam uma espécie de lembrança através da qual a história . Para Baudrillard (1991, p. 141) o acidente tornou-se irreversível, já não está à margem, mas no coração. A ciência já nos fez habituar a essa microscopia, a esse excesso de real em seu detalhe microscópico. A esse voyeurismo da exatidão, do grande plano sobre as estruturas invisíveis das células, a essa noção de uma verdade inexorável não mais mensurável pelo jogo das aparências e que apenas a sofisticação de um aparelho técnico pode revelar, Fim do segredo. (BAUDRILLARD, 1992, p. 39) “ x Na citação Baudrillard refere“ y u x ” x ” nos faz revelar além mais e de maneira desproporcional o corpo e o ato sexual. A vulgarização do sexo e da violência verificada em Crash propõe o questionamento a partir da representação desses aspectos como verdade inexorável. Verdade imposta aos sentidos dos personagens em contraponto ao jogo das aparências que, muitas vezes, já não possui forças para lidar com a reprodutibilidade técnica. O exemplo de Crash demonstra a sexualidade realizada na morte, como sinônimo de existência, como se só a morte, ironicamente pudesse dar sentido à vida. Svendsen, citando Karl Kraus (1968), x “ ” (KRAUS apud SVENDSEN, 2006, p. 96). Os personagens ao depositarem suas esperanças na tecnologia automotiva tornam suas vidas, proporcionalmente, ainda mais entediantes. 64 Segundo Svendsen (2006, p. 96), Cronenberg disse que a sexualidade tem origem biológica, mas que a esquecemos. Digamos então que há em Crash, uma fecundação do patamar tecnológico dos corpos misturados às máquinas. 2.2 A contínua rentabilidade espetacular do corpo O espetáculo é, materialmente, a expressão da separação e do afastamento entre homem e o homem Debord “ s finalidades autônomas do sujeito, mas de acordo com o princípio normativo do prazer e da rendibilidade (rentabilidade) ” (BAU R AR 1995 139) Bataille (2012, p. 41) afirma que se vemos nos interditos a recusa que opõe o ser à natureza encarada como um excesso de energia viva e como uma orgia da destruição, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. Logo, a sexualidade e a morte em Crash são apenas os momentos intensos z “ ” tra tendo o sentido do desperdício ilimitado. Exigido pela perfeição, o corpo já não é mais vontade, mas vontade de uma estética da destruição que se torna bela e natural ao olhar funcional da sociedade “[ ] ” (BAU R z AR 1995 do imperativo 141) -se espetaculares e as cicatrizes são exibidas como troféus. No artigo Depois do espetáculo, Juremir Machado da Silva (2007, pp. 31-42), em referência aos escritos de Guy Debord, salienta que passamos da cultura “ ” O espetáculo era um dispositivo de controle por meio da sedução. No hiperespetáculo, quando tudo se torna tela, cristal líquido e captação de imagem, todo controle é remoto. Passamos da manipulação, estágio “ ” degrau superior da manipulação, à imersão total. Evoluímos da 65 participação, que pressupunha um sujeito e uma ideia de política, para a interatividade, que reclama um jogador desinteressado (SILVA, 2007, p. 32). “ -sentido, a selvageria desta mistura do corpo e da técnica está imanente, é x ” (BAUDRILLARD, 1991, p. 141). Baudrillard (1995, p. 142) ainda escreve que somos todos manequins, manipulados pelos desejos da máquina publicitária. A beleza de Crash reside no vazio, na ausência e transparências absortas, sendo o corpo tratado como niilista, pois ritualizar os acidentes e procurar a morte é negar a vida. No filme, é o próprio sentido do corpo que acaba no próprio processo hipnótico da tecnologia. Em Crash, acontece com o corpo o mesmo que com o trabalho. Ele é explorado pela indústria com a mesma lógica da mais-valia, absoluta e ou relativa, pois é objeto hiperfuncional, sem diferenciação de horas de trabalho ou horas de descanso. Sobre ele estão inseridos todos os signos da produtividade e, a todo o momento, o corpo é consumido como objeto nas estradas ou em atos sexuais. Baudrillard (1995, p. 143) explica que o importante é que o corpo seja libertado e emancipado para ser racionalmente explorado em todas as suas nuances. Svendsen (2006, p. 30) ainda coloca z “ ” e menos z Crash uma deficiência de “[ ] para além do ” (BA A 2012, p. 41). Crash ultrapassa a dicotomia corpo/alma da tradição cristã e levanta a descoberta do corpo como sacralização instrumental. Os personagens enredam o paradoxo secularização/sacralização, aparentam estarem presos no cientificismo e entediados, por isso tentam sacralizar seus corpos nos rituais de simulação. Sendo assim, para eles o corpo preenche e decepciona ao mesmo tempo, aspecto que os leva a um não entendimento do seu próprio fazer, por eles mesmos, são forçados a gozar tecnicamente através dos automóveis. Os automóveis de Crash tornaram-se pílulas em academias de Educação Física; construímos corpos de acordo com os outros expostos nos displays, matrizes, para logo em seguida cair em deleite funcio “a questão é o corpo, [...] orgânico e erógeno, o corpo funcional do qual, mesmo nessa forma z (BAUDRILLARD, 1992, p 14). ” 66 Para Baudrillard, “a maquilagem não é outra coisa senão paródia triunfante, resolução pelo excesso, por hipersimulação, própria lei da castração” (BAUDRILLAR, 1992, p. 20). O corpo passa a copiar os vários outros existentes, realizando uma constante modificação técnica. Infinita insatisfação, resultando na sua banalização. O corpo não perde a sua importância, mas adquire tão somente a condição imediata e funcionalista. “ z x ” (BAUDRILLARD, 1992, p. 23). Baudrillard (1992, p. 25) salienta que então é chegada a era da pílula e da determinação ao gozo. A adoção racional das próteses. O tempo e o espaço, geográficos ou corporais, ocupados pelas transformações científicas, tornam-se hiper-reais, digitais, virtuais, não os enxergamos, apenas sentimos suas ondas. McLuhan (1969, p. 22) afirma que tanto a luz como a energia elétrica eliminam os fatores de tempo e espaço da associação humana, exatamente como o fazem o rádio, o telégrafo, o telefone e a televisão. Estes geram a participação em profundidade, constituindo a época de uma referência só: a dos signos condicionando nossos imaginários: telas em High-Definition, câmeras espalhadas pelas esquinas, ou seja, vigilância total. Para Debord (2003, p. 113) a organização técnica do consumo e sua dissolução geral conduziram a cidade a consumir-se a si própria. Nesse sentido, a dissolução funciona como elemento impulsionador da visão consumista que não se desvincula da necessária destruição dos produtos para que surjam novos. Em seu livro A sociedade do espetáculo, Debord (2003) explicava que o momento era de autofagismo do meio urbano: ditadura do automóvel, que seria o produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil. Posteriormente com a prevalescência da autoestrada, os antigos centros deslocam-se e ocorre uma dispersão cada vez maior do espaço urbano. As panorâmicas do filme revelam a dimensão labiríntica desse espaço que confunde mais que orienta. A cidade em Crash é sentida então como um labirinto sem saída, o qual em alguns momentos você pode esquecer, mas que em pouco tempo se vê ligado novamente. Os centros urbanos são esse emaranhado de redes infinitas de asfalto que nos liga na contínua reprodução dos sistemas, hiperlinks rodoviários. Octavio Paz (1990) reforça a condição funcional determinada pela técnica e que encontra no mundo uma forma de resistência a ser dilacerada. A exemplo de Baudrillard, nesse trecho Paz salienta a desconstrução de referenciais despojados pelo 67 aprofundamento tecnológico ao não mais representar ou reproduzir a realidade, mas evidenciando a confusão sensorial provocada pelo potencial tecnológico: A técnica não é nem uma imagem nem uma visão do mundo; não é uma imagem porque não tem por objeto representar ou reproduzir a realidade; não é uma visão porque não conhece o mundo como figura, e sim como algo mais ou menos maleável para a vontade humana. Para a técnica o mundo apresenta-se como resistência [...]. (PAZ, 1990, p. 103) Nietzsche (1992, p. 135) já considerava o homem abstrato, privado da luz do mito, a educação abstrata, a moral abstrata, o direito abstrato, o Estado abstrato. Para ele, esse estado de coisas corresponderia à degenerescência do caráter ocidental. A arte e o povo, o mito e os costumes, a tragédia e o Estado estariam necessariamente ligados e estreitamente misturados nos seus fundamentos. A morte da tragédia (como gênero) foi também o fim do mito original. Já uma privação da imagem e a reversibilidade do sujeito diante do objeto, ou seja, a morte dos imaginários em troca do controle imagético do mundo. Nietzsche (1992) diz isso no sentido de que o abandono dessa tensão natural proporcionou um mal ainda maior, logo, um cientificismo visto em fins de verdade única. Assim, o corpo é sujeitado à mente e não reflete um enunciado da natureza, é segregado dela, menor que a razão e reduzido à mera cópia do modelo passa a ser também reificado. 68 2.3 Cavando a própria cova: o célebre no lugar dos deuses Todo mundo é um cientista maluco e a vida é o laboratório. A gente está sempre experimentando, tentando achar um jeito de viver, de resolver os problemas, de se livrar da loucura e do caos Cronenberg Há uma remanescência do tratamento do corpo, mas que não mais o vê como organicidade, e sim como objeto a ser explorado, assim como os outros entes integrantes da natureza “E agora o homem sem mito encontra-se eternamente famélico, sob todos os passados e, cavoucando e revolvendo, procura raízes, ainda que precise escavá-las nas mais remotas Antiguidades.” ( Z 1992, p. 135). Deslumbrado, o homem se cega pelo fazer da técnica museológica (antropológica), e como técnico possui o poder de arrancar da natureza os vestígios deixados pelos seus ancestrais, desvelando-a... Mas continuamente esfomeado segue o homem, procurando e cavando sem sucesso, frustra-se. Baudrillard (1991), a exemplo de Nietzsche, em seu texto Ramsés ou a ressurreição cor-de-rosa, afirma que: “ acumulativa [...] se desmorona se não pudermos armazenar o passado à luz do dia. Para z ú ê ” (BAUDRILLARD, 1990, p. 17 e 18); a exemplo disso citamos a exumação do corpo de Dom Pedro I30. Esse é o espírito da técnica, velar historicamente o sentido mítico, a relação do corpo com a natureza e dispor o artificial no lugar dessa relação. No filme Crash o célebre substitui os deuses, o sentido falha, e o ritual se repete infinitamente replicado pelas imagens das arquibancadas, das telas e o reflexo dos simulacros. A narrativa da morte é reproduzida como rito, por exemplo, na ressurreição do acidente de James Dean. Reversibilidade da narrativa de vida para a de morte, do natural para o virtual. É mister para os sistemas, manter suas características reprodutivas e acumulativas, assim podem fazer da história também um mercado lucrativo que não 30 REVISTA GALILEU. Entenda o que significa a exumação do corpo de Dom Pedro I e suas mulheres [s/d]. Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI331308-17770,00ENTENDA+O+QUE+SIGNIFICA+A+EXUMACAO+DO+CORPO+DE+DOM+PEDRO+I+E+SUAS+ MULHERES.html>. Acesso em: 12 de março de 2013. 69 preza pela memória, mas pelos objetos que expõem o espírito técnico. O espírito científico mata em nome do progresso e depois ressuscita o que matou em nome da ciência histórica, novamente em nome do progresso, da civilização. Daí a mitologização dos objetos e a reificação dos cadáveres, modelos de simulação que foram vida outrora. Na sociedade o corpo invadido pelas câmeras e telas é destruído/construído em prol da técnica. Construído e aperfeiçoado para sustentar a funcionalidade do sistema e depois destruído nos acidentes: os personagens transportam as máquinas e vice-versa até se destruírem em uma das projetadas curvas, essa é a liberdade do consumo. Ao reproduzirem os acidentes, os personagens projetam simulando (experimentando) no tempo e no espaço as condições para o desaparecimento ou a mutação do corpo. A técnica destrói o que veio completar. As marcas deixadas no corpo em Crash são consideradas “invaginação artificial, [...]. Os poucos orifícios naturais que se tem o costume de ligar o sexo [...] não são nada ao lado de todas as feridas possíveis, de todos os orifícios artificiais” (BAUDRILLARD, 1991, p. 143). Na figura 7, a personagem Gabrielle, exibe suas próteses adquiridas após um acidente juntamente com sua cicatriz que se assemelha a uma vagina assim como uma a lataria rasgada faz analogia a uma vagina. Esfrega-se no carro excitando-se e com o seu híbrido olhar seduz o vendedor que trabalha na concessionária. Figura 7 – Cenas do filme Crash. Aqui, em dois momentos distintos e em close-ups, temos o que Jullier e Marie (2009, p. 56) chamam de metáforas visuais. Nessas cenas, as metáforas visuais, por analogia, representam vaginas, tanto na pele de Gabrielle quanto na lataria retorcida do veículo de Catherine. E os trajes reveladores insinuam as cenas de sedução e sexo que seguem. As mutilações e cicatrizes deixadas no corpo em Crash concretizam o sonho de um monstro montado com membros de outros corpos, Frankenstein, mas que agora é 70 montado com próteses de plástico e metal. O corpo em Crash sempre está pronto para morrer nas autoestradas, Vaughan salienta que o seu projeto é uma nova estetização do corpo junto à máquina. Pode-se então, comparar Vaughan com os doutores: Frankenstein e Fausto. Baudrillard afirma que “ contemporânea, porque é a própria forma da virulência do código: redundância x ” (BAU R AR 1991 130) O próprio Vaughan reconhece a condição patológica da tecnologia que comanda o fazer humano, fato que será demonstrado na seção seguinte. Em Crash há uma justaposição irônica entre doença e assepsia, pois, o peso do corpo é insuportável, então, os personagens entregam seus corpos em deleite híbrido, tentando ou satisfazendo o seu desejo de desaparecimento. 71 2.4 Técnica, sedução e o terror: A derrocada corporal-automobilística nas cidades [...] usei o carro não apenas como uma imagem sexual, mas como uma metáfora total da vida do homem na sociedade de hoje J.G. Ballard Observamos, hodiernamente, notícias sobre o trânsito: segundo o Portal Brasil31, aproximadamente 42 mil pessoas morrem em acidentes de trânsito por ano no Brasil e mais de meio milhão ficam feridas, muito mais que em algumas guerras. De fato, talvez seja natural esse aumento nos acidentes, pois o número de veículos também tem aumentado consideravelmente, um tipo de progressão geométrica (neomalthusianismo da máquina) deixando o trânsito insuportável, transformando-o em condição extrema; motivo pelo qual, métodos interativos são utilizados para informar a situação do trânsito, através de ligações telefônicas ou mensagens enviadas via Twitter para as emissoras de rádio. Esse espectro é absorvido, modelado e exibido através dos Mass media como um gigantesco espetáculo. Relativamente ao vertiginoso crescimento da quantidade de veículos que ocupam as ruas, quanto mais Velozes e furiosos32, maior a hibridização da carne humana com as ferragens retorcidas nas beiras das estradas e nos abismos da vida. De acordo McLuhan (1974, p. 250), o carro produziu o nivelamento e criou autoestradas urbanamente semelhantes. Em Crash várias cenas expõem os ambientes de um grande centro urbano, dentre elas, a que segue na figura 8. Da sacada do apartamento onde residem, em frente às autoestradas, Catherine, esposa de Ballard observa a movimentação, o tráfego rápido com muitos veículos deslizando pelas vias expressas. 31 PORTAL BRASIL. País promove Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2013/11/acoes-promovem-o-dia-mundial-em-memoria-dasvitimas-de-transito>. Acesso em: 16 de novembro de 2013. 32 Velozes e furiosos é um filme americano de ação e corrida de rua de 2001, dirigido por Rob Cohen seguido de mais cinco sequências. O filme conta a história de Brian, um policial novato que se infiltra no mundo das corridas ilegais de “ ” nas ruas de Los Angeles para capturar o responsável por diversos roubos a caminhões nas estradas próximas à cidade. Coincidente ou ironicamente durante a realização desta pesquisa, a estrela Hollywoodiana de Velozes e Furiosos, Paul Walker faleceu em um acidente automobilístico no estado da Califórnia, EUA; O destino de Walker foi o mesmo de James Dean. 72 Figura 8 – Cena do filme Crash. Nessa cena, enquanto Ballard e Catherine dialogam e transam a câmera se aproxima em zoom da autoestrada. Desde o advento do Fordismo já produzidos em série, duplicatas do sistema de produção, signos de status social, os automóveis modificam e aceleram a vida nas grandes cidades. Modos de vida fabris instituíram-se e com o auxílio do Taylorismo a administração tomou mais força, mais luz vinha a campo através da racionalização do trabalho nas linhas de montagem, causando uma estranheza no modo de sentir o mundo frente à contínua reprodução. Gatti (2013), no artigo O ideal de Baudelaire por Walter Benjamim, afirma que Baudelaire deu forma à angústia de uma existência ameaçada pela estranheza do mundo e pela temporalidade que a cada segundo corroia a vida. Pois Baudelaire referia-se às transformações causadas em alta escala pelas novas técnicas que borbulhavam já em sua época. Quanto à reprodução das duplicatas do sistema, mais tarde, nos textos Réquiem para as Twin Towers33 e Hipóteses sobre o terrorismo, Baudrillard (2003, p. 12), explanando seu ponto de vista sobre os atentados de 11 de setembro de 2001, afirma que o fato de que eram duas torres demonstra a perda da referência original, se fosse apenas uma, o monopólio dos simulacros não estaria caracterizado. Ponto chave que verifica a violência dos códigos multiplicados e que geram o que a imprensa ocidental convém denominar de terrorismo. Assim o terrorismo viria de que lado? A figura do 33 Brasília, planejada por Oscar Niemayer também possui duas torres, não com as dimensões das Twin Towers, mas que fazem parte do “cérebro” do avião e do governo brasileiro. Abaixo das duplicadas torres, dois semicírculos, um côncavo e outro convexo, juntos, simulam o poder fálico tanto quanto a Torre Eiffel e as Torres Gêmeas. O ideal do voo tecnológico, do progresso técnico jorra sêmen contaminado pelo vírus ideológico do voto, sustentado muito apropriadamente por propagandas publicitárias no horário nobre. Desde sua arquitetura até as falácias tautológicas dos seus simulados discursos essa cidade é a simulação de uma nação em eterno desenvolvimento positivista simulado, na ordem e no progresso. 73 terrorista torna-se fascinante para além do bem e do mal justamente por ter sido criada pela imposição violenta da ordem global, essa imposição simulada caracteriza uma espécie de Arquitetura da destruição34, através de um Bem, impõe-se sobre os outros como caráter de verdade. Não se compreenda disso um elogio ao terrorismo por parte de Baudrillard õ (Baudrillard, 2003, p. 31), relativas a esse fenômeno, demonstram que o terrorismo tem sido triunfal no sentido de analisá-lo, questioná-lo diante das imposições mercadológicas da Nova Ordem Mundial. Portanto, como forma de apontamento, preciso analisar o terror e o mal como aquilo qu x z scínio que provoca a presença dos dois no corpo social, pois, eles substituem a guerra convencional e a exacerbação do jogo e do código político pela violência e pela morte. Para Baudrillard (2007) acontecimento supracondutor e viral, expressão do mal em estado puro, multiplicado pelos meios de comunicação através da virulência das imagens e do discurso de Democracia do Bem, que é distribuída ao restante do mundo com bombardeios de caças supersônicos, porta-aviões, metralhadoras, mísseis de última geração e a panóplia de segurança midiática35 “A simulação é como o grau zero dos signos: ela é o termo não-marcado que se opõe ao ê livre- ” ( “ 1988 z ” 59) o B simulação em nome de um valor-signo, para além do material-imagético em nome de interesses, sejam eles quais forem. Geralmente o livre-arbítrio é o do Mass Media. Considerar o terrorismo como acontecimento supracondutor do mal significa que s advém de uma ação contra o Estado que o define. Significa considerar que ele irradia-se pela sociedade porque evoca o que e escondido: o inumano, a barbárie. Aqui se faz a comparação do terrorismo (atentado) às Torres Gêmeas com o terrorismo vivido no trânsito, logo, nas imagens de 34 ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO. Documentário. Dir. Peter Cohen. [1989] Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=n9s00HRB_rc>. Acesso em: janeiro de 2013. 35 TERRA. Novas informações de Snowden sobre espionagem podem prejudicar EUA mais ainda. [2013] Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/novas-informacoes-de-snowden-sobre-espionagem-podemprejudicar-eua-mais-ainda,4bf6fb8609ecf310VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html>. Acesso em: 14 de julho de 2013. 74 Crash. O terrorismo está tanto para o Bem quanto para o Mal, reflexo de imposições globais. Uma medida extrema para uma época extrema. 2.5 O Projeto de Vaughan: um Fausto em Crash Tornai-me a aparecer, entes imaginários, que me enchíeis outrora os olhos visionários! Poder-vos-ei fixar?... Tenho inda coração capaz de se render à vossa sedução? Goethe McLuhan (1974, p. 86) indicava que o impacto dos veículos, causaria o espalhamento do modelo de metrópole moderna transformando-as em desastres automobilísticos. Esse autor salientava ainda que o carro tornara-se uma espécie de extensão dos nossos corpos, construídos para amenizar nosso estresse físico, mas produzindo um estresse psíquico mais prejudicial que libera uma furiosa descarga de energia. Após essas afirmativas, basta observar o tráfego nos horários de pico para se convencer das posições de McLuhan. Como grandes serpentes de aço que fumam por entre as vias congestionadas, seguem os automóveis pelas camadas impermeáveis de piche e de cimento. A centopeia aqui não é somente humana, como no filme do diretor holandês Tom Six, é uma centopeia com próteses motorizadas que descarta seus excrementos em quem vem logo atrás. Dentro de cada automóvel as células neurais dos homens desfalecem em pequenez diante da simulada grandiosidade do automóvel e das congestionadas cidades. O automóvel assemelha-se àqueles robôs da ficção científica os quais são controlados por corpos humanos e que, em sentido baudrillardiano, passam a ser hiperreais ao confundir-se com a tecnologia. Em diálogo, os personagens Ballard e Vaughan descrevem o que sentem ao juntar o sentir-se vivo no acidente com o prazer sexual: - É muito prazeroso. Não sei se entendi bem (Ballard). - É o futuro Ballard... E você já faz parte dele. Você está vendo isso pela primeira vez... Há uma psicopatologia benevolente que sinaliza em nossa direção. Por exemplo, acidente de carro é uma forma de semear em vez de um evento destrutivo... A explosão de energia sexual mediando aqueles que já morreram com uma intensidade que é impossível ser 75 mensurada de outra forma. Experimentar isso, viver isso, isto é o meu projeto (Vaughan). Figura 9 – Cena do filme Crash. Enquanto Vaughan e Ballard conversam sobre o projeto a câmera foca hora num, hora noutro em close-ups intercalados por raccords. Ainda nessa sequência, temos o posicionamento em câmera alta total focando as fotos dos acidentes das celebridades. Vaughan é um entusiasta dos acidentes e do sexo. Para ele os mortos seriam mediados através dos acidentes. Pode-se afirmar que ele coloca a energia do seu órgão genital no volante, projetando uma cena estética futura, levando Ballard a ficar confuso, mas se sentindo extremamente atraído pelo universo do conjunto destrutivo que envolve sexo e tecnologia, exposto por Vaughan. Paula Sibilia (2002, pp. 16-19) explica que as tendências fáusticas de fabricação de seres humanos que pertenciam ao universo ficcional, passam a serem discutidas em várias escalas da vida. Sendo assim, ela explica que as várias metáforas do homem-máquina utilizadas no decorrer dos séculos podem estar se concretizando, pois agora a humanidade possui ferramentas para se automodificar, edificando corpos e mundos de acordo com o instrumental da tecnociência. “ Etimologicame ”( UA 2001 ” palavra latina projectus “ 2308). Em formato de balas bélicas e flechas, o design dos carros vem se aperfeiçoando a cada dia para o aumento da velocidade, desviando-se da natureza dos ventos. Lançando os corpos, como proposto por Vaughan, num futuro sem limites tecnológicos, semeando a explosão de energia sexual e provando o duplo a partir da imagem dos que já morreram. Assim como Fausto perde o controle de sua mente diante do diabo, Vaughan perde o controle diante da tecnologia. 76 Seu ilimitado fascínio pelas transformações do corpo em contato com as tecnologias pode ser visto quando ele tatua no peito um mecanismo que lembra engrenagens. O que dizer sobre as tatuagens biomecânicas que hoje as pessoas exibem orgulhosas em suas peles? Figura 10 – Cena do filme Crash. A tatuagem biomecânica de Vaughan é filmada em close-up. Os automóveis contribuem significativamente para o desastre urbano, a violência é colocada à prova em todos os momentos nas retas, curvas e encruzilhadas. O “ ” espetacular repercussão na mídia: o rádio, a televisão, o cinema, etc., que passaram a exibir os desastres, a destruição dos automóveis e dos corpos, formatando esse processo em um hiperespetáculo, naturalizando-o (Deep Web36 total). Esse caráter de desaparecimento do sujeito é exibido em centenas de cenas do cinema pop: perseguições, bombas, velocidade e destruição generalizada, esse é o cardápio protagonizado pela indústria cultural que faz sucesso, a banalização generalizada da violência: O que as pessoas ma aconteceu. E como em todos os sonhos que se re aflitiva sensaçã z A 36 , z Bergman cita um artigo de janeiro de 1996 produzido por Frank Garcia, no qual ele afirma que Deep Web “[…] -lo em nenhum mecanismo de busca. Então, ninguém pode encontrá-los! Estão escondidos. Eu os chamo de Web Invisível” R a Deep Web é o lado escuro da Internet onde se encontram todos os tipos de bizarrices. 77 x x melhor que nada... Penso que estamos na pista de toda espécie de loucura. Penso que nã ra todo tipo de absurdos que vão aparecer. O futuro será entediante (BALLARD apud SVENDSEN, 2006, p. 88). Supermáquinas com seus gadgets projetam um futuro que absorve e toma o lugar do presente, semiurgia dos efeitos especiais, ciência da manipulação, força ideológica dos discursos: social, político, sexual, etc., ao complementar uns aos outros. Segundo Svendsen, como o sonho da sociedade de consumo se realizou, agora sobra o vazio. Resta então acreditar em qualquer coisa, como o universo tecnológico é o predominante, acredita-se em suas promessas de melhoramento da existência no mundo. Apesar de o objeto carro ser um dos destaques na narrativa de Crash, na cena inicial as aeronaves ganham seu espaço, representando o contínuo desenrolar dos veículos na tecnicidade. Um hangar adentra a tela onde aparecem alguns aviões de pequeno porte. Ao fim do plano, duas aeronaves, entre elas, no quadrante, uma mulher loira se despe vagarosamente mostrando o seu sutiã branco enquanto a câmera foca o seu tórax. Seus olhos inicialmente fechados abrem-se e parecem olhar em direção ao nada, o brinco prata e o pescoço à mostra; a câmera abaixa-se um pouco fitando os seus seios. Verticalmente vai descendo até os seus pés: uma longa saia preta e sapatos sociais, de repente dois calçados masculinos aproximam-se por trás da senhorita, sorrateiramente ela levanta um dos pés em sinal de prazer. A câmera volta e mostra o seu seio sendo esfregado à aeronave. A partir dessa cena inicial já é possível detectar que sexo e tecnologia são o centro do universo de Crash, sendo a subjetividade do corpo relegada ao segundo plano em favor da hiper-realização. O corpo então pode ser enxergado como vítima da imposição do gozo tecnológico mediado pelas próteses, representadas, naquele momento de Crash, pelas aeronaves. 78 Figura 11 – Cena do filme Crash. Cena inicial com um tipo de louma em travelling por entre e sobre as aeronaves até que se descubra Catherine. Logo após o travelling, um corte repentino para a personagem que se despe vagarosamente. Os personagens de Crash, vítimas do histórico paroxismo, recorrem ao acidente como meio de transgressão, liberação de energia sexual, pulsão de morte (ou vida?) em meio ao brainstorm mercadológico das concessionárias, funcionam como um choque de verdade; é isso que Crash propõe: sentir o corpo realmente, mesmo que mutilado ou morto no momento do desastre, momento de reflexão extremamente individual sem a interferência da publicidade. No momento do acidente, o corpo não é absorvido pelas páginas das revistas, pelo teatro dos jornais sensacionalistas e pela reflexiva sedução das telas. O projeto da dualidade cartesiana entre material e ideal e os discursos da tecnociência, enfatizados por Paula Sibilia (2002, p. 95) no texto O espírito na carne: a teimosia da organicidade, estão esboçados em Crash, sendo os seus personagens, vítimas dessa dualidade. As quatro causas aristotélicas37 parecem nunca ter chegado a possuir tanta força antes da sociedade globalizada e assim o círculo vicioso da tecnologia continua, um vaivém pornográfico desmesurado, hiper-real. Automação e cibernação operada com todas as unidades componentes do processo científico-mercadológico, da inter-relação que se observa na indústria e no mundo do entretenimento e do resultado da velocidade elétrica instantânea, produzindo a extensão desse processamento mediante os sistemas nervosos centrais aprofundando a era mecânica de Gutemberg. 37 CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Abril Cultural, 1984. HEIDEGGER, Martin. In: Ensaios e conferências. A questão da técnica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. Petrópolis : Vozes; Bragança Paulista : Editora Universitária São Francisco, 2008. 79 A automação cibernética traz uma produção em massa não em termos de tamanho, mas de abrangência inclusiva, instantânea e interativa (1974, pp. 390-391). Basta enviar um SMS (Short Message Service) e a mágica está feita; empunhar sua câmera, filmar e enviar o vídeo para uma emissora de televisão, pronto, o fetiche está realizado, interagimos, fomos seduzidos; ou ainda twitarmos nas hashtags (#) das homepages e das timelines. Sedução que está implícita no modelo social contemporâneo, em seus objetos e elementos, os corpos em algum momento, transformam-se em códigos. Importante salientar que essa magia tecnológica, diferentemente da descrita por Mauss sobre as sociedades primitivas, não tem caráter natural, mas material, no sentido de que vai de objeto para objeto constituindo uma reprodução infinitesimal. Os automóveis por estarem imersos no universo da técnica tornam-se materialmente mágicos como tantos outros objetos da comunidade globalizada, meio de status social, meio de destaque conquistando os imaginários com a sua imponência. As pessoas que possuem os mais novos lançamentos tecnológicos são consideradas atualizadas e, ao entrarem em contato com objetos, cada vez mais velozes e renovados, sentem-se mais introduzidos na velocidade da sociedade de consumo, upgrade total, das máquinas e dos corpos. O corpo desloca-se com maior rapidez e fluidez, falsa idealização perante a intensificação do tráfego e dos constantes congestionamentos veiculares nos grandes centros urbanos e nos bugs do milênio, quando resta uma esperança: os veículos estão saindo das fábricas equipados com computadores de bordo. Além desses aspectos o carro transformou-se em símbolo referencial de sexualidade, são depositados nele os desejos mais obscurecidos. Para Svendsen (2006), no mundo tecnologicamente entediado o corpo biológico já não mais satisfaz nossas fantasias, sendo o automóvel, muitas vezes, utilizado como aparato protético de satisfação sexual. Pois, para o corpo bastar-se, é preciso transgredir a sua ordem biológica. Em Crash os automóveis funcionam como próteses sexuais, assim como os computadores de hoje. Os acidentes e o sexo em Crash significam uma tentativa de libertação ou alívio do imperativo tecnológico. Diante da insurgência tecnológica, o corpo analisado e violentado por intermédio ê destruição equipara-se à vida, enquanto o tédio equipara2006 89) x “ “A ” ( V abeça 80 ” preciso sempre procurar, correr atrás do fim como instância reguladora da vida. Nessa perspectiva é preciso colocar a vida em risco seguindo o exemplo dos personagens de Crash, o contrário disso é lamúria. Svendsen (2006) define Crash assim: Crash é [...] entediante sobre pessoas entediadas. Um mundo que se tornou totalmente objetivado e desprovido de todas as qualidades não pode ser senão entediante. Fugindo deste tédio, o homem se lança a transgressões cada vez mais extremas [...] (SVENDSEN, 2006, p. 89). No artigo Jacques Lacan e a clínica do consumo, Márcia Rosa (2010, p. 158), utilizando palavras do psicanalista, afirma que para a maioria das pessoas a ciência se z z “ ” de vista de Lacan e Svendsen, considera-se que a exposição generalizada torna-se entediante. Onde tudo é pornográfico, onde há exibição completa em zoom e slow motion, rapidamente, extingue-se o mistério, consequentemente o desencantamento da própria existência (não à toa, a depressão ser considerada o mal do século XXI); através das descobertas da ciência tudo deve servir para algo em profundidade. Irônico, quanto mais a ciência tenta descobrir as minúcias do universo, menos chega à alguma resposta satisfatória, esse paradoxo contribui ainda mais para o aprofundamento do tédio exposto por Svendsen (2006) na obra a Filosofia do Tédio. A crítica de Baudrillard à psicanálise decorre basicamente desse movimento desvelador: “[...] õ ” (BAUDRILLARD, 1984, p. 19), tudo é político, tudo é sexualidade no instante que a política está em ruínas e o sexo involui diante do hiper-real da sexualidade liberada. Baudrillard (1984, p. 24) na obra Esquecer Foucault, afirma que nunca houve repressão do sexo, mas a imposição de sua produção e exposição. A partir daí, pode-se afirmar que uma sexualidade patológica é posta em Crash. Vaughan, herói/vilão da trama, “ ” afirmação que reflete o estado febril da sociedade globalizada. As caóticas relações entre sexo e tecnologia dramatizadas em Crash são sinonímia viral que se multiplica incessantemente atacando por todos os lados os sistemas neurais, causando uma 81 metástase que se espalha por todo o restante do corpo social e que em particular atinge uma das suas mais importantes características, o imaginário. Bataille (2012, p. 27) considera o erotismo como um desequilíbrio em que o próprio ser se põe conscientemente em questão, quer dizer com isso que, por mais comedidos que sejamos algum ato violento pode manifestar-se há qualquer momento. Há na natureza e subsiste no homem um movimento que sempre excede os limites e que reduzido parcialmente por outras atividades, por exemplo, o trabalho e a festa. Por esse exceder-se, em geral, não podemos responder de forma racional. Bataille (2012, p. 45) explica ainda que do ponto de vista econômico, a festa consome em sua prodigalidade sem medida os recursos acumulados no tempo do trabalho. A transgressão não é mais que o interdito, mas a decomposição que complementa essa festa do consumo. A festa é o ponto culminante, por exemplo, da atividade religiosa, acumular e gastar são as duas fases que compõem essa atividade. Por isso a transgressão pode ser vista como o valor adicional do interdito. A festa tecnológica continua no eterno carnaval do exagero. Com a imposição do erótico sobre a sociedade, mesmo com o necessário desperdício de objetos e da energia sexual nas orgiásticas festas contemporâneas, o tédio social provocado por esses excessos descritos por Svendsen e Bataille não conseguem amenizar a afunilação do imaginário, portanto, os atos violentos tendem a continuar. Enfim, para Bataille o universo onde vivemos não responde a nenhum fim que a razão possa limitar totalmente. A posição de Bataille justifica o comportamento dos personagens em Crash: criam um tipo de culto religioso festivo, no qual se encontram para celebrar seus desejos mais sombrios, violentos e sarcásticos, consumindo objetos e seus próprios corpos na tentativa de satisfazer a sua vontade, dessa maneira, eles tentam libertar-se do universo tedioso da hýbris tecnológica. Portanto, para Bataille (2012), a morte e a violência excedem a vida calculada, não podem deter-se na lei socialmente ordenada da vida humana. A morte, no acidente de Crash, derruba a ordem legal das coisas numa violência sagrada, eleva a vítima do mundo vulgarizado tecnologicamente, onde os homens vivem sua armada vida, para o acontecimento fora o ambiente técnicocientífico-informacional. A partir das perspectivas de Bataille, todos em algum momento podem violentar-se em prol da satisfação dos desejos mais reprimidos. Como zumbis, os personagens de Crash caminham à espera do momento sagrado do extermínio ou do 82 autoextermínio mediado pela tecnologia. A patologia do trânsito automotivo aparenta uma guerra, não com os mesmos mecanismos literalmente, mas de qualquer maneira com a presença simulada da virulenta destruição, auxiliada pela publicidade sobre os auspícios da técnica. 83 PARTE III: CRASH: A MÁGICA REVERSÃO E O APROFUNDAMENTO IRREVERSÍVEL Mas, no crime perfeito, é a perfeição que é criminosa. Tornar o mundo perfeito é dar-lhe acabamento, completá-lo – e, por conseguinte, encontrar para ele uma solução final Baudrillard 3.1 O gozo mais que patológico: as ruínas protéticas da confusão contemporânea A ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão Huxley A humanidade continua sendo salva pelas bênçãos de Deus cedidas por intermédio do Papa aos automóveis Ferrari38, abaixo de sua fenestra na Praça São Pedro, no Vaticano. Quantas vezes é possível observar, atualmente nas ruas adesivos “ nos pára-brisas “ ” ” “ ” Essa visão de desenvolvimento está implícita nas várias camadas da sociedade, a lei do progresso é gerar frutos materiais; para Baudrillard (2006) “ ê ” A imagens de Deus nos antigos altares e oratórios, cedendo espaço aos designs das telas sobrepostas nas estantes: Deus tornou-se mesmo hiper-real nas ambiências dos designs interiores, das casas ou dos corpos, tornando o privado em coletivo e o coletivo em privado. Seria esse fenômeno a privatização da coletividade priorizando a globalização da técnica em contraposição ao universal: “ ” “ ” x enganadora. A universalidade diz respeito aos direitos do homem, às liberdades, à cultura, à democracia. A globalização refere-se à 38 TERRA. Papa abençoa Ferraris na Praça São Pedro. Notícias Terra. 2005. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/mundo/novopapa/interna/0,,OI558865-EI4832,00Papa+abencoa+Ferraris+na+Praca+Sao+Pedro.html>. Acesso em: 09 de jul. de 2013. 84 tecnologia, ao mercado, ao turismo, à informação. A globalização parece irreversível enquanto o universal estaria mais para a via de desaparecimento (BAUDRILLARD, 2003, pp. 51-52). Baudrillard (2003, p. 53) explica que o processo de globalização mercadológica diminui consubstancialmente a universalização dos valores e que o pensamento único tem triunfado sobre o universal. Todo esse universo gira em torno do espectro da “ ” (BAUDRILLARD, 1992, p. 13). A fala do personagem Ballard ilustra a condição social em direção a um pensamento único “A sido bombardeado sem parar por propaganda de segurança no trânsito, estou quase aliviado por ter- ” Figura 12 – Cena do filme Crash. O nível do plano que incide sobre Ballard é o vertical. O ponto de vista é denominado câmera alta. Esse ângulo passa a sensação de que Ballard está incumbido de uma tarefa maior, se o acidente real já foi um alívio, isso leva a crer que ele participará de mais desastres. A simulação da técnica volatizando todos os valores relega ao poder a condição de mero aparelho reprodutor no qual todas as ideologias, crenças e doutrinas gravitam na satelização em torno dessa necessidade imperiosa de reprodução econômica dos objetos. Para os sistemas de signos sobreviverem, os capitais tem que se mover em todas as direções com as respectivas características de cada época e espacialidade. Projetos de inclusão ou algo que se aproxime disso (Bolsa Família, Bolsa Escola, Bolsa Prostituta...) não passam de necessidade do próprio sistema pela normalização e enquadramento das funções de reprodução, consumo e simulação em funcionalidade total, política e independentemente de direita ou de esquerda. 85 A publicidade trabalha no intuito de absorver as mentes, para que assim, continue passivo o poder de compra dos corpos que ao mesmo tempo também são seduzidos e consumidos pelos signos, tanto aqueles das propagandas quanto os que estão fora delas. Diante disso, Baudrillard (1992, p. 13) explica ainda que ingênuo é, qualquer movimento que acredite subverter ou transformar os sistemas por sua infraestrutura, pois a sedução está no avesso de qualquer pretensa imersão no real: psicologia, anatomia, verdade, poder, revolução... O momento do acidente foi quando Ballard se sentiu mais vivo, pois durante sua vida já tinha sido revertido em marca mercadológica. Provavelmente isso ocorra com os artistas cênicos bem como os participantes dos reality shows que se submetem à hiperexposição: saem das suas vidas supostamente “ “ ” ada serve jogar ser contra ser, verdade contra verdade, eis aí a armadilha de uma ê ” (BAUDRILLARD, 1992, p. 13). Baudrillard (1992, p. 13) afirma que nada pertence à sedução, apenas as aparências, o que lhe é suficiente para reverter através de domínios e estratégias essas mesmas aparências39. As leis contra a bebida alcoólica antes da pilotagem são criadas e reformuladas no intuito punitivo, mas a exposição da publicidade exerce função conotativa contrária às leis, pois o que é mencionado constantemente é a velocidade infligida pelos automóveis, a hibridização do corpo com a máquina40 e o incentivo ao consumo de bebidas alcoólicas. No caso das propagandas de educação no trânsito, exibem acidentes como tentativas de regulação negativa, mas o efeito aparente é o contrário, ou seja, as imagens da destruição seduzem com maneiras mais ou menos eficazes, porque não deixamos de ver desastres automobilísticos nas estradas, e em parte deles com motoristas alcoolizados. Em Crash ocorre a contemplação das colisões por parte dos personagens quando se sentam na sala de Vaughan para assistirem às cenas de testes de segurança dos automóveis e ao mesmo tempo, masturbam-se uns aos outros. Nessa passagem a 39 A questão da pedofilia, por exemplo, tem engendrado incessante discussão em vários âmbitos judiciais enquanto garotas de menoridade perante a Lei, são exibidas constantemente como troféus pelos meios de comunicação, incitando o consumo da imagem da ninfeta. Logo, o que vem primeiro é a sedução do simulacro, ficando a Lei ou o poder judiciário em plano posterior, na reversão e no paradoxo. 40 FORD. A máquina perfeita. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=F176wikLULQ>. Acesso em: 04 de outubro de 2013. 86 Doutora Remington excitando-se pede para rever os vídeos em slow motion: “Vamos ver de novo em câmera lenta de perto... - Quero dizer, em detalhes” (Remington). Enquanto Vaughan afirma que os vídeos levados por ela são muito bons, pois trabalham a “tolerância da face humana em acidentes” (Vaughan). Figura 13 – Cenas do filme Crash. Essa sequência é preenchida de raccords que se intercalam entre os personagens. Depois quando a Dr. Remington se levanta um travelling vertical e por fim um travelling em zoom fitando as mãos das personagens. O personagem Seagrave veste um espartilho (espécie de dispositivo sexual e regulador do corpo, prótese: lembremos o caso de Rousseau) que é costurado por sua esposa, mas ao contrário da opinião de Rousseau que era contrário ao uso do espartilho, Seagrave sente prazer ao colocá-lo: ele se massageia como se tivesse seios já imaginando a simulação do acidente de Jayne Mansfield. Enquanto isso, todos assistem aos acidentes colecionados por Vaughan. O espartilho aqui funcionaria como mais um signo de indefinição sexual e hibridismo das próteses com o corpo. Nesses momentos do filme, a exemplo do que é discutido por Baudrillard (1992) no decorrer da obra Da Sedução, os posicionamentos entre feminino e masculino são colocados em cheque, pois diante dos modelos exibidos nas telas, as diferenças ou indiferenças entre eles podem não passar de jogos de simulação impostos pela histórica violência do sexo hibridamente neutralizado. 87 Figura 14 – Cena do filme Crash. Enquanto a esposa de Seagrave é focada ajeitando o espartilho, costurando-o junto ao corpo do esposo para que fique com as suas medidas; Vaughan aparece num plano posterior sentado numa poltrona. Gabrielle, um pouco desfocada, aparece sentada mais ao fundo à direita. A câmera em travelling, da esquerda para a direita, revela aos poucos que a Dra. Remington e Ballard também estão no ambiente. Em momento mais exasperado há também a cena em que Ballard e Vaughan se beijam e transam atrás do banco de um automóvel, em sinal extremo e desesperado pela busca de sentido para seus atos. No fundo, aquele comportamento não passa de banalidade funcional, estão apaixonados não por eles, mas pelo jogo de signos (Vaughan inicia o ato beijando a tatuagem que Ballard acabara de fazer) como exposto por Baudrillard (1992, p. 17) no capítulo a Eterna ironia da comunidade: com o exemplo dos travestis, Baudrillard afirma que é o jogo e a sedução dos signos que os apaixona: maquiagem, teatro, sedução: “ aródia ” triunfante, resolução pelo excesso, por hiper (BAUDRILLARD, 1992, p. 20). Seria esse fenômeno para ele mais um reflexo da sociedade hiperespetacular que faz da exaltação do sexo, jogo total. O imaginário passa a copiar os modelos existentes, realizando uma constante modificação técnica e constituindo infinita insatisfação, resultando na banalização e artificialização do corpo. Logo, o corpo não perde a sua importância, mas adquire tão somente uma função prazerosa imediata e funcionalista. “ das Luzes, que visa a liberar o sexo servil, as raças servis, as classes servis nos próprios ” (BAU R AR 1992 23) B (1992 25) salienta ainda que chegamos à era da pílula, da determinação do gozo e da racionalidade da pílula. 88 A transubstanciação do sexo, seduzido pelas imagens e pela máquina, é mais uma característica psicologicamente violenta esboçada em Crash “A do sexo nos signos, que é o s ” (BAU R AR 1992 18) Em Crash, esse fenômeno anula tanto o masculino quanto o feminino, o que sobra são os signos e as novas feridas abertas na pele. Seagrave é a própria representação da paródia super-simulada e Vaughan a ironia hiper-sexualizada em meio à falta de sentido promovida pelos infinitos signos de gozo, assim como os órgãos sexuais artificiais (próteses) vendidos nas lojas sex shop. Pois tentaram libertar o sexo servil, mas o prendeu na objetivação dos signos. O gozo assumiu a investidura de uma exigência e de um direito fundamental, mas a imposição de um direito torna-se dever. Gozo sem estratégia, apenas energia em busca de seu fim, é a própria comiseração (piedade) das diferenças sexistas impostas à humanidade e aos seus gêneros em prol de uma cultura que produz tudo, que faz tudo falar, tudo gozar, tudo discorrer à imposição do direito, da superexposição do sexo e do estatuto do gozo como prova multiplicada da liberdade sexual (doxa da libertação sexual de um lado e doxa da depressão do outro, aja dor de cabeça) Tudo em exagero, essa é a regra dos sistemas sígnicos, esses sistemas sempre querem dar mais. Aumentar os abismos cavados com os falos da destruição e depois com a reversão dos mesmos, em deliberado discurso feminista. Quem o diga da Torre Eiffel, modelo fálico, metal iluminista (assim como os automóveis) hoje enferrujado, dissimuladamente enterrado na também simulada crise financeira do sistema capitalista internacional globalizado. Para Baudrillard (1992), a hiper-realidade já não é da ordem do imaginário, é da ordem da mais-referência, da mais-verdade, da mais-exatidão ao passar tudo para a evidência absoluta, uma visão que persegue a sedução à força de visibilidade. Segundo Baudrillard (1992, p. 38), repressão absoluta que dando um pouco demais corta tudo. “ ” (BAU R AR 1992, p. 38). A hiper-realidade sempre aparenta ser esse ente paradoxal, dá com uma mão e tira com a outra, restando a objetividade vazia dos signos: [...] a perfeição técnica, a alta fidelidade, tão obsessiva e puritana... nem mesmo sabemos a que objeto ela é fiel, pois ninguém sabe onde começa e onde acaba o real, nem portanto a vertigem de perfeição que se obstina em reproduzi-la. [...] o real torna-se um vertiginoso 89 fantasma de exatidão que se perde no infinitesimal (BAUDRILLARD, 1992, pp. 38-39). A limpeza do corpo, assepsia total. No texto Porno-estéreo, Baudrillard salienta “ z cular ” (BAUDRILLARD, 1992, pp. 42-43), criando uma cultura da dessublimação das aparências, na qual tudo se materializa nas espécies mais objetivas, até a própria aparência, materializa à força o “ que pertence ao segredo e à sedução. Ironicamente, Baud cultura da ejaculação precoce, sendo a própria sedução seduzida e revertida em ” (BAUDRILLARD, 1992, p. 47). Cada vez mais qualquer processo de sedução apaga-se devido ao imperativo do entretenimento da pornografia, deslocando o centro de gravidade para a economia libidinal de funcionamento mecânico, sobretudo ao imaginário do recalque e da liberação, como se um fosse o bem e o outro o mal. B “ z x acelerada do psíquico, do sexual e dos corpos é a réplica exata que rege o valor ” (BAUDRILLARD, 1992, pp. 47-49), assim como Zygmunt Bauman (2001) na obra Modernidade Líquida, utiliza-se da metáfora da liquefação demonstrando que a solidez das instituições da sociedade global se desfaz, empreendendo com que os laços afetivos e sociais não tenham mais apenas uma forma, assim como os líquidos que se adaptam aos recipientes ou se espalham em todas as direções quando não há paredes que os retenham. Essa liquefação (ou liquidação) das sólidas instituições do passado explicita um tempo de desapego e provisoriedade, uma suposta (simulada) sensação de liberdade traz em seu avesso a evidência do desamparo social em que se encontram os indivíduos. O ato de dirigir evidenciado em Crash representa essa simulada liberdade. Quantas vezes não vemos por aí, indivíduos que colocam seus órgãos sexuais nos volantes? Os relacionamentos em suas várias instâncias transformam-se em micaretas. Voláteis e fluídos remetem a uma falsa sensação de leveza e descompromisso que é muitas vezes associada à liberdade sexual, simulada e divulgada diariamente pelos meios de comunicação, aspectos esses que sustentam a sociedade de consumo. Vê-se em Crash que os casais não se submetem a uma relação duradoura, desencantados “ B “ x ” B ” 90 O corpo não tem outra realidade que não a do modelo sexual e mecânico influenciado constantemente por um mercado consumidor, produtivo e funcionalista. Em Crash, a sexualidade é transtornada em modo de produção e circulação dos objetos, gerando outros modelos de repressão e o próprio corpo tornado anticorpo. Baudrillard (1992, p. 50) afirma que a sexualidade como é ensinada e afirmada, é sem dúvida, como a economia política, uma montagem, simulacro que as práticas sempre frustraram como qualquer outro sistema. Sendo assim, a transparência sexual-tecnológica de Crash nunca foi maior que a da era econômica, na hiper-realidade as duas caminham a passos largos e em conjunto, direcionando os corpos para a funcionalidade total, pois: O real nunca interessou a ninguém. Ele é o lugar do desencantamento, o lugar de um simulacro de acumulação contra a morte. O que o torna fascinante é a catástrofe imaginária por trás. Acreditamos que o poder, a economia, o sexo, todos os grandes truques reais tenham um único instante sem o fascínio que os sustenta, o do espelho invertido onde se refletem, de sua contínua reversão, do gozo sensível e iminente de sua castração? (BAUDRILLARD, 1992, p. 57) O suposto conforto gerado pelo acúmulo da sociedade capitalista (consumista) deixaria os organismos mais distantes das doenças e da própria morte, quanto mais objetos adquiridos, mais próxima estaria a salvação, ao mesmo tempo essa condição castra novas possibilidades para a vida. Em Crash, açular cicatrizes é uma maneira de ; ê “ autovirulência febril que os leva a explodir além de seus próprios limites, [...] não na pura tautologia [ ] z ” (BAUDRILLARD, 1990, p. 11). Vivez z “ soberania do objeto e a desumanização ” (PAZ, 1990, pp. 97-101). Os meios se transformam em fins e, como os acidentes em Crash são o objetivo, pode-se afirmar que há o triunfo do signo sobre o significado e da coisa sobre a imaginação. Os novos atores sociais se defrontam com a perda da imagem do mundo e o aparecimento de um vocabulário universal, a exemplo do monólogo coletivo descrito por Galimberti (2006, p. 722) que composto de signos ativos fortalece a técnica, e ainda, a crise dos significados. Enfim, o sujeito então se reverte definitivamente em objeto, seduzido pelos novos modelos de espelhos: as telas, que refletem e objetam “ ” 91 (BAUDRILLARD, 1990, p. 10). As telas absorvem o ser, transportam-no para o virtual, para a luz e o seu excesso ofusca a visão. Essa “sedução é aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua ” (BAU R AR 1992 61) enxergar mais o mundo, mas o mundo exibido nas telas, e a partir disso, segundo Baudrillard (1990, pp. 13-14), a possibilidade da metáfora diminui consideravelmente em todos os domínios: na dor, no prazer, na felicidade ou infelicidade. 3.1.1 Do masoquismo à funcionalidade total – o corpo sistema Em qualquer lugar fora deste mundo Baudrillard “ Por fim, os personagens de Crash veemz ” no extremo deslocar-se pelo emaranhado das redes, sem saber aonde chegar o mais importante é continuar a aprofundar e a abrir novas cicatrizes. Talvez a melancolia dos personagens de Crash “ ” (BAU R AR 1990 14). Para esses personagens, a metáfora das imagens anula-se na desilusão da metonímia técnica. A única hipótese que lhes resta é seguir Vaughan e também, transferindo suas energias, colocarem as suas genitálias nos volantes dos carros. Os personagens de Crash sentem literalmente na pele e em outros órgãos todo o universo cortante da sociedade tecnológica e, por isso, desenvolvem uma espécie de patologia, uma doença provocada pelo exagero técnico. Baudrillard (1991, p. 141) considera que os personagens de Crash não podem nem se dar ao luxo de serem chamados masoquistas, pois não existe um contrato entre os personagens e a tecnologia assim como ocorre nos atos masoquistas entre duas ou mais pessoas. Não há afeto, nem psicologia, nem desejo. Todo o movimento de Crash está preso ao universo da exploração da violência sem limites e o corpo não satisfaz alguma subjetividade, é apenas mais um elemento de funcionamento do sistema, mais uma peça da engrenagem. No texto Sacher-Masoch: o frio e o cruel, Deleuze afirma que no masoquismo “[...] é a vítima que fala através do carrasco, sem comedimento” (DELEUZE, 2009, p. 92 25). No masoquismo ou ainda no reducionismo psiquiátrico: o sadomasoquismo, existe o olhar, a dor e o prazer. No masoquismo de Sacher-Masoch existem trocas simbólicas e até afeto. As práticas sexuais são regulamentadas, formalizadas, ditas e prometidas. Já em Crash, não existem vítimas ou olhares dialéticos, as pessoas ali são apenas funcionais, só isso, mal direcionam seus olhares umas às outras. Em Crash não há prazer, somente o resto: “[...] quem, do real ou da imagem, é o reflexo do outro?” (BAUDRILLARD, 1991, p. 176). Em Crash, quem reflete quem, o carro ou o corpo? Mesmo na cena em que Ballard e Catherine, simultaneamente transam e conversam sobre o desejo de Catherine de ficar com Vaughan, o que é demonstrado é o interesse pelas modificações técnicas, o que importa são os signos, porquanto ela questiona se Vaughan estaria circuncidado: - Deve ter ficado com muitas mulheres naquele carro enorme. É como uma cama sobre rodas. Deve cheirar a Sêmen (Catherine); Sim, cheira (Ballard); - Acha-o atraente (Catherine); - É muito pálido. Coberto de cicatrizes (Ballard), - Gostaria de transar com ele naquele carro? (Catherine); - Não. Mas quando ele está naquele carro... (Ballard); - Já viu o pênis dele? (Catherine); - Acho que está cheio de cicatrizes de um acidente de moto. (Ballard); - Será que está circuncisado? Pode imaginar como é que o ânus dele é? Descreva-me. Gostaria de sodomizá-lo? Gostaria de pôr o seu pênis dentro do ânus dele? Enfiá-lo bem no ânus dele? Diga-me. [...]. Descreva como o seduziria. Abrir o zíper do jeans engordurado. Tirar o pênis para fora. Beijaria e chuparia logo em seguida? (Catherine). Figura 15 – Cena do filme Durante Crash. essa cena o movimento de travelling se faz presente novamente. A câmera adentra o quarto do casal da esquerda para a direita, passando pela transparência dos vidros, dando a impressão de que o telespectador é quem entra no quarto. Logo após, um corte em close-up para o rosto de Catherine que possui expressões sutis durante o ato sexual 93 Por mais que tenha algum tipo de masoquismo nesse diálogo, o falar e o sentir algum tipo de afeto, o enredo culmina na técnica. O destino final do desejo de Catherine é o projeto de Vaughan, e esse projeto não é masoquista, mas técnico. O sexo representaria assim mais um elemento da reprodutibilidade técnica, ou seja, o desejo não é mais da parte da organicidade, mas da máquina e dos signos que as circundam. O excesso e a violência em Crash ultrapassam o masoquismo fantasioso, pois a violência feita ao corpo é uma violência de destruição total sem oportunidades para algum tipo de reversão, o processo é de aprofundamento e irreversível. Vaughan salienta em uma de suas falas: “- É algo... No qual estamos todos intimamente ligados. A reformulação do corpo humano através da tecnologia moderna” (V ). Figura 16 – Cena do filme Crash. Close-up no rosto de Vaughan para valorizar a sua fala com a imagem. O corte e suas cicatrizes em seu rosto evidenciam as modificações no corpo. Numa outra cena, logo após a morte de Seagrave e ao observarem as imagens de um acidente que envolveu vários veículos, eles partem para lavar o carro de Vaughan num lava-rápido. A retrátil capota do conversível de Vaughan se fecha juntamente com os vidros, e finalmente, sobre os rolos de lavagem, Catherine e Vaughan transam. As borrachas longilíneas pingam, espuma como se fossem falos ejaculando. Os vidros transparentes são preenchidos pela espuma e dentro do automóvel os três parecem estar num invólucro de esperma. Catherine e Vaughan despem-se e como numa grande máquina síncrona o carro penetra o lava-rápido assim como Vaughan penetra Catherine e solicitamente a espanca. Enquanto isso Ballard utiliza-se novamente do retrovisor para acompanhar todos os movimentos. 94 Figura 17- Cenas do filme Crash. Nesta sequência, Ballard, Catherine e Vaughan estão dentro do carro prestes a entrar no lava-rápido. À esquerda, a câmera é olhar com, o espectador é convidado a sentar no banco do passageiro e entrar no lava-rápido junto com os personagens. À direita, no desenrolar da sequência, mais um travelling: o automóvel entra no lava-rápido, mais alguns raccords e o ruído dos limpadores, em meio aos gemidos dos personagens. Pode-se compreender que os personagens apresentam algumas características masoquistas, mas essas se perdem diante do imperialismo dos signos. Por mais que aja dor, submissão ou prazer, os personagens não estão ali em prol de afeto, fantasias ou trocas simbólicas, mas sim, do comprometimento com os dispositivos técnicos representados pelo carro, logo, tudo se anula. Anulando o corpo como mais um signo, há, no fundo de todos os movimentos apáticos dos personagens, uma tenra decepção com a organicidade e a possibilidade de transformá-la. Decepção que leva Vaughan a procurar a “reformulação do corpo humano através das tecnologias”. Enfim, não a fantasia masoquista, mas, no sentido fáustico, a transcendência funcional da organicidade. 3.2 O meio é o fim da passagem Drive-thru O imaginário da Disneylândia não é nem verdadeiro nem falso Baudrillard 95 Gerry Coulter (2013), no artigo Jean Baudrillard and Cinema: The Problems of Technology, Realismand History escrito para o Journal Film-Philosophy, cita uma entrevista cedida por Baudrillard publicada no livro Baudrillard Live: Selected Interviews pela editora Routledge, na qual ele afirma que ainda era apaixonado por cinema, que dentre todos os espetáculos era ainda o único que ele gostava, mas que o cinema chegou a um estado desesperador. Gerry demonstra que as posições de Baudrillard são de que os filmes estão se tornando cada vez mais tecnologizados e seguem em direção a uma indefinível perfeição. Ao contrário, Crash é um filme que não sofre com os deleites do exagero tecnológico e da hiper-realidade, claro que recorre a efeitos e técnicas, mas não se deixa levar totalmente por elas. Crash é um filme que não se entrega totalmente à materialização e a sedução dos signos e que ainda tem espaço para a representação e do olhar compromissado com a estética da sétima arte. O filme possui aspectos que podem gerar algum tipo de subjetividade (mesmo que renunciada por alguns justamente por se tratar de fenômenos recorrentes ao cotidiano) e, por isso, contradiz em certa medida as mesmices às quais os imaginários, corriqueiramente são acostumados a aceitar. Com relação às mesmices da produção cultural e à padronização das subjetividades Guattari explica: A subjetividade padronizou-se através de uma comunicação que elimina, ao máximo, as composições enunciativas trans-semióticas (desaparecimento progressivo da polissemia, da prosódia, do gesto, da mímica, da postura, em proveito de uma língua rigorosamente assujeitada às máquinas escriturais, e a seus avatares mass-midiáticos. Em suas formas contemporâneas extremas, tal subjetividade tende a se reduzir a uma torça de fichas informacionais, calculáveis por quantidade de bits e reprodutíveis por computador. (GUATTARI, 1992, pp. 133-134) Para Guattari, esses modelos devem ser considerados, a título de produção de subjetividades, inseparáveis dos dispositivos técnicos e institucionais que os promovem e de seu impacto sobre a psiquiatria, o ensino universitário, os Mass media e todo o universo que preenche a Pop Arte. Há de se lembrar que duas características contribuem fundamentalmente para o sucesso do Cinema Pop: seu próprio conteúdo de entretenimento que alivia e domina ao mesmo tempo; e o capital dispensado em 96 propaganda de divulgação de seus conteúdos. Rosangela Fachel de Medeiros (2013, p. 225), em estudos sobre Roy Lichtenstein, afirma que: A A , mas sim como uma denominação que busca re-agrupar fenômenos artísticos intimamente ligados [ ] A programa comum. Manifestação essencialmente ocidental, nascida no contexto de uma sociedade industrial, capitalista e tecnológica. (MEDEIROS, 2013, p. 225) Antes mesmo da sua exibição, a Pop Arte é divulgada incessantemente nas propagandas durante os intervalos das programações refletindo o espírito de reprodução dos signos no capitalismo informacional. Os filmes pertencentes a esse gênero estão “ condicionados a serem exibidos em shoppings centers, “ centralizar e dinamizar o consumo de produtos ” A ” chama “ intercepte, modele, controle e assegure os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos ” (AGAMBEN, 2009, p. 40), assim como os automóveis desenvolvem em Crash a função de dispositivos que seduzem os personagens. Todas as características dispensadas por Agamben, com relação aos dispositivos, engendram melancolicamente a vida dos personagens de Crash que tendem ao escapismo do acidente. J.G. Ballard (2007) afirma que a relação entre realidade e ficção está sendo “ regido por ficções de todos os tipos - o consumo de massa, a propaganda, a política conduzida como um ramo da propaganda, o pré- z [ ]” (BA AR 2007 08) com esse autor, os meios não são meros canais de passagem dos conteúdos, veículos de transmissão das mensagens, mas influenciam diretamente no comportamento dos indivíduos e até em seus utensílios (quantas vezes se vê pelas ruas modelos de acessórios, vestimentas ou quaisquer outros objetos utilizados pelos atores celebridades) “ ú cio como nunca se sonhara antes. O banheiro, a cozinha, o carro e tudo o mais que aparecia tinha que ser como nas cenas de um filme” (MCLUHAN, 1974, p. 260). Esse autor salienta ainda que quando o cinema surgiu, todo o padrão da vida americana foi para as telas como se fosse um anúncio sem pausas. 97 Angela Dilmann Nunes Bicca (2013), em sua tese de doutorado intitulada: Os filmes de ficção científica nos ensinando a viver em uma civilização cibernética, afirma que o cinema funciona como uma importante Pedagogia Cultural. Segundo essa autora, o cinema educa ao exibir a ligação entre as tecnologias comunicacionais e informacionais dentro do contexto da Nova Ordem Mundial. Dessa maneira, o cinema estaria propiciando transformações nos modos de viver e habitar o mundo engendrando novos imbricamentos entre corpos orgânicos e tecnologias. Bicca (2013) ainda afirma que os filmes de ficção científica têm operado na configuração, altamente tecnológica do mundo e dos sujeitos que nele viverão e que a partir de representações que exacerbam tendências sarcásticas, estruturam as sociedades contemporâneas. Nesse jogo cibernético não há real nem imaginário, mas funcionalidade e controle totais. Apenas contínuo e aprofundado distanciamento entre real e imaginário, reprodução dos modelos dos modelos, em direção a uma hiper-realidade ainda mais z “ ” (BAU R manipulação em todos os se AR 1991 152) Em Crash, os automóveis tanto quanto o corpo se comparam com os autômatos cibernéticos, sendo assim, os corpos e os carros hibridizados concorrem para o status de “ ” ransmitem a ideia de celebridade: Quando aparece um novo meio ou ocorre uma nova extensão humana, este meio cria um novo mito por si mesmo, em geral associado a alguma personalidade histórica: Aretino, o Flagelo dos Príncipes e o Boneco da Imprensa; Napoleão e o trauma da revolução industrial; Chaplin, a consciência pública do cinema; Hitler, o totem tribal do rádio; e Florence Nightingale, a primeira cantora da miséria humana pelo fio telegráfico. (MCLUHAN, 1974, p. 282) “ A ú A ”( U A 1974 282) Os meios tornam-se os fins e os significados menos importantes, os suportes criam as celebridades e os personagens de Crash tentam reviver a aventura dessas celebridades. No prefácio da obra Os meios de comunicação como extensões do homem, McLuhan (1969, p. 18) afirma que “ A ú ” que obriga ao compromisso e à participação, independentemente de qualquer ponto de vista. Não entender os acontecimentos, mas passar por eles, apenas viver no invólucro das simulações dos modelos de celebridades. Ao contrário da extinção dos mitos, 98 estariam eles ressuscitados na forma de telas: o consumo aperfeiçoado, as artes postiças, a vida efêmera, tornando os homens ainda mais esfomeados. Difusão das narrativas que vão dos questionamentos para a aceitação e a educação como num ritual de passagem refletindo a cultura na espacialidade drive-thru. Sexo, automóvel e cinema são enfatizados nesse tipo de arquitetura da passagem, drive-in ou drive-thru que se globaliza, assim como os shopping-centers. Nesse tipo de instalação, os clientes são servidos sem precisar sair do carro. Serve-se de tudo, desde medicamentos, passando pelos alimentos, chegando até o ato sexual. O documentário, América41, de João x 1992 x “TV ” (que inclusive cita Baudrillard), discute a cultura drive-in e reflete o universo fast-food da alma e do corpo. O documentário demonstra que não é preciso entrar nas instituições financeiras norte-americanas, pois é possível passar por elas, aspecto que reflete a necessidade de girar rapidamente os capitais, assim como é preciso comer rapidamente para não gastar o tempo, pois a produção está à espera. Em suas igrejas Drive-in, os motoristas estadunidenses escutam através das ondas radiofônicas suas liturgias e ao final do culto, não se faz sinal da cruz ou algum “ z de Moreira Salles, narrada na voz de José Wilker, a América apresenta” - ”. Na visão “ “ ” Dessa maneira os americanos celebram a conquista do seu ideal protestante e a materialização de seus espíritos. 3.2.1 Enfim, a morte da ficção científica 41 AMÉRICA. Documentário. [1992]. Dir. João Moreira Salles. Disponível <http://www.youtube.com/watch?v=6-2k7JDZi_s>. Acesso em: 15 de junho de 2013. em: 99 Abandonemos a ficção científica Baudrillard No livro O que é ficção, a professora Ivete Walty (1989, pp. 09-12) questiona: Aí não tem ficção? Com o exemplo da criança que não entende o termo ficção e o relaciona com os discos voadores das histórias contadas pelos adultos, a autora justifica o interesse e a necessidade de se refletir a relação entre realidade e ficção; e a função da ficção em nossa sociedade. A partir desse exemplo, a autora conceitua ficção científica como narrativas verbais ou fílmicas às quais os enredos se baseiam no desenvolvimento científico e suas consequências no tempo e no espaço. Para Deleuze e Guattari “o simulacro, a simulação de um pacote de macarrão tornou-se o verdadeiro conceito, e o apresentador-expositor do produto, mercadoria ou obra de arte, tornou-se o filósofo, o personagem conceitual ou o artista” (GUATARRI, 2010, p. 19). De acordo com Walty, Deleuze (1989, pp. 27) tenta a reversão quando salienta que a função do simulacro é subverter a ordem hierárquica do modelo, da cópia ou do próprio simulacro revelando que tudo é simulacro, tudo são sombras. Para Walty (1989), o fato de existir o simulacro permite a discussão da legitimidade tanto do original quanto da cópia. Nesse sentido Deleuze questiona o nível de vergonha social quando da apropriação dos conceitos por parte das disciplinas da comunicação: [...] o fundo do poço da vergonha foi atingido quando a informática, o marketing, o design, a publicidade, todas as disciplinas da comunicação apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os criativos, nós somos os conceituadores. Somos nós os amigos do conceito, nós os colocamos em computadores. (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 19) Detectando isso, Deleuze pensa a Filosofia como uma força capaz de reverter o próprio conceito de simulacro. Mas os risos de Deleuze ao tentar reverter os conceitos em funções, para Baudrillard soam idealistas, pois para esse último “o imaginário era o álibi do real, num mundo dominado pelo princípio de realidade. Hoje em dia é o real que se torna álibi do modelo, num universo regido pelo princípio de simulação” (BAUDRILLARD, 1991, p. 153). E não é por causa do mapa já está maior que o território que a ficção científica não tenha ainda funcionalidade, ou seja, a conquista do 100 espaço proporcionou a reversão deste em pixels, uma desrealização do espaço real e a expansão do espaço virtual. Mesmo que o virtual faça parte da vida, ele ultrapassa os limites dos póssupostos, pois se instala nos cérebros ao ponto de desvirtuá-los. Em que sentido é possível afirmar isto? No sentido de que: 1+1 = 1. “[...] é o simulacro que está primeiro, com fins dissuasivos, os de curto-circuitar antecipadamente toda a possibilidade de comunicação (precessão do modelo que põe fim ao real)” (BAUDRILLARD, 1991, p. 105). Ainda segundo Baudrillard (2001, p. 44), existe hoje uma fascinação pelo virtual e o conjunto de tecnologias que o formam (gadgets) e se ele é um modo de desaparecer, esta seria uma opção da própria espécie (obscura, mas deliberada), a escolha de clonar o corpo e outros bens em outro universo. De humanos para uma espécie artificial. A ficção científica não teria mais o seu caráter, digamos ingênuo, de brincar com a exploração e com a descoberta, mas seria hoje o contrário e, através de uma pedagogia ou psicologia, impõe suas normas, suas regras. “A Disneylândia é colocada como imaginário a fim de fazer crer que o resto é real, quando toda Los Angeles e a América que a rodeia não são reais, mas do domínio do hiper-real e da simulação” (BAUDRILLARD, 1991, p. 21). Assim, entende-se que para Baudrillard não haveria novas maneiras de fazer ou de pensar, a espacialidade cede lugar ao plano ficcional e o tempo deixa de ser alçado pelo mero movimento natural. Hoje a ficção mata aquilo que deveria ser a sua essência, a magia, a poesia, a criação, e instaura o senso comum, ou o bom senso. Os sistemas utilizam-se da necessidade de prazer, de fantasia e transformam essa dependência em repressão, em verdade oficializada. Segundo Baudrillard (1991, p. 156), Crash é sem dúvida o modelo atual desse tipo de ficção. O que faria diferença em Crash seria justamente o seu potencial de comparação com a realidade. A ficção científica já não está em lado algum, mas está em todas as partes na flutuação dos modelos axiomáticos de simulação. A ficção que antes inventava o irreal agora é que determina o real. A projeção é hoje antes o contrário, vem do cinema, das telas para o social, para o espaço e para o tempo. Os corpos são restos das cibernéticas telas e se encontram em estado de mutação, pois, as propagandas dos modelos enunciadas através da ficção, decretam também a extinção do corpo como parte orgânica do cosmos. Paula Sibilia (2002) cita o exemplo da Miss Brasil de 2001, “cujo título foi questionado quando veio a público que seu corpo fora submetido a uma longa ”( B A 2002 64) -se 101 então como uma obra da tecnociência construída por bisturis e elementos químicos como as próteses de silicone42. Sibilia (2002, p. 78) ainda salienta que a técnica não saiu dos laboratórios, mas os laboratórios tecnocientíficos passaram a ajustar-se às dimensões do mundo: saíram da escala local para a global (inclusive em modelo de ficção científica). Virtualmente a ficção exerce papel preponderante de propagação e propaganda para a continuidade dessa funcionalidade “ z ê – [...] é o fim ” (BAU R LARD, 1991, p. 154). A flutuação dos modelos que paira sobre os cérebros põe fim à ficção científica, estaria aberto então o campo de forças das simulações cibernéticas. Ficção, genética e informática chegam na forma de uma avassaladora legião da boa vontade, dirigindo o seu potencial aos consumidores do mercado global. A ficção está morta porque ficou para trás, o mercado a ultrapassou. 3.2.2 O presságio do virtual43 em Crash A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro Adorno e Horkheimer Contínua é a caminhada sob as Luzes ou Esclarecimento (Aufklärung): “[ ] a autonomia prometida pelas Luzes teve por consequência última uma alienação total do mundo humano, submetido ao peso terrível destes dois flagelos da moderni ” (LIPOVETSKY, 2004, p. 16). O cinema, tanto quanto outro meio de comunicação, é um método de aperfeiçoamento dos modos de vida envoltos na técnica e no liberalismo comercial 42 ORLAN. Successfull Operation. Paris. [1991]. Disponível em: <http://www.orlan.eu/works/photo-2/>. Acesso em: 05 de dezembro de 2013. 43 Para a melhor compreensão do termo virtual consultar as obras: ZOURABICHVILI. François. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. LÉVY, Pierre. O Que é Virtual?.Trad. Paulo Neves. Rio: Editora 34, 1996. 102 descrito por Lipovetsky. Os filmes apresentam maneiras de violência, construção e destruição de imaginários que são absorvidos como modos de uma suposta verdade. Eles geram um tipo de gozo, fuga ou prazer na construção/destruição ao liquidar novas perspectivas estéticas ao passo que seus tautológicos conteúdos são reproduzidos numa velocidade quase que ininterrupta. Bauman (2001), no que denomina modernidade líquida, afirma que as condições sob as quais vivem os membros das sociedades contemporâneas mudam num tempo mais curto do que o necessário para a consolidação dos hábitos e rotinas e das suas formas de agir. Portanto não há tempo suficiente para emancipar-se diante da alienação dos modelos e da acelerada velocidade de mudança: [...] toda essa comunicação é no fundo apenas um enredo forçado, uma ficção ininterrupta que nos supre o vazio, o da tela tanto quanto o da nossa tela mental, do qual espreitamos as imagens com igual fascinação. A imagem do homem sentado, contemplando num dia de greve sua tela de televisão vazia, constituirá no futuro uma das mais belas imagens da antropologia do nosso século (BAUDRILLARD, 1990, p. 19). Num primeiro momento imaginava-se que os filmes de ficção criariam um tipo de crítica social frente à tecnologia, pois trabalham filosoficamente temas relativos ao desenvolvimento do processo tecnológico e do comportamento do homem frente às inovações, mas o que vem acontecendo é justamente o contrário, uma pedagogização tecnológica e a reversibilidade dos imaginários que se materializam a todo novo lançamento cinematográfico; o que mais chama a atenção dos espectadores são os suportes e os efeitos especiais. Prometheus44 e a nova versão de Star Trek45 são filmes que exemplificam essa questão. Esses filmes demonstram as mudanças e o aprofundamento na área da genética e das mutações dos corpos. Em Star Trek - Além da Escuridão o capitão James Tiberius Kirk é trazido à vida novamente pelo sangue modificado de um de seus inimigos, John Harrison, que foi criogenizado (assim como o corpo de Walt Disney) há aproximadamente 300 anos por se tornar superior ao restante dos seres humanos através da modificação de seus genes, motivo considerado ameaçador para o resto dos mortais. Já em Prometheus, um robô que apresenta inteligência artificial propicia situações para a reprodução dos extraterrestres nos organismos humanos. Ele burla os sistemas de 44 PROMETHEUS. Diretor Ridley Scott. EUA: Fox Filmes. Ficção científica. 2012. 150 min. ALÉM DA ESCURIDAO: Star Trek. Diretor J.J. Abrams. EUA: Paramount Pictures. Ficção científica. 2013. 130 min. 45 103 segurança para descobrir novas possibilidades tecnológicas e genéticas colocando em situações de risco todo o restante da tripulação. As discussões levantadas por esses modelos de filme sofrem uma reversão, e já aparentam uma, para além de real, versão. O caráter de verdade é mais uma vez depositado nos aspectos tecnológicos, daí a educação ou modelação dos espectadores. O que era trabalhado por Vaughan como projeto, está se consolidando. A junção entre tecnologia e corpo apresenta-se nesses dois últimos filmes não só como um modelo estético, mas a realização de uma ciência que não se limita apenas em descobrir, â ” ( R U tornou- “ 1997 44) correspondem ao contínuo aprofundamento da imagética virulência tecnológica, pois, acostuma-se a elas e adere-se à naturalização do artificial como normalidade. Contudo, as imagens de violência e destruição dos corpos orgânicos são diretamente relacionáveis o explorada por Crash: o que as palavras de J.G. Ballard e as imagens de Cronenberg pretendiam era lidar com os aspectos psicológicos envolvidos na apreciação da violência e sua relação com a sexualidade proteticamente tecnologizada. Portanto, Crash não pode ser considerado uma obra violenta, mas uma obra sobre a violência que se enraíza ao cotidiano das sociedades globalizadas. Em entrevista cedida para a Folha de São Paulo em 31 de janeiro de 199746, B o imaginário constituído nessa psicologia do automóvel ê misturado ao corpo. A sexualidade que pode haver nos desastres e suas consequências. Essa união atinge seu auge quando da morte de Vaughan. No livro o seu corpo preso à B d e Catherine, que percebem além do sangue a presença de secreções, sêmen no painel do carro, indicando que ele se masturbava enquanto os perseguia. No caso do filme, ele persegue o carro de Chaterine que é dirigido por Ballard, inclinando sua cabeça para trás em sinal de prazer e batendo em sua traseira, até que ele solta um grito e comete suicídio jogando o seu carro de um viaduto. Logo após, sabendo do acidente, a Dr. Remington e Gabrielle vão até o deposito de veículos e transam no restou do carro de Vaughan. Tanto no livro quanto no 46 Entrevista cedida para a Folha de São Paulo em 31 de janeiro de 1997 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq310126.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2013. 104 filme, essas sequências celebram de maneira inseparável a destruição e o prazer no momento do acidente e da morte. Na última cena, Catherine sofre um acidente provocado pelo próprio Ballard que enfeitiçado ao dirigir o carro de Vaughan a persegue como se fosse o próprio. Catherine perde o controle e desce um barranco capotando o veículo. Ballard desce do carro e a observa, vai ao encontro de seu corpo que está estendido no gramado. Sussurrando em seus ouvidos a desperta. Sequencialmente à penetra, promovendo a última cena do filme. A mistura de dor e prazer de Catherine fecha as cenas de Cronenberg e Ballard ironicamente repete a frase que ela havia lhe dito no iníc x “ z z ” Como num ciclo que ainda não se fechou, a frase instiga o momento final e sublime para os personagens, a morte, que no caso de Ballard e Catherine, ainda está por vir. Gozo e morte decretam a intenção de Crash para uma fuga do mundo extremamente tecnologizado e representam o extremo colocado como forma de transgressão frente à hýbris tecnológica. Figura 18 – Cenas do filme Crash. Na sequência final, devido à inclinação do local do acidente, o ponto de vista encontra-se em desenquadramento. Primeiro, o desenquadramento do casal em close-up e depois de um raccord a câmera vai se afastando em zoom, aumentando consecutivamente a distância focal e a profundidade do campo, exibindo o casal junto ao carro. 105 CONCLUSÃO A regra quer a morte da exceção Godard Crash, antes de tudo, é uma obra de arte. Diante de tanta reprodutibilidade de imagens e discursos tautológicos, o filme se destaca pelo seu discurso sincero, no melhor dos bons sentidos: curto e grosso. Crash é literalmente uma navalha na carne e por isso é tão polêmico que ainda consegue surpreender quem o vê pela primeira vez ou quem já o viu várias vezes. Ouve-se por aí, até que algumas pessoas sentem náuseas ao assisti-lo. Sempre se acha algo de surpreendente em Crash. Sua luz, seus diálogos, suas cores... Todos os elementos apresentam-se intensos e com uma densidade muito peculiar. Ao mesmo tempo assombroso e belo, o filme consegue revelar a natureza mortal da combinação corpo e técnica. Demonstra ainda o potencial mortífero da velocidade e do desenvolvimento industrial, representados pela imagem do automóvel. Mantendo alguns diálogos com palavras retiradas do livro, Cronenberg conseguiu manter a integridade da obra literária e mesmo quando não há diálogo, as imagens representam com fidelidade o objetivo de J.G. Ballard. Ballard por sua vez, ao nomear o seu principal personagem com o seu próprio nome, alcança o patamar do conceito de hiper-realidade cunhado por Baudrillard, pois, assim coloca o seu ser entre a ficção e a realidade; fato este que Cronenberg mantém no filme. Ballard e Cronenberg sofrem algum tipo de incômodo relativo ao cotidiano dos grandes centros, desta forma, colocam-se no papel de protagonistas para chamar a atenção da sociedade. Através da alegoria do trânsito, Crash exibe a relação do homem com a tecnologia. Mais que isso, através do projeto de Vaughan, Crash alerta para o futuro da humanidade. Questiona até onde pode chegar o potencial de transformação mortífero da técnica. Assim Crash consegue direcionar o nosso olhar para a perspectiva fáustica, sem limites, na qual o corpo já não é apenas médio funcional, mas direcionado para outro tipo de existência que ainda não podemos definir. 106 A radicalidade de Baudrillard e o extremo mostrado em Crash confluem em direção à reversibilidade dos meios, da ficção e do próprio corpo. A partir daí o mundo demonstra-se irreversível, pois caminha em uma única direção, a ciência e a técnica aprofundam o desvelar ao infinitesimal e a ficção faz seu papel publicitário-educacional, divulgando-as. O corpo é calculado e como qualquer outro objeto é explorado e armazenado para pesquisas que tendem à sua extinção. O patamar do espelho é apagado diante do voyeurismo da exatidão, o zoom em máxima definição faz mostrar o segredo da obscenidade da vida. Crash a partir da imagem do carro e do sexo expõe essa relação dual como uma só, ou seja, o corpo é parte da mecanização da vida. Tudo é uma grande máquina síncrona que, mercadologicamente, produz e reproduz. Os carros que se chocam em Crash podem ser comparados com os carros que se chocam em nossas autoestradas. O acidente pode ser visto como um fato de moralidade ambígua, para além do Bem e do Mal, aparência pura: momento efêmero que não pode ser interpretado ou assumido por algum sentido ou valor, mas que para os personagens de Crash, simultaneamente, é a aproximação da morte e da vida. Como fato midiático, os acidentes demonstram a própria reversibilidade dos sistemas. Os carros chocam-se não para a História, mas para as ondas concêntricas da mídia. As câmeras nada mais conseguem mostrar do que a opacidade de um fato que apenas aconteceu por que as mídias estavam presentes, tornam-se a partir de então em não acontecimentos. Numa estratégia de simulação, a mídia procura racionalizar, traz esses episódios para o seu horizonte de sentido para nos aproximar do ideal de controle e através da catástrofe aterrorizar a população. Todas as alternativas de explicação dos porquês dos acidentes se anulam e se equivalem numa espiral interpretativa sem fim e num terrorismo incomensurável. Crash é a representação de um sistema extremo, que reveste a vida com corpos cicatrizados, nas catástrofes das estradas; e metáfora das circuncisões realizadas em hospitais ou clínicas de estética. É revelação do desencobrimento técnico que transforma os minerais em objetos e em ferragens retorcidas nas redes da destruição de produtos e lixões espalhados pelo globo, pois, se a economia se globaliza, o resto dela também. A hibridização do corpo com a máquina em Crash é a demonstração de como a tecnologia influencia o comportamento de tal forma que sugere a mutação desse 107 mesmo corpo. O corpo seria o próprio objeto final de um processo molecular que entre imagem e técnica passa a ser o fim em si mesmo, até que a biotecnologia e a cibernética o transformem em cyborg. Crash ainda demonstra a duplicação material dos corpos e dos espíritos, o universo do valor-signo e o tédio proporcionado por essa condição protética tecnocientífica, fenômeno que é, no contexto do filme, considerado um tipo de patologia benevolente que se espalha em metástase promovida pela velocidade de transformação dos processos tecnológicos e pela falsa sensação de liberdade. Crash é radical e paradoxal, faz da vida de seus personagens uma confusão gerada pelo exagero tecnológico, resume o descarrego das energias sociais em relações mediadas pela tecnologia, e mostra que o corpo biológico, nas sociedades tecnológicas, já não é mais suficiente na obtenção do prazer. Em Crash está descrita a reversibilidade do sujeito em objeto, o corpo funcional que reflete os seres tecnologicamente híbridos. É um tipo de presságio, é a metodologia de projeto do futuro; é a liberação de energia em acidente. As cicatrizes aparecem como metáfora de novos orifícios mucosos a serem penetrados pelo metal, em analogia às próteses fáusticas numa relação que excita a hiper-realidade contextualizada por Baudrillard e Cronenberg. Paranóicos, os personagens depositam suas esperanças nos projetados acidentes, não dão conta do peso da sociedade iluminada, hipocondríaca, que a cada dia precisa ser mais medicalizada pelas próteses psíquicas para suportar a falta de memória da cultura ocidental. Tudo em Crash está industrialmente determinado, o olhar dos personagens, os automóveis e os corpos que procuram algum sentido em atos extremos. Aqueles acidentes podem ser vistos hoje, não somente nas estradas, mas nas mesas de cirurgia plástica, afinal, os Faustos continuam espalhados pelo mundo como robôs que funcionam em prol do sistema. Em Crash, tudo está materializado, inclusive os espíritos e o ato sexual que reflete o movimento dos pistões dos motores automotivos. Também “[ ] usufruto industrial dos corpos, oposto a qualquer sedução; [...] produto tecnológico de uma maquinaria de corpos, de uma logística de prazeres que vai diretamente ao fim [...]” (BAUDRILLARD, 1992, p. 27). Forma de violência, coletiva assim como o acidente, o gozo torna-se lei, verdade científica. 108 Tecnologicamente interditados os personagens procuram as transgressões e a neutralização violenta do sexo. Os automóveis tornam-se deuses e as autoestradas o caminho para o sagrado, os personagens fascinados pelos sentimentos de terror e prazer apaixonam-se (pathos) pelo potencial de imbricamento do corpo com a máquina. Há a divinização do acidente, o seu terror e o seu prazer em rituais, considerados por Vaughan uma nova forma de arte. Transfiguram os corpos e delineiam novas linhas (cicatrizes) e matizes, misturadas à tinta e à lataria dos veículos. Transcendência funcional. Passa-se assim do desejo para a exigência sexual na festa tecnológica institucionalizada. Então, de todos os pontos de vista, a festa consome em sua prolificidade desmesurada os recursos acumulados. A transgressão não é mais que o interdito, mas a dissipação dos dois que em conjunto fundam a festa tecnológica de Crash. Acumular e gastar são as duas fases que compõem o ritual religioso. Portanto, existe em Crash um culto religioso à tecnologia com os personagens depositando sua energia na simulação dos acidentes das celebridades cinematográficas. Deletar todas as prováveis doenças que os genes deixariam de herança para seus filhos. Assepsia total, excluída está a parte maldita. O corpo é entregue à simbologia da técnica: incisões, excisões, escarificações passam como caracteres do corpo. Paradoxal, Crash apresenta o corpo sem órgãos nem gozo de órgão, mas submetido às cicatrizes técnicas, ao corte tecnológico analogamente às cirurgias. Diante disso, o pensar radical irrompe o funcionamento radical das coisas. Os personagens de Crash precisam das imagens embora disfarçadamente iconoclastas. Projetam a destruição das imagens, fabricam a profusão delas e as destroem nas simulações dos desastres automobilísticos. Não estão nem no belo nem no feio, mas no funcional. Estão condenados à indiferença. Baudrillard (1991, p. 148) afirma que em Crash tudo é hiperfuncional, é o mesmo universo do hipermercado. Mas ao mesmo tempo o funcionalismo de Crash devora sua própria racionalidade atingindo os limites paradoxais. Nem bom nem mal, em Crash já não existe ficção nem realidade, é a hiper-realidade que abole as duas. Um tipo de vertigem de signos nulos envoltos nos corpos. Como a tecnologia substitui o papel de Deus e as transformações realizadas calculam a natureza para finalizá-la no artifício de infinitos objetos, os personagens de 109 Crash, buscam livrar-se do lugar tedioso em que se encontram sacralizando o orgasmo e o acidente, acreditando que esses dois os levarão ou ao prazer desregrado ou a extinção da própria vida, numa nova possibilidade estética, que não deixa de ser cientificista, na qual aquelas referenciadas feridas serviriam até como novas vulvas ou ânus. O corpo é levado ao limite ao se definhar com a máquina e gerar uma nova arte da não representação, da exterminação da sua condição orgânica para aos poucos ir se transformando em máquina. As cicatrizes seriam como as tatuagens que marcam e definem o agir de uma pessoa. Expressam alguma referência comportamental e modos de ver o mundo. Crash é em última instância, a representação dos rituais de passagem do corpo orgânico para o corpo inorgânico que não deixa de ser explorado pela produção mercadológica e pelo consumismo. O corpo é construído por uma educação influenciada pelas mídias, sendo que, o cinema exerce papel fundamental na reversão de uma concepção que deveria ser imaginariamente ficcional, criativa e poética, mas, lembrando as palavras de Ballard e Baudrillard, a ficção é o mundo e não sabemos muito bem diferenciar o que é real e irreal. Nessa perspectiva é que os personagens de Crash se misturam à potencialidade da técnica, resultando na hiper-realidade. Dessa maneira, os personagens se confundem com os automóveis, são o complemento de ditos e interditos tecnológicos que geram em suas vidas a tediosa mesmice. Então, dispõem sua energia para os acidentes e para a morte. Sentem a vida no momento do acidente, livram-se das amarras publicitárias com os choques. Tentam instantes de ritual em vão, pois os duplos já estão materializados, por esse motivo frustram-se. E é aqui que mais uma vez a frase de Ballard e Catherine faz sentido: talvez da próxima... Essa frase é emblemática por caracterizar a fina linha que liga a vida e a morte nas sociedades tecnológicas. A qualquer momento podemos sofrer algum tipo de moléstia que pode estar diretamente ligada à tecnologia. O próprio acidente serve de exemplo para ilustrar esse mal-estar. No início do filme Catherine enuncia essa frase quando Ballard diz que seu gozo foi interrompido. Ao final do filme, Ballard retribui a mesma fala para Catherine, o que ele propõe é que em próximas oportunidades eles encontrem a morte. A vida está diretamente ligada à morte. A cada instante de aprofundamento das tecnologias que supostamente estão aí para nos livrar da morte é o contrário que 110 acontece. A indústria automobilística comprova isso da seguinte maneira; depositamos esperanças nos gadgets dos automóveis e devido a isso nossa confiança diante da probabilidade de que aconteça um acidente também aumenta. Pode-se considerar então que esse fenômeno incita uma ilusão. Sentimo-nos protegidos pelos airbags, pelos freios ABS (Anti-lock Braking System) e todos os outros dispositivos que circundam o universo automobilístico, assim aceleramos mais. Ilusão porque ao contrário de seguros, estamos mais suscetíveis aos acidentes e as mortes aceleram as estatísticas das estradas. Os personagens já não se importam de se entregar fatalmente para a tecnologia. Sacrificam-se em prol da tecnologia, renunciando assim a sua própria existência. Em Crash, não existe autoconservação, mas autodestruição. Já não mais há subjetividade, mas maquinaria. O prazer é desprezado em favor de uma totalidade técnica. Os personagens são seduzidos pelo mal totalizador tecnológico. Vaughan e seus companheiros representam uma humanidade que, mais que nunca, continua a olhar para frente em sinal de contínuo progresso e de sua retroalimentação. Já não há mais, nem masoquismo, apenas funcionalidade. O corpo máquina, artificial, virtual... Confusão em espiral! Os veículos com sua falsa sensação de segurança, as estradas mal estruturadas ou como corredores de velocidade, mais as propagandas extinguem ou diminuem as relações sociais, redimindo tudo à escala da produção e do consumo. Inclusive é possível considerar que a destruição dos corpos e dos carros é também mais um meio produtivo e de consumo. Todo esse jogo faz parte das estratégias dos sistemas. Tudo é projetado para a destruição porque só com ela é possível produzir mais objetos para o progresso do consumo. Percebendo ou não esse fenômeno, daí o desencanto dos personagens de Crash. O corpo metaforizado não só como máquina, mas como mercadoria (signo) processa o golpe de misericórdia da técnica ao reduzi-lo em códigos. O corpo metaforizado acredita participar de um sistema maior, está iludido no discurso metonímico do consumo que é propagandeado incessantemente. O próprio terrorismo é anunciado para ser consumido, ao passo que a banalidade sustenta a falsa felicidade, risos perversos de desespero soam no crepúsculo de uma banalizante comédia bestializante, uma zorra total do supérfluo. Os personagens de Crash não querem saber nem do início nem do fim. Já passaram desse limiar. O interminável processo de busca das origens e do fim os 111 desiludiu, pois, nenhuma visão antropológica resolverá a nossa falta de finalidade. As coisas estão vazias e por isso mesmo já não tem mais sentido ou fim, resta-nos a reprodutibilidade dos simulacros. O fim, como extermínio é creditado como valor ainda na programação para que a catástrofe, ela sim, faça sentido, pois ainda gera rendimentos. Os personagens já estão mortos, antes mesmo de morrerem nos acidentes. Já saíram da sua condição orgânica para integrar uma armação muito maior, que provocou a artificialização de seus imaginários, de suas vidas. 112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor Wiesengrund; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarescimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros escritos. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. BALLARD, J.G. Crash: estranhos prazeres. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BATAILLE, Georges. A parte maldita ‘A ’ Trad. Júlio Castafion Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1975. ______. O Erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L & PM, 1987. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Trad. 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