213 OS GRUPOS ESCOLARES EM MINAS GERAIS: A REFORMA JOÃO PINHEIRO (1906) José Carlos Souza Araujo* Centro Universitário do Triângulo Universidade Federal de Uberlândia RESUMO Proclamada a República no Brasil, em 1889, esta se viu diante de uma tarefa por fazer, a da reconfiguração da escola pública, seja em nível quantitativo e qualitativo, seja em termos de recursos humanos para socorrê-la, seja através dos edifícios escolares etc. A política educacional de caráter público no Brasil, expressa no período da Primeira República, através dos grupos escolares, já é objeto de várias pesquisas. Sua institucionalização em diferentes Estados aqui exemplificados, com suas respectivas datas de emergência institucional - em São Paulo (1894), Maranhão (1903), Minas Gerais (1906), Rio Grande do Norte (1908), Mato Grosso (1908), Espírito Santo (1908), Paraíba (1911), Santa Catarina (1911), Sergipe (1916), Goiás (1918) -, expressam o esforço e a resposta republicanos em torno da disseminação da escola pública sob esse ideário. No entanto, a emergência dos grupos escolares em diferentes Estados brasileiros não pode ser compreendida somente a partir de olhares regionais, geograficamente configurados pelas unidades federativas que compõem o território brasileiro. No entanto, as pesquisas histórico-educacionais a respeito ainda estão aquém quanto ao sentido de propiciar uma síntese explicativa sobre tal temática; por outro lado, tal impossibilidade torna-se também obstaculizada, posto que ainda se desconhecem as dinâmicas estaduais que se avultaram em vista da assunção dos grupos escolares como norteamento político-educacional, bem como as efetivas respostas em vista do mesmo. Nessa esteira, e com o intuito de contribuir para isso, esta comunicação busca estabelecer os norteamentos da política educacional mineira expressa em 1906, ano que inaugura a instauração dos grupos escolares em Minas Gerais. Destaquem-se na denominada Reforma João Pinheiro os vínculos entre o republicanismo e a educação escolar, a compreensão da política em torno dos grupos escolares como uma política pública, a significação de João Pinheiro, bem como a sua trajetória republicana, positivista e liberal. Para uma compreensão mais adequada, privilegiar a importância de João Pinheiro na política estadual mineira não é um exagero, pois se apresenta como uma figura que soube apreender as forças republicanas em Minas Gerais em seu nascedouro, bem como dinamizálas. Nesse sentido, a história educacional mineira tem em João Pinheiro uma figura que soube manter a pulsação republicana, tecida a partir da instância governamental estadual, porém com ressonâncias locais e regionais expressivas. Especificamente com relação à reforma educacional mineira de 1906, observam-se preocupações com o método intuitivo, com o caráter substitutivo dos grupos escolares em relação às escolas isoladas, com a organização física das escolas, com a parceria necessária do público e do privado na luta contra o analfabetismo, com o papel dos municípios e sua adesão para a configuração de tal política pública estadual, com a formação para a cidadania, com o papel da inspeção escolar como a alma do ensino. Mas, para além de tais temáticas, tal reforma representa uma política pública expressiva para o processo republicano brasileiro e, particularmente, mineiro, constituindo-se um capítulo importante da história educacional brasileira em sua expressão liberal. Entre o projeto republicano expresso em Minas Gerais em 1906 por esta política pública, e os limites manifestos no bojo de sua própria implementação, não cabe descurar as realizações. A centena e meia de grupos escolares * Doutor em Educação, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário do Triângulo, e ProfessorColaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. 214 juridicamente criados até 1930, depois de transcorridos 24 anos após a Reforma João Pinheiro, quando Minas Gerais contava com pouco mais de duas centenas de municípios, esbarram em dados populacionais do mesmo Estado: de 3.594.471 habitantes em 1900 para 7.308.853 em 1928. Houve sim um vigor inicial manifesto, posto que até 1915, os grupos escolares criados somavam aproximadamente uma centena, porém posteriormente tal vigor diminuiu, apesar do crescimento populacional duplicar-se. Portanto, entre o projeto e as realizações, cabe contemplar os limites postos pela própria Reforma, bem como os obstáculos ao movimento histórico-educacional do período histórico em apreço. TRABALHO COMPLETO O objeto deste é configurar uma análise em torno da política educacional mineira voltada para uma avaliação dos ideais republicanos expressos em relação à escolarização devotada aos grupos escolares instaurados a partir de 1906. O marco cronológico se deve a três documentos legislativos: a Lei n° 439 de 28/09/1906 – visando a reforma do ensino primário, normal e superior do Estado de Minas Gerais -, o Decreto n° 1947 de 30/09/1906 – relativo ao programa do ensino primário -, e o Regulamento da Instrucção Primária e Normal do Estado de Minas Gerais, um decreto n° 1960 de 16/12/1906. Além destes, em 03/01/1907, há um outro decreto identificado pelo n° 1969, que trata do regimento interno inclusive dos grupos escolares. Como a preocupação deste estudo está centrada na externalização de tal política educacional, os decretos relativos ao programa do ensino primário e ao regimento interno, há pouco mencionados, não serão aqui tratados. A resposta republicana à educação escolar precisa ser compreendida levando-se em conta o contexto europeu do século XIX - quando a escolarização primária veio se efetivando em diferentes compassos nos diferentes países -, bem como o contexto brasileiro. No que tange a este, a primeira metade do século XIX brasileiro se ocupou da unidade nacional do ponto de vista político. Na transição do Império (1822-1889) para a República (a partir de 1889), especialmente no tocante às últimas décadas daquele, a educação é objeto de significativas discussões e reformas (HAIDAR, 1972). Proclamada a República, esta se viu diante de uma tarefa por fazer, a da configuração da escola pública, seja em nível quantitativo e qualitativo, seja em termos de recursos humanos para socorrê-la, seja através dos edifícios escolares etc. A política educacional de caráter público no Brasil, expressa no período da Primeira República, através dos grupos escolares, já é objeto de várias pesquisas. Sua institucionalização em diferentes Estados aqui exemplificados, com suas respectivas datas de emergência institucional - em São Paulo (1894), Maranhão (1903), Minas Gerais (1906), Rio Grande do Norte (1908), Mato Grosso (1908), Espírito Santo (1908), Paraíba (1911), Santa Catarina (1911), Sergipe (1916), Goiás 215 (1918) -, expressam o esforço e a resposta republicanos em torno da disseminação da escola pública sob esse ideário. A emergência dos grupos escolares em diferentes Estados brasileiros não pode ser compreendida somente a partir de olhares regionais, geograficamente configurados pelas unidades federativas que compõem o território brasileiro. Isso deve-se ao motivo de que as pesquisas histórico-educacionais ainda estão aquém quanto ao sentido de propiciar uma síntese explicativa sobre tal temática; por outro lado, tal impossibilidade torna-se mais obstaculizada, posto que ainda se desconhecem as dinâmicas estaduais que se avultaram em vista da assunção dos grupos escolares como norteamento político-educacional, bem como as efetivas respostas em vista do mesmo. Nesse diapasão, em Minas Gerais, em documento oficial de 1908, que expressava os ideais e as realizações mineiros em torno da educação escolar, os grupos escolares são concebidos como expressão arquitetônica, direcionada a um modo político de contemplá-la: Todos os grupos, excetuados dois, funcionam em prédios próprios, adaptados para o fim a que se destinam. Em geral, esses prédios são os melhores das localidades onde estão situados. Podese afirmar que, quando nada, se iniciou no Estado a mudança das escolas dos pardieiros para os palácios (MINAS GERAIS. Instrução Pública Primária em Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1908. Apud FARIA FILHO, 2000, p. 38). O posicionamento da autora de Templos de civilização: [...] traduz a estreita associação entre o republicanismo e os grupos escolares, concebendo estes como irradiadores daquele: A escola primária republicana instaurou ritos, espetáculos, celebrações. Em nenhuma outra época, a escola primária, no Brasil, mostrara-se tão francamente como expressão de um regime político. De fato ela passou a celebrar a liturgia política da República; além de divulgar a ação republicana, corporificou os símbolos, os valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era própria [...] (SOUZA, 1998, p. 241). E as indicações dessa mesma autora sobre a simbiose entre o republicanismo e os grupos escolares são sugestivas aos pesquisadores em História da Educação sobre o período da Primeira República: Extrair todo o sentido da escola graduada como templo de civilização requer um olhar atento para as múltiplas dimensões da pedagogia política implementada pelo Estado republicano. A democratização do ensino, a construção da nacionalidade, a formação do cidadão, a educação moral fundada na perspectiva política e social, bem como a estatização da escola e a renovação pedagógica são faces de um mesmo processo político e cultural [...] (SOUZA, 1998, p. 284). 216 Observem-se aqui referências aos novos horizontes políticos manifestos, novas mediações pedagógicas em processo e nova estrutura arquitetônica a expressar um anseio em torno de intencionalidades sócio-políticas e de novas relações entre a educação escolar e a sociedade. Remetendo-nos às reflexões sobre as políticas públicas, com o propósito de situar a educação escolar entre elas, é necessário assumi-las conceitualmente quando são capazes de delimitar ações que visem dar norteamento à vida social no tocante a aspectos de natureza estrutural, como afirma a citação abaixo: As políticas públicas são medidas voltadas para a reprodução econômica e social dos indivíduos ou da coletividade. Elas concernem as agências do governo e os governados. As políticas públicas resultam de determinações estruturais que regulam o processo social e se expressam em medidas de educação, saúde, previdência, assistência, emprego, habitação, renda etc. Elas podem também ser implementadas para dar cobertura a situações conjunturais, assumindo um caráter provisório e emergencial. As políticas públicas podem ser universais, ou seja, voltadas para todos os cidadãos, ou seletivas (segmentadas/pontuais), voltadas para determinados grupos sociais. O Estado é a instância fundamental de implementação e regulação das políticas públicas, ao assumir o papel de mediador entre os diversos atores presentes no processo histórico-social (FIDALGO & MACHADO, 2000, p. 253). Nesse mesmo verbete denominado por política pública, chama-nos a atenção a distinção entre as políticas públicas com um dimensionamento provisório e emergencial e, implicitamente expresso, aquelas com um direcionamento mais determinado e não de curto prazo. Essa distinção é importante, uma vez que os grupos escolares se instauraram focados em ‘determinações estruturais’ em vista da regulação do processo social. Em vista das limitadas realizações no campo escolar durante o período imperial, os ideais e a propaganda republicanos se punham como organizadores daquele, porém cabia a estes explicitar princípios, diretrizes, metas, bem como operacionalizar decisões efetivas quanto à implementação de uma política educacional que respondesse aos anseios republicanos. É nesse sentido que os grupos escolares podem ser compreendidos como compartilhantes das políticas públicas de então, posto que expressam o sentido republicano buscado. Nessa direção vão também as reflexões de Viñao Frago no sentido de oferecer um suporte teórico-metodológico para a compreensão do objeto deste estudo, ou seja a instância da política educacional em torno dos grupos escolares: [...] as reformas parecem identificar-se mais com as mudanças globais no marco legislativo ou estrutural do sistema educativo, e as inovações com mudanças, também intencionais, mais concretas e limitadas ao currículo – conteúdos, metodologia e estratégias de ensino- 217 aprendizagem, materiais, formas de avaliação.[...] As reformas seriam, em síntese, ‘esforços planificados para mudar as escolas com o fim de corrigir problemas sociais e educativos percebidos (VIÑAO FRAGO, 2001, p. 26). Ressalte-se que a distinção que este autor apresenta entre as reformas e as inovações com mudanças é instigante a assumir que os grupos escolares como política republicana eram resultado de intervenção – que indo além das inovações – que se propunham a direcionar a correção de ‘problemas sociais e educativos percebidos’. Esta diretriz está presente nos ideais expressos, particularmente no governo de João Pinheiro em Minas Gerais, entre 07/09/1906 e 25/10/1908. Os ideais postos no Regulamento de 16/12/1906, já mencionado anteriormente, tem como propósito provocar alterações significativas nas mediações pedagógicas que envolvem a vida escolar, nas relações entre os sujeitos envoltos nas relações pedagógicas, bem como no redirecionamento político do papel da escolarização. O estabelecimento de contornos em torno da realização republicana no campo da escolarização primária não pode nos isentar de propor uma distinção entre a utopia ali configurada – no caso em Minas Gerais, particularmente à instauração do norteamento em torno dos grupos escolares – e os problemas vários que afetavam Minas Gerais. Ou seja: entre a consciência em torno do possível – expressa na significação e na esperança em torno dos grupos escolares – e a consciência real das questões políticas, econômicas, culturais, de caráter regional ou não, há uma tensão a ser considerada, posto que a consciência real está carregada da memória que a sociedade traz – no caso, sobre a educação escolar –, memória esta interpretada e ser constituída como alavanca para a estruturação do possível. Os grupos escolares em Minas Gerais a partir de 1906 se apresentam como expectativa nutrida pelas estatísticas educacionais, pela análise e pelas críticas que se punham ao período imperial e à própria experiência republicana que já completava 17 anos em relação à instituição da política educacional em apreço. Nessa direção, é necessário dimensionar a Reforma João Pinheiro de 1906 numa perspectiva de historicidade enquanto pretendeu estabelecer uma diretriz para a escola pública mineira no início do século XX. Tal direção implica em assumir a memória educacional construída e expressa no campo político e partidário do final do período imperial como instâncias que vieram reunindo e acumulando análises, explicações e interpretações sobre a escolarização e seus obstáculos naquele período da história educacional brasileira. A Reforma João Pinheiro promoveu uma alteração de direção da educação primária, implicando, como será visto adiante, em reestruturações, em mecanismos de participação dos municípios através dos edifícios escolares, a dar centralidade à inspeção como a alma da educação 218 escolar, em eleger a arquitetura escolar como expressão simbólica do republicanismo, em privilegiar a reestruturação de programas de ensino, bem como a reencaminhar novas orientações e diretrizes para a metodologia de ensino etc. Para uma compreensão mais adequada, privilegiar a importância de João Pinheiro na política estadual mineira não é um exagero, pois se apresenta como uma figura que soube apreender as forças republicanas em Minas Gerais em seu nascedouro, bem como dinamizá-las. Nesse sentido, a história educacional mineira tem em João Pinheiro uma figura que soube manter a pulsação republicana, tecida a partir da instância governamental estadual, porém com ressonâncias locais e regionais expressivas. João Pinheiro da Silva é mineiro de Serro, que divisa com o município de Diamantina, região central do Estado, ao norte da atual capital, nascido em 16/12/1860, e vindo a falecer em Belo Horizonte, MG, em 25/10/1908, no Palácio da Liberdade, quando exercia o mandato de Presidente do Estado de Minas Gerais, previsto para o quadriênio que compreendia o período entre 07/09/1906 e 07/09/1910. Embora inicialmente tivesse optado pela Engenharia em 1881, depois de ter passado pelo seminário, dirigiu-se para São Paulo em 1883, onde concluiu o curso de Direito em 1887. Nessa cidade também foi professor da Escola Normal. É em ambiente paulista que convive com o republicanismo, com o positivismo e com a campanha abolicionista. São inúmeros os seus colegas de turma e contemporâneos no curso de Direito que vieram a ter projeção no cenário republicano. É líder na estruturação do Partido Republicano Mineiro. Após a proclamação da República, foi vice-governador de Minas Gerais por um pequeno período. Em seguida, foi eleito deputado ao Congresso Constituinte de 1890, renunciando ao mandato em fins de 1891 com a queda de Marechal Deodoro. Posteriormente, acaba dividindo suas ocupações como empresário de uma cerâmica em Caeté, MG – município próximo de Belo Horizonte, MG -, e como professor na Faculdade Livre de Direito do Estado de Minas Gerais. Voltando ao cenário político, em 01/01/1899 já era Agente Executivo de Caeté, MG, o que implicava também a Presidência da Câmara de Vereadores. Em 1903, a convite do então Presidente do Estado de Minas Gerais, Francisco Antonio Sales, o qual o antecedeu entre 1902 e 1906, passa a projetar-se mais amplamente no campo político mineiro. Presidindo o Primeiro Congresso Agrícola, Industrial e Comercial de Minas Gerais, realizado em 1903, já reclamava, através de um discurso de encerramento do referido Congresso, a retomada dos ideais republicanos. Candidato ao Senado em 1904, foi eleito, onde permaneceu por menos de um ano depois da posse, vindo a ser Presidente do Estado de Minas a partir de 07/09/1906 (cf. DICIONÁRIO BIOGRÁFICO DE MINAS GERAIS). Aos 22 dias de Presidência do Estado de Minas Gerais, João Pinheiro sanciona a Lei n° 439 de 28/09/1906. Seu artigo 1° expressava o tripé spenceriano: “[...] que a escola seja um instituto 219 de educação intellectual, moral e physica”. Previa o seu artigo 3° que o ensino primário é gratuito e obrigatório, e ministrado em escolas isoladas, grupos escolares e escolas-modelo anexas às escolas normais. O inciso II do artigo 6° dispunha que ao Governo caberia “organizar o programma escolar, adoptando um methodo simples, pratico e intuitivo”. O seu artigo 10° previa que “nos logares onde forem organizados os grupos escolares [...], poderá o Governo supprimir tantas escolas isoladas quantas as de que constarem os respectivos grupos [...]”. O seu artigo 14° reza que “os alumnos pobres que mais se distinguirem no curso primario pela intelligencia, bom procedimento e assidua applicação, terão a protecção do Governo para serem admittidos gratuitamente, quer no Gymnasio Mineiro, quer nos gymnasios equiparados”. Em seu artigo 22°, afirmava que o Governo buscaria meios para que os edifícios fossem apropriados à escola, e estas providas “de livros didacticos, mobilia e todo o material de ensino pratico e intuitivo”. O Regulamento da Instrucção Primaria e Normal do Estado de Minas, de 16/12/1906 – observe-se que também é a data de nascimento de João Pinheiro -, em seu preâmbulo estimava Minas Gerais com 4.000.000 de habitantes, o que implicava em 800.000 alunos; no entanto, no Estado o número de alunos matriculados na escola primária era 54.825. Destes, 11.607 alunos se vinculavam à iniciativa particular e municipal. Com esse raciocínio, [...] não dispondo o governo de elementos necessarios para diffundir a instrucção primaria pelas 800.000 crianças em edade escolar existentes no Estado, entende que deve estimular a iniciativa particular, francamente revelada nesta materia, para que ella possa com mais efficacia collaborar com o Estado na lucta contra a ignorancia (MINAS GERAIS, Regulamento da Instrucção Primaria e Normal do Estado de Minas, 1906, p. 4). Ainda no mesmo preâmbulo, esclarece as diretrizes para a instalação da educação escolar para todo o Estado de Minas Gerais: “Para a disseminação de escolas isoladas e de grupos escolares, serão de preferencia attendidas as localidades que corresponderem aos intuitos do governo, offerecendo ao Estado predio onde o ensino se possa exercer de modo conveniente e efficaz” (MINAS GERAIS, Regulamento da Instrucção Primaria e Normal do Estado de Minas, 1906, p. 7). E em seu artigo 45°, o mesmo precisa melhor tal orientação: “Na execução de seu plano de ensino, o governo, para instituição de escolas de qualquer espécie, grupos escolares etc., dará preferência às localidades que o auxiliarem eficazmente já por sommas em dinheiro, já por dadivas de predios, terrenos ou materiaes”. O teor das citações e comentários à Lei n° 439 de 28/09/1906 e do Regulamento de 16/12/1906 estabelecem dois limites para a explicitação efetiva de tal política educacional pela institucionalização dos grupos escolares. O primeiro limite é o estabelecimento de prioridade às 220 localidades que ofereçam o edifício escolar, terrenos ou somas em dinheiro, como contrapartida ao Estado; no entanto, tal diretriz postula compartilhar com as políticas públicas locais, buscando fazer com que as municipalidades arquem com o ônus, em atendimento ao norteamento de âmbito estadual. O segundo limite permite enveredar pelas categorias público e privado: de um lado, podem os grupos escolares serem afirmados como expressão de uma política pública estadual, e em torno da qual se depositavam esperanças de concretização, tendo em vista revolver determinações estruturais inconseqüentes com o republicanismo e com a democracia etc. Por outro lado, o poder público estadual confessava, pelo Regulamento de 1906, incapacidade de publicizar a educação primária. A urgência da escolarização fez se sentir mais sensivelmente no período republicano, e as respostas públicas e privadas, confessionais ou não, se multiplicaram na direção do enfrentamento da urgente necessidade de configurar a democratização do acesso à escola. Por conseguinte, com esta declaração há uma publicização da iniciativa particular, quando anuncia estímulo à iniciativa privada para que ela possa colaborar com o Estado na luta pela ignorância. Ou seja, os interesses privados estavam convocados a cooperar com uma política pública. Pode-se, inclusive, afirmar que há um intercambiamento entre o público e o privado, implicando em parceria que, em última instância, alimenta os interesses privados, fortalecendo-os, sem necessariamente institui-los. Em referência à Reforma João Pinheiro, as observações à dinâmica interna de uma sala de aula – que envolve a interação entre professores e alunos - , são elucidativas anteriormente à instauração dos grupos escolares: Até então, os professores em um exaustivo trabalho, ensinavam em aulas heterogêneas, onde se reuniam crianças das quatro classes, com óbvios inconvenientes para a aprendizagem e para esses próprios mestres que teriam que redobrar esforços para manter em atividade todos os alunos, sem poderem dispensar, ao mesmo tempo, a sua atenção para com todas essas divisões. Ainda que empregassem auxiliares ou utilizassem os próprios alunos mais adiantados para dirigirem os das primeiras classes, tal como se fazia no tempo do Império e mesmo na República, a eficiência da aula muito deixava a desejar (MOURÃO, 1962, p. 93). O objetivo da reforma empreendida é claramente explicitado ao final do referido preâmbulo, mencionado há pouco: “encontrar no espírito publico o principal collaborador na obra grandiosa que se propõe a fazer de cada criança em edade escolar um cidadão digno de uma Patria livre” (MINAS GERAIS, Regulamento da Instrucção Primaria e Normal do Estado de Minas, 1906, p. 8). 221 Porém, anteriormente a esta conclusão, e contemplando a inspeção como a ‘alma do ensino’, afirma: “[...] será o Estado dividido em 40 circunscripções, que serão permanentemente percorridas pelos inspectores, agentes da confiança do governo, incumbidos de fiscalizar as escolas e de orientar o ensino, para que este se aperfeiçoe de modo uniforme em todos os recantos do Estado” (MINAS GERAIS, Regulamento da Instrucção Primaria e Normal do Estado de Minas, 1906, p. 8). Embora não sejam detalhados outros aspectos presentes nos 31 artigos da Lei n° 439 de 28/09/1906 e do Regulamento de 16/12/1906, com seus 268 artigos, é possível pelas citações e comentários feitos, reconhecer os horizontes postos pela Reforma João Pinheiro. Em resumo de um discurso de João Pinheiro, pronunciado em Itajubá, MG, em 04/05/1907, segundo a versão do Minas Gerais: [...] a população escolar dobrou, quase, nos sete meses do seu governo; todos porfiam em colaborar no esforço governamental; o movimento é para confortar e firmar esperanças. Em todas as estações, durante sua passagem, a manifestação das crianças das escolas é a prova do resultado prático da última reforma e o atestado vivo do interesse que desperta (PINHEIRO, 1980, p. 249). Em sua primeira mensagem enviada ao Congresso mineiro em 15/06/1907, João Pinheiro reflete a perspectiva que a reforma pretendia, em acordo com posicionamento de Viñao Frago citado anteriormente: “A reforma teve de ser completa e total quanto aos métodos de ensino, à disciplina escolar e à fiscalização severa do serviço, estando o governo cuidando da questão de casas escolares apropriadas e do respectivo mobiliário, dentro de restritos recursos orçamentários” (PINHEIRO, 1980 p.258). A citação em seqüência a esta avaliação interna a respeito da dita reforma - no tocante ao método de ensino, à disciplina escolar, à fiscalização, aos edifícios, ao seu mobiliário e ao orçamento – projeta uma referência à dimensão político-educacional no que respeita aos seguintes aspectos: a) ao seu interesse voltado para a coletividade; b) ao vínculo que implicava a adesão das municipalidades; c) concurso da iniciativa privada (já comentado anteriormente); d) limites da formação do professor, incapaz de atender às demandas que a reforma projetava; e) a definição de que tal reforma é uma necessidade pública: daí o seu caráter de intervenção na redefinição das ‘determinações estruturais’, bem como a explicitação de que a mesma sobreleva-se a todas as outras necessidades públicas: Para a alma mineira é extraordinário conforto o espectáculo que oferece o início desse ressurgimento, cujas glórias mais ao próprio povo cabem que ao governo, tendo compreendido rapidamente que o interesse visado era o da coletividade, vendo-se a matrícula nas escolas primárias rapidamente, quase que duplicada. As municipalidades têm vindo em auxílio da ação administrativa 222 e seja-me permitido augurar em breve o concurso direto da própria iniciativa particular; [...] Entretanto, é cedo ainda para nos julgarmos senhores de uma vitória definitiva: a reforma tem que lutar com os hábitos maus e inveterados, com um professorado que não estava suficientemente preparado para a prática dos novos métodos e por isso será precisa, ainda e por tempos, uma ação intensa e mantida, premunidos todos contra os desânimos vis, de que as infelizes retrogradações são filhas. O governo manterá a sua orientação com absoluta firmeza, certo de que satisfaz uma necessidade pública, que não podia ser adiada e que domina todas as outras (PINHEIRO, 1980, p. 258-259). Em sua segunda mensagem ao Congresso mineiro em 15/07/1908, relativamente ao item instrução primária, anuncia o crescimento vertiginoso da matrícula escolar, com 10.090 alunos em 22 grupos escolares em funcionamento. Retoma o caráter público de tal política educacional, que conta com doações de particulares e com a iniciativa das municipalidades. Mas a afirmação que mais chama a atenção nessa citação é a de que a instrução primária é um “serviço público, cujo desenvolvimento é essencial ao regime republicano”, como está logo a seguir: Instrução primária – Neste importante ramo de serviço público, cujo desenvolvimento é essencial ao regime republicano, tem tido o governo máximo cuidado, mormente em relação à matrícula escolar, que, com a atual reforma, chegou quase a duplicar, como já o mostrei com o cotejo dos respectivos algarismos. Estão funcionando regularmente 22 grupos escolares, em que se acham matriculados 10.090 alunos. Brevemente este número estará consideravelmente aumentado, achando-se, para tal fim em preparo, muitos prédios que sem muita demora, terão a necessária adaptação e provindos principalmente de doações de particulares e das municipalidades. A fiscalização técnica do ensino tem sido feita com toda regularidade. E apesar da duplicação da matrícula, da criação dos grupos e da remuneração dos inspetores, a despesa apenas se elevou a 25%. Cumpre, entretanto, assinalar que, das 800 mil crianças do Estado, em idade escolar, a 700.000 não se dá ainda o devido ensino (PINHEIRO, 1980, p. 382). Observe-se ao final a importância que a fiscalização encarregada aos inspetores escolares ganha, inclusive desde a legislação de 1906 comentada anteriormente, e de que a despesa em vista de tal política não é preocupante aos cofres do Estado. Mas, o seu realismo se expressa entre o que se fez até então – 100.000 crianças matriculadas – e o que se necessita fazer em prol da educação pública primária, posto que 700.000 crianças ainda se encontravam inatingidas pela mesma. Procurando finalizar, sem necessariamente ser conclusivo, e a um distanciamento maior em relação ao movimento de implantação dos grupos escolares em Minas Gerais, para além do governo de João Pinheiro entre 1906 e 1908, as realizações efetivas não podem ser avaliadas sem 223 conferir-lhes significação, sobretudo desde o ponto de vista de projeto político-educacional público estadual. Conforme dados preliminares realizados pelo autor deste, as regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, a oeste do Estado do Minas, contavam com vinte e um municípios até 1923, e com quinze até a data da Reforma João Pinheiro: houve a criação de grupos escolares, por decreto, em 17 municípios entre 1908 e 1926, o que não significa que tenham sido instalados até 1926. De qualquer forma, são dezenove anos trilhados para que a criação dos mesmos se desse. Em Uberlândia, MG, a criação se dera em 20/07/1911, e a instalação em 01/07/1914. Mas, há outros municípios da mesma região que tem seus grupos criados e instalados no mesmo ano, como é o caso de Uberaba, Prata, Araxá, Sacramento, entre outros. Tomando-se em consideração dados quantitativos relativos ao Estado de Minas Gerais como um todo, cabem estudos de caráter monográfico local e regional, tendo em vista a avaliação entre a criação e a instalação dos grupos escolares. No entanto, ao lado de tal política pública, também se realiza a disseminação do ensino privado, confessional ou não, que concorre com a dimensão pública, seja auxiliando-a ou com ela estabelecendo parceria, seja socorrendo a nascente pressão pela escolarização no período em apreço. Entretanto, a avaliação de John D. Wirth deixa entrever alguns vestígios em relação à Primeira República em Minas Gerais, o que pode trazer indicações para a pesquisa históricoeducacional: Infelizmente, apesar de tanto vigor e idealismo, essas escolas educaram deficientemente a população urbana e quase nada as massas rurais; e as poucas instituições de qualidade eram bastiões de privilégio. Praticamente dois terços de todos os mineiros com mais de sete anos ainda eram analfabetos na época da revolução de 1930. Para um estado comprometido com a educação, esses resultados eram inadequados e os governadores ressaltavam este aspecto em seus relatórios anuais para a legislatura. A educação mineira atolou na economia de escassez e isso a desmoralizou. O governador Silviano Brandão fechou quase 400 escolas durante a depressão de 1898; mais tarde, o movimento de reforma da década de 20 foi desacelerado drasticamente pela crise de 1929. [...] Quase 80% da população viviam fora das áreas urbanas, de forma que a distância e a dispersão eram problemas básicos (WIRTH, 1982, p. 142). Mas tal avaliação não implica em afirmar que a política educacional em torno dos grupos escolares carecia de projeto e de iniciativa. Havia um projeto republicano em efetivação, e dele João Pinheiro foi responsável pela iniciativa e pela capacidade em dinamizá-lo em Minas Gerais, apesar do exíguo tempo de seu governo. Seu horizonte liberal o faz assumir tal iniciativa, contando com a participação privada, mas apostando no progresso. À educação cabia também acioná-lo e irradiá-lo. 224 Se estava em jogo uma política pública – a educação -, é necessário indagar, em perspectiva histórico-educacional, a respeito de sua capacidade de incluir. O pensamento e as ações políticas de João Pinheiro, provocado pelas mazelas do período imperial, certamente são um capítulo significativo do liberalismo, do republicanismo, mas também do positivismo, em território mineiro, mas nutrido pelas discussões que pautavam a agenda nacional. O seu projeto – enquanto expressão de uma consciência social que veio se construindo desde os finais do século XIX – esbarrava na consciência real que se averigua em várias citações feitas no decorrer deste. Se na política mineira foi um semeador de esperanças e um animador das mesmas, posto que soube congregar o ideário republicano e lhe dar diretriz, ideologicamente esteve comprometido com o jogo entre o público e o privado, apesar de inaugurar uma política pública significativa para o andamento republicano federal e mineiro. Sua oposição à monarquia não o isenta de sustentar, pela Lei n° 439 de 28/09/1906, um direcionamento de caráter seletivo em relação aos alunos pobres que se distinguissem pela inteligência, comportamento e aplicação. Os grupos escolares certamente inauguraram uma alteração de sentido da cultura escolar de então – e o papel de uniformizá-la caberia aos inspetores escolares -, bem como a potencialização da escolarização como irradiação do progresso, mas preferencialmente este chegaria às localidades melhor providas de recursos, portanto capazes de compartilhar desse processo seletivo de tal política pública. Esta, na verdade, se renova com o ideário res-publica-no, responsável por orientar a oposição à monarquia. Mais alavancado ou não pelo positivismo ilustrado, o ideário republicano teve no positivismo uma sustentação pedagógica ao processo político, na medida em que o mesmo encaminhava a vida social numa perspectiva fundada na evolução, no aperfeiçoamento e na progressão. Entre o projeto republicano expresso em Minas Gerais em 1906 por esta política pública, e os limites manifestos no bojo de sua própria implementação, não cabe descurar as realizações. A centena e meia de grupos escolares criados até 1930, depois de transcorridos 24 anos após a Reforma João Pinheiro, quando Minas Gerais contava com pouco mais de duas centenas de municípios, esbarram em dados populacionais do mesmo Estado: de 3.594.471 habitantes em 1900 para 7.308.853 em 1928. Houve sim uma energia inicial, posto que até 1915, os grupos escolares criados somavam aproximadamente uma centena, porém posteriormente tal vigor diminuiu, apesar do crescimento populacional duplicar-se. Portanto, entre o projeto e as realizações, cabe contemplar os limites postos pela própria Reforma, bem como os obstáculos ao movimento históricoeducacional do período histórico e apreço. 225 Referências bibliográficas DICIONÁRIO BIOGRÁFICO DE MINAS GERAIS: período republicano, 1889-1991. 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